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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILIOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

Daniel Lago Monteiro

William Hazlitt, um ensaísta ao rés-do-chão: ensaio e crítica

São Paulo

2016

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Daniel Lago Monteiro

William Hazlitt, um ensaísta ao rés-do-chão: ensaio e crítica

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de doutor em teoria literária e literatura comparada sob a orientação do Prof. Dr. Fábio Rigatto de Souza Andrade

São Paulo 2016

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Firme na terra, nativa,

que não quer negar a terra

nem, como ave, fugi-la.

João Cabral de Melo Neto

‘A educação pela pedra’

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Agradecimentos:

À Fapesp, que financiou esta pesquisa: # de processo 2011/23902-4.

À CAPES/Fulbrigt, que fincanciou parte desta pesquisa.

Aos meus pais, Dorimar Lago Monteiro e Flávio Mota Monteiro, e aos meus irmãos, Lucas

Lago Monteiro e Flávia Lago Monteiro, pelo apoio e carinho incondicionais e por terem

vivido mais esta aventura ao meu lado, ainda que às vezes à distância .

Ao meu orientador, Prof. Dr. Fábio Rigatto de Souza Andrade, que mesmo não sendo

“especialista” aceitou orientar este trabalho e o acompanhou com a receptividade e a

compreensão de um intelectual de mão cheia.

Ao Prof. Dr. Michael McKeon, que me acolheu como pesquisador visitante em Rutgers, The

State University of New Jersey. O crescimento intelectual que obtive na participação de suas

aulas, grupos de estudo e conferências é de valor inestimável.

À Profa. Dra. Luisa Calè, que me acolheu como pesquisador visitante em Birkbeck,

University of London, e cujas indicações bibliográficas enriqueceram enormemente a minha

pesquisa, e a todos os pesquisadores que conheci durante a minha estadia em Londres,

sobretudo ao Prof. Dr. Gregory Dart, à Profa. Dra. Uttara Natarajan e ao Philipp Hunnekuhl

(membros da Sociedade Hazlitt), que me mostraram que é possível combinar o rigor

acadêmico com a leitura fina, vivaz e witty de verdadeiros hazlittianos que são.

À Profa. Dra. Sandra Vasconcelos e ao Prof. Dr. Samuel Titan Jr. pela leitura cuidadosa de

parte desta tese e pelas ricas sugestões no exame de qualificação.

Ao Prof. Dr. Márcio Suzuki, grande mestre e amigo, a quem devo a maior das lições nesta

minha trajetória: a permanência do ânimo de experimentar, a constância do gosto de

descobrir, a capacidade imperecível de renovação; numa palavra, mocidade intelectual.

Ao Prof. Dr. Pedro Paulo Garrido Pimenta, que anos atrás disse a mim: “você precisa ler

Hazlitt, vai gostar e muito!” Ele estava certo. Também lhe sou grato pelos inúmeros

incentivos à minha pesquisa.

Ao Prof. Dr. John Milton, companheiro inigualável de badminton, por ter sido sempre muito

solicito e certeiro na revisão de meus textos em inglês, inclusive da versão inglesa desta tese.

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À Érica Emilia Leite, Marcella Marino Medeiros Silva, Mario Spezzapria e Thiago Cass pelas

tardes de sextas-feiras quando, entre uma e outra degustação de café, provávamos passagens

deliciosas de Coleridge, Schlegel, Hazlitt, e outros.

Às amizades que travei durante a minha estadia em Nova York: Andréa Burgos, Bernardo

Oliveira, Bruna Fetter, Eugene Osagie, Iuri Bauler, Jerry Clicquot, Julie Tudor, Kristin Henn,

Pablo Escudero e Sam O’Hana. A magia da minha experiência nova yorkina não seria a

mesma sem eles.

Aos amigos Alexandre Amaral Rodrigues, Christian Tadeu Gilioti, Claudio GH, Daniel

Nagase, Eduardo Correia, Fabiola Iszlay de Albuquerque, Fernando Seliprandy, Luís

Nascimento, Marcelo Ferreira, Maíra Portugal, Rafael Cardoso, Renato Prelorentzou, Sérgio

Araújo, Thiago Souza, Valter José Maria Filho e Vinícius Castro Soares pelas experiências e

vivencias compartilhadas.

À Ana Letícia Adami Batista, que me acompanhou em cada uma das etapas deste percurso.

Leitora cuidadosa e de uma sensibilidade rara, suas sugestões e conversas estimulantes foram

ingredientes indispensáveis para a confecção desta tese. A ela todo o meu carinho, porque

carinho, pouco ou muito, nunca é demais!

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Aos meus irmãos, Lucas e Flávia.

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Resumo

MONTEIRO, D. William Hazlitt, um ensaísta ao rés-do-chão: ensaio e crítica. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.

Esta tese procura analisar a obra do ensaísta e crítico inglês William Hazlitt (1778-1830) a partir de um conjunto de imagens que vinculam as diferentes etapas envolvidas durante o ato de confecção do ensaio crítico e literário aos acidentes topográficos e à textura do solo, expressos no arquétipo recorrente do autor, “ao rés-do-chão”. Pela análise interna de texto e do exercício de leitura, perseguimos as passagens em que Hazlitt reflete sobre seu próprio metiê. A defesa do ensaio como forma de arte coloca-lhe a exigência de um altíssimo grau de elaboração que o aproxima, por analogia, à crítica inventiva e a outras formas de arte. Nesse sentido, o estudo desses elementos formais foi indispensável à pesquisa – também nos foi de grande valia o exame de alguns aspectos históricos e culturais, como o chamado Romantismo Inglês. Nos interessou, sobretudo, aquilo que definimos como “atitudes mentais” próprias do ensaísta, experimentadas e vividas por Hazlitt com intensidade, a saber: o retratista, o amigo e o adversário. Desse modo, cada um dos três capítulos desta tese pretende cobrir uma dessas “atitudes”. No primeiro capítulo, sobre o retratista e o estágio inicial de confecção do ensaio (a inspiração), acompanhamos o autor em suas peregrinações juvenis na leitura cerrada de algumas passagens de dois ensaios em que ele narra a sua experiência de conversão ao mundo das artes, “My First Acquaintance with Poets” e “On the Pleasure of Painting, e no modo como os retratos literários que escreveu de Jean-Jacques Rousseau e de Edmund Burke, seus legítimos precursores, apontaram a ele os caminhos para uma crítica inventiva. No segundo capítulo, sobre a atitude do amigo e a leitura, encontramos Hazlitt ora na solidão de seu quarto, mastigando os pensamentos, ora em companhia de pessoas próximas. Intimidade e convivência são os ingredientes chaves para essa etapa do trabalho. Para Hazlitt, a escrita de ensaio envolve um convite cordial ao leitor, com o qual o ensaísta espera dividir amigavelmente a sua tarefa. No terceiro capítulo, sobre a escrita, investigamos o papel do ensaísta como agente das transformações sociais, própria à atitude do adversário. O ensaio se apresenta como espaço privilegiado onde se travam lutas com ideias e se disputa uma causa; o ensaísta, por sua vez, se apresenta como o homem das ruas (man-about-town), cujas andanças pela metrópole londrina e convivência com os homens, sobretudo aqueles pertencentes às classes baixas, permitiu-lhe combinar à elegância do ensaísta os momentos combativos e ousados de prosa.

Palavras-chaves: William Hazlitt – Romantismo Inglês – Ensaio Literário – Critica

 

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Abstract

MONTEIRO, D. William Hazlitt, an essayist on the plain-ground: essay and criticism. Thesis (Doctorate) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.

This thesis analyzes the works of the English essayist and critic William Hazlitt (1778-1830) from a body of images that binds the different stages involved in the craft of the critical and literary essay to topographical accidents and the texture of the soil, as expressed in the author recurrent archetype “on the plain-ground”. My point of departure was the internal analysis of texts and close reading of certain passages where Hazlitt reflects on his own metier. The claims he makes in that essay is an art form required from him a high standard of formal elaboration that analogically approaches the literary essay and inventive criticism to other art forms. Thus, a careful examination of these formal elements was indispensable for this study. Moreover, some historical and cultural aspects that encompass Hazlitt and his time, the so called British Romanticism, were also part of my analysis, inasmuch as the author brings them to bear in his writings, and according to what I have conceptualized as “mental attitudes” proper to the essayist. In my understanding, three are the essayist’s attitudes as intensely experienced by Hazlitt, namely, the portraitist, the friend, and the adversary. Therefore, each of the three chapters in this dissertation aims at unveiling one of these “mental attitudes”. In the first chapter, on the portraitist attitude and the first stage in the making of the essay (the insight), I have followed Hazlitt during his youthful pilgrimages from an analysis of a few emblems pertaining in “My First Acquaintance with Poets” and “On The Pleasure of Painting”, where he narrates his moment of conversion to a world of art. Furthermore, I have linked these essays to the literary portraits Hazlitt traced of Jean-Jacques Rousseau and Edmund Burke, his genuine precursors, in order to understanding the paths along which he was initiated into inventive criticism. In the second chapter, on the friend “mental attitude”, we find Hazlitt by the fireside, either in the solitude of a room of his own, chewing his thoughts, or in the company of close friends. Intimacy and conviviality are the key ingredients to this stage in the craft of the essay (reading). According to Hazlitt, the writing of essays requires a cordial invitation to readers, with whom the essayist hopes to share his task in a friendly way. In the third chapter, on writing itself, I have inquired into the role of the essayist as an agent of social changes, a “mental attitude” suitable to the adversary. The essay presents itself as a privileged place where the writer struggles with the world and disputes a cause; and the essayist as the man-about-town, whose rambles in the streets of the metropolis and conviviality with the people, particularly those belonging to lower classes, enabled Hazlitt to combine the sustained and controlled rhythms of the polite culture of the essayist with strenuously argumentative, emphatic speeches.

Key Words: William Hazlitt – British Romanticism – Literary Essay – Criticism.

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SUMÁRIO

Introdução..............................................................................................................p.9

1. As Poças do Caminho: as peregrinações do artista quando jovem.............p.28

a) O Retratista..............................................................................................p.28

b) A Estrela da Tarde....................................................................................p.32

c) Gotas de Orvalho......................................................................................p.41

d) ‘Un Beau Jour’.........................................................................................p.52

2. Ao Pé da Lareira: solidão e boa-companhia..................................................p.64

a) O Amigo...................................................................................................p.64

b) As horas se fundiam em minutos: uma digressão..................................p.70

c) A Lua de Mel da Autoria: leitura e público leitor.................................p.74

d) Rítmicos e Arrítmicos: uma anedota na casa de Lamb........................p.85

e) A Conversa e a Arte da Escuta.............................................................p.88

3. As Ruas da Metrópole: rios de vida humana..............................................p.102

a) O Adversário..........................................................................................p.102

b) ‘A Good Hater’: resistência à ‘maré furiosa’......................................p.105

c) A Imprensa Periódica: o escritor no ‘meio da corrente’...................p.115

d) Na rua, com os homens: cockneyism e águas rasas............................p.123

e) Um Pássaro na Multidão: ‘ruas transbordantes’..............................p.133

f) Rio de Vida Humana: a imaginação e o sublime metropolitanos e

democráticos.........................................................................................p.143

Conclusão: Excêntrico e Concêntrico......................................................p.154

Bibliografia................................................................................................p.161

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Introdução

Dos grandes autores do romantismo inglês, nenhum outro ganhou a vida e

fez fama literária essencialmente pelos seus ensaios como William Hazlitt (1778-

1830), e isso, vale lembrar, em uma era de ensaístas de peso, como Charles Lamb,

Leigh Hunt, Thomas De Quincey, Samuel Coleridge, entre outros. Se, na vastidão dos

escritos de Hazlitt – vinte e um volumes, segundo a edição centenária de suas obras,

por Percival Presland Howe (1930) –, nem tudo pertence stricto senso ao gênero

ensaio, é de corte ensaístico, por exemplo, a análise psicológica das personagens em

Characters of Shakespeare’s Plays (1817), o exame dos gestos e tons de voz em A

View of the English Stage (1818), a narrativa de suas desventuras amorosas na

autobiografia Liber Amoris, or The New Pygmalion (1823), a descrição das paisagens

e dos caracteres nacionais em Notes of a Journey Through France and Italy (1826) e,

nos momentos mais autorais e analíticos, a monumental biografia Life of Napoleon

Bonaparte (1830). Mas foi sobretudo pelos ensaios confiados à imprensa periódica e

pelas séries The Round Table (1817), Table-Talk (1821), The Spirit of the Age (1825)

e The Plain Speaker (1826) que Hazlitt entrou para a posteridade, que lhe foi

impresso o título de “o grande ensaísta”1, nas palavras de Otto Maria Carpeaux.

No entanto, por um longo tempo, até boa parte do século XX, o nome de

Hazlitt andou esquecido e as suas obras se tornaram quase peças de antiquário. A

razão disso, sugeriu Terry Eagleton, talvez esteja precisamente na forma ensaio2. À

medida que a crítica literária se convertia em teoria literária; isto é, à medida que ela

deixava de se identificar com aquela atividade, que, segundo T. S. Eliot, envolve

escolha, comparação e análise, “sem ser bem sucedido em encontrar um teste seguro

que alguém possa aplicar”3, para se tornar em “relações complexas de tipo sistemático

                                                                                                                         1 Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, vol. “Romantismo” (Rio de Janeiro: Ed. Cruzeiro, 1966), p. 2012. 2 No artigo de Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, diz o crítico: “Hazlitt recebeu uma atenção crítica razoável na modernidade, mas pouco se fez para ressuscitá-lo da categoria pardacenta de ‘escritor de prosa menor da Regência’ e estabelecer devidamente o seu lugar, o de um dos escritores mais extraordinariamente inteligentes de sua época. Em partes, talvez isso se deva a uma questão de gênero”. New Blackfriars, # 54 (London: New Blackfriars, 1973), pp. 108-17: 108. 3 T. S. Eliot, “The Function of Criticism”, In. Selected Essays, 1917-1932 (New York: Harcourt, Brace and Company, 1932), pp. 12-22: 22.

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entre inúmeros fatores”4, o próprio sentido de literatura adquiria novos contornos e

definições. Por mais controversa que seja a separação entre literariedade e fenômenos

não-literários, a literatura, no mundo ocidental, em linhas gerais, passou a se definir,

de um lado, enquanto forma de linguagem que coloca em primeiro plano a própria

linguagem e, do outro, enquanto escrita imaginativa ou ficcional. Ora, uma leitura

ainda que rápida de um único dos ensaios de Hazlitt é o suficiente para nos convencer

de sua literariedade, quer pelo ritmo que surpreende o ouvido do leitor com mudanças

contínuas e desnorteantes, quer pelos seus toques de lirismo. Ao passo que a

ficcionalidade, os indivíduos imaginários e não históricos, cujas ações e diálogos

tornam a relação com o mundo uma questão de interpretação, não estão lá. De sorte

que a crescente influência de modelos teóricos que restringem a literatura à ficção

relegou o ensaio e, junto a ele, as obras de Hazlitt, a uma zona indistinta, para a qual a

pergunta – é ensaio literatura? – faz sentido5.

É desse modo que a apreciação crítica da literariedade e inventividade nos

ensaios de Hazlitt esteve, em um primeiro momento, a cabo dos próprios escritores.

Em uma resenha não publicada de Table-Talk, Lamb diz que o maior dos méritos

peculiares aos ensaios de Hazlitt, acima de seu virtuosismo argumentativo, é o estilo:

“Ele é (e não hesitamos ao dizê-lo) um dos mais hábeis escritores de prosa da

época”6. Quinze anos após a sua a morte, em 1845, De Quincey traçou um perfil do

ensaísta no qual ressalta, entre outras, a qualidade de equilibrista de seu estilo, o que

lhe permitia ser compreendido e admirado pelo público mais variado7. Em alguns

casos, a exemplo de Robert Louis Stevenson, a leitura de Hazlitt foi ingrediente

indispensável para a sua formação. Em “A College Magazine”, Stevenson diz:

“macaqueei Hazlitt com afinco”8. Anos mais tarde, quando já gozava de grande

prestígio entre a crítica e o público, Stevenson se dirigiu aos escritores de sua geração

                                                                                                                         4 Jonathan Culler, Teoria Literária, Uma Introdução (São Paulo: Beca, 1999) p. 12. 5 Não há decerto um consenso na teoria literária quanto a esse ponto. Em Anatomia da Crítica, diz Northrop Frye: “para ‘apreciar’ a literatura e para conseguir um contato mais direto com ela, voltamo-nos ao crítico público, o Lamb, o Hazlitt ou Arnold ou Sainte-Beuve, que representam o público em seu ponto mais judicioso e especializado (...). O crítico público tende a formas episódicas, como a palestra ou o ensaio informal [familiar essay], e seu trabaho não é ciência, mas outro gênero de arte literária” (São Paulo: Editora Loyola, 2014), pp. 117-8. 6 Charles Lamb, Selected Prose, (London: Penguin Classics, 2013) p. 241. 7 Thomas De Quincey, “William Hazlitt”, In. De Quincey as Critic, (London and Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973), pp. 369-80: 377. 8 Robert Louis Stevenson, Memories and Portraits, (Glasgow: Richard Drew Publishing, 1990), pp. 42-3. A frase de Stevenson é bastante conhecida e foi citada por Jorge Luis Borges em Esse Ofício do Verso (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), p. 97.

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dizendo: “Ainda que sejamos pessoas admiráveis, jamais escreveremos como William

Hazlitt”9. Oscar Wilde era outro de sua geração que identificava em Hazlitt um dos

maiores estilistas da língua inglesa, inigualável e imbatível em suas sentenças

mordazes10. Sabemos da própria pena de Wilde que o mote do Retrato de Dorian

Gray veio a ele a partir da leitura da seguinte passagem do ensaio “On the Knowledge

of Character”: “Toda a vida de um homem pode ser uma grande mentira a ele mesmo

e aos outros; e, no entanto, um retrato pintado de si por um grande artista poderia

estampar o seu verdadeiro caráter sobre a tela e trair o seu segredo para a

posteridade”11. Para ficarmos apenas no âmbito anglo-saxão, os méritos literários e a

influência de Hazlitt foram ainda reconhecidos por escritores tão diversos quanto

Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Virginia Woolf e Phillip Lopate, sobre os quais

esta tese ainda terá oportunidade de comentar ou aludir.

No auge da alta teoria acadêmica, o aclamado romance de David Lodge,

Small World (1984), aproveitou a deixa de que, na época, a reputação de Hazlitt

chegara à beira do desaparecimento para criar um personagem obcecado pelo

ensaísta, Philip Swallow, professor universitário de Rummidge (nome fictício para

Birmingham). Há obviamente um tom satírico, pois o meio editorial, crítico e

acadêmico demonstra um completo desinteresse pelo livro recém-publicado de Philip,

Hazlitt and the Amateur Reader. Quando Philip apresentou o livro a Morris Zapp, na

esperança de que este escrevesse uma resenha que projetasse a obra e o autor, Morris,

um professor antenado com o que há de mais recente na teoria literária e sempre com

um jargão crítico na ponta da língua, diz ao amigo: “‘Não me parece o tipo de coisa

em que a metacrítica estaria interessada’ (...). ‘Mas vou ver o que posso fazer’. Ele

correu as páginas com os dedos. ‘Hazlitt é um tema um tanto fora de moda, não é

                                                                                                                         9 Citado a partir de David Bromwich, Hazlitt: The Mind of a Critic, (New Haven: Yale University Press, 1999), p. 3. Adolfo Bioy Casares também cita esta passagem no prólogo a Ensayistas Ingleses (Barcelona: Éxito, 1957), p. 14. 10 Ver, por exemplo, o ensaio de Wilde “Pen, Pencil and Poison”, In. Collected Works of Oscar Wilde (London: Wordsworth Library Collection, 2007), pp. 947-62. 11 Todas as citações de Hazlitt, salvo as vezes que indicar em nota, foram extraídas de The Complete Works of William Hazlitt, 21 vols. (London and Toronto: J. M. Dent and Sons, LTD, 1930). Daqui em diante, usaremos a sigla CWH, seguida do nome do texto de onde extraímos a citação e os números do volume e das páginas. “On the Knowledge of Character”, 8, p. 303. Para uma discussão sobre a presença de Hazlitt nos escritos de Wilde e o reconhecimento deste de que a leitura do ensaio daquele foi peça-chave para a confecção do Retrato de Dorian Gray, ver o artigo de John Stokes, “Embodying Shadows: Wilde and Hazlitt as Theatrical Writers”, In. The Hazlitt Review (London: The Hazlitt Society, 2014), pp. 17-30: 18.

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mesmo?’ ‘A meu ver, injustamente negligenciado’, disse Philip”12. Hazlitt and the

Amateur Reader é decerto uma monografia ficcional. Mas as frequentes menções no

livro aos títulos dos ensaios de Hazlitt ou mesmo as citações de trechos são dados da

realidade – dados tão finamente urdidos à matéria ficcional que levaram alguns a

supor que Hazlitt fosse uma invenção de Lodge. Laurent Folliot, tradutor francês de

Hazlitt, conta uma anedota, “a um só tempo, divertida ou pavorosas”13. Enquanto

preparava a sua edição de ensaios selecionados de Hazlitt, Du Goût et du Dégoût

(2007), dois amigos do tradutor ficaram surpresos com o projeto e a razão disso foi

porque “achavam que ‘William Hazlitt’ fosse um autor fictício, inventado por David

Lodge com um propósito satírico”14.

Há ainda outra passagem em Small World que merece menção aqui. Morris

aceita o pedido de Philip para resenhar o livro e resolve fazê-lo com o máximo de

economia de tempo. No avião da British Airways, a caminho de mais uma conferência

internacional, Morris sacou o livro da bolsa. Antes de se pôr a lê-lo, ele notou que a

moça sentada na poltrona ao lado trazia uma coletânea de ensaios de Althusser. Era a

italiana Fulvia Morgana, uma teórica marxista de estudos culturais. Ela também

notara o livro de Morris e não demorou para que a conversa começasse. “‘O que está

lendo’”, perguntou Fulvia, “‘um livro de ‘Azlitt?’. ‘É de um amigo inglês. Ele o

entregou a mim ontem mesmo. Não é o tipo de coisa que geralmente me interessa’.

Ele estava ansioso para se dissociar do tema curiosamente antiquado de Philip e de

uma abordagem igualmente antiquada”15. Fulvia, entretanto, permanecia curiosa e

queria saber mais sobre um autor do qual nunca ouvira falar. Foi quando Morris abriu

uma página a esmo e leu em vós alta a seguinte passagem do ensaio “Sobre a

Ignorância dos Sábios”:

O homem mais sábio é aquele que conhece mais profundamente aquilo que mais

remotamente distante se encontra da vida corrente e da observação do momento,

aquilo que tem menos utilidade prática, aquilo que mais dificilmente se pode

submeter à prova da experiência, e que, tendo sido transmitido através do maior

                                                                                                                         12 David Lodge, Small World, (Harmondsworth: Penguin Books, 1984), p. 78. 13 Laurent Folliot, “On Translating Hazlitt into French”, In. The Hazlitt Review (London: The Hazlitt Society, 2009), p. 39. 14 Idem, ibidem. 15 David Lodge, Small World, p. 119.

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número de graus intermediários, se manifesta mais cheio de incerteza, de

dificuldades e de contradições16.

Fulvia achou tudo aquilo muito interessante e disse: “‘Incerteza, dificuldades,

contradições. ‘Azlitt foi obviamente um homem à frente de seu tempo. Há aqui um

ataque notável ao empirismo burguês”. Mas Morris deu de ombros e comentou

apenas: “acho que ele quis ser irônico”17.

Soubesse Lodge ou não (claramente Fulvia não o sabia), há gerações Hazlitt

vem sendo lido pela melhor tradição marxista de intelectuais britânicos – os únicos

que jamais o negligenciaram. E. P. Thompson, por exemplo, abre o volume 3 de A

Formação da Classe Operária Inglesa (1963) com uma citação de “What is the

People?”, ensaio de Hazlitt que é, na opinião de Terry Eagleton, “uma das mais

magníficas peças de discurso político jamais escritas na Inglaterra”18. A certa altura

do livro de Thompson, ele traça um perfil contundente das ideias e do estilo do autor:

Hazlitt tinha uma sensibilidade complexa e admirável. Foi um dos poucos

intelectuais que receberam o pleno impacto da Revolução Francesa e, embora

rejeitasse as ingenuidades do Iluminismo, reafirmou as tradições da liberté e da

égalité. Seu estilo revela, a cada momento, que não só estava se medindo contra

Burke, Coleridge e Wordsworth (e, de modo mais imediato, contra Blackwood e a

Quarterly Review), mas que tinha consciência da força de algumas posições deles

e dividiu algumas de suas reações. Mesmo em seu jornalismo radical mais

engajado (...), dirigia sua polêmica para a cultura não popular, e sim educada de

sua época. Seus Ensaios Políticos podiam ser publicados por Hone, mas, ao

escrevê-lo, pensaria menos no público de Hone do que na esperança de fazer

Southey se contorcer, provocar uma apoplexia no Quarterly ou até de deter

Coleridge no meio de uma frase.

                                                                                                                         16 William Hazlitt, “Sobre a Ignorância dos Sábios”, In. Ensaístas Ingleses, Clássicos Jackson, Volume XXVII (Rio de Janeiro: W. M. Jackson INC, 1952), p. 118. E Small World, p. 119. 17 Idem, p. 120. Para um comentário sobre essa passagem de Lodge em conexão com a obra de Hazlitt, ver James Mulvihill, “The Politics of Authority: Representation in Hazlitt’s Political Criticism”, In. The Journal of English and Germanic Philology, vol. 101, (Chicago: The University of Illinois Press, 2002), pp. 540-60: 540. 18 Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Francis Hutcheson and William Hazlitt”, In. The Hazlitt Review, vol. 6, (London: The Hazlitt Society, 2013), p. 12.

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Não é de forma alguma uma crítica. Hazlitt tinha uma tamanha amplitude de

referências e um tal senso de compromisso com o conflito europeu de significado

histórico que os radicais plebeus pareciam provincianos, tanto em termos

espaciais como temporais19.

Em “Desencanto ou Apostasia?: um sermão leigo” (1969), Thompson reelabora uma

tópica cara a Hazlitt, a de que a revolução, porque jamais atravessara o canal, não

abriu na Inglaterra, como o fizera na França, “caminho para talentos, a não ser para a

apostasia”20. “Tornou-se bem compreendido”, diz Hazlitt, “o fato de que ninguém

pode viver de seus talentos ou conhecimentos se não estiver disposto a prostituir esses

talentos e conhecimentos para trair sua espécie, e ser um predador de seus pares

humanos”21.

Uma década antes do livro de David Lodge, Terry Eagleton, outro entusiasta

de Hazlitt, publicou um artigo, “William Hazlitt: An Empiricist Radical” (1973), que

responde ao comentário de Fulvia Morgana lido antes. A epistemologia hazlittiana –

entendida aqui “não apenas enquanto teorias formais de conhecimento sustentadas por

autores, mas enquanto meio pelo qual essas teorias se infiltram em estilos e

sensibilidades (...), de modo a moldar as relações entre a linguagem e a matéria em

questão” – tinha o propósito, segundo Eagleton, de explorar as relações entre “o estilo

literário, as teorias do conhecimento, a consciência ideológica e a prática política”22.

Essa epistemologia, continua o autor, está de par com o compromisso de Hazlitt em

“preservar a imaginação enquanto força política”23. É desse modo que o ensaísta se

investe, de um lado, contra os Poetas do Lago; isto é, contra as implicações

conservadoras de uma estética “que defende ‘a objetivação da alma às coisas

externas’ e que transforma os fatos em fetiche”, e, do outro, contra os socialistas

utópicos, mais particularmente Robert Owen. Nas palavras de Eagleton, “enquanto

Owen se restringir aos princípios gerais e às abstrações seguras, argumenta Hazlitt,

                                                                                                                         19 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. 3, A Força dos Trabalhadores, (São Paulo: Paz e Terra, 2012), p. 469. 20 E. P. Thompson, Os Românticos: A Inglaterra na era revolucionária, (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), p. 97. 21 William Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, In. Serrote # 9, (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011), p. 28. 22 Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, p. 109. 23 Idem, p. 110.

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nada será feito”24. O estilo antitético de Hazlitt se revela, portanto, um instrumento

crítico e político, com o qual ele deflagrou o impulso naturalmente conservador da

imaginação, “que procura obter o máximo de estímulo real pela desigualdade e pela

desproporção”25, mas sem jamais “atar as asas da poesia [ou da imaginação]”26; ele,

esse estilo, “é a expressão de uma mente dialética, e não de uma mente vacilante”27.

Em uma publicação mais recente, “Ulster Altruism: Francis Hutcheson and

William Hazlitt” (2013), Eagleton reconstrói as bases do pensamento filosófico do

autor e seu débito para com os autores do iluminismo escocês. A partir de um dado

histórico, as origens celtas (Ulster) de ambos os sobrenomes, Hutcheson e Hazlitt, e

de uma análise da primeira obra de nosso autor, An Essay on the Principles of Human

Action (1805), Eagleton examina alguns conceitos-chave para o senso comunitário e

altruísta comum às “regiões gaélica das Ilhas Britânicas”28. Entre eles, a benevolência

e o sentimentalismo, nos quais forças contrárias, porém confluentes, atuam uma sobre

a outra. A primeira, a benevolência, é centrífuga, pois “envolve uma difusão

espontânea ou decentralizadora do eu [self]”; a segunda, o sentimentalismo, é

centrípeta, “pois seleciona as sensações mais finas e eletrizantes das vibrações

sensoriais particulares a um indivíduo com inúmeras outras preciosas recompensas

emocionais”29. A contrapelo de uma leitura, por assim dizer, enrijecida, à caça de

grandes modelos históricos ou de um sentido geral, Eagleton faz uma aproximação –

que pode parecer surpreendente a alguns – entre o altruísmo de Ulster, o iluminismo

escocês e o pensamento de esquerda britânico, ou melhor, celta. Razão pela qual

Eagleton conta-nos a anedota do jovem Raymond Williams, “outro socialista celta”,

que pedalou uma tarde inteira pelo interior do país, “de visita aos lugares favoritos de

Hazlitt”30.

As relações entre teoria do conhecimento, linguagem e crítica política foram

ainda amplamente examinadas pelos três mais importantes estudos monográficos

sobre Hazlitt publicados nas décadas de 1970 e 80: Roy Park, William Hazlitt and the

Spirit of the Age: abstraction and critical theory (1971); John Kinnaird, William

                                                                                                                         24 Idem, pp. 111 e 114. 25 CWH, “Coriolanus”, 4, p. 214. 26 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 9. 27 Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, p. 117. 28 Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Francis Hutcheson and William Hazlitt”, p. 5. 29 Idem pp. 7-8. 30 Idem, p. 12.

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Hazlitt, Critic of Power (1978); e David Bromwich, Hazlitt, the Mind of a Critic

(1983). Guardadas as inúmeras diferenças, o que há de comum a esses estudos e os

distingue de trabalhos anteriores, como o de Elizabeth Schneider, The Aesthetics of

William Hazlitt: a Study of the Philosophical Basis of his Criticism (1933), é o fato de

se proporem a reconstruir todo o edifício conceitual do autor. Assim, a vastíssima

obra de Hazlitt foi tomada em seu conjunto. Nada ficou de fora, e os autores

habilmente ligaram os pontos entre as múltiplas facetas do autor. O filósofo, o artista,

o crítico de teatro, o cientista social, o historiador, o ensaísta, enfim, tudo se amarrava

na crítica hazlittiana; uma crítica, como eles mostraram em seus estudos, que

permanece ainda hoje pertinente e inquietante. Um entre outros objetivos era dissociar

Hazlitt da figura do crítico impressionista que os velhos manuais universitários lhe

apregoaram – ao que parece, não há expediente mais eficaz, ainda que desleal, do que

acusar os críticos de outrora de impressionismo. O alvo aqui foram os totêmicos

História da Crítica Moderna: 1750-1950 (1955), de René Wellek, e Crítica Literária:

Breve História (1957), de William K. Wimsatt e Cleanth Brooks. Que há elementos

“impressionistas” na crítica hazlittiana o próprio autor admitiria. Pois, diz ele em “On

Criticism”: “Uma crítica genuína, segundo a compreendo, deve refletir as cores, as

luzes e sombras, a alma e o corpo de uma obra”31. Ora, o verdadeiro sentido dessa

crítica e o modo como ela opera passam bem ao largo de uma simples alcunha. Ainda

mais problemática foi a associação que fizeram entre Hazlitt e Coleridge. Aquele seria

um simples seguidor deste; uma espécie de Coleridge incompleto, pois não amparado

em Kant e no idealismo alemão32.

Dos estudos mencionados acima, gostaria de ressaltar o de Bromwich, “o

melhor crítico de Hazlitt”33, segundo Harold Bloom. À diferença de Park e Kinnaird,

o objetivo de Bromwich é menos o de atualizar a crítica hazlittiana à luz de Marx,

                                                                                                                         31 CWH, “On Criticism”, 8, p. 217. 32 Ver René Wellek, “Hazlitt, Lamb e Keats”, In. História da Crítica Moderna, II O Romantismo, (São Paulo: Editora Herder, 1967), pp. 167-191; e William Wimsatt e Cleanth Brooks, “A Imaginação: Wordsworth e Coleridge”, In. Crítica Literária: Breve História (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1957), pp. 461-93. Também é dessa opinião M. H. Abrams. Do autor, ver “Variedades da Teoria Romântica: Shelley, Hazlitt, Keble e outros”, In. O Espelho e a Lâmpada: teoria romântica e tradição crítica, (São Paulo: Editora Unesp, 2010), pp. 173-210. 33 Harold Bloom, “William Hazlitt”, In. Essayists and Prophets, (Philadelphia: Chelsea House, 2005), p. 69.

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Nietzsche ou Freud34 do que o de investigar o desenvolvimento intelectual do autor a

partir de suas próprias leituras e dos autores com os quais ele frequentemente

dialogou: Burke, Rousseau, Wordsworth, Coleridge, Byron, Keats, entre outros.

Nesse sentido, o livro de Bromwich é, a um só tempo, um retrato intelectual de um

grande crítico e uma leitura inovadora sobre o romantismo inglês. De sorte que se

tornou amplamente compreendido por qualquer estudioso do período que alguns

lugares-comuns sobre o romantismo inglês precisavam ser revistos.

Mas a grande virada nos estudos de Hazlitt, que ainda está em curso, e o

surpreendente renome de que hoje ele desfruta nos círculos acadêmicos ingleses e

norte-americanos ocorreria apenas algumas décadas mais tarde. Isso se deveu a dois

fatores de matrizes diferentes: 1. o trabalho editorial das obras de Hazlitt por Duncan

Wu e Tom Paulin (este, um dos mais renomados poetas britânicos da atualidade) e,

junto a esse trabalho, as publicações The Day-Star of Liberty: William Hazlitt’s

Radical Style (1998), de Paulin, e a biografia “definitiva” do autor, William Hazlitt:

The First Modern Man (2008), de Wu; 2. a ascensão do culturalismo histórico nos

estudos literários e a ruptura que ela promoveu com o argumento de que “a lírica

romântica seria a estrutura primária para interpretar a literatura britânica de fins do

século XVIII e início do XIX”35. Comecemos, pois, com a primeira dessas matrizes.

O trabalho editorial de Wu e Paulin foi um verdadeiro divisor de águas na

recepção de Hazlitt. Por meio deles o estudioso passou a contar com um guia mais

seguro para interpretações críticas e históricas; e o público em geral, com o acesso a

obras até então esgotadíssimas. Além de The Selected Writings of William Hazlitt, 9

vols. (1998), Paulin e Wu, às vezes juntos, outras vezes separados, editaram The Plain

Speaker: the key essays (1998); uma nova seleta de textos de Hazlitt para a Penguin,

The Fight and Other Writings (2000); New Writings of William Hazlitt, 2 vols. (2007);

William Hazlitt on the Elgin Marbles (2008); e All that is Worth Remembering:

Selected Essays of William Hazlitt (2014). Tudo isso ancorado na fina análise

estilística de Paulin, na estimulante narrativa biográfica de Wu e no compromisso

com os ideais hazlittianos. Em uma resenha a London Review of Books, disse Edward

Said sobre Paulin: “Paulin se preocupa com o esclarecimento e a emancipação                                                                                                                          34 São algumas as aproximações que John Kinnaird sugere entre Hazlitt, Nietzsche e Freud. Ver, por exemplo, “Imagination and the Worlds of Power”, In. William Hazlitt: Critic of Power (New York: Columbia University Press, 1978), pp. 79-128. 35 Kevin Gilmartin, William Hazlitt, Political Essayist, (Oxford: Oxford University Press, 2015), p. 1.

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humanas. Subjacente aos seus ensaios, desdobra-se com firmeza a grande narrativa de

luta pela justiça, liberdade e conhecimento”36. The Day-Star of Liberty, obra que é a

principal inspiração para a tese que os leitores têm em mãos, analisa a obra de Hazlitt

a partir de uma imagem recorrente no autor, a estrela da manhã, e o quanto nela

ressoam o seu passado irlandês, a cultura dos protestantes dissidentes, o iluminismo

escocês e o seu engajamento estético e político. O vigor e a elasticidade da prosa de

Hazlitt são examinados em riqueza de detalhes e no fino trabalho de um ensaísta que,

a exemplo do autor que estuda, transforma a crítica em forma de arte.

Semelhante a outros escritores do século XIX, Hazlitt teve uma história de

vida instigante. Cresceu em uma família de intelectuais dissidentes que, nos anos de

1790, se refugiara nos Estados Unidos; de volta ao país e depois de ouvir uma

pregação de Coleridge, abandonou os estudos pastorais e descobriu sua vocação de

filósofo e artista; após uma carreira frustrada de pintor de retratos, passou a ganhar a

vida e fez fama literária com ensaios confiados à imprensa periódica; foi defensor

ardente da revolução popular; rompeu com o círculo de escritores que, em sua

opinião, desertaram a “causa do povo”37; aos quarenta e quatro anos, divorciou-se de

sua primeira esposa na esperança malograda de viver a paixão por uma jovem vinte e

cinco anos mais nova; casou-se novamente, viveu por alguns anos na Itália e França

com a nova esposa, de quem se separaria mais tarde; por fim, terminou a vida só e

pobre em um pequeno quarto alugado em Soho, Londres. Por esse motivo, não foram

poucas as biografias de Hazlitt. As mais conhecidas: P. P. Howe, The Life of William

Hazlitt (1922); Ralph Martin Wardle, Hazlitt (1971); e Stanley Jones, Hazlitt: A Life:

from Winterslow to Frith Street (1991). Nesse sentido, por que uma nova biografia do

autor, ou melhor, duas novas biografias? Nos anos 2000, além de Wu, o aclamado

filósofo e crítico inglês Anthony Clifford Grayling publicou The Quarrel of the Age:

The Life and Times of William Hazlitt (2013). Primeiramente, porque as novas

edições críticas e a descoberta de novos textos forneciam um material novo a

intelectuais antenados para a qualidade e a inovação. Segundo, porque Hazlitt parece

ser um daqueles autores, diz Grayling, cujas “realizações se deveram ao dom

                                                                                                                         36 Edward Said, “Paulin’s People”, In. London Review of Books, April 1992 issue, http://www.lrb.co.uk/v14/n07/edward-said/paulins-people 37 Expressão recorrente no autor. Ver, por exemplo, “What is the People?”, CWH, 7, p. 261.

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intelectual e ao talento excepcional; sua tragédia, à sua sensibilidade desgovernada e à

crueldade de sua época”38.

Mas nenhuma outra biografia, escreveu Eagleton, “registrou meticulosamente

cada um dos pormenores da vida de Hazlitt”39 como a de Wu. Seu ponto de partida é

que “a época moderna começou com o romantismo” e que “Hazlitt foi seu mais

articulado arauto”40. Se as afirmações são verdadeiras ou falsas, pouco importa, mas

daí concluir que Hazlitt foi o primeiro homem moderno é um julgamento demasiado

parcial. Não menos parcial, entretanto, é o suposto “fato” de, segundo Erich

Auerbach, “a moderna consciência da realidade ter se conformado literariamente pela

primeira vez na obra de Henri Beyle [Stendhal]”41. Contendas à parte, vale lembrar

que Hazlitt e Stendhal se conheceram em Paris, travaram uma sólida porém curta

relação de amizade e ambos admitiram a influência que um exerceu sobre o outro42.

Na outra matriz, a ascensão do culturalismo histórico nos estudos literários,

uma guarda avançada de leitores vem se empenhando no exame de obras literárias

enquanto, de um lado, artefatos culturais, do outro, textos vivos [living texts]43. Em

língua inglesa, o pivô desses estudos foi o livro de Marilyn Butler, Romantic, Rebels

& Reactionaries: English Literature and its Background 1760-1830 (1981). Nas

palavras da autora: “Para se opor ao isolacionismo de muitas das abordagens mais

comuns ao estudioso de literatura, precisamos tanto de uma consciência do processo

histórico quanto de um exame da comunidade que produziu as obras de arte e seu

público”44. Mal ou bem, Hazlitt se tornou peça-chave para a compreensão do período.

E isso não sem um motivo, pois seus ensaios críticos demonstram uma consciência

                                                                                                                         38 Anthony Clifford Grayling, The Quarrel of the Age: The Life and Times of William Hazlitt, (London: Phoenix, 2013), p. 26. 39 Tery Eagleton, “The Critic as Partisan: William Hazlitt’s Radical Imagination”, In. Harper’s Magazine, April 2009 issue http://harpers.org/archive/2009/04/the-critic-as-partisan/ 40 Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. xxiii. 41 Erich Auerbach, Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, (São Paulo: Perspectiva, 2009), p. 410. 42 Sobre as relações entre Hazlitt e Stendhal, ver The First Modern Man, pp. 359 e 392-3. Stendhal foi leitor assíduo da Edinburgh Review, periódico para o qual Hazlitt contribuiu inúmeras vezes. O ensaio daquele, “Racine et Shakespeare”, ocorreu-lhe após a leitura de “Sir Walter, Racine, and Shakespeare” de Hazlitt. Ver também Robert Vigneron, “Stendhal et Hazlitt”, In. Modern Philology 35 (1938), pp. 375-414. 43 Marilyn Butler, Romantic, Rebels & Reactionaries: English Literature and its Background 1760-1830, (Oxford: Oxford University Press, 1981), p. 10. 44 Idem, ibidem.

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aguda do processo histórico e um de seus temas favoritos é justamente o público, sua

formação, opiniões e tendências.

De lá para cá, estudos sobre o romantismo inglês e seu contexto histórico (a

Revolução Francesa, as guerras napoleônicas, a urbanização, a industrialização, a

expansão do imperialismo, o movimento de reforma parlamentar, etc.), nos quais ao

menos um capítulo é dedicado ao nosso autor, vieram pingando. Mas não há nada de

homogêneo nesses estudos. Se Uttara Natarajan, por exemplo, em Hazlitt and the

Reach of Sense: Criticism, Morals, and the Metaphysics of Power (1998), examina o

modo como o princípio de poder, por oposição ao princípio de prazer dos Utilitaristas,

se revela em seu discurso filosófico, em sua consideração sobre a estrutura da

imaginação, em suas teorias do gênio e da moral; Marcus Tomalin, em Romantic and

Linguistic Theory: William Hazlitt, Language and Literature (2009), explora as

relações entre as teorias linguísticas e a literatura a partir da obra de Hazlitt A New

and Improved Grammar of the English Tongue (1809), em conexão com outros

escritos; e Gregory Dart, em Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: Cockney

Adventures (2012), no tocante a nosso autor, reconstrói as profundas transformações

urbanísticas que fizeram de Londres, naquele início de século XIX, a primeira

metrópole moderna; e a figura do Cockney ensaísta free lance, o legítimo antecessor

da modernidade. Dart trabalhou ainda em duas edições de textos selecionados do

autor: Metropolitan Writings (2005) e Liber Amoris and related writings (2008).

A lista de monografias, capítulos de livros e artigos em periódicos

especializados sobre Hazlitt é hoje tão volumosa que, se nos ocupássemos de cada um

deles, tornaríamos esse ressensseamento deveras enfadonho. Para economia de

exemplos, gostaria de comentar brevemente duas publicações que acabaram de sair do

forno: Stephen Burley, Hazlitt the Dissenter: Religion, Philosophy, and Politics,

1766-1816 (2014), e Kevin Gilmartin, William Hazlitt, Political Essayist (2015). O

livro de Burley é o primeiro a investigar a fundo a juventude do autor, seus estudos

teológicos em New College, Hackney, e o quanto a cultura dos radicais dissidentes

moldou as ideias e o estilo do futuro ensaísta. Dando prosseguimento ao minucioso

estudo sobre a cultura e a imprensa periódica do movimento radical pela reforma

parlamentar, tema de Print Politics: The Press and Radical Opposition in Early

Nineteenth-Century England (1996), neste novo livro, William Hazlitt, Political

Essayist, Gilmartin situa o estilo, a forma e as estratégias retóricas dos ensaios de

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Hazlitt dentro do jornalismo radical da época. Contrariando a afirmação de Thompson

de que “o estilo de Hazlitt, com seus ritmos sustentados e controlados, seu movimento

antitético, pertence à cultura polida do ensaísta”45, Gilmartin argumenta que “seu

método crítico flexível, que explora paradoxos e contradições e subjulga tanto a

esquerda quanto a direita a um escrutínio corrosivo”46, contribuiu, a seu modo, à

causa dos radicais.

Quer como filósofo, crítico, ensaísta politico ou observador irônico da

sociedade, entre outros, Hazlitt nunca esteve tão em alta nos estudos literários. De

sorte que a frase de Morris Zapp, “Hazlitt é um tema um tanto fora de moda”, soa

hoje anacrônica. Nesse oceano de publicações, talvez o livro de Philip Swallow,

Hazlitt and the Amateur Reader, se fosse publicado, recebesse maior atenção de

crítica e público.

Toda essa efervescente produção acadêmica foi favorecida pela fundação de

The Hazlitt Society, em 2003, e, cinco anos mais tarde, The Hazlitt Review, periódico

anual ligado à Universidade de Londres. As sociedades de escritores são bastante

comuns na Inglaterra. Mas esta em particular conta com um fato especial. Seu

fundador foi ninguém menos do que Michael Foot. Para refrescar a memória dos

leitores, Foot foi um dos principais intelectuais e membro do Partido dos

Trabalhadores [Labour Party]. Ligado à ala radical do partido, Foot e outros

lançaram, em 1983, um manifesto com um tom marcadamente socialista. Naquele

mesmo ano, ele disputou as eleições parlamentares com Margareth Thatcher. O

destino da Grã-Bretanha e do ocidente seria outro – e, a meu ver, melhor – se o

hazlittiano de carteirinha, Michael Foot, tivesse ganho as eleições.

____________________________________________________________

Resta, por fim, dizer uma palavra ou outra sobre a presença de Hazlitt no

Brasil. A tese que os leitores têm em mãos é a primeira escrita sobre o autor em solo

brasileiro. Como é comum a qualquer pioneirismo, precisamos nos ocupar das

                                                                                                                         45 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, Vol. 3, p. 470. 46 Kevin Gilmartin, William Hazlitt, Political Essayist, p. 15.

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seguintes perguntas: “qual a relevância do tema para nós, brasileiros?” Ou ainda, “por

que estudar Hazlitt no Brasil?”.

Citamos acima a frase de Otto Maria Carpeaux que abre o perfil que escreveu

do ensaísta em História da Literatura Ocidental (1959-66)47. Carpeaux, com sua rara

sensibilidade, que combina aptidões que a especialização universitária manda separar,

não se deixou enganar, como ocorrera a outro crítico de sua geração, o italiano Mario

Praz, quanto ao lugar que Hazlitt merecidamente ocupa na literatura: o de ter sido um

de seus maiores ensaístas48. Entretanto, há alguns deslizes nesse perfil que devem ser

pontuados. Primeiro, Hazlitt jamais foi um defensor do individualismo e discípulo de

Helvetius; pelo contrário, sua filosofia é um tapa na cara das teorias que fundamentam

a ação humana no indivíduo e no amor-próprio. Segundo, não pode haver qualquer

afinidade entre Hazlitt e Jeremy Bentham, senão por oposição. Por toda a vida, Hazlitt

encampou a batalha contra a suposição de que a razão instrumental conduziria a

humanidade às verdades concretas e à construção de uma sociedade mais justa.

Terceiro, o bonapartismo de Hazlitt não guarda semelhanças com o culto ao herói de

Carlyle. Se, para Carlyle, Napoleão, o “último dos grandes homens”, era dotado de

uma habilidade que naturalmente exercia um “direito divino sobre” os outros49; para

Hazlitt, o estadista foi um condutor da causa revolucionária, e isso “a despeito de si

mesmo”50. Sem que o soubesse, Napoleão era incapaz de “despir-se de seu caráter”;

isto é, o de “filho e campeão da Revolução Francesa”51.

Em ocasiões distintas, e com propósitos igualmente distintos, Hazlitt foi lido

por duas personalidades emblemáticas da intelectualidade brasileira modernista. Uma,

a romancista e ensaísta Lucia Miguel Pereira; a outra, um dos maiores poetas e

compositores de nossa língua, Vinícius de Moraes.

Lucia Miguel Pereira prefaciou o volume Ensaístas Ingleses (1952), tradução

de J. Sarmento de Beires e Jorge Costa Neves. Neste apareceram as duas primeiras

traduções de Hazlitt para o português brasileiro: “Sobre a Ignorância dos Sábios” e “A

                                                                                                                         47 Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, Vol. “Romantismo”, pp. 2012-2013. 48 Ver Mario Praz, “Is Hazlitt a great essayist?” (English Studies, 1931), pp. 1-6. 49 Thomas Carlyle, “The Hero as King. Cromwell, Napoleon: Modern Revolutionism”, In. On Heroes and Hero-Worship (New York: Charles Scribner’s Sons, 1841) pp. 392 e 321. 50 CWH, “Preface to Political Essays”, 7, p. 9. 51 CWH, “Life of Napoleon Bonaparte, Volume One”, 13, p. ix. A melhor discussão sobre Hazlitt e Napoleão é de Simon Bainbridge, “‘A proud and full answer’: Hazlitt’s Napoleonic riposte”, In. Napoleon and English Romanticim (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), pp. 183-207.

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Propósito de Alcunhas”. O volume foi inspirado em outra coletânea, mais extensa,

Ensaysitas Ingleses (1948), prefácio de Adolfo Bioy Casares. Se Casares ressaltou a

versatilidade dos talentos de Hazlitt (pintor, filósofo, historiador, ensaísta), Miguel

Pereira lembrou, sobretudo, a qualidade do crítico que facilita a compreensão

histórica: “seus ensaios críticos, que abrangem praticamente todos os escritores desde

a época de Elizabeth até a sua, contribuíram largamente para o entendimento de

Shakespeare, assim como para o movimento romântico na Inglaterra”52. Mas ambos,

Casares e Miguel Pereira, foram sensíveis ao fervor apaixonado, e apaixonante, de

seus ensaios. “Hazlitt pensou muito, escreveu muito e combateu muito”53, disse

Casares. Ou ainda, nas palavras de Miguel Pereira: “temperamento espontâneo, os

escritos lhe refletem as paixões, as simpatias e antipatias”54.

Noutra chave, mas também perto do coração, o Hazlitt de Vinicius de Moraes

é o cronista que em épocas de epidemia mantém a dignidade de jamais ceder ao

entreguismo. Em O Exercício da Crônica (1953), contrariando a opinião de que este

seria um gênero tipicamente brasileiro, de que teria se aclimatado aqui melhor do que

em qualquer outra parte do mundo55, Moraes diz que a crônica é filha do ensaio, ou

melhor, do essay. A passagem merece ser lida na íntegra:

Os melhores cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra –

os chamados essayists –, praticaram o essay, isto de onde viria a sair a crônica

moderna, com um zelo artesanal tão proficientes quanto a de um bom carpinteiro

ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do primitivo essay, os

oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade,

casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison,

Steele, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb – estes os dois maiores – fizeram da

crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto

leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras56.

                                                                                                                         52 A citação de Lúcia Miguel Pereira segue a reedição de seu ensaio “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Serrote #22 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2016), p. 14. 53 Adolfo Bioy Casares, Ensayistas Ingleses, p. 14. 54 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, p. 14. 55 É dessa opinião Humberto Werneck. Ver “Um gênero tipicamente brasileiro”, In. Boa Companhia: Crônicas (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), pp. 7-12. 56 Vinicius de Moraes, “O Exercício da Crônica”, In. Para uma Menina com uma Flor (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), p. 53. Registre-se aqui meus sinceros agradecimentos a Paulo Roberto Pires pela referência.

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24    

   

Pois bem, Hazlitt foi um dos maiores cronistas; foi mestre de um estilo que

aposta na aliança produtiva entre a intelectualidade e a vida popular; foi um crítico

atento ao processo histórico; foi também um intelectual não conformista e talvez o

único de sua geração que se declarou, acima de tudo, um revolucionário57. Com a

feliz confluência de traços estilísticos e ideais preciosíssimos para um grande batalhão

de professores universitários de origem esquerdista entre nós, talvez devêssemos

inverter a pergunta: afinal, por que Hazlitt jamais fora estudado no Brasil? Para não

fabricar um falso problema, é bom dizer que o mesmo vale para o romantismo inglês

em geral e o ensaio literário. Há decerto a questão da barreira do idioma. Algumas

obras fundamentais do romantismo e do ensaio ingleses ainda não encontram

traduções no Brasil. Mas a barreira começa a cair. A Revista Serrote, da qual esta tese

amplamente se beneficiou, colocou em circulação textos seminais do ensaísmo,

sobretudo de língua inglesa. Do autor, a Serrote publicou, no número 9, o clássico

“Sobre o Prazer de Odiar”, tradução de Alexandre Barbosa de Souza; e, no número

22, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, tradução minha.

