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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILIOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA
Daniel Lago Monteiro
William Hazlitt, um ensaísta ao rés-do-chão: ensaio e crítica
São Paulo
2016
Daniel Lago Monteiro
William Hazlitt, um ensaísta ao rés-do-chão: ensaio e crítica
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de doutor em teoria literária e literatura comparada sob a orientação do Prof. Dr. Fábio Rigatto de Souza Andrade
São Paulo 2016
Firme na terra, nativa,
que não quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.
João Cabral de Melo Neto
‘A educação pela pedra’
Agradecimentos:
À Fapesp, que financiou esta pesquisa: # de processo 2011/23902-4.
À CAPES/Fulbrigt, que fincanciou parte desta pesquisa.
Aos meus pais, Dorimar Lago Monteiro e Flávio Mota Monteiro, e aos meus irmãos, Lucas
Lago Monteiro e Flávia Lago Monteiro, pelo apoio e carinho incondicionais e por terem
vivido mais esta aventura ao meu lado, ainda que às vezes à distância .
Ao meu orientador, Prof. Dr. Fábio Rigatto de Souza Andrade, que mesmo não sendo
“especialista” aceitou orientar este trabalho e o acompanhou com a receptividade e a
compreensão de um intelectual de mão cheia.
Ao Prof. Dr. Michael McKeon, que me acolheu como pesquisador visitante em Rutgers, The
State University of New Jersey. O crescimento intelectual que obtive na participação de suas
aulas, grupos de estudo e conferências é de valor inestimável.
À Profa. Dra. Luisa Calè, que me acolheu como pesquisador visitante em Birkbeck,
University of London, e cujas indicações bibliográficas enriqueceram enormemente a minha
pesquisa, e a todos os pesquisadores que conheci durante a minha estadia em Londres,
sobretudo ao Prof. Dr. Gregory Dart, à Profa. Dra. Uttara Natarajan e ao Philipp Hunnekuhl
(membros da Sociedade Hazlitt), que me mostraram que é possível combinar o rigor
acadêmico com a leitura fina, vivaz e witty de verdadeiros hazlittianos que são.
À Profa. Dra. Sandra Vasconcelos e ao Prof. Dr. Samuel Titan Jr. pela leitura cuidadosa de
parte desta tese e pelas ricas sugestões no exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Márcio Suzuki, grande mestre e amigo, a quem devo a maior das lições nesta
minha trajetória: a permanência do ânimo de experimentar, a constância do gosto de
descobrir, a capacidade imperecível de renovação; numa palavra, mocidade intelectual.
Ao Prof. Dr. Pedro Paulo Garrido Pimenta, que anos atrás disse a mim: “você precisa ler
Hazlitt, vai gostar e muito!” Ele estava certo. Também lhe sou grato pelos inúmeros
incentivos à minha pesquisa.
Ao Prof. Dr. John Milton, companheiro inigualável de badminton, por ter sido sempre muito
solicito e certeiro na revisão de meus textos em inglês, inclusive da versão inglesa desta tese.
À Érica Emilia Leite, Marcella Marino Medeiros Silva, Mario Spezzapria e Thiago Cass pelas
tardes de sextas-feiras quando, entre uma e outra degustação de café, provávamos passagens
deliciosas de Coleridge, Schlegel, Hazlitt, e outros.
Às amizades que travei durante a minha estadia em Nova York: Andréa Burgos, Bernardo
Oliveira, Bruna Fetter, Eugene Osagie, Iuri Bauler, Jerry Clicquot, Julie Tudor, Kristin Henn,
Pablo Escudero e Sam O’Hana. A magia da minha experiência nova yorkina não seria a
mesma sem eles.
Aos amigos Alexandre Amaral Rodrigues, Christian Tadeu Gilioti, Claudio GH, Daniel
Nagase, Eduardo Correia, Fabiola Iszlay de Albuquerque, Fernando Seliprandy, Luís
Nascimento, Marcelo Ferreira, Maíra Portugal, Rafael Cardoso, Renato Prelorentzou, Sérgio
Araújo, Thiago Souza, Valter José Maria Filho e Vinícius Castro Soares pelas experiências e
vivencias compartilhadas.
À Ana Letícia Adami Batista, que me acompanhou em cada uma das etapas deste percurso.
Leitora cuidadosa e de uma sensibilidade rara, suas sugestões e conversas estimulantes foram
ingredientes indispensáveis para a confecção desta tese. A ela todo o meu carinho, porque
carinho, pouco ou muito, nunca é demais!
Aos meus irmãos, Lucas e Flávia.
Resumo
MONTEIRO, D. William Hazlitt, um ensaísta ao rés-do-chão: ensaio e crítica. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.
Esta tese procura analisar a obra do ensaísta e crítico inglês William Hazlitt (1778-1830) a partir de um conjunto de imagens que vinculam as diferentes etapas envolvidas durante o ato de confecção do ensaio crítico e literário aos acidentes topográficos e à textura do solo, expressos no arquétipo recorrente do autor, “ao rés-do-chão”. Pela análise interna de texto e do exercício de leitura, perseguimos as passagens em que Hazlitt reflete sobre seu próprio metiê. A defesa do ensaio como forma de arte coloca-lhe a exigência de um altíssimo grau de elaboração que o aproxima, por analogia, à crítica inventiva e a outras formas de arte. Nesse sentido, o estudo desses elementos formais foi indispensável à pesquisa – também nos foi de grande valia o exame de alguns aspectos históricos e culturais, como o chamado Romantismo Inglês. Nos interessou, sobretudo, aquilo que definimos como “atitudes mentais” próprias do ensaísta, experimentadas e vividas por Hazlitt com intensidade, a saber: o retratista, o amigo e o adversário. Desse modo, cada um dos três capítulos desta tese pretende cobrir uma dessas “atitudes”. No primeiro capítulo, sobre o retratista e o estágio inicial de confecção do ensaio (a inspiração), acompanhamos o autor em suas peregrinações juvenis na leitura cerrada de algumas passagens de dois ensaios em que ele narra a sua experiência de conversão ao mundo das artes, “My First Acquaintance with Poets” e “On the Pleasure of Painting, e no modo como os retratos literários que escreveu de Jean-Jacques Rousseau e de Edmund Burke, seus legítimos precursores, apontaram a ele os caminhos para uma crítica inventiva. No segundo capítulo, sobre a atitude do amigo e a leitura, encontramos Hazlitt ora na solidão de seu quarto, mastigando os pensamentos, ora em companhia de pessoas próximas. Intimidade e convivência são os ingredientes chaves para essa etapa do trabalho. Para Hazlitt, a escrita de ensaio envolve um convite cordial ao leitor, com o qual o ensaísta espera dividir amigavelmente a sua tarefa. No terceiro capítulo, sobre a escrita, investigamos o papel do ensaísta como agente das transformações sociais, própria à atitude do adversário. O ensaio se apresenta como espaço privilegiado onde se travam lutas com ideias e se disputa uma causa; o ensaísta, por sua vez, se apresenta como o homem das ruas (man-about-town), cujas andanças pela metrópole londrina e convivência com os homens, sobretudo aqueles pertencentes às classes baixas, permitiu-lhe combinar à elegância do ensaísta os momentos combativos e ousados de prosa.
Palavras-chaves: William Hazlitt – Romantismo Inglês – Ensaio Literário – Critica
Abstract
MONTEIRO, D. William Hazlitt, an essayist on the plain-ground: essay and criticism. Thesis (Doctorate) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.
This thesis analyzes the works of the English essayist and critic William Hazlitt (1778-1830) from a body of images that binds the different stages involved in the craft of the critical and literary essay to topographical accidents and the texture of the soil, as expressed in the author recurrent archetype “on the plain-ground”. My point of departure was the internal analysis of texts and close reading of certain passages where Hazlitt reflects on his own metier. The claims he makes in that essay is an art form required from him a high standard of formal elaboration that analogically approaches the literary essay and inventive criticism to other art forms. Thus, a careful examination of these formal elements was indispensable for this study. Moreover, some historical and cultural aspects that encompass Hazlitt and his time, the so called British Romanticism, were also part of my analysis, inasmuch as the author brings them to bear in his writings, and according to what I have conceptualized as “mental attitudes” proper to the essayist. In my understanding, three are the essayist’s attitudes as intensely experienced by Hazlitt, namely, the portraitist, the friend, and the adversary. Therefore, each of the three chapters in this dissertation aims at unveiling one of these “mental attitudes”. In the first chapter, on the portraitist attitude and the first stage in the making of the essay (the insight), I have followed Hazlitt during his youthful pilgrimages from an analysis of a few emblems pertaining in “My First Acquaintance with Poets” and “On The Pleasure of Painting”, where he narrates his moment of conversion to a world of art. Furthermore, I have linked these essays to the literary portraits Hazlitt traced of Jean-Jacques Rousseau and Edmund Burke, his genuine precursors, in order to understanding the paths along which he was initiated into inventive criticism. In the second chapter, on the friend “mental attitude”, we find Hazlitt by the fireside, either in the solitude of a room of his own, chewing his thoughts, or in the company of close friends. Intimacy and conviviality are the key ingredients to this stage in the craft of the essay (reading). According to Hazlitt, the writing of essays requires a cordial invitation to readers, with whom the essayist hopes to share his task in a friendly way. In the third chapter, on writing itself, I have inquired into the role of the essayist as an agent of social changes, a “mental attitude” suitable to the adversary. The essay presents itself as a privileged place where the writer struggles with the world and disputes a cause; and the essayist as the man-about-town, whose rambles in the streets of the metropolis and conviviality with the people, particularly those belonging to lower classes, enabled Hazlitt to combine the sustained and controlled rhythms of the polite culture of the essayist with strenuously argumentative, emphatic speeches.
Key Words: William Hazlitt – British Romanticism – Literary Essay – Criticism.
SUMÁRIO
Introdução..............................................................................................................p.9
1. As Poças do Caminho: as peregrinações do artista quando jovem.............p.28
a) O Retratista..............................................................................................p.28
b) A Estrela da Tarde....................................................................................p.32
c) Gotas de Orvalho......................................................................................p.41
d) ‘Un Beau Jour’.........................................................................................p.52
2. Ao Pé da Lareira: solidão e boa-companhia..................................................p.64
a) O Amigo...................................................................................................p.64
b) As horas se fundiam em minutos: uma digressão..................................p.70
c) A Lua de Mel da Autoria: leitura e público leitor.................................p.74
d) Rítmicos e Arrítmicos: uma anedota na casa de Lamb........................p.85
e) A Conversa e a Arte da Escuta.............................................................p.88
3. As Ruas da Metrópole: rios de vida humana..............................................p.102
a) O Adversário..........................................................................................p.102
b) ‘A Good Hater’: resistência à ‘maré furiosa’......................................p.105
c) A Imprensa Periódica: o escritor no ‘meio da corrente’...................p.115
d) Na rua, com os homens: cockneyism e águas rasas............................p.123
e) Um Pássaro na Multidão: ‘ruas transbordantes’..............................p.133
f) Rio de Vida Humana: a imaginação e o sublime metropolitanos e
democráticos.........................................................................................p.143
Conclusão: Excêntrico e Concêntrico......................................................p.154
Bibliografia................................................................................................p.161
9
Introdução
Dos grandes autores do romantismo inglês, nenhum outro ganhou a vida e
fez fama literária essencialmente pelos seus ensaios como William Hazlitt (1778-
1830), e isso, vale lembrar, em uma era de ensaístas de peso, como Charles Lamb,
Leigh Hunt, Thomas De Quincey, Samuel Coleridge, entre outros. Se, na vastidão dos
escritos de Hazlitt – vinte e um volumes, segundo a edição centenária de suas obras,
por Percival Presland Howe (1930) –, nem tudo pertence stricto senso ao gênero
ensaio, é de corte ensaístico, por exemplo, a análise psicológica das personagens em
Characters of Shakespeare’s Plays (1817), o exame dos gestos e tons de voz em A
View of the English Stage (1818), a narrativa de suas desventuras amorosas na
autobiografia Liber Amoris, or The New Pygmalion (1823), a descrição das paisagens
e dos caracteres nacionais em Notes of a Journey Through France and Italy (1826) e,
nos momentos mais autorais e analíticos, a monumental biografia Life of Napoleon
Bonaparte (1830). Mas foi sobretudo pelos ensaios confiados à imprensa periódica e
pelas séries The Round Table (1817), Table-Talk (1821), The Spirit of the Age (1825)
e The Plain Speaker (1826) que Hazlitt entrou para a posteridade, que lhe foi
impresso o título de “o grande ensaísta”1, nas palavras de Otto Maria Carpeaux.
No entanto, por um longo tempo, até boa parte do século XX, o nome de
Hazlitt andou esquecido e as suas obras se tornaram quase peças de antiquário. A
razão disso, sugeriu Terry Eagleton, talvez esteja precisamente na forma ensaio2. À
medida que a crítica literária se convertia em teoria literária; isto é, à medida que ela
deixava de se identificar com aquela atividade, que, segundo T. S. Eliot, envolve
escolha, comparação e análise, “sem ser bem sucedido em encontrar um teste seguro
que alguém possa aplicar”3, para se tornar em “relações complexas de tipo sistemático
1 Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, vol. “Romantismo” (Rio de Janeiro: Ed. Cruzeiro, 1966), p. 2012. 2 No artigo de Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, diz o crítico: “Hazlitt recebeu uma atenção crítica razoável na modernidade, mas pouco se fez para ressuscitá-lo da categoria pardacenta de ‘escritor de prosa menor da Regência’ e estabelecer devidamente o seu lugar, o de um dos escritores mais extraordinariamente inteligentes de sua época. Em partes, talvez isso se deva a uma questão de gênero”. New Blackfriars, # 54 (London: New Blackfriars, 1973), pp. 108-17: 108. 3 T. S. Eliot, “The Function of Criticism”, In. Selected Essays, 1917-1932 (New York: Harcourt, Brace and Company, 1932), pp. 12-22: 22.
10
entre inúmeros fatores”4, o próprio sentido de literatura adquiria novos contornos e
definições. Por mais controversa que seja a separação entre literariedade e fenômenos
não-literários, a literatura, no mundo ocidental, em linhas gerais, passou a se definir,
de um lado, enquanto forma de linguagem que coloca em primeiro plano a própria
linguagem e, do outro, enquanto escrita imaginativa ou ficcional. Ora, uma leitura
ainda que rápida de um único dos ensaios de Hazlitt é o suficiente para nos convencer
de sua literariedade, quer pelo ritmo que surpreende o ouvido do leitor com mudanças
contínuas e desnorteantes, quer pelos seus toques de lirismo. Ao passo que a
ficcionalidade, os indivíduos imaginários e não históricos, cujas ações e diálogos
tornam a relação com o mundo uma questão de interpretação, não estão lá. De sorte
que a crescente influência de modelos teóricos que restringem a literatura à ficção
relegou o ensaio e, junto a ele, as obras de Hazlitt, a uma zona indistinta, para a qual a
pergunta – é ensaio literatura? – faz sentido5.
É desse modo que a apreciação crítica da literariedade e inventividade nos
ensaios de Hazlitt esteve, em um primeiro momento, a cabo dos próprios escritores.
Em uma resenha não publicada de Table-Talk, Lamb diz que o maior dos méritos
peculiares aos ensaios de Hazlitt, acima de seu virtuosismo argumentativo, é o estilo:
“Ele é (e não hesitamos ao dizê-lo) um dos mais hábeis escritores de prosa da
época”6. Quinze anos após a sua a morte, em 1845, De Quincey traçou um perfil do
ensaísta no qual ressalta, entre outras, a qualidade de equilibrista de seu estilo, o que
lhe permitia ser compreendido e admirado pelo público mais variado7. Em alguns
casos, a exemplo de Robert Louis Stevenson, a leitura de Hazlitt foi ingrediente
indispensável para a sua formação. Em “A College Magazine”, Stevenson diz:
“macaqueei Hazlitt com afinco”8. Anos mais tarde, quando já gozava de grande
prestígio entre a crítica e o público, Stevenson se dirigiu aos escritores de sua geração
4 Jonathan Culler, Teoria Literária, Uma Introdução (São Paulo: Beca, 1999) p. 12. 5 Não há decerto um consenso na teoria literária quanto a esse ponto. Em Anatomia da Crítica, diz Northrop Frye: “para ‘apreciar’ a literatura e para conseguir um contato mais direto com ela, voltamo-nos ao crítico público, o Lamb, o Hazlitt ou Arnold ou Sainte-Beuve, que representam o público em seu ponto mais judicioso e especializado (...). O crítico público tende a formas episódicas, como a palestra ou o ensaio informal [familiar essay], e seu trabaho não é ciência, mas outro gênero de arte literária” (São Paulo: Editora Loyola, 2014), pp. 117-8. 6 Charles Lamb, Selected Prose, (London: Penguin Classics, 2013) p. 241. 7 Thomas De Quincey, “William Hazlitt”, In. De Quincey as Critic, (London and Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973), pp. 369-80: 377. 8 Robert Louis Stevenson, Memories and Portraits, (Glasgow: Richard Drew Publishing, 1990), pp. 42-3. A frase de Stevenson é bastante conhecida e foi citada por Jorge Luis Borges em Esse Ofício do Verso (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), p. 97.
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dizendo: “Ainda que sejamos pessoas admiráveis, jamais escreveremos como William
Hazlitt”9. Oscar Wilde era outro de sua geração que identificava em Hazlitt um dos
maiores estilistas da língua inglesa, inigualável e imbatível em suas sentenças
mordazes10. Sabemos da própria pena de Wilde que o mote do Retrato de Dorian
Gray veio a ele a partir da leitura da seguinte passagem do ensaio “On the Knowledge
of Character”: “Toda a vida de um homem pode ser uma grande mentira a ele mesmo
e aos outros; e, no entanto, um retrato pintado de si por um grande artista poderia
estampar o seu verdadeiro caráter sobre a tela e trair o seu segredo para a
posteridade”11. Para ficarmos apenas no âmbito anglo-saxão, os méritos literários e a
influência de Hazlitt foram ainda reconhecidos por escritores tão diversos quanto
Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Virginia Woolf e Phillip Lopate, sobre os quais
esta tese ainda terá oportunidade de comentar ou aludir.
No auge da alta teoria acadêmica, o aclamado romance de David Lodge,
Small World (1984), aproveitou a deixa de que, na época, a reputação de Hazlitt
chegara à beira do desaparecimento para criar um personagem obcecado pelo
ensaísta, Philip Swallow, professor universitário de Rummidge (nome fictício para
Birmingham). Há obviamente um tom satírico, pois o meio editorial, crítico e
acadêmico demonstra um completo desinteresse pelo livro recém-publicado de Philip,
Hazlitt and the Amateur Reader. Quando Philip apresentou o livro a Morris Zapp, na
esperança de que este escrevesse uma resenha que projetasse a obra e o autor, Morris,
um professor antenado com o que há de mais recente na teoria literária e sempre com
um jargão crítico na ponta da língua, diz ao amigo: “‘Não me parece o tipo de coisa
em que a metacrítica estaria interessada’ (...). ‘Mas vou ver o que posso fazer’. Ele
correu as páginas com os dedos. ‘Hazlitt é um tema um tanto fora de moda, não é
9 Citado a partir de David Bromwich, Hazlitt: The Mind of a Critic, (New Haven: Yale University Press, 1999), p. 3. Adolfo Bioy Casares também cita esta passagem no prólogo a Ensayistas Ingleses (Barcelona: Éxito, 1957), p. 14. 10 Ver, por exemplo, o ensaio de Wilde “Pen, Pencil and Poison”, In. Collected Works of Oscar Wilde (London: Wordsworth Library Collection, 2007), pp. 947-62. 11 Todas as citações de Hazlitt, salvo as vezes que indicar em nota, foram extraídas de The Complete Works of William Hazlitt, 21 vols. (London and Toronto: J. M. Dent and Sons, LTD, 1930). Daqui em diante, usaremos a sigla CWH, seguida do nome do texto de onde extraímos a citação e os números do volume e das páginas. “On the Knowledge of Character”, 8, p. 303. Para uma discussão sobre a presença de Hazlitt nos escritos de Wilde e o reconhecimento deste de que a leitura do ensaio daquele foi peça-chave para a confecção do Retrato de Dorian Gray, ver o artigo de John Stokes, “Embodying Shadows: Wilde and Hazlitt as Theatrical Writers”, In. The Hazlitt Review (London: The Hazlitt Society, 2014), pp. 17-30: 18.
12
mesmo?’ ‘A meu ver, injustamente negligenciado’, disse Philip”12. Hazlitt and the
Amateur Reader é decerto uma monografia ficcional. Mas as frequentes menções no
livro aos títulos dos ensaios de Hazlitt ou mesmo as citações de trechos são dados da
realidade – dados tão finamente urdidos à matéria ficcional que levaram alguns a
supor que Hazlitt fosse uma invenção de Lodge. Laurent Folliot, tradutor francês de
Hazlitt, conta uma anedota, “a um só tempo, divertida ou pavorosas”13. Enquanto
preparava a sua edição de ensaios selecionados de Hazlitt, Du Goût et du Dégoût
(2007), dois amigos do tradutor ficaram surpresos com o projeto e a razão disso foi
porque “achavam que ‘William Hazlitt’ fosse um autor fictício, inventado por David
Lodge com um propósito satírico”14.
Há ainda outra passagem em Small World que merece menção aqui. Morris
aceita o pedido de Philip para resenhar o livro e resolve fazê-lo com o máximo de
economia de tempo. No avião da British Airways, a caminho de mais uma conferência
internacional, Morris sacou o livro da bolsa. Antes de se pôr a lê-lo, ele notou que a
moça sentada na poltrona ao lado trazia uma coletânea de ensaios de Althusser. Era a
italiana Fulvia Morgana, uma teórica marxista de estudos culturais. Ela também
notara o livro de Morris e não demorou para que a conversa começasse. “‘O que está
lendo’”, perguntou Fulvia, “‘um livro de ‘Azlitt?’. ‘É de um amigo inglês. Ele o
entregou a mim ontem mesmo. Não é o tipo de coisa que geralmente me interessa’.
Ele estava ansioso para se dissociar do tema curiosamente antiquado de Philip e de
uma abordagem igualmente antiquada”15. Fulvia, entretanto, permanecia curiosa e
queria saber mais sobre um autor do qual nunca ouvira falar. Foi quando Morris abriu
uma página a esmo e leu em vós alta a seguinte passagem do ensaio “Sobre a
Ignorância dos Sábios”:
O homem mais sábio é aquele que conhece mais profundamente aquilo que mais
remotamente distante se encontra da vida corrente e da observação do momento,
aquilo que tem menos utilidade prática, aquilo que mais dificilmente se pode
submeter à prova da experiência, e que, tendo sido transmitido através do maior
12 David Lodge, Small World, (Harmondsworth: Penguin Books, 1984), p. 78. 13 Laurent Folliot, “On Translating Hazlitt into French”, In. The Hazlitt Review (London: The Hazlitt Society, 2009), p. 39. 14 Idem, ibidem. 15 David Lodge, Small World, p. 119.
13
número de graus intermediários, se manifesta mais cheio de incerteza, de
dificuldades e de contradições16.
Fulvia achou tudo aquilo muito interessante e disse: “‘Incerteza, dificuldades,
contradições. ‘Azlitt foi obviamente um homem à frente de seu tempo. Há aqui um
ataque notável ao empirismo burguês”. Mas Morris deu de ombros e comentou
apenas: “acho que ele quis ser irônico”17.
Soubesse Lodge ou não (claramente Fulvia não o sabia), há gerações Hazlitt
vem sendo lido pela melhor tradição marxista de intelectuais britânicos – os únicos
que jamais o negligenciaram. E. P. Thompson, por exemplo, abre o volume 3 de A
Formação da Classe Operária Inglesa (1963) com uma citação de “What is the
People?”, ensaio de Hazlitt que é, na opinião de Terry Eagleton, “uma das mais
magníficas peças de discurso político jamais escritas na Inglaterra”18. A certa altura
do livro de Thompson, ele traça um perfil contundente das ideias e do estilo do autor:
Hazlitt tinha uma sensibilidade complexa e admirável. Foi um dos poucos
intelectuais que receberam o pleno impacto da Revolução Francesa e, embora
rejeitasse as ingenuidades do Iluminismo, reafirmou as tradições da liberté e da
égalité. Seu estilo revela, a cada momento, que não só estava se medindo contra
Burke, Coleridge e Wordsworth (e, de modo mais imediato, contra Blackwood e a
Quarterly Review), mas que tinha consciência da força de algumas posições deles
e dividiu algumas de suas reações. Mesmo em seu jornalismo radical mais
engajado (...), dirigia sua polêmica para a cultura não popular, e sim educada de
sua época. Seus Ensaios Políticos podiam ser publicados por Hone, mas, ao
escrevê-lo, pensaria menos no público de Hone do que na esperança de fazer
Southey se contorcer, provocar uma apoplexia no Quarterly ou até de deter
Coleridge no meio de uma frase.
16 William Hazlitt, “Sobre a Ignorância dos Sábios”, In. Ensaístas Ingleses, Clássicos Jackson, Volume XXVII (Rio de Janeiro: W. M. Jackson INC, 1952), p. 118. E Small World, p. 119. 17 Idem, p. 120. Para um comentário sobre essa passagem de Lodge em conexão com a obra de Hazlitt, ver James Mulvihill, “The Politics of Authority: Representation in Hazlitt’s Political Criticism”, In. The Journal of English and Germanic Philology, vol. 101, (Chicago: The University of Illinois Press, 2002), pp. 540-60: 540. 18 Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Francis Hutcheson and William Hazlitt”, In. The Hazlitt Review, vol. 6, (London: The Hazlitt Society, 2013), p. 12.
14
Não é de forma alguma uma crítica. Hazlitt tinha uma tamanha amplitude de
referências e um tal senso de compromisso com o conflito europeu de significado
histórico que os radicais plebeus pareciam provincianos, tanto em termos
espaciais como temporais19.
Em “Desencanto ou Apostasia?: um sermão leigo” (1969), Thompson reelabora uma
tópica cara a Hazlitt, a de que a revolução, porque jamais atravessara o canal, não
abriu na Inglaterra, como o fizera na França, “caminho para talentos, a não ser para a
apostasia”20. “Tornou-se bem compreendido”, diz Hazlitt, “o fato de que ninguém
pode viver de seus talentos ou conhecimentos se não estiver disposto a prostituir esses
talentos e conhecimentos para trair sua espécie, e ser um predador de seus pares
humanos”21.
Uma década antes do livro de David Lodge, Terry Eagleton, outro entusiasta
de Hazlitt, publicou um artigo, “William Hazlitt: An Empiricist Radical” (1973), que
responde ao comentário de Fulvia Morgana lido antes. A epistemologia hazlittiana –
entendida aqui “não apenas enquanto teorias formais de conhecimento sustentadas por
autores, mas enquanto meio pelo qual essas teorias se infiltram em estilos e
sensibilidades (...), de modo a moldar as relações entre a linguagem e a matéria em
questão” – tinha o propósito, segundo Eagleton, de explorar as relações entre “o estilo
literário, as teorias do conhecimento, a consciência ideológica e a prática política”22.
Essa epistemologia, continua o autor, está de par com o compromisso de Hazlitt em
“preservar a imaginação enquanto força política”23. É desse modo que o ensaísta se
investe, de um lado, contra os Poetas do Lago; isto é, contra as implicações
conservadoras de uma estética “que defende ‘a objetivação da alma às coisas
externas’ e que transforma os fatos em fetiche”, e, do outro, contra os socialistas
utópicos, mais particularmente Robert Owen. Nas palavras de Eagleton, “enquanto
Owen se restringir aos princípios gerais e às abstrações seguras, argumenta Hazlitt,
19 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. 3, A Força dos Trabalhadores, (São Paulo: Paz e Terra, 2012), p. 469. 20 E. P. Thompson, Os Românticos: A Inglaterra na era revolucionária, (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), p. 97. 21 William Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, In. Serrote # 9, (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011), p. 28. 22 Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, p. 109. 23 Idem, p. 110.
15
nada será feito”24. O estilo antitético de Hazlitt se revela, portanto, um instrumento
crítico e político, com o qual ele deflagrou o impulso naturalmente conservador da
imaginação, “que procura obter o máximo de estímulo real pela desigualdade e pela
desproporção”25, mas sem jamais “atar as asas da poesia [ou da imaginação]”26; ele,
esse estilo, “é a expressão de uma mente dialética, e não de uma mente vacilante”27.
Em uma publicação mais recente, “Ulster Altruism: Francis Hutcheson and
William Hazlitt” (2013), Eagleton reconstrói as bases do pensamento filosófico do
autor e seu débito para com os autores do iluminismo escocês. A partir de um dado
histórico, as origens celtas (Ulster) de ambos os sobrenomes, Hutcheson e Hazlitt, e
de uma análise da primeira obra de nosso autor, An Essay on the Principles of Human
Action (1805), Eagleton examina alguns conceitos-chave para o senso comunitário e
altruísta comum às “regiões gaélica das Ilhas Britânicas”28. Entre eles, a benevolência
e o sentimentalismo, nos quais forças contrárias, porém confluentes, atuam uma sobre
a outra. A primeira, a benevolência, é centrífuga, pois “envolve uma difusão
espontânea ou decentralizadora do eu [self]”; a segunda, o sentimentalismo, é
centrípeta, “pois seleciona as sensações mais finas e eletrizantes das vibrações
sensoriais particulares a um indivíduo com inúmeras outras preciosas recompensas
emocionais”29. A contrapelo de uma leitura, por assim dizer, enrijecida, à caça de
grandes modelos históricos ou de um sentido geral, Eagleton faz uma aproximação –
que pode parecer surpreendente a alguns – entre o altruísmo de Ulster, o iluminismo
escocês e o pensamento de esquerda britânico, ou melhor, celta. Razão pela qual
Eagleton conta-nos a anedota do jovem Raymond Williams, “outro socialista celta”,
que pedalou uma tarde inteira pelo interior do país, “de visita aos lugares favoritos de
Hazlitt”30.
As relações entre teoria do conhecimento, linguagem e crítica política foram
ainda amplamente examinadas pelos três mais importantes estudos monográficos
sobre Hazlitt publicados nas décadas de 1970 e 80: Roy Park, William Hazlitt and the
Spirit of the Age: abstraction and critical theory (1971); John Kinnaird, William
24 Idem, pp. 111 e 114. 25 CWH, “Coriolanus”, 4, p. 214. 26 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 9. 27 Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, p. 117. 28 Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Francis Hutcheson and William Hazlitt”, p. 5. 29 Idem pp. 7-8. 30 Idem, p. 12.
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Hazlitt, Critic of Power (1978); e David Bromwich, Hazlitt, the Mind of a Critic
(1983). Guardadas as inúmeras diferenças, o que há de comum a esses estudos e os
distingue de trabalhos anteriores, como o de Elizabeth Schneider, The Aesthetics of
William Hazlitt: a Study of the Philosophical Basis of his Criticism (1933), é o fato de
se proporem a reconstruir todo o edifício conceitual do autor. Assim, a vastíssima
obra de Hazlitt foi tomada em seu conjunto. Nada ficou de fora, e os autores
habilmente ligaram os pontos entre as múltiplas facetas do autor. O filósofo, o artista,
o crítico de teatro, o cientista social, o historiador, o ensaísta, enfim, tudo se amarrava
na crítica hazlittiana; uma crítica, como eles mostraram em seus estudos, que
permanece ainda hoje pertinente e inquietante. Um entre outros objetivos era dissociar
Hazlitt da figura do crítico impressionista que os velhos manuais universitários lhe
apregoaram – ao que parece, não há expediente mais eficaz, ainda que desleal, do que
acusar os críticos de outrora de impressionismo. O alvo aqui foram os totêmicos
História da Crítica Moderna: 1750-1950 (1955), de René Wellek, e Crítica Literária:
Breve História (1957), de William K. Wimsatt e Cleanth Brooks. Que há elementos
“impressionistas” na crítica hazlittiana o próprio autor admitiria. Pois, diz ele em “On
Criticism”: “Uma crítica genuína, segundo a compreendo, deve refletir as cores, as
luzes e sombras, a alma e o corpo de uma obra”31. Ora, o verdadeiro sentido dessa
crítica e o modo como ela opera passam bem ao largo de uma simples alcunha. Ainda
mais problemática foi a associação que fizeram entre Hazlitt e Coleridge. Aquele seria
um simples seguidor deste; uma espécie de Coleridge incompleto, pois não amparado
em Kant e no idealismo alemão32.
Dos estudos mencionados acima, gostaria de ressaltar o de Bromwich, “o
melhor crítico de Hazlitt”33, segundo Harold Bloom. À diferença de Park e Kinnaird,
o objetivo de Bromwich é menos o de atualizar a crítica hazlittiana à luz de Marx,
31 CWH, “On Criticism”, 8, p. 217. 32 Ver René Wellek, “Hazlitt, Lamb e Keats”, In. História da Crítica Moderna, II O Romantismo, (São Paulo: Editora Herder, 1967), pp. 167-191; e William Wimsatt e Cleanth Brooks, “A Imaginação: Wordsworth e Coleridge”, In. Crítica Literária: Breve História (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1957), pp. 461-93. Também é dessa opinião M. H. Abrams. Do autor, ver “Variedades da Teoria Romântica: Shelley, Hazlitt, Keble e outros”, In. O Espelho e a Lâmpada: teoria romântica e tradição crítica, (São Paulo: Editora Unesp, 2010), pp. 173-210. 33 Harold Bloom, “William Hazlitt”, In. Essayists and Prophets, (Philadelphia: Chelsea House, 2005), p. 69.
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Nietzsche ou Freud34 do que o de investigar o desenvolvimento intelectual do autor a
partir de suas próprias leituras e dos autores com os quais ele frequentemente
dialogou: Burke, Rousseau, Wordsworth, Coleridge, Byron, Keats, entre outros.
Nesse sentido, o livro de Bromwich é, a um só tempo, um retrato intelectual de um
grande crítico e uma leitura inovadora sobre o romantismo inglês. De sorte que se
tornou amplamente compreendido por qualquer estudioso do período que alguns
lugares-comuns sobre o romantismo inglês precisavam ser revistos.
Mas a grande virada nos estudos de Hazlitt, que ainda está em curso, e o
surpreendente renome de que hoje ele desfruta nos círculos acadêmicos ingleses e
norte-americanos ocorreria apenas algumas décadas mais tarde. Isso se deveu a dois
fatores de matrizes diferentes: 1. o trabalho editorial das obras de Hazlitt por Duncan
Wu e Tom Paulin (este, um dos mais renomados poetas britânicos da atualidade) e,
junto a esse trabalho, as publicações The Day-Star of Liberty: William Hazlitt’s
Radical Style (1998), de Paulin, e a biografia “definitiva” do autor, William Hazlitt:
The First Modern Man (2008), de Wu; 2. a ascensão do culturalismo histórico nos
estudos literários e a ruptura que ela promoveu com o argumento de que “a lírica
romântica seria a estrutura primária para interpretar a literatura britânica de fins do
século XVIII e início do XIX”35. Comecemos, pois, com a primeira dessas matrizes.
O trabalho editorial de Wu e Paulin foi um verdadeiro divisor de águas na
recepção de Hazlitt. Por meio deles o estudioso passou a contar com um guia mais
seguro para interpretações críticas e históricas; e o público em geral, com o acesso a
obras até então esgotadíssimas. Além de The Selected Writings of William Hazlitt, 9
vols. (1998), Paulin e Wu, às vezes juntos, outras vezes separados, editaram The Plain
Speaker: the key essays (1998); uma nova seleta de textos de Hazlitt para a Penguin,
The Fight and Other Writings (2000); New Writings of William Hazlitt, 2 vols. (2007);
William Hazlitt on the Elgin Marbles (2008); e All that is Worth Remembering:
Selected Essays of William Hazlitt (2014). Tudo isso ancorado na fina análise
estilística de Paulin, na estimulante narrativa biográfica de Wu e no compromisso
com os ideais hazlittianos. Em uma resenha a London Review of Books, disse Edward
Said sobre Paulin: “Paulin se preocupa com o esclarecimento e a emancipação 34 São algumas as aproximações que John Kinnaird sugere entre Hazlitt, Nietzsche e Freud. Ver, por exemplo, “Imagination and the Worlds of Power”, In. William Hazlitt: Critic of Power (New York: Columbia University Press, 1978), pp. 79-128. 35 Kevin Gilmartin, William Hazlitt, Political Essayist, (Oxford: Oxford University Press, 2015), p. 1.
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humanas. Subjacente aos seus ensaios, desdobra-se com firmeza a grande narrativa de
luta pela justiça, liberdade e conhecimento”36. The Day-Star of Liberty, obra que é a
principal inspiração para a tese que os leitores têm em mãos, analisa a obra de Hazlitt
a partir de uma imagem recorrente no autor, a estrela da manhã, e o quanto nela
ressoam o seu passado irlandês, a cultura dos protestantes dissidentes, o iluminismo
escocês e o seu engajamento estético e político. O vigor e a elasticidade da prosa de
Hazlitt são examinados em riqueza de detalhes e no fino trabalho de um ensaísta que,
a exemplo do autor que estuda, transforma a crítica em forma de arte.
Semelhante a outros escritores do século XIX, Hazlitt teve uma história de
vida instigante. Cresceu em uma família de intelectuais dissidentes que, nos anos de
1790, se refugiara nos Estados Unidos; de volta ao país e depois de ouvir uma
pregação de Coleridge, abandonou os estudos pastorais e descobriu sua vocação de
filósofo e artista; após uma carreira frustrada de pintor de retratos, passou a ganhar a
vida e fez fama literária com ensaios confiados à imprensa periódica; foi defensor
ardente da revolução popular; rompeu com o círculo de escritores que, em sua
opinião, desertaram a “causa do povo”37; aos quarenta e quatro anos, divorciou-se de
sua primeira esposa na esperança malograda de viver a paixão por uma jovem vinte e
cinco anos mais nova; casou-se novamente, viveu por alguns anos na Itália e França
com a nova esposa, de quem se separaria mais tarde; por fim, terminou a vida só e
pobre em um pequeno quarto alugado em Soho, Londres. Por esse motivo, não foram
poucas as biografias de Hazlitt. As mais conhecidas: P. P. Howe, The Life of William
Hazlitt (1922); Ralph Martin Wardle, Hazlitt (1971); e Stanley Jones, Hazlitt: A Life:
from Winterslow to Frith Street (1991). Nesse sentido, por que uma nova biografia do
autor, ou melhor, duas novas biografias? Nos anos 2000, além de Wu, o aclamado
filósofo e crítico inglês Anthony Clifford Grayling publicou The Quarrel of the Age:
The Life and Times of William Hazlitt (2013). Primeiramente, porque as novas
edições críticas e a descoberta de novos textos forneciam um material novo a
intelectuais antenados para a qualidade e a inovação. Segundo, porque Hazlitt parece
ser um daqueles autores, diz Grayling, cujas “realizações se deveram ao dom
36 Edward Said, “Paulin’s People”, In. London Review of Books, April 1992 issue, http://www.lrb.co.uk/v14/n07/edward-said/paulins-people 37 Expressão recorrente no autor. Ver, por exemplo, “What is the People?”, CWH, 7, p. 261.