Na tese que se segue, examinaremos um conjunto de imagens que vincula os

trabalhos envolvidos durante a confecção do ensaio crítico e literário aos acidentes

topográficos e à textura do solo, expressos no arquétipo recorrente do autor, “ao rés-

do-chão” [on the plain-ground]. Assim, a obra de Hazlitt será analisada enquanto

crítica e ensaio, ou enquanto uma crítica ensaística: uma crítica que não assume ares

de superioridade, que não resvala para o pedantismo e que aproxima o contato entre o

escritor e o público, segundo compreendeu Lucia Miguel Pereira; e um ensaio que

não aspira a um gênero maior, que não se pretende enquanto obra de Arte (com letra

maiúscula), mas enquanto artefato, artesanato, confeccionado por um bom carpinteiro

ou relojoeiro, como quis Vinícius de Moraes.

No primeiro capítulo, sobre o estágio inicial da confecção do ensaio (a

inspiração) acompanharemos o jovem Hazlitt em seus primeiros passos a partir da

leitura cerrada de algumas passagens de dois ensaios – “My First Acquaintance with                                                                                                                          57 Hazlitt fez sua profissão de fé política precisamente na última de suas publicações, Life of Napoleon. No capítulo “The Establishment of the Empire”, diz ele: “Nunca e em parte alguma de meus escritos declarei-me um republicano; tampouco creio que valha a pena ser um mártir e defensor desta ou daquela forma de governo. Mas se arrisquei minha saúde e riqueza, meu nome e fama a alguma coisa, a qual estaria disposto a me arriscar novamente e até a última gota de suor, foi à ideia de que há um poder no povo para mudar o seu governo e governantes. Numa palavra, sou um revolucionário”, CWH, 14, p. 236. Para uma discussão sobre essa passagem, ver Gilmartin “Revolutionist”, In. William Hazlitt, Political Essayist, pp. 186-200.

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Poets” e “On the Pleasure of Painting” – onde ele narra sua experiência de conversão

ao mundo das artes e o modo como as leituras de Rousseau e Burke apontaram-lhe os

caminhos para uma crítica inventiva. Em ambos os ensaios, a presença constante de

imagens crepusculares e seus efeitos sobre o autor e sobre um mundo em

transformação fizeram com que voltássemos nosso olhar para os múltiplos

significados atinentes a elas. Essas imagens iluminaram os caminhos que o crítico

teve de percorrer para melhor encontrar a linguagem com a qual expressar sua

admiração por livros, quadros, peças escultóricas e peças teatrais; uma linguagem que

desvela os intensos diálogos entre o texto ensaístico e a pintura. No segundo capítulo,

sobre a leitura, encontraremos nosso autor ora na solidão de seu quarto, mastigando os

pensamentos, digerindo-os no íntimo, ora em companhia de pessoas próximas.

Intimidade e convivência são os ingredientes-chave para esta etapa dos trabalhos.

Somente graças a eles nosso autor descobriu a arte de conversar sobre o papel; numa

palavra, o estilo familiar ou conversacional. Para ele, a escrita de ensaios exige um

convite cordial ao leitor com o qual o ensaísta espera dividir amigavelmente sua

tarefa. No terceiro e último capítulo, sobre a escrita, falaremos de como esse calor

interno, anterior à consumação da obra, cede vez a outro, de um poder maior de

combustão: o calor da hora. O ensaio se apresenta como espaço privilegiado onde se

travam lutas com as ideias e se disputa uma causa; e o ensaísta, como o homem das

ruas (man-about-town), cujas andanças pela metrópole londrina e convivência com os

homens, sobretudo aqueles pertencentes às classes baixas, lhe permitiram combinar à

elegância do ensaísta os momentos combativos e ousados de prosa. Por fim,

concluiremos com um percurso, por assim dizer, fantasista sobre o gênero ensaio e a

figura do ensaísta a partir de duas forças contrárias, mas não conflitantes, que neles

atuam: uma, excêntrica, que quer escapar às influências telúricas; a outra, concêntrica,

que não nega a terra.

Desse modo, cada um dos três capítulos pretende cobrir uma das “atitudes

mentais” do autor – para fazer valer a expressão de Lucia Miguel Pereira58. No nosso

entendimento, há três dessas atitudes que parecem próprias ao ensaísta,

                                                                                                                         58 Nas palavras de Lucia Miguel Pereira, “Apontados perfunctoriamente os traços principais dos autores neste livro reunidos, logo ressalta a sua diversidade; que todos se possam, com maior ou menor rigor, dizer ensaístas é prova segura da mobilidade e complexidade do ensaio, antes atitude mental do que gênero literário. Atitude mental que, em última análise, significa o desejo de tudo compreender, de captar a realidade, seja ela espiritual ou material, em todas as suas faces”, “Os Ensaístas Ingleses”, p. 17.

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experimentadas e vividas por Hazlitt em sua intensidade, a saber: o retratista, o amigo

e o adversário. A partir de uma combinação dos tipos de ensaios propostos por dois

importantes críticos que discutiram conceitualmente o gênero, Alexandre Eulálio, em

O Ensaio Literário no Brasil, e Max Bense, em O Ensaio e sua Prosa, falaremos: 1)

do “ensaio descritivo, narrativo e interpretativo de intenção estética”59 (tal é a atitude

do retratista); 2) do ensaio “subjetivo (...), chamado em inglês de familiar essay”60,

cuja clareza não é a da definição conceitual (tal é a atitude do amigo); e por fim, 3) do

ensaio polêmico, “que não faz experiência com seu objeto para submetê-lo à

iluminação crítica, mas para atacá-lo e destruí-lo”61 (tal é a atitude do adversário).

Hazlitt, como vimos, é um dos faróis do ensaísmo. Dada a centralidade que o

gênero adquiriu nas letras inglesas, este estudo também pretende iluminar a literatura

inglesa do período, o romantismo. Adotamos como verdadeiras as seguintes palavras

de Gilberto Freyre, ele próprio um ensaísta de mão cheia e leitor cauteloso da

literatura inglesa:

Ninguém pode falar de literatura inglesa sob qualquer critério – psicológico ou

sociológico ou estético – sem considerar a importância que nela adquiriu o antes

artística e intelectualmente elaborado do que espontâneo ensaio. Mais que

qualquer outra grande literatura moderna, a inglesa se destaca pelos seus

ensaístas, cada qual mais mestre de um humour, de uma graça de expressão, de

um modo despretensioso de comentar e até de filosofar, de uma sensibilidade ao

interesse humano dos pequenos nadas e as aventuras que podem esconder-se na

rotina do cotidiano, de o escritor ser filósofo, que, como qualidades assim

diversas, parece só se reunirem em escritores ingleses. É certo que Montaigne era

francês e que não poucos espanhóis têm sido a seu modo ensaístas admiráveis.

Mas na literatura inglesa os ensaístas vêm-se sucedendo numa espécie de

sucessão apostólica dessa forma literária de expressão: uma forma que, mudando

com o tempo sob vários aspectos, no essencial vem-se conservando castiçamente

inglesa. Flexível ensaio, talvez mais que a poesia ou que o drama ou que o

romance, vem permitindo aos ingleses se exprimirem nele de acordo com suas

diferentes personalidades: flexibilidade importante num país de escritores

                                                                                                                         59 Alexandre Eulálio, “O Ensaio Literário no Brasil”. In. Serrote #14. (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013), p. 8. 60 Idem, bidem. 61 Max Bense, “O Ensaio e sua Prosa”. In. Serrote # 16. (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014), p. 179.

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individualíssimos, personalíssimos, cada um, um rei ou uma rainha; e incapazes

de se constituírem em academias uniformizadoras de formas de expressão literária

ou defensoras de conceitos institucionais do que seja boa, correta ou elegante

língua inglesa, ou bom, correto, elegante estilo de prosa ou de poesia. Cada

ensaísta inglês, mais do que cada romancista ou cada teatrólogo, tem sido, dentro

dessa forma literária de expressão, o criador de sua própria maneira de escrever

ensaios62.

                                                                                                                         62 Gilberto Freyre, Alhos e Bugalhos: Ensaios sobre Temas Contraditórios: de Joyce à Cachaça; de José Lins do Rego ao Cartão-Postal (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978), p. 69.

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Capítulo 1

As Poças do Caminho: as peregrinações do artista quando jovem

Caminhou, caminhou, caminhou, a passos largos, até longe (…), gritando para

saudar o advento da vida que tinha gritado para ele.

James Joyce, ‘Retrato do artista quando jovem’1.

1. O Retratista

Leitores e estudiosos de Hazlitt frequentemente retornaram (seja por

instrução, seja por prazer) ao famoso retrato que Virginia Woolf traçou do ensaísta

em O Leitor Comum (1932). No curso de algumas poucas páginas e com a

honestidade “firme do pincel”, Woolf apresenta o seu modelo, no sentido daquele que

posa para um retrato, por inteiro: sua “paixão pelos direitos e liberdades dos homens”,

cuja origem, como veremos neste capítulo, remonta à herança unitarista; seu gosto

bifurcado, entre a pintura e a filosofia; o conflito interno de seu caráter, “como se

duas mentes operassem a um só tempo”; a urgência de escrever para a imprensa “no

calor da hora”, para não se afundar em dívidas; “sua suscetibilidade ao charme do

sexo oposto”, que, não raras vezes, o incorreu em humilhação e desapontamento2. Em

particular, Woolf toca a corda que faz ressoar a arte de fazer ensaios segundo Hazlitt

quando ela a descreve enquanto praticada por alguém que, “de súbito, se aquece ao

rubor ou se aquece ao branco sempre que algo o lembrasse do passado”3. Além disso,

segundo Woolf, Hazlitt (o filósofo) sempre esteve de braços dados com Hazlitt (o

artista). É por esta razão, na opinião de David Bromwich, que a profundidade de gosto

de Hazlitt foi, às vezes, acolhida “com certo desconforto”, por exemplo, por T. S.

Eliot, numa época em que a ascensão da crítica acadêmica, com “seu anseio por

sistemas”4, transplantava a literatura ao reino em preto-e-branco da teoria. O mesmo

                                                                                                                         1 James Joyce, J. 2011. Retrato do Artista quando Jovem, p. 192. 2 Virginia Woolf, The Common Reader: Second Series (London: Harcourt, Inc., 1986), pp.173-85: 173-6. 3 Idem, p. 178. 4 David Bromwich, Hazlitt: The Mind of a Critic (New Haven: Yale University Press), 1983, p. 13. Quanto ao juízo de T. S. Eliot sobre Hazlitt, ver Selected Essays: 1917-1932, pp. 268-9.

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embaraço, entretanto, não acometeu Virginia Woolf, que, em outro retrato, a Walter

Sickert, colocou Hazlitt na frente de batalha contra a linguagem da especialização

fomentada pela rigidez do academicismo literário, lamentando, desse modo, o

desaparecimento da crítica como arte:

Os melhores críticos, Dryden, Lamb e Hazlitt, eram profundamente conscientes da

mistura de elementos e escreveram sobre literatura com música e pintura em mente.

Hoje em dia, somos todos tão especializados que os críticos têm a mente muito presa

à letra, o que explica a condição subnutrida da crítica e a forma atenuada e parcial

com que trata seu assunto5.

A observação de Woolf é significativa e merece um pouco mais de nossa

atenção, em particular, pelo modo como ela ilumina um tipo de crítica não

profissional que se deleite em tudo aquilo para além da letra; isto é, o caráter

pitoresco e musicado da linguagem. Em certo sentido, o desenvolvimento de Hazlitt

de uma voz única em seus ensaios críticos e pessoais veio a ele por um esforço de

compensar sua ambição frustrada de pintor de retratos.

Na juventude, Hazlitt mostrava sinais de uma carreira promissora como

pintor. Durante a vigência do Tratado de Amiens, curto armistício entre França e

Inglaterra6, o aprendiz “marchou contente” pelas recém-abertas galerias do Louvre,

estudando e contemplando, “face a face”, obras-primas que até então só vira “em

                                                                                                                         5 Virginia Woolf, Walter Sickert: uma conversa, In. Serrote #3 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009), p. 206. Boa parte deste ensaio de Virginia Woolf foi escrito segundo uma técnica comum a Hazlitt, com personagens que, em torno de uma mesa, conversam sobre arte, política e sociedade. Vale lembrar que o pai de Virginia, o crítico e jornalista Leslie Stephen, foi editor das obras de Hazlitt em fins do século XIX. No centenário da morte de Hazlitt, em 1930, quando veio a lume a primeira edição crítica de suas obras completas, por P. P. Howe, Virginia Woolf foi quem escreveu, na época, boa parte das resenhas críticas favoráveis à edição. De fato, haveria muito que explorar sobre a afinidade entre os dois. Sobre o tema, por exemplo, ver o artigo de Hermione Lee, “Virginia Woolf’s Essays”, In. The Cambridge Companion to Virginia Woolf, edited by Susan Sellers (Cambridge: Cambridge University Press, 2010). 6 Os conflitos entre França e Inglaterra, durante as chamadas Guerras Revolucionárias Francesas, teve início em 1793 e se estendeu até 1815, com a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo. O armistício durou de março de 1802 a maio de 1803. Como descreveu o biógrafo de Hazlitt e importante estudioso de romantismo, Duncan Wu: “Havia iluminações espalhadas por toda a cidade de Londres, e os ingleses, reunidos aos milhares, atravessaram o Canal da Mancha, ávidos por obter uma amostra dos prazeres do continente, dos quais foram privados fazia mais de uma década”. Duncan Wu, William Hazlitt, the first modern man, p. 79.

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espelho e de maneira confusa”7. Quando de volta à Inglaterra, acompanhou por um

tempo o irmão e também pintor John Hazlitt a lugares, lembra Hazlitt, “onde o jovem

artista faria sua peregrinação”8, de visitas a coleções privadas a serviços de retratos

por encomenda. Por horas a fio, até o cair da tarde, Hazlitt não mediu esforços para

encontrar o exato tom perolado que tingia a pele angulosa de seu primeiro modelo:

“uma senhora de idade avançada, com a parte superior de sua face sombreada por um

toucado”9. Este, como outros quadros do autor, encontra-se hoje em Maidstone

Museum, cidade onde nasceu, ao sudeste de Londres; outros, menos afortunados, diz

Woolf, ele os “rasgou em pedacinhos ou os lançou contra a parede em surtos de

raiva”10. Mas o jovem artista produziria ainda alguns bons quadros (merece destaque

o retrato hoje confiado a National Portrait Galery do amigo e ensaísta, Charles Lamb,

em trajes venezianos, porte ticianesco e leve sorriso de canto de boca), não obstante

algo lhe faltasse – talvez invenção, conjeturou Virginia Woolf11. Não tardaria,

contudo, para que Hazlitt encontrasse na crítica inventiva um meio mais congenial

para dar vida à personalidade de seus modelos – vale lembrar que boa parte da

extensa produção ensaística do autor foi escrita na forma de retratos literários, alguns

dos quais ele os reuniu em livro sob o título The Spirit of the Age, or Contemporary

Portraits, obra de 1825.

A expressão de que aqui nos valemos, crítica inventiva, é baseada na frase

“prosa inventiva”12, cunhada pelo próprio autor no último de seus ensaios, The Letter-

Bell. Se a sua felicidade está assentada em recordações de sua primeira infância – de

que seus últimos ensaios dão testemunho –, ou seja, de como gostaria que as coisas

tivessem sido antes de se frustrar em suas esperanças públicas e privadas13, não nos

                                                                                                                         7 A passagem é bíblica, 1 Coríntios, 13:12, e foi citada por Hazlitt no ensaio em que descreve sua primeira visita ao Louvre, CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 9. 8 Idem, p. 14. 9 Idem, p. 8. 10 Virginia Woolf, The Common Reader, Second Series. p. 175. 11 Idem, ibidem. 12 CWH, “The Letter-Bell”, 17, p. 380. 13 Sobre as esperanças malogradas, públicas e privadas (a primeira, o triunfo da liberdade; a segunda, um casamento feliz), ver “Sobre o Prazer de Odiar”, In. Serrote, n. 9, 2011, p. 29. Também sobre o tema, Stanley Jones, Hazlitt: A Life, From Winterslow to Frith Street (Oxford: Oxford University Press), 1991, em especial os capítulos “The End of Public Hopes”, pp. 161-84, e “The End of Private Hopes”, pp. 319-42.

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surpreende que sua linguagem seja tanto mais plástica e sonora precisamente quando

“destranca a caixa da memória” – quando volta “a ser criança novamente”14.

Pouco antes de iniciar a carreira de pintor itinerante ao lado do irmão, dois

incidentes quase simultâneos o despertaram para a difícil arte da mistura de

elementos. Em 1798, Hazlitt ouvira a pregação de Samuel Coleridge na congregação

dissidente de Shrewsbury: “meu deleite”, escreveu o crítico anos mais tarde, “não

teria sido maior se tivesse ouvido músicas celestiais”15. No mesmo ano, as Reflexões

sobre a Revolução em França de Burke, e as Confissões de Rousseau, caíram em suas

mãos e ele as “devorou com unhas e dentes”16. Se, com Coleridge, Hazlitt descobrira

a linguagem para expressar sua admiração por livros, quadros, peças escultóricas e

peças teatrais com pintura e música em mente – na expressão do autor, por um

“mosaico de imagens” e por “alusões originais”17 –, Rousseau e Burke, de maneiras

distintas, indicaram as tarefas envolvidas no ato de criação crítico-literária pelo modo

como seus semblantes, quando dispostos lado a lado, tencionavam imaginação e

sensibilidade, paradoxo e lugar-comum. É o que se nota, como espero mostrar neste

capítulo, a partir de um exercício de leitura das partes autobiográficas de dois ensaios:

“My First Acquaintance with Poets” e “On the Pleasure of Painting”, nos quais

Hazlitt narra suas peregrinações juvenis e o momento de conversão ao mundo das

artes, quando, diz ele, “um novo sentido veio a mim, um novo céu e uma nova terra se

abriram para mim”18. Uma visão geral da cultura dos dissidentes e sua relação com os

escritos de Hazlitt, a partir de uma análise cerrada de algumas imagens particulares

contidas nesses ensaios, será de grande importância para compreender o conteúdo

político radical que permeia emblemas-chave como a estela da tarde e gotas de

orvalho e, em termos mais específicos, para compreender os caminhos que Hazlitt

teve de percorrer para se iniciar no mundo da literatura e das artes. Como ponto de

partida, falaremos, em primeiro plano, de sua educação dissidente em conexão com o

uso de imagens crepusculares enquanto “emblemas da boa causa” 19 , e

                                                                                                                         14 CWH, "Why Distant Objects Please”, 8, p. 257. 15 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108. 16 No original, “devoured them tooth-and-nail”. Expressão recorrente em Hazlitt para se referir ao ato antropofágico da leitura, no sentido, diz o autor, de que uma ideia ou uma obra só é verdadeiramente compreendida e assimilada se a provamos não na boca, mas no estômago. Para o trecho, ver “On Reading Old Books”, CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 224. 17 No original: “to express my admiration to others in motley imagery or quaint allusion”, CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 107 (grifo nosso). 18 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 14. 19 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108.

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aprofundaremos a análise a partir das implicações vocais e musicais recorrentes na

linguagem de seus ensaios, sobretudo naqueles momentos em que ele olha para o

passado e se descobre, também ele, um artista a seu modo. Por fim, vincularemos a

leitura desses dois ensaios aos retratos literários de dois de seus mais legítimos

precursores: Rousseau e Burke.

2. A Estrela da Tarde

Era fim de tarde, o sol se punha sobre as distantes colinas de Gales,

cravejando os declives argênteos de um dia de inverno; as notas do papo-roxo

pipilavam ao longe, enquanto o céu azul, de gradações imperceptíveis de tons

carmesim e dourado, estendia seu imenso pavimento marmóreo por todas as coisas.

Mais um dia de trabalho chegara ao fim; mais um retrato fora concluído; desta vez,

sem pressa e não por encargo. Havia uma disposição no modelo, pai do artista, de

posar por quanto tempo fosse necessário, além de sentir certo orgulho por aquele que

“multiplicava sua imagem”20. O bondoso pastor dissidente trazia à mão um livro, um

volume das Características [Characteristics] de Shaftesbury, ao qual volvia seu olhar

compenetrado, com o canto esquerdo do rosto iluminado por uma espessa camada de

luz que atravessava as vidraças da capela.

A família de Hazlitt, após duas tentativas frustradas de fixar residência – a

primeira, no país de origem do reverendo, o condado de Cork, Irlanda; a segunda, nas

duas principais cidades do recém-fundado Estados Unidos, Filadélfia e Boston –, foi

forçada a se acomodar na pequena e distante aldeia de Wem, em Shropshire, oeste da

Inglaterra, lá onde as ideias radicais de igualdade social não ecoavam para além do

vale de Llangollen21. Os anos de 1790 foram particularmente difíceis para os

antimonarquistas e defensores da “causa do povo”22, em especial para um pastor não-

                                                                                                                         20 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 12. 21 Sobre a dura aceitação da família Hazlitt de se mudar para Wem e sobre o quanto a vida naquela pequena congregação rural se tornou, ao fim e ao cabo, significativa para as contribuições do Reverendo William Hazlitt a periódicos dissidentes, bem como para sua atividade de teólogo e escritor, ver o artigo de Stephen Burley, “’In This Intolerance I Glory’: William Hazlitt (1737-1820) and the Dissenting Periodical”, The Hazlitt Review, Volume 3 (London: Hazlitt Society, 2010), pp. 9-22; e, do mesmo autor, Hazlitt the Dissenter: Religion, Philosophy, and Politics, 1766–1816, (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014), em particular o capítulo 1, “William Hazlitt (1737-1820) and the Unitarian Controversy”, pp. 9-48. 22 Expressão recorrente em Hazlitt. Ver, por exemplo, o ensaio “What is the People?”, CWH, 7, p. 261.

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conformista de origem irlandesa. O monarca George III, “acompanhado (...) de uma

turba em procissão cerrada a sua volta”, a facção church-and-king, e “montado sobre

seu glorioso corcel (...), expulsou de campo praticamente todos os oponentes”23.

Casas, bibliotecas, laboratórios e locais de reunião de intelectuais revolucionários

foram consumidos pelas chamas; decretos como Two Acts, de novembro de 1795,

proibiram palestras públicas (importante meio de mobilização popular na época); a

rebelião irlandesa de 1798, que devia tanto aos líderes protestantes do norte quanto ao

campesinato católico do sul, foi ferozmente reprimida24; por fim, o Ato de União de

1800 decidiu por uma Irlanda segregada, incorporando-a ao Reino Unido, e salpicou

de lodo as esperanças de homens que, com o Rev. William Hazlitt, dedicaram a vida à

luta pela liberdade civil e religiosa25.

Mas, naquele inverno de 1805, após terminar o retrato do pai26, a luz

prateada da estrela da tarde lavava a escuridão e preenchia os corações de novas

esperanças. Corria pelo país a notícia da vitória de Napoleão na batalha de Austerliz,

e novamente os partidários do povo voltavam a sonhar com um mundo de justiça

social. Em “On the Pleasure of Painting”, Hazlitt descreve o momento em que

acolheu a notícia:

Saí para uma caminhada ao cair da tarde e, quando voltava para casa, vi a estrela da

tarde se pôr sobre a choupana de um homem pobre com pensamentos e sentimentos

que jamais antes tivera. Ah, a revolução do grandioso ano platônico, que aqueles

                                                                                                                         23 CWH, “On the English Novelists”, 6, p. 122. 24 Segundo Wu, o desfecho trágico da revolta irlandesa, quando “em questão de semanas, 30.000 pessoas foram mortas”, é capturado por Hazlitt na frase de abertura de “My First Acquaintance with Poets”, na qual se ecoa um verso de Paraíso Perdido de Milton: “Meu pai era pastor dissidente na congregação de Wem, em Shropshire; e naquele ano de 1798 (as figuras que compõem esta data parecem-me ‘o nome pavoroso de Demogorgon’)...”. CWH, 17, p. 106. Ver, Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 19; e Tom Paulin, The Day-Star of Liberty: William Hazlitt’s Radical Style, pp. 133-5. Para esta e outras passagens que ecoam o Paraíso Perdido, recorri à tradução portuguesa de Daniel Jonas (São Paulo: Editora 34, 2015). 25 Neste parágrafo, nos valemos dos fatos históricos e de suas implicações para os grupos radicais a partir do livro Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária do historiador E. P. Thompson, sobretudo, os capítulos “O bondoso sr. Godwin” (pp. 131-179) e “Caçando a raposa jacobina” (pp. 215-273); também o livro de Wu Modern Man, Part I ‘The Road to Nether-Stowey’, pp. 23-67. 26 Embora Hazlitt alegue ter terminado o retrato do pai “no mesmo dia que recebeu a notícia sobre a Batalha de Austerliz” (CWH, 8, p. 13), o retrato, segundo Howe, foi concluído bem antes, em 1802. Duncan Wu, por sua vez, levanta a hipótese de o retrato ter sido pintado em 1804; ver Selected Writings of William Hazlitt, ed. Duncan Wu, 9 vols (London: Pickering & Chatto, 1998), VI, p. 298, n.30. A aparente distorção dos fatos sugere que a verdade na narrativa do autor é poética ou alegórica, por oposição a uma verdade minuciosamente histórica.

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34    

   

tempos se sucedam outra vez! Dormiria um sono profundo no intervalo de sessenta e

cinco mil e trezentos anos!27

Não era a primeira vez, e não seria a última, que o “louro anjo vespertino”,

nos versos de outro escritor que saudou com alegria o mesmo evento, William

Blake28, iluminaria os caminhos do jovem autor. Noutra ocasião, no ensaio “On the

Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, sobre o qual falaremos mais

detidamente no terceiro capítulo desta tese, Hazlitt recorreu à mesma imagem e disse

que nenhuma outra definiu tão bem os sentimentos do verdadeiro jacobino, conquanto

se tratasse de uma “definição pastoral” ou “romântica”29. De fato, a frequente

recorrência no texto de Hazlitt dessa e de outras imagens correlatas – a estrela d’alva,

o sol nascente – para descrever um sentimento e um engajamento político, põe o autor

em estreita afinidade com a cultura dissidente, da qual também faziam parte os

principais escritores e pensadores radicais da Inglaterra no período30. A visão de

Hazlitt da estrela da tarde que se põe sobre a choupana de um homem pobre está

íntima e conscientemente alinhada com a sua herança unitarista.

O livro de Tom Paulin, The Day-star of Liberty: William Hazlitt’s radical

style (1998) e, sobretudo, o amplo estudo realizado por Stephen Burley em Hazlitt the

Dissenter: Religion, Philosophy, and Politics, 1766-1816 (2014) oferecem alguns

traços da cultura dissidente dos quais me aproveitei em minha análise. Pela riqueza de

detalhes e pelo interesse no que “há de poético (...) nos gestos que simbolizam e

concentram longos períodos de luta”31, recorri, por vezes, também ao livro do

historiador marxista Christopher Hill, O Mundo de Ponta-Cabeça: ideais radicais

durante a Revolução Inglesa de 1640 (1972). Embora Hill só mencione en passant as

                                                                                                                         27 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 13. 28 Ver o poema de Blake A Estrela Vésper [The Evening Star], em O Casamento do Céu e do Inferno (São Paulo: Hedra, 2008) pp. 84-85. A simpatia de Blake por Napoleão é clara em seus escritos. Em um poema escrito a George Cumberland, por exemplo, ele associa positivamente a choupana com “o brilho da luz sobre a França”, isto é, exatamente a mesma imagem que Hazlitt evoca. Sobre a passagem e uma discussão do tema, ver Jon Mee e Mark Crosby, ‘“This Soldierlike Danger”: The Trial of William Blake”, In. Mark Philip, Resisting Napoleon: The British Response to the Threat of Invasion 1797-1815 (Aldershot: Ashgate, 2006), pp. 111-24: 112. 29 CWH, “On the Connecion between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p. 151. 30 Nas palavras de Marilyn Butler, “como Priestly, Paine, Godwin e Blake, ele [Hazlitt] tem origem no estoque clássico da esquerda inglesa, os dissidentes”, Romantics, Rebels & Reactionaries: English Literature and its Background 1760-1830, p. 169. 31 Chistopher Hill, O Mundo de Ponta-Cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640 (São Paulo: Companhia das Letras, 2001) p. 365.

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35    

   

origens do unitarismo na Inglaterra, ao tratar das suas relações com o sociniano John

Bidle, a afinidade que esse grupo radical puritano teve com dezenas de outros citados

no livro lança uma luz a esta exposição. De saída, deve-se notar que alguns aspectos

da fé e conduta moral, aos quais os puritanos foram frequentemente associados – a

doutrina da predestinação, a fuga do mundo, a solidão interior do indivíduo –,

divergem das crenças e práticas sociais que caracterizavam parte significativa dos

grupos dissidentes. Neste momento de nossa exposição, também recorremos ao livro

seminal do sociólogo Max Weber, A Ética protestante e o “Espírito” do Capitalismo.

Contudo, os contornos demasiado claros que esse estudo impôs aos grupos puritanos e

o interesse exclusivo do sociólogo por uma “ética protestante” vitoriosa, isto é, ligada

aos interesses da propriedade privada, colocam nossa analise a contrapelo de algumas

conclusões do autor.

Também é importante frisar que “o puritanismo de Hazlitt é cultural”32,

como o foi para a maioria dos escritores da época. Ainda muito jovem, após

abandonar os estudos de teologia e seguir a carreira de pintor itinerante, Hazlitt

frustrou os sonhos do pai, que desde cedo o preparara para a vida pastoral. Com o

passar dos anos, as artes ocuparam definitivamente o lugar da religião na vida do

escritor33. Mas, enquanto aluno de Hackney College, colégio unitarista de renome na

época, Hazlitt conheceu mais a fundo os ideais dos radicais e travou contato com

grandes nomes da vanguarda intelectual. O New College, como observou Burley, era

na época “um importante centro de empreendimento reformista e radical (...),

[reunindo] as principais figuras dissidentes e radicais da época”34. Ali, Hazlitt assistiu

aos cursos de história de Joseph Priestley, autor de A History of the Corruption of

Christianity – um ataque feroz à institucionalização da igreja cristã, católica e

protestante; participou de encontros onde estavam presentes o casal William Godwin

e Mary Wollstonecraft, com quem Hazlitt foi treinado na arte da conversação

enquanto “colisões de mentes”, na qual ninguém se destacava tanto quanto a própria

Wollstonecraft35; e John Thelwall, a raposa jacobina – para fazer valer a expressão do

                                                                                                                         32 “General Introduction” de Tom Paulin a The Selected Writings of William Hazlitt, v. 1. p. xiii. 33 Nas palavras de David Bromwich, “para Hazlitt, a perda da fé em Deus decerto coincidiu com o despertar de uma maior receptividade às artes”, Hazlitt: The Mind of a Critic, p. 6. 34 Stephen Burley, “’A Slaughter-House of Christianity’: A Short History of New College, Hackney” (London: The Hazlitt Review 5, 2012), pp. 55-9: 57. 35 Em “My First Acquaintance with Poets”, Hazlitt se compraz ao ver que Coleridge também admirava “os poderes de conversação da sra. Wollstonecraft”; entretanto, ficou desapontado quanto à opinião baixa que o poeta tinha de Godwin. Segundo Hazlitt, essa opinião diz muito sobre uma mente repleta

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historiador E. P. Thompson36 . Sobre Thelwall, escreveu Hazlitt em The Plain

Speaker: “Foi o mais inflamado orador que já ouvi (...), era como um vulcão

vomitando lava (...). O relâmpago da indignação nacional brilhava em seus olhos”37.

Ao rejeitar alguns dogmas centrais da igreja oficial – a trindade, o pecado

original e o inferno –, os unitaristas, que neste e noutros particulares guardam

profundas semelhanças com os grupos radicais de que nos fala Christopher Hill,

enfatizavam a dimensão humana de Cristo. Na lição introdutória ao curso que

ministrou sobre a poesia dramática na época isabelina, Hazlitt traçou o perfil de um

Cristo defensor das causas sociais, “deixando de lado”, adverte o autor, “qualquer

questão relativa à fé religiosa”38. As palavras finais desse perfil lemos a seguir:

O evangelho chegou primeiro aos pobres, porque consultou suas carências e

interesses, em vez de consultar o orgulho próprio e a arrogância. Foi o primeiro a

anunciar a igualdade dos homens em uma comunidade de responsabilidades e de

benefícios. Denunciou as iniquidades dos líderes sacerdotais e dos fariseus e

declarou-se contrário aos principados e à autoridade, porque se simpatizou não com o

opressor, mas como o oprimido. Foi o primeiro a abolir a escravidão, porque não

aceitou o poder da vontade de infringir injúrias, como se alguém estivesse investido

desse direito. Ao mesmo tempo, desarmou a mente da grosseria dos sentidos e tomou

emprestado uma partícula da chama divina, para que iluminasse e purificasse a

lâmpada do amor!39

A conclusão desse excerto sobre a “chama divina”, bem como o olhar

fulminante do pregador Thelwall no trecho citado anteriormente, ou mesmo a

presença geral do arquétipo dos corpos luminosos na cultura dos dissidentes, criariam

inúmeras dificuldades a uma leitura, digo, apressada, que se propusesse a reduzir a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           de “capricho ou preconceito; real ou simulado”, (CWH, 17, p. 112). Para uma discussão sobre o modelo de conversação em Wollstonecraft e Godwin, que estimulava as trocas intelectuais sem, contudo, prejudicar a polidez, ver o extenso estudo de Jon Mee, Conversable Worlds: Literature, Contention, and Community 1762 to 1830 (Oxford: Oxford University Press, 2011); em particular o capítulo 3, “Critical Conversation in the 1790’s: Godwin, Hays, and Wollstonecraft”, pp. 137-67. 36 Ver o ensaio de Thompson sobre Thelwall “Caçando a raposa jacobina”, em Os Românticos, pp. 215-291. 37 CWH, “On the Difference between Writing and Speaking”, 12, p. 264. 38 CWH, “Lectures on the Dramatic Literature of the Age of Elizabeth: general view of the subject”, 6, p. 183. 39 Idem, p. 185 (grifo nosso).

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religiosidade puritana a uma prática orientada exclusivamente à vida racional e

intramundana. A luz interior, elemento-chave que caracteriza a religiosidade

protestante de modo geral, não conduz, pelo menos não no caso dos grupos radicais

que pulularam na Inglaterra em tempos de revolução, ao “afastamento interno perante

o mundo”, à desilusão individualista ou à ruptura do indivíduo com “os laços que o

prendiam à comunidade”, como quis Weber40. Antes, os filhos da luz, como eram

conhecidos, idealizaram um mundo de justiça social, o qual só poderia ser levado a

cabo por um forte “espírito coletivista” (expressão de Christopher Hill)41. Um

dissidente, diz Hazlitt noutro ensaio, no qual ele reformula o que disse anteriormente

sobre o espírito do cristianismo, é alguém capaz de olhar para fora de si mesmo e se

simpatizar “não com os opressores, mas com os oprimidos!”42 Em um ensaio de The

Round Table, “On the tendency of sects”, Hazlitt escreveu: “os membros de uma seita

(...) são os partidários mais cautelosos e os amigos mais leais. Desconheço decerto

outro grupo de pessoas para o qual a ideia abstrata de apego a uma causa ou a alguém

faça maior sentido”43. Ou ainda, conforme observou Duncan Wu, se havia algum

traço comum aos radicais, este era a “aspiração por um mundo mais justo”44. Nesse

contexto, a luz dos corpos celestiais é a consubstanciação de uma ideia utópica de

transformação social e política, a qual é, por um lado, distante e abstrata – uma ideia

de um porvir – e, por outro, concreta, firmemente aderida à sua matéria mundana,

porque é constante a presença de sua influência sobre a raça humana; daí o espesso

facho de luminosidade que atravessa as vidraças da capela e envolve o canto esquerdo

do rosto do Rev. William Hazlitt, no retrato referido acima; daí, também, a estrela da

tarde que se põe sobre a choupana de um homem pobre como imagem arquetípica da

promessa por um mundo melhor.

                                                                                                                         40 Weber, A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, Parte II. 1. “Os fundamentos religiosos da ascese intramundana” (São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 87-139). O desconhecimento do sociólogo alemão da cultura dos grupos radicais ingleses é o que explica o seu alumbramento diante de uma figura como John Milton, sobre quem disse ter sido um “cavalo solitário” (p. 204) e, portanto, fora de consideração em seus estudos. O que o livro de Hill mostra é o quanto John Milton estava longe de ter sido uma figura isolada, no que tange a sua fé e conduta moral. Ver, sobretudo, “Milton e Bunyan: diálogo com os radicais”, (pp. 376-395). 41 Segundo Christopher Hill, certas práticas religiosas comuns aos grupos protestantes – por exemplo, a conversão – se opõem diretamente ao individualismo: “Essa força que os conversos sentiam também se devia ao fato de se perceberem em união íntima com uma comunidade de pessoas que compartilhavam as mesmas ideais; muitas vezes já se assinalou o espírito ‘coletivista’ que caracterizava o calvinismo em seus primórdios. O mesmo senso de uma comunhão de interesses e crenças inspirou as primeiras congregações separatistas”, O Mundo de Ponta-Cabeça, p. 159. 42 CWH, “On Court-Influence”, 7, p. 242. 43CWH, “On the Tendecy of Sects”, 4, p. 51. 44 Duncan Wu, William Hazlitt, the first modern man, p. 67.

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38    

   

Mas há outro detalhe importante ao qual devemos atentar nesse retrato. O

livro que o reverendo trazia nas mãos, um volume das Características de Shaftesbury:

“meu pai não teria posado de bom grado fosse qualquer outro livro”45. A referência a

Anthony Ashley Cooper, terceiro conde de Shaftesbury, já aponta para os caminhos

de uma religiosidade secular, de forte inspiração no mundo das artes. Shaftesbury,

além de paladino dos liberais radicais, por sua defesa incondicional da participação do

povo no poder público, legou à tradição conceitos e temas-chave que definiriam a

estética como área autônoma do pensamento. De fato, é volumosa a presença de

Shaftesbury nos escritos de Hazlitt, assunto por demais amplo e complexo para se

desenvolver aqui46.

Para elucidar o que dissemos até aqui, passemos agora ao eixo de nossa

análise – a narrativa de Hazlitt de seu primeiro encontro com Coleridge, sua

peregrinação de Wem a Shrewsbury – e, em particular, a uma leitura cerrada de

algumas passagens emblemáticas do ensaio “My First Acquaintance with Poets”,

sobre o momento de conversão a um mundo das artes; evento esse prenhe de

esperanças por um mundo de justiça social. O rico recurso linguístico dessas

passagens, que evocam alusões vocais e musicais sobre as quais nos referimos acima,

merece uma atenção especial.

Segundo um costume dos unitaristas, as visitas à congregação de Shrewsbury

eram alternadas entre o Rev. William Hazlitt e outros dois pastores: John Rowe e um

certo Jenkins de Whitchurch, de modo a preservar uma linha de comunicação entre os

poucos não conformistas dispersos pelo interior do país, os quais, no dizer de Hazlitt,

guardavam a “chama da liberdade civil e religiosa”47, à espera da insurreição. Mas em

janeiro de 1798, John Rowe deixou o ministério e, como substituto, convidou o jovem

poeta Samuel Taylor Coleridge. Aqueles anos em que o poeta “banhava suas asas em

controvérsias unitaristas”48 lhe foram particularmente profícuos. Boa parte de Lyrical

                                                                                                                         45 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 12. 46 Em A Linguagem das Formas: natureza e arte em Shaftesbury, Pedro Paulo Garrido Pimenta sugere a estreita afinidade entre ambos os autores quando abre o capítulo 4, “Da Cópia à Imitação”, com um trecho do ensaio Originalidade [Originality] de Hazlitt, em que o crítico retoma um ponto importante do filósofo inglês do século XVIII (São Paulo: Alameda, 2007, p. 111). Para uma discussão mais detalhada sobre a presença de Shaftesbury e da filosofia moral britânica nos escritos de Hazlitt, ver Tom Paulin “Celebrating Hutcheson”, In. The Day-Star of Liberty, pp. 64-90; e o artigo de Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Frances Hutcheson and William Hazlitt”, in. The Hazlitt Review, Volume 6, 2013, pp. 5-12. 47 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 107. 48 CWH, “Mr. Coleridge”, 11, p. 30.

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39    

   

Balads, escritas em parceria com William Wordsworth, como também os poemas A

Balada do Velho Marinheiro e Christabel, são dessa época.

Era sábado de tardezinha quando Coleridge, portando um sobretudo preto

que mal se ajustava ao seu corpo, foi recebido por Rowe. Este, quando viu os

passageiros que desciam do coche, estava seguro de que nenhum deles poderia ser o

poeta. As sombras da dúvida se dissiparam quando o homem “de rosto arredondado e

vestido de preto”49 cumprimentou-o com um sorriso no rosto e desatou uma conversa.

“Desde então, não parou de falar” e “ninguém se cansava de ouvi-lo”50. Durante as

três semanas em que o “poeta pregador” 51 esteve na cidade de Shrewsbury,

“tremularam os orgulhosos salopianos, qual águia em pombal”52. Por fim, após

receber uma oferta irrecusável, uma sinecura de cento e cinquenta libras ao ano para

se dedicar exclusivamente ao estudo de poesia e filosofia, Coleridge deixou o obscuro

vilarejo do oeste inglês e “foi habitar o Monte Parnaso”. Para o menino Hazlitt, aos

dezenove anos de idade, a pregação que ouvira de Coleridge na manhã de domingo e

as conversas com o poeta, primeiro na residência do pai, depois em caminhadas pelos

campos adjacentes, iluminaram suas esperanças e expectativas como “a luz prateada

da estrela da tarde”53.

Mas é digno de nota que a luz reluzente que emanava de Coleridge é o

primeiro elemento mencionado por Hazlitt em sua narrativa de conversão; isto é, e

segundo a religiosidade protestante, a luz divina resplandece sobre o convertido antes

mesmo que a voz ecoe no fundo de seu coração, antes, ainda, das caminhadas a

passos largos, de encontro com o advento da nova vida que tinha gritado para ele.

                                                                                                                         49 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 106-7. 50 CWH, “On the Living Poets”, 5, p. 167. 51 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 112. 52 Idem, p. 107. A passagem é uma alusão à peça de Shakespeare Coriolano, V. vi. 114-115. Para traduzi-la nos valemos da edição em português de Barbara Heliodora. A palavra inglesa salopian, a partir da qual criamos o neologismo salopiano, corresponde aos habitantes da região de Shropshire ou à escola de Shrewsbury. Na brilhante análise de Paulin desta passagem, o autor lembra os leitores que o mesmo trecho de Coriolano foi usado em outro momento por Hazlitt para se referir a Burke. Desse modo, diz Paulin, Hazlitt estabelece uma “ponte associativa” entre ambos, Burke e Coleridge, e assinala que este, como aquele, também se tornaria um vira-casaca, na expressão do autor (CWH, 19, p. 227), isto é, alguém que entrou na briga e comprou o lado errado, contra o despontar da liberdade. Ver Tom Paulin, The Day Star of Liberty: William Hazlitt’s Radical Style, “Coleridge the Aeronaut”, 199-200. 53 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, pp. 112, 115.

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40    

   

Não tinha, então, noção alguma de que um dia pudesse expressar minha admiração

pelos outros por um mosaico de imagens ou por alusões originais, antes de a luz de

seu gênio [Coleridge] reluzir em minh’alma, como raios de sol que rutilam nas poças

do caminho. Na época, era mudo, inarticulado e indefeso, como um bicho de beira de

estrada: esmagado, ensanguentado e inerte. Mas hoje (...) minhas ideias flutuam sobre

palavras aladas, estendem suas plumas e apanham a luz áurea de anos pregressos. De

fato, se minh’alma se libertou de seu antigo cativeiro: triste, obscuro, de anseios sem

fim e descontente; se meu coração, outrora encerrado na masmorra desse barro rude,

encontrou, ou pudesse encontrar, um coração com o qual se comunicasse; e se meu

entendimento também não permaneceu mudo e bruto, pois encontrou, por fim, uma

linguagem com a qual se expressar; devo isso a Coleridge54.

A comparação do autor com um ‘verme’ (que aqui traduzimos por bicho para

preservar, na expressão “bicho de beira de estrada”, a aliteração que ocorre no inglês,

“worm by the way-side”); a adjetivação tripla, em duas ocorrências no mesmo período

(“mudo, inarticulado e indefeso”; “esmagado, ensanguentado e inerte”); o

aprisionamento da alma no corpo (“barro rude de anseios sem fim”); a aquisição de

uma linguagem que lapida o entendimento e o coração; todas essas imagens e

recursos linguísticos foram lavrados a partir dos relatos de experiência de conversão,

segundo a cultura dissidente; ou ainda, em sentido mais amplo, segundo a cultura

cristã. Mas, nesse trecho, Hazlitt conduz o olhar do leitor para a comparação de sua

alma com as “poças do caminho” e para a luz que incide sobre elas, pelo recurso de

assonâncias vocálicas e de uma rima interna que não conseguimos preservar em nossa

tradução. Assim, no original: “the light of his genius shone into my soul, like the sun’s

rays glittering in the puddles of the road”. A rima que reforça o símile e o /ou/

prolongado em soul e road, em conexão com o /r/ que aparece nesta última palavra,

confere uma tonalidade elevada e grave, própria a uma experiência de conversão. Se o

tom grave das palavras soul e road, escolhidas pelo autor para se referir a si mesmo (o

convertido), destoam dos ditongos menos solenes de /ai/ em light e /ei/ em ray, para

se referir a Coleridge (o pregador) de modo a estruturar a sentença em dois conjuntos

de palavras de conteúdos semânticos distintos (um, leve e cintilante; o outro, rijo e

telúrico), o /ã/ semiaberto em sun e puddle sugere o momento da infiltração de luz

sobre a matéria inerte e barrenta.

                                                                                                                         54 Idem, p. 107 (grifo nosso).

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41    

   

Para Hazlitt, a crítica inventiva, ou seja, aquela arte de expressar a admiração

pelos outros por um “mosaico de imagens ou por alusões originais” ou, segundo

Virginia Woolf, com música e pintura em mente, depende, num primeiro momento,

daquele estado, nas palavras de John Keats, “de fermentação da alma, em que o

caráter ainda não se decidiu, os caminhos da vida são incertos”55; isto é, segundo a

nossa interpretação da arte de escrever ensaio para Hazlitt, quando o ensaio ao-rés-do-

chão ainda não adquiriu plena forma. Daqui em diante, um segundo acompanhante

guiaria os caminhos do saunterer56 que parte por estradas outrora não trilhadas: “a

voz da Fantasia”57.

3. Gotas de orvalho

Já estava tudo acertado. Coleridge partiria na manhã seguinte para o vilarejo

de Nether Stowey, Somerset – uma região que descreveu como cercada por nomes

poéticos, como Vale Rock, cujos “precipícios defronte ao mar, com suas rochas e

cavernas inferiores, onde ondas colidem”58, talvez tenham feito o cenário para o

poema Kubla Khan. Lá, ele se encontraria com o amigo e mais novo patrono, Thomas

Wedgwood. William e Dorothy Wordsworth também estavam à sua espera “e juntos

viveriam os anos mais marcantes de suas vidas artísticas”59. Muitas são as histórias

que circundam a presença dos poetas na região. A mais famosa, cujo relato

conhecemos da própria pena de Coleridge e que se difundiu entre nós depois de

Manuel Bandeira finamente reconstituí-lo em Itinerários de Pasárgada60, é sobre o

                                                                                                                         55 John Keats, The Complete Poems (Ware: Wordsworth Poetry Library, 1994), p. 60. 56 Em sentido corrente, a palavra em inglês saunterer corresponde ao andarilho ou àquele que perambula. Porém, conforme observa o escritor norte-americano, Henry David Thoreau, no ensaio “Caminhar”, de 1862, a palavra inglesa “deriva ‘das pessoas ociosas que vagavam pelo interior, na Idade Média, e pediam esmolas a pretexto de se dirigirem à la Sainte Terre’, à Terra Santa’, até as crianças começarem a exclamar: ‘Lá vai um Sainte-Terrer’, um saunterer (...). Há, no entanto, quem sustente que a palavra deriva de sans terre, sem terra ou sem lar (...). Mas eu prefiro a primeira etimologia da palavra, que é, de fato, a mais provável” (In. A Desobediência Civil, São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2012. pp. 81-82). É curioso observar a ocorrência do verbo sauntering no trecho de My First Acquaintance with Poets em que o ensaísta narra sua caminhada ao encontro de Coleridge e Wordsworth, ou ao encontro da própria poesia e das artes, quando seguia às sós para Nether-Stowey: “quando me cansava de caminhar (sauntering) pelas margens do rio turvo, voltava à estalagem e lia”. “My First Acquaintance with Poets”, CWH, 17, p. 116. 57 Idem, ibidem. 58 Idem, p. 120. 59 Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, 10. 60 Depois de recontar a narrativa de Coleridge, Bandeira narra sua própria dreamwork fabric, o soneto “O Lutador”: “Esta foi a gênese do soneto: ouvi um dia de minha prima, Maria do Carmo de Cristo Rei, monja carmelita, a narrativa de viagem que lhe fizeram umas irmãs peruanas, de volta de uma

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poema Kubla Khan. “Tomara o poeta”, diz Bandeira, “uma dose de ópio e

adormecera sentado no momento preciso em que lia no Purchas’s Pilgrimage esta

frase: ‘Aqui o Khan Kubla mandou construir um palácio com suntuoso jardim. E

assim dez milhas de terra feraz foram cercadas de muro’”61. Depois que despertou,

Coleridge descobrira que havia composto durante um sonho uns “duzentos ou

trezentos versos”, os quais dispusera-se prontamente a transcrever. Entretanto, a

súbita interrupção de um morador para tratar de negócios fez com que retivesse

somente uma “recordação vaga e obscura do conteúdo geral da visão”62.

Na noite que antecedera à partida, Coleridge fez uma visita à família de

Hazlitt. Durante o encontro, o poeta ficou profundamente tocado pela destreza com

que o filho caçula do reverendo se expressava nas conversas. Assim, antes de partir,

deixou sobre a mesa um bilhete com seu mais novo endereço – “documento precioso”

– e exortou Hazlitt para que o visitasse na primavera próxima. No dia seguinte,

também a pedido de Coleridge, Hazlitt acompanhou o poeta nas primeiras “seis

milhas da estrada principal”. Coleridge falou durante o percurso sobre alguns dos

temas preferidos de ambos (filosofia, política e literatura), passando aleatoriamente

entre eles. Do mesmo modo, ele caminhava “indo de um lado para o outro”, “num

movimento indefinível”63. Numa carta a Wedgwood, disse Coleridge a respeito de

Hazlitt,

Sempre de sobrancelha arqueada e com olhos fitos nos pés, era estranho (...).

Mas, amiúde, quando aquecia a mente e o sulco sinovial lubrificava suas

articulações, galopava por meia hora com a mais legítima eloquência e acertava

em cheio e veloz o alvo do manancial dos pensamentos com o ruído seco da corda

de arco64.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           peregrinação a Ávila, onde viram as relíquias da reformadora do Carmelo. Naturalmente falaram com unção do coração transverberado da grande santa. A palavra ‘transverberado’ impressionou-me fundamente. Passei o resto do dia pensando nela, mas sem nenhuma ideia de poema. No dia seguinte de manhã acordo com o soneto pronto na cabeça, com título e tudo. Believe it or not”. Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa (Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967), pp. 126-127. 61 Idem, p. 126. 62 Ver “Prefácio de Coleridge a ‘Kubla Khan’ ou visão num sonho. Fragmento”, em A Balada do Velho Marinheiro, pp. 221-222. 63 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, pp. 112-3. 64 Essas observações de Coleridge sobre o jovem Hazlitt são bastante conhecidas. Virginia Woolf, por exemplo, recorre a elas no ensaio “William Hazlitt” de O Leitor Comum: “Tão fino é o véu com o qual Hazlitt reveste seus ensaios, que, dentro em breve, o seu próprio semblante aparece diante de nós.

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A observação de Coleridge sobre o som áspero da língua de Hazlitt nesse

retrato de meio-corpo se coaduna perfeitamente com o tom geral das impressões que o

crítico conservou do poeta por toda a sua vida: a imaginação de Coleridge é musical.