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intelectual e ao talento excepcional; sua tragédia, à sua sensibilidade desgovernada e à
crueldade de sua época”38.
Mas nenhuma outra biografia, escreveu Eagleton, “registrou meticulosamente
cada um dos pormenores da vida de Hazlitt”39 como a de Wu. Seu ponto de partida é
que “a época moderna começou com o romantismo” e que “Hazlitt foi seu mais
articulado arauto”40. Se as afirmações são verdadeiras ou falsas, pouco importa, mas
daí concluir que Hazlitt foi o primeiro homem moderno é um julgamento demasiado
parcial. Não menos parcial, entretanto, é o suposto “fato” de, segundo Erich
Auerbach, “a moderna consciência da realidade ter se conformado literariamente pela
primeira vez na obra de Henri Beyle [Stendhal]”41. Contendas à parte, vale lembrar
que Hazlitt e Stendhal se conheceram em Paris, travaram uma sólida porém curta
relação de amizade e ambos admitiram a influência que um exerceu sobre o outro42.
Na outra matriz, a ascensão do culturalismo histórico nos estudos literários,
uma guarda avançada de leitores vem se empenhando no exame de obras literárias
enquanto, de um lado, artefatos culturais, do outro, textos vivos [living texts]43. Em
língua inglesa, o pivô desses estudos foi o livro de Marilyn Butler, Romantic, Rebels
& Reactionaries: English Literature and its Background 1760-1830 (1981). Nas
palavras da autora: “Para se opor ao isolacionismo de muitas das abordagens mais
comuns ao estudioso de literatura, precisamos tanto de uma consciência do processo
histórico quanto de um exame da comunidade que produziu as obras de arte e seu
público”44. Mal ou bem, Hazlitt se tornou peça-chave para a compreensão do período.
E isso não sem um motivo, pois seus ensaios críticos demonstram uma consciência
38 Anthony Clifford Grayling, The Quarrel of the Age: The Life and Times of William Hazlitt, (London: Phoenix, 2013), p. 26. 39 Tery Eagleton, “The Critic as Partisan: William Hazlitt’s Radical Imagination”, In. Harper’s Magazine, April 2009 issue http://harpers.org/archive/2009/04/the-critic-as-partisan/ 40 Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. xxiii. 41 Erich Auerbach, Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, (São Paulo: Perspectiva, 2009), p. 410. 42 Sobre as relações entre Hazlitt e Stendhal, ver The First Modern Man, pp. 359 e 392-3. Stendhal foi leitor assíduo da Edinburgh Review, periódico para o qual Hazlitt contribuiu inúmeras vezes. O ensaio daquele, “Racine et Shakespeare”, ocorreu-lhe após a leitura de “Sir Walter, Racine, and Shakespeare” de Hazlitt. Ver também Robert Vigneron, “Stendhal et Hazlitt”, In. Modern Philology 35 (1938), pp. 375-414. 43 Marilyn Butler, Romantic, Rebels & Reactionaries: English Literature and its Background 1760-1830, (Oxford: Oxford University Press, 1981), p. 10. 44 Idem, ibidem.
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aguda do processo histórico e um de seus temas favoritos é justamente o público, sua
formação, opiniões e tendências.
De lá para cá, estudos sobre o romantismo inglês e seu contexto histórico (a
Revolução Francesa, as guerras napoleônicas, a urbanização, a industrialização, a
expansão do imperialismo, o movimento de reforma parlamentar, etc.), nos quais ao
menos um capítulo é dedicado ao nosso autor, vieram pingando. Mas não há nada de
homogêneo nesses estudos. Se Uttara Natarajan, por exemplo, em Hazlitt and the
Reach of Sense: Criticism, Morals, and the Metaphysics of Power (1998), examina o
modo como o princípio de poder, por oposição ao princípio de prazer dos Utilitaristas,
se revela em seu discurso filosófico, em sua consideração sobre a estrutura da
imaginação, em suas teorias do gênio e da moral; Marcus Tomalin, em Romantic and
Linguistic Theory: William Hazlitt, Language and Literature (2009), explora as
relações entre as teorias linguísticas e a literatura a partir da obra de Hazlitt A New
and Improved Grammar of the English Tongue (1809), em conexão com outros
escritos; e Gregory Dart, em Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: Cockney
Adventures (2012), no tocante a nosso autor, reconstrói as profundas transformações
urbanísticas que fizeram de Londres, naquele início de século XIX, a primeira
metrópole moderna; e a figura do Cockney ensaísta free lance, o legítimo antecessor
da modernidade. Dart trabalhou ainda em duas edições de textos selecionados do
autor: Metropolitan Writings (2005) e Liber Amoris and related writings (2008).
A lista de monografias, capítulos de livros e artigos em periódicos
especializados sobre Hazlitt é hoje tão volumosa que, se nos ocupássemos de cada um
deles, tornaríamos esse ressensseamento deveras enfadonho. Para economia de
exemplos, gostaria de comentar brevemente duas publicações que acabaram de sair do
forno: Stephen Burley, Hazlitt the Dissenter: Religion, Philosophy, and Politics,
1766-1816 (2014), e Kevin Gilmartin, William Hazlitt, Political Essayist (2015). O
livro de Burley é o primeiro a investigar a fundo a juventude do autor, seus estudos
teológicos em New College, Hackney, e o quanto a cultura dos radicais dissidentes
moldou as ideias e o estilo do futuro ensaísta. Dando prosseguimento ao minucioso
estudo sobre a cultura e a imprensa periódica do movimento radical pela reforma
parlamentar, tema de Print Politics: The Press and Radical Opposition in Early
Nineteenth-Century England (1996), neste novo livro, William Hazlitt, Political
Essayist, Gilmartin situa o estilo, a forma e as estratégias retóricas dos ensaios de
21
Hazlitt dentro do jornalismo radical da época. Contrariando a afirmação de Thompson
de que “o estilo de Hazlitt, com seus ritmos sustentados e controlados, seu movimento
antitético, pertence à cultura polida do ensaísta”45, Gilmartin argumenta que “seu
método crítico flexível, que explora paradoxos e contradições e subjulga tanto a
esquerda quanto a direita a um escrutínio corrosivo”46, contribuiu, a seu modo, à
causa dos radicais.
Quer como filósofo, crítico, ensaísta politico ou observador irônico da
sociedade, entre outros, Hazlitt nunca esteve tão em alta nos estudos literários. De
sorte que a frase de Morris Zapp, “Hazlitt é um tema um tanto fora de moda”, soa
hoje anacrônica. Nesse oceano de publicações, talvez o livro de Philip Swallow,
Hazlitt and the Amateur Reader, se fosse publicado, recebesse maior atenção de
crítica e público.
Toda essa efervescente produção acadêmica foi favorecida pela fundação de
The Hazlitt Society, em 2003, e, cinco anos mais tarde, The Hazlitt Review, periódico
anual ligado à Universidade de Londres. As sociedades de escritores são bastante
comuns na Inglaterra. Mas esta em particular conta com um fato especial. Seu
fundador foi ninguém menos do que Michael Foot. Para refrescar a memória dos
leitores, Foot foi um dos principais intelectuais e membro do Partido dos
Trabalhadores [Labour Party]. Ligado à ala radical do partido, Foot e outros
lançaram, em 1983, um manifesto com um tom marcadamente socialista. Naquele
mesmo ano, ele disputou as eleições parlamentares com Margareth Thatcher. O
destino da Grã-Bretanha e do ocidente seria outro – e, a meu ver, melhor – se o
hazlittiano de carteirinha, Michael Foot, tivesse ganho as eleições.
____________________________________________________________
Resta, por fim, dizer uma palavra ou outra sobre a presença de Hazlitt no
Brasil. A tese que os leitores têm em mãos é a primeira escrita sobre o autor em solo
brasileiro. Como é comum a qualquer pioneirismo, precisamos nos ocupar das
45 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, Vol. 3, p. 470. 46 Kevin Gilmartin, William Hazlitt, Political Essayist, p. 15.
22
seguintes perguntas: “qual a relevância do tema para nós, brasileiros?” Ou ainda, “por
que estudar Hazlitt no Brasil?”.
Citamos acima a frase de Otto Maria Carpeaux que abre o perfil que escreveu
do ensaísta em História da Literatura Ocidental (1959-66)47. Carpeaux, com sua rara
sensibilidade, que combina aptidões que a especialização universitária manda separar,
não se deixou enganar, como ocorrera a outro crítico de sua geração, o italiano Mario
Praz, quanto ao lugar que Hazlitt merecidamente ocupa na literatura: o de ter sido um
de seus maiores ensaístas48. Entretanto, há alguns deslizes nesse perfil que devem ser
pontuados. Primeiro, Hazlitt jamais foi um defensor do individualismo e discípulo de
Helvetius; pelo contrário, sua filosofia é um tapa na cara das teorias que fundamentam
a ação humana no indivíduo e no amor-próprio. Segundo, não pode haver qualquer
afinidade entre Hazlitt e Jeremy Bentham, senão por oposição. Por toda a vida, Hazlitt
encampou a batalha contra a suposição de que a razão instrumental conduziria a
humanidade às verdades concretas e à construção de uma sociedade mais justa.
Terceiro, o bonapartismo de Hazlitt não guarda semelhanças com o culto ao herói de
Carlyle. Se, para Carlyle, Napoleão, o “último dos grandes homens”, era dotado de
uma habilidade que naturalmente exercia um “direito divino sobre” os outros49; para
Hazlitt, o estadista foi um condutor da causa revolucionária, e isso “a despeito de si
mesmo”50. Sem que o soubesse, Napoleão era incapaz de “despir-se de seu caráter”;
isto é, o de “filho e campeão da Revolução Francesa”51.
Em ocasiões distintas, e com propósitos igualmente distintos, Hazlitt foi lido
por duas personalidades emblemáticas da intelectualidade brasileira modernista. Uma,
a romancista e ensaísta Lucia Miguel Pereira; a outra, um dos maiores poetas e
compositores de nossa língua, Vinícius de Moraes.
Lucia Miguel Pereira prefaciou o volume Ensaístas Ingleses (1952), tradução
de J. Sarmento de Beires e Jorge Costa Neves. Neste apareceram as duas primeiras
traduções de Hazlitt para o português brasileiro: “Sobre a Ignorância dos Sábios” e “A
47 Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, Vol. “Romantismo”, pp. 2012-2013. 48 Ver Mario Praz, “Is Hazlitt a great essayist?” (English Studies, 1931), pp. 1-6. 49 Thomas Carlyle, “The Hero as King. Cromwell, Napoleon: Modern Revolutionism”, In. On Heroes and Hero-Worship (New York: Charles Scribner’s Sons, 1841) pp. 392 e 321. 50 CWH, “Preface to Political Essays”, 7, p. 9. 51 CWH, “Life of Napoleon Bonaparte, Volume One”, 13, p. ix. A melhor discussão sobre Hazlitt e Napoleão é de Simon Bainbridge, “‘A proud and full answer’: Hazlitt’s Napoleonic riposte”, In. Napoleon and English Romanticim (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), pp. 183-207.
23
Propósito de Alcunhas”. O volume foi inspirado em outra coletânea, mais extensa,
Ensaysitas Ingleses (1948), prefácio de Adolfo Bioy Casares. Se Casares ressaltou a
versatilidade dos talentos de Hazlitt (pintor, filósofo, historiador, ensaísta), Miguel
Pereira lembrou, sobretudo, a qualidade do crítico que facilita a compreensão
histórica: “seus ensaios críticos, que abrangem praticamente todos os escritores desde
a época de Elizabeth até a sua, contribuíram largamente para o entendimento de
Shakespeare, assim como para o movimento romântico na Inglaterra”52. Mas ambos,
Casares e Miguel Pereira, foram sensíveis ao fervor apaixonado, e apaixonante, de
seus ensaios. “Hazlitt pensou muito, escreveu muito e combateu muito”53, disse
Casares. Ou ainda, nas palavras de Miguel Pereira: “temperamento espontâneo, os
escritos lhe refletem as paixões, as simpatias e antipatias”54.
Noutra chave, mas também perto do coração, o Hazlitt de Vinicius de Moraes
é o cronista que em épocas de epidemia mantém a dignidade de jamais ceder ao
entreguismo. Em O Exercício da Crônica (1953), contrariando a opinião de que este
seria um gênero tipicamente brasileiro, de que teria se aclimatado aqui melhor do que
em qualquer outra parte do mundo55, Moraes diz que a crônica é filha do ensaio, ou
melhor, do essay. A passagem merece ser lida na íntegra:
Os melhores cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra –
os chamados essayists –, praticaram o essay, isto de onde viria a sair a crônica
moderna, com um zelo artesanal tão proficientes quanto a de um bom carpinteiro
ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do primitivo essay, os
oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade,
casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison,
Steele, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb – estes os dois maiores – fizeram da
crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto
leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras56.
52 A citação de Lúcia Miguel Pereira segue a reedição de seu ensaio “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Serrote #22 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2016), p. 14. 53 Adolfo Bioy Casares, Ensayistas Ingleses, p. 14. 54 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, p. 14. 55 É dessa opinião Humberto Werneck. Ver “Um gênero tipicamente brasileiro”, In. Boa Companhia: Crônicas (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), pp. 7-12. 56 Vinicius de Moraes, “O Exercício da Crônica”, In. Para uma Menina com uma Flor (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), p. 53. Registre-se aqui meus sinceros agradecimentos a Paulo Roberto Pires pela referência.
24
Pois bem, Hazlitt foi um dos maiores cronistas; foi mestre de um estilo que
aposta na aliança produtiva entre a intelectualidade e a vida popular; foi um crítico
atento ao processo histórico; foi também um intelectual não conformista e talvez o
único de sua geração que se declarou, acima de tudo, um revolucionário57. Com a
feliz confluência de traços estilísticos e ideais preciosíssimos para um grande batalhão
de professores universitários de origem esquerdista entre nós, talvez devêssemos
inverter a pergunta: afinal, por que Hazlitt jamais fora estudado no Brasil? Para não
fabricar um falso problema, é bom dizer que o mesmo vale para o romantismo inglês
em geral e o ensaio literário. Há decerto a questão da barreira do idioma. Algumas
obras fundamentais do romantismo e do ensaio ingleses ainda não encontram
traduções no Brasil. Mas a barreira começa a cair. A Revista Serrote, da qual esta tese
amplamente se beneficiou, colocou em circulação textos seminais do ensaísmo,
sobretudo de língua inglesa. Do autor, a Serrote publicou, no número 9, o clássico
“Sobre o Prazer de Odiar”, tradução de Alexandre Barbosa de Souza; e, no número
22, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, tradução minha.
Na tese que se segue, examinaremos um conjunto de imagens que vincula os
trabalhos envolvidos durante a confecção do ensaio crítico e literário aos acidentes
topográficos e à textura do solo, expressos no arquétipo recorrente do autor, “ao rés-
do-chão” [on the plain-ground]. Assim, a obra de Hazlitt será analisada enquanto
crítica e ensaio, ou enquanto uma crítica ensaística: uma crítica que não assume ares
de superioridade, que não resvala para o pedantismo e que aproxima o contato entre o
escritor e o público, segundo compreendeu Lucia Miguel Pereira; e um ensaio que
não aspira a um gênero maior, que não se pretende enquanto obra de Arte (com letra
maiúscula), mas enquanto artefato, artesanato, confeccionado por um bom carpinteiro
ou relojoeiro, como quis Vinícius de Moraes.
No primeiro capítulo, sobre o estágio inicial da confecção do ensaio (a
inspiração) acompanharemos o jovem Hazlitt em seus primeiros passos a partir da
leitura cerrada de algumas passagens de dois ensaios – “My First Acquaintance with 57 Hazlitt fez sua profissão de fé política precisamente na última de suas publicações, Life of Napoleon. No capítulo “The Establishment of the Empire”, diz ele: “Nunca e em parte alguma de meus escritos declarei-me um republicano; tampouco creio que valha a pena ser um mártir e defensor desta ou daquela forma de governo. Mas se arrisquei minha saúde e riqueza, meu nome e fama a alguma coisa, a qual estaria disposto a me arriscar novamente e até a última gota de suor, foi à ideia de que há um poder no povo para mudar o seu governo e governantes. Numa palavra, sou um revolucionário”, CWH, 14, p. 236. Para uma discussão sobre essa passagem, ver Gilmartin “Revolutionist”, In. William Hazlitt, Political Essayist, pp. 186-200.
25
Poets” e “On the Pleasure of Painting” – onde ele narra sua experiência de conversão
ao mundo das artes e o modo como as leituras de Rousseau e Burke apontaram-lhe os
caminhos para uma crítica inventiva. Em ambos os ensaios, a presença constante de
imagens crepusculares e seus efeitos sobre o autor e sobre um mundo em
transformação fizeram com que voltássemos nosso olhar para os múltiplos
significados atinentes a elas. Essas imagens iluminaram os caminhos que o crítico
teve de percorrer para melhor encontrar a linguagem com a qual expressar sua
admiração por livros, quadros, peças escultóricas e peças teatrais; uma linguagem que
desvela os intensos diálogos entre o texto ensaístico e a pintura. No segundo capítulo,
sobre a leitura, encontraremos nosso autor ora na solidão de seu quarto, mastigando os
pensamentos, digerindo-os no íntimo, ora em companhia de pessoas próximas.
Intimidade e convivência são os ingredientes-chave para esta etapa dos trabalhos.
Somente graças a eles nosso autor descobriu a arte de conversar sobre o papel; numa
palavra, o estilo familiar ou conversacional. Para ele, a escrita de ensaios exige um
convite cordial ao leitor com o qual o ensaísta espera dividir amigavelmente sua
tarefa. No terceiro e último capítulo, sobre a escrita, falaremos de como esse calor
interno, anterior à consumação da obra, cede vez a outro, de um poder maior de
combustão: o calor da hora. O ensaio se apresenta como espaço privilegiado onde se
travam lutas com as ideias e se disputa uma causa; e o ensaísta, como o homem das
ruas (man-about-town), cujas andanças pela metrópole londrina e convivência com os
homens, sobretudo aqueles pertencentes às classes baixas, lhe permitiram combinar à
elegância do ensaísta os momentos combativos e ousados de prosa. Por fim,
concluiremos com um percurso, por assim dizer, fantasista sobre o gênero ensaio e a
figura do ensaísta a partir de duas forças contrárias, mas não conflitantes, que neles
atuam: uma, excêntrica, que quer escapar às influências telúricas; a outra, concêntrica,
que não nega a terra.
Desse modo, cada um dos três capítulos pretende cobrir uma das “atitudes
mentais” do autor – para fazer valer a expressão de Lucia Miguel Pereira58. No nosso
entendimento, há três dessas atitudes que parecem próprias ao ensaísta,
58 Nas palavras de Lucia Miguel Pereira, “Apontados perfunctoriamente os traços principais dos autores neste livro reunidos, logo ressalta a sua diversidade; que todos se possam, com maior ou menor rigor, dizer ensaístas é prova segura da mobilidade e complexidade do ensaio, antes atitude mental do que gênero literário. Atitude mental que, em última análise, significa o desejo de tudo compreender, de captar a realidade, seja ela espiritual ou material, em todas as suas faces”, “Os Ensaístas Ingleses”, p. 17.
26
experimentadas e vividas por Hazlitt em sua intensidade, a saber: o retratista, o amigo
e o adversário. A partir de uma combinação dos tipos de ensaios propostos por dois
importantes críticos que discutiram conceitualmente o gênero, Alexandre Eulálio, em
O Ensaio Literário no Brasil, e Max Bense, em O Ensaio e sua Prosa, falaremos: 1)
do “ensaio descritivo, narrativo e interpretativo de intenção estética”59 (tal é a atitude
do retratista); 2) do ensaio “subjetivo (...), chamado em inglês de familiar essay”60,
cuja clareza não é a da definição conceitual (tal é a atitude do amigo); e por fim, 3) do
ensaio polêmico, “que não faz experiência com seu objeto para submetê-lo à
iluminação crítica, mas para atacá-lo e destruí-lo”61 (tal é a atitude do adversário).