O retrato que Hazlitt escreveu sobre o poeta, em The Spirit of the Age, é impregnado

de imagens musicais: a “corda de sua antiga promessa à fama produz hoje um som

dissonante”; sua “erudição livresca” mistura-se com “a música do pensamento e da

humanidade”; “cordas estilhaçadas que vibram por si mesmas e produzem música

melancólica no ouvido da memória”65; entre inúmeras outras. Noutras palavras,

porque ocultas e enigmáticas, não há tangibilidade alguma em suas imagens. As ricas

descrições que o texto de Hazlitt nos legou sobre as conversas que juntos travaram ao

longo da vida deixam ao leitor de hoje um anseio desamparado por jamais ter ouvido

Coleridge se expressar a viva voce66. Em The Spirit of the Age, escreveu Hazlitt em

alusão à peça de Shakespeare, A Tempestade: a voz de Coleridge “é como o eco do

rugir coletivo ‘no escuro abismo’ do pensamento”. Outrossim, “A Balada do Velho

Marinheiro (...) dá uma ideia distante dos tons elevados e modulados da voz de

Coleridge”67. Sobre o crítico, contudo, a voz melíflua do poeta reservou-lhe a música

do pensamento, sem a qual suas palavras jamais alcançariam a luz áurea de anos

pregressos. Mais uma vez, devemos retornar às imagens crepusculares daquela manhã

de domingo, quando ouvira o pregador na congregação de Shrewsbury, pelo modo

como a sua narrativa confirma a observação de Virginia Woolf de que, para Hazlitt, a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Vemo-lo como Coleridge o viu, de ‘sobrancelha arqueada, olhos fitos nos pés, estranho’. Ele se mistura às pessoas da sala; não olha ninguém cara a cara; dá um aperto de mão como se segurasse uma barbatana de peixe; e, vez ou outra, lança um olhar maligno do canto onde se encontra” (Second Common Reader, p. 173). Para a nossa tradução, seguimos a citação na íntegra da carta segundo Duncan Wu, p. 94.

É curioso notar que no poema de 1825 O Poeta e o Prosador, do escritor russo Aleksandr Púchkin, encontramos a reincidência das mesmas imagens que o poeta, Coleridge, empregou para se referir ao prosador, Hazlitt. Cito o breve poema na íntegra: “Por que te inquietas, prosador?/ Escolhe os temas e, ao que for/ eu darei gume, alada rima,/ e farei dele flecha exímia/ que, após deixar a corda tesa/ do arco dobrado servilmente,/ voará certeira até que a presa,/ nosso inimigo, se lamente!”, A Dama de Espadas: prosa e poemas (São Paulo: Editora 34, 1999), p, 234. Vale lembrar que Púchkin tinha em sua biblioteca um exemplar de Table-Talk de Hazlitt e que, a partir de sua leitura, se propôs a criar a sua própria versão de Table-Talk. Ver Waclaw Lednicki, “Preface”, In. Bits of Table Talk on Púchkin, Mickiewicz, Goethe, Tugenev and Sienkiewicz. (Martinus Nijhoff: The Hague, 1956), pp. v-vii. 65 CWH, “Mr. Coleridge”, 11, p. 29, 31 e 34. 66 Expressão latina, frequente no texto de Hazlitt, que significa se expressar ao vivo ou em corpo presente. Ver, por exemplo, “On the Prose-Style of Poets”, CWH, XII, p. 6. 67 CWH, “Mr. Coleridge”, 11, pp. 34-5 (grifo nosso).

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crítica como forma de arte se faz não apenas com pintura, mas também com música

em mente.

Dez milhas separam os vilarejos de Wem e Shrewsbury. Hazlitt levantou

cedinho, antes mesmo de despontarem os primeiros raios de sol, e caminhou a sós

pela estrada “úmida e lamacenta”68. Fazia muito frio e o percurso era “duro e

desagradável”69. Pouco antes de cruzar o umbral do templo, pôde ouvir o salpicar do

órgão que tocava o Salmo de número 100, dando graças aos que adentravam por suas

portas. Acomodou-se em um dos bancos ao fundo e, com coração aflito, viu

Coleridge “subir ao monte, a fim de orar”70. Em tempos de guerra e perseguição

cerrada aos grupos de resistência – dos quais, como dissemos, faziam parte,

sobretudo, membros de denominações dissidentes –, o sermão de Coleridge não podia

ser mais expedito. Era sobre “a guerra e a paz; sobre a igreja e o Estado – não sobre a

aliança entre eles, mas sua separação”71. Pode-se ter uma ideia do conteúdo da

pregação e do quanto Coleridge repudiava a campanha militar inglesa na França, a

partir da leitura do poema France: An Ode, escrito no começo daquele ano72.

Obviamente, a excursão por um assunto tão espinhoso e “a graça adicional que

concedia à causa dos unitaristas” tinham toda a fragrância da poesia: “sua voz ‘subia

aos céus como um eflúvio de ricos perfumes destilados’”73. A conclusão sobre os

efeitos nefastos da guerra foi extraída do contraste entre dois jovens camponeses: o

primeiro, “sentado sob o estrepeiro, conduzia o rebanho com sua frauta”74; o segundo,

forçado ao alistamento, caía bêbado em algum canto de bar, trazendo um tambor

debaixo do braço. As impressões gerais da pregação foram finamente narradas por

Hazlitt no excerto a seguir:

Quanto a mim, meu deleite não poderia ser maior se tivesse ouvido músicas

celestiais. A Poesia e a Filosofia se encontraram, a Verdade e o Gênio deram-se as

mãos sob o olhar e com o consentimento da Religião. Nada poderia ter superado

                                                                                                                         68 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108. 69 Idem, ibidem. 70 Idem, ibidem. Referência à passagem bíblica, João 6:3. 71 Idem, ibidem. 72 Samuel Taylor Coleridge, The Collected Works of Samuel Coleridge, Poetical Works I, (Princeton: Princeton University Press, 2001), xvi, I, p. 465. 73 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108. O trecho de Hazlitt é uma citação de A Mask Presented at Ludlow Castle, mais conhecido por Comus, poema de John Milton. 74 Idem, ibidem.

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minhas expectativas. Voltei para casa bastante satisfeito. O sol, que ainda abria

caminho no céu pálida e lividamente, obscurecido por névoas espessas, era como um

emblema da boa causa; e havia ainda algo de jovial e um refrigério sob as gotas de

orvalho, frias, úmidas e meio-derretidas, que se dependuravam nos espinhos do

cardo, pois havia, em toda a natureza, um espírito de esperança e juventude75.

No Antigo Testamento, poucas imagens ocorrem com tanta frequência ou

são tão carregadas de riqueza e significado quanto o orvalho. Via de regra, ela está

associada à proteção e às bênçãos que o Senhor derramou sobre o povo eleito. Ao

longo dos quarenta anos de travessia pelo deserto, a sobrevivência do povo de Israel

só fora possível graças ao destilar do orvalho servido como repasto na forma de maná:

Quando se evaporou a camada de orvalho que caíra, apareceu na superfície do

deserto uma coisa miúda, granulosa, fina como a geada sobre a terra. Tendo visto

isso, os israelitas disseram entre si: ‘Que é isso?’ Pois não sabiam o que era.

Disse-lhes Moisés: ‘Isto é o pão que Deus vos deu para vosso alimento’76.

Alimento do corpo, mas também da alma. A palavra de Deus se espalha

como o orvalho. No livro de Ageu, o profeta de mesmo nome diz que o Senhor

retivera o orvalho do céu e convocara a seca porque o povo deixou o Templo em

ruínas. Mas, quando os homens recolhiam no peito as dádivas divinas, estas eram

como um refrigério; junto a elas Israel habitava em segurança. Nos versos finais do

poema de William Blake, A Estrela Vésper, a que aludimos anteriormente, diz o

poeta: “o velo do rebanho está coberto com/ Teu santo rorejar: que tua influência o/

ampare!”77. O orvalho pode ser associado ainda à promessa do redentor – por isso a

não ocorrência do arquétipo no Novo Testamento. O profeta Miquéias diz que o saldo

                                                                                                                         75 Idem, p. 108-9 (grifo do autor). 76 Êxodo, 16: 14-15. 77 William Blake, O Casamento do Céu e do Inferno, pp. 84-85. Para um extenso estudo sobre a intepretação de Blake sobre a Bíblia e o quanto a exegese do poeta se volta, em particular, para as imagens e as visões bíblicas, ao invés de suas virtudes morais, ver Christopher Rowland, Blake and the Bible (New Haven: Yale University Press, 2010).

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do povo de Jacó às demais nações será “como um orvalho vindo de Deus (...), que não

espera no homem e não conta com o filho do homem”78.

Hazlitt, como vimos, foi desde cedo educado pelo pai para ser pastor

unitarista; e, na juventude, foi estudante de teologia em New College, Hackney.

Conhecia decerto a Bíblia a fundo. É bem provável que tivesse em mente os múltiplos

significados em torno da palavra orvalho quando a escolheu para caracterizar o

espírito de esperança e de jovialidade no excerto citado acima79. Mas, o jogo de

palavras que ocorre no original, cuja nossa tradução provisória do trecho não foi

capaz de reproduzir, aponta a ênfase que o autor confere à musicalidade da voz de

Coleridge e “torna palpável”80 o momento, que tanto nos interessa aqui, em que

acolheu a palavra no coração. Mais uma vez, recorremos ao texto original em inglês:

The sun that was still labouring pale and wan through the sky, obscured by thick

mists, seemed an emblem of the good cause; and the cold dank drop of dew that

hung half-melted on the beard of the thistle, had something genial and refreshing

in them81.

Toda a descrição sobre a chegada de Hazlitt ao templo, que antecede, no

mesmo parágrafo, o trecho citado, já é decerto profundamente carregada de

impressões musicais: o salpicar do órgão ouvido ao longe; a escolha de um trecho do

drama musicado de John Milton, Comus, para descrever a voz do pregador; o

contraste entre o menino que conduz o rebanho com a frauta e o outro que marca o

ritmo combativo com o tambor; para ficarmos apenas com alguns exemplos. O

excerto, sob esse aspecto, é uma espécie de corolário dessas alusões musicais. A

sequência de vogais nasaladas e semiabertas que perpassa todo o trecho – o /ʌ/

fechado em sun e hung; o /ɑ/ em wan; e o /a/ aberto em dank – mimetiza a paisagem

meio-anuviada descrita pelo autor e o envolve em uma atmosfera, a um só tempo,

                                                                                                                         78 Miquéias, 5:6, (grifo nosso). 79 Sobre a centralidade dos estudos bíblicos nos anos de formação de Hazlitt, ver Stephen Burley, Hazlitt the Dissenter. Nas palavras de Burley: “A Bíblia era a pedra-de-toque do seu aprendizado ministerial (...). Histórias do Velho e do Novo Testamentos eram estudadas, discutidas e decoradas até que elas se tornassem uma segunda natureza, tecida à fábrica de sua mente”, p. 42. 80 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 7. 81 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108-9.

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penetrante, porque a luz abre caminho por entre as frestas das nuvens, e acolhedora,

porque “emblema da boa causa”. Neste semi-invólucro, pode-se ouvir melhor o eco

do rugir coletivo do pensamento de Coleridge. “Tinha músicas nos ouvidos”, disse

Hazlitt, depois de se despedir do poeta, era “a voz da Fantasia”82. O santo rorejar,

contudo, produz música silenciosa quando cai: “aquela prece parecia flutuar em

silêncio profundo pelo universo”83. É preciso certa abertura de espírito para ouvi-la. E

eis que alto e bom som a ouvimos na aliteração consonantal: dank drop of dew. A

dental sonora /d/, repetida três vezes em sequência e no começo de palavras

monossilábicas, forma a sugestão sonora da música minimalista que desde então

passou a ecoar no coração de Hazlitt. Mas, como outras imagens crepusculares, sua

existência é efêmera. O /h/ aspirado, que imediatamente se segue em outra aliteração

consonantal, hung half, a afasta de nossos ouvidos. Por fim, o /a/ aberto em half e had

dá passagem ao dia que se inicia, marcado por um ritmo menos afeito a

contemplações e devaneios.

Antes de seguirmos adiante, é fundamental observar o quanto tudo depende

da impressão original que procuramos descrever. Seu lugar está assegurado na

memória e, a ela, o crítico retornará repetidas vezes, voluntaria ou involuntariamente.

Hazlitt não encontrou outro idioma para melhor expressar a força propulsora da

memória senão o francês:

Il y a des impressions que ni le temps ni le circonstances peuvent effacer. Dusse-je

vivre des siècles entiers, le doux temps de ma jeunesse ne peut renaître pour moi, ni

s’efface jamais dans ma mémoire84.

É possível justificar a escolha do idioma pelo posicionamento político do

autor frente ao estado de coisas que vigorava na França. Há, contudo, outras razões

para o estrangeirismo. O trecho evoca algumas passagens de dois livros de Rousseau,

Confissões e A Nova Heloísa. Em ambos, toda a narrativa é tecida com os fios das

recordações de experiências vividas, nas palavras de Rousseau, “dispostas ao acaso e

                                                                                                                         82 Idem, p. 115. 83 Idem, p. 108. 84 Idem, ibidem.

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como se fossem apresentadas”85. Dissemos acima que o ano da visita de Coleridge a

Shrewsbury (1798) coincide com as primeiras leituras que Hazlitt fez de Rousseau. A

caminho para Nether-Stowey, uma peregrinação de quase duzentas milhas, toda ela

feita a pé e no período de uma semana e meia, o jovem trazia na bagagem, entre

outros livros, um volume de dois romances franceses muitíssimo lidos no período: A

Nova Heloísa e Paul et Virginie, romance de Bernardin de Saint-Pierre. Em

companhia dos autores franceses, Hazlitt dava os primeiros sinais das profundas

dissonâncias que marcariam a convivência entre ele e seu antigo mestre, às quais este

trabalho terá ocasião de se reportar outras vezes. A palavra de Coleridge, diz Hazlitt,

inclina-se para o “alto-alemão”86, e o poeta creditava aos franceses a corrupção da

imaginação no mundo moderno. Diferente de outros escritores ingleses do período, o

romantismo de Hazlitt é temperado pelo sensualismo da língua e literatura francesas.

Depois de um dia de caminhada e instalado na hospedagem, sacava do bolso os livros

e mandava trazer uma garrafa de Sherry87. Com esses passaria o tempo até o

anoitecer.

Na época, Hazlitt já era leitor assíduo de romances. Mas se esse “gênero de

composição literária”, como disse ele, permite-nos “ver a própria teia e textura da

sociedade, tais quais existem na realidade”88, a leitura de A Nova Heloísa tornou-lhe

compreensível algo mais invisível: a impressão primeira ou a “essência cristalina”,

como escreveu89. Isso porque, continua o autor, ao se esforçar em narrar os atos de

pura recordação, o estilo de Rousseau produziu nele a mesma sensação das gotas de

orvalho matinais, antes de serem ressequidas pelo sol. Ou ainda, noutro trecho

exemplar: “doce é o orvalho de suas memórias [de Rousseau]”90. Mais uma vez,

deparamo-nos com a transitoriedade infalível das existências crepusculares. Em

                                                                                                                         85 Jean-Jacque Rousseau, Confissões (São Paullo: Edipro, 2008) p. 540. Para o sentido político que permeia a leitura hazlittiana das Confissões de Rousseau, ver Gregory Dart “The Politics of Confession”, In. Rousseau, Robespierre, and English Romanticism (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), pp. 43-75. 86 CWH, “On the Living Poets”, 5, p. 166. 87 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 115-16. É comum encontrar nos ensaios de Hazlitt passagens nas quais o autor narra momentos de leitura regados a vinho e boa comida. Às vezes, como no trecho de “My First Acquaintance with Poets”, o autor é minucioso quanto ao tipo de comida e bebida servido durante a leitura; outras, o próprio livro serve de repasto. Em “On Reading Old Books”, diz o autor: “Quantas vezes a Nova Eloísa me serviu de repasto delicioso”. CWH, 12, p. 224. 88 CWH, “On the English Novelists”, 6, p. 106. 89 CWH, “On Novelty and Familiarity”, 12, p. 304. A expressão em inglês “glassy essence” é de Shakespeare, Measure for Measure, II. ii. 120. Hazlitt diz nesse ensaio que só pôde compreendê-la quando se dedicou à leitura de Rousseau, sobretudo, de A Nova Heloísa. 90 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 91.

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breve, o calor do sol dissolverá as gotas de orvalho, elas serão como bolhas que se

desmancham no ar91. Do mesmo modo, a memória ou a impressão original, que

correspondem metaforicamente ao crepúsculo do pensamento, flutuariam em um

mundo de existências ideais não fossem elas cristalizadas em imagens.

Ora, lembremos que, no trecho citado antes, em que Hazlitt compara a

palavra de Coleridge com as gotas de orvalho, estas apareciam sob a forma de cristal

meio-derretido que se agarravam aos espinhos do cardo. Aprendemos com Jean

Starobinski, importante estudioso de Rousseau, que o filósofo de Genebra ansiava por

uma comunicação imediata e que encontrou na “transparência do cristal”92, imagem

recorrente em diversos momentos de seu texto, o melhor meio de exprimir essa

inquietude. Transparência absoluta que, se não for obstruída, dissolvida em bolhas,

paralisa o próprio ser, torna inviável toda comunicação. É então que a linguagem dos

sentimentos profundos ou das sensações vívidas vem ao seu socorro; uma linguagem,

ainda segundo Starobinski, desprovida ao máximo das “convenções da escrita”93 e de

comunicação silenciosa94, como a música do rorejar.

Todas essas questões e imagens reaparecem no retrato que Hazlitt traçou de

Rousseau e em outros tantos momentos de sua obra, nos quais o ensaísta se demora na

companhia do filósofo genebrino. Passemos agora a um breve exame desse perfil e a

uma discussão sobre alguns temas ligados a ele: a memória, o paradoxo e a linguagem

dos sentimentos profundos.

A recepção crítica das obras de Rousseau era, na época, profundamente

marcada pela leitura de filósofos alemães. Algumas das principais teses desses

filósofos, por exemplo, aquela que identificava em Rousseau um primeiro passo na

construção de um sentido romântico de imaginação – “uma espécie de Novalis

incompleto”, nas palavras irônicas de Bento Prado Jr.95 –, foram digeridas para o

grande público pelo esforço quase isolado de uma única pessoa, Madame De Staël. É

                                                                                                                         91 Expressão recorrente em Hazlitt, como no trecho de “On Novelty and Familiarity”: “Esta é a matéria da qual é feita nossas vidas – bolhas que refletem as feições gloriosas do universo e que projetam uma sombra passageira, um brilho débil, sobre aqueles a seu redor”, CWH, XII, p. 301. 92 Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo, seguido de sete ensaios sobre Rousseau (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011), p. 345. 93 Idem, p. 202. 94 Idem, “O Silêncio”, pp. 304-12 95 Bento Prado Jr., A Retórica de Rousseau e outros ensaios (São Paulo: Cosac & Naify, 2008) p. 249.

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com uma citação de Lettres sur les Ouvrages et le Charactère de Jean-Jacques

Rousseau, da autora, que Hazlitt abre seu perfil de Rousseau:

Madame de Staël, em Cartas sobre as Obras e o Caráter de Rousseau, defende a

opinião de que “a imaginação foi a primeira das faculdades da mente do autor; por

meio dela, ele absorveu todas as demais”. “Rousseau”, acrescenta a autora, "possuía

uma grande força de raciocínio e a exercia sobre questões abstratas, ou sobre objetos

que só possuíam realidade em seus pensamentos”. Ambas as opiniões estão

radicalmente erradas. Nem a imaginação, tampouco a razão, podem ser propriamente

consideradas faculdades originalmente preponderantes na mente de Rousseau. A

força de imaginação e de razão, que decerto possuía, era empréstimo dos excessos de

outra faculdade; assim como a fraqueza e a pobreza de suas obras têm origem na

mesma fonte; isto é, que as faculdades da imaginação e da razão eram artificiais,

secundárias, condicionadas por uma outra, e incapazes de operar pelos seus próprios

poderes, mas por outros a elas tomados de empréstimo. A única faculdade que

possuía em grau eminente, com a qual, e por si só, o elevou acima do homem comum

e deu aos seus escritos e opiniões uma influência maior do que talvez jamais fora

exercida por outro indivíduo nos tempos modernos, era uma extrema sensibilidade,

ou uma sensação aguda, e até mesmo mórbida, de tudo o que estivesse relacionado às

suas impressões sobre os objetos e os acontecimentos de sua vida96.

Ao eleger o sentimento, por oposição à imaginação, como o rasgo

predominante do retrato de Rousseau, com o qual traçou um perfil do filósofo distinto

daqueles de seus contemporâneos, Hazlitt tripudia no paradoxo: aquela espécie

aparentemente inofensiva de “experimento elétrico”, como ele definiu em “On

Paradox and Common-Place”, que “se recusa a combinar sua essência evanescente e

inflamável com qualquer partícula sólida e duradoura”97. Mas o emprego dessa figura

tem aqui um sentido para além do figurado. A leitura das Confissões de Rousseau,

não obstante a obra do autor que contém menos dos “conjuntos de paradoxos”98,

ensinou o retratista inglês que, na arte da escrita em prosa, esta figura só tem eficácia

se animada pelo ardor da paixão. A máxima aplicação e esforço não são suficientes

para que os “sentimentos ascendam ao tom das ideias” – movimento necessário, sem

                                                                                                                         96 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 88. 97 CWH, “On Paradox and Common-Place”, 8, p. 149. 98 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 90.

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o qual estas jamais seriam “gravadas no papel”, segundo a própria formulação de

Rousseau99. Uma concepção nova e viva do objeto é por si só capaz de sugerir,

natural e espontaneamente, como ligeireza de um raio, o ponto no qual os sentimentos

e os pensamentos, desentranhados das profundezas, se fixam em palavras. Rousseau

parece ter se deleitado como poucos nessa zona imprecisa de fermentação das ideias;

daí suas incansáveis andanças solitárias nas quais lhe sobrevinha, em “contínuo

êxtase” (expressão do autor), o colorido de que se serviria para escrever. Outrossim,

como poucos, Rousseau padeceu da frustração de não conseguir encontrar, depois de

horas de fadiga, uma só palavra que ecoasse em seus sentimentos.

Todo o processo de criação literária em Rousseau, diz Hazlitt, e “o poder que

exerceu sobre a opinião de toda Europa, com o qual criou inúmeras disciplinas e

subverteu sistemas estabelecidos, se deve, num primeiro momento, à tirania que as

sensações exerciam sobre ele”100. Em outras palavras, a atividade da escrita era em

parte alimentada por um anseio ardente de transpor os obstáculos à comunicação,

trazer os sentimentos para a superfície, tornar sua alma “transparente aos olhos do

leitor” 101 e, com isso, anular a própria comunicação. A formulação é decerto

paradoxal e merece um cuidado um pouco maior.

A todo momento, Rousseau lembra aos leitores que escreveu as Confissões

com o propósito de se apresentar por inteiro: “é preciso que nada de mim fique

obscuro ou escondido”102. Contudo, para o filósofo da “diáspora das humanidades

locais”103, segundo a expressão lapidar de Bento Prado Jr., o que pode ser mais

inacessível ao outro do que o sentimento? E, no entanto, diz Rousseau, “escrevi a

história de minha vida (...) a fim de que se pudesse ver um homem tal como ele é

interiormente”104. A tarefa que Rousseau tem diante de si é tanto mais árdua porque,

ao fim e ao cabo, seu objetivo é contar a história de uma alma segundo o

“encadeamento dos sentimentos”105, não dos fatos, e porque sabe que “cabe a ele

[leitor] reunir os elementos e determinar o ser que o compõe: o resultado deve ser

                                                                                                                         99 Rousseau, Confissões, pp. 323-324. 100 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 89. 101 Rousseau, 2008, p. 176 102 Idem, p. 76. 103 Prado Jr., p. 231. 104 Rousseau, p. 466. 105 Idem, p. 260.

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obra sua”106. Se para este, o leitor, o quadro é obra da imaginação e toda interpretação

aspira a alguma universalidade; para aquele, o escritor, nada se faz sem os

sentimentos mais locais e os mais pessoais: hábitos inveterados de uma mente. Em

uma passagem exemplar, Starobinski, que desconhece o seu mais ilustre precursor,

diz algo bastante próximo do que procuramos apresentar na leitura de Hazlitt sobre o

filósofo genebrino: “Rousseau toma então a pena tão-somente para remeter o leitor ao

sentimento que antecede idealmente o momento da escrita ou que se desprende do

texto escrito”107. A imaginação é aqui inoperante; ou, antes, ela tem o efeito de

“relaxar a situação e tornar a obscura fermentação do desejo mais tolerável”108. Ou

ainda, nas palavras de Hazlitt: “a paixão dá força e realidade à linguagem, faz com

que as palavras ocupem o lugar da imaginação”109. Somente a linguagem dos

sentimentos e aquela tecida em prosa vibrante, porém com cores locais, permite a

convivência dos contrários, sem os suprimir. O paradoxo é a linguagem dos

sentimentos profundos.

Ao lado de Coleridge e de Rousseau, Hazlitt também foi tocado por outra

voz em suas peregrinações juvenis, a de Burke. Contudo, neste caso, ele não a ouviu

no interior de templos ou de selvas a meia luz, mas na cidade, com o sol a pino. A voz

de Burke tem a força do raio que, ao irromper sobre a planície, desenterra o diamante

– translúcido porém sólido.

4. ‘Un Beau Jour’

“A estrada de minha vida começa com a Revolução Francesa”110, escreveu

Hazlitt. Quando a Revolução eclodiu, em 1789, o menino, que contava com onze anos

de idade, acabara de regressar da América com a família. Naqueles anos, acompanhou

de perto a perseguição de que seus pais e amigos foram vítimas. Em um ambiente

como esse, escreveu Duncan Wu, “seria impossível que o jovem William não se

tornasse politizado, como o foram todos de sua geração”111. Aos doze anos, quando

soube da prisão de Joseph Priestley, escreveu ao editor de Shrewsbury Chronicle uma                                                                                                                          106 Idem, p. 176. 107 Starobinski, p. 194 (grifo do autor). 108 Idem, p. 165. 109 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 89. 110 CWH, “On the Feeling of Immortality in Youth”, 17, p. 196. 111 Wu, 2008, p. 49.

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carta que se tornaria sua primeira publicação, onde denunciava os horrores da facção

church-and-king. Em uma passagem de assombrosa maturidade precoce, diz: “de

todas as espécies de perseguição, a calúnia é a mais intolerável”112. Por fim, como

vimos, a família de Hazlitt e a de outros membros unitaristas mais afortunados

encontraram refúgio em vilarejos remotos, como Wem, espalhados pelo interior do

país. Pouco tempo depois, o jovem foi enviado ao internato de Hackney College,

Londres, onde suas ideias, que começavam a pulular, foram devidamente cultivadas.

Um traço importante do pensamento e da cultura dos dissidentes pode ser

expresso por um único conceito, que, por insuficiência do português, preservaremos

no original: desinterestedness113. Como se sabe, o sufixo inglês ness é usado para

formar substantivos abstratos, como no português dade, ção, ura, etc., só que com

grau maior de largueza. Assim, teríamos, em português, algo como a condição

desinteressada. Porque, na época de que tratamos, Hazlitt estava às voltas com esse

conceito, e porque ele será importante para compreender tanto a sua entrada no

mundo das artes, quanto a ambiguidade de sua relação com Burke114, procuraremos

observá-lo segundo a exposição do próprio autor em seu primeiro e único livro de

filosofia.

Em linhas muito gerais, na obra Um Ensaio sobre os Princípios da Ação

Humana [An Essay on the Principles of Human Action], publicada em 1805, o autor

parte da hipótese de que toda ação voluntária visa a um evento futuro que só existe na

imaginação e enquanto ideia abstrata. Como a memória ou a consciência das

impressões de um indivíduo estão relacionadas somente à sua existência passada ou

atual, não há uma razão consistente, argumenta o autor, para pautar a ação humana no

interesse próprio (self-interest). Somente a imaginação antecipa o porvir e por meio

dela, diz Hazlitt “sou transportado para fora de mim mesmo (myself) e entro nos

sentimentos do outro”115. O princípio aqui em jogo é obviamente o da simpatia, termo

caro à melhor tradição da filosofia moral britânica, de nomes que eram frequentes em

                                                                                                                         112 William Hazlitt, The Letters of William Hazlitt (New York, New York University Press, 1978), p. 58. 113 Sobre o tema, ver Burley, “A ‘New System of Metaphysics’”, In. Hazlitt the Dissenter, pp. 91-123. 114 Sobre o tema, ver John Whale, “Hazlitt on Burke: The Ambivalent Position of a Radical Essayist”, In. Studies in Romanticism, volume 25, 1986 pp. 465-481. 115 CWH, “Essay on the Principles of Human Action”, 1, p. 1.

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seus lábios no período, como Shaftesbury, Hutcheson e Smith116. O autor também

define a simpatia como um “estado de projeção”117. O homem só age quando se

projeta em uma ação futura ou no outro, ou seja, quando se desfaz de sua existência

imediata e individual. O argumento é naturalmente estendido para o problema da

construção das identidades pessoais. Ao se deparar com a multiplicidade de coisas

dessemelhantes que compõe um único indivíduo – “não sou um, mas vários”118 –,

Hazlitt argumenta que toda identidade pessoal depende de algo exterior a si, ou seja, o

outro. Em suas palavras: “a identidade de alguém se assenta sobre o que ela é em si

mesma e sobre o que ela é para os outros”119. À diferença da hipótese egoísta, que

Hazlitt reporta a autores como Hobbes, Mandeville e Helvétius, aos quais dedicou

algumas páginas para rebater suas teorias120, o conceito de desinterestedness permitiu

ao autor explicar, como observou David Bromwich, “um interesse por algo em

relação ao qual não sentimos”121.

Certamente, poderíamos dedicar páginas e mais páginas a um exame detido

de cada uma das questões levantadas por essa obra; mas não nos cabe aqui uma

exposição sistemática de suas ideias ou argumentos. Por ora, fiquemos com as linhas

gerais da exposição acima e com a sugestão de Bromwich: a mente desinteressada é

capaz de se pôr no lugar do outro, mesmo sem compartilhar de suas opiniões e

sentimentos.

Porém, muito em breve, Hazlitt se depararia com o seguinte problema, que

coincide com uma das linhas mestras de sua crítica e poética: como dar forma à

intangibilidade dos pensamentos e sentimentos que se encontram fora de nós? Ou

ainda, para retomar a fórmula acima, como construir um mosaico para expressar sua

admiração pelos outros? Para tanto, fazia-se necessário o rompimento, ainda que

parcial, com a tradição que herdou de seu pai e com o passado filosófico e religioso.

A recusa pelo “estilo-esquelético de demonstração matemática”122, como definiu seu

                                                                                                                         116 Para uma ampla discussão sobre as conexões entre o livro de Hazlitt Essay on the Principle of Human Action e a filosofia moral britânica do século XVIII, ver Burley, Hazlitt the Dissenter, chapter 3 “A ‘new system of metaphysics’”, pp. 91-123. 117 CWH, “Essay on the Principles of Human Action”, 1, p. 28. 118 Idem, p. 35. 119 Idem, p. 38 (grifo nosso). 120 O equívoco de Otto Maria Carpeaux não poderia ser maior quando diz, no volume “Romantismo”, de História da Literatura Ocidental, que Hazlitt foi discípulo de Helvétius e defensor do individualismo, pp. 2012-2013. 121 David Bromwich, Hazlitt: the mind of a critic, p. 47. 122 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 114.

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empreendimento em filosofia e como decerto compreendia o exercício filosófico de

modo geral, junto à censura que fez à dureza e à severidade comuns a todas as seitas

ou ao devoto obstinado de uma causa, da qual os grupos dissidentes não estavam

isentos123, abriram caminho para que o crítico se apropriasse de outro modelo, cujo

perfil divergia igualmente do filósofo e do partidário; isto é, o artista e, sobretudo, o

pintor.

Pincel, palheta, óleo e tintas já são instrumentos por demais plásticos para

exigir daqueles que os manuseiam uma flexibilidade de pensamento e uma imersão no

mundo sensorial. O pintor é levado por sua profissão a sair de si e a se imiscuir nas

coisas; sobre a tela, nos revela uma miríade de formas, mesmo daquelas mais

evanescentes. Podemos perceber nas paisagens de Rembrandt, diz o crítico, “a

sensação telúrica do ar”124; decerto, “todas as coisas em seus quadros têm uma

qualidade tangível”125. Neste sentido, o pintor de gusto126 é um crítico, um “pintor é

um verdadeiro scholar”. “Suas pinceladas comunicam (tell)” e ele persegue (trace)127

a natureza com um “espírito desinteressado de investigação”128. Hazlitt encontrou na

pintura uma espécie de atividade criativa que doravante caracterizará seu trabalho

como escritor a meio caminho da execução puramente mecânica e da investigação

intelectiva, a um só tempo corpo e mente: “as mãos e os olhos do pintor (ou do crítico

e ensaísta) estão igualmente empenhados”129.

Observemos agora mais de perto a passagem de “On the Pleasure of

Painting” em que o ensaísta narra o momento de sua chegada ao Louvre; um dos

locais, como diz, para onde “o jovem artista faz sua peregrinação”130.

No primeiro dia em que cheguei, fiquei retido por um tempo na grande sala, onde

havia uma exposição de pintura francesa, e pensei comigo que jamais chegaria a ver

os antigos mestres. Por sorte, consegui dar uma olhadela por entre as frestas de uma

porta (obstáculo vil!) e lá estavam eles: das paisagens nobres e de aparência

                                                                                                                         123 Ver o ensaio citado antes “On theTendency of Sects”. 124 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 8. 125 CWH, “On Gusto”, 4, p. 78. 126 Termo caro ao autor. Ver, sobretudo, o ensaio “On Gusto”, CWH, 4, pp. 77-80. 127 O termo em inglês trace também pode ser traduzido para o português por traçar ou dar pinceladas. 128 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 10, 11. 129 Idem, p. 5. 130 Idem, p. 14.

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melodiosa de Poussin, ao local onde Rubens dependurava seus estandartes vistosos;

mais a baixo, a vista bruxuleante dos ricos tesouros de Ticiano e da escola italiana;

era como olhar para o paraíso do purgatório. Por fim, depois de muito empurra-

empurra, abriram passagem e não deixei de usufruir um único instante de meu mais

novo privilégio. Para mim, aquele foi un beau jour!131.

Dá para se ter uma ideia melhor de como eram as galerias do Louvre naquele

tempo, inauguradas em 1800, através das descrições de Duncan Wu, em sua recente

biografia de Hazlitt, onde nos fala da profusão de obras valiosíssimas que o museu já

reunia, o modo como elas estavam dispostas, o número de visitantes e os diferentes

motivos que movimentavam um mar de gente a caminhar por suas salas132. Um

contraste marcante com “o turista atarantado”133, frequentador de museus dos dias de

hoje, se nota pelo fato de que muitos ali presentes, a exemplo de nosso autor, traziam

palhetas, pincéis e telas em branco debaixo dos braços. Estavam ali conscientes de seu

propósito; o de completar uma etapa fundamental de sua formação, a cópia de obras-

primas134. O breve relato acima, contudo, bem como as demais passagens do autor

sobre o mesmo episódio, já são ricos o suficiente em detalhes sobre as visitas ao

Louvre daqueles dias e sobre o impacto que tivera no artista quando jovem.

Analisemos essa e outras passagens mais detidamente.

A retenção de Hazlitt na grande sala, as portas semiabertas entre uma galeria

e outra e o empurra-empurra confirmam as observações de Duncan Wu: já havia no

Louvre daqueles tempos um “número inumerável”135 de pessoas, como se expressou

Hazlitt nos versos de Milton. O trecho também parece sugerir que o avolumar de

gente no salão de entrada era deliberado e tinha um propósito educativo ou político.

Os visitantes eram ali detidos para que primeiro travassem contato com as obras de

pintores da recém-aberta Academia Francesa de Belas Artes, encabeçada por

ninguém mesmo do que Jaques-Louis David. Hazlitt tinha pouco interesse por ela

                                                                                                                         131 Idem, p. 15. 132 Wu, The First Modern Man, pp. 79-81. 133 Ver Pedro Paulo Garrido Pimenta, “William Hazlitt e a Revolução Francesa” (mimeo). 134 Enquanto esteve em Paris, Hazlitt trocou cartas com o pai, nas quais ele enumera e descreve os quadros que copiou no Louvre. Ver William Hazlitt, The Letters of William Hazlitt. New York, New York University Press, 1978, pp. 74-85. 135 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 16. No original “number numberless”. A expressão é de Milton, Paradise Regained, iii, l. 310.

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(“sou adepto convicto da antiga escola de pintura”136) e não se conteve a espiar o que

tinha por entre as frestas. O prazer da visão de seus antigos mestres, mesmo que

obstruída e a certa distância, era infinitamente superior; uma visão do paraíso no

purgatório. Durante uma das visitas ao Louvre, o pintor Jean François Léonor

Merimée, cicerone do jovem naqueles dias, perguntou-lhe o que achava da atual

pintura francesa de paisagem; a resposta de Hazlitt foi imediata: ‘são claras demais!’.

‘Mais, c’est impossible!’, respondeu Merimée137. Então, se explicou:

Por todo o quadro, as partes dos muitos objetos que o compõem são quase

idênticas e sem distinção; as folhas das árvores sombreadas são tão nítidas

quanto as folhas iluminadas, os galhos das árvores ao longe têm os mesmos

contornos claros dos galhos próximos. A perspectiva é resultado unicamente de

uma maior diminuição dos objetos distantes e não da interferência da

atmosfera.138

Merimée parou, olhou desconfiado e se disse não convencido pelo argumento. “Os

franceses”, escreveu Hazlitt, “não suportam, por um instante sequer, a ideia de que

algo escape a compreensão de seu entendimento”139.

Na pintura neoclássica, como nos lembra Rodrigo Naves, no ensaio Debret,

o neoclassicismo e a escravidão, todos os contornos são bem demarcados e definidos;

os gestos e as linhas são plenamente configurados; os laços de amizade e família são

sacrificados a favor dos desígnios éticos e cada uma das figuras que compõe o quadro

é convocada à participação enérgica na vida pública; os atos exemplares e virtuosos

do passado greco-romano são repostos historicamente e ganham dimensão ética.

Ainda segundo Naves, todos esses elementos formais capturam o ritmo de uma

França no alto curso revolucionário, no qual “as várias dimensões do espírito – ética,

                                                                                                                         136 Idem, p. 14. 137 Para a reconstrução do diálogo entre Hazlitt e Merimée, ver Wu, The First Modern Man, pp. 81-2. 138 CWH, “Madame Pasta and Mademoiselle Mars”, 12, p. 332-3. 139 Idem, ibidem.

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estética e epistemologia”140 – fluíam em direção a uma sociedade marcada por

estruturas e instituições complexas e plenamente definidas.

Ora, insistimos ao longo de nossa leitura na plena adesão de Hazlitt aos

ideais da Revolução Francesa, que posteriormente ganharão contorno no retrato

heroico e quase épico que traçou de Napoleão (uma biografia em quatro volumes, Life

of Napolean). Porém, a crítica ao excesso de nitidez na pintura neoclássica e a

observação, na conclusão do episódio acima, sobre os contínuos esforços dos

franceses de seu tempo para afugentar do pensamento o que quer que o obscureça ou

o mistifique sugerem um tipo específico de engajamento político, cujo sustentáculo,

nas palavras de Thompson sobre Hazlitt, está na “aspiração por um tipo de fantasia

fortalecida pelo rancor”141. O engajamento político do autor é como a primeira visão

bruxuleante dos ricos tesouros do passado. Mais uma vez insistimos no conteúdo

transgressor das imagens crepusculares, porque elas sugerem que a construção de

uma sociedade mais justa não se faz apenas por ações e gestos plenamente

conscientes ou por instituições plenamente definidas, mas por sonhos, incertezas e

nostalgia. Limá-los corresponderia a uma simples inversão de papéis, fazer de

senhores, servos; de servos, senhores; a perpétua manutenção do estado de coisas.

A crítica a uma sociedade que se pretende assentada sobre valores puramente

racionais, livre de preconceitos, superstições e sentimentos ingovernáveis 142 ,

aproxima Hazlitt, sorrateiramente, de seu maior rival, Edmund Burke. A conclusão da

passagem acima, sobre as primeiras caminhadas de Hazlitt pelo Louvre, segundo as

preciosas observações de Tom Paulin143, coloca Burke na berlinda. A frase em

francês, un beau jour, que aparece nesse e noutros ensaios de Hazlitt, é uma alusão às

Reflexões sobre a Revolução em França. Em um dos muitos ataques virulentos à

“invasão” de Versalhes pelos revolucionários, diz Burke:

                                                                                                                         140 Rodrigo Naves, A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira (São Paulo: Companhia das Letras, 2011), p. 132. 141 E. P. Thompson, Os Românticos, 2002, p. 96. 142 Ver meu texto “Anarquia e Conformação das Coisas: algumas observações sobre revolução, história e linguagem em Edmund Burke”, doispontos, Ilustração e História. Vol.8, n 1 (Curitiba e São Carlos: 2011), pp. 11-22. 143 Ver Tom Paulin’s “Introduction” à antologia, William Hazlitt, The Fight and Other Writings (London: Penguin Classics, 2000), p. vii-xix. xvii.

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Pobre rei! Pobre assembleia! Como esta assembleia é silenciosamente escandalizada

por aqueles membros que tiveram a pachorra de chamar o dia em que um borrão

parece ter encoberto o sol dos céus de un beau jour!144.

A passagem no texto de Hazlitt que imediatamente antecede a expressão em

francês reforça a alusão a Burke: “não deixei de usufruir um único instante de meu

mais novo privilégio”145. Mas, a alusão de Hazlitt, porque original (quaint), vira

Burke pelo avesso. Que privilégio alguém desfruta quando o compartilha com um

número inumerável de pessoas comuns?

Contudo, Burke merece um pouco mais de nossa atenção. Se Hazlitt se opõe

e rebate os principais argumentos de Reflexões sobre a Revolução em França, o

jovem autor, por sugestão de Coleridge (na noite em que conversaram pela primeira

vez, em companhia do reverendo), descobriu nessa e em outras obras do político a

peça que lhe faltava para seguir em frente, a saber: uma imaginação profundamente

consciente das tarefas árduas e mesmo áridas do ato de criação. De fato, argumentos e

proposições abstratas não interessam aqui. À diferença dos demais oradores, diz

Coleridge, Burke “não argumenta com metáforas, mas pensa a partir delas”146.

Passemos, por fim, a um breve exame do retrato de Hazlitt sobre Burke a partir do

contraste acentuado de seu semblante com o de Rousseau.

Se a sensibilidade extrema de tudo o que estivesse relacionado às impressões

do autor é o traço que melhor define a figura de Rousseau, “o poder que governou a

mente de Burke”, diz Hazlitt, “foi sua imaginação”147; se Rousseau apoderou-se de

uma única visão do objeto e a examinou em todas as suas diferentes ramificações,

Burke “foi completamente arrebatado pelo seu objeto”148, a Revolução Francesa.

Quando as Reflexões sobre a Revolução em França vieram a lume, em novembro de

1790, o retrato heroico de Burke, porta-voz da ala radical dos liberais, há muito

perdera em brilho e vigor. Durante os anos de 1780, obcecado pela causa indiana,

                                                                                                                         144 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France (Oxford: Oxford World’s Classics, 1999), p. 69. 145 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 15. 146 CWH, “Memorabilia of Mr. Coleridge”, 20, p. 216. 147 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 303. 148 Idem, p. 309.

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Burke se tornou uma figura isolada no Parlamento149. Neste sentido, a Revolução

Francesa caiu-lhe como uma luva, não só porque com ela sua carreira política

alcançou um patamar prestigioso de recompensas régias, como quis Karl Marx150,

mas por ter-lhe permitido, no dizer de Hazlitt, “despejar (livremente) suas ideias sobre

o papel com a mais legítima eloquência”151. O resultado foi um livro que não tem

similar em nenhuma outra língua. Escrita sob a forma de uma única e longa carta

endereçada ao jovem francês Charles-Jean-François Depont, em tudo as Reflexões

destoam dos escritos anteriores de Burke e daquilo que se pode esperar de um

panfleto ou de um manifesto político. Sua estrutura é confusa, apresentada “sem

qualquer tipo de divisão ou organização em capítulos, partes ou itens”152; sua

linguagem, repleta de enlevos dramáticos, “períodos magistrais e brilhantes

metáforas”153; e as tendências mais progressistas da política de seu autor sucumbem

ao reacionarismo irrefletido e insolente. “Sr. Burke”, diz Hazlitt, “opositor da guerra

contra as colônias norte-americanas e sr. Burke, opositor da Revolução Francesa, não

são a mesma pessoa – não só não são a mesma pessoa, mas inimigos mortais”154.

Hazlitt sentiu-se desafiado quando, de posse dos desinteressados palheta e

pincel, pôs os olhos sobre Burke; pois, ao contrário de outros modelos, não havia

cordialidade alguma no modo como aquele o desafiava. A esta altura, algumas

dezenas de modelos já haviam posado para Hazlitt e sobre a maioria dos casos, disse

o retratista: “Não foi difícil reduzi-los dentro de certos limites, fixar seus espíritos,

condensá-los em suas variedades (...). Mas quem pode atar Proteu ou confinar os

borboleteios do gênio?”155. Além disso, para alguém com o passado e as convicções

de Hazlitt, Burke o desafiava por um segundo motivo. Assim, pergunta o autor:

                                                                                                                         149 Ver meu artigo “Anarquia e Conformação das Coisas”, p. 12. 150 Em O Capital, diz Marx sobre Burke: “Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa desempenhou o papel de romântico contra a Revolução Francesa, exatamente como antes, nos primeiros momentos de agitações na América, atuara como liberal, a saldo das colônias norte-americanas, contra a oligarquia inglesa, não era senão um burguês ordinário (...). Não é de admirar que ele, fiél as leis de Deus e da natureza, tenha sempre vendido a si mesmo a quem pagasse melhor”. Contudo, Marx não deixa de reconhecer os méritos literários de Burke: “Diante da infame falta de caráter que hoje em dia impera e da crença mais devota nas ‘leis do comércio’, é um dever estigmatizar repetidamente os Burkes, que se distinguem de seus sucessores por uma única coisa: talento!”. O Capital, Livro 1, (São Paulo: Boitempo editorial, 2013), p. 830. 151 CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 228. 152 Modesto Florenzano, As Reflexões sobre a Revolução em França de Edmund Burke, uma revisão historiográfica, Tese (Doutorado) (São Paulo, 1993), p. 156. 153 CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 228. 154 CWH, “Character of Mr. Burke, 1817”, 7, p. 226. 155 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 301.

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“como fazer justiça a um inimigo sem trair uma causa”?156. Uma possível resposta a

essas perguntas talvez esteja no conceito de desinterestedness exposto acima, que,

como bem observa Terry Eagleton, “é (para Hazlitt) uma forma de engajamento com

o outro, não de indiferença”157. Um teste para “a verdadeira mente democrática”

consiste em conhecer e mesmo admirar um adversário. “Esta foi a primeira coisa que

disse a Coleridge”158, nas palavras do autor. Agora fica claro porque o rapaz

conquistou no ato a atenção do poeta.

Outra possível resposta a essas perguntas, e que nos interessa mais

diretamente aqui, talvez esteja no tipo de imaginação criativa que o aprendiz, Hazlitt,

encontrou em Burke.

Na análise do perfil de Rousseau, definimos o sentimento como aquela

região imprecisa de fermentação das ideias que antecede a comunicação e anseia por

ultrapassá-la. A imaginação, por sua vez, ou ao menos aquela incrustada nos escritos

contrarrevolucionários de Burke, esforça-se, por gestos bruscos, a comunicar

convicções e a produzir uma verdade sólida, áspera e inquebrantável. A dureza dos

golpes, a firmeza e a irregularidade das imagens se devem à multiplicidade dos

materiais reunidos pelo escritor, extraídos “de diferentes classes de objetos”159 e ao

modo como estes “cravam mais fundo as impressões antigas e familiares”160. Para

ficarmos num único exemplo, tem-se a célebre comparação, em Carta a um Nobre

Senhor [Letter to a Noble Lord], um dos últimos escritos de Burke, da estrutura

compacta da Igreja e do Estado britânicos com os montículos e os diques da baixa e

espessa planície de Bedford, fundidos “até a ideia se imiscuir”, nas palavras de

Hazlitt, “com o objeto representado”161. Esse tipo particular de imaginação criativa,

“que saboreia da textura daquilo que descreve”162 e cujo paralelo são os ofícios e as

artes do fogo, não se afasta um centímetro do lugar-comum; ou melhor, ela

corporifica em imagens as convicções e os preconceitos compartilhados por uma

comunidade. Sobre esse tema, falaremos mais amplamente no terceiro capítulo desta

                                                                                                                         156 Idem, ibidem. 157 Terry Eagleton, “Ulter Altruisim: Francis Hutcheson and William Hazlitt”, in. The Hazlitt Review, Volume 6, 2013, p. 12. 158 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 111. 159 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 312. 160 Idem, p. 303. 161 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 12. 162 Idem, ibidem.

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tese. Por ora, o trecho abaixo é significativo para compreender os trabalhos da

imaginação burkiana:

Aquilo que permanece oculto e intricado, em razão de sua impenetrabilidade natural e

a despeito de todo esforço, inacessível às radiações, sobre o qual a imaginação não

irradia luz alguma, e incapaz de ser revestido de beleza, não pode ser objeto do

orador ou do poeta. Ao mesmo tempo, não podemos esperar que verdades abstratas

ou observações profundas devessem se apresentar sob um ponto de vista igualmente

forte e deslumbrante, como os objetos naturais ou as questões-de-fato (matters of

fact). Um lustre refletido e a elas emprestado lhes é suficiente, como o ânimo do

primeiro raiar do dia, quando o efeito de surpresa e novidade doura todos os objetos,

e a alegria de contemplar um mundo que gradualmente emerge da melancolia noturna

(...) preenche o espírito com um enlevo sóbrio (...). Burke não produziu nenhum

efeito esplêndido incendiando os vapores luminosos que flutuam nas regiões da

fantasia, como as cores belas que os químicos produzem com fósforo, mas, com a

avidez de seus golpes, ateou fogo do sílex e dissolveu as substâncias mais duras na

fornalha de sua imaginação163.

Burke confiou na imaginação para exprimir uma face da sociedade mais

profunda e mais verdadeira do que se tivesse meramente transcrito os fatos

concernentes à Revolução. Contudo, diz Hazlitt, “onde quer que esteja a verdade, é

impossível obter uma decisão satisfatória sem um exame claro e pleno do lado oposto

da questão”; o que, por sua vez, não invalida a verdade ou a importância dos

raciocínios e das imagens de Burke, pois, diz Hazlitt, “dizem, eu sei, que a verdade é

una; mas não posso consentir com essa opinião, pois me parece que a verdade é

múltipla”164. Neste sentido, é possível interpretar a radicalidade do pensamento de

Hazlitt e a estrutura fibrosa de seu estilo como uma tentativa de emular seu maior

rival. Só se combate as corporificações engendradas por uma imaginação viva com

outra igualmente pujante. Mas a leitura que aqui procurei seguir, sobre o instante

primeiro da criação e sobre o poder de transformação atinente às imagens

crepusculares – cujas origens remontam à cultura dos dissidentes, à poesia de

Coleridge, à pintura de paisagem de Claude Lorraine ou Poussin e à prosa vibrante de

Rousseau, segundo a análise de Hazlitt –, indica um caminho diferente daquele

                                                                                                                         163 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 303-4 e 310. 164 Idem, p. 308.

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proposto por Burke. É isso o que parece sugerir o excerto citado antes sobre o lustre

refletido e os vapores luminosos que irrompem sobre a escuridão e preenchem o

espírito com um novo alento. Antes de Hazlitt ouvir o sermão de Coleridge em

Shrewsbury, Rousseau, com a força de seu estilo, “trouxe para o peito de cada um o

sentimento irreconciliável de inimizade para com as distinções sociais e o

privilégio”165. Ou antes ainda, os cristãos radicais, a partir de leituras do evangelho,

vislumbraram um mundo de ponta-cabeça.

A contribuição de Hazlitt para a escrita de ensaios é multifacetada e se

estende para muito além de sua época. Procuramos, neste capítulo, lançar luz sobre a

linguagem poética e inspiradora que marcam os ensaios da fase tardia do autor,

naqueles momentos em que ele olha para a sua primeira entrada no mundo das artes,

quando a própria natureza, diz ele, parecia trajada com o espírito da juventude e da

esperança. Nesses momentos reveladores, o ensaísta recria a sua herança dissidente

pelo olhar do artista. Embora, como observou agudamente David Bromwich, “para

Hazlitt, a perda na fé em Deus decerto coincidiu com o despertar de uma sensibilidade

às artes”166, também é verdade, segundo revelam os estudos mais recentes, que ele

incorporou a sua antiga educação dissidente na criação de uma forma única de

ensaios, “deixando de lado qualquer questão relativa à fé religiosa”167. Junto à fala

franca (plain speaking) – a qualidade extemporânea das conversas sobre o papel

(tema do próximo capítulo desta tese) e o vigor polêmico e combativo de sua prosa

(tema do capítulo terceiro desta tese) – as imagens arquetípicas que discutimos aqui –

a estrela da tarde, gotas de orvalho – também foram cunhadas a partir de uma

extensa tradição cristã e, em termos mais específicos, da cultura dos dissidentes. Esse

estilo de composição não criou imagens de contornos claros e bem definidos das

ideias de liberdade ou de igualdade social; mas, ao arrastar os leitores violentamente

para a agitação de uma mente em estado de ebulição, abriu uma porta para o

desconhecido, um mundo de possibilidades infinitas – pois, como observa Hazlitt, o

ensaísta “tem uma viagem pela frente; às vezes por estradas enlameadas; outras, por

caminhos difíceis e ainda não trilhados”168.