Hazlitt, como vimos, é um dos faróis do ensaísmo. Dada a centralidade que o
gênero adquiriu nas letras inglesas, este estudo também pretende iluminar a literatura
inglesa do período, o romantismo. Adotamos como verdadeiras as seguintes palavras
de Gilberto Freyre, ele próprio um ensaísta de mão cheia e leitor cauteloso da
literatura inglesa:
Ninguém pode falar de literatura inglesa sob qualquer critério – psicológico ou
sociológico ou estético – sem considerar a importância que nela adquiriu o antes
artística e intelectualmente elaborado do que espontâneo ensaio. Mais que
qualquer outra grande literatura moderna, a inglesa se destaca pelos seus
ensaístas, cada qual mais mestre de um humour, de uma graça de expressão, de
um modo despretensioso de comentar e até de filosofar, de uma sensibilidade ao
interesse humano dos pequenos nadas e as aventuras que podem esconder-se na
rotina do cotidiano, de o escritor ser filósofo, que, como qualidades assim
diversas, parece só se reunirem em escritores ingleses. É certo que Montaigne era
francês e que não poucos espanhóis têm sido a seu modo ensaístas admiráveis.
Mas na literatura inglesa os ensaístas vêm-se sucedendo numa espécie de
sucessão apostólica dessa forma literária de expressão: uma forma que, mudando
com o tempo sob vários aspectos, no essencial vem-se conservando castiçamente
inglesa. Flexível ensaio, talvez mais que a poesia ou que o drama ou que o
romance, vem permitindo aos ingleses se exprimirem nele de acordo com suas
diferentes personalidades: flexibilidade importante num país de escritores
59 Alexandre Eulálio, “O Ensaio Literário no Brasil”. In. Serrote #14. (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013), p. 8. 60 Idem, bidem. 61 Max Bense, “O Ensaio e sua Prosa”. In. Serrote # 16. (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014), p. 179.
27
individualíssimos, personalíssimos, cada um, um rei ou uma rainha; e incapazes
de se constituírem em academias uniformizadoras de formas de expressão literária
ou defensoras de conceitos institucionais do que seja boa, correta ou elegante
língua inglesa, ou bom, correto, elegante estilo de prosa ou de poesia. Cada
ensaísta inglês, mais do que cada romancista ou cada teatrólogo, tem sido, dentro
dessa forma literária de expressão, o criador de sua própria maneira de escrever
ensaios62.
62 Gilberto Freyre, Alhos e Bugalhos: Ensaios sobre Temas Contraditórios: de Joyce à Cachaça; de José Lins do Rego ao Cartão-Postal (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978), p. 69.
28
Capítulo 1
As Poças do Caminho: as peregrinações do artista quando jovem
Caminhou, caminhou, caminhou, a passos largos, até longe (…), gritando para
saudar o advento da vida que tinha gritado para ele.
James Joyce, ‘Retrato do artista quando jovem’1.
1. O Retratista
Leitores e estudiosos de Hazlitt frequentemente retornaram (seja por
instrução, seja por prazer) ao famoso retrato que Virginia Woolf traçou do ensaísta
em O Leitor Comum (1932). No curso de algumas poucas páginas e com a
honestidade “firme do pincel”, Woolf apresenta o seu modelo, no sentido daquele que
posa para um retrato, por inteiro: sua “paixão pelos direitos e liberdades dos homens”,
cuja origem, como veremos neste capítulo, remonta à herança unitarista; seu gosto
bifurcado, entre a pintura e a filosofia; o conflito interno de seu caráter, “como se
duas mentes operassem a um só tempo”; a urgência de escrever para a imprensa “no
calor da hora”, para não se afundar em dívidas; “sua suscetibilidade ao charme do
sexo oposto”, que, não raras vezes, o incorreu em humilhação e desapontamento2. Em
particular, Woolf toca a corda que faz ressoar a arte de fazer ensaios segundo Hazlitt
quando ela a descreve enquanto praticada por alguém que, “de súbito, se aquece ao
rubor ou se aquece ao branco sempre que algo o lembrasse do passado”3. Além disso,
segundo Woolf, Hazlitt (o filósofo) sempre esteve de braços dados com Hazlitt (o
artista). É por esta razão, na opinião de David Bromwich, que a profundidade de gosto
de Hazlitt foi, às vezes, acolhida “com certo desconforto”, por exemplo, por T. S.
Eliot, numa época em que a ascensão da crítica acadêmica, com “seu anseio por
sistemas”4, transplantava a literatura ao reino em preto-e-branco da teoria. O mesmo
1 James Joyce, J. 2011. Retrato do Artista quando Jovem, p. 192. 2 Virginia Woolf, The Common Reader: Second Series (London: Harcourt, Inc., 1986), pp.173-85: 173-6. 3 Idem, p. 178. 4 David Bromwich, Hazlitt: The Mind of a Critic (New Haven: Yale University Press), 1983, p. 13. Quanto ao juízo de T. S. Eliot sobre Hazlitt, ver Selected Essays: 1917-1932, pp. 268-9.
29
embaraço, entretanto, não acometeu Virginia Woolf, que, em outro retrato, a Walter
Sickert, colocou Hazlitt na frente de batalha contra a linguagem da especialização
fomentada pela rigidez do academicismo literário, lamentando, desse modo, o
desaparecimento da crítica como arte:
Os melhores críticos, Dryden, Lamb e Hazlitt, eram profundamente conscientes da
mistura de elementos e escreveram sobre literatura com música e pintura em mente.
Hoje em dia, somos todos tão especializados que os críticos têm a mente muito presa
à letra, o que explica a condição subnutrida da crítica e a forma atenuada e parcial
com que trata seu assunto5.
A observação de Woolf é significativa e merece um pouco mais de nossa
atenção, em particular, pelo modo como ela ilumina um tipo de crítica não
profissional que se deleite em tudo aquilo para além da letra; isto é, o caráter
pitoresco e musicado da linguagem. Em certo sentido, o desenvolvimento de Hazlitt
de uma voz única em seus ensaios críticos e pessoais veio a ele por um esforço de
compensar sua ambição frustrada de pintor de retratos.
Na juventude, Hazlitt mostrava sinais de uma carreira promissora como
pintor. Durante a vigência do Tratado de Amiens, curto armistício entre França e
Inglaterra6, o aprendiz “marchou contente” pelas recém-abertas galerias do Louvre,
estudando e contemplando, “face a face”, obras-primas que até então só vira “em
5 Virginia Woolf, Walter Sickert: uma conversa, In. Serrote #3 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009), p. 206. Boa parte deste ensaio de Virginia Woolf foi escrito segundo uma técnica comum a Hazlitt, com personagens que, em torno de uma mesa, conversam sobre arte, política e sociedade. Vale lembrar que o pai de Virginia, o crítico e jornalista Leslie Stephen, foi editor das obras de Hazlitt em fins do século XIX. No centenário da morte de Hazlitt, em 1930, quando veio a lume a primeira edição crítica de suas obras completas, por P. P. Howe, Virginia Woolf foi quem escreveu, na época, boa parte das resenhas críticas favoráveis à edição. De fato, haveria muito que explorar sobre a afinidade entre os dois. Sobre o tema, por exemplo, ver o artigo de Hermione Lee, “Virginia Woolf’s Essays”, In. The Cambridge Companion to Virginia Woolf, edited by Susan Sellers (Cambridge: Cambridge University Press, 2010). 6 Os conflitos entre França e Inglaterra, durante as chamadas Guerras Revolucionárias Francesas, teve início em 1793 e se estendeu até 1815, com a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo. O armistício durou de março de 1802 a maio de 1803. Como descreveu o biógrafo de Hazlitt e importante estudioso de romantismo, Duncan Wu: “Havia iluminações espalhadas por toda a cidade de Londres, e os ingleses, reunidos aos milhares, atravessaram o Canal da Mancha, ávidos por obter uma amostra dos prazeres do continente, dos quais foram privados fazia mais de uma década”. Duncan Wu, William Hazlitt, the first modern man, p. 79.
30
espelho e de maneira confusa”7. Quando de volta à Inglaterra, acompanhou por um
tempo o irmão e também pintor John Hazlitt a lugares, lembra Hazlitt, “onde o jovem
artista faria sua peregrinação”8, de visitas a coleções privadas a serviços de retratos
por encomenda. Por horas a fio, até o cair da tarde, Hazlitt não mediu esforços para
encontrar o exato tom perolado que tingia a pele angulosa de seu primeiro modelo:
“uma senhora de idade avançada, com a parte superior de sua face sombreada por um
toucado”9. Este, como outros quadros do autor, encontra-se hoje em Maidstone
Museum, cidade onde nasceu, ao sudeste de Londres; outros, menos afortunados, diz
Woolf, ele os “rasgou em pedacinhos ou os lançou contra a parede em surtos de
raiva”10. Mas o jovem artista produziria ainda alguns bons quadros (merece destaque
o retrato hoje confiado a National Portrait Galery do amigo e ensaísta, Charles Lamb,
em trajes venezianos, porte ticianesco e leve sorriso de canto de boca), não obstante
algo lhe faltasse – talvez invenção, conjeturou Virginia Woolf11. Não tardaria,
contudo, para que Hazlitt encontrasse na crítica inventiva um meio mais congenial
para dar vida à personalidade de seus modelos – vale lembrar que boa parte da
extensa produção ensaística do autor foi escrita na forma de retratos literários, alguns
dos quais ele os reuniu em livro sob o título The Spirit of the Age, or Contemporary
Portraits, obra de 1825.
A expressão de que aqui nos valemos, crítica inventiva, é baseada na frase
“prosa inventiva”12, cunhada pelo próprio autor no último de seus ensaios, The Letter-
Bell. Se a sua felicidade está assentada em recordações de sua primeira infância – de
que seus últimos ensaios dão testemunho –, ou seja, de como gostaria que as coisas
tivessem sido antes de se frustrar em suas esperanças públicas e privadas13, não nos
7 A passagem é bíblica, 1 Coríntios, 13:12, e foi citada por Hazlitt no ensaio em que descreve sua primeira visita ao Louvre, CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 9. 8 Idem, p. 14. 9 Idem, p. 8. 10 Virginia Woolf, The Common Reader, Second Series. p. 175. 11 Idem, ibidem. 12 CWH, “The Letter-Bell”, 17, p. 380. 13 Sobre as esperanças malogradas, públicas e privadas (a primeira, o triunfo da liberdade; a segunda, um casamento feliz), ver “Sobre o Prazer de Odiar”, In. Serrote, n. 9, 2011, p. 29. Também sobre o tema, Stanley Jones, Hazlitt: A Life, From Winterslow to Frith Street (Oxford: Oxford University Press), 1991, em especial os capítulos “The End of Public Hopes”, pp. 161-84, e “The End of Private Hopes”, pp. 319-42.
31
surpreende que sua linguagem seja tanto mais plástica e sonora precisamente quando
“destranca a caixa da memória” – quando volta “a ser criança novamente”14.
Pouco antes de iniciar a carreira de pintor itinerante ao lado do irmão, dois
incidentes quase simultâneos o despertaram para a difícil arte da mistura de
elementos. Em 1798, Hazlitt ouvira a pregação de Samuel Coleridge na congregação
dissidente de Shrewsbury: “meu deleite”, escreveu o crítico anos mais tarde, “não
teria sido maior se tivesse ouvido músicas celestiais”15. No mesmo ano, as Reflexões
sobre a Revolução em França de Burke, e as Confissões de Rousseau, caíram em suas
mãos e ele as “devorou com unhas e dentes”16. Se, com Coleridge, Hazlitt descobrira
a linguagem para expressar sua admiração por livros, quadros, peças escultóricas e
peças teatrais com pintura e música em mente – na expressão do autor, por um
“mosaico de imagens” e por “alusões originais”17 –, Rousseau e Burke, de maneiras
distintas, indicaram as tarefas envolvidas no ato de criação crítico-literária pelo modo
como seus semblantes, quando dispostos lado a lado, tencionavam imaginação e
sensibilidade, paradoxo e lugar-comum. É o que se nota, como espero mostrar neste
capítulo, a partir de um exercício de leitura das partes autobiográficas de dois ensaios:
“My First Acquaintance with Poets” e “On the Pleasure of Painting”, nos quais
Hazlitt narra suas peregrinações juvenis e o momento de conversão ao mundo das
artes, quando, diz ele, “um novo sentido veio a mim, um novo céu e uma nova terra se
abriram para mim”18. Uma visão geral da cultura dos dissidentes e sua relação com os
escritos de Hazlitt, a partir de uma análise cerrada de algumas imagens particulares
contidas nesses ensaios, será de grande importância para compreender o conteúdo
político radical que permeia emblemas-chave como a estela da tarde e gotas de
orvalho e, em termos mais específicos, para compreender os caminhos que Hazlitt
teve de percorrer para se iniciar no mundo da literatura e das artes. Como ponto de
partida, falaremos, em primeiro plano, de sua educação dissidente em conexão com o
uso de imagens crepusculares enquanto “emblemas da boa causa” 19 , e
14 CWH, "Why Distant Objects Please”, 8, p. 257. 15 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108. 16 No original, “devoured them tooth-and-nail”. Expressão recorrente em Hazlitt para se referir ao ato antropofágico da leitura, no sentido, diz o autor, de que uma ideia ou uma obra só é verdadeiramente compreendida e assimilada se a provamos não na boca, mas no estômago. Para o trecho, ver “On Reading Old Books”, CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 224. 17 No original: “to express my admiration to others in motley imagery or quaint allusion”, CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 107 (grifo nosso). 18 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 14. 19 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108.
32
aprofundaremos a análise a partir das implicações vocais e musicais recorrentes na
linguagem de seus ensaios, sobretudo naqueles momentos em que ele olha para o
passado e se descobre, também ele, um artista a seu modo. Por fim, vincularemos a
leitura desses dois ensaios aos retratos literários de dois de seus mais legítimos
precursores: Rousseau e Burke.
2. A Estrela da Tarde
Era fim de tarde, o sol se punha sobre as distantes colinas de Gales,
cravejando os declives argênteos de um dia de inverno; as notas do papo-roxo
pipilavam ao longe, enquanto o céu azul, de gradações imperceptíveis de tons
carmesim e dourado, estendia seu imenso pavimento marmóreo por todas as coisas.
Mais um dia de trabalho chegara ao fim; mais um retrato fora concluído; desta vez,
sem pressa e não por encargo. Havia uma disposição no modelo, pai do artista, de
posar por quanto tempo fosse necessário, além de sentir certo orgulho por aquele que
“multiplicava sua imagem”20. O bondoso pastor dissidente trazia à mão um livro, um
volume das Características [Characteristics] de Shaftesbury, ao qual volvia seu olhar
compenetrado, com o canto esquerdo do rosto iluminado por uma espessa camada de
luz que atravessava as vidraças da capela.
A família de Hazlitt, após duas tentativas frustradas de fixar residência – a
primeira, no país de origem do reverendo, o condado de Cork, Irlanda; a segunda, nas
duas principais cidades do recém-fundado Estados Unidos, Filadélfia e Boston –, foi
forçada a se acomodar na pequena e distante aldeia de Wem, em Shropshire, oeste da
Inglaterra, lá onde as ideias radicais de igualdade social não ecoavam para além do
vale de Llangollen21. Os anos de 1790 foram particularmente difíceis para os
antimonarquistas e defensores da “causa do povo”22, em especial para um pastor não-
20 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 12. 21 Sobre a dura aceitação da família Hazlitt de se mudar para Wem e sobre o quanto a vida naquela pequena congregação rural se tornou, ao fim e ao cabo, significativa para as contribuições do Reverendo William Hazlitt a periódicos dissidentes, bem como para sua atividade de teólogo e escritor, ver o artigo de Stephen Burley, “’In This Intolerance I Glory’: William Hazlitt (1737-1820) and the Dissenting Periodical”, The Hazlitt Review, Volume 3 (London: Hazlitt Society, 2010), pp. 9-22; e, do mesmo autor, Hazlitt the Dissenter: Religion, Philosophy, and Politics, 1766–1816, (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014), em particular o capítulo 1, “William Hazlitt (1737-1820) and the Unitarian Controversy”, pp. 9-48. 22 Expressão recorrente em Hazlitt. Ver, por exemplo, o ensaio “What is the People?”, CWH, 7, p. 261.
33
conformista de origem irlandesa. O monarca George III, “acompanhado (...) de uma
turba em procissão cerrada a sua volta”, a facção church-and-king, e “montado sobre
seu glorioso corcel (...), expulsou de campo praticamente todos os oponentes”23.
Casas, bibliotecas, laboratórios e locais de reunião de intelectuais revolucionários
foram consumidos pelas chamas; decretos como Two Acts, de novembro de 1795,
proibiram palestras públicas (importante meio de mobilização popular na época); a
rebelião irlandesa de 1798, que devia tanto aos líderes protestantes do norte quanto ao
campesinato católico do sul, foi ferozmente reprimida24; por fim, o Ato de União de
1800 decidiu por uma Irlanda segregada, incorporando-a ao Reino Unido, e salpicou
de lodo as esperanças de homens que, com o Rev. William Hazlitt, dedicaram a vida à
luta pela liberdade civil e religiosa25.
Mas, naquele inverno de 1805, após terminar o retrato do pai26, a luz
prateada da estrela da tarde lavava a escuridão e preenchia os corações de novas
esperanças. Corria pelo país a notícia da vitória de Napoleão na batalha de Austerliz,
e novamente os partidários do povo voltavam a sonhar com um mundo de justiça
social. Em “On the Pleasure of Painting”, Hazlitt descreve o momento em que
acolheu a notícia:
Saí para uma caminhada ao cair da tarde e, quando voltava para casa, vi a estrela da
tarde se pôr sobre a choupana de um homem pobre com pensamentos e sentimentos
que jamais antes tivera. Ah, a revolução do grandioso ano platônico, que aqueles
23 CWH, “On the English Novelists”, 6, p. 122. 24 Segundo Wu, o desfecho trágico da revolta irlandesa, quando “em questão de semanas, 30.000 pessoas foram mortas”, é capturado por Hazlitt na frase de abertura de “My First Acquaintance with Poets”, na qual se ecoa um verso de Paraíso Perdido de Milton: “Meu pai era pastor dissidente na congregação de Wem, em Shropshire; e naquele ano de 1798 (as figuras que compõem esta data parecem-me ‘o nome pavoroso de Demogorgon’)...”. CWH, 17, p. 106. Ver, Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 19; e Tom Paulin, The Day-Star of Liberty: William Hazlitt’s Radical Style, pp. 133-5. Para esta e outras passagens que ecoam o Paraíso Perdido, recorri à tradução portuguesa de Daniel Jonas (São Paulo: Editora 34, 2015). 25 Neste parágrafo, nos valemos dos fatos históricos e de suas implicações para os grupos radicais a partir do livro Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária do historiador E. P. Thompson, sobretudo, os capítulos “O bondoso sr. Godwin” (pp. 131-179) e “Caçando a raposa jacobina” (pp. 215-273); também o livro de Wu Modern Man, Part I ‘The Road to Nether-Stowey’, pp. 23-67. 26 Embora Hazlitt alegue ter terminado o retrato do pai “no mesmo dia que recebeu a notícia sobre a Batalha de Austerliz” (CWH, 8, p. 13), o retrato, segundo Howe, foi concluído bem antes, em 1802. Duncan Wu, por sua vez, levanta a hipótese de o retrato ter sido pintado em 1804; ver Selected Writings of William Hazlitt, ed. Duncan Wu, 9 vols (London: Pickering & Chatto, 1998), VI, p. 298, n.30. A aparente distorção dos fatos sugere que a verdade na narrativa do autor é poética ou alegórica, por oposição a uma verdade minuciosamente histórica.