                                                                                                                         165 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 89. 166 David Bromwich, The Mind of a Critic, p. 6. 167 CWH, “Lectures on the Dramatic Literature at the Age of Elizabeth”, 6, p. 183. 168 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 9.

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Capítulo 2

Ao Pé da Lareira: solidão e boa companhia

Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto

bem sossegado em que eu possa ficar sozinho, quieto, pensando minhas coisas.

Rubem Braga, ‘A Casa’1.

1. O Amigo

Que é um amigo? Essa pergunta perseguem os ensaístas desde que há ensaio.

Em certo sentido, ela está na origem mesma dessa forma de composição literária. Em

“Considerações sobre Cícero”, Montaigne diz que facilmente teria adotado o gênero

epistolar tivesse ele um amigo a quem confiasse suas elucubrações2. Ele decerto o

teve, Étienne de La Boétie, mas eis que, na época, este estava morto e amigo não é um

ser que adoeça. La Boétie teve uma morte “maçante e melancólica”3. Montaigne

tomou nota das últimas entrevistas com o amigo e as narrou, em prosa direta e

descritiva, em uma carta que escreveu a seu pai. Para alguns, a carta é bem mais do

que um registro dos últimos dias de La Boétie, antes, ela é o próprio germe do ensaio,

na acepção moderna do termo. Ali encontramos não apenas as reflexões que

inspirariam “Da Amizade”, no qual Montaigne discorre sobre o conceito em sua

forma mais pura e perfeita, como se duas almas se fundissem4, mas também um dos

motes centrais dos Ensaios e quiçá do ensaio que se pratica desde então: “a

inconstância das coisas humanas”5. O ensaio, como a vida, diz Montaigne, não pode

durar6.

                                                                                                                         1 Ruben Braga, Crônicas Escolhidas (Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2011), p. 359. 2 Michel de Montaigne, Os Ensaios, Livro I (São Paulo: Martins Fontes, 2002), p. 375. 3 Montaigne, “Sobre Algumas Particularidades da Doença e da Morte de Étienne de La Boétie”, In. Serrote #16 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014), p. 277. 4 Montaigne, Os Ensaios, Livro I, p. 281. 5 A expressão “a inconstância das coisas humanas” aparece em duas ocasiões na referida carta. Serrote #16, pp. 228 e 230. 6 Montaigne, “Do Arrependimento”, In. Os Ensaios, Livro III, p. 27-8. Para uma discussão sobre essa passagem, ver o texto seminal de Erich Auerbach, “L’Humaine Condition”, In. Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, pp. 249-276.

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Tampouco o podem as amizades, como Hazlitt demonstrou pela sua

argumentação, e sobretudo pela sua história de vida. Segundo Lopate, nenhum outro

ensaísta da amizade “antes de Hazlitt escrevera sobre seus aspectos problemáticos

com a mesma honestidade e sem sentimentalismo”7. Nenhum outro, talvez, viveu na

pele a incapacidade de combinar “a constância com o ardor da afeição”: “Briguei com

quase todos os meus velhos amigos (eles dirão que isso foi por conta do meu

temperamento difícil, mas eles também já brigaram uns com os outros)” 8 . A

franqueza dessas palavras, escritas em uma época particularmente conturbada de sua

vida afetiva, denuncia aquele traço de misantropia inveterada e constitucional de sua

mente, segundo o perfil que Thomas De Quincey escreveu de Hazlitt. A passagem

abaixo desse perfil é ilustrativa:

Um amigo dele (possivelmente Lamb), contou-me, como ilustração do

temperamento taciturno e sinistro sempre estampados sobre o semblante e gestos

de Hazlitt, que toda vez que ele involuntariamente enfiava as mãos nos bolsos de

sua casaca (por força inconsciente do hábito), ele subitamente puxava o gatilho do

medo, como se estivesse à procura de uma adaga escondida. Como “um mouro de

Malabar”, tal qual descrito em Faerie Queene, de quando em quando, Hazlitt

lançava seus olhares raivosos e madeixas escuras, como se quisesse afrontar o sol

ou como se buscasse hostilidade no próprio ar. O mesmo amigo, noutra ocasião,

descreveu uma espécie de fidelidade feudal dos deveres beligerantes de Hazlitt

que, na companhia de outros, pareciam animá-lo9.

Sua timidez natural e irritabilidade contraída eram ainda mais notáveis na

companhia das mulheres. Henry Crabb Robinson escreveu em Reminiscences: “Ele

tinha horror de conversar com mulheres, especialmente se fossem jovens, inteligentes,

belas e modestas”10. Entretanto, quer em Londres, quer em Paris (onde residiu em

                                                                                                                         7 Phillip Lopate, To Show and to Tell: The Craft of Literary Nonfiction (New York: Free Press, 2013), p. 154. 8 William Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, In. Serrote # 9 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011), p. 20. 9 Thomas De Quincey, De Quincey as Critic, pp. 370-1. Para uma discussão sobre esse perfil e, em geral, sobre o princípio que animava Hazlitt nas conversas, nossa discussão se valeu particularmente das observações de Jon Mee, “Hazlitt, Hunt, and Cockney Conversability”, In. Conversable Worlds, pp. 239-277: 239-40. 10 Citado a partir de John Gross, The New Oxford Book of Literary Anecdotes (Oxford: Oxford University Press, 2006), p. 94.

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1826), Hazlitt frequentou alguns dos círculos sociais mais estimulastes de seu tempo11

e suas conversas, das quais a amizade se alimenta12, foram amiúde muitíssimo

estimadas. Nas palavras de Lamb: “A julgar pelas suas conversas, que desfrutei por

tanto tempo e apreciei tão intimamente, ou pelos seus livros (...), estaria traindo minha

consciência se não reconhecesse em Hazlitt, em seu estado natural e saudável, um dos

espíritos mais sábios e encantadores hoje vivos” 13 . John Hamilton Reynolds,

amicíssimo de Keats e, como ele, profundo admirador de Hazlitt, disse a seu respeito

em uma carta a Mary Leigh, 28 de abril de 1817: “ele é decerto uma excelente

companhia (...), farto daquilo que o dr. Johnson chama de ‘good talk’”14. Na ocasião,

reunidos à mesa, Reynolds e seus convivas discutiam sobre algumas passagens

favoritas “de nossos melhores bardos”. Hazlitt “passava de argumentos grandiosos e

imponentes à jovialidade e graça com engenho e humor”15. Sempre de olhos abertos

para o belo e boca pronta ao elogio, seu itinerário pela literatura era encantador. Ao

percorrê-la, fazia-o como alguém que gosta de errar pelos livros, sem ares de

superioridade, sem a obediência cega a sistemas, sem rótulos e fórmulas. Um livro

favorito era para Hazlitt como um bom amigo, com quem se discute, de quem às

vezes se zomba, mas a quem se quer bem. Em suma, Hazlitt trata um autor ou livro

com familiaridade. Quando à vontade, o que só lhe ocorria na solidão da leitura ou em

boa companhia, ele retribuía espontânea e gratuitamente (quer ao livro, quer ao

amigo) a finura e a vivacidade de seus achados com liberdade de pensamento e

honestidade intelectual. De fato, ele fez deste princípio, a atitude do ensaísta amigo,

seu credo de crítico literário, descrito por ele próprio no último dos três cursos que

ministrou sobre literatura inglesa, Lectures on the Dramatic Literature of the Age of

Elizabeth (1819):

Se não tivesse escrito essas lições para satisfazer a mim mesmo, estaria seguro de

que não satisfaria a mais ninguém. De fato, segundo eu concebo, o que empreendi

aqui e em casos anteriores foi meramente ler um conjunto de autores a um

auditório como o faria a um amigo, apontando algumas passagens favoritas e

                                                                                                                         11 Na época em que esteve em Paris, Hazlitt frequentou o círculo social de Stendhal. Ver Duncan Wu, The First Modern Man, pp. 359-40. 12 Montaigne, “Da Amizade”, In. Os Ensaios, Livro I, p. 276. 13 Charles Lamb, Selected Prose, pp. 252-3. 14 William Hazlitt, The Plain Speaker: the Key Essays (Oxford: Blackwell Publishers, 1998), pp. 198-9. 15 Idem, p. 198.

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explicando certas objeções; ou, caso ocorressem comentários e teorias, deveria

expô-los como ilustração de meu objeto, mas com o cuidado de não entediar meus

ouvintes ou de me enredar em regras pedantes e fórmulas pragmáticas da crítica

que não fazem bem a ninguém (...). Não chego armado da cabeça aos pés de ‘dois

pontos’ ou ‘ponto e vírgula’, de glossários e índices com o intuito de ajustar a

ortografia ou de reformar a métrica, tampouco espero provar, por contradições

infinitas e impaciência ranzinza, que os comentadores antes de mim, de quem eu

não gosto, não compreenderam seus autores melhor do que eu, só porque não

estou de bom humor comigo mesmo – como se o gênio da poesia estivesse

chafurdado no lixo da imprensa16.

Se há na crítica hazlittiana algo a mais do que a simples leitura prazerosa na

companhia de um amigo, pois, como lembra John Kinnaird, esses cursos seguem um

itinerário seguro da história da literatura inglesa – de Chaucer aos seus

contemporâneos –, e o princípio de que as artes não progridem17, uma coisa é certa;

ela não distribui bons e maus pontos, não segue “‘a escala exata’ de Aristóteles,

tampouco se afasta de uma obra que serve para algo, porque ‘nenhum dos ângulos,

nos quatro cantos, era um ângulo reto’”18, como disse o autor acerca da crítica

montaigniana. Antes, o propósito geral da crítica hazlittiana é o de dar vida aos

autores que estuda, tornando-os bons amigos, sem lhes tirar o mistério e a grandeza.

Por esse motivo, os cursos de Hazlitt em Surrey Institution dividiram a

atenção do público. Na época e a poucas quadras dali, em London Philosophical

Society, Coleridge ministrava Lectures on the Pinciples of Judgment, Culture, and

European Literature e os frequentadores mais assíduos da “florescente cultura

londrina de aulas públicas”19 corriam de um curso a outro, dentro do intervalo de dez

minutos que os separavam. Entre eles, o jovem Keats: “escuto as lições de Hazlitt

regularmente”20. É bastante conhecida a importância que a crítica hazlittiana teve para

                                                                                                                         16 CWH, “On Miscellaneous Poems, F. Beaumont, P. Fletcher, Drayton, Daniel, &c. Sir P. Sidney’s Arcadia, and Other Works”, 6, p. 301 (grifo do autor). 17 John Kinnaird, William Hazlitt: Critic of Power, pp. 265-98. Sobre a ideia hazlittiana de que as artes não progridem, falaremos mais amplamente no próximo capítulo. 18 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, In. Serrote # 22 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2016) p. 21. 19 Sobre a cultura londrina de aulas públicas e sua importância para a formação literária de John Keats, ver Sarah M. Zimmerman “The Thrush in the Theater: Keats and Hazlitt at the Surrey Institution”, In. A Companion to Romantic Poetry, edited by Charles Mahoney (Oxford: Wiley-Blackwell, 2011), pp. 217-233: 217. 20 John Keats, Selected Letters (Cambridge: Harvard University Press, 1986), p. 95.

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que Keats formulasse o conceito de “capacidade negativa”; isto é, a ideia de que o

poeta é o menos poético de todos os seres, posto que, para inflar de vida os objetos

que descreve, ele deve transcender os traços diferenciais de seu eu (self) e caráter

(character)21. Keats tomou Hazlitt como uma espécie de mentor, mas este jamais

abandonou a atitude mental do ensaísta amigo, sempre disposta à reinterpretação dos

assuntos e permanente ânimo de experimentar. “A última de suas lições [de Hazlitt]”,

escreveu Keats em uma carta a seus irmãos (George e Tom), “foi sobre Grey, Collins,

Young, etc., e ele ofereceu uma peça requintada de crítica minuciosa sobre Swift,

Voltaire e Rabelais. Fiquei, entretanto, um tanto desapontado com o seu tratamento de

Chatterton”22. Àquela altura, Keats frequentava jantares na companhia de Hazlitt,

Benjamin Haydon e Leigh Hunt (amigos de ambos), e é bem provável que ele tivesse

censurado Hazlitt viva voce, pois Hazlitt abriu a lição seguinte com essas palavras:

“Sinto muito se o que disse na conclusão da lição anterior sobre Chatterton produziu

um descontentamento entre pessoas com as quais estaria disposto a concordar em

todos os assuntos dessa natureza”23.

Ainda que o convívio entre Hazlitt e Keats fosse escasso e breve, pois Keats

trazia a “marca misteriosa dos que foram escalados para morrer cedo”24, e por mais

que na amizade não haja lugar para a conta corrente, pois nela as trocas sentimentais

são gratuitas, o poeta tomou de empréstimo do ensaísta a “profundidade de gosto”, o

“laconismo ardente”25, o estilo médio e a consciência de que a escrita de si só tem

validade se transmutada em coisa bela [a thing of beauty]26; o ensaísta, de sua parte,

alguma mocidade em face do começo da velhice e de consagrações inevitáveis:

“recentemente, ao ler Véspera de Sta. Agnes, de Keats, lamentei-me por não ser mais

                                                                                                                         21 Para o conceito de “capacidade negativa”, bem como seu desdobramento em outro conceito caro ao autor, “o poeta camaleônico”, ver as cartas de John Keats: “To George and Tom Keats 21, 27 (?) December 1817” e “To Richard Woodhouse 27 October 1818”, In. Selected Letters, pp. 59-61, 194-6. A lista de comentários sobre a influência de Hazlitt na formulação do conceito de “capacidade negativa” de Keats é vastíssima. Para duas visões antagônicas sobre o tema, ver Kenneth Muir, “Keats and Hazlitt”, In. John Keats: A Reassessment (Liverpool: Liverpool University Press, 1969), pp. 139-158, e Uttara Natarajan, “Hazlitt, Keats, and Shakespeare”, In. Hazlitt and the Reach of Sense (Oxford: Clarendon Press, 1998), pp. 107-119. 22 Keats, Selected Letters, p. 95. 23 CWH, “On Burns, and the Old English Ballads”, 5, p. 123. 24 A frase é de Carlos Drummond de Andrrade, como também é dele boa parte das reflexões sobre a amizade que apresentamos aqui. Ver “Recordação de Alberto Campos”, In. Confissões de Minas (São Paulo: Cosac & Naify, 2001), pp. 47-50: 47. 25 Keats, Selected Letters, pp. 70 e 232. 26 Famoso verso que abre o poema Endymion: “A Thing of beauty is a joy for ever”, In. The Complete Poems of John Keats, p. 61.

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jovem”27. De sorte que um se tornou para o outro, nas palavras de David Bromwich,

“um outro eu” [another self]28.

Neste capítulo, falaremos do quanto a amizade, ou essa identificação de dois

eus, é um ingrediente fundamental para a escrita de ensaios. Isso se revela na empatia

recíproca que o ensaísta logra alcançar com o público leitor. Nas palavras certeiras de

Márcio Suzuki: “o ensaio se quer uma conversa escrita, onde o leitor e o autor estão

numa relação de ‘intimidade’”29. Ora, a intimidade, como sabemos a partir do estudo

de Marie Hamilton Law, é o traço distintivo daquele gênero ensaístico praticado

largamente na Inglaterra de Hazlitt, o familiar essay30. Pouco antes da era vitoriana,

os ingleses, quando se comparavam a outras nações, se vangloriavam de sua

hospitalidade, generosidade, de suas maneiras pouco afeitas a regras e sistemas e,

numa palavra, do quanto não suprimiam a possibilidade de um convívio mais familiar

mesmo no âmbito público; isto é, na imprensa periódica. Foi desse modo que Hunt

definiu o caráter inglês em “A Day by the Fire”, ensaio que “inaugura, no

romantismo, o familiar essay enquanto gênero”31. A partir de uma discussão da

palavra snug [aconchegado, bem instalado], que, segundo Hunt, pertence

exclusivamente ao idioma inglês, diz ele:

Será que Homero, observador dos caracteres, panegirista da liberdade, pintor de

tempestades, de paisagens e da ternura doméstica – arre, por que não, amante do

acolhimento aconchegante [snug] e de um bom jantar –, será que ele, dizia, se

queixaria de nossos humores, de nossa liberdade, de nosso clima instável, de

nossos campos verdejantes, de nossa felicidade conjugal, de nossa sociabilidade

junto à lareira e de nossa hospitalidade?32

                                                                                                                         27 CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 225. 28 David Bromwich, “Keats: Another Self”, In. Hazlitt: The Mind of a Critic, pp. 362-401. 29 Márcio Suzuki, A Forma e o Sentimento do Mundo: Jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII (São Paulo: Editora 34, 2014), p. 54. 30 Marie Hamilton Law, “The Turn of the Century: The New Periodicals and their Relation to the Essay”, In. The English Familiar Essay in the Early Nineteenth Century (New York: Russel & Russell, 1965), pp. 31-56. 31 Gregory Dart, Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: Cockney Adventures (Cambridge: Cambridge University Press, 2012), p. 2. 32 Leigh Hunt, “A Day by the Fire”, In. The Round Table 1817 (Oxford and New York: Woodstock Books, 1991), p. 134-5.

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Própria a um ensaio que se realiza ao rés-do-chão, encontramos

copiosamente nos escritos de Hazlitt a expressão ao pé da lareira33. Ela servirá, neste

capítulo, de pano de fundo, de tableau, para aquela intimidade que se esforça por

encurtar as distâncias entre escritor e leitor, uma vez que o escritor se revela, ele

mesmo, leitor. Para uma maior compreensão do tema, falaremos também das matrizes

setecentistas do familiar essay, caras ao nosso autor, a saber, os ensaios em periódicos

de Richard Steele e Joseph Addison e sobre a amizade, inigualável na história da

literatura, entre o biógrafo, James Boswell, e o biografado, Samuel Johnson.

2. As horas se fundiam em minutos: uma digressão

Nunca estive numa situação melhor ou de tão bom humor quanto agora, em que

me ponho a escrever sobre este assunto. Uma perdiz está sendo assada para o meu

jantar; o fogo da lareira me aquece; a temperatura está amena para esta época do

ano; tive hoje apenas um leve acesso de indigestão (o único motivo pelo qual me

aborreço de mim mesmo), tenho três horas boas pela frente e, por isso, vou tentar

ocupá-las da melhor forma que posso; antes fazê-lo agora, de uma só vez, do que

procrastinar por uma semana ou mais34.

Essas palavras, que abrem o ensaio “On living to one’s self”, foram escritas

durante o inverno de 1821 em Winterslow, lugarejo situado nas planícies de

Salisbury. Lá havia uma choupana onde Hazlitt, dividido entre a vida na cidade e as

visitas periódicas ao campo, encontrou “um cantinho retirado totalmente seu”35. A

pequena propriedade pertencia à família da sua primeira esposa, Sarah Stoddart, com

quem foi casado de 1808 a 1822. Sarah e William se conheceram na casa dos irmãos e

                                                                                                                         33 A expressão aparece associada ora à solidão do ato da leitura, ora ao bom convívio social e também, em muitos casos, ao ensaísta e amigo Leigh Hunt, dada a notoriedade que seu ensaio, “A Day by the Fire”, adquirira na época, como se nota nesta passagem de “On Novelty and Familiarity”: “Espero, se se confirme que este será mesmo um inverno rigoroso, que ele [Hunt] novamente se agasalhe em flanela e lã de carneiro, se aconchegue junto à sua lareira e leia mais uma vez, de cabo a rabo, os romancistas ingleses”, CWH, 12, p. 300. Sobre Hunt, disse ainda Lamb, “ele é uma das mentes mais cordiais que jamais conheci, companhia incomparável junto à lareira”, Selected Prose, p. 251. 34 CWH, “On Living to one’s-self”, 8, p. 90. 35 Montaigne, Os Ensaios, Livro I, p. 359.

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escritores Charles e Mary Lamb, que na época sediava encontros regulares, às

quartas-feiras, com amigos, escritores e artistas. Embora nunca tivesse se dedicado à

literatura, Sarah era mulher muito lida e de boa conversa. Vivia rodada de escritores,

era íntima de Lamb e Coleridge e irmã de um dos editores mais influentes da

Inglaterra do período, John Stoddart, ex-militante jacobino e um dos responsáveis por

reerguer o jornal The Times36, que goza de popularidade até os dias de hoje. No

entanto, apesar de muitas afinidades, William e Sarah raramente se entendiam em boa

parte do tempo que passavam juntos. O casamento foi um fiasco. “Nunca houve casal

mais desarmônico”, escreveu o neto, William Carew Hazlitt, “pois desde o começo

faltava-lhes a menor centelha de simpatia cordial um pelo outro”37. Quando brigavam,

e as brigas se tornaram mais frequentes depois da guinada conservadora do cunhado38,

ou quando, entre um contrato editorial e outro, a família se afundava em dívidas até o

pescoço, o que só aumentava os agravos, Hazlitt ia-se embora pra Winterslow, seu

“exílio voluntário”39, como disse certa vez. Lá tinha uma vida toda sua, au-dessus de

la mêlée40.

A vastidão dos gramados e bosques verdejantes, entremeados por caminhos

de cascalho que “coroam o semblante limpo e solitário”41 da paisagem castiçamente

inglesa em torno de Winterslow, satisfazia bem o gosto de nosso autor por devaneios

e caminhadas solitárias – sobre os quais falamos no primeiro capítulo: “Sei desfrutar a

sociedade”, diz Hazlitt, “entre quatro paredes; mas, quando saio, a natureza já me

basta como companhia. Nunca estou menos só do que quando estou só comigo”42.

                                                                                                                         36 Sobre a parceria perfeita entre John Walter II, proprietário do The Times, e John Stoddart, contratado pelo jornal em 1814, e sobre o quanto “a influência de Stoddart no The Times cresceu firmemente”, ver, The History of The Times: “The Thunderer in the Making”, 1785-1841 (London: The Office of The Times, 1935), pp. 157-64: 157. 37 Citado a partir de Stanley Jones, Hazlitt A Life: from Winterslow to Frith Street, p. 97. 38 Nas palavras de Duncan Wu: “Stoddart foi um republicano, que raspava a cabeça, vestia boina vermelha e falava abertamente de suas simpatias jacobinas; hoje [1812], a ambição o levou ao extremo oposto (...). À medida que progrediam as guerras napoleônicas, as críticas de Stoddart se tornaram cada vez mais violentas, e ele passou a ver Hazlitt como um completo tolo por sua firme adesão às aspirações revolucionárias”, The First Modern Man, p. 160. 39 CWH, “Weather Genius is Conscious of it’s Power?”, 12, p. 121. 40 A expressão em francês é de Stanley Jones (1916-1999), jornalista britânico famoso por suas invectivas antimonarquistas e de cuja obra Hazlitt: A Life from Winterslow to Frith Street extraímos boa parte das informações biográficas contidas neste parágrafo, “Withdrawal from London”, pp.1-35: 26. Reza a lenda que “se perguntassem a Jones, por exemplo, o que Hazlitt fez às seis da tarde do dia 2 de maio de 1812, ele responderia, com segurança, que o autor estava em companhia de Lamb e Wordsworth discutindo sobre as influências de Tasso na poesia de Spencer”. Ver, Philip Hobsbawm, “Obituary: Stanley Jones”, In. Idependent, Thursday, 18 March 1999.

41 CWH, “On the Past and Future”, 8, p. 24. 42 CWH, “On Going a Journey”, 8, p. 181.

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Quantas vezes, como descreveu Virginia Woolf a seu respeito, deixava seus pés e

pensamentos caminharem ao léu pelo bosque de Tuderley, “cuja atmosfera exalava

música mística em seus ouvidos”!43 “Dá-me um céu azul sobre minha cabeça, uma

relva esverdeada sob meus pés, uma estrada sinuosa à minha frente e três horas de

caminhada antes do jantar: depois, de pensamentos!”44.

Mas em nenhum outro lugar desfrutava de maior prazer, em nenhum outro

lugar tinha uma vida toda sua como no quarto quieto e cômodo da choupana em

Witerslow; seja enquanto lia atentamente ao pé da lareira ou quando deixava o livro e

ficava a olhar pela janela45. “As horas se fundiam (melted down) em minutos com

pensamentos agradáveis”46, a existência pessoal, na universal. Aquele que tem uma

vida toda sua, diz o autor, ao contrário do que a expressão pode sugerir, é tomado

pelas coisas que o cercam e se esquece de si mesmo. Vive em um estado de

fermentação; o anonimato corre-lhe pelas veias; o ódio e o amargor ainda não o

enredaram em nervos e instintos. Segundo Hazlitt, ele se torna numa espécie de

espectador silencioso:

Ele lê as nuvens, olha para as estrelas; sente o retorno das estações, o cair das

folhas no outono, o ar perfumado da primavera; sobressalta-se com deleite com as

notas do bosque próximos a ele; senta-se junto à lareira; escuta o bramir do vento;

debruça-se sobre um livro; conversa durante as horas gélidas; ou dissolve as horas

em pensamentos agradáveis. Durante todo o tempo, ele é tomado pelas coisas que

o cercam e se esquece de si mesmo47.

                                                                                                                         43 Virginia Woolf, The Second Common Reader. “William Hazlitt”, p. 179. 44 CWH, “On Going a Journey”, 8, p. 182. 45 As expressões “look out of my window”, “look from the window”, etc., podem ser lidas em diversos momentos da obra de Hazlitt, por exemplo, em “On Living to One’s Self”: “Enquanto olho pela janela ao extenso e descampado brejo diante de mim e através da luz brumosa da lua vejo o bosque que tremula sobre o topo de Winterslow...”, CWH, 8, p. 90; em “Whether Genius is Conscious of its Powers?”: “Olho para fora da janela e vejo que a chuva acabou de cair, os campos parecem mais verdes e uma nuvem rósea paira sobre a face da colina...”, CWH, 12, p. 123.

46 CWH, “On Living to One’s Self”, 8, p. 91. 47 CWH, “On Living to One’s Self”, 8, p. 91.

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Poucas expressões são mais recorrentes em Hazlitt, lembra Tom Paulin, do

que se derreter ou se fundir (to melt ou melt down)48. Sabemos que ele a tomou de

empréstimo de dois de seus autores favoritos, Milton e Burke, para os quais, como

para Hazlitt, ela funciona como uma espécie de emblema do trabalho criativo. Para

que o artista se liberte de si e produza uma obra íntegra e completa, seu espírito

precisa estar incandescente. É com o calor do forno ou do estômago que se abrem os

trabalhos. Este estágio do processo criativo requer paciência e lentidão. O trajeto é

reflexivo, pausado e em diálogo ininterrupto com o calor interior, “não com o calor da

hora”49. “A questão é ruminar”50, na expressão de Cynthia Ozick. Tanto no português,

derreter, como no inglês, melt, a palavra implica a fusão de substâncias sólidas, de

modo a produzir uma mistura pastosa e homogênea. Nesta e naquela língua, o

vocábulo é atravessado por expressões de caráter sensual, também no sentido de

voluptuosidade. Diz-se que ao ingerir um alimento apetitoso ele derrete na boca, melt

in the month; do apaixonado, que seu coração se derrete pela amada, melted heart. No

inglês, melt também se vincula à entrega mútua dos corpos, ao gozo ou mesmo ao

próprio sêmen. O ato de procriação se dá por derretimento, por uma dissolução de si.

O advérbio down reforça o caráter telúrico do gesto. Ele nos lembra que aquele que se

derrete não se desmancha no vazio, como bolhas, mas germina em matéria sólida.

Numa palavra, a escrita criativa – ao menos no estágio de que tratamos aqui – exige

prazer, entrega e dissolução da identidade pessoal.

“Pela leitura se aprende a escrever”51, disse o autor. O aprendizado é

prazeroso porque imitativo, segundo o princípio aristotélico52. “Quando se é jovem,

não há prazer maior do que a leitura”53. Porém, cedo Hazlitt descobriu que a escrita

requer um estímulo mais enérgico e de um “poder maior de intoxicação”54, sobre o

                                                                                                                         48 Ver Tom Paulin, The Day-Star of Liberty: William Hazlitt’s radical style, Capítulo 1: “A state of projection”, pp. 17-46. 49 Em inglês, “spur of the occasion”, expressão corrente em Hazlitt. Ver, por exemplo, “On Shakespeare and Milton”: “Elas [as palavras de Shakespeare] foram cunhadas na fornalha, no calor da hora, e possuem toda a verdade e vivacidade que provêm das impressões reais dos objetos”, CWH, 5, p. 54. 50 Cynthia Ozick, “Retrato do ensaio como corpo de mulher”, In. Serrote #9 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011), p. 12. 51 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 28. 52 Na Poética, diz Aristóteles: “Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito ao homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado”. Aristóteles, Ética a Nicômaco e Poética (São Paulo: Nova Cultural), 1987. p. 203. 53 CWH, “Whether Genius is Conscious of it’s Powers?”, 12, p. 126. 54 Idem, p. 125.

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qual falaremos mais extensamente no terceiro capítulo desta tese. Na época, nosso

autor já era um crítico full time e as peias da vida adulta não lhe deixavam escolha:

era forçoso ocupar-se da escrita e de uma só vez. Por intermédio de Lamb, que lhe

pôs em contato com o editor James Perry, do Morning Chronicle, conseguiu seu

primeiro emprego na imprensa periódica. Começou como repórter parlamentar,

escrevendo alguns dos sketches políticos mais memoráveis de seu tempo. Em seguida,

por cinco anos, Hazlitt assinou colunas diárias e semanais de crítica teatral também

para outros três jornais: The Champion, The Examiner e The Times. O sucesso de

público conquistou a confiança de Perry, que lhe deu “carte blanche”55. Foi quando,

depois de horas mastigando os pensamentos, meditando sobre a crítica do dia

seguinte, eles se “dissolveram em palavras”56. O autor estava a um passo da “arte de

conversar sobre o papel”57 de que fez fama literária (table-talk, segundo nosso autor, é

outro nome para ensaio). De um modo todo seu, passou a escrever ensaios a um só

tempo personalíssimos e de interesse geral pela matéria humana. Ensaios que

incorporavam na escrita todas as licenças da língua falada (não apenas da boa

sociedade, mas da gente inglesa) e que “afetam profundamente os afazeres e o âmago

dos homens”58. “Aquele tempo”, lembra Hazlitt, “foi para mim uma espécie de lua de

mel da autoria”59.

3. A Lua de Mel da Autoria: leitura e público leitor

Há decerto uma pitada de ironia na expressão, “a lua de mel da autoria”, e

num duplo sentido. Primeiro, porque àquela altura o casamento com Sarah ia de mal a

pior; segundo, porque ela parece se chocar com a dissolução da instância do autor de

que falávamos acima. Hazlitt, de sua parte, parecia estar mais preocupado em

remendar outro laço matrimonial que, segundo ele, andava gasto na Inglaterra há um

                                                                                                                         55 CWH, “On Patronage and Puffing”, 8, p. 292. 56 Expressão recorrente em Hazlitt. Ver, por exemplo, CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 7. 57 John Gross, The Oxford Book of Essays (Oxford: Oxford University Press, 1992), p. xx. A expressão “conversation on paper” é empregada pelo nosso autor num dos momentos decisivos em que reflete sobre a experiência da escrita de ensaios em “On the Conversation of Authors”: “É preciso valer-se de lentes para reunir os raios dispersos e as luzes refratadas e irregulares da conversa sobre o papel”, CWH, 12, p. 40 (grifo do autor). A expressão é mais uma vez de origem montaigniana. Em “Do útil e do honesto”, diz o pensador francês: “falo com o papel como falo com o primeiro que encontro”. Os Ensaios, Livro III, p. 5. 58 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, Serrote #22, p. 19. 59 CWH, “On Patronage and Puffing”, 8, p. 292.

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tempo: entre escritores e leitores. O título de sua primeira coletânea de ensaios, The

Round Table (escrita a quatro mãos, entre ele e o amigo Leigh Hunt), a multiplicidade

dos temas tratados, o ideal de clareza, acrescentando-se o sentido de formação

propiciado pela educação humanista, vinculam esta obra aos ensaios de periódicos de

Richard Steele e Joseph Addison: The Tatler e The Spectator. É o que afirma o

próprio Hazlitt na Advertência ao livro: “escrevi estas páginas à maneira de nossos

primeiros ensaístas de periódicos, The Spectator e The Tatler”60. Podemos ler a

confirmação dessa filiação no trecho a seguir do ensaio de número XXX, “On

Pedantry”, em que a expressão a lua de mel da autoria é novamente empregada:

A transição imediata do estilo pedante ao estilo popular em literatura foi uma

mudança que à época deve ter sido bastante agradável. Nossos ilustres

predecessores, The Tatler e The Spectator, foram muito afortunados a esse

respeito. Eles vestiram o favor do público com o ‘lustro mais novo’, antes de ele

se desbotar e se tornar uma peça comum; antes de a familiaridade engendrar o

desprezo. Era a lua de mel da autoria. Seus ensaios estão entre os primeiros

exemplos neste país de sacrifícios da erudição à elegância de entendimento

mútuo, de igualdade de bom-humor entre o escritor e o leitor. Esse novo estilo de

composição, para fazer valer a fraseologia do sr. Burke, “mitiga autores em

camaradas e força a sabedoria a se submeter ao colarinho mais brando da estima

social”. Os folhetins originais de The Tatler, impressos em meia folha de papel

almaço, eram servidos diariamente nos cafés da manhã, junto a chaleiras

prateadas e fatias magras de pão com manteiga; e seja lá o que o engenhoso sr.

Bickerstaff escrevesse à noite, reclinado em sua confortável poltrona, ele poderia

se lisonjear de na manhã seguinte contar com a aprovação elegante das mulheres,

do espirituoso (witty), do erudito e dos homens de Estado por toda parte do reino

onde progredisse consideravelmente a civilização61.

A nova dupla de ensaístas, Hazlitt e Hunt, estava comprometida e confiante

em mais uma vez acolher escritores e leitores “em torno desta Mesa Redonda”62.

Muito se escreveu nos estudos literários contemporâneos sobre a importância

que a imprensa periódica teve em criar um espaço de diálogo, ou nas palavras de                                                                                                                          60 CWH, “Advertisement”, 4, p. v (grifo nosso). 61 CWH, “On Pedantry”, 4, p. 83 (grifo nosso). 62 CWH, “On Classical Education”, 4, p. 6.

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Hazlitt, um entendimento mútuo e igualdade de bom humor entre o escritor e o leitor,

inexistente até então, e de seu papel-chave para a formação do público leitor63.

Façamos uma pequena excursão sobre o tema, mas com o cuidado, a exemplo de

nosso autor, de não submergir a matéria literária (o estilo popular ou familiar), o que

ocorre em alguns desses escritos, no terreno caudaloso da história cultural.

A partir de fins do século XVII, a Inglaterra passou a contar com um número

cada vez maior de jornais impressos diária ou semanalmente e de uma produção que

crescia a todo vapor. Se não foram poucos os entraves que impediam a Inglaterra de

arrogar o título de “uma nação de leitores”64, segundo a célebre frase panglossiana do

autor de Rasselas – o acesso à leitura, lembra Ian Watt, era dificultado por inúmeros

fatores socioeconômicos: a inexistência de um sistema educacional, o alto preço dos

livros, pouca privacidade e pouco tempo de lazer das classes mais baixas, etc65. –,

nenhum outro país experimentou igual expansão do público leitor no período. Em

certo sentido, nenhum outro país sequer conheceu um público leitor ou audiências de

leitores – não enquanto “simples agregado de leitores, mas como formações sociais e

textuais complexas, dotadas de tendências interpretativas e contornos ideológicos”66,

segundo a conhecida formulação de Jon Klancher. Na França do Antigo Regime, a

censura se impunha com mãos de ferro: “antes da publicação havia um habilidoso

exercício de censura, aplicado através de uma política de privilégios seletivos que

envolvia a inspeção prévia do conteúdo dos manuscritos (...). Após a publicação,

cabia à polícia exercer o controle”67 – a censura, como veremos no próximo capítulo,

também se tornou uma realidade inglesa durante as Guerras Napoleônicas, basta

lembrar que Leigh Hunt, William Cobbett, John Thelwall, entre muitos outros, foram

                                                                                                                         63 Sobre o tópico, a discussão que se segue se beneficiou, entre outras, das obras de Jon Klancher, The Making of English Reading Audiences, chapter one “Cultural Conflict, Ideology, and the Reading Habit in the 1790’s”, (Madison: The University of Wisconsin Press, 1987), pp. 18-46; e Lucy Newlyn, Reading, Writing, and Romanticism: The Anxiety of Reception, chapter 1 “The Sense of an Audience” (Oxford: Oxford University Press, 2000), pp. 3-48. 64 James Boswell, Life of Johnson, (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. 1113. 65 Ver Ian Watt, A Ascenção do Romance: Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, tradução de Hildegard Feist (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), capítulo 2 “O Público Leitor e o Surgimento do Romance”, pp. 34-54. 66 Jon Klancher, The Making of the English reading audiences, 1790-1832, p. 6. 67 Daniel Roche, “A Censura e a Indústria Editorial”, In. Revolução Impressa: A Imprensa na França 1775-1800, org. Robert Darnton e Daniel Roche (São Paulo: Edusp, 1996), pp. 21-22. Sobre o tema, ver também o célebre estudo de Robert Darnton, Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária (São Paulo: Companhia das Letras, 1998).

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presos, processados ou perseguidos pelo que escreveram na imprensa68. Os inúmeros

e pequenos principados que compunham o território alemão impediam que um único

periódico alcançasse uma circulação mais ampla69. Tanto na França quanto na

Alemanha, grande parte do financiamento dos periódicos e das editoras ainda

provinha de nobres e aristocratas, os quais impunham um padrão de gosto e de escrita

amiúde avesso às formas populares70. Sem uma imprensa zelosa pela difusão do

conhecimento livresco, “a massa de todo um povo sucumbe à barbárie”71; e quanto a

esse argumento, Johnson é digno de nosso respeito.

No início do século XIX, a Inglaterra conheceu ainda um aumento substancial

de alfabetizados e do poder aquisitivo dos leitores72. Dois ingredientes fundamentais

foram o aperfeiçoamento das bibliotecas circulantes e a massificação da forma seriada

– jornais, ensaios, romances, contos, etc. – (as econômicas e magras “folhas de papel

almaço” que lemos no trecho de Hazlitt citado acima). Tanto um quanto o outro

ingrediente, na expressão irônica de Coleridge, são “refeições públicas da

literatura”73. Quanto às bibliotecas circulantes, se, de um lado, como nos lembra

Sandra Vasconcelos – retomando um topos fundamental da crítica coleridgiana (e até

certo ponto hazlittiana74) – elas colocaram à disposição do público não apenas

                                                                                                                         68 Sobre o assunto, ver William H. Wickwar, The Struggle for the Freedom of the Press 1819-1832 (London: George Allen & Unwin LTD, 1928); A. Aspinall, Politics and the Press, c. 1780-1850 (London: Home & Van Thal LTD, 1949); e Kevin Gilmartin, Print Politics: The Press and Radical Opposition in Early Nineteenth Century, sobretudo o capítulo “The Trials of Radicalism: Assembling the Evidence of Reform” (Cambridge: Cambridge University Press, 1996) pp. 114-157. 69 Sobre o tema, diz Habermas: “Na Alemanha dessa época, não havia nenhuma ‘cidade’ que pudesse ter substituído a representatividade pública das cortes por instituições de uma esfera pública burguesa. Elementos semelhantes encontra-se, no entanto, também aí: primeiro, nas eruditas comunidades de comensais, as antigas sociedades de conversação do século XVII. Elas são, naturalmente, menos atuantes e difundidas do que os cafés e salões”, Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003), pp. 49-50. 70 Para uma discussão histórica mais ampla sobre o tema, ver Marilyn Butler “Culture’s medium: the role of the review”. In. Stuart Curran, The Cambridge Companion to British Romanticism (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), pp. 120-147. 71 James Boswell, Life of Johnson, p. 477. 72 Nas palavras de Lucy Newlyn, “O número de alfabetizados cresceu ainda mais nas duas primeiras décadas do século XIX, quando, como resultado de mudanças tecnológicas (...), livros baratos se tornaram possíveis, permitindo que mais pessoas lessem como nunca ocorrera antes na história. A consequência do deslocamento de uma literatura escrita para uma audiência elitista a uma outra, escrita para o público em geral, promoveu uma rápida expansão da indústria da publicação”, Reading, Writing, and Romanticism, p. 7. 73 Samuel Coleridge, The Collected Works of Samuel Coleridge: Lay Sermons. (Princeton: Routledge & Kegan Paul, 1984), p. 38. 74 Richard De Ritter, retomando algumas passagens dos ensaios de Hazlitt, “On Reading Old Books” e “On Reading New Books”, mostra-nos o quanto o autor, a exemplo de Coleridge, censurava aqueles que corriam atrás das bibliotecas circulantes por nenhum outro motivo senão o de descobrir a mais recente novidade em literatura. Ver Richard De Ritter, “’In Their Newest Gloss’”: Hazlitt on Reading,

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romances e ensaios que hoje têm importância indiscutível no cânone literário, como

um número considerável de obras “de valor duvidoso e de baixa qualidade”75; do

outro, elas possibilitaram uma maior democratização da leitura. Ou ainda, como

sugere Lamb em “Detached thoughts on books and Reading”, as bibliotecas

circulantes criaram uma espécie de receptáculo para experiência pública da leitura76:

Como eles [livros comercializados pelas bibliotecas circulantes] nos falam dos

milhares de polegares que com prazer correram por estas páginas! Como aqueles

da solitária costureira (a modista de chapéus ou a tecelã, trabalhadora dura) que,

depois de um longo dia de trabalho entre agulhas madrugada adentro, em seu

curto intervalo de hora mal dormida, embebeu suas preocupações em cálice de

Letes, decifrando os encantados conteúdos destes livros!77

Finalmente, ao lado das condições materiais, a linguagem coloquial e o

interesse que esses folhetins tinham em reconstituir situações do dia-a-dia também se

somam aos fatores decisivos de incentivo à leitura. Quanto a esse aspecto, as

semelhanças entre o ensaio e o romance se sobrepõem às diferenças. O que Hazlitt diz

sobre os ensaístas do século XVIII, que eles, “de suas muitas andanças e voltas da

vida, trazem de volta para casa pequenos espécimes curiosos de humores, opiniões e

costumes de seus contemporâneos” 78 , vale igualmente para os romancistas do

período.

Tema intimamente ligado à expansão do público leitor, ao qual alude o trecho

de Sandra Vasconcelos citado antes, é aquele que se pergunta sobre o aumento de

uma literatura de qualidade duvidosa e sobre os perigos de banalização do ato da

leitura. Segundo Raymond Williams, se equivocam os que supõem ser este um tema

novo. E o historiador da literatura o acompanha por uma longa e vagarosa

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Gender, and the Problems of Print Culture”, In. The Hazlitt Review, Volume 3, (London: The Hazlitt Society, 2010), pp. 25-37. 75 Sandra Vasconcelos, Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII, (São Paulo: Boitempo editorial, 2002), p. 143. 76 Para um comentário sobre o ensaio de Lamb, ver Richard De Ritter, “’In Their Newest Gloss’”: Hazlitt on reading, gender, and the problems of print culture”, p. 32. 77 Charles Lamb, Selected Prose, p. 148. 78 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódico”, In. Revista Serrote # 22, p. 24.

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79    

   

revolução79 . Williams cita ainda uma passagem de Coleridge80 que muito nos

interessa (porque dela também se ocupou nosso autor), na qual o poeta, agora homem

de Estado, denuncia o efeito anódino da literatura barata, dieta das mentes cujo único

propósito é se livrar do vazio dentro de si. Hazlitt e Hunt não só não foram alheios a

esse sintoma (é bem provável que varassem noites discutindo a seu respeito com

Coleridge), como o propósito que tinham de restabelecer o entendimento mútuo e a

igualdade de bom-humor entre escritores e leitores era uma resposta a ele. A

alternativa da dupla de ensaístas de trazer novamente à mesa da gente inglesa o “pão

nosso de cada dia”81, difere da de Coleridge não só na forma como na ideia que um e

outro reclamavam de público leitor e de leitura. O caminho que tomaram foi decerto

oposto. Se Coleridge, como nos mostra Jon Klancher, se empenhou em formar uma

nova audiência de leitores – a que chamou de clerisy, coletivo de clerc: representante

e guia da vida intelectual82 –, Hazlitt e Hunt encontraram no ideal johnsoniano do

leitor comum, “não corrompido pelos preconceitos literários” ou por “dogmatismos

eruditos”83, um meio de recuperar aquela motivação primeva da leitura, curiosa e

simpática. Voltaremos a este ponto logo mais. Por ora, para uma maior compreensão

do comprometimento de Hazlitt com o público leitor, falemos, brevemente, sobre os

primeiros ensaístas de periódicos, The Tatler e The Spectator.

Desde que saiu do forno o primeiro número de The Spectator (dia 1 de março

de 1711) – com título em caixa alta, uma citação da Arte Poética de Horácio e a

chamada to be continued every day – nenhum outro dia o sol se levantou sobre a Grã-

Bretanha sem que um único folhetim fosse degustado junto a xícaras de chá e fatias

de pão com manteiga. Desde então, “ensaístas ingleses vêm-se sucedendo numa

                                                                                                                         79 Raymond Williams, The Long Revolution (London: Broadview press, 2001). Ver sobretudo o capítulo 2, “The Growth of the Reading Public”, pp. 177-236. 80 Sobre o argumento de Coleridge, diz Williams, “a leitura como esse tipo de droga fácil é a condição permanente de um grande volume de escritos efêmeros”, The Long Revolution (Peterborough: Broadview Press, 2001), p. 193. 81 Expressão que consagrou o ensaio em periódico. Ver, por exemplo, Alexandre Eulálio, “O Ensaio Literário no Brasil”, Revista Serrote #14, p. 8; e Maria Lúcia Pallares-Burke, The Spectator: O Teatro das Luzes, Dialogo e Imprensa no Século XVIII (São Paulo: Editora Hucitec, 1995), p. 90. 82 Ver capítulo quinto, “Romantic Theory and English Reading Audiences”, In. The Making of the English reading audiences, 1790-1832, pp. 135-171. 83 Famosa passagem de Johnson sobre Thomas Gray em Lives of Poets (Works of Samuel Johnson, volume XXIII, New Haven and London: Yale University Press, 2010, pp. 1470-1). Ver também o ensaio de Virginia Woolf “O Leitor Comum”, In. O Valor do Riso (São Paulo: Cosac & Naify, 2014), pp. 133-134. Ainda sobre o tema, em língua portuguesa, ver Lucia Miguel Pereira “Crítica e Feminismo”, In. Escritos da Maturidade: seleta de textos publicados em periódicos (1944-1959) (Rio de Janeiro: Graphia, 1994), pp. 97-101.

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80    

   

espécie de sucessão apostólica dessa forma literária de expressão”84, nas palavras de

Gilberto Freyre. Hazlitt e Hunt, além de peças-chave da renovação do artística e

intelectualmente elaborado ensaio literário, conheceram a história do gênero como

poucos, como se nota no ensaio de Hazlitt “Sobre os ensaístas de periódicos”, o que

nos deixa com a seguinte pergunta: por que, nas primeiras décadas do século XIX,

eles se empenharam na tarefa de imitar as maneiras dos primeiros ensaístas de

periódicos? Primeiramente, por nenhum outro motivo senão porque foram os

primeiros; isto é, eles queriam de algum modo reviver o efeito de novidade, “a

primeira ebulição de nossas esperanças e temores”85 que deve ter acompanhado

aquele gesto inaugural de sacrifício pelo outro, o leitor. À diferença de Montaigne e

dos ensaístas ingleses do século precedente, para os quais, lembra Auerbach, ainda

não havia um público86, The Tatler e The Spectator dispunham dos meios para

“transformar o ensaio (e o fizeram) em força civilizatória, em instrumento contra a

vulgaridade e o pedantismo”87; “surge pela primeira vez em Londres, e, salvo engano,

no mundo, o ensaio destinado à imprensa”88. Com a volta à “aurora da experiência”89

na imprensa periódica a dupla pretendia reacender “o primeiro fulgor da paixão”90,

sem a qual sacrifício algum é possível, e jorrar nova luz sobre os caminhos do

processo civilizatório. Em segundo lugar, porque os disfarces humorísticos e as

personagens ideais com as quais Steele e Addison revestiram seus nomes e animaram

o famoso clube dos espectadores (Isaac Bickerstaff, Roger de Coverley, Will

Honeycomb, Will Wimble e Andrew Freeport) permitiram-lhes maior licenciosidade

e mais plena realização de seus humores e opiniões particulares. Noutras palavras, o

ensaio, de livre, se fez libérrimo. Por fim, porque eles talharam um estilo prosaico à

medida do entendimento de seus leitores com os quais frequentemente invertiam os

papéis por meio da publicação de suas cartas. Este último motivo é sem dúvida a

principal razão do porquê nenhum outro periódico gozou de idêntico favor do público.

                                                                                                                         84 Gilberto Freyre, Alhos & Bugalhos, p. 69. 85 CWH, “On Novelty and Familiarity”, 12, p. 303. 86 Ver ensaio de Auerbach, “O escritor Montaigne”, In. Ensaios de Literatura Ocidental (São Paulo: Editora 34, 2007), pp. 145-166. Ou ainda, como diz Montaigne, “Escrevo meu livro para poucos”, “Da Vanidade”, In. Os Ensaios, Livro III, p. 296. 87 John Gross, The Oxford Book of Essays, p. xx. 88 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, Revista Serrote# 22, p, 10. 89 CWH, “On Novelty and Familiarity”, 12, p. 303. 90 Idem, p. 302.

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81    

   

Dos quinhentos e cinquenta e cinco artigos que compõem The Spectator, por

exemplo, mais da metade (por volta de trezentos) incluem cartas dos leitores. Alguns

foram inteiramente escritos por eles, cabendo ao Mr. Spectator unicamente o trabalho

editorial, ou o “papel moderador”91, na expressão de Addison. “Tanto um número em

forma de ensaio poderia ter sido extraído de uma carta de leitor, como uma carta

pessoal poderia vir das mãos do próprio Spectator”92, escreveu Maria Lúcia Garcia

Pallares-Burke, cuja obra The Spectator: o Teatro das Luzes é o mais extenso estudo

sobre o tema no Brasil. Nela, a autora explora a fundo o ideário e as estratégias por

meio das quais Addison e Steele envolveram ativamente o público leitor,

“estimulando o sentimento de coautoria”93. Por reiterados exercícios ou manifestações

de humildade, Steele e Addison se apresentavam como amigos íntimos e confidentes.

Travavam com seus leitores conversas leves e tranquilas como a própria manhã. Por

um artifício retórico que colheram dos antigos, que volta e meia eram citados,

deixavam o leitor à vontade, lembrando-o de que fazer ensaio é coisa vã94.

É verdade que parte desse clima ameno se arrefeceu com o excesso de

elegância e o temperamento sisudo de Addison, que se impôs a tarefa de mestre-

escola de reformar os costumes e educar a sociedade. A fim de levá-la a cabo, “as

indicações de personalidade e as tiradas de humor” foram sacrificadas “em habituais

dissertações”95. Não é que Steele não compartilhasse de semelhante projeto, mas os

meios de que um e outro dispunham eram de todo distintos. Como observou Lamb,

coube a Addison a generalidade fria, a Steele, o humor (humour)96. Por esse motivo,

Hazlitt, como o amigo Lamb, diz ter se demorado mais nas coisas simples deste, seu

                                                                                                                         91 Joseph Addison & Richard Steele, The Spectator, N. 197 (London: Printed by T. Bensley, 1806), p. 165. 92 Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, The Spectator: o teatro das luzes, p. 122. 93 Idem, pp. 130-1. 94 Para uma discussão sobre The Spectator como modelo de conversação, diz Jon Mee: “Ao longo do século XVIII e além dele, escritores e leitores de todos os tipos adotaram o Spectator (1711-14) de Joseph Addison e Sir Richard Steele como texto chave e paradigma de conversação (...). O que ele prometia era uma literatura comum, cujos pressupostos fossem ‘a interdependência mundana’, escrita nas entranhas da vida do dia-a-dia”, Conversable Worlds: Literature, Contention, & Community 1762 to 1830, p. 39. 95 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, Revista Serrote #22, p. 28. 96 Nas palavras de Lamb: “Por fim, Addison interviu com suas tiradas de espírito (wit), sua crítica e moral, as generalidades frias que extinguem o humor (homour)”. Ver Lamb, “Review of the First Volume of Hazlitt’s Table-Talk, 1821”, In. Selected Prose, p. 228. Ainda sobre o tema, diz Lucia Miguel Pereira: “Steele parece ter sido mais inventivo e vigoroso, Addison, mais elegante e correto; o impulso criador partiria antes do primeiro, os acabamentos seriam dados pela pena lesta do segundo”, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Revista Serrote #22, p. 11.

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“registro dos costumes e personagens”97, do que na crítica e na moral daquele.

Também por esse motivo, o nome de Mr. Bickerstaff é citado no trecho de The Round

Table que lemos acima. Mas afinal, quem é Mr. Bickerstaff?