34
tempos se sucedam outra vez! Dormiria um sono profundo no intervalo de sessenta e
cinco mil e trezentos anos!27
Não era a primeira vez, e não seria a última, que o “louro anjo vespertino”,
nos versos de outro escritor que saudou com alegria o mesmo evento, William
Blake28, iluminaria os caminhos do jovem autor. Noutra ocasião, no ensaio “On the
Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, sobre o qual falaremos mais
detidamente no terceiro capítulo desta tese, Hazlitt recorreu à mesma imagem e disse
que nenhuma outra definiu tão bem os sentimentos do verdadeiro jacobino, conquanto
se tratasse de uma “definição pastoral” ou “romântica”29. De fato, a frequente
recorrência no texto de Hazlitt dessa e de outras imagens correlatas – a estrela d’alva,
o sol nascente – para descrever um sentimento e um engajamento político, põe o autor
em estreita afinidade com a cultura dissidente, da qual também faziam parte os
principais escritores e pensadores radicais da Inglaterra no período30. A visão de
Hazlitt da estrela da tarde que se põe sobre a choupana de um homem pobre está
íntima e conscientemente alinhada com a sua herança unitarista.
O livro de Tom Paulin, The Day-star of Liberty: William Hazlitt’s radical
style (1998) e, sobretudo, o amplo estudo realizado por Stephen Burley em Hazlitt the
Dissenter: Religion, Philosophy, and Politics, 1766-1816 (2014) oferecem alguns
traços da cultura dissidente dos quais me aproveitei em minha análise. Pela riqueza de
detalhes e pelo interesse no que “há de poético (...) nos gestos que simbolizam e
concentram longos períodos de luta”31, recorri, por vezes, também ao livro do
historiador marxista Christopher Hill, O Mundo de Ponta-Cabeça: ideais radicais
durante a Revolução Inglesa de 1640 (1972). Embora Hill só mencione en passant as
27 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 13. 28 Ver o poema de Blake A Estrela Vésper [The Evening Star], em O Casamento do Céu e do Inferno (São Paulo: Hedra, 2008) pp. 84-85. A simpatia de Blake por Napoleão é clara em seus escritos. Em um poema escrito a George Cumberland, por exemplo, ele associa positivamente a choupana com “o brilho da luz sobre a França”, isto é, exatamente a mesma imagem que Hazlitt evoca. Sobre a passagem e uma discussão do tema, ver Jon Mee e Mark Crosby, ‘“This Soldierlike Danger”: The Trial of William Blake”, In. Mark Philip, Resisting Napoleon: The British Response to the Threat of Invasion 1797-1815 (Aldershot: Ashgate, 2006), pp. 111-24: 112. 29 CWH, “On the Connecion between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p. 151. 30 Nas palavras de Marilyn Butler, “como Priestly, Paine, Godwin e Blake, ele [Hazlitt] tem origem no estoque clássico da esquerda inglesa, os dissidentes”, Romantics, Rebels & Reactionaries: English Literature and its Background 1760-1830, p. 169. 31 Chistopher Hill, O Mundo de Ponta-Cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640 (São Paulo: Companhia das Letras, 2001) p. 365.
35
origens do unitarismo na Inglaterra, ao tratar das suas relações com o sociniano John
Bidle, a afinidade que esse grupo radical puritano teve com dezenas de outros citados
no livro lança uma luz a esta exposição. De saída, deve-se notar que alguns aspectos
da fé e conduta moral, aos quais os puritanos foram frequentemente associados – a
doutrina da predestinação, a fuga do mundo, a solidão interior do indivíduo –,
divergem das crenças e práticas sociais que caracterizavam parte significativa dos
grupos dissidentes. Neste momento de nossa exposição, também recorremos ao livro
seminal do sociólogo Max Weber, A Ética protestante e o “Espírito” do Capitalismo.
Contudo, os contornos demasiado claros que esse estudo impôs aos grupos puritanos e
o interesse exclusivo do sociólogo por uma “ética protestante” vitoriosa, isto é, ligada
aos interesses da propriedade privada, colocam nossa analise a contrapelo de algumas
conclusões do autor.
Também é importante frisar que “o puritanismo de Hazlitt é cultural”32,
como o foi para a maioria dos escritores da época. Ainda muito jovem, após
abandonar os estudos de teologia e seguir a carreira de pintor itinerante, Hazlitt
frustrou os sonhos do pai, que desde cedo o preparara para a vida pastoral. Com o
passar dos anos, as artes ocuparam definitivamente o lugar da religião na vida do
escritor33. Mas, enquanto aluno de Hackney College, colégio unitarista de renome na
época, Hazlitt conheceu mais a fundo os ideais dos radicais e travou contato com
grandes nomes da vanguarda intelectual. O New College, como observou Burley, era
na época “um importante centro de empreendimento reformista e radical (...),
[reunindo] as principais figuras dissidentes e radicais da época”34. Ali, Hazlitt assistiu
aos cursos de história de Joseph Priestley, autor de A History of the Corruption of
Christianity – um ataque feroz à institucionalização da igreja cristã, católica e
protestante; participou de encontros onde estavam presentes o casal William Godwin
e Mary Wollstonecraft, com quem Hazlitt foi treinado na arte da conversação
enquanto “colisões de mentes”, na qual ninguém se destacava tanto quanto a própria
Wollstonecraft35; e John Thelwall, a raposa jacobina – para fazer valer a expressão do
32 “General Introduction” de Tom Paulin a The Selected Writings of William Hazlitt, v. 1. p. xiii. 33 Nas palavras de David Bromwich, “para Hazlitt, a perda da fé em Deus decerto coincidiu com o despertar de uma maior receptividade às artes”, Hazlitt: The Mind of a Critic, p. 6. 34 Stephen Burley, “’A Slaughter-House of Christianity’: A Short History of New College, Hackney” (London: The Hazlitt Review 5, 2012), pp. 55-9: 57. 35 Em “My First Acquaintance with Poets”, Hazlitt se compraz ao ver que Coleridge também admirava “os poderes de conversação da sra. Wollstonecraft”; entretanto, ficou desapontado quanto à opinião baixa que o poeta tinha de Godwin. Segundo Hazlitt, essa opinião diz muito sobre uma mente repleta
36
historiador E. P. Thompson36 . Sobre Thelwall, escreveu Hazlitt em The Plain
Speaker: “Foi o mais inflamado orador que já ouvi (...), era como um vulcão
vomitando lava (...). O relâmpago da indignação nacional brilhava em seus olhos”37.
Ao rejeitar alguns dogmas centrais da igreja oficial – a trindade, o pecado
original e o inferno –, os unitaristas, que neste e noutros particulares guardam
profundas semelhanças com os grupos radicais de que nos fala Christopher Hill,
enfatizavam a dimensão humana de Cristo. Na lição introdutória ao curso que
ministrou sobre a poesia dramática na época isabelina, Hazlitt traçou o perfil de um
Cristo defensor das causas sociais, “deixando de lado”, adverte o autor, “qualquer
questão relativa à fé religiosa”38. As palavras finais desse perfil lemos a seguir:
O evangelho chegou primeiro aos pobres, porque consultou suas carências e
interesses, em vez de consultar o orgulho próprio e a arrogância. Foi o primeiro a
anunciar a igualdade dos homens em uma comunidade de responsabilidades e de
benefícios. Denunciou as iniquidades dos líderes sacerdotais e dos fariseus e
declarou-se contrário aos principados e à autoridade, porque se simpatizou não com o
opressor, mas como o oprimido. Foi o primeiro a abolir a escravidão, porque não
aceitou o poder da vontade de infringir injúrias, como se alguém estivesse investido
desse direito. Ao mesmo tempo, desarmou a mente da grosseria dos sentidos e tomou
emprestado uma partícula da chama divina, para que iluminasse e purificasse a
lâmpada do amor!39
A conclusão desse excerto sobre a “chama divina”, bem como o olhar
fulminante do pregador Thelwall no trecho citado anteriormente, ou mesmo a
presença geral do arquétipo dos corpos luminosos na cultura dos dissidentes, criariam
inúmeras dificuldades a uma leitura, digo, apressada, que se propusesse a reduzir a
de “capricho ou preconceito; real ou simulado”, (CWH, 17, p. 112). Para uma discussão sobre o modelo de conversação em Wollstonecraft e Godwin, que estimulava as trocas intelectuais sem, contudo, prejudicar a polidez, ver o extenso estudo de Jon Mee, Conversable Worlds: Literature, Contention, and Community 1762 to 1830 (Oxford: Oxford University Press, 2011); em particular o capítulo 3, “Critical Conversation in the 1790’s: Godwin, Hays, and Wollstonecraft”, pp. 137-67. 36 Ver o ensaio de Thompson sobre Thelwall “Caçando a raposa jacobina”, em Os Românticos, pp. 215-291. 37 CWH, “On the Difference between Writing and Speaking”, 12, p. 264. 38 CWH, “Lectures on the Dramatic Literature of the Age of Elizabeth: general view of the subject”, 6, p. 183. 39 Idem, p. 185 (grifo nosso).
37
religiosidade puritana a uma prática orientada exclusivamente à vida racional e
intramundana. A luz interior, elemento-chave que caracteriza a religiosidade
protestante de modo geral, não conduz, pelo menos não no caso dos grupos radicais
que pulularam na Inglaterra em tempos de revolução, ao “afastamento interno perante
o mundo”, à desilusão individualista ou à ruptura do indivíduo com “os laços que o
prendiam à comunidade”, como quis Weber40. Antes, os filhos da luz, como eram
conhecidos, idealizaram um mundo de justiça social, o qual só poderia ser levado a
cabo por um forte “espírito coletivista” (expressão de Christopher Hill)41. Um
dissidente, diz Hazlitt noutro ensaio, no qual ele reformula o que disse anteriormente
sobre o espírito do cristianismo, é alguém capaz de olhar para fora de si mesmo e se
simpatizar “não com os opressores, mas com os oprimidos!”42 Em um ensaio de The
Round Table, “On the tendency of sects”, Hazlitt escreveu: “os membros de uma seita
(...) são os partidários mais cautelosos e os amigos mais leais. Desconheço decerto
outro grupo de pessoas para o qual a ideia abstrata de apego a uma causa ou a alguém
faça maior sentido”43. Ou ainda, conforme observou Duncan Wu, se havia algum
traço comum aos radicais, este era a “aspiração por um mundo mais justo”44. Nesse
contexto, a luz dos corpos celestiais é a consubstanciação de uma ideia utópica de
transformação social e política, a qual é, por um lado, distante e abstrata – uma ideia
de um porvir – e, por outro, concreta, firmemente aderida à sua matéria mundana,
porque é constante a presença de sua influência sobre a raça humana; daí o espesso
facho de luminosidade que atravessa as vidraças da capela e envolve o canto esquerdo
do rosto do Rev. William Hazlitt, no retrato referido acima; daí, também, a estrela da
tarde que se põe sobre a choupana de um homem pobre como imagem arquetípica da
promessa por um mundo melhor.
40 Weber, A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, Parte II. 1. “Os fundamentos religiosos da ascese intramundana” (São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 87-139). O desconhecimento do sociólogo alemão da cultura dos grupos radicais ingleses é o que explica o seu alumbramento diante de uma figura como John Milton, sobre quem disse ter sido um “cavalo solitário” (p. 204) e, portanto, fora de consideração em seus estudos. O que o livro de Hill mostra é o quanto John Milton estava longe de ter sido uma figura isolada, no que tange a sua fé e conduta moral. Ver, sobretudo, “Milton e Bunyan: diálogo com os radicais”, (pp. 376-395). 41 Segundo Christopher Hill, certas práticas religiosas comuns aos grupos protestantes – por exemplo, a conversão – se opõem diretamente ao individualismo: “Essa força que os conversos sentiam também se devia ao fato de se perceberem em união íntima com uma comunidade de pessoas que compartilhavam as mesmas ideais; muitas vezes já se assinalou o espírito ‘coletivista’ que caracterizava o calvinismo em seus primórdios. O mesmo senso de uma comunhão de interesses e crenças inspirou as primeiras congregações separatistas”, O Mundo de Ponta-Cabeça, p. 159. 42 CWH, “On Court-Influence”, 7, p. 242. 43CWH, “On the Tendecy of Sects”, 4, p. 51. 44 Duncan Wu, William Hazlitt, the first modern man, p. 67.
38
Mas há outro detalhe importante ao qual devemos atentar nesse retrato. O
livro que o reverendo trazia nas mãos, um volume das Características de Shaftesbury:
“meu pai não teria posado de bom grado fosse qualquer outro livro”45. A referência a
Anthony Ashley Cooper, terceiro conde de Shaftesbury, já aponta para os caminhos
de uma religiosidade secular, de forte inspiração no mundo das artes. Shaftesbury,
além de paladino dos liberais radicais, por sua defesa incondicional da participação do
povo no poder público, legou à tradição conceitos e temas-chave que definiriam a
estética como área autônoma do pensamento. De fato, é volumosa a presença de
Shaftesbury nos escritos de Hazlitt, assunto por demais amplo e complexo para se
desenvolver aqui46.
Para elucidar o que dissemos até aqui, passemos agora ao eixo de nossa
análise – a narrativa de Hazlitt de seu primeiro encontro com Coleridge, sua
peregrinação de Wem a Shrewsbury – e, em particular, a uma leitura cerrada de
algumas passagens emblemáticas do ensaio “My First Acquaintance with Poets”,
sobre o momento de conversão a um mundo das artes; evento esse prenhe de
esperanças por um mundo de justiça social. O rico recurso linguístico dessas
passagens, que evocam alusões vocais e musicais sobre as quais nos referimos acima,
merece uma atenção especial.
Segundo um costume dos unitaristas, as visitas à congregação de Shrewsbury
eram alternadas entre o Rev. William Hazlitt e outros dois pastores: John Rowe e um
certo Jenkins de Whitchurch, de modo a preservar uma linha de comunicação entre os
poucos não conformistas dispersos pelo interior do país, os quais, no dizer de Hazlitt,
guardavam a “chama da liberdade civil e religiosa”47, à espera da insurreição. Mas em
janeiro de 1798, John Rowe deixou o ministério e, como substituto, convidou o jovem
poeta Samuel Taylor Coleridge. Aqueles anos em que o poeta “banhava suas asas em
controvérsias unitaristas”48 lhe foram particularmente profícuos. Boa parte de Lyrical
45 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 12. 46 Em A Linguagem das Formas: natureza e arte em Shaftesbury, Pedro Paulo Garrido Pimenta sugere a estreita afinidade entre ambos os autores quando abre o capítulo 4, “Da Cópia à Imitação”, com um trecho do ensaio Originalidade [Originality] de Hazlitt, em que o crítico retoma um ponto importante do filósofo inglês do século XVIII (São Paulo: Alameda, 2007, p. 111). Para uma discussão mais detalhada sobre a presença de Shaftesbury e da filosofia moral britânica nos escritos de Hazlitt, ver Tom Paulin “Celebrating Hutcheson”, In. The Day-Star of Liberty, pp. 64-90; e o artigo de Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Frances Hutcheson and William Hazlitt”, in. The Hazlitt Review, Volume 6, 2013, pp. 5-12. 47 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 107. 48 CWH, “Mr. Coleridge”, 11, p. 30.
39
Balads, escritas em parceria com William Wordsworth, como também os poemas A
Balada do Velho Marinheiro e Christabel, são dessa época.
Era sábado de tardezinha quando Coleridge, portando um sobretudo preto
que mal se ajustava ao seu corpo, foi recebido por Rowe. Este, quando viu os
passageiros que desciam do coche, estava seguro de que nenhum deles poderia ser o
poeta. As sombras da dúvida se dissiparam quando o homem “de rosto arredondado e
vestido de preto”49 cumprimentou-o com um sorriso no rosto e desatou uma conversa.
“Desde então, não parou de falar” e “ninguém se cansava de ouvi-lo”50. Durante as
três semanas em que o “poeta pregador” 51 esteve na cidade de Shrewsbury,
“tremularam os orgulhosos salopianos, qual águia em pombal”52. Por fim, após
receber uma oferta irrecusável, uma sinecura de cento e cinquenta libras ao ano para
se dedicar exclusivamente ao estudo de poesia e filosofia, Coleridge deixou o obscuro
vilarejo do oeste inglês e “foi habitar o Monte Parnaso”. Para o menino Hazlitt, aos
dezenove anos de idade, a pregação que ouvira de Coleridge na manhã de domingo e
as conversas com o poeta, primeiro na residência do pai, depois em caminhadas pelos
campos adjacentes, iluminaram suas esperanças e expectativas como “a luz prateada
da estrela da tarde”53.
Mas é digno de nota que a luz reluzente que emanava de Coleridge é o
primeiro elemento mencionado por Hazlitt em sua narrativa de conversão; isto é, e
segundo a religiosidade protestante, a luz divina resplandece sobre o convertido antes
mesmo que a voz ecoe no fundo de seu coração, antes, ainda, das caminhadas a
passos largos, de encontro com o advento da nova vida que tinha gritado para ele.
49 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 106-7. 50 CWH, “On the Living Poets”, 5, p. 167. 51 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 112. 52 Idem, p. 107. A passagem é uma alusão à peça de Shakespeare Coriolano, V. vi. 114-115. Para traduzi-la nos valemos da edição em português de Barbara Heliodora. A palavra inglesa salopian, a partir da qual criamos o neologismo salopiano, corresponde aos habitantes da região de Shropshire ou à escola de Shrewsbury. Na brilhante análise de Paulin desta passagem, o autor lembra os leitores que o mesmo trecho de Coriolano foi usado em outro momento por Hazlitt para se referir a Burke. Desse modo, diz Paulin, Hazlitt estabelece uma “ponte associativa” entre ambos, Burke e Coleridge, e assinala que este, como aquele, também se tornaria um vira-casaca, na expressão do autor (CWH, 19, p. 227), isto é, alguém que entrou na briga e comprou o lado errado, contra o despontar da liberdade. Ver Tom Paulin, The Day Star of Liberty: William Hazlitt’s Radical Style, “Coleridge the Aeronaut”, 199-200. 53 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, pp. 112, 115.
40
Não tinha, então, noção alguma de que um dia pudesse expressar minha admiração
pelos outros por um mosaico de imagens ou por alusões originais, antes de a luz de
seu gênio [Coleridge] reluzir em minh’alma, como raios de sol que rutilam nas poças
do caminho. Na época, era mudo, inarticulado e indefeso, como um bicho de beira de
estrada: esmagado, ensanguentado e inerte. Mas hoje (...) minhas ideias flutuam sobre
palavras aladas, estendem suas plumas e apanham a luz áurea de anos pregressos. De
fato, se minh’alma se libertou de seu antigo cativeiro: triste, obscuro, de anseios sem
fim e descontente; se meu coração, outrora encerrado na masmorra desse barro rude,
encontrou, ou pudesse encontrar, um coração com o qual se comunicasse; e se meu
entendimento também não permaneceu mudo e bruto, pois encontrou, por fim, uma
linguagem com a qual se expressar; devo isso a Coleridge54.