Esta mesma pergunta fizeram os leitores de Previsões para o ano de 1708, por

Isaac Bickerstaff, Esq. A primeira previsão era leve, não passava de uma ninharia,

mas alertava o público para os perigos da leitura de almanaques. Ela dizia que John

Partrige, importante comerciante do ramo, faleceria na noite do dia 29 de março

assolado pela febre caso não suspendesse a tempo suas atividades. Chegado o dia

aziago, o pobre Partrige, que certamente não dera ouvidos à tamanha patifaria, ficou

boquiaberto quando soube que vendedores ambulantes distribuíam de mãos em mãos

uma elegia escrita à sua pessoa. No dia seguinte, véspera de primeiro de abril (Fools’s

Day), um funcionário da Receita Pública (a mando do próprio autor da pilhéria)

expediu uma carta com a seguinte chamada: A consumação da primeira das previsões

de Mr. Bickerstaff. Estava claro que se tratava de uma piada. Passado um ano, veio a

público um folhetim com uma xilografia que trazia no título: Uma famosa previsão de

Merlin, mago britânico, escrita há mil anos e relacionada a 1709. O estilo, “a rima

em dístico, a letra gótica” e a alusão irônica a Partrige (um de seus almanaques se

chamava Merlinus Liberatus) fizeram com que o nome de Bickerstaff corresse mais

uma vez à boca pequena98. A suspeita de embuste se confirmou no próximo primeiro

de abril, doze dias antes da publicação do primeiro número de The Tatler, quando Mr.

Bickerstaff revelou a sua identidade. Era ninguém menos do que um dos maiores

escritores satíricos de todos os tempos, Jonathan Swift, amicíssimo de Steele e de

Addison. A brincadeira que divertiu a todos, exceto Partrige, não era inocente.

Tratava-se de um complô, uma estratégia editorial para demover a atenção do público

de almanaques, os quais sobejavam de notas astrológicas e previsões. Abria-se

caminho para a novidade jornalística: o ensaio destinado à imprensa. Swift chegou a

contribuir com alguns números para The Tatler, mas foi Steele quem deu acabamento

final à personagem, nas palavras de Hazlitt, que é “ele próprio um gentleman e um

                                                                                                                         97 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódico”, In. Revista Serrote # 22, p. 30. 98 Ver a introdução de Angus Ross, In. Selections from The Tatler e The Spectator of Steele and Addison (London: Penguin Books, 1982), pp. 26-7.

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douto, um humorista e um homem do mundo, com um alto grau de sincera naïveté em

torno de si”99.

Os autores de The Round Table não assumiram semelhantes disfarces. Pois

sabiam, como Lamb, que “da prole de Bickerstaff, ai de mim! morreram todos com

ele”100. Além disso, diz Hunt na introdução a The Round Table, no tempo de Steele e

Swift, que homem de engenho não era conhecido nas tavernas e cafés, e quem daria

ouvido a um cavalheiro que, na noite anterior, em mesa de bar, “mal conseguia

articular uma palavra?”101. Certamente ligariam o nome à pessoa. Contudo, de

Bickerstaff, eles extraíram uma lição importante: “a perfeição das letras”, diz Hazlitt,

“só ocorre quando a ambição maior do escritor é a de agradar seus leitores e o orgulho

maior do leitor, o de entender seu autor”102.

Por um tempo, a imprensa periódica inglesa logrou esse “ajustamento

recíproco entre o jornal e o público”103, entre escritor e leitor. As coisas começaram a

desandar, segundo Hazlitt, “quando a cidade se tornou um clube de escritores”. “Hoje

em dia”, continua o autor, “cada um traz à mão o seu próprio folhetim, à espera da sua

vez de ser ovacionado”104. Falam-se muitas vozes ao mesmo tempo; nenhuma é

ouvida. A experiência pública da leitura perdia mais um de seus sentidos: deixava de

ser impressão de abertura, de enriquecimento, para se converter em “obturação da

mente diante do que procura penetrar nela”105, segundo a formulação do filósofo

espanhol Julian Marías, que se ocupou do mesmo tema um século depois. Era como

se o pedantismo recuperasse lugar na sociedade pela porta dos fundos, só que desta

vez sem aquelas velharias: os dogmas e os mistérios da religião. Há decerto algo de

pedante em nós, argumenta Hazlitt, sempre que somos bem sucedidos no vincular

interesse às nossas ocupações mais triviais; e quanto menos o outro conhecer daquilo

de que falamos ou escrevemos, tanto melhor. Noutras palavras, o pedante moderno

afeta ares idiossincráticos, ao mesmo tempo em que se vale de uma linguagem

                                                                                                                         99 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, In. Revista Serrote #22, p. 27. 100 Charles Lamb, “Review of the First Volume of Hazlitt’s Table-Talk”, In. Selected Prose, p. 228. 101 William Hazlitt & Leigh Hunt, The Round Table 1817, pp. 2-3. 102 CWH, “On Pedantry”, 4, p. 83. 103 Pallares-Burke, The Spectator: O Teatro das Luzes, p. 138. 104 CWH, “On Pedantry”, 4, p. 83. 105 Julian Marías, Tratado sobre a Convivência (São Paulo: Martins Fontes, São Paulo, 2003), p. 15. Ainda sobre o tema, diz Marías: “Nesta época em que a produção de escritos é imensa, em todas as suas formas, em que é inabarcável não já o conteúdo do que se publica sobre qualquer questão, mas os simples títulos, a capacidade de distinguir é salvadora, talvez a única forma de sobreviver à inundação que nos acossa por todos os lados”, p. 15.

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coalhada de jargões profissionais. Escreve para os iniciados, não mais para uma

“comunidade de leigos”106. Esta é a pedra de toque para a decadência da leitura e do

jornalismo moderno, para, de um lado, “o adestramento das formas de expressão da

produção acadêmica e (do outro) para a redução progressiva, a teores mínimos, das

ambições intelectuais dos periódicos não especializados”107, nas palavras acertadas de

Paulo Roberto Pires, e não, como quis Coleridge, a simples expansão do público

leitor, “esta frase tão estranha”108. Consciente de que “o escritor só pode dirigir-se a

quem quer e deseja compreendê-lo”109, dizia Bento Prado Jr. – ou, nas palavras de

nosso autor, “aquele que fala deseja ser compreendido, mas ele só pode sê-lo por

aqueles que com ele partilham do segredo”110 –, Hazlitt, em repúdio à “antipatia

sistemática”111 de Coleridge pelo público leitor, estimula a todo o momento a

imaginação deste: fazendo-lhe contínuas cortesias ou embriagando-o com sua ironia

corrosiva.

Com efeito, foi no respeito mais verdadeiro pelo entendimento do leitor que a

nova dupla de ensaístas (Hazlitt e Hunt) apostou suas fichas; numa palavra, no estilo

familiar ou conversacional. “A arte de escrever, quando devidamente exercida (...), é

outro nome para conversação”112, disse Laurence Sterne, ensaísta a seu modo e

supremo estilista. A conversa esmorece, perde em vigor ou descamba em preleções

sempre que alguém, por excesso de teimosia ou de brilhantismo, a mantém por longo

tempo. O respeito pelo outro é humildade e abertura; alegria por descobrir algo com o

qual não se tinha contado. “A arte da conversação”, lembra Hazlitt, “é a arte de ouvir

e de ser ouvido”113.

                                                                                                                         106 Auerbach, “O escritor Montaigne”, In. Ensaios de Literatura Ocidental, p. 153. 107 Paulo Roberto Pires, “Viagem à Roda de uma Dedicatória”, In. Revista Serrote #12 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012), p. 189. 108 CWH, “Mr. Coleridge’s Statesman’s Manual”, 7, p. 124. 109 A formulação é de Bento Prado Jr. Ver ensaio do autor “Para quem escrevemos?”, in. A Retória de Rousseau, p. 225. 110 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 35. 111 CWH, “Mr. Coleridge’s Statesman’s Manual”, 7, p. 126. 112 Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, tradução de José Paulo Paes (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), p. 131. 113 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 39.

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4. Rítmicos e Arrítmicos: uma anedota na casa de Lamb

Todos conversavam, bebiam, comiam, jogavam e riam à vontade. Era mais

uma noite de quarta-feira, mais um encontro, que agora virara rotina, na casa londrina

(em Mitre Court) dos irmãos Charles e Mary Lamb. Vieram alguns amigos; gente

ótima; bons companheiros de sempre. É verdade que entre os conhecidos de dez a

quinze anos atrás, havia outros mais novos. Uns trouxeram bebidas, rapé e fumos;

outros, apenas fígado, narinas e pulmão. Um trouxe torta de vitela; outros trouxeram

boca. Charles e Mary cuidavam para que todo visitante que transpusesse a soleira da

casa encontrasse a máxima “wit e boa-companhia”114 estampada nos rostos dos

anfitriões. Cuidavam também para que não faltassem drinques, boa comida (para

aquela noite, porco assado 115 ), lufadas, jogatinas e excelentes papos. De uma

sociabilidade e sensibilidade refinadas, era irresistível entrar em diálogo com Charles,

sobretudo quando bebia. Beberrão de primeira linha116, depois de excitado pelo kick

de bebidas-aperitivos, ficava animado de uma suave euforia: comunicativo mas nunca

transbordante. Mantinha-se, do começo ao fim, britanicamente rítmico. Entre uma

anedota e outra, provava passagens deliciosas de Donne ou de Sir. Philip Sidney (seus

autores favoritos) “como Epicuro prova da oliva”117, comentava uma personalidade

em evidência e suas observações somente às vezes deixavam um ressabio. Urbano até

a medula (morou a vida toda em Londres), sua conversa poderia ser elegante, exótica,

espirituosa ou grave. Noutro canto da mesa, Samuel Coleridge prendia a atenção do

almirante Burney, irmão da romancista Frances Burney (que às vezes dava as caras

nesses encontros) e do amigo de escola de Charles e autor das Cartas de Falstaff,

James White. Depois de um aperitivo ou outro, em vez de ficar eufórico, Samuel

transbordava, falava em excesso, era arritmíssimo. O assunto da vez: as categorias da

filosofia transcendental de Kant. Quando Thomas Holcroft, dramaturgo da velha

                                                                                                                         114 Idem, p. 36. 115 Sobre o tema, diz o conhecido ensaio de Lamb: “Sabor algum se compara, estou seguro disso, à aderência oleaginosa (quando quebradiça, fulva, bem servida e ao ponto) do torresmo, como é conhecido, e com razão (...); oh! não o chamemos de gordura”, “A Dissertation upon a Roast Pig”, In. Selected Prose. p. 167. 116 Nas palavras de Lamb: “Creio que existem pessoas de cabeça robusta e entranhas férreas para as quais o excesso não é prejuízo algum; para as quais brandy (...), consumido copiosamente, não produz outro mal senão o de embaralhar suas faculdades, a bem da verdade, talvez já não muito diáfanas. Para elas, esta conversa é uma perda de tempo (...). Falo aos fracos, aos inquietos, àqueles que sentem a necessidade de recorrer a algum auxílio artificial para animar seus espíritos na vida em sociedade e elevá-lo ao teor ordinário de tudo o mais que o cerca, e sem o mesmo auxílio. Este é o segredo do porquê bebemos”, “Confessions of a Drunkard”, In. Selected Prose. p. 155. 117 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 36.

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guarda jacobina, que até então se recolhia a silêncio pouco comunicativo, o

questionou sobre um ponto que se discutia, Samuel deu rédeas soltas ao seu alazão

alemão [high german horse]:

Meu caro, esta sua observação me faz lembrar uma bela jovem alemã, de uns

quinze anos, que conheci no tempo em que morei na floresta de Harz, interior

daquele país. Estava eu um dia imerso na leitura sobre os Limites do Conhecido e

do Desconhecido, a mais profunda de suas obras, quando esta jovem camponesa

chegou por de trás de minha poltrona e reclinando-se disse: ‘o quê! O senhor está

lendo Kant, mas por que, se eu que sou alemã de nascença não o compreendo?’118.

Thomas, que quando bebia ficava por vezes violento, se levantou e disse num

tom arrítmico: “Camarada Samuel, nunca conheci homem mais eloquente ou cuja

eloquência fosse mais inoportuna”119. Na mesa ao lado, onde Edward Phillips (Ned

para os íntimos) e Sarah Battle120 comandavam um grupo de jogadores de uíste, fez-se

silêncio. Ned pôs as cartas sobre a mesa e trocou olhares com Thomas como se lhe

pedisse calma. Sem dizer palavra, Thomas tomou do chapéu e desceu as escadas que

davam à rua. Antes mesmo de dobrar a esquina topou com William Hazlitt, atrasado

porque trabalhara até tarde na redação, e sem cumprimentá-lo, transbordante que

estava, disse apenas: “Sabe, William, Samuel é um camarada muito inteligente, tem

pleno domínio sobre a linguagem, mas receio que nem sempre afixa ideias claras às

palavras de que se utiliza”121. Depois de subir as escadas e de Charles explicar a

William o ocorrido com algum dito chistoso, caíram todos na gargalhada. Samuel e os

outros, agora acompanhados de William, retomaram o bate-papo sobre a razão, a

imaginação e a vontade. Assim permaneceram até a hora neutra da madrugada. Foi a

                                                                                                                         118 Idem, p. 37. 119 Idem, ibidem. 120 Personagem do célebre ensaio de Lamb “Mrs. Battle’s Opinios on Whist”. Em “On Familiar Style”, diz Hazlitt: “Confesso que dos ensaios impressos sob a rubrica de Elia, aquele de que mais gosto (embora não ouso, em meio a tantas excelências, decidir qual o melhor) é o relato Mrs. Battle’s Opinios on Whist, além de ser o mais isento de alusões obsoletas e inflexões epigramáticas”, CWH, 8, p. 245. 121 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 38.

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primeira e única vez nesses encontros de quartas-feiras, lembra William, que um

assunto de interesse literário prevaleceu sobre os demais122.

Esta anedota que me propus a recontar é talvez uma das mais conhecidas e

admiradas pelos leitores de Hazlitt; ela é uma das que ele relata no ensaio “On the

Conversation of Authors”. Se encontrasse um editor benevolente, disse nosso autor,

“sugeriria a ele que fizesse dela um suplemento à Biographia Literaria de

Coleridge”123. As personagens envolvidas, detalhes de suas personalidades, gestos,

diálogos, etc., se encontram todos lá. Mas seu kick veio de outro lugar, de um ensaio

de Gilberto Freyre, em Alhos & Bugalhos (de edição há muito esgotada, seja dito de

passagem): “A Propósito de Cachaças e de Outras Batidas: Inclusive de sua

Repercussão em Escritores e Artistas que Tanto Pode ser Rítmica como Arrítmica”.

Sem prestar-se a “considerações sisudamente sociológicas”124, Freyre investiga o

valor cultural da discreta presença de bebidas aperitivos na mesa dos brasileiros. Para

Freyre, a cachaça é um dos selos de nossa cultura, ao lado do samba, da feijoada e de

“expressões dengosas” na linguagem do dia a dia: como sinhazinha e iaiá125. E tanto

naqueles quanto neste, seu valor reside na miscigenação e nos rasgos de intimidade:

traços, segundo Freyre, que traem o “Brasil mais castiço”126. Entretanto, a digressão

que Freyre inclui ao final do ensaio sobre o efeito que as bebidas-aperitivos tinham

nas conversas de personalidades ilustres, artistas e escritores, brasileiros ou não, com

os quais travou contato durante a vida, classificando uns em rítmicos, outros em

arrítmicos, revela-nos um ensaísta mais preocupado com a matéria humana em geral

do que com o que há supostamente de particular ao caráter brasileiro. Nas palavras de

Freyre:

Os rítmicos seriam aqueles a quem a batida ou o seu equivalente anima de suave

euforia. Assim eufórico, ele é comunicativo. Expressivo. Vivaz, sem se tornar

transbordante. Sua inteligência é avivada, provocada, levemente excitada pelo

kick de aperitivo. Seu sense of humour chega a brilhos que podem ser quase

geniais, ao contar uma anedota ou comentar uma personalidade em evidência.

Seus sorrisos são giocondescos, tal a malícia que podem exprimir. Ri com gosto.                                                                                                                          122 Idem, p. 37. 123 Idem, p. 38. 124 Gilberto Freyre, Alhos e Bugalhos, p. 98. 125 Idem, p. 101. 126 Idem, p. 97.

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Gesticula à vontade, libertando-se daquela elegância excessivamente apolínea que

contém, nos indivíduos ditos bem educados, todos os gestos como se fossem

incorreções (...).

Já os arrítmicos, após os aperitivos, se tornam transbordantes de palavras e de

gestos. Em vez de eufóricos, ou falam em excesso ou recolhem-se a silêncios

pouco comunicativos127.

A aproximação que aqui fazemos entre Freyre e o ensaio de Hazlitt não é

fortuita, pois Freyre foi leitor assíduo de Lamb e dos ensaístas ingleses em geral: “é

na língua inglesa”, diz ele, “que vêm surgindo, desde que há ensaio literário, um

maior número de obras-primas desse gênero. Basta que se recordem (...) os ensaios de

Lamb, os de De Quincey, os de Walter Pater...”128. Entretanto, quer Freyre estivesse

consciente ou não, a hospitalidade e a cordialidade, que em “A Propósito de Cachaças

e de Batidas” ele assume como expressões características do brasileiro, são

precisamente, segundo a hipótese que perseguimos neste capítulo, atitudes mentais

próprias ao ensaísta amigo; isto é, próprias ao escritor de familiar essays (gênero

inglês por excelência). Falemos a seguir de uma das figuras-chave do familiar essay,

Samuel Johnson. Não de Johnson em público (o autor); mas de Johnson no âmbito

privado (o homem), tal qual capturado pela pena de James Boswell, seu biógrafo e

amigo, e interpretado por Hazlitt em “Sobre os Ensaístas de Periódicos”.

5. A Conversa e a Arte da Escuta

Já se disse que a arte da conversação é um dos principais legados do século

XVIII. Ela está no centro daquela forma refinada de sociabilidade que se desenvolveu

em nenhum outro século como nesse, quer nos cafés, clubes ou salões; e por meio da

qual se experimentava e se colocava à prova o mais simples dos assuntos, ao passo

que o mais intricado deles recebia um colorido interessante, novo e surpreendente,

jamais pesado ou maçante. Com ela, a filosofia ganhava contornos literários. A poesia

e a prosa literária, contornos filosóficos. Numa palavra, nunca o esprit géometrique e

o esprit de finesse estiveram tão intimamente interligados. Foi nesse século, por

                                                                                                                         127 Idem, p. 100 (grifo do autor). 128 Idem, p. 9.

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exemplo, que o romance epistolar melhor floresceu – e o que é a carta senão uma

conversa à distância, em que se confidenciam intimidades ao leitor como a um velho

amigo e se discute familiarmente quaisquer assuntos?129 Tristram Shandy, romance de

Sterne citado acima, um dos mais populares de seu tempo, é, segundo Hazlitt, “a

essência pura do estilo conversacional em língua inglesa”130. Durante sua leitura, diz

o crítico alhures, o leitor se imagina em diálogo com as personagens131. Dr. Johnson,

depois de receber do próprio monarca George II uma pensão vitalícia pelo que havia

feito, o Dicionário da Língua Inglesa, passou a se dedicar, ainda que não

exclusivamente, à atividade de que mais gostava e que exerceu com a liberdade de

poucos: a conversação. Embora austero, o bom humor é a tônica de suas conversas, e

porque Johnson nunca se deixou cegar por preconceitos mesquinhos, acolheu de

coração aberto o libertino Boswell. Este lhe devotou amizade constante. Foi por ela e

pelo seu talento literário que deixou para posteridade o massudo Life of Samuel

Johnson, obra que, no tagarelar sobre todas as coisas, supera a biografia, “a mera

narrativa árida dos fatos” 132 com a “descoberta do permanente contido no

efêmero”133. Entre os filósofos do período que são hoje lidos sobretudo por suas

contribuições no campo da metafísica, Hume, Diderot e Voltaire eram apreciados ou

mesmo temidos em seu tempo pelo seu estilo e pelo brilho que irradiavam nas

conversas. Mesmo Rousseau, que por excesso de timidez se dizia incapaz de

acompanhar o rumo da prosa em palestras ou colóquios a dois134, foi exímio no imitar

o efeito de improviso que a conversa escrita nos dá. Analisando as diferenças de estilo

entre os séculos XVII e XVIII, Franklin de Mattos, importante estudioso do período,

observa:

                                                                                                                         129 É verdade, entretanto, que o romance epistolar no século XVIII tinha, entre os seus principais propósitos, “a reivindicação de historicidade” aliada a um “discurso auto-reflexivo” e “com o intuito de insinuar a objetividade documentada em seus materiais”, nas palavras de Michael McKeon acerca do romance de Richardson, Pamela. Ver “The Institutionalization of Conflict (I): Richardson and the Domestication of Service”, In. The Origins of the English Novel 1600-1740 (Baltimore: The John Hopkins University Press, 1987), pp. 357-381: 358. 130 CWH, “On the English Novelist”, 6, p. 121. 131 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 41. 132 James Boswell, Life of Johnson (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. 23. 133 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, In. Escritos da Maturidade, p. 136. 134 Ver o “Livro Terceiro” de Confissões, no qual o autor se queixa da grande dificuldade que encontrava em expressar por palavras, tanto na escrita quanto na fala, a vivacidade de seus sentimentos: “Se, só comigo mesmo, sou tão pouco senhor de mim, imagine-se o que devo ser em uma palestra em que, para falar a propósito, é preciso que se pense em mil coisas de improviso (...). Não conheço mais terrível incômodo do que a obrigação de falar de improviso e constantemente”, Rousseau, Confissões, pp. 124-5

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O século XVII aposta principalmente na expressão justa (...). A esse estilo

corresponde um ideal de conhecimento que valoriza a estrutura sólida, o

encadeamento das ideais. O século XVIII não nega as construções lógicas, mas

deseja que permaneçam secretas (...); o que se aprecia aqui não é a clareza, mas a

delicadeza135.

Possivelmente, dos exemplos recolhidos acima, nenhum outro encarnou

melhor o estilo conversacional do que Life of Samuel Johnson, de Boswell. Talvez um

de seus motivos se deva justamente ao fato de seu autor sacrificar frequentemente a

delicadeza em nome daquele senso mais profundo e de difícil definição, o sense of

humour de seu protagonista; isto é, as suas reações espontâneas e cordiais da

sensibilidade. Pelo seu modo todo particular de se revelar e de conversar com os

leitores, pelo seu talento, celebrado por muitos, como Bernard Shaw, Jorge Luis

Borges136 e Hazlitt, de ocultar todo traço de autoria e de se doar por completo ao autor

que estuda, falemos um pouco de Boswell e dessa obra, do tipo de conversa que ela

preconiza, da importância imensa que ocupou na história do ensaísmo, mesmo se

tratando de uma biografia, e em especial para os ensaios de Hazlitt – vale lembrar que

ao fim da vida nosso autor publicou Conversations of James Northcote, or Boswell

Redivivus137.

Com as suas “pitorescas indignações, a sua mania de opinar sobre tudo, as

suas afirmações peremptórias, os seus julgamentos sem apelo, a sua extraordinária

vitalidade (...), de simpatia irradiante e virilidade intelectual”138, acrescidos de seus

modos intoleráveis, ou mesmo risíveis, no vestir-se, comer e andar, Samuel Johnson

despertava o interesse do já então lucrativo mercado editorial do gossip – “aquele

                                                                                                                         135 Franklin de Mattos, A Cadeia Secreta: Diderot e o romance filosófico (São Paulo: Cosacnaify, 2004), p. 46. 136 Sobre as leituras de Bernard Shaw sobre Boswell, ver, por exemplo, “Epistle Dedicatory to Arthur Binham Walker”, In. Man and Superman: a Comedy and a Philosophy. Nas palavras de Shaw: “Platão e Boswell, enquanto dramaturgos, inventaram, respectivamente, Sócrates e Johnson” (London: The Floating Press, 2012), p. 27. Extraímos boa parte de nossa reflexão do texto de Borges “Samuel Johnson Visto por Boswell: A Arte da Biografia, Boswell e seus Críticos”, In. Cursos de Literatura Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 2006), pp. 137-154. 137 Na primeira edição da obra, publicada em forma seriada em The New Monthly Magazine, diz Hazlitt: “À diferença da grande obra original de meu predecessor (James Boswell, Esq., de Auchinleck), se nesta ele supostamente não inventou nada, fantasiei sempre que julguei necessário. Esqueci-me, enganei-me, deturpei, alterei e inverti a ordem inúmeras vezes”, CWH, 11, p. 350. 138 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, Escritos da Maturidade. p. 138.

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modo de discorrer agradavelmente sobre assuntos vários, sem cansar os ouvintes”139 –

, antes mesmo de seus velhos amigos John Hawkins, sra. Thrale (mais tarde sra.

Piozzi) e Boswell se lançarem na corrida por quem publicaria sua primeira e melhor

biografia.

Pela manhã de sábado do dia 16 de março de 1776, após regressar a Londres

para mais uma temporada de férias do judiciário, Boswell foi ter com Johnson na casa

da sra. Thrale. Naquela manhã, Johnson estava de ótimo humor e entretinha os

amigos com uma longa e deliciosa conversa: “Senti-me elevado”, disse Boswell,

“como se alcançasse outro estado de consciência. Sra. Thrale e eu trocamos olhares

enquanto ele falava, e nossos olhares expressavam a admiração e o afeto congenial

que nutríamos por ele”140. A caminho de Blackfriars, durante a travessia do Tâmisa,

Boswell, que sempre acompanhava o doutor de perto “com perguntas na língua e lápis

no punho”141, introduziu o assunto sobre a publicação de Johnsoniana, or Bon-Mots

of Dr. Johnson. Fazia parte de sua estratégia interpelar o amigo nas situações menos

esperadas. Indignado, porque seu autor era desconhecido de ambos, ele sugeriu a

Johnson que levasse o caso ao júri ou que se pronunciasse publicamente contrário ao

seu conteúdo. Afinal, tal obra haveria de contar com uma infinidade de julgamentos

falsos que contribuiriam ainda mais para pespegar-lhe a imagem de sujeito parrudo,

sem papas na língua. Então Johnson, com sua usual sabedoria prática e seus

desconcertantes paradoxos, o surpreendeu dizendo: “De modo algum, meu caro. Há

sempre um misto de verdade em toda falsidade e quem pode determinar o que é o

verdadeiro e o que é o falso? (...) Uma estória é ou bem um retrato de um indivíduo

ou bem da natureza humana em geral. Se for falsa, será um retrato do nada”142.

Se verdadeiro ou falso, o retrato de corpo inteiro que Boswell nos legou leva

de vencida as demais biografias. Life of Samuel Johnson seduz o leitor tanto pela

palavra pronta de seu protagonista, seu riquíssimo anedotário, feito de incontáveis

conversas fiadas, sempre em tom íntimo, quanto pelo modo privilegiado com que o

biógrafo escutou o biografado, instalando-se em sua consciência. A partir de então o

nome dos dois se tornaram inseparáveis. Talvez nunca tenha havido outra igual

amizade e identificação de dois eus entre escritores. Johnson não foi o primeiro                                                                                                                          139 Idem, “Gossip”, p. 162. 140 James Boswell, Life of Johnson, p. 680. 141 Lucia Miguel-Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, Escritos da Maturidade, 136. 142 James Boswell, Life of Johnson, p. 685.

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homem público ou de letras em quem Boswell “se obstinou a meter seu bedelho, sem

cuidar que era inoportuno” 143 . Nos idos de 1760, de visita ao continente,

correspondeu-se com o general italiano, Pasquale di Paoli, mais tarde líder da

independência da Córsega, e com dois dos mais populares escritores de seu tempo:

Voltaire e Rousseau. Chegou a travar amizade com este último, a qual se arrastou por

longos quinze dias, pois, como disse Borges: “Rousseau era um homem de péssimo

gênio”144. Com seu misto de rebeldia e introspecção e sua mania de pôr-se sempre à

sombra, Rousseau nunca soube viver, e ainda menos, conviver. O espirituoso

Voltaire, que julgava tudo pelo gesto e tendia a se desumanizar quando ria, só se deu

ao trabalho de responder às missivas do jovem libertino depois de muita insistência.

Por fim, eles se encontraram em Berna e enquanto Boswell se deleitou em suas

conversas, “la plus brillant que j’ai jamais entendu”145, Voltaire possivelmente o

tomou por mero “compêndio de boemia”146. A amizade com Paoli foi mais bem

sucedida. Se dela não resultou a mesma reciprocidade que encontramos entre Boswell

e Johnson, foi por incentivo de Paoli que aquele publicou sua primeira importante

obra, An Account of Corsica (1768). Mas nem Paoli nem Voltaire ou Rousseau

dariam um bom modelo. Dificilmente deixariam de posar de general, filósofo, poeta,

romancista, etc., isto é, dificilmente deixariam seus grandes feitos ou suas descobertas

se confundirem com as de um outro. A intimidade e o convívio mais familiar entre

Boswell e Johnson, disse Hazlitt, não se harmonizam muito bem com “a afetação de

virtude e as reivindicações um tanto pomposas da autoria”147.

Desse modo, o Johnson que hoje conhecemos e apreciamos não carrega

vestígio algum de uma profissão determinada, nem sequer de “leigo na condição de

escritor”, como disse Auerbach acerca de Montaigne148. Com sua propensão natural

ao ócio, ele gostava mesmo era de não fazer nada ou de se reunir com os amigos nos

clubes e cafés para um bate-papo. Quando só, durante suas frequentes e noturnas

perquirições melancólicas, tomava quantias exorbitantes de chá preto e ficava detido

diante da lareira, nutrindo pensamentos sobre fantasmas. Padecia de uma “melancolia

                                                                                                                         143 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, In Escritos da Maturidade p. 136. 144 Jorge Luis Borges, “Samuel Johnson visto por Boswell. A arte da biografia. Boswell e seus críticos”, In. Curso de Literatura Inglesa, p. 141. 145 Citado a partir de Maurice Lévy, Boswell: un Libertin Mélancholique: Sa Vie, ses Voyages, ses Amours et ses Opinions (Grenoble: Université Stendhal, 2001) p. 102. 146 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, Escritos da Maturidade, p. 135. 147 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 33. 148 Erich Auerbach, Ensaios de Literatura Ocidental, p. 151.

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mórbida” e “horrível hipocondria”149. Tinha pavor de viver consigo mesmo. Por

contraste, Montaigne, nas “horas ociosas”, estava sempre atento aos seus devaneios,

punha-se a registrá-los, digeria-os no íntimo. Assim, disse este: “não fiz meu livro

mais do que ele me fez, livro consubstancial ao seu autor”150. Quanto a Johnson, disse

Hazlitt: “O homem era superior ao autor”151.

Se o Johnson biografado se destaca por algum ofício não foi por outro senão

aquele impudente de opinar sobre todos os assuntos, de viver em voz alta: “era este o

seu ofício; le esprit du corps”152. Para ressaltá-lo, Boswell apostou na força do

contraste. Life of Samuel Johnson é “uma verdadeira obra dramática, com diversas

personagens”153 que se movimentam, pensam, falam e vivem diante do leitor. Faziam

parte de sua seleta coterie alguns homens e mulheres públicos de evidente grandeza

pelo talento artístico e literário. Lá estão o pintor Joshua Reynolds, presidente da Real

Academia de Belas Artes, Oliver Goldsmith, poeta e dramaturgo irlandês, Elizabeth

Montagu, influente crítica literária e anfitriã de boa parte dos encontros do grupo, o

famoso ator shakespeariano David Garrick, o político e filósofo Edmund Burke, etc.

Contudo, todos eles, inclusive seu autor, o jurista e notável biógrafo, não aparecem

nessa obra como uma casta de homens públicos, de artistas e literatos154. Não são

nada além de bons companheiros, reservados à mesa, em relações de simpatia. Nada

pode ser menos pedagógico, menos pedante, do que a prosa fiada que Boswell registra

desses encontros.

Mas afinal, sobre o que falavam? Em um ensaio de 1847, “On Conversation”,

Thomas De Quincey se queixava da falta de inventividade nas conversas de um

círculo tão privilegiado, da ausência daquele princípio heurístico, que escapa ao

estudo dos livros porque próprio à conversação. Dizia ainda que alguns dos principais

tópicos de filosofia e literatura eram simplesmente negligenciados ou tratados com

desdém e sem profundidade, pois o terrível ditador das letras de seu tempo “tendia a

                                                                                                                         149 James Boswell, Life of Johnson, p. 47. 150 Montaigne, Os Ensaios, Livro II, “Do Desmentir”, p. 498. 151 William Hazlitt, “Sobre os ensaístas de periódico”, In. Revista Serrote # 22, p. 36. 152 James Boswell, Life of Samuel Johnson, p. 771. 153 Borges, Curso de Literatura Inglesa, p. 148. 154 Para uma discussão sobre a domesticação do círculo social de Johnson, que não se confunde com um retiro na vida privada, ver Jon Mee, “Proliferating Words, 1762-1797”, In. Conversable Worlds, pp. 81-133.

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ver todas as coisas somente pelo lado negativo, nunca pelo positivo ou criativo”155.

Que Johnson encarnou o espírito de contradição, nem ele nem Boswell relutariam em

admitir: “ele parecia”, diz Boswell, “ter prazer em contradizer, sobretudo quando

alguém expressava alguma opinião com ares de convicção” 156 . Mas talvez

devêssemos nos perguntar por que mesmo com todo o excesso de termos cortantes e

de seu aspecto grotesco e desastrado Johnson se apresenta ao leitor como um sujeito

simpático, uma espécie de Falstaff dos escritores, como sugere Hazlitt157.

“A melhor conversa – disse Johnson, e o fiel Boswell anotou

escrupulosamente – é aquela da qual nada em particular nos recordamos distintamente

senão o efeito geral, de impressão agradável”158. Mas então, se nos filiarmos na

fidelidade dos rasgos firmes dos retratos de Boswell, a conversa de Johnson não é das

melhores. Decerto Boswell não pretendeu que ela o fosse. Não há nela, por exemplo,

aquele “fluxo contínuo de conversação”159 que se observa em uma Elizabeth Montagu

ou em um Edmund Burke. Como observou Hazlitt: “Burke parece ter sido a única

pessoa que tinha alguma chance contra ele; o único pecado imperdoável da obra de

Boswell foi ter omitido propositadamente os seus combates de força e de

habilidade”160. Ainda sobre este último, disse Boswell, seja lá com quem ele topasse

nas ruas (não importava a classe social, pois Burke sabia tanto subir como baixar) se

com ele travasse uma conversa, ela seria agradável e distraída, como se ambos

estivessem pensando em voz alta. Após se despedir de Burke, diria a si mesmo: “lá se

vai um sujeito extraordinário”161. A conversa de Johnson, por contraste, era grosseira,

sem elegância ou beleza. O efeito geral que ela deixava no ouvinte era comparável,

disse Boswell, ao gosto de “mostarda no palato de uma criança”162.

                                                                                                                         155 Thomas De Quincey, “On Conversation”, In. De Quincey as Critic, pp. 141-3. Para uma discussão sobre o tema, ver o capítulo “Conversation in Decline: from raillery to reverie”, de Stephen Miller em Conversation: a history of a declining art (New Haven: Yale University Press, 2008), pp. 150-193. 156 James Boswell, Life of Samuel Johnson, p. 734. 157 Em “Sobre os Ensaístas de Periódico”, diz Hazlitt sobre a personagem Johnson: “Seus hábitos domésticos, a ternura para com os criados, a presteza em servir os amigos; a quantidade de chá forte que ingeria para refrear pensamentos melancólicos; os muitos trabalhos que relutantemente começava e irresolutamente abandonava; o reconhecimento honesto de seus erros e a indulgência para com as fraquezas dos outros (...); o encontro em Mitre com jovens damas que o admiravam, para dar-lhes bons conselhos, situação que, se não fosse explicada, faria com que ele passasse por Falstaff”, In. Revista Serrote #22, p. 37. 158 James Boswell, Life of Johnson, p. 1102. 159 Idem, p. 1278. 160 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, In. Revista Serrote #22, p. 37. 161 Boswell, p. 1279. 162 Idem, p. 1154 (grifo do autor).

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A data de publicação de Life of Samuel Johnson (1791) e sua imensa

popularidade, que se manteve firme desde seu aparecimento até pelo menos a

primeira metade do século XX, também dão o que pensar. Como as Reflexões sobre a

Revolução em França, de Burke, essa extensa biografia é a um só tempo monumento

e instrumento de demolição de uma era cujos primeiros sinais de ruína se tornaram

manifestos naquela última década do século XVIII. Talvez tenha sido por esse motivo

que Boswell escolhera para protagonizar suas conversas um autor da importância de

Johnson, cujas maneiras destoavam do senso de ordem e delicadeza dos modelos

classicizantes que ele próprio demonstrou pela sua argumentação e, sobretudo, pela

sua escrita.

Das conversas fáceis e fluidas, impressas nos folhetins de The Tatler e The

Spectator, à fala informe e sem regra de Johnson, tal qual registrada por Boswell, não

há retrocesso, mas complementaridade. Foi isso o que notaram os ensaístas de

periódicos do romantismo inglês, a primeira geração de escritores que se empenharam

na leitura receptiva e compreensiva de Life of Samuel Johnson163. A personagem de

Johnson, seu sense of humour e a maior liberdade quando discursava ofereciam um

contraponto àquele estilo fortemente homogêneo e equilibrado em todas as suas partes

que dominou a prosa ensaística de seu tempo. Em grau maior ou menor, encontramos

esse estilo em escritores tão díspares quanto Johnson, Shaftesbury e Hume. Uma de

suas marcas são as “leis rígidas”164, diz Hazlitt; isto é, o excesso de palavras de

origem latina, palavras longas, difíceis aos ouvidos ingleses, que dão a impressão de

sonoridade retumbante porque afastado das formas de dicção de sua gente. Sobre o

estilo de Johnson, diz Hazlitt: “não há nele nenhuma discriminação, nenhuma

preferência ou variedade. As únicas palavras de que lança mão são ‘altissonantes e

opacas’”165. Palavras que se enchem de ar, redondas, estufadas, brilhantes, pouco

importa se a matéria de que trata é “extensa ou curta, áspera ou suave, redonda ou

quadrada, diferente ou semelhante”166. Nada pode ser mais avesso ao estilo familiar.

Este, lembra o crítico, retomando um topos caro aos ensaios montaignianos167, quer

                                                                                                                         163 Além de Hazlitt e De Quincey, inúmeros outros escritores do romantismo inglês dissertaram acerca essa obra. Sobre Life of Johnson, disse Coleridge: “A fama do dr. Johnson repousa, hoje em dia, principalmente em Boswell. É impossível não se divertir com esse livro”, In. Passages from The Prose and Table Talk of Coleridge (London: Walter Scott, LTD, 1894), p. 246. 164 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 8. 165 CWH, “On Familiar Style”, 8, p. 243. 166 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 6. 167 Ver, por exemplo, o ensaio “Da educação das crianças”, capítulo XXVI, Livro I, pp. 216-265.

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que as coisas predominem sobre as palavras, que estas sigam aquelas, e não o

contrário. O falar seco, direto e cru de Johnson e sua “voz profunda e ressonante”168,

como mostarda no palato de uma criança, aguçaram os sentidos para aquelas formas

de expressão populares, condenadas por ele próprio como incorretas, as quais seus

ouvintes mais atentos, a exemplo de Boswell, aplicaram-se no seu aproveitamento

artístico.

Para a nova geração de ensaístas de periódicos, como a dupla Hazlitt e Hunt, a

fala e os modos rudes, porém simpáticos e cordiais, da personagem Johnson

apontavam para a capacidade imperecível de renovação do estilo familiar e para um

maior equilíbrio entre as virtudes cívicas e as que se formam e se exigem junto à

lareira169. As formas de expressão e conduta morais excessivamente polidas de um

Addison ou Hume, por exemplo, bem como a crença na superioridade de um único

modelo estético sobre os demais – no caso, o francês –, fizeram progredir a antipatia

da classe letrada pelo povo e embruteceram seus ouvidos ao clamor áspero da voz

humana que naquela virada de século, pela primeira vez, tornara-se sublime.

Trataremos com mais profundidade deste tema no próximo capítulo.

Dissemos mais acima que os autores de The Round Table não só

reconheceram seu débito para com os ensaios de Steele e Addison, como se

empenharam na imitação de suas maneiras (manners), daquele modo instrutivo e

agradável de falar sobre coisas vãs. Se The Spectator foi bem sucedido no seu projeto

de reformar os costumes, educar a sociedade e trazer a filosofia para a esfera

pública170, haveríamos de concluir, pergunta Hunt aos seus leitores na “Introdução” a

The Round Table (1817), que a sociedade progride em marcha uniforme e triunfante?

De modo algum. Pois, diz o autor: “todo progresso em geral (...) tende a se

                                                                                                                         168 Boswell, Life of Johnson, p. 1387. 169 Sobre a confluência entre as virtudes cívica e as domésticas, ver o ensaio XXXIX “A Day by the Fire”, de Hunt em The Round Table. Segundo o autor, a contribuição inglesa para a civilização será a de sociabilidade íntima e democrática que os ingleses cultivaram junto à lareira para se protegerem do mau tempo. Em comentário sobre esse ensaio, o importante estudioso do romantismo inglês, Gregory Dart, chama a atenção para as inúmeras referências que o ensaio faz ao mundo clássico (por exemplo, a chaleira transformada em urna grega pela corrosão do tempo), e cujo propósito, diz o crítico, “é transformar um dos ambientes mais comuns e ubíquos da casa em pequeno elo com o passado grandioso, sob a sugestão ousada de que todo aquele que meramente se reúne junto ao fogo, quer ele saiba quer não, participa de uma rica história cultural”. Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: cockney adventures, p. 3. 170 Sobre a forma dialógica e sua proximidade com o mundo da conversação nos ensaios de Addison e Steele e sobre o quanto este método contribuiu para a formação da esfera pública, ver Jürgen Habermas, “Instituições da Esfera Pública”, In. Mudança Estrutural da Esfera Pública, pp. 58-9.

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exceder”171. Ou, nas palavras de Hazlitt, retomando uma formulação de Rousseau: “o

excesso de refinamento produz igual grosseria”172. Como moedas de uso corrente ou

peças de vestuário, “a superfície da sociedade”173, o estilo e as maneiras se esgarçam

com o tempo. Uma de suas consequências – segundo o sarcasmo com o qual Hazlitt

abre o perfil “Mr Coleridge”– é que “a época atual é uma época de faladores

(talkers)”174. Para se reconciliar com o público leitor e contrabalancear a presunção e

a insipidez do excesso de gosto da chamada gente de boas maneiras, fazia-se

necessário ao ensaísta de periódico daquele início de século confessar suas origens

modestas, de costumes um tanto rudes, e a vanidade de escritor – sem a humildade de

fachada e o “orgulho nobiliárquico”175 de um Montaigne. E, ao mesmo tempo, como

advertia Hunt, com o cuidado de não despertar no público o “repúdio à suavidade”176.

Em “On the Literary Character”, ensaio de número XLV de The Round Table,

Hazlitt ironiza aquela fraternidade rarefeita entre os escritores. O tom de censura se

manifesta logo de início com a citação de um longo trecho da resenha de Francis

Jeffrey, editor da Edinburgh Review e seu futuro empregador, sobre Correspondence,

obra do famoso Barão Grimm, há pouco publicada em inglês. No trecho selecionado

por Hazlitt, Jeffrey ressalta o engenho (wit) e a crueldade (heartlessness) como

ingredientes essenciais da sociedade polida: “a mesma irritação pela uniformidade e

paixão pela variedade que conferem tamanha graça às suas conversas [de pessoas da

sociedade polida], porque excluem todo tédio e toda disputa teimosa, tornam essas

mesmas pessoas incapazes de se demorar por um único instante nos sentimentos e nas

ocupações dos outros (...), e as tornam igualmente avessas à simpatia séria e aos

pensamentos profundos”177.

Nas palavras de Hazlitt:

                                                                                                                         171 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817, pp. 12-13. 172 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 136. A passagem de Rousseau que o trecho evoca é do Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Na continuação do argumento, diz Hazlitt: “Disso decorre o severo sarcasmo de Rousseau ‘Tout homme réfléchi est méchant’”, p. 136. 173 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817, p. 12. 174 CWH, “Mr Coleridge”, 11, p. 28. 175 Starobinski, “É possível definir o ensaio?”, Revista Serrote # 10 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012), p. 45. 176 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817, p. 14. 177 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 132.

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Os literatos não se apegam à pessoa de seus amigos, mas a suas mentes e as

examinam sob a mesma luz com as quais leem os livros de suas bibliotecas, e as

leem até se cansar. Em encontros casuais, a amizade nasce do hábito. A gentileza

mútua gera o afeto mútuo. Os inúmeros e pequenos acontecimentos locais

fornecem, no curso de uma longa intimidade, aqueles tópicos agradáveis de

recordação, os quais são, entre essas pessoas, quase as únicas fontes de conversa.

Há um prazer imediato na companhia um do outro. Mas entre escritores, nada

disso ocorre. As circunstâncias triviais e locais estão aquém da dignidade

filosófica. Nada mais é tolerado senão a esperteza de um, ou a sabedoria do outro

(...). Quando nos cansamos de um livro, deixamo-lo de lado, mas não é fácil

deixar nossos amigos na estante quando nos cansamos de sua companhia. A

necessidade de manter as aparências, portanto, acrescenta ainda mais ao

descontentamento de ambos. Com o tempo, a indiferença estimula o desprezo178.

O ensaísta moderno deve saber reconhecer o lugar do outro na conversa sem

aquela posição ligeiramente superior porém sedutora do gentleman. Ele ou ela já não

se dirige apenas ao leitor dos círculos domésticos e privados (como fazia Montaigne)

ou ao público de leitores elegantes (como faziam Steele e Addison), mas também

acolhe as lavandeiras e as hard-working tecelãs, tais quais aparecem nos ensaios de

Hunt e Lamb respectivamente179.

Por outro lado, diz Hazlitt, “não há nada mais pedante do que a afetação de

liberdade de pedantismo”180. Aquele que escreve quer enredar o leitor “nos labirintos

infinitos de sua imaginação”181. Em comentário sobre esse ensaio, a estudiosa de

Hazlitt, Uttara Natarajan, nos lembra do demasiado solipsismo do autor, apontando o

quanto se expõe e critica a si próprio em “On the Literary Character”182. O uso do

pronome na primeira pessoa do plural (“when we are tired of a book”) reforça seus

laços com a classe de escritores. Ou melhor, talvez devêssemos dizer, com uma classe

específica de escritores. Hazlitt não assumiu a posição senhoril do “fazedor de

                                                                                                                         178 Idem, p.134. 179 O ensaio de The Round Table de número XLIV, escrito por Hunt, recebe o título “On Washerwomen”, pp. 177-188. Sobre o ensaio de Lamb, ver a nota 79 acima. 180 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, pp. 34-5. 181 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 133. 182 Ver Uttara Natarajan capítulo 5, “Essay Political and Familiar: two aspects of Hazlitt’s ideal”, In. Hazlitt and the Reach of Sense: criticism, morals, and the metaphysics of power, pp. 166-190.

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livros”183, mas antes preferiu aquela cigana do ensaísta de jornal, “que toda noite arma

sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”184. Quase todos os ensaios de The Round

Table foram primeiro confiados à imprensa periódica (The Examiner, Morning

Chronicle, etc.) antes de serem reunidos em livro. Entre a originalidade dos

momentos poéticos, que “cria mundos fictícios em torno de nós”185, e o truísmo mais

corriqueiro, o leitor de The Round Table é frequentemente arrastado para dentro da

movimentação do pensamento de seus autores. Pela força do estilo e pela honestidade

das observações, se exige do leitor uma participação ativa. Desse modo, lembra Hunt,

a mesa redonda é uma expressão tomada de empréstimo tanto daquelas “associações

românticas” que evocam os tempos do Rei Arthur e a távola redonda, na qual se

admitia por membro apenas quem “vencesse o chefe”, quanto de outras, mais ao rés-

do-chão; numa palavra, a “mesa de jantar”186 de todo o dia.

Daí a aposta no estilo conversacional ou familiar de que o trecho acima dá

testemunho. “Como escritor”, diz Hazlitt, “esforço-me por empregar palavras simples

(plain words) e frases próprias ao uso popular”187. Exemplo disso são as frequentes

expressões idiomáticas: they look upon; friendship grows out; nothing will go down;

etc. Acrescenta-se a elas a sintaxe descomplicada e direta, costurada por frases

simples com um número ínfimo de orações subordinadas. Entre uma afirmação e

outra, o leitor pode sentir o efeito contínuo de espontaneidade que o autor

intencionava. Como se pudéssemos “ouvi-lo falar e ver seus gestos”188. Conjunções e

ligações sintáticas são frequentemente omitidas, o que faz com que o leitor suponha o

que muitas vezes é apenas sugerido. Noutras palavras, diz Hazlitt, “o leitor divide a

tarefa da compreensão com o escritor”189 – a contrapelo da tese de Coleridge, reposta

                                                                                                                         183 A expressão “fazedor de livros” é de Montaigne. Nas palavras do autor: “Sou menos fazedor de livros do que de qualquer outra tarefa”, Os Ensaios, Livro II, p. 675. Em comentário sobre ela, diz Hazlitt: “Montaigne foi o primeiro autor não fazedor de livros e o primeiro que escreveu não para converter os outros a crenças e preconceitos estabelecidos, mas para satisfazer a própria mente com a verdade das coisas”. In. Revista Serrote n. 22, pp. 21-2. Nesse sentido, a passagem de Montaigne e o comentário de Hazlitt põem em cheque a interpretação de Auerbach, quando ele diz: “ele [Montaigne] foi o primeiro faiseur de livres na acepção atual – nem poeta, nem erudito, mas autor de livros: escritor”, Ensaios de Literatura Ocidental, p. 151. 184 Em uma crônica intitulada “O Manifesto”, Rubem Braga expõe o credo e os ofícios do cronista. À diferença dos escritores que “fazem livros que são verdadeiras casas e ficam”, o cronista (ou o ensaísta) de jornal é como o cigano. Crônicas Escolhidas, p. 263 (grifo nosso). 185 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 133. 186 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817. pp. 8-9. 187 CWH, “On Familiar Style”, 8, p. 244. 188 Auerbach, “L’Humaine Condition”, In. Mimesis: a Representação da Realidade na Literatura Ocidental, p. 254. 189 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódico”, In. Revista Serrote #22, p. 28.

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por Jon Klancher, segundo a qual a falta de conectivos lógicos serve unicamente para

“aliviar a mente do peso das recordações”190.

Assim, na frase: “Nada mais é tolerado senão a esperteza de um ou a sabedoria

do outro” (bem ao gosto do autor por aforismos), a imagem cômica e sádica do

escritor que se ocupa do outro como dos livros de sua biblioteca, até se cansar, recebe

um contorno mais leve. Mas, porque o familiar essay está sempre reinventando seu

objeto, como em uma conversa saudável em que, dizia Hunt, passa-se de um tema ou

de um argumento a outro como se “passam caixas de rapé numa roda de amigos”,

“estimulando a atenção dos leitores”191, a imagem do livro/amigo mal acomodado

sobre a estante dá uma nova inflexão ao argumento. O que se diz aqui é que aquela

amizade compreensiva, sem sacrifício de temperamento entre um e outro, é

insustentável entre escritores – ao menos enquanto se mantém aquele ar de

superioridade que é um dos seus mais desagradáveis e mais frequentes defeitos. “Os

escritores, em geral, são péssimos ouvintes”, diz Hazlitt: “Alguns dos melhores

faladores (talkers) são, por esse motivo, as piores companhias”192.

Por contraste, a exemplo da relação entre o biógrafo e o biografado em Life of

Samuel Johnson, ou a de Montaigne com seus leitores póstumos, os ensaios familiares

(familiar essays) de Hazlitt (sobretudo os que escreveu em parceria com Hunt)

apelam para o entendimento de seus leitores na intimidade e com cordialidade193.

Talvez nenhum outro adjetivo seja mais frequentemente usado por Boswell do que

cordial. Seu sentido é aquele mesmo sentido etimológico que Sérgio Buarque de

Holanda finamente reconstituiu – não por acaso a personagem de Johnson é citada

nesse ensaio seminal da antropologia brasileira194. Entre as muitas idiossincrasias de

                                                                                                                         190 Apud Jon Klancher, The Making of the English reading audiences, 1790-1832, p. 155. 191 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817. p.10. 192 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 39. Em “Hazlitt’s Rhetorical Style”, Ian Patel argumenta que, para Hazlitt, a base para o estilo conversacional é a abertura; isto é, ela é meio pelo qual o escritor se esforça para promover um nível democrático com seus leitores. O cerne da crítica de Hazlitt aos escritores de seu tempo é que eles frequentemente assumiam uma posição oracular, ao invés de sustentar um diálogo em que os argumentos e as opiniões dos outros fossem igualmente acolhidas. “Hazlitt’s Rhetorical Style”, In. The Hazlitt Review Volume 2 (London: The Hazlitt Society), pp. 33-38. 193 Ver Marie Hamilton Law, Chapter V, “Self-Revelation”, In. The English Familiar Essay in the Early Nineteenth Century: The Elements Old and New which went into its Making as Exemplified in the Writings of Hunt, Hazlitt and Lamb, pp. 184-219. 194 Buarque de Holanda lembra um trecho de Life of Samuel Johnson no qual o doutor fazia elogio à educação pela vara, cujo efeito termina em si, “ao passo que se forem incentivadas as emulações e as comparações de superioridade, lançar-se-ão, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmãos e irmãs se detestem uns aos outros”. Raízes do Brasil, “O homem cordial”, (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), p. 145.

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Johnson, ele nutria um ódio especial pelos escoceses195, com a exceção espantosa de

seu biógrafo. Pois seu preconceito vinha do coração. Para ele, lembra Boswell, “a

amizade é uma gota cordial, ‘para que o caldo nauseante da vida seja absorvido

melhor’”196. “A inimizade”, dizia Buarque de Holanda, “bem pode ser tão cordial

como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem assim da esfera

do íntimo, do familiar, do privado”197. Com suas práticas de ensaístas de periódicos

populares, Hazlitt e Hunt incorporaram essa ética de fundo emotivo para melhor ouvir

os interesses e as necessidades de seus leitores. “Quanto a mim”, dizia Hunt, “um

ensaísta de periódico é o escritor que reivindica intimidade especial com o

público”198. Contudo, a essa ética eles acrescentaram um leve, porém decisivo desvio.

Contra a tirania e a dominação do homem pelo homem, que ressurgia com alarme

naqueles anos pós-batalha de Waterloo e Congresso de Viena, o ideal humanista de

liberdade íntima e compreensão generosa – impresso sob a forma do ensaio – era

domesticado, servido à mesa, resguardado à luz do fogo honesto. A familiaridade se

fazia instrumento político.

                                                                                                                         195 No seu Dictionary, Johnson define a palavra oats [aveia] da seguinte forma: “grau que, na Inglaterra é usado para alimentar os cavalos; na Escócia, para alimentar os homens”. Samuel Johnson, Dictionary of the English Language (London: J. & P. Knapton, 1755), shelfmark: 680.k. pp.12,13. Registra-se aqui meus sinceros agradecimentos a John Milton, por ter chamado a minha atenção a esta passagem. 196 Boswell, Life of Johnson, p. 1020. 197 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 205 (grifo do autor). Em “Why Distant Objects Please”, Hazlitt diz que seus piores inimigos, os articulistas da imprensa conservadora, sequer merecem dele que ele “os odeie cordialmente”, CWH, 8, p. 263. 198 Leigh Hunt, “On Periodical Essays”, In. The Selected Writings of Leigh Hunt, 6 vols (London: Pickering & Chatto, 2003), Volume 1, p. 35. Sobre o tema, ver Dart “The politics of familiarity”, In. Metropolitan Art and Literature, pp. 10-13.

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Capítulo 3

As ruas da metrópole: rios de vida humana...

“Dia e noite, sem parar, correntes humanas palpitantes iam e vinham do coração

desta grande transformação, incessante, como sangue vital.”

Charles Dickens, ‘Dombey e Filho’1.

1. O Adversário

“Et voilà la Table Ronde dissoûte”2. A derrota de Napoleão na batalha de

Waterloo acertou Hazlitt em cheio. É bastante conhecido o relato de amigos que o

viram, naqueles meses pós-Waterloo, caminhando pelas ruas com ar circunspecto,

olhos no chão, embriagado, riso triste e passo demorado3. Esse evento, cuja presença

é constante, porém velada, em seus ensaios – “prefiro jamais mencioná-lo”4 –, teve

um impacto decisivo em sua vida pessoal e na forma que viriam adquirir seus escritos

desde então. Ele representou o fim de um ciclo que se iniciara com a Revolução

Francesa e a primeira infância do autor, “quando as esperanças e as expectativas da

raça humana pareciam se abrir no mesmo caminho feliz de nossas próprias”5;

representou também o rompimento com o círculo de escritores, sobretudo os poetas,

para os quais Waterloo significou a salvaguarda das soberanias nacionais, para Hazlitt

o que estava em curso era precisamente “o triunfo do despotismo e da escravidão por

todo o mundo”6; e representou ainda uma gradual abertura e aproximação da gente

comum, de “suas carências e anseios urgentes”7 e de suas formas de expressão.

                                                                                                                         1 Charles Dickens, Dumbey and Son, (London: Penguin Classics, 2002), p. 245. Citado segundo a tradução de Paulo Henriques Britto, In. Raymond Williams, O Campo e a Cidade, na História e na Literatura (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011), p. 275. 2 CWH, 4, p. xii. 3 O pintor Benjamin Haydon disse a seu respeito: “Parecia prostrado, no corpo e na mente; caminhava ao léu, sem tomar banho, com barba pôr fazer, intoxicado à noite, literalmente, e sem exageros, por semanas. Por fim, despertou, por assim dizer, de seu estupor; abandonou, de uma vez por todas, o estímulo do álcool e a partir de então nunca mais o tocou”. Autobiography, citado a partir de Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 180. Segundo Wu, a afirmação de que Hazlitt abandonou de vez a bebida alcoólica é questionável, pp; 180-1. 4 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 38. 5 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 18. 6 CWH, “The Life of Napoleon”, 15, p. 259. 7 CWH, “What is the People?”, 7, p. 259.

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Tudo isso contribuiu para a prosa tersa e argumentativa, o estilo escorreito, o

gosto pela controvérsia e pela provocação, o tom irônico (também auto-irônico) e a

decisiva incorporação da fala coloquial inglesa que caracterizam os ensaios da fase

madura do autor. Não cabe aqui analisar sua louca paixão por Bonaparte.

Ressaltemos, apenas, o sentido que esse evento teve para o autor; isto é, a inversão da

corrente e o corte com a perspectiva da revolução. O novo contexto lhe cobrava um

gesto menos afeito às atitudes do retratista e do amigo, sobre as quais falamos nos

capítulos anteriores. Numa palavra, a resistência à onda conservadora requeria a

oposição dura e exata de um adversário bem armado.

Para uma maior clareza do tom de enfrentamento e das ressonâncias políticas

mesmo nos ensaios mais pessoais do autor, sobretudo os da fase de The Plain

Speaker, que nos interessam em particular, falemos, em linhas gerais, sobre o chão

sóbrio da história à qual eles estão firmemente aderidos. Pelo o que e contra quem se

lutava?

No plano econômico e social, as guerras napoleônicas deixaram a Inglaterra

aos frangalhos. Naqueles anos, segundo Duncan Wu, biógrafo de Hazlitt, “a dívida

nacional chegou a £84 milhões”. As más colheitas e a Lei do Milho [Corn Law]

impulsionavam um contingente migratório que afluía em grande número para os

centros urbanos. Lá, com a introdução de novas tecnologias, essa massa, desprovida

de quaisquer direitos, foi relegada à pobreza e achacada de inúmeras maneiras. “Essas

condições”, continua Wu, “criou dois milhões de indigentes, em um país de dezenove

milhões.”8 O historiador E. P. Thompson lembra ainda que os setores mais atingidos

pela crise foram, justamente, os da indústria básica: “o ramo da relojoaria e a indústria

da seda.”9 Na cidade e no campo, o desemprego e a fome davam o tom geral que

marcaria a sociedade inglesa durante boa parte do século XIX. Em um contexto como

esse, escreveu Hazlitt, era impossível a alguém “se passar por neutro”10. Entretanto,

foi essa a postura dos defensores da legitimidade dos governos nacionais, isto é, de

ambos, liberais e conservadores, cujos sentidos, adormecidos à presença ubíqua da

miséria do povo, só despertaram com muito barulho.

                                                                                                                         8 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 192. 9 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, Livro 3: A Força dos Trabalhadores, p. 293. 10 CWH, “On the Clerical Character (concluded)”, 7, p. 255.

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Aqueles anos pós-Waterloo ficaram conhecidos, segundo a formulação

célebre de E. P. Thompson, como “a era heroica do radicalismo popular.”11 À

diferença da década de 1790, quando os poetas e partidários da revolução conceberam

“a ideia da pantissocracia: uma sociedade comunista, livre e igualitária”12, o novo

contexto exigia um impulso mais rente ao chão e que respondesse com firmeza a cada

manobra do Estado de reduzir ao pó os direitos e as condições exíguas das “classes

industriosas”13. Foram elas, diz Thompson, que estavam por detrás do movimento de

reforma parlamentar: a solução imediata que se buscava naqueles dias. Por mais

fragmentado e mesmo frágil que fosse o movimento, ele ganhou forças nas mãos de

homens de imprensa. Entre eles, William Cobbett, a quem devemos a criação da

“cultura intelectual radical”14. Seu instrumento foi o periódico Political Register, a

novidade jornalística que Cobbett lançou no mercado após regressar do cativeiro, em

1812. Vendido semanalmente a preço de banana, o two-penny trash, nome de batismo

que o periódico recebera por parte dos inimigos, informava, em linguagem simples e

direta, os leitores ou ouvintes (pois os panfletos eram lidos em alto e bom som nas

tavernas) sobre “abusos fiscais, corrupção, sinecuras, acumulação de cargos,

benefícios clericais”15, etc., e os convocava à ação.

Duas das principais manifestações populares por melhorias no trabalho e

maior representatividade política, Spa Fields e Peterloo, foram direta ou

indiretamente incitadas por Cobbett, bem como, é claro, por Henry Hunt, “o orador

nas grandes assembleias pela reforma”16. Se a última dessas manifestações, Peterloo,

tornou evidente que a aristocracia não brincava naquele país – ao fim do protesto,

onze pessoas foram mortas e quatrocentas saíram gravemente feridas –, ela “instituiu

(por um paradoxo dos sentimentos) o direito de manifestação pública” 17 , deu

engrenagem à luta pela democracia e fortaleceu os laços entre a intelectualidade e a

vida popular, pois, dizia Hazlitt, “Cobbett não é apenas o mais poderoso escritor

político dos tempos de hoje, ele é também um dos melhores escritores de nossa

                                                                                                                         11 Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, p. 247. 12 Octavio Paz, Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda (São Paulo: Cosac & Naify e Fondo de Cultura Economica, 2013), pp. 50-1. 13 Em inglês, labouring classes. Expressão da época para se referir à classe trabalhadora. Hazlitt a emprega em diversas passagens de seus escritos. Por exemplo, em “Project for a New Theory of Civil and Criminal Legislation”, CWH, 19, p. 319. 14 Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, p. 467. 15 Idem, 247. 16 Idem, 277. 17 Idem, 427-8.

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língua.”18 Foi esta última a aposta que fizera a imprensa radical e também, de um

modo todo próprio, o nosso autor.

Neste capítulo, abordaremos a ensaística hazlittiana a partir de suas

interfaces com o movimento radical, ressaltando, entretanto, o que há de singular

nela. Hazlitt investe contra todos os lugares-comuns dos jornais, seja da imprensa

conservadora, liberal ou radical: a liberdade de espírito é a palavra de ordem contra

certas forças opressoras do momento. Ao mesmo tempo, acompanharemos o ensaísta

“caminhando pelas ruas de Londres”19, deslizando entre a multidão anônima. A

intoxicação ou “a alquimia das ruas”20, para fazer valer a expressão de Charles Lamb,

foi o combustível para seguir adiante em um período em que os poetas e antigos

mentores de Hazlitt (Coleridge, Wordsworth e Southey) abandonaram a fé no povo e

“jogavam água fria” em suas “esperanças públicas.”21

2. ‘Good Hater’: resistência à ‘maré furiosa’22.

Henry Crabb Robinson, possivelmente o principal moderador das infindas

disputas entre os escritores do romantismo inglês, sintetizou a fonte do pensamento

hazlittiano na seguinte passagem de seus Diários:

Mais do que qualquer outra pessoa que eu conheça, ele [Hazlitt] mistura suas

paixões, mau-humor e sentimentos pessoais aos juízos sobre os eventos públicos e

as personalidades e isso deprecia enormemente o valor de suas opiniões, que,

dado os raros talentos que possui, seriam de outro modo valiosíssimas. Ele sempre

reivindicou Bonaparte não porque fosse insensível à enormidade de seus crimes,

mas por desprezo aos Tories deste país e aos amigos da guerra de 1792.23

O trecho reflete sua incompreensão ante o ensaísta, partilhada entre os velhos

amigos, quando soube do efeito devastador que a derrota de Bonaparte exercera sobre

                                                                                                                         18 CWH, “Character of William Cobbett”, 8, p. 50. 19 CWH, “On the Look of a Gentleman”, 12, p. 217. 20 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I (New York: AMS Press, 1903), p. 40. 21 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, Revista Serrote 9, p. 23 e 29. 22 Idem, p. 28. 23 Henry Crabb Robinson, Henry Crabb Robinson on Books and their Writers, Volume I (London: J. M. Dent, 1938), p. 133 (grifo nosso).

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ele. Crabb Robinson, seu companheiro de bom convívio em outros tempos 24 ,

identificava assim a função cardinal do desprezo, ou do ódio, na confecção das

opiniões do autor, sobretudo no terreno da política. Sua percepção, ao menos num

primeiro momento, está de par com a de Hazlitt: “para ser um verdadeiro jacobino é

necessário a um homem que ele seja a good hater.”25 Porém, como veremos na

sequência, o ódio, para Hazlitt, cumpria antes um papel de resistência e tinha, por

assim dizer, um efeito de expurgação ou de desintoxicação.

A expressão paradoxal e provocativa, “good hater”, não é, como se sabe,

uma invenção dele. Ela fora tomada de empréstimo a Samuel Johnson, que a cunhara

em um contexto igualmente moral e político, porém, em sentido distinto ao de nosso

autor. Em conversa com a sra. Piozzi sobre o amigo que há pouco os deixara, Richard

Bathrust, disse Johnson a seu respeito: “ele odiava um tolo, odiava um trapaceiro,

odiava um whig; foi, verdadeiramente, a good hater.”26 No capítulo anterior, falamos

mais amplamente sobre o sentimento de amor e ódio que Hazlitt nutria por Johnson: o

amor pelo homem, pela “encenação dramática de suas conversas”, pela sua

honestidade, cordialidade e determinação; e o ódio pelo autor, por suas teses

escolásticas, pela “pompa e uniformidade do seu estilo”27 e sua moral melancólica e

debilitada. Das muitas dissonâncias entre ambos, a política era uma delas. Johnson foi

um conservador empedernido, um tóri; por isso o respeito por alguém como Bathrust,

que odiava os liberais, os whigs. Hazlitt, de sua parte, tampouco foi um whig e, desse

modo, o que ele propõe não é uma simples inversão da fórmula johnsoniana, como o

trecho de Crabb Robinson poderia sugerir. A good hater consiste em uma tomada de

posição a contrapelo dos partidos políticos existentes, conservador e liberal, e, em

certo sentido, dos reformadores.

Seguindo a voga crítica sobre o chão histórico, isto é, cultural e político, nos

estudos de romantismo inglês, Kevin Gilmartin oferece, a nosso ver, uma análise

distinta, pois liga os pontos entre a invenção artística e o ensaio de intervenção. Tanto

em seu recém publicado livro, William Hazlitt: Political Essayist (2015), quanto em

trabalhos anteriores, em particular o também brilhante “Afterwords: William Hazlitt –

                                                                                                                         24 Sobre as relações entre Hazlitt e Robinson, também em conexão com a expressão good hater, ver o artigo de Philipp Hunnekuhl, “Hazlitt and Crabb Robinson: The Commun Persuit”, In. The Hazlitt Review, Volume 6 (London: The Hazlitt Society, 2013), pp. 13-34. 25 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p. 151. 26 Samuel Johnson, Johnson Miscellanies, ed. George Birkbeck Hill 2 vols. (Oxford: Oxford University Press, 1897), i, p. 204. 27 William Hazlitt, “Sobre os ensaístas de periódicos”, tradução minha, Serrote # 22, pp. 37 e 33.

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a radical critique of radical opposition?”, em Print Politics (1996), o estudioso

ressalta a persistência das convenções retóricas dos radicais, de um William Cobbett,

por exemplo, nos ensaios de Hazlitt: as transições bruscas e inesperadas, a energia de

improviso, “o ritmo combativo, vernacular, atual e mesmo apocalítico”28. Este é o

caso da série “Illustrations of The Times Newspaper”. Publicados orginalmente no

periódico de Leigh Hunt, The Examiner, entre 1º de dezembro de 1816 e 12 de janeiro

de 1817, e reunidos posteriormente em livro, Political Essays (1819), são três os

ensaios que a compõe: “On Modern Apostates”, “On Modern Lawyers and Poets” e

“On the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”. É deste último que extraímos

a passagem sobre, nas palavras de Gilmartin, “a versão jacobina de Hazlitt do ‘good

hater’”. A série ainda faz parte de “uma longa sequência de ataques” à imprensa

conservadora e, desse modo, expressava o “compromisso [do autor] de resistência ao

poder estabelecido e sua filiação ao movimento de reforma radical”. O que se

confirma, segundo Gilmartin, “por um método crítico flexível que explora paradoxos

e contradições”, “urdido por princípios, animosidades e estilos” comuns ao “espírito

predominante do jornalismo popular e radical”.29

Entretanto, se lermos a expressão good hater à luz do hoje clássico ensaio do

autor, “Sobre o Prazer de Odiar”, como o próprio Gilmartin sugere, veremos que, ao

contrário do que diz o estudioso do autor, o ensaio de The Plain Speaker pertence, por

uma via sorrateira, ao “domínio específico da política”, as opiniões ali defendidas são

menos “inflexíveis” e “preconceituosas”30 do que parecem e o ódio se converte em

um bem apenas para aqueles capazes de provar do seu próprio veneno.

A meio caminho, o ensaísta, inquiridor da alma humana, desenreda os “fios

de maldade” em quatro situações específicas: “odiamos velhos amigos; odiamos

velhos livros; odiamos opiniões velhas; e, por fim acabamos por odiar a nós

mesmos”.31 Quanto às velhas opiniões, são, sobretudo, suas opiniões políticas que ele

as coloca na berlinda, como vemos neste trecho do parágrafo que encerra o ensaio:

Em vez de patriotas e amigos da liberdade, vejo apenas tiranos e escravos,

pessoas agrilhoadas a reis nas correntes do despotismo e da superstição. Vejo a

tolice aliada à patifaria juntas forjarem o espírito público e a opinião pública. Vejo

                                                                                                                         28 Kevin Gilmartin, William Hazlitt: Political Essayist, p. 54. 29 Idem, pp. 17, 15, 47 e 23. 30 Idem, p. 16. 31 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, Serrote # 9, pp. 29 e 19.

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o tóri insolente, o reformador cego, o whig covarde! Se a humanidade tivesse

optado pelo certo, podia ter conseguido acertar há muito tempo. A teoria é muito

simples, mas tende a erros, ‘impróprios para qualquer boa obra’. Vi tudo o que foi

feito pelas poderosas aspirações do espírito e do intelecto dos homens, ‘dos quais

o mundo não era digno’, e que prometia uma orgulhosa abertura à verdade e ao

bem com uma imagem do futuro, ser desfeito por um único homem, com brilho

bastante do entendimento para sentir que era um rei, mas não para compreender

como poderia ser rei de um povo livre! Vi esse triunfo celebrado por poetas,

amigos de minha juventude e amigos dos homens, mas que foram arrastados para

longe pela maré furiosa que, projetando-se desde um trono, abandonava as

distinções da razão diante da coroa; e vi todos aqueles que não aplaudiram esse

insulto e esse ultraje à humanidade serem proscritos, perseguidos (eles e seus

amigos fizeram disso um provérbio), de modo que se tornou bem compreendido o

fato de que ninguém pode viver de seus talentos ou conhecimentos se não estiver

disposto a prostituir esses talentos e esse conhecimento para trair sua espécie, e

ser um predador de seus pares humanos (...). E a Inglaterra, a arquirrefomadora,

redentora heroica, bravateadora da liberdade e instrumento de poder, fica

boquiaberta, não sente a geada e o mofo se acumulando, nem os próprios ossos

rachando e sendo esmagados sob as garras e as dobras concêntricas deste novo

monstro, a Legitimidade! (...) Vendo tudo isso que vejo, e desenredando a teia da

vida humana em seus vários fios de maldade, despeito, covardia, falta de

sentimento e de compreensão, indiferença para com o outro e ignorância de si

mesmo – vendo o costume prevalecer sobre toda a excelência, a concessão diante

da infâmia –, equivocado como tenho sido em minhas esperanças públicas e

privadas, calculando o outro por mim mesmo, e errando na conta; sempre

decepcionado onde mais tinha confiança; o bobo da amizade, o tolo do amor, não

terei motivos para odiar e desprezar a mim mesmo? Tenho de fato; principalmente

por não ter odiado e desprezado o mundo o bastante.32

Antes de nos determos a uma análise interna, ou estética, da passagem e à

imagem do ensaísta adversário que resiste à maré furiosa com sua crítica vivaz e

mordaz, “quando o costume prevalece sobre toda a excelência”, falemos, em linhas

gerais, deste que é um dos ensaios mais lidos e polêmicos do autor.

De saída, é importante ressaltar que “Sobre o Prazer de Odiar” não é uma

apologia ao ódio. Como bem observou o escritor Phillip Lopate, figura-chave do

ensaísmo norte-americano atual, o ensaísta é antes um observador que toma nota da

                                                                                                                         32 Idem, pp. 28-9.

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“presença ubíqua [do ódio] em nossas vidas e tenta dar uma resposta a este fato”33;

mas, vale ressaltar, suas observações não são em nada imparciais. De uma ponta a

outra, Hazlitt mistura a prosa íntima do familiar essay com a perícia do detetive;

acontecimentos de sua vida, suas opiniões e sentimentos (como notara Crabb

Robinson), com a observação desinteressada do antropólogo.

O ensaio se abre com uma descrição em tom narrativo do quarto em

Winterslow (onde confeccionou este e boa parte dos ensaios da fase The Plain

Speaker), quando uma aranha “de espécie edificante” atravessou-lhe o caminho. “Ela

depressa desliza descuidada, cambaleia desajeitada na minha direção.”34 Segundo

Lopate, Hazlitt, neste trecho, “imita a sintaxe dos passos hesitantes da aranha.”35 Seja

pelo seu veneno, pela má intenção a outras criaturas e pela mescla dos sentimentos de

“astúcia, despudor e medo”, a aranha é uma espécie de símbolo da maldade. A

princípio, há um contraste expressivo entre ela e o ensaísta, o que se nota, por

exemplo, no indeciso balanço rítmico daquela e a prosa escorreita e gesto fácil deste:

“quando passa por mim, levanto o tapete para ajudar em sua fuga, feliz por me ver

livre da intrusa ingrata”. Hazlitt não a esmaga “como uma criança, uma mulher, um

clown ou mesmo um moralista do século passado” teriam feito; antes, ele é

condescendente para com ela e a observa com certa empatia. Ainda assim, a simples

visão da aranha desperta nele “uma espécie de horror ou asco supersticioso”. Por um

elo místico, o escritor – homem lido, filho dos progressos civilizatórios – se vê parte

de uma “tribo maldita” que ultrapassa as barreiras do tempo, da cultura ou mesmo da

espécie, e isso sem que qualquer demonstração externa de maldade fosse necessária,

pois, “o espírito malévolo sobrevive a seu próprio exercício”.36

Daí em diante, segue-se uma enxurrada de exemplos sobre esse “prazer

perverso e venturoso na maldade”, colhidos da observação da natureza, da cultura, de

efemérides do dia-a-dia e da literatura: os animais atormentam uns aos outros por

esporte; nos jornais, corremos primeiro às notícias “sobre acidentes e agressões”; os

espectadores preferem deixar o teatro às moscas para assistir a uma execução pública;

os patifes, idiotas ou loucos são motivos de chacota; as efígies de Guy Fawkes são

queimadas anualmente em cada vilarejo inglês; os pregadores evangélicos falam mais

sobre o diabo e o inferno do que sobre Deus e as bênçãos dos céus; “os canibais                                                                                                                          33 Philip Lopate, “Hazlitt on Hating”, In. To Show and to Tell: The Craft of Literary Nonfiction, p. 147. 34 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, p. 15. 35 Lopate, To Show and to Tell, p. 148. 36 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, pp. 15 e 16.

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queimam seus inimigos e os devoram em clima de boa camaradagem”; os padres

cristãos lançam, “de corpo e alma”, no fogo do inferno quem quer que deles discorde;

o segredo do sucesso dos romances de Walter Scott se deve aos “preconceitos

arraigados e animosidades fatais” ali narrados, “à medida que lemos, deixamos de

lado os grilhões da civilização, o véu frágil da humanidade”; etc. “Que ser estranho é

o homem!”37

Na segunda metade do ensaio, quando o autor passa a falar de si próprio –

do ódio às velhas amizades, aos velhos livros, às opiniões e a si mesmo –, o tom geral

de desalento e amargor é ainda mais saliente; porém, de quando em quando, ele

aparece sob a capa do humor. É o que se nota nestas passagens: “velhas amizades são

como carnes servidas várias vezes, frias, desconsoladas, intragáveis. O estômago se

revolta”; “uma [bela] passagem, de fato, deixa no palato um sabor de néctar, (...) mas,

se a repetirmos sempre em tom corriqueiro, ela perde o sabor, fica vápida, ‘o vinho da

poesia é bebido, e só resta a borra’”; “quanto às minhas velhas opiniões, estou

profundamente enjoado de todas elas”. O que o humor evidencia, junto às passagens

citadas e segundo a interpretação que propomos aqui, é que o processo de resistência

começa no íntimo. Se o ensaio é um tribunal38, sua tribuna, para o ensaísta adversário,

é o estômago. É somente após ter “cuspido bastante [sua] bile”, examinado todas as

“fontes de insatisfação”, e ter respondido às agressões “com o pior veneno de [sua]

pena”39, isto é, somente após Hazlitt provar do veneno do mundo e de seu próprio que

ele se fortalece e se arma contra a maré furiosa. Em suma, “Sobre o Prazer de Odiar”

é menos o ponto de chegada do intelectual de esquerda desiludido com a vida do que

um exame da paralização necessária a este estágio que chamamos de fermentação.

Por isso a constância de imagens digestivas; por isso, também, o humor

corrosivo e a auto-ironia, que impedem toda fixidez. Mas vejamos de perto o

funcionamento desse princípio malévolo a partir dos argumentos filosóficos, por

assim dizer, que lhes serve de armação.

Investido da mola inquisitiva do ensaio e num primeiro esforço de

compreender a origem de nossos “impulsos mais desbragados”, Hazlitt diz: “sem algo

para odiar, acabaríamos perdendo o próprio ímpeto do pensamento e da ação”; “a vida

                                                                                                                         37 Idem, pp. 16, 19 e 17. 38 Gyorgy Lukács, “Sobre a Essência e a Forma do Ensaio: Carta a Leo Popper”, In. Serrote, 18 (Rio de Janeiro, Instituto Moreira Sales, 2014), p. 50. 39 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, pp. 20, 27, 28 e 23.

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se tornaria uma poça estagnada.”40 Não nos parece mera coincidência a semelhança

do argumento com aquele que lemos no Ensaio Sobre o Entendimento Humano de

John Locke: “o incômodo é o principal, senão o único, móbil da ação humana.”41 Há

decerto um consenso entre os estudiosos do romantismo inglês de que nenhum outro

escritor do período estivesse tão afinado quanto nosso autor ao debate filosófico do

século XVIII42. Isso, por sua vez, não o torna um empirista stricto senso. Nos Cursos

de Filosofia Inglesa, ministrados por ele em 1812, Hazlitt se demora ao rebater a tese

lockiana de que a faculdade do entendimento e seus objetos, as ideias, estabelecem

entre si um “circuito da afecção”43 segundo o qual um não subsistiria sem o outro, isto

é, de que a mente não é outra coisa senão uma “tela em branco” que se forma, assim

como as ideias, a partir da justaposição de diferentes impressões sensíveis. Pois, diz

ele, “toda a natureza, todos os objetos e todas as partes que a compõe são igualmente

‘vazias e vagas’. Apenas a mente é formativa, para fazer valer a expressão de um

grande escritor alemão [Kant].”44 Mas em “Sobre o Prazer de Odiar”, sem descer aos

pormenores da discussão filosófica, Hazlitt retoma uma das teses fundamentais da

filosofia do século XVIII, segundo a qual a dor, ou o incômodo, porque nos tira da

zona de conforto, põe em atividade o corpo e a mente de um modo que as sensações

prazerosas jamais seriam capazes de fazê-lo. Mas não a dor pura e simples; antes,

aquela imantada por um sentimento de prazer.

Os ecos da filosofia setecentista se confirmam logo baixo, quando Hazlitt se

vale de exemplos extraídos da Investigação sobre o Sublime e o Belo, de Burke:

Uma cidade inteira está pegando fogo, e o espectador não se anima de jeito

nenhum a desejar que apaguem o incêndio. Seria melhor que apagassem, mas

perderia o interesse; e nossos sentimentos preferem as paixões ao entendimento.

Os homens formam multidões ávidas de entusiasmo para assistir a uma tragédia,

                                                                                                                         40 Idem, pp. 17 e 16. 41 John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano (São Paulo: Martins Fontes, 2012), p. 238. 42 No trabalho seminal de Elizabeth Schneider, The Aesthetic of William Hazlitt: A Study of the Philosophical Basis of his Criticism (Philadelphia: University of Pennsylvania, 1933), a autora já ressaltava o quanto o pensamento filosófico de Hazlitt estava mais próximo aos autores do século XVIII (Burke, Hume, Smith, entre outros) do que à filosofia de seu tempo, inglesa ou alemã. Ver “Introduction”, pp. 1-9. 43 A expressão é de Pedro Paulo Garrido Pimenta. Ver “John Locke: origem e formação das ideias”, in: Mente, Cérebro & Filosofia: Fundamentos para a Compreensão Contemporânea da Psique 2. (São Paulo: Duetto Editorial, 2007), p. 26. 44 CWH, “On Locke’s Essay”, 2, p. 153.

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mas se houvesse uma execução em andamento na rua de cima, como observa o sr.

Burke, o teatro logo estaria vazio45.

Na Investigação sobre o Sublime e o Belo, esses exemplos cumprem o

propósito de definir a singularidade do sentimento do sublime, por oposição à beleza.

Nenhum autor antes dele melhor desenredou na alma humana aquela espécie de

prazer em situações “que desejaríamos veemente impedir”, mas, caso acontecessem,

nos regozijaríamos nelas; um prazer, dizia, que de modo algum coincide com a alegria

na contemplação do belo, pois “toldado pelo sentimento de horror”46. O exemplo de

Burke sobre os espectadores, “ávidos por entusiasmo”, que correm para ver a

execução na rua de cima, é, como se sabe, um desdobramento da tópica lockiana

quanto ao fascínio e à predominância da dor sobre o prazer – “o poder de operação do

prazer em nós não [é] tão grande quanto o da dor”47 – e ocorreu-lhe após a leitura de

um dos principais divulgadores da filosofia de Locke no continente, Abbé Dubos.

Assim, o sublime, para Burke, “a mais forte emoção de que o espírito é capaz”48,

guarda semelhanças com aquilo que ficou conhecido de “a poética da inquietude”49, a

saber, a ideia de que a busca por fortes emoções tem sua origem na fuga do tédio –

vale lembrar, a beleza, para Burke, “está próxima de uma espécie de melancolia”50 e

langor.

Será que o mesmo se dá com o prazer de odiar para Hazlitt, que seus

argumentos e exemplos servem antes para compreender por que a calmaria de uma

“poça estagnada” nos é tão aterradora? Sim, segundo a leitura de Lopate. “Depois de

sua estrutura inicial”, diz o ensaísta norte-americano, “o ensaio já não parece, de

modo algum, ser sobre o ódio, mas sobre a nossa inabilidade de sustentar o

entusiasmo”; ou ainda, noutro trecho, “de um ponto de vista psicológico, o que ele

                                                                                                                         45 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, p. 16. 46 Edmund Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo (Campinas: Editora Unicamp, 2013), pp. 68 e 59. 47 Locke, p. 239. Sobre o tema, ver Luiz Roberto Monzani, capítulo III, “Inquietude”, In. Desejo e Prazer na Idade Moderna (Campinas: Editora Unicamp, 1995), pp. 117-155. 48 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 59. 49 Sobre a expressão, “poética da inquietude”, ver Jean Deprun, “Poetique de L’Inquiétude”, In. La Philosophie de L’Inquiétude en France au XVIII Siècle (Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1979), pp. 65-80. Também sobre o tema, Marcio Suzuki, A Forma e o Sentimento do Mundo: Jogo, Humor e Arte de Viver na Filosofia do Século XVIII. 50 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 154.

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parece dizer é que não se chega à felicidade que buscamos por cessar a tensão, mas

por uma quantidade apropriada de estímulo, que deve ser sempre calibrada”51.

A hipótese de Lopate é tanto mais verdadeira se lermos “Sobre o Prazer de

Odiar” em paralelo com outro ensaio de The Plain-Speaker, “On Depth and

Superficiality”. Neste, Hazlitt mergulha fundo na alma humana e em sua própria de

um ponto de vista menos distanciado; ao mesmo tempo, ele é mais direto quanto à

ligação entre o prazer de odiar e a fuga do tédio: “o anelo ardente pela excitação

perniciosa e violenta é a causa de nossa indiferença pelo bem e propensão à maldade

(...); mas [é ela] que nos afasta da ennui.”52 Ainda que remédio da alma, a fuga do

tédio não nos parece, entretanto, estar na origem da maldade, como tampouco o era

para Burke. Na explicação do porquê nos deleitamos na contemplação da cidade em

chamas ou na execução pública, diz o filósofo: “fortalecemos”, assim, o nosso

“propósito ativo” de “socorrer o próximo”53; somente o prazer na dor é capaz de

anular a indiferença aos infortúnios dos outros. Hazlitt, que estudou o pensamento de

Burke em todos os seus meandros, aproveita a deixa, que é justa, para desenvolver a

tese, em “On Deapth and Superficiality”, de que o ódio e a inimizade “fortalecem

nosso senso de poder”54. A busca incessante pelo entusiasmo pode e é, no mais, a

contrapartida do tédio. Mas não àquele que participa da realidade com o intuito de

mudá-la. Numa palavra, não ao good hater.

Isto posto, voltemos à passagem acima sobre o ódio às velhas opiniões, bem

como ao seu desfecho implacável e acrimonioso sobre o ódio a si mesmo. Hazlitt

qualifica suas opiniões políticas de velhas e mofadas, e, assim, recua diante delas

como se recuasse de alguém que o magoou mortalmente. Isso se nota pelo modo

como ele as personifica: “elas tristemente me enganaram”. Por isso ele as observa

desconfiado e com certo distanciamento, sem o “ardor da afeição”, como velhos

amigos que “passam uns pelos outros nas ruas como estranhos ou, se param para

falar, fazem-no friamente e tentam encerrar o assunto o quanto antes”55. O próprio ato

de observá-las, a atitude do antropólogo desinteressado, expressa um recuo necessário

porém estratégico – não é se lançando contra a maré furiosa que se pretende vencê-la;

por isso também o recurso à figura de linguagem da anáfora: o verbo ver – “vejo”,                                                                                                                          51 Lopate, To Show and to Tell, pp. 156 e 150. 52 CWH, “On Depth and Superficiality”, 12, p. 349. 53 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, sobretudo, a Seção XIV “Os efeitos da simpatia pelos infortúnios de nossos semelhantes”, pp. 66-7. 54 CWH, “On Depth and Superficiality”, 12, p. 349. 55 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, pp. 28 e 20.

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“vi” – marca o início de cada sentença, de cada uma das velhas opiniões que desfilam

diante dos seus olhos. O emprego da repetição enfática, como observa Northrope

Frye, é uma característica peculiar à “retórica de ataque ou invectiva”56. Assim,

Hazlitt se mostra um observador a um só tempo arguto e abrasivo. A escolha do

verbo, bem como a alteração brusca, no meio do parágrafo, do tempo verbal – do

presente para o pretérito –, fazem-no uma espécie de visionário ou profeta, pois,

vendo a história em seu fluxo inclemente, um futuro se anuncia e este, dado o tom

geral do ensaio, assume um ar apocalíptico. Como observou Gilmartin, este é um dos

traços retóricos centrais à imprensa radical. Por meio dele os jornalistas expunham ora

“os pesadelos da realização catastrófica de um sistema de corrupção e exploração”,

ora “visões extáticas da súbita libertação popular da tirania e da desapropriação”57. No

trecho, as citações bíblicas, Epístola de Paulo a Tito e Hebreus, respectivamente, e a

comparação da Legitimidade a um monstro – quase uma besta do apocalipse, com

“suas garras e dobras concêntricas” – confirmam a adesão de Hazlitt às estratégias

retóricas dos radicais. O mesmo não ocorre, entretanto, com a resposta final que o

autor dá à pergunta que colocara antes: teria ele motivos para odiar a si mesmo? Sim,

“por não ter odiado e desprezado o mundo o bastante”.

Ficamos sem chão! A aranha reaparece rastejante agora na figura do ensaísta

“desenredando a teia da vida humana”. Seria um desfecho resignado, melancólico? A

aranha, como lembra Starobinski, a propósito de Baudelaire, faz parte do bestiário da

melancolia58. Mas, para Hazlitt, ela possui ainda outro sentido. No “Prefácio” aos

Ensaios Políticos, a aranha é símbolo do que há de mais maléfico, a Legitimidade:

“não sou leproso”, diz o autor, “as mentiras da Legitimidade não infringiram o veneno

mortal no mais íntimo de minha alma, tampouco, como uma aranha repulsiva,

enredou-me em suas dobras viçosas; não, ela se mantém à distância e se revolve em

seu próprio veneno.”59

Teria ele se permitido “uma dose extra de bile em [seu] estômago”, daí a

recorrência da “metáfora da ‘intoxicação’”, que, segundo Frye, é “frequentemente

empregada para a perda de controle retórico”?60 Um dos pontos que distinguiu Hazlitt

de outros jornalistas radicais, como Gilmartin frequentemente revela em seu estudo,                                                                                                                          56 Northrop Frey, Anatomia da Crítica: Quatro Ensaios, p. 494. 57 Gilmartin, William Hazlitt: Political Esayist, p. 136. 58 Starobinski, A Melancolia diante do Espelho: Três Leituras de Baudelaire (São Paulo: Editora 34, 2014), p. 47. 59 CWH, “Preface”, 7, p. 10. 60 Frye, Anatomia da Crítica, p. 495.

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foi o fato de ele “se valer da linguagem do inimigo”61. Assim, o ensaísta adversário,

good hater, é aquele que aprendeu a nadar “no meio da corrente”62.

3. A Imprensa Periódica: o escritor ‘no meio da corrente’.

Das velhas amizades de Hazlitt, uma das poucas que não “escasseou, como a

neve do ano passado”63, foi a do pintor James Northcote. Antigo discípulo de Joshua

Reynolds, que na juventude travara amizade com Johnson e seu círculo, suas anedotas

exerceram grande fascínio em Hazlitt desde o primeiro encontro, em 180264. Este teve

Northcote como uma espécie de mentor ou conselheiro. Por anos frequentou o seu

ateliê, tomou nota de suas entrevistas e, no fim da vida, as reuniu em Conversations of

James Northcote (1830), obra que imita, como vimos no capítulo anterior, Life of

Samuel Johnson, de Boswell. As conversas giram em torno dos assuntos os mais

variados; mas, volta e meia, alguns temas reaparecem: as artes plásticas, a vida dos

pintores, a aplicação aos estudos, a diferença entre gênio e talento, entre outros. Na

décima primeira conversa, há uma passagem valiosa, pois momento raro em que

Hazlitt define o modo como concebe o ato de escrever ensaios. Northcote contava-lhe

sobre seu ofício de pintor: quando uma encomenda caia em suas mãos devia “começá-

la de uma só vez; do contrário, não consigo fazer nada (...). Metade das tarefas que

alguém não é capaz de vencer”, continua Northcote, “vem do medo de sequer tentar”

Em resposta, diz Hazlitt:

Deparei-me com algo muito parecido com o que disse quando comecei a

escrever para a imprensa. Não havia, até então, adquirido qualquer hábito de

escrita ou ficava rodeando um tema por muito tempo; mas percebi que com a

necessidade veio a fluência. Fiz alguma coisa; agarrei-me a ela; e fui convocado

a fazer inúmeras outras e de uma só vez. Estava no meio da corrente; era

afogar ou nadar65.

Neste trecho, a confecção de uma obra de arte ou de um ensaio para a

imprensa se encontram em dois pontos cruciais: 1. sem dedicação e impulsos

                                                                                                                         61 Gilmartin, William Hazlitt: Political Esayist, p. 90. 62 CWH, “Conversation the Eighteenth”, 11, p. 288. 63 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, p. 20. 64 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 79. 65 CWH, “Conversation the Eighteenth”, 11, p. 288.

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vigorosos, nada se faz; 2. é pelo hábito, ou repetição, que vem a destreza: “the more

we do, the more we can do”66. Mas a comparação para por aí. Na sequência, diz o

autor, seus ensaios não eram outra coisa senão “textos de ocasião”. Próximos à “fala

extemporânea”67, eles mal ficariam de pé na estante. Na melhor das hipóteses, a

proficiência do ensaísta, homem de imprensa, se equipara à do artesão. Como “o

vidraceiro que conforma o fluído vítreo com celeridade” ou “como bolhas em um

córrego agitado”, “as expressões apropriadas brotam na superfície do calor ou da

fermentação da mente”68. Table Talk e The Plain Speaker estão apinhados de

exemplos sobre o caráter efêmero e mesmo menor desse gênero de escrita: “não tenho

prazer algum em escrever esses Ensaios (...). Quando me ponho a fazê-lo, minha

única ansiedade é de chegar logo ao fim”69; “que aberrações são esses Ensaios!

Quantos erros, quantas transições mal remendadas, quantos raciocínios tortuosos,

quantas conclusões mancas!”70 Humildade de pura fachada? Em certo sentido, sim.

Mas esse não nos parece ser o ponto aqui. Hazlitt sabia que ensaio inclui a

contingência, sobretudo enquanto pedaço de página de um instrumento de grande

divulgação. Filhos do jornal e da era da máquina, eles não tinham pretensão de durar.

Passado um século desde que a literatura, pela primeira vez, penetrara fundo

no jornal, com The Tatler e The Spectator, ela, argumenta Hazlitt, tornou-se mais

popular e democrática. Muito se discutiu na fortuna crítica do autor sobre a sua

ambivalência frente ao fenômeno de massificação nas artes71. Por um lado, há um

enlevo elitista no excerto: “o sufrágio universal, por mais aplicável que seja em

matéria de governo (...), não o é em matéria de gosto”72; por outro, diz ele, “todos os

poetas, sábios e heróis pertencem originalmente e por direito ao povo”73, como

antípoda do privilégio. Longe de propormos uma resposta definitiva ao problema,

vejamos como ela traduz as inquietações de um desejo sempre insatisfeito daquele

que, a exemplo de nosso autor, reconheceu que era forçoso nadar para não se afogar.

                                                                                                                         66 CWH, “On Application to Study”, 12, p. 60. 67 CWH, “Conversation the Eighteenth”, 11, p. 289. 68 CWH, “On Application to Study”, 12, p. 62-3. 69 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 6. 70 CWH, “The Indian Jugglers”, 8, p. 79. 71 Sobre o tema, ver, por exemplo, John Barrell, “Benjamin Robert Haydon and William Hazlitt: Two Encyclopaedia Articles”, In. The Political Theory of Painting from Reynolds to Hazlitt ‘The Body of the Public’, (New Haven: Yale University Press, 1986); John Whale, “Hazlitt on Burke: The Ambivalence Position of a Radical Essayist”, In. Studies in Romanticism, Volume 25, (1986); e Kevin Gilmartin, “Conclusion: Radical Politics and the Arts”, In. William Hazlitt: Political Essayist, 2015. 72 CWH, “Why the Arts are not Progressive – A Fragment”, 4, p. 164. 73 CWH, “What is the People? (concluded)”, 7, p 269.

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Numa publicação da Edinburgh Review de 1823, “The Periodical Press”,

Hazlitt traça um panorama dos principais jornais e revistas literárias inglesas, “o

grande opróbio de nossa literatura”. Mas o tom não tem tanta censura quanto a

passagem sugere. Hazlitt abre o ensaio ironizando aqueles que se perguntam se “a

crítica em periódicos é, no todo, favorável ou não à causa da literatura”; ou se

Shakespeare e outros grandes homens de gênio do passado conseguiriam produzir

suas obras num tempo em que tudo passa pelo escrutínio do jornal, este “viveiro da

crítica”. Não é por aí que se chega a uma solução do problema. Afinal, pergunta

Hazlitt, não são Lorde Byron e Walter Scott exceções à regra, posto que escritores

populares cujas obras trazem em si imenso valor literário? Se em cinco ou dez anos

elas ainda serão lidas ou se terão adquiridos o ar mofado de velharias, às quais só se

retorna por curiosidade histórica, “só o tempo dirá”. Também em tom irônico, conclui

o autor, “a crítica em periódicos é favorável à crítica em periódicos.”74 A partir daí

segue-se uma longa discussão sobre um dos temas fulcrais da crítica hazlittiana, como

bem observou David Bromwich75, a saber: não há progresso nas artes.

A tese não é decerto original, tampouco ele pretendeu que a fosse. Há nela

ecos da crítica que o precedera, sobretudo do século anterior. Entrementes, vale

ressaltar que a metáfora da corrente que temos perseguido aqui e aplicado à imprensa

captura um traço característico das letras na era da máquina: as águas turvas de uma

multidão anônima de escritores e leitores.

O mote do raciocínio hazlittiano pode ser resumido na seguinte fórmula:

quanto mais uma sociedade progride em conhecimento e refinamento, mais as artes

perdem em vigor, gênio criativo e sublimidade. No ensaio de The Round Table, “Why

the Arts are not Progressive?”, diz ele: “Os maiores poetas, os mais hábeis oradores,

os melhores pintores e os mais perspicazes escultores que este mundo já viu surgiram

pouco depois do nascimento dessas artes e viveram numa sociedade, sob outros

aspectos, comparativamente bárbara.”76 Este modelo de perfeição, como qualquer

outro, implica florescimento, decadência e “a suposição de um ponto máximo a que se

pode alcançar nas artes”77, como bem observou Márcio Suzuki acerca de David

Hume. Segundo o argumento específico de Hazlitt, por ironia do processo histórico,

chega-se cedo demais a esse modelo de perfeição. O mundo jamais verá outro                                                                                                                          74 CWH, “The Periodical Press”, 16, pp. 239, 211 e 212. 75 David Bromwich, “Why the Arts are not Progressive”, In. Hazlitt: The Mind of a Critic, pp. 104-149. 76 CWH, “Why the Arts are not Progressive – A Fragment”, 4, p. 161. 77 Suzuki, A Forma e o Sentimento do Mundo, p. 20.

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Homero, outro Ésquilo, outra Safo; não apenas porque foram os primeiros, mas

porque levaram à perfeição a arte que, se não as inventaram, contribuíram para dar o

acabamento formal a seus respectivos gêneros: épico, dramático e lírico. Todas as

alternativas estariam cortadas, restando apenas a decadência ou mesmo o fim da arte,

se Hazlitt não incluísse outras duas variantes: uma forma artística floresce sobre a

matéria morta daquela que a antecedeu; e “cada época ou nação possui um padrão que

lhe é próprio.”78

Quanto a este último argumento, um lugar-comum às poéticas do

romantismo, o que o autor diz, por um lado, é que só se pode julgar o mérito de uma

obra a partir de valores circunscritos “dentro de limites locais e temporais”79; por

outro, como não há nenhuma nação que subsista isoladamente, ao menos na

modernidade, o contato com o diferente estimula o espírito de emulação; o vigor

criativo floresce na vacância. Dante não é superior a Milton, nem este àquele; antes,

cada qual atingiu a perfeição na poesia épica de suas respectivas línguas porque

souberam trabalhar sobre um material herdado, porém em solo ainda pouco cultivado.

Além disso, a barbaridade de suas épocas, as inúmeras dificuldades que se

interpunham entre a vontade e a ação, cobrava-lhes um gesto firme e expressivo.

Nada mais congênere à natureza da poesia, que, segundo Hazlitt, “é a linguagem da

imaginação, das paixões, da fantasia e da vontade.”80 Não há como não reconhecer no

argumento a herança de Rousseau ou de Burke, sobre a qual nos detivemos no

primeiro capítulo. Para aquele, a energia expressiva da palavra, própria aos antigos,

foi substituída pela necessidade de clareza do homem civilizado, daí o declínio da

eloquência entre os modernos81; para este, as línguas antigas ou orientais são tanto

mais sublimes porque dotadas “de uma grande força e energia de expressão” e porque

nelas a imaginação prepondera sobre o entendimento, isto é, sobre “as distinções

rigorosas.”82

Hazlitt também encontrou na modernidade uma diminuição gradual da força

da imaginação, que foi substituída pelo rigor do entendimento. A consequência disso,

como veremos a seguir, não implica a anulação do entusiasmo, mas a busca por

                                                                                                                         78 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 215. 79 Idem, p. 216. 80 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 8. 81 Jean-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a Origem das Línguas (Campinas: Editora Unicamp, 2003), pp. 175-6. Sobre o tema, ver Bento Prado Jr., A Retórica de Rousseau e outros ensaios (São Paulo: Cosac & Naify, 2008), pp. 118-9. 82 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 213.

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outros, ainda que efêmeros e insaciáveis: os fatos corriqueiros e sem foros de

grandeza veiculados pela imprensa.

A primeira variante ao mote exposto acima (de que um gênero artístico

floresce sobre a decadência de um outro), está, como se pode entrever, intimamente

ligada ao segundo. “A tragédia alcançou o ápice na França quando ela estava em

declínio entre nós”; assim como, em termos gerais, “a comédia floresceu com o

declínio da tragédia.”83 A explicação, é claro, não pressupõe uma visão absoluta da

história, pois a sua marcha não caminha no mesmo passo em diferentes nações;

tampouco segundo um fim preconcebido. À luta encarniçada por um ideal, que eleva

alguns homens acima dos demais com a corporificação da grandeza de caráter,

seguiram-se “as imagens de graça, de alegria e de prazer redobrado (...) sobre a

perspectiva de uma vida humana”84 não dignificada. Com o advento da comédia, a

literatura se mundanizou, novos caminhos se abriram e “novos pedaços de terra, antes

negligenciados, foram cultivados”. É verdade que sobre um solo mais amplo, melhor

distribuído e, portanto, menos rico em minerais preciosos. Em outras palavras, a

literatura e o mundo se tornaram mais prosaicos. “A partir daí”, diz ele, “os ensaístas

de periódico, Steele e Addison, sucederam nossos grandes escritores de comédia; os

romancistas (Fielding, Sterne e Smollett) sucederam aqueles; e cada um deles nos

legou obras superiores ao que se produzira antes, ou ao que viria a se produzir desde

então”85 – é verdade que Hazlitt não previra a extensa e rica cultura do romance que

floresceria em seu próprio século nas mãos de um Charles Dickens, por exemplo86.

Seja como for, as condições para o surgimento do romance e do ensaio em periódico

– a difusão do conhecimento, a formação do público leitor, “a aproximação e

amálgama dos diferentes estratos sociais”, entre outros – foram amplamente

analisadas por ele em “The Periodical Press”. Vendo o fluxo da história desaguar em

solos mais amplos, aplainados e agrupados nos centros urbanos, Hazlitt, aqui, parece

acertar em seu prognóstico: “o monarquismo da literatura está com seus dias

contados.”87

                                                                                                                         83 CWH, “The Periodical Press”, 16, pp. 215 e 214. 84 CWH, “On Wycherley, Congreve, Vanbrugh, and Farquhar”, 6, p. 70. 85 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 215. 86 Sobre as inúmeras conexões entre Dickens e Hazlitt, ver Tom Paulin, “Hazlitt’s Influence on Dickens in Baraby Rudge”, In. The Hazlitt Review, vol. 2 (London: The Hazlitt Society, 2009), pp. 5-20. 87 Idem, pp. 218 e 220.

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Se “os postos mais elevados já foram ocupados”, o que nos resta senão um

gênero literário menor, porém mais perto de nós? Se há uma classe de “escritores que

pode lograr alguma reputação acima das águas são os críticos anônimos” da imprensa

periódica. A época atual é a época da crítica. “Que assim o seja”, diz Hazlitt,

“sejamos críticos, caso contrário, não seremos nada.”88

A conclusão a que Hazlitt chega ganha em concretude a partir de uma análise

do momento histórico e de um dos traços característicos do ensaio inglês naquele

início de século XIX, o anonimato. Este é o tema da segunda metade de “The

Periodical Press”. Falemos dele, de sua relação com o surgimento da primeira

metrópole moderna, Londres, e da posição do escritor, Hazlitt, nesse mar de

periódicos.

“Há mais pessoas em Londres do que em qualquer outro lugar”89, disse

Hazlitt. De fato, “[Em 1800]”, segundo o importante estudioso de romantismo inglês,

James Chandler, “com uma população de quase um milhão de habitantes, nenhuma

outra cidade europeia ultrapassava o tamanho de Londres. No resto do mundo

(segundo as melhores estimativas), apenas Edo (Tóquio) e Pequim eram maiores.