A comparação do autor com um ‘verme’ (que aqui traduzimos por bicho para
preservar, na expressão “bicho de beira de estrada”, a aliteração que ocorre no inglês,
“worm by the way-side”); a adjetivação tripla, em duas ocorrências no mesmo período
(“mudo, inarticulado e indefeso”; “esmagado, ensanguentado e inerte”); o
aprisionamento da alma no corpo (“barro rude de anseios sem fim”); a aquisição de
uma linguagem que lapida o entendimento e o coração; todas essas imagens e
recursos linguísticos foram lavrados a partir dos relatos de experiência de conversão,
segundo a cultura dissidente; ou ainda, em sentido mais amplo, segundo a cultura
cristã. Mas, nesse trecho, Hazlitt conduz o olhar do leitor para a comparação de sua
alma com as “poças do caminho” e para a luz que incide sobre elas, pelo recurso de
assonâncias vocálicas e de uma rima interna que não conseguimos preservar em nossa
tradução. Assim, no original: “the light of his genius shone into my soul, like the sun’s
rays glittering in the puddles of the road”. A rima que reforça o símile e o /ou/
prolongado em soul e road, em conexão com o /r/ que aparece nesta última palavra,
confere uma tonalidade elevada e grave, própria a uma experiência de conversão. Se o
tom grave das palavras soul e road, escolhidas pelo autor para se referir a si mesmo (o
convertido), destoam dos ditongos menos solenes de /ai/ em light e /ei/ em ray, para
se referir a Coleridge (o pregador) de modo a estruturar a sentença em dois conjuntos
de palavras de conteúdos semânticos distintos (um, leve e cintilante; o outro, rijo e
telúrico), o /ã/ semiaberto em sun e puddle sugere o momento da infiltração de luz
sobre a matéria inerte e barrenta.
54 Idem, p. 107 (grifo nosso).
41
Para Hazlitt, a crítica inventiva, ou seja, aquela arte de expressar a admiração
pelos outros por um “mosaico de imagens ou por alusões originais” ou, segundo
Virginia Woolf, com música e pintura em mente, depende, num primeiro momento,
daquele estado, nas palavras de John Keats, “de fermentação da alma, em que o
caráter ainda não se decidiu, os caminhos da vida são incertos”55; isto é, segundo a
nossa interpretação da arte de escrever ensaio para Hazlitt, quando o ensaio ao-rés-do-
chão ainda não adquiriu plena forma. Daqui em diante, um segundo acompanhante
guiaria os caminhos do saunterer56 que parte por estradas outrora não trilhadas: “a
voz da Fantasia”57.
3. Gotas de orvalho
Já estava tudo acertado. Coleridge partiria na manhã seguinte para o vilarejo
de Nether Stowey, Somerset – uma região que descreveu como cercada por nomes
poéticos, como Vale Rock, cujos “precipícios defronte ao mar, com suas rochas e
cavernas inferiores, onde ondas colidem”58, talvez tenham feito o cenário para o
poema Kubla Khan. Lá, ele se encontraria com o amigo e mais novo patrono, Thomas
Wedgwood. William e Dorothy Wordsworth também estavam à sua espera “e juntos
viveriam os anos mais marcantes de suas vidas artísticas”59. Muitas são as histórias
que circundam a presença dos poetas na região. A mais famosa, cujo relato
conhecemos da própria pena de Coleridge e que se difundiu entre nós depois de
Manuel Bandeira finamente reconstituí-lo em Itinerários de Pasárgada60, é sobre o
55 John Keats, The Complete Poems (Ware: Wordsworth Poetry Library, 1994), p. 60. 56 Em sentido corrente, a palavra em inglês saunterer corresponde ao andarilho ou àquele que perambula. Porém, conforme observa o escritor norte-americano, Henry David Thoreau, no ensaio “Caminhar”, de 1862, a palavra inglesa “deriva ‘das pessoas ociosas que vagavam pelo interior, na Idade Média, e pediam esmolas a pretexto de se dirigirem à la Sainte Terre’, à Terra Santa’, até as crianças começarem a exclamar: ‘Lá vai um Sainte-Terrer’, um saunterer (...). Há, no entanto, quem sustente que a palavra deriva de sans terre, sem terra ou sem lar (...). Mas eu prefiro a primeira etimologia da palavra, que é, de fato, a mais provável” (In. A Desobediência Civil, São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2012. pp. 81-82). É curioso observar a ocorrência do verbo sauntering no trecho de My First Acquaintance with Poets em que o ensaísta narra sua caminhada ao encontro de Coleridge e Wordsworth, ou ao encontro da própria poesia e das artes, quando seguia às sós para Nether-Stowey: “quando me cansava de caminhar (sauntering) pelas margens do rio turvo, voltava à estalagem e lia”. “My First Acquaintance with Poets”, CWH, 17, p. 116. 57 Idem, ibidem. 58 Idem, p. 120. 59 Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, 10. 60 Depois de recontar a narrativa de Coleridge, Bandeira narra sua própria dreamwork fabric, o soneto “O Lutador”: “Esta foi a gênese do soneto: ouvi um dia de minha prima, Maria do Carmo de Cristo Rei, monja carmelita, a narrativa de viagem que lhe fizeram umas irmãs peruanas, de volta de uma
42
poema Kubla Khan. “Tomara o poeta”, diz Bandeira, “uma dose de ópio e
adormecera sentado no momento preciso em que lia no Purchas’s Pilgrimage esta
frase: ‘Aqui o Khan Kubla mandou construir um palácio com suntuoso jardim. E
assim dez milhas de terra feraz foram cercadas de muro’”61. Depois que despertou,
Coleridge descobrira que havia composto durante um sonho uns “duzentos ou
trezentos versos”, os quais dispusera-se prontamente a transcrever. Entretanto, a
súbita interrupção de um morador para tratar de negócios fez com que retivesse
somente uma “recordação vaga e obscura do conteúdo geral da visão”62.
Na noite que antecedera à partida, Coleridge fez uma visita à família de
Hazlitt. Durante o encontro, o poeta ficou profundamente tocado pela destreza com
que o filho caçula do reverendo se expressava nas conversas. Assim, antes de partir,
deixou sobre a mesa um bilhete com seu mais novo endereço – “documento precioso”
– e exortou Hazlitt para que o visitasse na primavera próxima. No dia seguinte,
também a pedido de Coleridge, Hazlitt acompanhou o poeta nas primeiras “seis
milhas da estrada principal”. Coleridge falou durante o percurso sobre alguns dos
temas preferidos de ambos (filosofia, política e literatura), passando aleatoriamente
entre eles. Do mesmo modo, ele caminhava “indo de um lado para o outro”, “num
movimento indefinível”63. Numa carta a Wedgwood, disse Coleridge a respeito de
Hazlitt,
Sempre de sobrancelha arqueada e com olhos fitos nos pés, era estranho (...).
Mas, amiúde, quando aquecia a mente e o sulco sinovial lubrificava suas
articulações, galopava por meia hora com a mais legítima eloquência e acertava
em cheio e veloz o alvo do manancial dos pensamentos com o ruído seco da corda
de arco64.
peregrinação a Ávila, onde viram as relíquias da reformadora do Carmelo. Naturalmente falaram com unção do coração transverberado da grande santa. A palavra ‘transverberado’ impressionou-me fundamente. Passei o resto do dia pensando nela, mas sem nenhuma ideia de poema. No dia seguinte de manhã acordo com o soneto pronto na cabeça, com título e tudo. Believe it or not”. Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa (Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967), pp. 126-127. 61 Idem, p. 126. 62 Ver “Prefácio de Coleridge a ‘Kubla Khan’ ou visão num sonho. Fragmento”, em A Balada do Velho Marinheiro, pp. 221-222. 63 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, pp. 112-3. 64 Essas observações de Coleridge sobre o jovem Hazlitt são bastante conhecidas. Virginia Woolf, por exemplo, recorre a elas no ensaio “William Hazlitt” de O Leitor Comum: “Tão fino é o véu com o qual Hazlitt reveste seus ensaios, que, dentro em breve, o seu próprio semblante aparece diante de nós.
43
A observação de Coleridge sobre o som áspero da língua de Hazlitt nesse
retrato de meio-corpo se coaduna perfeitamente com o tom geral das impressões que o
crítico conservou do poeta por toda a sua vida: a imaginação de Coleridge é musical.
O retrato que Hazlitt escreveu sobre o poeta, em The Spirit of the Age, é impregnado
de imagens musicais: a “corda de sua antiga promessa à fama produz hoje um som
dissonante”; sua “erudição livresca” mistura-se com “a música do pensamento e da
humanidade”; “cordas estilhaçadas que vibram por si mesmas e produzem música
melancólica no ouvido da memória”65; entre inúmeras outras. Noutras palavras,
porque ocultas e enigmáticas, não há tangibilidade alguma em suas imagens. As ricas
descrições que o texto de Hazlitt nos legou sobre as conversas que juntos travaram ao
longo da vida deixam ao leitor de hoje um anseio desamparado por jamais ter ouvido
Coleridge se expressar a viva voce66. Em The Spirit of the Age, escreveu Hazlitt em
alusão à peça de Shakespeare, A Tempestade: a voz de Coleridge “é como o eco do
rugir coletivo ‘no escuro abismo’ do pensamento”. Outrossim, “A Balada do Velho
Marinheiro (...) dá uma ideia distante dos tons elevados e modulados da voz de
Coleridge”67. Sobre o crítico, contudo, a voz melíflua do poeta reservou-lhe a música
do pensamento, sem a qual suas palavras jamais alcançariam a luz áurea de anos
pregressos. Mais uma vez, devemos retornar às imagens crepusculares daquela manhã
de domingo, quando ouvira o pregador na congregação de Shrewsbury, pelo modo
como a sua narrativa confirma a observação de Virginia Woolf de que, para Hazlitt, a
Vemo-lo como Coleridge o viu, de ‘sobrancelha arqueada, olhos fitos nos pés, estranho’. Ele se mistura às pessoas da sala; não olha ninguém cara a cara; dá um aperto de mão como se segurasse uma barbatana de peixe; e, vez ou outra, lança um olhar maligno do canto onde se encontra” (Second Common Reader, p. 173). Para a nossa tradução, seguimos a citação na íntegra da carta segundo Duncan Wu, p. 94.
É curioso notar que no poema de 1825 O Poeta e o Prosador, do escritor russo Aleksandr Púchkin, encontramos a reincidência das mesmas imagens que o poeta, Coleridge, empregou para se referir ao prosador, Hazlitt. Cito o breve poema na íntegra: “Por que te inquietas, prosador?/ Escolhe os temas e, ao que for/ eu darei gume, alada rima,/ e farei dele flecha exímia/ que, após deixar a corda tesa/ do arco dobrado servilmente,/ voará certeira até que a presa,/ nosso inimigo, se lamente!”, A Dama de Espadas: prosa e poemas (São Paulo: Editora 34, 1999), p, 234. Vale lembrar que Púchkin tinha em sua biblioteca um exemplar de Table-Talk de Hazlitt e que, a partir de sua leitura, se propôs a criar a sua própria versão de Table-Talk. Ver Waclaw Lednicki, “Preface”, In. Bits of Table Talk on Púchkin, Mickiewicz, Goethe, Tugenev and Sienkiewicz. (Martinus Nijhoff: The Hague, 1956), pp. v-vii. 65 CWH, “Mr. Coleridge”, 11, p. 29, 31 e 34. 66 Expressão latina, frequente no texto de Hazlitt, que significa se expressar ao vivo ou em corpo presente. Ver, por exemplo, “On the Prose-Style of Poets”, CWH, XII, p. 6. 67 CWH, “Mr. Coleridge”, 11, pp. 34-5 (grifo nosso).
44
crítica como forma de arte se faz não apenas com pintura, mas também com música
em mente.
Dez milhas separam os vilarejos de Wem e Shrewsbury. Hazlitt levantou
cedinho, antes mesmo de despontarem os primeiros raios de sol, e caminhou a sós
pela estrada “úmida e lamacenta”68. Fazia muito frio e o percurso era “duro e
desagradável”69. Pouco antes de cruzar o umbral do templo, pôde ouvir o salpicar do
órgão que tocava o Salmo de número 100, dando graças aos que adentravam por suas
portas. Acomodou-se em um dos bancos ao fundo e, com coração aflito, viu
Coleridge “subir ao monte, a fim de orar”70. Em tempos de guerra e perseguição
cerrada aos grupos de resistência – dos quais, como dissemos, faziam parte,
sobretudo, membros de denominações dissidentes –, o sermão de Coleridge não podia
ser mais expedito. Era sobre “a guerra e a paz; sobre a igreja e o Estado – não sobre a
aliança entre eles, mas sua separação”71. Pode-se ter uma ideia do conteúdo da
pregação e do quanto Coleridge repudiava a campanha militar inglesa na França, a
partir da leitura do poema France: An Ode, escrito no começo daquele ano72.
Obviamente, a excursão por um assunto tão espinhoso e “a graça adicional que
concedia à causa dos unitaristas” tinham toda a fragrância da poesia: “sua voz ‘subia
aos céus como um eflúvio de ricos perfumes destilados’”73. A conclusão sobre os
efeitos nefastos da guerra foi extraída do contraste entre dois jovens camponeses: o
primeiro, “sentado sob o estrepeiro, conduzia o rebanho com sua frauta”74; o segundo,
forçado ao alistamento, caía bêbado em algum canto de bar, trazendo um tambor
debaixo do braço. As impressões gerais da pregação foram finamente narradas por
Hazlitt no excerto a seguir:
Quanto a mim, meu deleite não poderia ser maior se tivesse ouvido músicas
celestiais. A Poesia e a Filosofia se encontraram, a Verdade e o Gênio deram-se as
mãos sob o olhar e com o consentimento da Religião. Nada poderia ter superado
68 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108. 69 Idem, ibidem. 70 Idem, ibidem. Referência à passagem bíblica, João 6:3. 71 Idem, ibidem. 72 Samuel Taylor Coleridge, The Collected Works of Samuel Coleridge, Poetical Works I, (Princeton: Princeton University Press, 2001), xvi, I, p. 465. 73 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108. O trecho de Hazlitt é uma citação de A Mask Presented at Ludlow Castle, mais conhecido por Comus, poema de John Milton. 74 Idem, ibidem.
45
minhas expectativas. Voltei para casa bastante satisfeito. O sol, que ainda abria
caminho no céu pálida e lividamente, obscurecido por névoas espessas, era como um
emblema da boa causa; e havia ainda algo de jovial e um refrigério sob as gotas de
orvalho, frias, úmidas e meio-derretidas, que se dependuravam nos espinhos do
cardo, pois havia, em toda a natureza, um espírito de esperança e juventude75.
No Antigo Testamento, poucas imagens ocorrem com tanta frequência ou
são tão carregadas de riqueza e significado quanto o orvalho. Via de regra, ela está
associada à proteção e às bênçãos que o Senhor derramou sobre o povo eleito. Ao
longo dos quarenta anos de travessia pelo deserto, a sobrevivência do povo de Israel
só fora possível graças ao destilar do orvalho servido como repasto na forma de maná:
Quando se evaporou a camada de orvalho que caíra, apareceu na superfície do
deserto uma coisa miúda, granulosa, fina como a geada sobre a terra. Tendo visto
isso, os israelitas disseram entre si: ‘Que é isso?’ Pois não sabiam o que era.
Disse-lhes Moisés: ‘Isto é o pão que Deus vos deu para vosso alimento’76.
Alimento do corpo, mas também da alma. A palavra de Deus se espalha
como o orvalho. No livro de Ageu, o profeta de mesmo nome diz que o Senhor
retivera o orvalho do céu e convocara a seca porque o povo deixou o Templo em
ruínas. Mas, quando os homens recolhiam no peito as dádivas divinas, estas eram
como um refrigério; junto a elas Israel habitava em segurança. Nos versos finais do
poema de William Blake, A Estrela Vésper, a que aludimos anteriormente, diz o
poeta: “o velo do rebanho está coberto com/ Teu santo rorejar: que tua influência o/
ampare!”77. O orvalho pode ser associado ainda à promessa do redentor – por isso a
não ocorrência do arquétipo no Novo Testamento. O profeta Miquéias diz que o saldo
75 Idem, p. 108-9 (grifo do autor). 76 Êxodo, 16: 14-15. 77 William Blake, O Casamento do Céu e do Inferno, pp. 84-85. Para um extenso estudo sobre a intepretação de Blake sobre a Bíblia e o quanto a exegese do poeta se volta, em particular, para as imagens e as visões bíblicas, ao invés de suas virtudes morais, ver Christopher Rowland, Blake and the Bible (New Haven: Yale University Press, 2010).
46
do povo de Jacó às demais nações será “como um orvalho vindo de Deus (...), que não
espera no homem e não conta com o filho do homem”78.
Hazlitt, como vimos, foi desde cedo educado pelo pai para ser pastor
unitarista; e, na juventude, foi estudante de teologia em New College, Hackney.
Conhecia decerto a Bíblia a fundo. É bem provável que tivesse em mente os múltiplos
significados em torno da palavra orvalho quando a escolheu para caracterizar o
espírito de esperança e de jovialidade no excerto citado acima79. Mas, o jogo de
palavras que ocorre no original, cuja nossa tradução provisória do trecho não foi
capaz de reproduzir, aponta a ênfase que o autor confere à musicalidade da voz de
Coleridge e “torna palpável”80 o momento, que tanto nos interessa aqui, em que
acolheu a palavra no coração. Mais uma vez, recorremos ao texto original em inglês:
The sun that was still labouring pale and wan through the sky, obscured by thick
mists, seemed an emblem of the good cause; and the cold dank drop of dew that
hung half-melted on the beard of the thistle, had something genial and refreshing
in them81.
Toda a descrição sobre a chegada de Hazlitt ao templo, que antecede, no
mesmo parágrafo, o trecho citado, já é decerto profundamente carregada de
impressões musicais: o salpicar do órgão ouvido ao longe; a escolha de um trecho do
drama musicado de John Milton, Comus, para descrever a voz do pregador; o
contraste entre o menino que conduz o rebanho com a frauta e o outro que marca o
ritmo combativo com o tambor; para ficarmos apenas com alguns exemplos. O
excerto, sob esse aspecto, é uma espécie de corolário dessas alusões musicais. A
sequência de vogais nasaladas e semiabertas que perpassa todo o trecho – o /ʌ/
fechado em sun e hung; o /ɑ/ em wan; e o /a/ aberto em dank – mimetiza a paisagem
meio-anuviada descrita pelo autor e o envolve em uma atmosfera, a um só tempo,
78 Miquéias, 5:6, (grifo nosso). 79 Sobre a centralidade dos estudos bíblicos nos anos de formação de Hazlitt, ver Stephen Burley, Hazlitt the Dissenter. Nas palavras de Burley: “A Bíblia era a pedra-de-toque do seu aprendizado ministerial (...). Histórias do Velho e do Novo Testamentos eram estudadas, discutidas e decoradas até que elas se tornassem uma segunda natureza, tecida à fábrica de sua mente”, p. 42. 80 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 7. 81 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 108-9.
47
penetrante, porque a luz abre caminho por entre as frestas das nuvens, e acolhedora,
porque “emblema da boa causa”. Neste semi-invólucro, pode-se ouvir melhor o eco
do rugir coletivo do pensamento de Coleridge. “Tinha músicas nos ouvidos”, disse
Hazlitt, depois de se despedir do poeta, era “a voz da Fantasia”82. O santo rorejar,
contudo, produz música silenciosa quando cai: “aquela prece parecia flutuar em
silêncio profundo pelo universo”83. É preciso certa abertura de espírito para ouvi-la. E
eis que alto e bom som a ouvimos na aliteração consonantal: dank drop of dew. A
dental sonora /d/, repetida três vezes em sequência e no começo de palavras
monossilábicas, forma a sugestão sonora da música minimalista que desde então
passou a ecoar no coração de Hazlitt. Mas, como outras imagens crepusculares, sua
existência é efêmera. O /h/ aspirado, que imediatamente se segue em outra aliteração
consonantal, hung half, a afasta de nossos ouvidos. Por fim, o /a/ aberto em half e had
dá passagem ao dia que se inicia, marcado por um ritmo menos afeito a
contemplações e devaneios.
Antes de seguirmos adiante, é fundamental observar o quanto tudo depende
da impressão original que procuramos descrever. Seu lugar está assegurado na
memória e, a ela, o crítico retornará repetidas vezes, voluntaria ou involuntariamente.