Paris, por muito tempo a rival cultural de Londres, tinha aproximadamente metade da

população”. “Entre 1800 e 1850”, continua Chandler, “a população de Londres

dobrou, sustentando seu crescimento a despeito do fato de que a cruel taxa de

mortalidade excedia a de natalidade.”90

Com esse crescimento vertiginoso, e favorecidos pela expansão do público

leitor, algumas dezenas de jornais, Magazines e cadernos de resenhas pipocavam ano

após ano em uma metrópole a plenos vapores da Revolução Industrial. Em seu

brilhante estudo sobre o tema, Las Mesas de Plomo, Alfonso Reyes reproduz as

cifras: em 1821, na Inglaterra “se publica um periódico para cada noventa mil

habitantes; em 1832, um para cada cinquenta e cinco mil.” 91 John Walter II,

proprietário do jornal The Times, introduziu a novidade tecnológica, o sistema de

impressão por máquina a vapor, The Koenig92. A tiragem em larga escala e a maior

facilidade na distribuição permitiram que estipêndios regulares fossem criados aos

                                                                                                                         88 Idem, pp. 215, 221 e 213. 89 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 68. 90 James Chandler and Kevin Gilmartin, Romantic Metropolis: The Urban Scene of British Culture, 1780-1840 (Cambridge University Press, 2005), p. 2. 91 Alfonso Reyes, “Las Mesas de Plomo”, In. Obras Completas de Alfonso Reyes (Mexico D. F.: Fondo de Cultura Economica, 1955) p. 344. 92 The History of The Times: “The Thunder in the Making”, 1785-1841, p. 132.

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articulistas; alguns eram muito bem pagos. A novidade editorial, de sua parte, veio

dos Magazines mensais (Gentleman’s Magazine, London Magazine, New Monthly,

Blackwwod’s, entre outros), os quais passaram a contar com uma miscelânea de

material literário, como resenhas críticas, relatos de viagens, sketches urbanos,

ensaios pessoais, ensaios analíticos, contos de terror, estórias de assassinato, poemas,

etc. Isto é, eram verdadeiros armazéns literários, no sentido primevo do termo93.

Junto aos salários e às inovações tecnológicas e formais surgia uma classe

até então inexistente, o escritor free-lance de profissão. Hazlitt esteve no epicentro

desse processo, posto que se dedicasse, como poucos, à forma literária de grande

influência na Inglaterra de seu tempo: o ensaio. Nas palavras do estudioso do período,

Lee Erickson, “os escritores de ensaios, segundo reflete o mercado editorial pela

forma, estiveram no centro das atenções públicas nos anos de 1810 e 1820 de um

modo como jamais ocorrera antes ou ocorreria depois.”94 Também por motivos

econômicos, Hazlitt condensa o perfil do novo escritor. Segundo ele mesmo dizia

sobre a classe operária, a sua vida foi uma luta “from hand-to-mouth.”95 Nesse

contexto, como fazer de seus talentos e conhecimento um ganha-pão sem “prostituir

esses talentos e esse conhecimento para trair sua espécie”, segundo o trecho de “Sobre

o Prazer de Odiar” que lemos acima? Entre outras alternativas estava o anonimato.

No extenso estudo sobre o tema, The Making of English Reading Audiences,

1790-1832, Jon Klancher argumenta que o anonimato foi um meio pelo qual os

articulistas da classe média letrada logravam alcançar um desprendimento das

próprias posições políticas e de classe a que eles e o jornal pertenciam e, desse modo,

formar uma audiência de leitores também ela capaz de semelhante exercício de

abstração. Na continuação do argumento, Klancher expõe o que segundo ele é a

intenção oculta dessa prática, a saber, o projeto de disseminação dos valores da classe

média. Noutras palavras, a identidade do escritor ou leitor burguês se define pela

própria capacidade de se abstrair de si mesmo e da sociedade, como se pairassem

acima do tecido social, transformando-os em objeto de conhecimento96. Entretanto, e

                                                                                                                         93 Sobre a discussão do tema em língua portuguesa, ver Alexander Eulálio, “O Ensaio Literário no Brasil”, In. Serrote 14, pp. 7-53; e Vilma Arêas “O Armazém Literário de José Paulo Paes”, In. José Paulo Paes, Armazém Literário: Ensaios (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), pp. 7-14. 94 Lee Erickson, The Economy of Literary Form: English Literature and the Industrialization of Publishing, 1800-1850 (Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1996), p. 89. 95 CWH, “A Reply to the Essay on Population by the Rev. T. R. Malthus”, 1, p. 337. 96 Jon Klancher, “Reading the Social Text”, In. The Making of English Reading Audiences, 1790-1832, pp. 47-75.

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seguindo as valiosas observações de Gregory Dart e Erickson97, o argumento de

Klancher é falho em um ponto crucial. Ao insistir sobre um único lado da equação, a

formação das audiências de leitores, Klancher esquece que também a posição do

escritor profissional passava por profundas transformações e era menos inequívoca do

que o estudioso dá a entender. Na prática, isso significava que não apenas pudesse

haver diferenças entre as posições políticas ou de classe entre o editor e o articulista,

como o anonimato assumia outras funções. Sobre o tema, vale lembrar as palavras

certeiras de Alfonso Reyes:

O anonimato se tornou a via de regra do periodismo inglês; permitindo maior

liberdade ao escritor, tanto para dizer a verdade quanto para fazer transações

entre o seu critério pessoal e o do periódico, conquanto a força maior tivesse

respaldo na responsabilidade coletiva. Além disso, vendo as coisas de fora, o

anonimato concedeu ao periódico uma unidade imensa de combate coordenado,

um ‘tanque’.98

É verdade que esse “combate coordenado” era partilhado pelas imprensas

conservadora, liberal ou radical, e nos casos em que a “vitória, não a verdade, era o

objetivo”99, ele fornecia ajuda recíproca entre os adversários. Mas a batalha era dura e

desigual. As agitações populares pela reforma parlamentar foram sucedidas por

medidas drásticas que dificultaram, quando não impediram, a circulação de jornais

que expressassem opiniões políticas contrárias ao poder estabelecido. Entre elas,

talvez a mais importante, o Newspaper Stamp Duties Act (1819): a partir de então,

todo jornal que veiculasse sobretudo opiniões ao invés de notícias, se não viesse com

o selo da coroa, no valor de quatro penies, era retirado do mercado. A medida

“constituiu o principal divisor de águas de uma legislação que restringia a liberdade

                                                                                                                         97 Lee Erickson, “Ideological Focus and the Market for the Essay”, In. The Economy of Literary Form, pp. 71-103; e Gregory Dart, “Romantic Cockneyism: Hazlitt and the Periodical Press” In. Romanticism, 2000. 98 Reyes, Las Mesas de Plomo, p. 346. 99 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 234.

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de imprensa (...) e pôs fim ao Political Register de Cobbett [o two-penny-trash] entre

outros jornais radicais.”100

Via de regra, os jornais para os quais Hazlitt contribuiu não sofreram

semelhante represália; menos ainda os contribuintes anônimos (diga-se de passagem,

o anonimato não era uma prática tão comum à imprensa radical). Entretanto, se a

literatura de folhetim veio para ficar, suas páginas avulsas, ora submergiam na

corrente, ora dela emergiam com “o bramido da cidade”, a voz do povo. Como Hazlitt

metaforicamente definiu em “The Periodical Press”, “The Times segue o fluxo da

maré; navega rio acima”; “forte, porque sempre do lado dos mais fortes”. A grande

imprensa é “o pulmão da metrópole britânica.”101 Assim, Hazlitt, o good hater,

quando nela se infiltrava, trazia o leitor para perto do baço: íntimo, porém corrosivo.

Ao contrário dos articulistas ligados à imprensa conservadora, como veremos

a seguir, os ensaios anônimos de Hazlitt traziam a marca do autor: falavam

abertamente dos seus gostos, aversões, opiniões políticas, mesmo quando estas

divergissem da linha editorial do jornal – uma das razões do porquê jamais se firmara

nesta ou naquela imprensa –; contavam anedotas e situações do dia-a-dia, vividas por

ele ou por amigos; reportavam os leitores a outras de suas publicações, quer na forma

de artigo ou de livro; até mesmo suas fraquezas e preconceitos frequentemente

vinham estampados nas páginas do jornal. Ao correr por elas, seus leitores mais

assíduos identificariam o autor de bate-pronto. O anonimato, portanto, não era um

disfarce ou uma estratégia editorial para angariar leitores. Antes, tratava-se de uma

identificação empática com o público, também ele anônimo, e uma maneira de

imprimir sobre o texto a figura do escritor que caminha ao léu pelas ruas da

metrópole.

4. Na rua, com os homens: cockneyism e águas rasas.

A desilusão de Hazlitt quando os velhos amigos desertaram a causa do povo,

“viraram a casaca”102, para fazer valer a sua expressão, foi imensa! Doía-lhe como

canivete na carne vê-los tecendo louros à monarquia inglesa. Ao fim e ao cabo, ele

encontrou antídoto tanto em uma forma de pensar, em que discutir era combater,

                                                                                                                         100 A. Aspinall, Politics and the Press, 1780-1850, p. 59. Ver, também, William H. Wickwar, “The Press and the Reform Crisis, 1819”, In. The Strugle for the Freedom of the Press, 1819-1832, pp. 49-81. 101 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 225. 102 CWH, “Arguing in a Circle”, 19, p. 277.

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124    

   

quanto em uma gradual aproximação da gente inglesa, sobretudo da cidade; o que se

reflete em seus ensaios na estilização culta da linguagem popular. Ambas as

alternativas confluíram para que ele jamais se deixasse confundir com o indivíduo

recluso na solidão da cidade grande. Os ensaios da fase madura, fortemente inspirados

em The Tatler, são coalhados de tiradas espirituosas, gossip, visões e figuras londrinas

do período da Regência: murais de anúncios, tráfegos fervilhantes, vitrines, dândis,

lacaios, esportistas, malabaristas de rua, entre outros. Frequentemente o encontramos

na rua, com os homens, ou em bate-papos nos cafés sob as fumaças de “Virginia ou

Oronooko”, que se misturam às “densas nuvens que pairam sobre a metrópole.”103

Neste homem das ruas (man-about-town), flagrante da natureza humana na vida

londrina, notamos uma aproximação a um cotidiano que não é exatamente, em termos

de classe, o seu, mas o é em termos culturais; uma cultura cockney, como o autor

define no ensaio de The Plain Speaker, de que nos ocuparemos aqui: “On Londoners

and Country People”.

Hazlitt, junto a outros escritores do período, absorveu a metrópole inglesa em

seus textos e contribuiu para inaugurar a cidade moderna como objeto literário,

orientada, sobretudo, a uma percepção em que realidade e fantasia se confundem:

“um verdadeiro cockney (...) é a mais mecânica de todas as criaturas; e, no entanto,

ele vive num mundo romanceado, um conto de fadas todo seu.”104 Em certo sentido,

Hazlitt foi convocado a tomar o partido da cidade quando a imprensa conservadora,

mais propriamente o periódico escocês Blackwood’s Magazine, armou-se para refrear

os impulsos políticos radicais e populares daqueles anos de resistência. Foi então que

a expressão cockney school apareceu pela primeira vez, em 1817.

Naquele ano, o Magazine publicou o primeiro de uma série de ensaios, que

se estenderia por quase sete anos, sob o título “On the Cockney School of Poetry”. O

objetivo era expor o que o autor, Z. (o anonimato, como vimos, era uma prática

frequente na imprensa inglesa da época), chamou de a “depravação moral” e a

inconsistência artística e intelectual de escritores “de baixo status social e de maus

hábitos.”105 Por isso o epíteto cockney.

                                                                                                                         103 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 70. 104 Idem, p. 68. 105 The Blackwood’s Edinburgh Magazine (London: Edinburgh and T. Cadell and W. Davies, 1817-18), pp. 40 e 39.

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125    

   

Segundo o minucioso trabalho histórico de um importante estudioso no

assunto, Gregory Dart106, bem como o trabalho seminal de Jeffrey N. Cox107, o

cockney foi, por quase quatrocentos anos, uma figura cômica e, portanto, de baixo

estrato social na cultura inglesa. Sua presença é notável em autores como Chaucer e

Shakespeare. A etimologia do termo é incerta. Para alguns, a palavra deriva de

Cocanha, terra mítica de abundância, liberdade, ócio e prazeres absolutos (o próprio

Z. usa o termo cockaigne para zombar das aspirações libertárias – e libertinas – de um

grupo de “origem plebeia”108); para outros, de coken-ey, forma incorreta de cock’s

egg; ou ainda, do francês arcaico, coqueline, isto é, criança afeminada ou mimada109.

Seja como for, o termo se consagrou na literatura e cultura inglesa para se referir a um

tipo social, uma espécie de caipira da metrópole. Em Rei Lear (Ato II, Cena IV),

lembra Dart, o tolo interrompe um dos acessos de loucura do rei com a história do

cockney que demonstra completa inaptidão diante das questões práticas, sobretudo

quanto aos trabalhos no campo. Noutras palavras, a vida urbana transformou o

cockney em um tipo paradoxal, raso, satírico por excelência; sua “presunção”, diz

Hazlitt, “caminha no mesmo passo da ignorância.”110 Nesse sentido, Z. define o

escritor cockney, mais precisamente, o editor, ensaísta e poeta Leigh Hunt, a quem ele

batizou de “o rei dos cockneys”111, como alguém de baixa educação e de intenções

extravagantes:

Ele [Hunt] não conhece absolutamente nada de grego, quase nada de latim, e sua

familiaridade com a literatura italiana se limita a alguns sonetos de Petrarca e um

conhecimento imperfeito de Ariosto (...). Quanto aos poetas franceses, ele os

dispensa em conjunto, considera-os uma mera casta de aspirantes à literatura,

formalistas, escrupulosos e artificiais (...). Quanto aos grandes poetas alemães,

que nos últimos cinquenta anos iluminam este país com um esplendor por muito

                                                                                                                         106 Ver, sobretudo, o livro de Gregory Dart, Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: Cockney Adventures, o artigo, “Romantic Cockneyism: Hazlitt and the Periodical Press”, Romanticism 6 (2000) e “Introduction” à antologia de ensaios de Hazlitt: Metropolitan Writings (Manchester: FyfieldBooks, 2005). 107 Jeffrey N. Cox, Poetry and Politics in the Cockney School: Keats, Shelley, Hunt and their Circle (Cambridge: Cambridge University Press, 1998). 108 The Blackwood’s Magazine, p. 196. 109 Para uma discussão sobre a etimologia da palavra cockney, ver Jeffrey Cox, Poetry and Politics in the Cockney School, capítulo I “The Cockney School attacks: or, the antiromantic ideology”, pp. 16-37; e Gregory Dart, Metropolitan Art and Literature, 1810-1840, “Introduction”, pp. 1-29. 110 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 71. 111 The Blackwood’s Magazine, p. 38.

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126    

   

tempo não antes visto, Hunt é um completo ignorante. Sobre os livros espanhóis,

ele leu Don Quixote (na tradução de Motteux) e alguns poemas de Lope de

Vega.112

O tom satírico é evidente nesse retrato do escritor cockney. Além de Hazlitt e

Hunt, outro alvo da série “On the Cockney School of Poetry” foi o jovem poeta John

Keats – “Pobre do Keats!”, diz Hazlitt, “o que divertiu toda a cidade, custou-lhe a

vida”113. Que Hazlitt, Keats e Hunt não tivessem a mesma educação formal ou

compartilhassem do mesmo ethos aristocrático do editor William Blackwood e de boa

parte dos leitores do Magazine, é algo de que eles próprios não se envergonhariam.

Mas a acusação de Z. era falsa, e ele sabia disso.

Naqueles anos, Hazlitt organizou três cursos de literatura inglesa e em cada

um deles o exercício de literatura comparada é um de seus traços distintivos – por

exemplo, entre Don Quixote, Gil Blas e o romance inglês do século XVIII; entre

Montaigne e o ensaio de periódico inglês; entre o drama alemão e o drama isabelino –

; Keats publicou poemas, como Endimião, que expressam um conhecimento sólido da

mitologia grega; e Hunt, no poema The Story of Rimini, reconstrói o episódio do amor

incestuoso de Paolo e Francesca, Canto 5 do Inferno de Dante, também a partir de

outras fontes, como Decamerão e Contos da Cantuária. Mas havia ainda outro

motivo para reunir esses autores sob a pecha de cockney, um motivo político.

Dissemos acima que o ethos aristocrático fazia parte da linha editorial do

Magazine e junto a ele, nas palavras de Klancher, “o propósito de moldar leitores

‘conscientes’ dos valores da política tóri e da igreja oficial”114. Por mais que naquele

início de século XIX, com lembram Dart e Cox, o termo cockney preservasse mais do

sabor satírico do que uma distinção política ou de classe, isto é, ele ainda não era

usado para se referir à classe operária londrina, salt-of-the-earth, o combate que deu

início a posições estéticas distintas, do Blackwood’s e dos cockneys, contribuiu, em

partes, para que também os sentidos político e de classe entrassem na acepção do

termo. Os sentimentos patrióticos do cockney, diz Z. no primeiro artigo da série, “é de

                                                                                                                         112 Idem ibidem. 113 CWH, “On Living to One’s Self”, 8, p. 99. 114 Jon Klancher, The Making of the English Reading Audiences, 1790-1832, p. 52.

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um jacobinismo rude, vago, ineficaz e rancoroso”115. Na lista de acusações à escola,

Z. enumera: “a falta de respeito para com a Igreja Cristã (...), um desprezo pelo poder

monárquico e um modo indecente de atacar o governo de seu país”116. Com isso,

ficava selada a aliança entre cockney, ao menos sua classe de escritores, e posições

políticas radicais.

Não foi decerto com acusações de natureza política que Z. pretendia atingir o

grupo. Até aqui, colocava-se em pratos limpos o que era conhecido de ambos:

Blackwood’s falava em nome da Igreja e do Estado; o escritor cockney, em nome do

povo. As bordoadas e provocações iam muito além de um retrato satírico do escritor

que afetava ares de importância e empregava uma linguagem vulgar (The Story of

Rimini, segundo Z., é um “bom glossário de dialeto cockney”117). Z. se queixava, por

exemplo, da presunção de Hunt quando este dedica o poema, The Story of Rimini, a

Byron, a despeito dos conhecidos laços de amizade entre os dois; das “tendências

indecentes e imorais do poema”118, a paixão do incesto; da própria escolha de um

episódio da Divina Comédia e da filiação que os autores de The Round Table, Hazlitt

e Hunt, reivindicam com The Tatler e The Spectator. “Você realmente pensa”,

pergunta Z. a Hunt, “que The Round Table merece um lugar na estante ao lado de The

Spectator, e Rimini uma encadernação junto ao Inferno [de Dante]”119? A resposta de

Hunt, elegido pelo Magazine como pivô do grupo, foi imediata, iniciando-se um

verdadeiro toma lá, dá cá. No artigo que publicou em The Examiner (16 de novembro

de 1817)120 exigia uma retratação pública do autor e, antes de qualquer coisa, que

revelasse sua identidade. Quem é Z?

Por ora, deixemos a questão em suspenso para tratarmos de um assunto

correlato; isto é, “o espírito do cockneyism”121 ou a vida mental na metrópole; uma

vida, segundo Hazlitt, de águas rasas. A importância do homem da cidade está mais

para uma imagem de grandeza refletida sobre a sarjeta.

                                                                                                                         115 The Blackwood’s Magazine, p. 39. 116 Idem, p. 415. 117 The Blackwood’s Magazine, p. 198. 118 Idem, p. 194. 119 Idem, p. 415. 120 Leigh Hunt, The Selected Writings of Leigh Hunt, 6 vols. (London: Pickering & Chatto, 2003), II, p. 142. 121 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 72.

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128    

   

Em nenhum outro lugar o entendimento se afirma como a faculdade mental

por excelência tanto quanto na cidade grande. Essa faculdade aproximou a literatura

das pessoas comuns, seja pela cadência da língua coloquial, pelos fatos corriqueiros

de todo dia ou por um modo de raciocínio próximo a uma conversa sem rumo certo.

Não há nada mais próprio a ela do que os ensaios em periódicos, pois esta, como

vimos, requer a ambos, escritores e leitores, um exercício crítico. Na cidade grande, a

faculdade do entendimento predomina sobre a da imaginação, pois aquela, segundo

Hazlitt, “não julga as coisas segundo as impressões imediatas produzidas na mente,

mas segundo as relações que elas estabelecem umas com as outras”. Noutras palavras,

o entendimento é “uma faculdade distributiva”, ou ainda, na formulação conhecida do

ensaio de Hazlitt, “Corionalous”, “uma faculdade republicana”. A imaginação, por

contraste, é aristocrática. Ela é uma “faculdade monopolizadora”122, opressora, até

certo ponto, porque o princípio aqui em jogo implica a exclusão do que quer que não

contribua para “corporificar e dar forma” aos excessos da paixão ou aos “anelos

indistintos e inoportunos da vontade”123. Isto não significa, de sua parte, que a

imaginação deva ser descreditada em uma sociedade democrática, tampouco que

Hazlitt, o empirista radical, na expressão de Terry Eagleton, assim o desejasse. Antes,

ainda segundo Eagleton, Hazlitt encampou uma batalha em duas frentes: contra

aqueles que negam ou atrofiam a imaginação, o pensamento liberal e utilitarista de

um Jeremy Bentham, por exemplo, “e aqueles que a inflam caprichosamente”124 o

conservadorismo dos Poetas dos Lagos, sobretudo de Wordsworth.

Há ainda uma terceira atitude diante da imaginação que é particular à vida na

metrópole. Ainda que ela não corresponda inteiramente a de nosso autor, ele dela se

aproxima tanto na tarefa de compreendê-la desinteressadamente quanto na de

habituar-se a algo do qual ele, man-about-town, também participa. Esta imaginação

vem estampada nos rostos, no modo de andar e na constituição corporal do homem

moderno e metropolitano. Numa palavra, uma imaginação fantasmagórica125.

                                                                                                                         122 CWH, “Coriolanus”, 4, p. 214. 123 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 8. 124 Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, p. 111. 125 Sobre o tema, ver, Walter Benjamin, “O Flâneur”, In. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo (São Paulo: Editora Brasiliense, 1995), pp. 33-65

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129    

   

Ele [cockney] é um lojista, pregado o dia todo por detrás do balcão, mas vê

centenas ou milhares de transeuntes alegres e bem vestidos – uma infinita

fantasmagoria – e se regozija em suas maneiras libérrimas, em seus orgulhos

vistosos e adejantes. É um cocheiro – mas transporta no banco de trás uma

beldade por uma multidão de carruagens, e visita milhares de lojas. Será um

alfaiate, aquela última fraqueza da natureza humana? O estigma de sua profissão

se perde na elegância do modelo de costura e nas pessoas que ornamenta; ele

decerto é muito diferente de um mero remendeiro do campo. Mais ainda, mesmo

o gari ou o vigia noturno vê algo precioso na sujeira das ruas, pois o seu trabalho

é solene, silencioso, sagrado e peculiar a Londres! Um camelô na rua Monmouth,

um dono de brechó na avenida Radcliffe, um taverneiro de uma adega noturna,

um mendigo em St. Giles’s, uma prostituta em Fleet-Ditch, todos vivem sob os

olhos de milhares e ganham a vida, em uma existência fatigante, miserável,

escassa ou abominável em um cenário suntuoso, buliçoso e vivo ao redor deles.

Como diz o ditado popular entre essas pessoas: ‘antes ser enforcado em Londres

do que morrer uma morte natural em qualquer outro lugar’. – Tamanha é a força

do hábito ou da imaginação126.

Por mais que a cultura cockney, como vimos, não se limitasse, na época, a

uma questão de classe, ela a pressupõe, bem como a divisão do trabalho. Em “The

Periodical Press”, Hazlitt diz que em um estágio mais primordial da sociedade “todas

as grandes coisas se realizam pela divisão do trabalho, isto é, por uma concentração

intensa de inúmeras mentes, cada qual num objeto único por elas escolhido”. À

medida que a sociedade progride, continua ele, as diferentes ocupações, agora amiúde

impostas de fora para dentro, “impedem, ao invés de auxiliarem, umas às outras”127.

O excerto acima é um exemplo curioso do quanto a identidade que a divisão do

trabalho molda – perpassada pelo olhar de uma multidão anônima e num espaço onde

as diferenças pretensamente se diluem, as ruas da metrópole –, é, em certo sentido,

imaginária ou fictícia.

Neste momento de nossa pesquisa, nos valemos das finas análises do

sociólogo alemão Georg Simmel sobre as consequências psicológicas ou mentais

criadas pela acumulação de pessoas nas cidades modernas. Seguindo as valiosas

observações de James Chandler e Kevin Gilmartin, este também é um tema-chave não

                                                                                                                         126 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, pp. 68-9. 127 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 216.

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130    

   

apenas para Hazlitt, como para outros escritores do período128. São dois os principais

“fenômenos anímicos” reservados à vida na cidade, segundo Simmel. O primeiro, e

mais conhecido, é o caráter blasé. O excesso de estímulos nos centros urbanos, aliado

à “intensificação da intelectualidade”, ou, em termos hazlittianos, a ascensão do

entendimento e discernimento crítico na literatura e na sociedade, resultou “no

embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam

percebidas”, mas no modo como seus significados e valores “são sentidos como

nulos”. O segundo, que desemboca do primeiro, é uma tendência à “individualização

espiritual”, ou seja, a esquisitices, extravagâncias, caprichos e preciosismos como

forma de destacar, “de tornar notado”, um indivíduo cuja existência pessoal seria, do

contrário, dissolvida na multidão espessa; nada mais avesso, continua Simmel, à

vontade de “se distinguir uns dos outros”129, própria ao homem moderno do que a

impessoalidade.

É este último fenômeno anímico da individualização espiritual que peleja

pela distinção que está na base do imaginário cockney no trecho lido antes. Isso ocorre

não de maneira consciente ou segundo uma individualidade que lhe seja própria:

“embora de estatura nanica, sua pessoinha se infla e se expande de importância ideal e

magnitude tomada de empréstimo”130. Entre o cocheiro e a jovem aristocrata, diz

Hazlitt no ensaio “On Footmen”, “existem umas sete ou oito classes sociais”. No

entanto, por uma espécie de fantasmagoria, elas se anulam e o “trabalho diário (...) se

transforma num romance, um sonho de verão”131. Essa “visão romântica”132 de si

próprio, do mundo do trabalho e dos espaços da metrópole, é o pano de fundo da

segunda parte de “On Londoners and Country People”, momento em que as

extravagâncias e caprichos do cockney se tornam mais concretos, mais humanos133.

“On Londoners and Country People” tem uma estrutura semelhante a de

outros ensaios do período; uma estrutura, segundo Dart, dialética ou tripartida134.

Como em “Sobre o Prazer de Odiar”, também aqui o ensaísta parte de uma reflexão

                                                                                                                         128 James Chandler e Kevin Gilmartin, “Introduction: Engaging the Eidometropolis”, In. Romantic Metropolis: The Urban Scene of British Culture, 1780-1840, pp. 1-41 129 Georg Simmel, “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”, In. Mana, (São Paulo: 2005), pp. 581, 587 e 589. 130 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 68. 131 CWH, “On Footmen”, 17, p. 355. 132 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 69. 133 Dart, “Romantic Cockneyism”, p. 155. 134 Gregory Dart, “Introduction” to William Hazlitt, Metropolitan Writings, p. x.

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geral sobre um traço comum aos homens – no caso, a oscilação entre a ignorância e a

petulância, própria à vida do espírito na cidade grande –; em seguida, desce aos

particulares, fornece exemplos de indivíduos concretos, pessoas comuns do dia a dia;

para, então, concluir com uma retomada do ponto de partida – de que o verdadeiro

cockney é alguém que “adquiriu todas as suas ideias”135 da cidade – noutra chave e

agora banhada, como veremos ao final deste capítulo, pela metáfora sublime,

metropolitana e democrática: rio de vida humana.

Por um corte brusco no foco analítico, Hazlitt introduz a história do dr.

Goodman, acompanhada de outras duas: a do sr. Pinch e do sr. Dunster. Como bem

observou Dart, neste momento do ensaio, Hazlitt “diminui o temperamento crítico” e

“reconhece a sua própria familiaridade – ou empatia – com o meio cockney que

descreve” 136 . Assim, o vemos na companhia de indivíduos concretos e

idiossincráticos. Se ficamos sabendo de suas atividades profissionais – o dr.

Goodman, “na cidade, é um gentleman solitário; no campo, um médico diletante”; o

sr. Pincher, um sportsman pretendente a cantor; o sr. Dunster, o peixeiro que se

gabava de na juventude jogar bolas de gude como ninguém – o que sobressai de suas

histórias são “suas veias indolentes” e o “solo natural, de águas rasas [shallowness],

sobre o qual o ascendem em insolência e presunção”137.

Nas três histórias, que ocupam quase metade do ensaio (em tom narrativo e

dialógico), a simplicidade do homem da metrópole é “conduzida ao cume de

extravagâncias”. Na primeira delas, o dr. Goodman, homem “grande em coisas

pequenas, inveterado em contendas insignificantes”138, apanha o ensaísta nas ruas,

pega carona em seu guarda-chuva e lhe interpela sobre Richard Pinch, amigo de

ambos, pois queria saber se a sua opinião batia com a do ensaísta; isto é, de que ele,

Pinch, era um péssimo jogador de game of fives139 e um mau cantor. Depois de ouvi-

lo, Hazlitt conclui: “Pinch, nesse aspecto, é um espécime completo de um cockney.

                                                                                                                         135 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 66. 136 Dart, “Romantic Cockneyism”, p. 155. 137 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, pp. 72 e 74. 138 Idem, pp. 73 e 71. 139 Jogo de raquete, semelhante ao tênis, bastante popular naqueles dias. Hazlitt foi um aficionado pelo esporte, ele próprio um jogador ardoroso. Sobre o entusiasmo de Hazlitt por game of fives, ver Ralph M. Wardle, “Good Hater (1815-1816)”, In. Hazlitt (University of Nebraska Press, 1971), pp. 157-180. Ainda sobre o esporte, diz Hazlitt, “é o melhor exercício do corpo (...) e a melhor maneira de relaxar o espírito (...). Aquele que pratica o esporte, é duas vezes mais jovem”, “The Indian Jugglers”, CWH, 8, p. 87.

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132    

   

Nunca tem nada a dizer; e, no entanto, tem sempre uma resposta na ponta da língua”.

Quando alguém lhe contrariava, ele dizia, “the same to you, sir”140.

Mas o dr. Goodman não fica para trás. Leitor que devia ser dos ensaios em

periódico de Hazlitt, conhecia a reputação de suas críticas teatrais, nas quais o exame

do canto e da voz é um traço distintivo141, e sabia que, há pouco, Hazlitt publicara em

The Examiner uma elegia em prosa, “entre a pilhéria e a sinceridade”142, ao esportista

John Cavanagh143. Pouco importa se o seu conhecimento fora tomado de empréstimo,

ele se infla e assume ares de crítico. Em certo sentido, ele está para o ensaísta como o

cocheiro está para o aristocrata que traz no banco da carruagem. Mas o que Hazlitt,

homem de imprensa, conhece sobre esportes ou sobre o canto? Não seria este também

um conhecimento de segunda-mão? Na cidade grande, mais vale aparentar

conhecimento ou status social do que de fato possuí-los. É isso o que Hazlitt

comunica aos leitores quando despe a capa do anonimato e se revela, ele também, um

cockney.

A empatia e a identidade cultural entre Hazlitt e os homens da cidade

marcam a diferença entre a persona literária de seus ensaios e a dos articulistas da

imprensa conservadora. Isto posto, retornemos à pergunta sobre a identidade de Z.

Se boa parte dos editores e leitores das revistas literárias de maior prestígio,

como Blackwood’s, eram membros da elite econômica e intelectual, o mesmo não

pode ser dito sobre os escritores. Daí a razão do porquê muitos ocultassem seus

nomes e personalidades. Como lembra Dart, “na imprensa, o escritor assumia a figura

do gentleman desocupado”144, como se estivesse de igual para igual com o púbico

leitor quando, na realidade, não passaria, aos olhos deste, de um apedeuta venal. O

disfarce era, portanto, um expediente eficaz para articulistas como Z. De família

simples mas altamente letrada, Z., ou melhor, John Gibson Lockhart, desde cedo se

revelou um prodígio pelos conhecimentos em letras clássicas, sobretudo o grego. Aos

quatorze anos, foi transferido da Universidade de Glasgow a Oxford, Balliol College.

Em seguida, regressou à Escócia e se formou em direito na Universidade de                                                                                                                          140 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 71. 141 Ver, por exemplo, o ensaio de The Examiner, “Miss Merry’s Mandane”, In. A View of the English Stage, CWH, 5, pp.320-1. 142 CWH, “The Indian Jugglers”, 8, p. 86. 143 Um dos mais aclamados jogadores de game of fives na época da Regência, John Cavanagh foi celebrado por Hazlitt no famoso ensaio “The Indian Jugglers”, CWH, 8, pp. 86-89. 144 Gregory Dart, “Romantic Cockneyism: Hazlitt and the Periodical Press”, p. 148.

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133    

   

Edimburgo, em 1816. No ano seguinte, de visita ao continente, travou contato com

Goethe e se aperfeiçoou nos conhecimentos da língua alemã, da qual traduziria para o

inglês as Lições de História da Literatura, de Friedrich Schlegel. Sua maior

realização, como escritor, foi Life of Sir. Walter Scott, em 7 volumes, 1837-38. Outra

de suas realizações, no âmbito pessoal, foi ter se casado com a irmã de Scott,

Sophia145. Entretanto, naqueles anos que assinou colunas mensais a Blackwood’s,

Lockhart era Z., o escritor de profissão que afetava ares de importância. Trocando em

miúdos, é como se na descrição do cockney Lockhart falasse de si mesmo; ele não

passava de outra coisa, dizia Hazlitt, senão de um “cockney do norte”146. Sem que o

percebesse, a vida e a cultura metropolitanas corriam por suas veias.

5. Um Pássaro na Multidão: ‘ruas transbordantes’147.

Havia ainda outro motivo para as invectivas de Blackwood’s contra a

“cockney school”. Em 1814, logo após a publicação de The Excursion, poema

narrativo de Wordsworth, Hazlitt escrevera uma resenha crítica que pouco agradara

ao poeta e ao articulista do Blackwood’s, John Wilson, seu amigo. A partir de uma

análise interna do poema, Hazlitt sutilmente reconstrói o percurso poético de

Wordsworth148: de seu sonho juvenil, “a estrela-d’alva da liberdade, a primavera do

mundo”149, ao tom melancólico e resignado daquele que, sob a figura do personagem

The Solitary, vê hoje a liberdade, outrora glorificada, nada senão como uma

sombra150. Àquela altura, por razões políticas e pessoais, o convívio entre Hazlitt e

Wordsworth há muito minguara. Certa vez, como lembra o biógrafo Stanley Jones,

Wordsworth pediu expressamente a Lamb que não o convidasse aos encontros em sua

casa na presença de Hazlitt 151 . É conhecida a história da primeira vez que

Wordsworth topou com a resenha de seu poema em The Examiner. O episódio chegou

                                                                                                                         145 Para as informações biográficas de John Gibson Lockhart, ver Stanley Jones, Hazlitt: A Life, from Winterslow to Frith Street, pp. 288-9, e Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 253. 146 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 75. 147 William Wordsworth, The Prelude: The Four Texts (1798, 1799, 1805, 1850) (London: Penguin Classics, 1995), p. 286. 148 David Bromwich, Hazlitt: the Mind of a Critic, p. 162. 149 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 18. 150 Idem, p. 17. Ver “The Excursion”, Livro III, ll. 776-7, In. William Wordsworth, The Poems, Volume Two (London: Penguin Classics, 1989), p. 114. 151 Stanley Jones, Hazlitt: A Life, p. 174.

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aos ouvidos de nosso autor, que o narra em A Reply to Z., escrita em setembro de

1818 e não publicada a pedido de amigos152.

Ao fim do ano de 1814, o sr. Wordsworth recebeu pelo correio um exemplar de

The Examiner, o que o irritou pelo seu conteúdo e custeio do jornal. ‘Por que

enviaram a mim esse jornal maroto e ainda me obrigam a pagar por ele?’ O sr.

Wordsworth é judicioso em seus princípios tanto quanto em seu bolso. ‘Oh’, disse

Wilson, ‘vejamos o que temos aqui. Acho que não o enviaram sem um motivo.

Ora essa! há nele uma crítica de The Excursion’. Isso fez com que o poeta (par

excellence) enfurecido e irritado o ficasse ainda mais. ‘O que eles sabem de sua

poesia? O que podem saber? É uma presunção do mais alto nível a um escritor

cockney pretender criticar um Poeta do Lago’. ‘Bem’, disse o outro, ‘seja como

for, passemos à leitura’. Então começaram. O artigo, no todo, era favorável ao

poeta e ao poema. Enquanto prosseguiam na leitura, ‘ah’, disse Wordsworth, um

tanto satisfeito, ‘o patife escreve com vigor (...). Muito bem escrito, senhor, não

esperava por algo do tipo’ e, caminhando de um lado para o outro na sala de bom

humor, continuava, vez ou outra, conjecturando sobre quem seria o autor (...) –

quando o sr. Wilson o interrompeu dizendo, ‘Oh, você não sabe quem é? É

decerto Hazlitt, dá para ver pelas iniciais’, o que lançou nosso pobre filósofo a um

alvoroço ainda maior153.

Depois de castigar tanto quanto pudesse o editor de The Examiner, Leigh

Hunt, Z. mudou de alvo. Hazlitt passou para o centro das atenções quando

Blackwood’s publicou o artigo “Hazlitt Cross-Questioned”. Em tom de conversa entre

Z. e o editor do jornal, aquele propõe a este um questionário, em oito perguntas, na

esperança de que Hazlitt (“ex-pintor, crítico teatral, resenhista, ensaísta, fabricante de

cursos, londrino” 154 ) se justificasse ou simplesmente assumisse seus erros e

inconsistências. As duas primeiras perguntas giram em torno das relações entre

Hazlitt e Wordsworth, do quanto o ensaísta devia sua formação literária e a própria

vida ao poeta. Z. alude a um episódio deveras controverso, quando Hazlitt fora

escorraçado do vilarejo de Keswick depois de uma suposta tentativa de estupro155. Foi

Wordsworth que na época lhe ofereceu guarida, lembra Z. Se o caso jamais fora

                                                                                                                         152 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 246. 153 CWH, “A Reply to ‘Z’”, 9, p. 6. 154 The Blackwood’s Magazine, p. 550. 155 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 98.

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comprovado, Wordsworth e Blackwood’s não hesitaram em espalhá-lo aos quatro

ventos. Quanto ao primeiro tema, a influência de Wordsworth sobre o pensamento

poético de Hazlitt, ele nunca o desmentira, o que se nota, entre outras, pela presença

das imagens crepusculares em seus ensaios, símbolo da revolução, sobre as quais nos

detivemos no primeiro capítulo. Esse é precisamente o motivo do porquê, após o

abandono da fé no povo, Wordsworth passou de mentor a inimigo a ser combatido.

Para uma maior compreensão do tema, voltemos à série “Illustrations of The Times

Newspaper” e à passagem sobre o good hater.

Apresentamos, anteriormente, ao editor do The Times uma definição do

verdadeiro jacobino como aquele ‘que viu a estrela da tarde se pôr sobre a

choupana de um homem pobre e a conectou com as esperanças da felicidade

humana’. O político da cidade zombou de nossa definição pastoral (...). Desde

então, a nossa imaginação se tornou menos romântica; assim, apresentemos a ele

outra definição, com a qual ele possa ruminar durante as horas vagas. Um

verdadeiro jacobino, pois, é alguém que não acredita no direito divino dos reis ou

em qualquer outra alcunha similar, na qual esteja implicada a ideia de que eles

possam governar ‘por desprezo à vontade do povo’; isto é, alguém que considera

todos os reis tiranos; seus súditos, escravos. Para ser um verdadeiro jacobino, um

homem deve ser um good hater. Mas esta é a mais difícil e a menos amável de

todas as virtudes156.

A imagem crepuscular, a estrela da tarde, captura, como poucas, a nostalgia

do passado que, nas mãos de Blake, Coleridge, Wordsworth, Hazlitt e outros, se

converteu em uma política e uma estética157. Mais explicitamente, o trecho faz alusão

a Michael, a Pastoral Poem, de 1802. Ali Wordsworth fala abertamente das

aspirações revolucionárias entre os mais pobres, os homens do campo. No entanto, os

tempos agora eram outros. Enquanto Wordsworth via a transição da sociedade rural

para a industrial como decadência158, da qual ele se lamentava simplesmente ou se

revestia da figura reclusa do poeta do lago, Hazlitt não evitou o choque das ruas. É

                                                                                                                         156 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p 151. 157 Ver o item “A estrela da tarde”, do primeiro capítulo desta tese e meu artigo “‘With Music and Painting in Mind’: Religion and Art in Hazlitt’s Imagery”, In. The Hazlitt Review, Volume 8 (London: Hazlitt Society, 2015), pp. 47-57. 158 Raymond Williams, O Campo e a Cidade na História e na Literatura (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011), p. 165.

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precisamente nesse contexto que este cunhou uma das alegorias mais marcantes de

seu século: o poeta, ou o pássaro, em meio à turba das ruas que não o compreende.

Todo o trecho acima, sobre o verdadeiro jacobino, é estruturado segundo a

oposição entre o campo e a cidade: a definição pastoral de good hater versus uma

outra, menos idílica e mais afim ao político da cidade; o homem pobre do campo e a

estrela solitária versus o corporativismo da imprensa periódica. Seu sentido,

entretanto, não é o mesmo do contraponto tradicional entre a “inocência no campo e o

vício na cidade”; antes, ele é substituído por outro, mais complexo, assinalado pela

“perda de conexões (...) e de identidade na multidão (...) que se refletia na perda de

identidade do eu” 159 . Esta última, como vimos, aparece na fantasmagoria dos

indivíduos que projetam a si mesmos uma importância ideal, atravessada por milhares

de olhares anônimos – fenômeno próprio das grandes concentrações metropolitanas.

Outra de suas manifestações provém do “fluxo indistinto de sensações urbanas”160 de

homens e mulheres que se “deslumbram com o tumulto, as exibições e as

aparências”161.

Segundo Raymond Williams, poucos foram tão sensíveis às novas atitudes

mentais “que viriam a se tornar dominantes”162 quanto Wordsworth. Ele a descreve

com precisão no sétimo livro de The Prelude [Residence in London]. A passagem

abaixo é exemplar:

How often in the overflowing streets

Have I gone forward with the crowd, and said

Unto myself, ‘The face of every one

That pass by me is a mystery!’

Thus have I looked, nor ceased to look, oppressed

By thoughts of what or whither, when and how,

Until the shades before my eyes became

                                                                                                                         159 Idem, pp. 252 e 256. 160 Gilmartin, William Hazlitt: Political Essayist, p. 245. 161 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 68. 162 Williams, O Campo e a Cidade, p. 256.

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A second-sight procession such as glides

Over still mountains, or appears in dreams,

And all the ballast of familiar life.163

Neste que é um dos “mais importantes épicos da consciência humana”164,

escrito no curso de uma vida e publicado postumamente, em 1850, Wordsworth narra

a formação de seu espírito, desde a terna infância à ascensão climática e metafórica de

Snowdon. Para a nossa análise, recorremos à versão de 1805, pois mais próxima

historicamente da vida londrina de que tratamos.

Nos primeiros dois versos, o poeta mergulha nas ruas sem saber aonde será

conduzido. A materialidade sonora na expressão overflowing streets, se dermos

ouvidos ao jogo do som e do sentido das palavras, sugere fluidez e rumo incerto,

porém uniforme. Overflowing é ritmicamente marcada pelo fonema /əә/. Como

sabemos, este é um dos sons vocálicos mais comuns em língua inglesa A repetição do

trivial é significativa, posto que ela corporifica a cidade como lugar da perda de

identidades e de mesmices. As distrações vulgares que se infiltram nos olhos e

ouvidos do poeta buscam, inutilmente, romper com o trivial: numa rua, “espetáculos

ambulantes”; noutra, “grupos de cantores”; noutra, ainda, uma vendedora grita “o

mais esganiçado dos bramidos de Londres”. As consoantes fricativas /v/ e /f/, que já

se mostram em often, e reaparecem em forward, junto ao sibilo repetido de streets,

formam sobre a mente do poeta a sugestão sonora do “fluxo perpétuo de homens e

moving things”. Rostos e mercadorias anônimas causam-lhe estranhamento sublime

(sublimed by awe). O poeta para para observá-los; fica estonteado. Sem fixar os olhos

em ponto algum porque a visão lhe é opressora – o que se nota no ritmo de vai-e-vem

da sequência de conjunções “what or whither, when or how” –, ele, por fim, recorre

aos olhos do espírito. Uma pré-visão (second-sight), um sonho o conforta: “o espírito

da natureza estava sobre mim ali.”165 Still mountains fazem, nos versos finais, de

vínculo metonímico entre a natureza perene, imóvel e familiar e o espírito do poeta

que anseia pelas mesmas qualidades, isto é, por tudo que seja capaz de içá-lo das ruas

transbordantes.                                                                                                                          163 Wordsworth, The Prelude, p. 286. 164 Idem, p. xxv. 165 Idem, pp. 260, 258 e 292.

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O livro sétimo, “Residence in London”, conclui com um dos ataques mais

“devastadores sobre a cidade” feitos em seu tempo: a artificialidade e o “senso de

alienação”166 dos divertimentos populares; sobretudo os que o encontraram na feira de

São Bartolomeu. Ali, “all moveable wonders”, “all freaks of nature”, um verdadeiro

paraíso de desajustados fascina os olhos de milhares; e também, a seu modo, os do

poeta. Mas é do alto, “above the press and danger of the crowd” e sob as asas da

Musa, que ele observa essa “blank confusion.”167 O que ocorreria a ambos, a

Wordsworth e à sua musa, se recolhessem as asas e ali se demorassem?

Hazlitt jamais conheceu esses versos de The Prelude. Entretanto, e sem

poder afirmar com precisão, é a Wordsworth que a alegoria hazlittiana do pássaro ou

poeta na multidão se refere. Não somente a ele, é claro; os termos da alegoria são

abstratos e descrevem, em linguagem imagética, o que ocorre com o espírito da

poesia em meio a ruas, praças, parques e feiras apinhadas de gente. Passemos, pois,

ao trecho em questão, publicado, primeiramente, no segundo ensaio da série

“Illustrations of The Times Newspaper: On Modern Lawyers and Poets”, em seguida,

em The Round Table, sob o título “On Poetical Versatility”.

[A poesia] tem a extensão do universo; atravessa o empíreo e olha a natureza

abaixo de uma esfera mais alta. Quando toca a terra, perde algo de sua dignidade

e uso. Sua força está em suas asas; seu elemento é o ar. De pé, acotovelada na

multidão, está sujeita a ser derrubada, pisoteada, desfigurada; pois suas asas são

de um brilho deslumbrante, ‘do tinto do próprio céu’, e a menor quantidade de

solo sobre elas lhes são desvantajosas. Atolada e degradada como a vemos, não a

insultemos, mas deixemos que o tempo remova as manchas e ela se veja por si

mesma como algo imortal.168

Se olharmos para o entorno onde esta passagem se encontra, veremos que

são algumas as alusões e referências diretas e indiretas a Wordsworth. Pouco antes,

Hazlitt cita o poeta duas vezes: primeiro, os famosos versos de Ode: The Morning of

the Day Appointed for a General Thanksgiving: “carnage is thy daughter”; segundo,

                                                                                                                         166 Dart, Metropolitan Art and Literature, p. 139. 167 Wordsworth, The Prelude, pp. 290, 288 e 290. 168 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 142.

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uma passagem de The Excursion: “constrained by mastery”169. Naquele, sob a forma

irregular da ode pindárica, Wordsworth “expressa os seus sentimentos sobre Waterloo

com fervor e impetuosidade”170, ou seja, a sua repugnância aos jacobinos e antipatia a

Bonaparte; neste, a irregularidade da poesia da natureza, que não se deixa constranger

por leis externas, é o que distingue, segundo Hazlitt, os poetas dos advogados

modernos e permite aos primeiros “plainar sobre todos os obstáculos” 171 . No

parágrafo conclusivo, sobre a aliança entre poesia e revolução, a alusão a Wordsworth

é ainda mais explícita. Mesmo sem citar o seu nome, sabemos, por uma comparação a

outro escrito do autor172, que é de Wordsworth de quem se trata; ou melhor, de seus

anos de juventude, quando, por meio de uma poesia revolucionária, “todas as

distinções da arte ou da natureza eram niveladas.”173

Segundo uma evidência externa, em L. Boerne; Lettres Écrites de Paris

Pendant les Annés 1830 et 1831, Sainte-Beuve confirma a figura de Wordsworth

como o pássaro na multidão. Depois de comparar a natureza da imaginação do sr.

Boerne com uma cotovia “que, no crepúsculo do sol, se eleva, em círculo alegre”,

Sainte-Beuve lembra que a mesma comparação fora antes feita “por um célebre

crítico inglês, Hazlitt, aplicada felizmente ao poeta Wordsworth”174.

Mais importante, no entanto, do que saber se Wordsworth é o pássaro na

multidão par excellence são os sentidos atinentes à alegoria. Como se sabe, a

comparação entre o poeta e o pássaro do campo é bastante antiga – ela remonta às

Metamorfoses de Ovídio175. Naqueles anos, seguindo a voga helenística na poesia

romântica inglesa176, não foram poucos aqueles que a ela recorreram, como se nota,

entre outros, na Ode ao Rouxinol de Keats, ou em A uma Cotovia de Shelley. Para

                                                                                                                         169 Idem, ibidem. 170 Simon Baimbridge, Napoleon and English Romanticism, pp. 170-1. 171 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 142. 172 A parte final da lição “On the Living Poets”, em Lectures on the English Poets, que trata diretamente de Wordsworth, foi quase toda ela extraída da resenha de The Examiner. CWH, 5, pp. 161-164. 173 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 144. 174 Sainte-Beuve, Oeuvres I (Paris: Gallimard, 1949), p. 439. Dada a enorme influência de Sainte-Beuve na literatura francesa de seu tempo, não nos surpreenderia se Baudelaire, a partir de sua leitura, tivesse travado contato com o ensaio de Hazlitt e a imagem do pássaro-poeta na multidão, tal qual o encontramos no célebre poema “O Albatroz”. 175  Ver As Metamorfoses, Livro VI, de Ovídio (Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 1983), pp. 113-18. 176 Sobre o helenismo na poesia romântica inglesa, ver Julio Cortázar, “A Urna Grega na Poesia de John Keats”, In. Valise de Cronópio (São Paulo: Editora Perspectiva, 2011), pp. 17-56. Também sobre o tema, ver Jeffrey N. Cox “Cockney Classicism: history with footnotes”, In. Poetry and Politics in the Cockney School, pp. 146-186.

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ficarmos apenas com nosso autor, em “Sobre a Poesia em Geral”, “seu melhor ensaio

teórico”, segundo Harold Bloom177, Hazlitt explora a aliança secreta de certos

pensamentos e sentimentos com modulações de sons enquanto traço que distingue a

linguagem poética da linguagem prosaica. Se na prosa as palavras não passam de

signos arbitrários, pois “não há aí qualquer princípio de imitação natural,

correspondência às ideias individuais ou ao tom dos sentimentos transmitidos a um

outro”178; na poesia, de sua parte, os significados de um termo, pela sua sonoridade ou

pelo seu aspecto visual, são fundidos à palavra. Histórica e poeticamente, a imagem

que melhor define a atitude da poesia em relação à palavra, libertando-a da

ambiguidade do signo, é aquela entre o poeta e o pássaro. A poesia, diz Hazlitt, “tira

do chão a linguagem da imaginação, habilitando-a a abrir as asas onde possa

satisfazer os seus próprios impulsos.”179 É bastante significativa a oposição entre o ar

da poesia e o chão da prosa, sobretudo quando esse ar é adensado pelas nuvens

espessas das fábricas, e esse chão por um mar tumultuoso de cabeças humanas.

Convém observá-la melhor.

Em 1802, apareceram dois escritos distintos, quase antagônicos, sobre as

ruas e o ar metropolitanos: um, o poema de Wordsworth, Escrito na Ponte

Westminster, 3 de Setembro de 1802; o outro, The Londoner, curto ensaio que Lamb

confiou ao editor de “The Reflector”, Hunt.

O argumento wordsworthiano de que a poesia, esse “transbordar espontâneo

de sentimentos poderosos (...), modificados e dirigidos pelos pensamentos”, se atrofia

na cidade grande é uma de suas principais bandeiras. “O caráter uniforme das

ocupações humanas” e “o anelo pelo incidente extraordinário, que a rápida

comunicação de informação satisfaz a cada momento”180, fizeram com que, segundo

ele, o homem da cidade fosse constantemente compelido pelo novo, desaprendendo a

ver “as coisas como elas são nelas mesmas.”181 Entretanto, em Escrito na Ponte

Westminster, a paisagem urbana se mistura aos aspectos da natureza para gerar uma

                                                                                                                         177 Harold Bloom, William Hazlitt, Modern Critical Views (New Haven: Chelsea House Publishers, 1986) p. 5. 178 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 12. 179 Idem, ibidem. 180 William Wordsworth, The Prose Works of William Wordsworth, Volume I (Oxford At The Clarendon Press, 1974), pp. 126 e 128. 181 Idem, Volume III, p. 26.

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nova fisionomia do mundo182. “Nada há de mais belo”, diz ele, do que o despontar do

sol sobre a metrópole. “Templos, teatros, barcos, torres e abóbadas”, juntos às

“colinas escarpadas” que se observam ao longe, tranquilizam sua alma. Ao contrário

do trecho acima em The Prelude, aqui, Wordsworth jamais põe os pés no chão. Antes,

ele paira nas alturas; a sua visão da cidade é como a de um panorama ou uma

fotografia: “parecem dormir as moradas”183, as ruas estão vazias e todas as coisas,

incluindo seu próprio coração, imobilizadas (lying still). Converge para essa “imagem

naturalizada da metrópole”184 o ar límpido daquela manhã (smokeless air).

The Londoner, de Lamb, em tudo lhe é distinto. Sua “paixão pela multidão”

é a receita185 para o seu “estado de espírito maníaco-lírico-depressivo”186: “por

natureza, estou inclinado à hipocondria, mas ela se esvai em Londres, como todos os

outros males.”187 Assim, Lamb, “o poeta-prosador de Londres”188, sai do seu “mundo

de cortinas corridas”189 e se lança, da cabeça aos pés, nas ruas da metrópole. “Full-

time funcionário público e part-time flâneur”190, ele caminha com os pés firmes sobre

ruas enlameadas, entre uma multidão de clientes, vendedores, batedores de carteira,

mendigos e limpadores de chaminé; uma “deformidade que, se a outros causa

desgosto, a mim, por força do hábito, não me desagrada”191. Lamb tem aqui em mente

ninguém menos do que Wordsworth. Em uma carta de 1801 ao poeta, ele se desculpa

ao amigo por recusar “o gentil convite” de visitá-lo em Cumberland: “pouco me

importa se jamais vir uma montanha em minha vida”. A natureza selvagem, para ele,

é uma “natureza morta”; a metrópole, por contraste, é impregnada, dia e noite, de vida

                                                                                                                         182 Curiosamente, Walter Benjamin, em “O Flâneur”, desconhece essa que é, possivelmente, a primeira expressão poética sobre a cidade moderna. Antes, Benjamin lembra um poema de Shelley, Peter Bell The Third, de 1819, que estabelece um paralelo entre o inferno e a cidade, Londres. Ver, Walter Benjamin, Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo, p. 56. Para uma discussão do poema de Wordsworth em paralelo com o ensaio de Benjamin, ver Chandler e Gilmartin, Romantic Metropolis, pp. 12-3. 183 William Wordsworth, O Olho Imóvel pela Força da Harmonia, tradução e apresentação Alberto Marsicano e John Milton (São Paulo: Ateliê Editorial, 2007), pp. 60-1. 184 James Chandler, Romantic Metropolis, p. 12. Encontramos uma imagem semelhante no poema de Wordsworth Versos Escritos a Poucas Milhas da Abadia Tintern, Revisitando as Margens do Rio Wye, 13 de julho de 1798. Registra-se aqui meus agradecimentos ao Prof. Dr. John Milton por ter chamado a minha atenção a esse poema. 185 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, p. 39. 186 Expressão cunhada por Vinícius de Moraes para se referir ao ensaísta Charles Lamb. Ver “O Exercício da Crônica”, In. Para uma Menina com uma Flor, 1966, p. 53. 187 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, p. 39. 188 Marie Hamilton Law, The English Familiar Essay in the Early Nineteenth Century, p. 177. 189 Vinícius de Moraes, Para uma Menina com uma Flor, p. 54. 190 Dart, Metropolitan Art and Literature, p. 144. 191 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, p. 40.

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e recordações românticas: “as luzes das vitrines em Strand e Fleet Street (...) todo o

alvoroço e perversidade ao redor de Covent Garden; ah, as mulheres da cidade (...);

cenas embriagadas, a balbúrdia”. “Emoções”, conclui Lamb, “que podem parecer

estranhas a você [Wordsworth]. Assim como as emoções rurais são estranhas a

mim.”192 O ar é carregado tanto quanto as ruas: “há algo substancial e gratificante na

névoa da metrópole – você sente e vê o ar que respira.”193 Esses elementos mais crus

e prosaicos se misturam à sua “fidelidade oscilante entre o verso e a prosa.”194 Eles

compõem a alquimia de uma mente avessa aos excessos de pureza; uma mente que se

dirige aos seus ouvintes não de cima para baixo, mas de igual-para-igual, ao rés-do-

chão. Nas palavras de Dart: nascia aqui um “um romantismo metropolitano e ele é

coevo ao romantismo primitivista.”195

Em meio às ruas transbordantes, segundo a alegoria hazlittiana, a imaginação

romântico-primitivista se infla, é embriagada com a ilusão de poder. Para que suas

asas, “de um brilho deslumbrante”, não sejam cobertas de lama, ela, com o jornal The

Times, “navega rio acima, ao invés de lutar contra a corrente.”196 Há em ambos uma

atitude aristocrática. A imaginação romântico-metropolitana, por contraste, a exemplo

de Lamb, diz Hazlitt, conduz-nos por “vias subterrâneas (...), encanamentos e

tubulações”; navega entre a poesia e a prosa, “o egoísmo e a humanidade

desinteressada.” 197 . “As ruas são o grande palco para o estímulo de [sua]

imaginação”198. No miolo da vida moderna, cabe a ela, ou melhor, a ele, o ensaísta ao

rés-do-chão, realizar a fusão da cidade com o mundo natural por meio de uma

imaginação sublime, metropolitana e democrática.

                                                                                                                         192 Charles Lamb, Selected Prose (London: Penguin Classics, 2013), p. 331. 193 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, “London Fog”, p. 351. 194 Mathew Beaumont, Night Walking: A Nocturnal History of London, Chaucer to Dickens (London: Verso, 2015), p. 324. 195 Dart, Metropolitan Art and Literature, p. 143. 196 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 137. 197 CWH, “Elia, and Geoffrey Crayon”, 11, p. 179-180. 198 Phillip Lopate, “Bachelorhood and its Literature”, In. Bachelorhood: Tales of the Metropolis (New York: Poseidon Press, 1981), p. 261. Ainda sobre o ensaísta enquanto o flâneur e em conexão com Lamb e Hazlitt, diz Lopate: “O narrador solteirão é uma criatura urbana. Primeiro, porque é apenas na cidade que as diversões financiáveis estão facilmente ao seu alcance; segundo, porque a cidade oferece a ele um campo de percepções sinistramente adequadas ao seu temperamento genioso; terceiro, porque a cidade dá a ele liberdade para cultivar suas fantasias de encontrar um novo amor na esquiana ao lado, um potencial ilimitado para aventuras eróticas que quase sempre não se materializam”, p. 260.

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6. ‘Rio de Vida Humana’ 199 : a imaginação e o sublime metropolitanos e

democráticos.

Originalmente, a resenha de Hazlitt sobre o poema The Excursion foi

publicada em três partes. A meio caminho da última delas, há um longo parágrafo no

qual ele se opõe duramente não apenas às emoções rurais de Wordsworth, mas às

supostas virtudes rurais. A frase de abertura, em tom proverbial, anuncia a pegada

combativa, polêmica e jocosa, própria ao ensaísta adversário: “todo homem do campo

odeia um ao outro.”200 Logo abaixo, como justificativa para a influência moral nociva

que a rusticidade exerce sobre os homens, segue-se uma descrição do campo que é um

“catálogo de privações moralmente ambíguo”201:

[No campo], não há nenhuma loja, nenhuma taverna, nenhum teatro, nenhuma

ópera, nenhum concerto, nenhum quadro, nenhum edifício público, nenhuma rua

apinhada de gente, nenhum baralho de tráfego, nenhuma corte de justiça –

tampouco bajuladores ou cortesãs; nenhuma reunião literária, nenhum itinerário

elegante, nenhuma sociedade, nenhum livro ou conhecimento sobre os livros. A

vaidade e o luxo civilizam o mundo e suavizam a vida humana. Na falta de

objetos de prazer ou de ação, ela germina de maneira dura e rabugenta: a mente se

torna estagnada; os afetos, calejados; os olhos, embotados. Quando só, consigo

mesmo, o homem logo se degenera numa pessoa muito desagradável.202

Há, decerto, algo de caricatura neste relato. Sua hostilidade ao campo se

investe de recursos retóricos, o que se nota, entre outros, pela repetição enfática do

pronome indefinido – nenhum, nenhuma (no, em inglês) – para compor uma

paisagem nula, de terra arrasada, sobretudo quando a contrastamos com a cidade. O

trecho cobra dos leitores um exercício comparativo, posto que é na cidade onde

encontramos tudo aquilo de que o campo carece. Civilidade e vida cívica caminham

lado a lado. Ligada a ela, está uma ética do prazer: divertimento, luxo e beleza. Só se

chega à humanidade pelo supérfluo. “No campo”, diz Hazlitt em “On Londoners and

                                                                                                                         199 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 77. 200 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 21. 201 Kevin Gilmartin, “Hazlitt’s Visionary London”, In. Repossessing The Romantic Past (Cambridge University Press, 2006), p. 46. 202 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 22.

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Country People”, “o homem não passa de um rebanho de gado.”203 A coletividade ali

é desprovida de qualquer abstração; o entendimento, inoperante. É o conhecimento,

diz ele, que nos permite alargar a mente com a aquisição de “ideias liberais”, isto é,

ideias que “nos transportam para fora de nós mesmos”, com as quais, e somente por

meio delas, desenvolvemos um senso de alteridade. Esta é a utilidade das peças

teatrais, dos concertos, quadros e leituras. Eles nos tornam íntimos de “personagens e

situações imaginárias”, alheias a nós mesmos. Na falta deles, os homens “são um

bicho-papão de sua própria espécie (...), dão vazão a todo o estoque de spleen, malícia

e invenção sobre os seus amigos e vizinhos da casa ao lado.”204 Em suma, no campo,

a imaginação não corresponde àquela “atividade mental capaz de transformar a

realidade em consciência da realidade”205.

Ora, não é precisamente esse o sentido de imaginação para Wordsworth,

Coleridge e os Poetas do Lago em geral? Sim. Entretanto, para Hazlitt, quando essa

imaginação se mistura ao terreno da política, suas consequências podem ser

catastróficas; como o fora com a retórica antirrevolucionária de Burke, e como era,

agora, na poesia conservadora dos Poetas do Lago206. Para uma maior compreensão

do tema, voltemos à relação ambígua de Hazlitt com Burke, sobre a qual nos

detivemos no capítulo primeiro desta tese.

Burke é o progenitor da apostasia moderna. Outrora figura de destaque da ala

oposicionista e progressista dos whigs, por décadas, ele conduziu as principais pautas

de seu partido com o espírito de um verdadeiro “herói dos radicais.”207 Do mesmo

modo, a linguagem que então empregava no parlamento era límpida e persuasiva –

não por outro motivo, em um quadro do pintor James Barry de 1776, Burke aparece

sob a figura do guerreiro solerte, Ulisses. A reviravolta ocorreu com a Revolução

Francesa. Em seus discursos e escritos públicos contrarrevolucionários, a linguagem

se tornou hiperbólica, apaixonada e sublime. Em outras palavras, ela é revestida “da

luz de uma imaginação (...) estonteante”. Por meio dessa “eloquência apóstata”,

Burke, diz Hazlitt, “foi o mais hábil retórico que este mundo já viu”; inverteu a                                                                                                                          203 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 77. 204 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 23. 205 Davi Arrigucci Jr., Coração Partido: Uma Análise da Poesia Reflexiva de Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2002), p. 66. 206 John Whale, “Hazlitt and the Limits of the Sympathetic Imagination”, In. Imagination Under Pressure, 1789-1832, Aesthetics, Politics and Utility (Cambridge University Press, 2000), pp. 110-139. 207 David Bromwich, “Introduction” to Edmund Burke, On Empire, Liberty and Reform: Speeches and Letters (New Haven: Yale University Press, 2000), p. 10.

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corrente revolucionária e “estragou os planos do conhecimento e dos progressos

civilizatórios, lançando-os de volta a, pelo menos, um século e meio atrás.”208

Tamanha é a força da imaginação moderna. Se, no mundo antigo, “as ideias se

mantinham confinadas e bem definidas pelas formas materiais ou pelos veículos com

as quais elas eram conduzidas”209, a imaginação moderna “passa da terra ao céu, do

céu à terra”210 e promove a união dos extremos. Nesta “era liberal em que vimemos”,

à contraparte do argumento exposto acima, há uma licença para a apostasia política,

pois é permitido a qualquer um “mudar de lado (...), de um extremo a outro.”211

Entretanto, a maneira como isso se deu em Burke e nos Poetas do Lago não foi a

mesma, constrangidos, como estavam, à “lógica das formas.”212 Em “On the Prose-

Style of Poets”, Hazlitt expressou essa contraposição a partir de duas imagens

distintas, porém igualmente rústicas e sublimes: a águia e a camurça.

The Plain Speaker, a última coletânea de ensaios reunidos por Hazlitt, abre-

se com um texto seminal, “On the Prose-Style of Poets”. Este, segundo Tom Paulin,

“concentra as reflexões de uma vida sobre a natureza da prosa e traça, com efeito,

uma poética da prosa.”213 No parágrafo de abertura, reencontramos a imagem do

pássaro-poeta que caminha desajeitado, cambaleante, sobre o chão duro da prosa:

“como um pássaro, ele [o poeta] desliza sobre o ar com facilidade para consigo

mesmo e deleite dos espectadores; mas, como aquelas ‘criaturas emplumadas de duas

patas’, quando tocam o chão da prosa e as matérias-de-fato, não possuem o mesmo

domínio sobre seus pés.”214

A primeira metade do ensaio descreve a singularidade da matéria, cadência e

tarefa da prosa de não-ficção (o ensaio) por oposição à poesia e sua interface com a

linguagem do dia-a-dia e os bate-papos entre amigos. Na segunda parte, “a explicação

das observações anteriores a partir de exemplos”215, Hazlitt propõe um exercício de

leitura, uma análise comparativa do estilo de Burke em Letter to a Noble Lord, com

                                                                                                                         208 CWH, “Arguing in a Circle”, 19, pp. 271 e 273. 209 CWH, “Character of Mr. Burke”, 7, p. 312. 210 Shakespeare, “Sonhos de uma Noite de Verão”, In. William Shakespeare, Teatro Completo: Comédias, tradução de Carlos Alberto Nunes (Rio de Janeiro: Agir, 2008), p. 202. A Passagem é citada por Hazlitt em “On Poetry in General”, In. CWH, 5, p. 2. 211 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Apostates”, 7, p. 131. 212 William Hazlitt on The Elgin Marbles (London: Hesperus Press Limited, 2008), p. 34. 213 Tom Paulin, “Introduction” to William Hazlitt, The Plain Speaker: The Key Essays (Oxford: Blackwell Publishers, 1998), p. vii. 214 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 5. 215 Idem, p. 10.

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um artigo de jornal sobre a morte de Lorde Castlereagh (diplomata inglês no

Congresso de Viena), seguido da análise dos estilos em prosa de Coleridge, Southey,

Hunt, Byron e Scott. Os pontos que amarram as duas partes do ensaio são a imagem

do “chão da prosa” e, junto a ela, o argumento de que “a boa prosa possui textura,

forma, padrão, beleza e, em termos hazlittianos, momentum.”216

É no primeiro desses exemplos, sobre o estilo prosaico de Burke, que Hazlitt

se vale das imagens da águia e da camurça como símbolos, respectivamente, da

poesia e da prosa sublimes:

Sempre me pareceu que o mais perfeito estilo prosaico, o mais poderoso, o mais

estonteante e o mais ousado – aquele que esteve mais próximo do precipício que

separa a poesia da prosa sem, contudo, jamais se desgarrar dele – foi o de Burke.

Ele possui a solidez e os efeitos reluzentes do diamante (...); nunca perde o objeto

de vista; mais ainda, está sempre em contato com ele, do qual obtém a ampliação

e as variações de seus impulsos. Pode-se dizer que ao caminhar ‘sobre a ponta

sólida do cabo de uma lança’ ele transpõe sorvedouros; ainda assim, há um lugar

de descanso e um suporte tangível para os seus pés: ele não está suspenso no

nada. O estilo de Burke se diferencia da poesia, a meu ver, tal como a camurça da

águia. A primeira ascende a quase igual altitude da segunda: toca nas nuvens,

olha para o precipício abaixo, é pitoresca e sublime; mas, entrementes, ao invés de

plainar sobre o ar, mantém-se firme no despenhadeiro rochoso, escala de maneira

abrupta e intrincada e pasta pelos córtices mais rugosos ou colhe das flores mais

ternas. O princípio com o qual guiou a sua pena foi a verdade, não a beleza; não o

prazer, mas o poder.217

A princípio, ficamos surpresos pela escolha de Burke, arqui-inimigo de

Hazlitt na causa revolucionária, como exemplo do mais perfeito estilo prosaico. A

escolha dele, entretanto, junto à paisagem agreste e sublime na descrição acima,

estabelece, alusivamente, um elo entre a contrarrevolução e a Investigação sobre o

Sublime e o Belo; ou ainda, como ressaltou John Whale, entre poder e imaginação218.

                                                                                                                         216 Paulin, “Introduction” to The Plain Speaker: The Key Essays, p. vii. 217 CWH, “On The Prose-Style of Poets”, 12, p. 10 (grifo nosso). 218 John Whale, “Hazlitt on Burke: The Ambivalent Position of a Radical Essayist”, In. Romantic Studies, Volume 25, p. 474.

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São algumas as passagens de The Plain Speaker que remetem os leitores à

obra de juventude de Burke. Antes de entrar para o mundo da política, lembra Hazlitt

em “On Diferences Between Writing and Speaking”, Burke foi autor de “um tratado

sobre o Sublime e o Belo.”219 Nesta obra, que é um divisor de águas nos estudos sobre

o tema, a partir de “um exame atento do âmago de nossas paixões”220, Burke cristaliza

as diferenças entre o sublime e o belo. Em linhas muito gerais, enquanto o belo

corresponde ao sentimento de prazer decorrente da conformação dos sentidos às

representações do mundo exterior; diante do sublime, os sentidos e a imaginação se

veem incapazes de formar uma imagem clara e distinta. No esforço de abarcar o todo,

a mente, em seu vínculo estreito com o corpo, se projeta ao píncaro da tensão para,

em seguida, despencar no vazio representacional. Física e metaforicamente, os

precipícios dos vastos desfiladeiros montanhosos, junto às suas texturas escarpadas,

formam as paisagens sublimes por excelência, como observamos no trecho abaixo:

A extensão pode ser em comprimento, em altura ou em profundidade. Dentre essas o

comprimento é o que causa uma impressão menor: um terreno uniforme de uma

centena de jardas nunca produzirá um efeito semelhante ao de uma torre de cem

jardas de altura, ou um rochedo ou montanha dessa altitude. É lícito supor,

igualmente, que a altura seja menos importante do que a profundidade e que nos

choque mais olhar para um precipício abaixo do que para um objeto de altura

equivalente (...); e os efeitos de uma superfície irregular e acidentada parecem mais

fortes do que quando ela é uniforme e polida.221

Desse modo, a camurça é símbolo de resistência daquele que rivaliza com o

cenário ameaçador. Sem negar a terra, nem dela fugir, como a águia, ela alcança

altitudes monumentais. Decerto, isso não ocorre com a mesma facilidade ou beleza,

pois seus “materiais prometem pouco” e se ocupam de “áridas matérias-de-fato e

raciocínios cerrados.”222 Se a águia voa para o Parnaso, a camurça, com suas pernas

fortes, terrenas e maciças, “mantém-se firme no despenhadeiro rochoso”. A

materialidade sonora do excerto em inglês é significativa: “it stands upon a rocky

                                                                                                                         219 CWH, “On the Difference Between Writing and Speaking”, 12, p. 269. 220 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 22. 221 Idem, p. 97 (grifo nosso). 222 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 10.

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cliff”. A sequência de palavras monossilábicas, acentuadas ritmicamente pelas

consonantes surdas /t/, /p/ e /k/, mimetizam a ascensão dura e gradual da camurça.

Esta é também símbolo daquela atividade da imaginação que parte do

construído, daquilo que é herdado pela tradição. Ao analisar uma passagem de Letter

to a Noble Lord (“a mais ligeira, impetuosa, oblíqua e esportiva de todas as suas

obras” 223 ), Hazlitt se pergunta: de que outro modo senão pela imaginação a

Constituição Inglesa e as baixas planícies de Bedford são “corporificadas em um todo

único”224? Ainda que por vias distintas, na poesia ou na boa prosa, é a imaginação que

coalesce uma ideia na outra. Entretanto, porque na prosa ensaística “o tema geral e a

imagem particular são incompatíveis”225, ou ainda, porque há aqui uma “não-

identidade entre o modo de exposição e a coisa”226, para que seus tropos e figuras

ocupem o lugar dos argumentos, a imaginação é artificial e violentamente engastada

na matéria, “ao invés de brotar naturalmente dela.”227 Em outras palavras, os trabalhos

envolvidos no ato de criação do ensaio em prosa são árduos e exigem uma dura e

muscular energia, uma força sublime, tal qual a escalada da camurça.

Esse sentido de imaginação guarda alguma semelhança com aquele que

encontramos na Biographia Literaria de Coleridge. A partir das observações de Kant

sobre a imaginação produtiva e imaginação reprodutiva228, o poeta desenvolveu a

importante distinção entre imaginação e fantasia. Enquanto esta consiste no simples

rearranjo dos materiais fornecidos pela experiência empírica, aquela é, num primeiro

momento, “força vital” e agente de toda percepção humana e, num segundo, “vontade

consciente” que “dissolve, difunde e dissipa, para então recriar.”229 A esse segundo

momento da imaginação, Coleridge cunhou um termo específico: esemplastic (“to

                                                                                                                         223 CWH, “On the Difference Between Writing and Speaking”, 12, p. 275. 224 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 12. 225 Idem, p. 11. 226 Theodor W. Adorno, “O Ensaio como Forma”, In. Notas de Literatura I (São Paulo: Editora 34, 2008), p. 37. 227 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 11. 228 Ver, sobretudo, Immanuel Kant, “Analítica do Belo (Crítica do Juízo, §§ 1-22)”, In. Crítica da Razão Pura e Outros Textos Filosóficos (São Paulo: Editor: Victor Civita, 1974), pp. 303-334. 229 Samuel Coleridge, The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria I (Princeton University Press, 1983), pp. 304-5.

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shape into one”), ou, como bem definiu Davi Arrigucci Jr., “modo orgânico de

plasmar a matéria múltipla na unidade.”230

O ensaísta Hazlitt – animal pedestre, sem asas para teorias sofisticadas –

jamais vestiu a camisa de força do jargão. Assim, em seus escritos, os termos

imaginação, fantasia e poesia são, a rigor, indistintos. Até mesmo para Coleridge, diz

Hazlitt em tom de pilhéria, “essa inquisição sobre a imaginação era ininteligível”231,

ou ele foi incapaz de explicá-la ao resto do mundo, o que dá na mesma232. Em partes,

isso se deve a sua alma de poeta; “sua metafísica foi um peso morto sobre as asas de

sua imaginação”. A partir de então, Coleridge, outrora um grande poeta, “escolheu ser

um mau filósofo e péssimo escritor político”. Se a sua poesia juvenil, como as de

Wordsworth e Southey, libertou a palavra das amarras tradicionais e reagiu contra

toda opressão ou estreiteza de gosto, seus escritos em prosa reatavam com o poder

dominante. Rente ao chão comum, seus voos giram em falso, “oscilam com um

movimento vertiginoso e nauseante”233 e parecem, segundo o símile de Hazlitt,

“montar sobre um balão, subir aos céus, acima do rés-do-chão da prosa.”234

Além disso, o produto final do ensaísta prosador contraria, em tudo, o padrão

da forma orgânica. Seus materiais são pré-existentes e compõem, segundo a analogia

de Paulin, “uma peça de bricolagem”235. Implícita a ela está a ideia de que, ao fim e

ao cabo, o ensaio em prosa recusa os pressupostos de uma arte separada da vida

prática. Isso não significa que ela aspire, necessariamente, a uma transformação

social. Pelo contrário, a prosa sublime de Burke reforçava “a causa do despotismo”;

“é o excesso de poder individual que impressiona e obtém a adesão da imaginação”

                                                                                                                         230 Essa definição de Arrigucci, com base no capítulo X da Biographia Literaria, aparece em seu estudo sobre a poesia reflexiva de Drummond em que o crítico brasileiro com frequência recorre aos conceitos e às imagens forjados pelos romantismos ingleses e alemães, p. 21. 231 CWH, “Coleridge’s Literary Life”, 16, p. 136. 232 Em “Letter to a Young Man Whose Education has been Neglected”, Thomas De Quincey expressa uma opinião similar. Se Coleridge compreendeu a filosofia kantiana melhor do que qualquer outro inglês de seu tempo, “ele abriu o oráculo com uma obscuridade délfica ainda maior do que o original em alemão”. The Collected Writings of Thomas De Quincey, Vol. X (London: A. & C. Black, 1897), p. 77. 233 CWH, “Coleridge’s Literary Life”, 16, p. 137. 234 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 15. 235 Paulin, “Introduction” to The Plain Speaker, p. xv. Vale lembrar, Montaigne associa seus ensaios a quadros grutescos ou remendos: “Examinando o procedimento de um pintor num trabalho que possuo, senti vontade de imitá-lo. Ele escolheu o lugar mais belo e no centro de cada parede para ali instalar um quadro elaborado com todo o seu talento; e o vazio a redor, encheu-o de grutescos, que são pinturas fantasiosas cuja única graça está na variedade e estranheza. O que são estes também, na verdade, senão grutescos e corpos monstruosos, emendados como membros diversos, sem forma determinada, não tendo ordem, nexo nem proporção além da causalidade?”. Montaigne, Os Ensaios, Livro I, pp. 273-4.

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dos homens. Seria possível mobilizar essa mesma força imaginativa para fins

contrários, isto é, para uma arte que estivesse a serviço do povo, da “causa da

liberdade”236?

É isso o que parece sugerir a Londres visionária de Hazlitt, segundo a versão

metropolitana e democrática de outra imagem sublime, “rio de vida humana” [stream

of human life], que encontramos no parágrafo conclusivo de “On Londoners and

Country People”:

Em Londres o homem se torna, como quer o sr. Burke, uma espécie de ‘criatura

pública’. Ele vive no olho do mundo e o mundo no seu. Se testemunha poucos

detalhes da vida privada, há para ele maior oportunidade de observar suas massas

mais extensas e movimentos variados. Ele vê o rio de vida humana jorrando pelas

ruas – suas comodidades e ornamentações empilhadas nas lojas. As casas dão

provas de sua indústria; os edifícios públicos, da arte e magnificência do homem;

enquanto os entretenimentos públicos e balneários formam um centro e sustento

para os sentimentos sociais. Uma casa de espetáculos é, por si só, uma escola da

humanidade, onde todos os olhos se fixam sobre a cena alegre ou solene, onde

risos ou lágrimas se espalham de um rosto a outro e onde milhares de corações

batem em uníssono! (...) Em Londres existe um público, e cada homem faz parte

dele. Somos gregários e agimos segundo a espécie. Temos um tipo de existência

abstrata; os laços sociais e de boa-camaradagem se formam por uma comunidade

de ideias e conhecimento (não pela proximidade local). Esta é a principal razão do

tom de sentimentos políticos das cidades vastas e populosas. Aqui, o corpo-

político é visível, um tipo e imagem daquele enorme Leviatã, o Estado.

Compreendemos aquela vasta denominação, o Povo, da qual vemos diariamente

uma décima parte se movendo à frente de nós; e, ao emancipar nossas

imaginações de interesses insignificantes e da dependência pessoal, aprendemos a

venerar a nós mesmos enquanto homens e a respeitar os direitos da natureza

humana.237

Se compararmos a paisagem que o trecho descreve com aquela que lemos

acima, sobre o estilo prosaico de Burke, notamos, de saída, a clássica oposição entre o

campo e a cidade; ou ainda, em termos mais específicos, entre os desfiladeiros

                                                                                                                         236 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p. 149. 237 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 77.

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montanhosos, entrecortados por fissuras, e a superfície abundante e transbordante da

metrópole. Em ambos, os termos para descrevê-los são igualmente sublimes – não por

acaso, o último trecho se abre com uma citação de Burke, aproximando os leitores,

por associação de ideias, à Investigação sobre o Sublime e o Belo. As massas da vida

humana são extensas; os edifícios públicos, magnificentes; o Estado, um enorme

Leviatã; o povo, uma vasta denominação; ou seja, todos aqueles adjetivos com os

quais Burke descreve a paisagem sublime – vastidão, infinitude, magnificência e

poder – reaparecem aqui; com exceção, entretanto, de dois: a obscuridade e a

privação238. Ora, obscuridade e privação, segundo a resenha de Hazlitt do poema de

Wordsworth, são os traços distintivos do campo e de seus homens. Daí, por exemplo,

o ódio que nutrem um pelo outro; um ódio, vale lembrar, que torna seus afetos

calejados; seus olhos, embotados. Não é esta, obviamente, a consequência do ódio

para o good hater. Virtude cidadã por excelência, o bom ódio é um exercício de

abstração; é necessário conhecimento para odiar o que deve ser odiado: a “tirania (...),

os inimigos da liberdade (...) e as injúrias cometidas contra o povo.”239 Essa é a mais

difícil das virtudes, dizia Hazlitt, pois ela não ocorre sem que tenhamos “emancipado

nossas imaginações de interesses insignificantes e da dependência pessoal”. “Razão e

imaginação, ambas, são coisas excelentes”240 ; sobretudo quando se unem para

promover a ruptura com a obscuridade opressora e preencher o vazio com a luz de

uma nova vida coletiva. O sublime metropolitano, segundo o excerto sugere, promove

essa união.

Ainda segundo uma análise comparativa entre os trechos de “On the Prose-

Style of Poets” e de “On Londoners and Country People” – entre o sublime rústico e o

metropolitano –, naquele, os conceitos de verdade e poder, de tal modo engastados

nas imagens, produzem um efeito deslumbrante sobre a imaginação; neste, jamais

esquecemos da natureza abstrata dos conceitos de público, Estado e povo. Entretanto,

também aqui os conceitos são corporificados em imagens; eles se tornam, por assim

dizer, visíveis. A visão é o órgão dos sentidos que comanda todo o trecho: o londrino

vive no olho do mundo; vê o rio de vida humana; na casa de espetáculos, todos os

olhos se fixam nas cenas; o Estado é um corpo-político visível; vemos o povo mover-

                                                                                                                         238 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, Parte II, pp. 81-113. 239 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants,” 7, pp. 151-2. 240 CWH, “Coleridge’s Literary Life”, 16, p. 137.

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se diante de nós, etc. Na longa história da filosofia e arte ocidentais, de todos os

órgãos dos sentidos, a visão está mais próxima do conhecimento, estabelecendo uma

espécie de elo entre o corpo e o espírito241. Assim, por mais abstrata ou idealizada que

seja a Londres de Hazlitt, são os conceitos do entendimento, plasmados na imagem

concreta do rio, que dão a forma dinâmica de um imenso movimento político.

Movimento esse que é a expressão de uma imaginação emancipada e coletiva. No

trecho, isso se expressa pela sutil transição no uso dos pronomes: da impessoalidade

do pronome ele (o homem da cidade), para o plural majestático, nós. Nós, quem? O

povo.

O coração de Londres é atravessado por um grande rio. Por ele, a natureza

entra sorrateira na paisagem urbana. Mas ela é humanizada, transmutada no povo. No

léxico político de Hazlitt, poder e povo são sempre antípodas um do outro. Este é o

tema central do ensaio “What is the People?”, “uma das peças de discurso político

mais magníficas jamais escritas na Inglaterra”, segundo Terry Eagleton242. A forma de

pergunta, no título, é um gesto retórico, a indagação sobranceira de um interlocutor

imaginário e conservador. A ela, o ensaísta rebate: “e quem é você que pergunta

senão um membro do povo? Mas se você é alguém, como afirma que o povo é

ninguém?”. Segue-se, então, uma saraivada de golpes contra a visão de que o povo é

um simples ajuntamento de átomos humanos. Antes, ele se identifica com os mais

pobres, aqueles que sustentam o Estado com suas “lágrimas, suor e sangue.”243

Nesse sentido, surpreende encontrarmos nas ruas de Londres “um tipo e

imagem daquele enorme Leviatã”. Mas o povo mede forças com ele. Se o Estado é

enorme, huge (palavra, em inglês, que denota energia concentrada, como o cimo dos

montes), o povo é uma “vasta denominação” [vast denomination]. Sua sublimidade é

como a de um “rio de vida humana que jorra pelas ruas”: quantitativa e consciente de

sua direção. Numa palavra, um sublime democrático. Isso não significa, entretanto,

que Hazlitt levantasse a bandeira deste ou daquele sistema político, pois, dizia ele, a

                                                                                                                         241 Ver Jules David Law, The Rhetoric of Empiricism: Language and Perception from Locke to I. A. Richards, em particular, o capítulo “The ‘Character’ of Reflection: Hazlitt on Depth and Superficiality” (Ithaca: Cornell University Press, 1993) pp. 165-203. 242 Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Francis Hitcheson and William Hazlitt”, In. The Hazlitt Review, Volume 6 (London: The Hazlitt Society, 2013), p. 12. 243 CWH, “What is the People?”, 7, pp. 259 e 265.

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causa do povo é militante, jamais triunfante244. Esse sentido de povo e enfrentamento

foi o toque emancipador que Hazlitt, o ensaísta adversário, deu à imprensa radical

inglesa naqueles anos de resistência. Afinal, ensaio é combate!

                                                                                                                         244 “Se a causa da liberdade e da espécie humana se tornasse triunfante, ao invés de militante, talvez não arrancaríamos do peito um suspiro de lamento em relação ao passado? (...) Mas não nos alarmemos com esse evento, ainda que fosse o caso; pois o caminho para a Utopia (...), do jeito que as coisas andam, ainda vai levar alguns milhares de anos!” CWH, “Common Places”, 20, p. 138. Para uma discussão sobre esta e outras passagens em Hazlitt quanto à oposição entre causa militante e causa triunfante, ver Kevin Gilmartin, “Afterwords: William Hazlitt – a radical critique of radical opposition?”, In. Print Politics, pp. 232-233.

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Conclusão

Excêntrico e Concêntrico

El ensayo: este centauro de los géneros, donde hay de todo y cabe todo,

propio hijo caprichoso de una cultura que no pode ya responder al orbe

circular y cerrado de los antiguos, sino la curva abierta.

Alfonso Reyes, ‘Las Nuevas Artes’1.

O romance é uma espécie de filho pródigo da literatura. Nega o aconchego

do lar, lugar aprazível mas ameno, para desbravar o mundo e viver uma vida de

ardores e perigos. Parte para regiões longínquas; descobre reinos perdidos; trava

guerras com inimigos ferozes; vive e morre de amores; sobe aos cumes mais

suntuosos, desce às profundezes mais abjetas; percorre desertos, mares, vilarejos e

grandes cidades. Sempre nômade, nunca se fixa. À diferença da personagem bíblica,

quando regressa à casa do pai, por um desvio de percurso, e é por ele e seus criados

recebido com festa e banquete, não esconde a todos que está ali de passagem. Não são

raros os romances de outrora que traziam no subtítulo aventuras, fortunas,

adversidades; marcas que ainda hoje não lhes são de todo estranhas. Movido pelo

gosto do novo e por certa aversão ao repouso, o romance ambiciona grandes feitos.

Novel, novo ou novel, é o nome que os ingleses atribuíram a esse gênero de escrita. É

essa constante busca pelo novo, por aventuras, que tece a trama de dois dos romances

que definiram o futuro do gênero: Don Quixote e Robinson Crusoé. Naquele, de tanto

se engolfar em leituras, pareceu conveniente a Don Quixote sair pelo mundo

“desfazendo todo gênero de agravos e pondo-se em transes e perigos”2. Neste,

Robinson Crusoé empreendeu um caminho fora da rota comum, renunciou aos

conselhos do pai, preferiu a vida de destemperos e desconfortos à “condição média”3,

                                                                                                                         1 Alfonso Reyes, Obras Completas de Alfonso Reyes, IX (México: Fondo de Cultura Económica, 1952), p. 403. Registra-se aqui meus sinceros agradecimentos ao latinista mexicano, e grande amigo, Claudio GH por ter chamado a minha atenção a esta passagem. 2 Miguel de Cervantes Saavedra, O Engenhoso Fidalgo Don Quixote de la Mancha (São Paulo: Editora 34, 2002), p. 60. 3 Daniel Defoe, A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), pp. 46-47.

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mais adequada, dizia este, à felicidade humana. Talvez o motivo para reiteradas

renúncias ao espaço seguro e familiar e à eterna busca pelo desconhecido se deva à

própria natureza da ficção, traço distintivo do gênero romanesco, por meio do qual ele

se desprende de si e se “insinua em corpos estranhos”4. Como magistralmente definiu

José Paulo Paes, o romance é o lugar da outridade5.

O ensaio, que aqui comparamos ao irmão mais velho do filho pródigo – em

razão de ter sido uma personagem secundária nos estudos sobre os gêneros literários6

–, em tudo lhe é diverso. Fruto a um só tempo da experiência artística e intelectual, a

meio caminho entre criação e epifenômeno ou acontecimento7, por longo tempo, mais

de quatro séculos, o ensaio passeia despreocupado e despercebido pelo mundo da

literatura. Quando com ele cruzamos pelas ruas, em suas frequentes caminhadas ao

léu, não parece haver nele nenhum traço particular que o distinga. E, no entanto, seu

convívio nos revela ora um distinto cavalheiro, um gentleman – no sentido que a

palavra tinha para David Hume, isto é, homem cultivado cujo encanto é sempre maior

quando menos aparece8 –, ora uma figura idiossincrática, dada a caprichos. Culto,

mas desprovido de arrogância; fantasioso, mas de um realismo prudente;

personalíssimo e egotista, mas respeitoso e interessado pelas diferenças entre os

homens, o ensaio tem sempre no horizonte um gesto, um convite cordial ao leitor para

recebê-lo em sua casa e com ele travar uma conversa de peito aberto. O lugar do

ensaio, diz acertadamente Cynthia Ozick, é “junto à lareira”9; noutras palavras, é o

lugar da convivência entre o eu e o outro.

                                                                                                                         4 A expressão é de Cynthia Ozick, Retrato do ensaio como corpo de mulher, como também é da autora a ideia de contrapor o romance ao ensaio, tomando-os como personagens literárias, Serrote #9, p. 13. Para a relação entre o romance e o filho prodigo, inspirei-me no também brilhante artigo de Michael McKeon, “Parables of the Younger Son (I): Defoe and the Naturalization of Desire”, In. The Origins of the English Novel, pp. 315-37. 5 José Paulo Paes, O Lugar do outro: ensaios (Rio de Janeiro: Topbooks, 1999), pp. 15-26. 6 Como observou Carl H. Klaus: “a despeito do extraordinário crescimento de interesse pelo ensaio nos últimos vinte e cinco anos (...), o ensaio continua sendo um tema amplamente ignorado no mundo da crítica e da teoria”, “Preface”, In. Essayists on the Essay (Iowa City: University of Iowa, 2012), p. xi. 7 Num ensaio de 1947, Max Bense, um dos principais nomes do pensamento alemão de seu tempo, definiu conceitualmente o gênero em termos bastante semelhantes ao nosso. Para ele, o ensaio é um tipo de literatura experimental que habita um “terreno intermediário”, onde criação e convicção (os estados estéticos e éticos) coincidem. Ver, “O ensaio e sua prosa”, in. Serrote # 16, pp. 169-183. 8 Ver Márcio Suzuki, “O Ensaio e a Arte de Conversar”, In. A Forma e o Sentimento do Mundo: jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII. Nas palavras de Suzuki: “Diferentemente dos franceses (que, entre outras coisas, têm um fraco pelas estocadas, trocadilhos e tiradas de espírito), os gentlemen têm uma maneira constante de agir e não se destacam por nenhum gesto de civilidade em particular”, p. 55. 9 Cynthia Ozick, Retrato do ensaio como corpo de mulher, p. 12.

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É com esse gesto e imagem de acolhida íntima, acrescidos de detalhes quanto

à simplicidade de vestimenta, que Hazlitt descreve a figura de Montaigne, “o primeiro

que, em seus Ensaios, abriu caminho entre os modernos a esse gênero de escrita”, um

gênero que se pretende uma conversa íntima e familiar com o leitor. “Ele não

conversa conosco”, continua Hazlitt, “como um pedagogo com seu pupilo, a quem

deseja transformar num cabeça-dura igualzinho a si mesmo, mas como um filósofo e

amigo”10. A esse gesto e imagem gostaria de sobrepor uma outra, também extraída de

Hazlitt, sobre a condição desterrada do escritor de ensaios, em suas palavras: “ele é

um estrangeiro que não se naturaliza mesmo em seu solo natural”11.

Que o ensaio moderno tenha recusado sua pátria de origem para fazer

morada do outro lado do Canal da Mancha é tão certo quanto seu surgimento com

Montaigne. De Hugo Friedrich a Jean Starobinski, Cynthia Ozick a John Jeremiah

Sulivan, Gilberto Freyre a Lucia Miguel Pereira, os estudiosos são unânimes: em

nenhum outro lugar o ensaio floresceu como na Inglaterra. Depois que o título e o

estilo dos Ensaios, por sorte, aprova Starobinski, se impuseram na pátria adotiva12.

Lucia Miguel Pereira, a quem devemos em língua portuguesa uma das reflexões mais

argutas sobre o tema, ela própria uma ensaísta de mão cheia, definiu o ensaio numa

palavra: excêntrico. Vale lembrar que a autora usa o termo em seu sentido primitivo:

isto é, aquele ou aquilo que carece rigorosamente de um centro. O adjetivo explica,

segundo a autora, a aliança profunda entre o que ela chamou de a índole do ensaio e o

gênio inglês. Em suas palavras, “o ensaísta escreve como o inglês viaja: pelo gosto da

aventura, pelo prazer de descobrir novos horizontes”13; ou ainda, noutro texto

esclarecedor, ela afirma haver no ensaio, sobretudo aquele cultivado na Inglaterra,

algo que parece “escapar às influências telúricas”14. Home is home, be it never so

homely, diz o antigo provérbio inglês, que sugere, segundo Lucia, que a doçura do lar

às vezes produz um tédio amargo. Ora, não é verdade que nos séculos XVIII e XIX a

Inglaterra era conhecida pelos estrangeiros como o país onde as pessoas se

enforcavam para passar o tempo?; e que “o inglês mais ajuizado”, dizia Stendhal, “é

                                                                                                                         10 William Hazlitt “Sobre os ensaístas de periódico”, In. Revista Serrote, n. 22, p 21. 11CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 42. 12 Jean Starobinski, “É Possível Definir o Ensaio?”, In. Revista Serrote # 10, p. 44. 13 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Revista Serrote #22, pp. 5-6. 14 Lucia Miguel Pereira, “Ilha ou Navio”, In. Escritos da Maturidade, p. 147.

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louco uma hora por dia; é visitado pelo demônio do suicídio”?15 É desse modo que o

inglês, filho de Plutão, segundo Heine16, quando escritor de ensaios se exprime por

antinomias: entre a solidão do lar e a atenção ao mundo que se descortina pela janela,

entre o apego à rotina e a necessidade de novas experiências, entre o espírito prático e

uma imaginação inquietadora, entre a morosidade sombria e uma atitude esportiva

perante a vida; e é desse conflito, quando o ensaísta sonda a alma humana e luta com

as ideias, que de ilha, a Inglaterra, ou o ensaio, se fazem navio.

Se, de um lado, nas palavras de John Jeremiah Sulivan, “o ensaio moderno

não se desenvolveu em um país específico, mas em um campo de vibração

transnacional que vai além do canal da Mancha”17; do outro, o autor nos lembra de

uma pequena curiosidade etimológica: “a palavra ensaísta”, diz ele, apareceu

primeiro em língua inglesa “antes de ter sido registrada em francês (...), e não apenas

alguns anos, mas séculos antes”18. Montaigne nunca se definiu como ensaísta e depois

dele o ensaio na França, continua Sulivan, “vira algo menos íntimo, mais opaco, se

transforma nas meditações de Descartes e nos pensamentos de Pascal”19. Numa peça

de Ben Jonson, Epicoene ou a mulher silenciosa, encenada pela primeira vez na corte

de Jaime I em 1610, a personagem Jack Daw é incitada pelos seus colegas a recitar

um poema de sua lavra. Mas Jack Daw é a um só tempo vaidoso e péssimo poeta.

Seus colegas sabem disso e lisonjeiam-no, para que faça mais palhaçadas, dizendo:

“há algo em si de raro engenho e razão; é um Sêneca... é um Plutarco”. “Tenho

minhas dúvidas”, respondeu Jack Daw, “se aqueles sujeitos têm algum crédito entre

cavalheiros”. “São autores sérios”, retrucam-no. “Asnos sérios, isso sim!”, ele diz.

“Meros ensaístas, de umas poucas frases soltas e só”20. E foi então que a palavra

ensaísta veio ao mundo, não isenta de uma nuance pejorativa.

                                                                                                                         15 Stendhal, O Vermelho e o Negro, tradução de Raquel Prado (São Paulo: Cosac & Naify, 2006), p. 302. 16 Heinrich Heine, Os Deuses no Exílio, tradução de Márcio Suzuki e Marta Kawano (São Paulo: Iluminuras, 2009). Nas palavras do autor: “Às vezes, essa ilha branca também é chamada de Brea ou Britinia. Será que com isso se faz alusão à branca Albion, às rochas calcárias da costa inglesa? Seria uma ideia humorística querer caracterizar a Inglaterra como a terra dos mortos, como o reino de Plutão, como o inferno. Mas, de fato, talvez ela se apresente assim a alguns estrangeiros”, p. 88. 17 John Jeremiah Sullivan, “Essai, Essay, Ensaio”, In. Revista Serrote #19 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2015), p. 143. 18 Idem, p. 131. 19 Idem, ibidem. 20 Idem, p. 144. Para o trecho da peça, ver Epicoene or the Silent Woman (Lincoln: University of Nebraska Press, 1966), p. 32.

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Na época, Francis Bacon, que estava na plateia, publicara pouco antes uma

primeira versão dos Essays (1597). Antes mesmo dele, o próprio monarca Jaime I,

homem de letras muito sério, publicou Ensaios de um Aprendiz, obra de 1584, isto é,

quando Montaigne ainda preparava o segundo volume dos Essais. Se Jaime I tinha ou

não conhecimento do livro de Montaigne, não sabemos. Entretanto, há fortes indícios

de que ele o tivesse, pois seu tutor era George Buchanan, “um dos gigantes da

Renascença”, que décadas antes dera aula em Bordeaux e “um de seus alunos (...) era

um menino da cidade chamado Michel Eyquem”21. Seja como for, na Inglaterra, o

ensaio e o ensaísta nascem juntos e cobertos “pela placenta da ambiguidade”22. Ou

ainda, segundo Sullivan: “o ensaio é francês, mas o ensaísta é inglês”23.

Quanto à origem etimológica da palavra ensaio, Sullivan remonta às suas

raízes latinas: exagium, exagere, exigo...24, isto é, palavras que dão a ideia de

“empurrar para fora”, na definição de Starobinski, “expulsar, depois exigir”25. Ou

seja, segundo a hipótese que perseguimos aqui, o ensaio, curvilíneo e centrífugo, ao

mesmo tempo não tem centro algum. Desse modo, ele compartilha algo da intrepidez

do romance, mas sem jamais abandonar sua “têmpora meditativa”26. A multiplicidade

de temas que percorre é quase tão vasta, ou talvez ainda maior que a do romance. Nas

palavras de John Gross, “existem ensaios sobre o entendimento humano, ensaios

sobre o que fiz durante as férias, ensaios sobre a verdade e ensaios sobre batata frita;

ensaios que começam com uma resenha crítica; outros, que terminam com um

sermão”27. Contudo, a principal diferença entre um e outro – o romance e o ensaio –

não está decerto na matéria, mas na maneira. Se o romance, como dissemos, nunca

regressa ao conforto da casa paterna senão como hóspede ilustre, o ensaio (que por

contraste comparamos ao irmão mais velho do filho pródigo), entre a obediência e a

recusa, conquistou debaixo do solar de sua família um canto todo seu.

Foi somente em idade avançada, logo após a morte do pai, e depois de ter

ocupado diversos cargos públicos, entre eles o de conselheiro no Parlamento de

Bordeaux, que Montaigne se retirou para as terras que lhe couberam de herança, mais

                                                                                                                         21 Idem, pp. 135-7. 22 Idem, p. 144. 23 Idem, p. 132. 24 Idem, p. 138. 25 Jean Starobinski, “É Possível Definir o Ensaio?”, p. 43. 26 Cynthia Ozick, Retrato do ensaio como corpo de mulher, p. 12. 27 John Gross, The Oxford Book of Essays, p. xix.

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especificamente para a torre onde mandara reformar sua biblioteca, a fim de meditar e

escrever seus ensaios. Montaigne, como é sabido, não é o nome de família de Michel,

mas da propriedade. E foi por ela que quis ser lembrado – ele foi o primeiro de sua

linhagem a abandonar o antigo nome (Eyquem) –, justamente porque ali firmou porto

seguro para “a maré muito variável”28 de uma mente tão fértil e inquieta. O momento

da descoberta dos ensaios, que conhecemos da própria pena de Montaigne, merece ser

lido na íntegra:

Ultimamente, que me recolhi em casa decidido tanto quanto puder a não me meter em

outra coisa e passar em repouso, e à parte, este pouco de vida que me resta, pareceu-

me não poder fazer maior favor a meu espírito do que deixá-lo em plena ociosidade, a

etreter-se consigo mesmo, parar e sossegar: o que esperava que ele pudesse doravante

fazer mais facilmente, tendo se tornado com o tempo mais ponderado e mais maduro.

Mas descubro que, ‘a ociosidade sempre torna o espírito inconstante’, ao contrário,

agindo como cavalo fugido, ele dá cem vezes mais liver curso a si mesmo do que

daria a outros, e engendra-me tantas quimeras e monstros fantásticos, uns sobre os

outros, sem ordem e sem propósito, que para contemplar à vontade sua inépcia e sua

estranheza comecei a assentá-los num rol, esperando, com o tempo, que ele se

envergonhe de si mesmo29.

Em comentário sobre essa passagem, último parágrafo do ensaio “Da

Ociosidade”, o importante filólogo e romanista norte-americano Blanchard Bates nos

lembra que esse recanto “agradável e cômodo”30, como Montaigne costumava se

referir à sua biblioteca, em nada se confunde com uma “torre de marfim”31. Quando

demovia os olhos dos livros, podia observar pela janela alta o extenso e estimulante

mundo lá fora; e com frequência era convocado a tomar parte nele, o que sempre se

dispunha a fazer de bom grado. Sua solidão, dizia Auerbach, era algo que ainda não

tinha nome, era o meio pelo qual dava ele “livre curso” às forças interiores de seu

                                                                                                                         28 Famosa expressão de Alexandre Eulálio com a qual o autor consagrou sua reflexão sobre o gênero. Ver “O Ensaio literário no Brasil”, In. Revista Serrote n. 14, p. 7. 29 Michel Montaigne, Os Ensaios, Uma Seleção. Tradução de Rosa Freira D’Aguiar (São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2009), pp. 49-50. 30 Montaigne, Os Ensaios, Livro III, “Da Vanidade”, p. 300. 31 Blanchard Bates, “Introduction”, In: Montaigne Selected Essays, The Charles Cotton – W. Hazlitt translation (New York: The Modern Library, 1949) p. xv.

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espírito e corpo32. A observação de Bates nos interessa em particular porque a ele

devemos a continuidade de um projeto idealizado por Hazlitt e concretizado pelo

neto, William Carew Hazlitt, notável biógrafo da era vitoriana: a saber, o de editar as

obras de Montaigne segundo o tradutor inglês do século XVII, Charles Cotton. Ela

nos interessa sobremaneira junto à passagem de Montaigne citada antes porque

captura os movimentos excêntricos e concêntricos com os quais pautei minha reflexão

sobre o ensaio. No descanso e repouso do quarto, a mente imita um cavalo fugido, sai

de si, “percorre cem milhões de lugares num instante”33.

Se não for possível, como creio, definir o ensaio, espero ao menos, com esse

percurso fantasista, e seguindo as valiosas observações de Starobinski34, assumir

como ponto de partida que, mais do que em qualquer outro gênero literário – ou,

segundo Lucia Miguel Pereira, mais do que em qualquer outra “atitude mental”35 –, o

exercício de reflexão interna, a tomada de consciência de si e a conquista de um teto

todo seu, aspectos tão intrínsecos ao ensaio, não se separam da inspeção da realidade

exterior, da descoberta do outro e da consciência de que o trabalho de imaginação do

escritor ficaria incompleto sem a participação ativa do leitor.

                                                                                                                         32 Erich Auerbach, Ensaios de Literatura Ocidental, p. 148. 33 Xavier De Maistre, Viagem em volta do meu quarto, tradução de Sandra M. Stoparo (São Paulo: Editora Hedra, 2009), p. 40. 34 Starobinski, É possível definir o ensaio?, pp. 43-61. 35 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, p. 17.

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