Hazlitt não encontrou outro idioma para melhor expressar a força propulsora da
memória senão o francês:
Il y a des impressions que ni le temps ni le circonstances peuvent effacer. Dusse-je
vivre des siècles entiers, le doux temps de ma jeunesse ne peut renaître pour moi, ni
s’efface jamais dans ma mémoire84.
É possível justificar a escolha do idioma pelo posicionamento político do
autor frente ao estado de coisas que vigorava na França. Há, contudo, outras razões
para o estrangeirismo. O trecho evoca algumas passagens de dois livros de Rousseau,
Confissões e A Nova Heloísa. Em ambos, toda a narrativa é tecida com os fios das
recordações de experiências vividas, nas palavras de Rousseau, “dispostas ao acaso e
82 Idem, p. 115. 83 Idem, p. 108. 84 Idem, ibidem.
48
como se fossem apresentadas”85. Dissemos acima que o ano da visita de Coleridge a
Shrewsbury (1798) coincide com as primeiras leituras que Hazlitt fez de Rousseau. A
caminho para Nether-Stowey, uma peregrinação de quase duzentas milhas, toda ela
feita a pé e no período de uma semana e meia, o jovem trazia na bagagem, entre
outros livros, um volume de dois romances franceses muitíssimo lidos no período: A
Nova Heloísa e Paul et Virginie, romance de Bernardin de Saint-Pierre. Em
companhia dos autores franceses, Hazlitt dava os primeiros sinais das profundas
dissonâncias que marcariam a convivência entre ele e seu antigo mestre, às quais este
trabalho terá ocasião de se reportar outras vezes. A palavra de Coleridge, diz Hazlitt,
inclina-se para o “alto-alemão”86, e o poeta creditava aos franceses a corrupção da
imaginação no mundo moderno. Diferente de outros escritores ingleses do período, o
romantismo de Hazlitt é temperado pelo sensualismo da língua e literatura francesas.
Depois de um dia de caminhada e instalado na hospedagem, sacava do bolso os livros
e mandava trazer uma garrafa de Sherry87. Com esses passaria o tempo até o
anoitecer.
Na época, Hazlitt já era leitor assíduo de romances. Mas se esse “gênero de
composição literária”, como disse ele, permite-nos “ver a própria teia e textura da
sociedade, tais quais existem na realidade”88, a leitura de A Nova Heloísa tornou-lhe
compreensível algo mais invisível: a impressão primeira ou a “essência cristalina”,
como escreveu89. Isso porque, continua o autor, ao se esforçar em narrar os atos de
pura recordação, o estilo de Rousseau produziu nele a mesma sensação das gotas de
orvalho matinais, antes de serem ressequidas pelo sol. Ou ainda, noutro trecho
exemplar: “doce é o orvalho de suas memórias [de Rousseau]”90. Mais uma vez,
deparamo-nos com a transitoriedade infalível das existências crepusculares. Em
85 Jean-Jacque Rousseau, Confissões (São Paullo: Edipro, 2008) p. 540. Para o sentido político que permeia a leitura hazlittiana das Confissões de Rousseau, ver Gregory Dart “The Politics of Confession”, In. Rousseau, Robespierre, and English Romanticism (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), pp. 43-75. 86 CWH, “On the Living Poets”, 5, p. 166. 87 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 115-16. É comum encontrar nos ensaios de Hazlitt passagens nas quais o autor narra momentos de leitura regados a vinho e boa comida. Às vezes, como no trecho de “My First Acquaintance with Poets”, o autor é minucioso quanto ao tipo de comida e bebida servido durante a leitura; outras, o próprio livro serve de repasto. Em “On Reading Old Books”, diz o autor: “Quantas vezes a Nova Eloísa me serviu de repasto delicioso”. CWH, 12, p. 224. 88 CWH, “On the English Novelists”, 6, p. 106. 89 CWH, “On Novelty and Familiarity”, 12, p. 304. A expressão em inglês “glassy essence” é de Shakespeare, Measure for Measure, II. ii. 120. Hazlitt diz nesse ensaio que só pôde compreendê-la quando se dedicou à leitura de Rousseau, sobretudo, de A Nova Heloísa. 90 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 91.
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breve, o calor do sol dissolverá as gotas de orvalho, elas serão como bolhas que se
desmancham no ar91. Do mesmo modo, a memória ou a impressão original, que
correspondem metaforicamente ao crepúsculo do pensamento, flutuariam em um
mundo de existências ideais não fossem elas cristalizadas em imagens.
Ora, lembremos que, no trecho citado antes, em que Hazlitt compara a
palavra de Coleridge com as gotas de orvalho, estas apareciam sob a forma de cristal
meio-derretido que se agarravam aos espinhos do cardo. Aprendemos com Jean
Starobinski, importante estudioso de Rousseau, que o filósofo de Genebra ansiava por
uma comunicação imediata e que encontrou na “transparência do cristal”92, imagem
recorrente em diversos momentos de seu texto, o melhor meio de exprimir essa
inquietude. Transparência absoluta que, se não for obstruída, dissolvida em bolhas,
paralisa o próprio ser, torna inviável toda comunicação. É então que a linguagem dos
sentimentos profundos ou das sensações vívidas vem ao seu socorro; uma linguagem,
ainda segundo Starobinski, desprovida ao máximo das “convenções da escrita”93 e de
comunicação silenciosa94, como a música do rorejar.
Todas essas questões e imagens reaparecem no retrato que Hazlitt traçou de
Rousseau e em outros tantos momentos de sua obra, nos quais o ensaísta se demora na
companhia do filósofo genebrino. Passemos agora a um breve exame desse perfil e a
uma discussão sobre alguns temas ligados a ele: a memória, o paradoxo e a linguagem
dos sentimentos profundos.
A recepção crítica das obras de Rousseau era, na época, profundamente
marcada pela leitura de filósofos alemães. Algumas das principais teses desses
filósofos, por exemplo, aquela que identificava em Rousseau um primeiro passo na
construção de um sentido romântico de imaginação – “uma espécie de Novalis
incompleto”, nas palavras irônicas de Bento Prado Jr.95 –, foram digeridas para o
grande público pelo esforço quase isolado de uma única pessoa, Madame De Staël. É
91 Expressão recorrente em Hazlitt, como no trecho de “On Novelty and Familiarity”: “Esta é a matéria da qual é feita nossas vidas – bolhas que refletem as feições gloriosas do universo e que projetam uma sombra passageira, um brilho débil, sobre aqueles a seu redor”, CWH, XII, p. 301. 92 Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo, seguido de sete ensaios sobre Rousseau (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011), p. 345. 93 Idem, p. 202. 94 Idem, “O Silêncio”, pp. 304-12 95 Bento Prado Jr., A Retórica de Rousseau e outros ensaios (São Paulo: Cosac & Naify, 2008) p. 249.
50
com uma citação de Lettres sur les Ouvrages et le Charactère de Jean-Jacques
Rousseau, da autora, que Hazlitt abre seu perfil de Rousseau:
Madame de Staël, em Cartas sobre as Obras e o Caráter de Rousseau, defende a
opinião de que “a imaginação foi a primeira das faculdades da mente do autor; por
meio dela, ele absorveu todas as demais”. “Rousseau”, acrescenta a autora, "possuía
uma grande força de raciocínio e a exercia sobre questões abstratas, ou sobre objetos
que só possuíam realidade em seus pensamentos”. Ambas as opiniões estão
radicalmente erradas. Nem a imaginação, tampouco a razão, podem ser propriamente
consideradas faculdades originalmente preponderantes na mente de Rousseau. A
força de imaginação e de razão, que decerto possuía, era empréstimo dos excessos de
outra faculdade; assim como a fraqueza e a pobreza de suas obras têm origem na
mesma fonte; isto é, que as faculdades da imaginação e da razão eram artificiais,
secundárias, condicionadas por uma outra, e incapazes de operar pelos seus próprios
poderes, mas por outros a elas tomados de empréstimo. A única faculdade que
possuía em grau eminente, com a qual, e por si só, o elevou acima do homem comum
e deu aos seus escritos e opiniões uma influência maior do que talvez jamais fora
exercida por outro indivíduo nos tempos modernos, era uma extrema sensibilidade,
ou uma sensação aguda, e até mesmo mórbida, de tudo o que estivesse relacionado às
suas impressões sobre os objetos e os acontecimentos de sua vida96.
Ao eleger o sentimento, por oposição à imaginação, como o rasgo
predominante do retrato de Rousseau, com o qual traçou um perfil do filósofo distinto
daqueles de seus contemporâneos, Hazlitt tripudia no paradoxo: aquela espécie
aparentemente inofensiva de “experimento elétrico”, como ele definiu em “On
Paradox and Common-Place”, que “se recusa a combinar sua essência evanescente e
inflamável com qualquer partícula sólida e duradoura”97. Mas o emprego dessa figura
tem aqui um sentido para além do figurado. A leitura das Confissões de Rousseau,
não obstante a obra do autor que contém menos dos “conjuntos de paradoxos”98,
ensinou o retratista inglês que, na arte da escrita em prosa, esta figura só tem eficácia
se animada pelo ardor da paixão. A máxima aplicação e esforço não são suficientes
para que os “sentimentos ascendam ao tom das ideias” – movimento necessário, sem
96 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 88. 97 CWH, “On Paradox and Common-Place”, 8, p. 149. 98 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 90.
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o qual estas jamais seriam “gravadas no papel”, segundo a própria formulação de
Rousseau99. Uma concepção nova e viva do objeto é por si só capaz de sugerir,
natural e espontaneamente, como ligeireza de um raio, o ponto no qual os sentimentos
e os pensamentos, desentranhados das profundezas, se fixam em palavras. Rousseau
parece ter se deleitado como poucos nessa zona imprecisa de fermentação das ideias;
daí suas incansáveis andanças solitárias nas quais lhe sobrevinha, em “contínuo
êxtase” (expressão do autor), o colorido de que se serviria para escrever. Outrossim,
como poucos, Rousseau padeceu da frustração de não conseguir encontrar, depois de
horas de fadiga, uma só palavra que ecoasse em seus sentimentos.
Todo o processo de criação literária em Rousseau, diz Hazlitt, e “o poder que
exerceu sobre a opinião de toda Europa, com o qual criou inúmeras disciplinas e
subverteu sistemas estabelecidos, se deve, num primeiro momento, à tirania que as
sensações exerciam sobre ele”100. Em outras palavras, a atividade da escrita era em
parte alimentada por um anseio ardente de transpor os obstáculos à comunicação,
trazer os sentimentos para a superfície, tornar sua alma “transparente aos olhos do
leitor” 101 e, com isso, anular a própria comunicação. A formulação é decerto
paradoxal e merece um cuidado um pouco maior.
A todo momento, Rousseau lembra aos leitores que escreveu as Confissões
com o propósito de se apresentar por inteiro: “é preciso que nada de mim fique
obscuro ou escondido”102. Contudo, para o filósofo da “diáspora das humanidades
locais”103, segundo a expressão lapidar de Bento Prado Jr., o que pode ser mais
inacessível ao outro do que o sentimento? E, no entanto, diz Rousseau, “escrevi a
história de minha vida (...) a fim de que se pudesse ver um homem tal como ele é
interiormente”104. A tarefa que Rousseau tem diante de si é tanto mais árdua porque,
ao fim e ao cabo, seu objetivo é contar a história de uma alma segundo o
“encadeamento dos sentimentos”105, não dos fatos, e porque sabe que “cabe a ele
[leitor] reunir os elementos e determinar o ser que o compõe: o resultado deve ser
99 Rousseau, Confissões, pp. 323-324. 100 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 89. 101 Rousseau, 2008, p. 176 102 Idem, p. 76. 103 Prado Jr., p. 231. 104 Rousseau, p. 466. 105 Idem, p. 260.
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obra sua”106. Se para este, o leitor, o quadro é obra da imaginação e toda interpretação
aspira a alguma universalidade; para aquele, o escritor, nada se faz sem os
sentimentos mais locais e os mais pessoais: hábitos inveterados de uma mente. Em
uma passagem exemplar, Starobinski, que desconhece o seu mais ilustre precursor,
diz algo bastante próximo do que procuramos apresentar na leitura de Hazlitt sobre o
filósofo genebrino: “Rousseau toma então a pena tão-somente para remeter o leitor ao
sentimento que antecede idealmente o momento da escrita ou que se desprende do
texto escrito”107. A imaginação é aqui inoperante; ou, antes, ela tem o efeito de
“relaxar a situação e tornar a obscura fermentação do desejo mais tolerável”108. Ou
ainda, nas palavras de Hazlitt: “a paixão dá força e realidade à linguagem, faz com
que as palavras ocupem o lugar da imaginação”109. Somente a linguagem dos
sentimentos e aquela tecida em prosa vibrante, porém com cores locais, permite a
convivência dos contrários, sem os suprimir. O paradoxo é a linguagem dos
sentimentos profundos.
Ao lado de Coleridge e de Rousseau, Hazlitt também foi tocado por outra
voz em suas peregrinações juvenis, a de Burke. Contudo, neste caso, ele não a ouviu
no interior de templos ou de selvas a meia luz, mas na cidade, com o sol a pino. A voz
de Burke tem a força do raio que, ao irromper sobre a planície, desenterra o diamante
– translúcido porém sólido.
4. ‘Un Beau Jour’
“A estrada de minha vida começa com a Revolução Francesa”110, escreveu
Hazlitt. Quando a Revolução eclodiu, em 1789, o menino, que contava com onze anos
de idade, acabara de regressar da América com a família. Naqueles anos, acompanhou
de perto a perseguição de que seus pais e amigos foram vítimas. Em um ambiente
como esse, escreveu Duncan Wu, “seria impossível que o jovem William não se
tornasse politizado, como o foram todos de sua geração”111. Aos doze anos, quando
soube da prisão de Joseph Priestley, escreveu ao editor de Shrewsbury Chronicle uma 106 Idem, p. 176. 107 Starobinski, p. 194 (grifo do autor). 108 Idem, p. 165. 109 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 89. 110 CWH, “On the Feeling of Immortality in Youth”, 17, p. 196. 111 Wu, 2008, p. 49.
53
carta que se tornaria sua primeira publicação, onde denunciava os horrores da facção
church-and-king. Em uma passagem de assombrosa maturidade precoce, diz: “de
todas as espécies de perseguição, a calúnia é a mais intolerável”112. Por fim, como
vimos, a família de Hazlitt e a de outros membros unitaristas mais afortunados
encontraram refúgio em vilarejos remotos, como Wem, espalhados pelo interior do
país. Pouco tempo depois, o jovem foi enviado ao internato de Hackney College,
Londres, onde suas ideias, que começavam a pulular, foram devidamente cultivadas.
Um traço importante do pensamento e da cultura dos dissidentes pode ser
expresso por um único conceito, que, por insuficiência do português, preservaremos
no original: desinterestedness113. Como se sabe, o sufixo inglês ness é usado para
formar substantivos abstratos, como no português dade, ção, ura, etc., só que com
grau maior de largueza. Assim, teríamos, em português, algo como a condição
desinteressada. Porque, na época de que tratamos, Hazlitt estava às voltas com esse
conceito, e porque ele será importante para compreender tanto a sua entrada no
mundo das artes, quanto a ambiguidade de sua relação com Burke114, procuraremos
observá-lo segundo a exposição do próprio autor em seu primeiro e único livro de
filosofia.
Em linhas muito gerais, na obra Um Ensaio sobre os Princípios da Ação
Humana [An Essay on the Principles of Human Action], publicada em 1805, o autor
parte da hipótese de que toda ação voluntária visa a um evento futuro que só existe na
imaginação e enquanto ideia abstrata. Como a memória ou a consciência das
impressões de um indivíduo estão relacionadas somente à sua existência passada ou
atual, não há uma razão consistente, argumenta o autor, para pautar a ação humana no
interesse próprio (self-interest). Somente a imaginação antecipa o porvir e por meio
dela, diz Hazlitt “sou transportado para fora de mim mesmo (myself) e entro nos
sentimentos do outro”115. O princípio aqui em jogo é obviamente o da simpatia, termo
caro à melhor tradição da filosofia moral britânica, de nomes que eram frequentes em
112 William Hazlitt, The Letters of William Hazlitt (New York, New York University Press, 1978), p. 58. 113 Sobre o tema, ver Burley, “A ‘New System of Metaphysics’”, In. Hazlitt the Dissenter, pp. 91-123. 114 Sobre o tema, ver John Whale, “Hazlitt on Burke: The Ambivalent Position of a Radical Essayist”, In. Studies in Romanticism, volume 25, 1986 pp. 465-481. 115 CWH, “Essay on the Principles of Human Action”, 1, p. 1.
54
seus lábios no período, como Shaftesbury, Hutcheson e Smith116. O autor também
define a simpatia como um “estado de projeção”117. O homem só age quando se
projeta em uma ação futura ou no outro, ou seja, quando se desfaz de sua existência
imediata e individual. O argumento é naturalmente estendido para o problema da
construção das identidades pessoais. Ao se deparar com a multiplicidade de coisas
dessemelhantes que compõe um único indivíduo – “não sou um, mas vários”118 –,
Hazlitt argumenta que toda identidade pessoal depende de algo exterior a si, ou seja, o
outro. Em suas palavras: “a identidade de alguém se assenta sobre o que ela é em si
mesma e sobre o que ela é para os outros”119. À diferença da hipótese egoísta, que
Hazlitt reporta a autores como Hobbes, Mandeville e Helvétius, aos quais dedicou
algumas páginas para rebater suas teorias120, o conceito de desinterestedness permitiu
ao autor explicar, como observou David Bromwich, “um interesse por algo em
relação ao qual não sentimos”121.
Certamente, poderíamos dedicar páginas e mais páginas a um exame detido
de cada uma das questões levantadas por essa obra; mas não nos cabe aqui uma
exposição sistemática de suas ideias ou argumentos. Por ora, fiquemos com as linhas
gerais da exposição acima e com a sugestão de Bromwich: a mente desinteressada é
capaz de se pôr no lugar do outro, mesmo sem compartilhar de suas opiniões e
sentimentos.
Porém, muito em breve, Hazlitt se depararia com o seguinte problema, que
coincide com uma das linhas mestras de sua crítica e poética: como dar forma à
intangibilidade dos pensamentos e sentimentos que se encontram fora de nós? Ou
ainda, para retomar a fórmula acima, como construir um mosaico para expressar sua
admiração pelos outros? Para tanto, fazia-se necessário o rompimento, ainda que
parcial, com a tradição que herdou de seu pai e com o passado filosófico e religioso.
A recusa pelo “estilo-esquelético de demonstração matemática”122, como definiu seu
116 Para uma ampla discussão sobre as conexões entre o livro de Hazlitt Essay on the Principle of Human Action e a filosofia moral britânica do século XVIII, ver Burley, Hazlitt the Dissenter, chapter 3 “A ‘new system of metaphysics’”, pp. 91-123. 117 CWH, “Essay on the Principles of Human Action”, 1, p. 28. 118 Idem, p. 35. 119 Idem, p. 38 (grifo nosso). 120 O equívoco de Otto Maria Carpeaux não poderia ser maior quando diz, no volume “Romantismo”, de História da Literatura Ocidental, que Hazlitt foi discípulo de Helvétius e defensor do individualismo, pp. 2012-2013. 121 David Bromwich, Hazlitt: the mind of a critic, p. 47. 122 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 114.
55
empreendimento em filosofia e como decerto compreendia o exercício filosófico de
modo geral, junto à censura que fez à dureza e à severidade comuns a todas as seitas
ou ao devoto obstinado de uma causa, da qual os grupos dissidentes não estavam
isentos123, abriram caminho para que o crítico se apropriasse de outro modelo, cujo
perfil divergia igualmente do filósofo e do partidário; isto é, o artista e, sobretudo, o
pintor.
Pincel, palheta, óleo e tintas já são instrumentos por demais plásticos para
exigir daqueles que os manuseiam uma flexibilidade de pensamento e uma imersão no
mundo sensorial. O pintor é levado por sua profissão a sair de si e a se imiscuir nas
coisas; sobre a tela, nos revela uma miríade de formas, mesmo daquelas mais
evanescentes. Podemos perceber nas paisagens de Rembrandt, diz o crítico, “a
sensação telúrica do ar”124; decerto, “todas as coisas em seus quadros têm uma
qualidade tangível”125. Neste sentido, o pintor de gusto126 é um crítico, um “pintor é
um verdadeiro scholar”. “Suas pinceladas comunicam (tell)” e ele persegue (trace)127
a natureza com um “espírito desinteressado de investigação”128. Hazlitt encontrou na
pintura uma espécie de atividade criativa que doravante caracterizará seu trabalho
como escritor a meio caminho da execução puramente mecânica e da investigação
intelectiva, a um só tempo corpo e mente: “as mãos e os olhos do pintor (ou do crítico
e ensaísta) estão igualmente empenhados”129.
Observemos agora mais de perto a passagem de “On the Pleasure of
Painting” em que o ensaísta narra o momento de sua chegada ao Louvre; um dos
locais, como diz, para onde “o jovem artista faz sua peregrinação”130.
No primeiro dia em que cheguei, fiquei retido por um tempo na grande sala, onde
havia uma exposição de pintura francesa, e pensei comigo que jamais chegaria a ver
os antigos mestres. Por sorte, consegui dar uma olhadela por entre as frestas de uma
porta (obstáculo vil!) e lá estavam eles: das paisagens nobres e de aparência
123 Ver o ensaio citado antes “On theTendency of Sects”. 124 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 8. 125 CWH, “On Gusto”, 4, p. 78. 126 Termo caro ao autor. Ver, sobretudo, o ensaio “On Gusto”, CWH, 4, pp. 77-80. 127 O termo em inglês trace também pode ser traduzido para o português por traçar ou dar pinceladas. 128 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 10, 11. 129 Idem, p. 5. 130 Idem, p. 14.
56
melodiosa de Poussin, ao local onde Rubens dependurava seus estandartes vistosos;
mais a baixo, a vista bruxuleante dos ricos tesouros de Ticiano e da escola italiana;
era como olhar para o paraíso do purgatório. Por fim, depois de muito empurra-
empurra, abriram passagem e não deixei de usufruir um único instante de meu mais
novo privilégio. Para mim, aquele foi un beau jour!131.
Dá para se ter uma ideia melhor de como eram as galerias do Louvre naquele
tempo, inauguradas em 1800, através das descrições de Duncan Wu, em sua recente
biografia de Hazlitt, onde nos fala da profusão de obras valiosíssimas que o museu já
reunia, o modo como elas estavam dispostas, o número de visitantes e os diferentes
motivos que movimentavam um mar de gente a caminhar por suas salas132. Um
contraste marcante com “o turista atarantado”133, frequentador de museus dos dias de
hoje, se nota pelo fato de que muitos ali presentes, a exemplo de nosso autor, traziam
palhetas, pincéis e telas em branco debaixo dos braços. Estavam ali conscientes de seu
propósito; o de completar uma etapa fundamental de sua formação, a cópia de obras-
primas134. O breve relato acima, contudo, bem como as demais passagens do autor
sobre o mesmo episódio, já são ricos o suficiente em detalhes sobre as visitas ao
Louvre daqueles dias e sobre o impacto que tivera no artista quando jovem.
Analisemos essa e outras passagens mais detidamente.
A retenção de Hazlitt na grande sala, as portas semiabertas entre uma galeria
e outra e o empurra-empurra confirmam as observações de Duncan Wu: já havia no
Louvre daqueles tempos um “número inumerável”135 de pessoas, como se expressou
Hazlitt nos versos de Milton. O trecho também parece sugerir que o avolumar de
gente no salão de entrada era deliberado e tinha um propósito educativo ou político.
Os visitantes eram ali detidos para que primeiro travassem contato com as obras de
pintores da recém-aberta Academia Francesa de Belas Artes, encabeçada por
ninguém mesmo do que Jaques-Louis David. Hazlitt tinha pouco interesse por ela
131 Idem, p. 15. 132 Wu, The First Modern Man, pp. 79-81. 133 Ver Pedro Paulo Garrido Pimenta, “William Hazlitt e a Revolução Francesa” (mimeo). 134 Enquanto esteve em Paris, Hazlitt trocou cartas com o pai, nas quais ele enumera e descreve os quadros que copiou no Louvre. Ver William Hazlitt, The Letters of William Hazlitt. New York, New York University Press, 1978, pp. 74-85. 135 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 16. No original “number numberless”. A expressão é de Milton, Paradise Regained, iii, l. 310.
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(“sou adepto convicto da antiga escola de pintura”136) e não se conteve a espiar o que
tinha por entre as frestas. O prazer da visão de seus antigos mestres, mesmo que
obstruída e a certa distância, era infinitamente superior; uma visão do paraíso no
purgatório. Durante uma das visitas ao Louvre, o pintor Jean François Léonor
Merimée, cicerone do jovem naqueles dias, perguntou-lhe o que achava da atual
pintura francesa de paisagem; a resposta de Hazlitt foi imediata: ‘são claras demais!’.
‘Mais, c’est impossible!’, respondeu Merimée137. Então, se explicou:
Por todo o quadro, as partes dos muitos objetos que o compõem são quase
idênticas e sem distinção; as folhas das árvores sombreadas são tão nítidas
quanto as folhas iluminadas, os galhos das árvores ao longe têm os mesmos
contornos claros dos galhos próximos. A perspectiva é resultado unicamente de
uma maior diminuição dos objetos distantes e não da interferência da
atmosfera.138
Merimée parou, olhou desconfiado e se disse não convencido pelo argumento. “Os
franceses”, escreveu Hazlitt, “não suportam, por um instante sequer, a ideia de que
algo escape a compreensão de seu entendimento”139.
Na pintura neoclássica, como nos lembra Rodrigo Naves, no ensaio Debret,
o neoclassicismo e a escravidão, todos os contornos são bem demarcados e definidos;
os gestos e as linhas são plenamente configurados; os laços de amizade e família são
sacrificados a favor dos desígnios éticos e cada uma das figuras que compõe o quadro
é convocada à participação enérgica na vida pública; os atos exemplares e virtuosos
do passado greco-romano são repostos historicamente e ganham dimensão ética.
Ainda segundo Naves, todos esses elementos formais capturam o ritmo de uma
França no alto curso revolucionário, no qual “as várias dimensões do espírito – ética,
136 Idem, p. 14. 137 Para a reconstrução do diálogo entre Hazlitt e Merimée, ver Wu, The First Modern Man, pp. 81-2. 138 CWH, “Madame Pasta and Mademoiselle Mars”, 12, p. 332-3. 139 Idem, ibidem.
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estética e epistemologia”140 – fluíam em direção a uma sociedade marcada por
estruturas e instituições complexas e plenamente definidas.
Ora, insistimos ao longo de nossa leitura na plena adesão de Hazlitt aos
ideais da Revolução Francesa, que posteriormente ganharão contorno no retrato
heroico e quase épico que traçou de Napoleão (uma biografia em quatro volumes, Life
of Napolean). Porém, a crítica ao excesso de nitidez na pintura neoclássica e a
observação, na conclusão do episódio acima, sobre os contínuos esforços dos
franceses de seu tempo para afugentar do pensamento o que quer que o obscureça ou
o mistifique sugerem um tipo específico de engajamento político, cujo sustentáculo,
nas palavras de Thompson sobre Hazlitt, está na “aspiração por um tipo de fantasia
fortalecida pelo rancor”141. O engajamento político do autor é como a primeira visão
bruxuleante dos ricos tesouros do passado. Mais uma vez insistimos no conteúdo
transgressor das imagens crepusculares, porque elas sugerem que a construção de
uma sociedade mais justa não se faz apenas por ações e gestos plenamente
conscientes ou por instituições plenamente definidas, mas por sonhos, incertezas e
nostalgia. Limá-los corresponderia a uma simples inversão de papéis, fazer de
senhores, servos; de servos, senhores; a perpétua manutenção do estado de coisas.
A crítica a uma sociedade que se pretende assentada sobre valores puramente
racionais, livre de preconceitos, superstições e sentimentos ingovernáveis 142 ,
aproxima Hazlitt, sorrateiramente, de seu maior rival, Edmund Burke. A conclusão da
passagem acima, sobre as primeiras caminhadas de Hazlitt pelo Louvre, segundo as
preciosas observações de Tom Paulin143, coloca Burke na berlinda. A frase em
francês, un beau jour, que aparece nesse e noutros ensaios de Hazlitt, é uma alusão às
Reflexões sobre a Revolução em França. Em um dos muitos ataques virulentos à
“invasão” de Versalhes pelos revolucionários, diz Burke:
140 Rodrigo Naves, A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira (São Paulo: Companhia das Letras, 2011), p. 132. 141 E. P. Thompson, Os Românticos, 2002, p. 96. 142 Ver meu texto “Anarquia e Conformação das Coisas: algumas observações sobre revolução, história e linguagem em Edmund Burke”, doispontos, Ilustração e História. Vol.8, n 1 (Curitiba e São Carlos: 2011), pp. 11-22. 143 Ver Tom Paulin’s “Introduction” à antologia, William Hazlitt, The Fight and Other Writings (London: Penguin Classics, 2000), p. vii-xix. xvii.
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Pobre rei! Pobre assembleia! Como esta assembleia é silenciosamente escandalizada
por aqueles membros que tiveram a pachorra de chamar o dia em que um borrão
parece ter encoberto o sol dos céus de un beau jour!144.
A passagem no texto de Hazlitt que imediatamente antecede a expressão em
francês reforça a alusão a Burke: “não deixei de usufruir um único instante de meu
mais novo privilégio”145. Mas, a alusão de Hazlitt, porque original (quaint), vira
Burke pelo avesso. Que privilégio alguém desfruta quando o compartilha com um
número inumerável de pessoas comuns?
Contudo, Burke merece um pouco mais de nossa atenção. Se Hazlitt se opõe
e rebate os principais argumentos de Reflexões sobre a Revolução em França, o
jovem autor, por sugestão de Coleridge (na noite em que conversaram pela primeira
vez, em companhia do reverendo), descobriu nessa e em outras obras do político a
peça que lhe faltava para seguir em frente, a saber: uma imaginação profundamente
consciente das tarefas árduas e mesmo áridas do ato de criação. De fato, argumentos e
proposições abstratas não interessam aqui. À diferença dos demais oradores, diz
Coleridge, Burke “não argumenta com metáforas, mas pensa a partir delas”146.
Passemos, por fim, a um breve exame do retrato de Hazlitt sobre Burke a partir do
contraste acentuado de seu semblante com o de Rousseau.
Se a sensibilidade extrema de tudo o que estivesse relacionado às impressões
do autor é o traço que melhor define a figura de Rousseau, “o poder que governou a
mente de Burke”, diz Hazlitt, “foi sua imaginação”147; se Rousseau apoderou-se de
uma única visão do objeto e a examinou em todas as suas diferentes ramificações,
Burke “foi completamente arrebatado pelo seu objeto”148, a Revolução Francesa.
Quando as Reflexões sobre a Revolução em França vieram a lume, em novembro de
1790, o retrato heroico de Burke, porta-voz da ala radical dos liberais, há muito
perdera em brilho e vigor. Durante os anos de 1780, obcecado pela causa indiana,
144 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France (Oxford: Oxford World’s Classics, 1999), p. 69. 145 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 15. 146 CWH, “Memorabilia of Mr. Coleridge”, 20, p. 216. 147 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 303. 148 Idem, p. 309.
60
Burke se tornou uma figura isolada no Parlamento149. Neste sentido, a Revolução
Francesa caiu-lhe como uma luva, não só porque com ela sua carreira política
alcançou um patamar prestigioso de recompensas régias, como quis Karl Marx150,
mas por ter-lhe permitido, no dizer de Hazlitt, “despejar (livremente) suas ideias sobre
o papel com a mais legítima eloquência”151. O resultado foi um livro que não tem
similar em nenhuma outra língua. Escrita sob a forma de uma única e longa carta
endereçada ao jovem francês Charles-Jean-François Depont, em tudo as Reflexões
destoam dos escritos anteriores de Burke e daquilo que se pode esperar de um
panfleto ou de um manifesto político. Sua estrutura é confusa, apresentada “sem
qualquer tipo de divisão ou organização em capítulos, partes ou itens”152; sua
linguagem, repleta de enlevos dramáticos, “períodos magistrais e brilhantes
metáforas”153; e as tendências mais progressistas da política de seu autor sucumbem
ao reacionarismo irrefletido e insolente. “Sr. Burke”, diz Hazlitt, “opositor da guerra
contra as colônias norte-americanas e sr. Burke, opositor da Revolução Francesa, não
são a mesma pessoa – não só não são a mesma pessoa, mas inimigos mortais”154.
Hazlitt sentiu-se desafiado quando, de posse dos desinteressados palheta e
pincel, pôs os olhos sobre Burke; pois, ao contrário de outros modelos, não havia
cordialidade alguma no modo como aquele o desafiava. A esta altura, algumas
dezenas de modelos já haviam posado para Hazlitt e sobre a maioria dos casos, disse
o retratista: “Não foi difícil reduzi-los dentro de certos limites, fixar seus espíritos,
condensá-los em suas variedades (...). Mas quem pode atar Proteu ou confinar os
borboleteios do gênio?”155. Além disso, para alguém com o passado e as convicções
de Hazlitt, Burke o desafiava por um segundo motivo. Assim, pergunta o autor:
149 Ver meu artigo “Anarquia e Conformação das Coisas”, p. 12. 150 Em O Capital, diz Marx sobre Burke: “Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa desempenhou o papel de romântico contra a Revolução Francesa, exatamente como antes, nos primeiros momentos de agitações na América, atuara como liberal, a saldo das colônias norte-americanas, contra a oligarquia inglesa, não era senão um burguês ordinário (...). Não é de admirar que ele, fiél as leis de Deus e da natureza, tenha sempre vendido a si mesmo a quem pagasse melhor”. Contudo, Marx não deixa de reconhecer os méritos literários de Burke: “Diante da infame falta de caráter que hoje em dia impera e da crença mais devota nas ‘leis do comércio’, é um dever estigmatizar repetidamente os Burkes, que se distinguem de seus sucessores por uma única coisa: talento!”. O Capital, Livro 1, (São Paulo: Boitempo editorial, 2013), p. 830. 151 CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 228. 152 Modesto Florenzano, As Reflexões sobre a Revolução em França de Edmund Burke, uma revisão historiográfica, Tese (Doutorado) (São Paulo, 1993), p. 156. 153 CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 228. 154 CWH, “Character of Mr. Burke, 1817”, 7, p. 226. 155 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 301.
61
“como fazer justiça a um inimigo sem trair uma causa”?156. Uma possível resposta a
essas perguntas talvez esteja no conceito de desinterestedness exposto acima, que,
como bem observa Terry Eagleton, “é (para Hazlitt) uma forma de engajamento com
o outro, não de indiferença”157. Um teste para “a verdadeira mente democrática”
consiste em conhecer e mesmo admirar um adversário. “Esta foi a primeira coisa que
disse a Coleridge”158, nas palavras do autor. Agora fica claro porque o rapaz
conquistou no ato a atenção do poeta.
Outra possível resposta a essas perguntas, e que nos interessa mais
diretamente aqui, talvez esteja no tipo de imaginação criativa que o aprendiz, Hazlitt,
encontrou em Burke.
Na análise do perfil de Rousseau, definimos o sentimento como aquela
região imprecisa de fermentação das ideias que antecede a comunicação e anseia por
ultrapassá-la. A imaginação, por sua vez, ou ao menos aquela incrustada nos escritos
contrarrevolucionários de Burke, esforça-se, por gestos bruscos, a comunicar
convicções e a produzir uma verdade sólida, áspera e inquebrantável. A dureza dos
golpes, a firmeza e a irregularidade das imagens se devem à multiplicidade dos
materiais reunidos pelo escritor, extraídos “de diferentes classes de objetos”159 e ao
modo como estes “cravam mais fundo as impressões antigas e familiares”160. Para
ficarmos num único exemplo, tem-se a célebre comparação, em Carta a um Nobre
Senhor [Letter to a Noble Lord], um dos últimos escritos de Burke, da estrutura
compacta da Igreja e do Estado britânicos com os montículos e os diques da baixa e
espessa planície de Bedford, fundidos “até a ideia se imiscuir”, nas palavras de
Hazlitt, “com o objeto representado”161. Esse tipo particular de imaginação criativa,
“que saboreia da textura daquilo que descreve”162 e cujo paralelo são os ofícios e as
artes do fogo, não se afasta um centímetro do lugar-comum; ou melhor, ela
corporifica em imagens as convicções e os preconceitos compartilhados por uma
comunidade. Sobre esse tema, falaremos mais amplamente no terceiro capítulo desta
156 Idem, ibidem. 157 Terry Eagleton, “Ulter Altruisim: Francis Hutcheson and William Hazlitt”, in. The Hazlitt Review, Volume 6, 2013, p. 12. 158 CWH, “My First Acquaintance with Poets”, 17, p. 111. 159 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 312. 160 Idem, p. 303. 161 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 12. 162 Idem, ibidem.
62
tese. Por ora, o trecho abaixo é significativo para compreender os trabalhos da
imaginação burkiana:
Aquilo que permanece oculto e intricado, em razão de sua impenetrabilidade natural e
a despeito de todo esforço, inacessível às radiações, sobre o qual a imaginação não
irradia luz alguma, e incapaz de ser revestido de beleza, não pode ser objeto do
orador ou do poeta. Ao mesmo tempo, não podemos esperar que verdades abstratas
ou observações profundas devessem se apresentar sob um ponto de vista igualmente
forte e deslumbrante, como os objetos naturais ou as questões-de-fato (matters of
fact). Um lustre refletido e a elas emprestado lhes é suficiente, como o ânimo do
primeiro raiar do dia, quando o efeito de surpresa e novidade doura todos os objetos,
e a alegria de contemplar um mundo que gradualmente emerge da melancolia noturna
(...) preenche o espírito com um enlevo sóbrio (...). Burke não produziu nenhum
efeito esplêndido incendiando os vapores luminosos que flutuam nas regiões da
fantasia, como as cores belas que os químicos produzem com fósforo, mas, com a
avidez de seus golpes, ateou fogo do sílex e dissolveu as substâncias mais duras na
fornalha de sua imaginação163.
Burke confiou na imaginação para exprimir uma face da sociedade mais
profunda e mais verdadeira do que se tivesse meramente transcrito os fatos
concernentes à Revolução. Contudo, diz Hazlitt, “onde quer que esteja a verdade, é
impossível obter uma decisão satisfatória sem um exame claro e pleno do lado oposto
da questão”; o que, por sua vez, não invalida a verdade ou a importância dos
raciocínios e das imagens de Burke, pois, diz Hazlitt, “dizem, eu sei, que a verdade é
una; mas não posso consentir com essa opinião, pois me parece que a verdade é
múltipla”164. Neste sentido, é possível interpretar a radicalidade do pensamento de
Hazlitt e a estrutura fibrosa de seu estilo como uma tentativa de emular seu maior
rival. Só se combate as corporificações engendradas por uma imaginação viva com
outra igualmente pujante. Mas a leitura que aqui procurei seguir, sobre o instante
primeiro da criação e sobre o poder de transformação atinente às imagens
crepusculares – cujas origens remontam à cultura dos dissidentes, à poesia de
Coleridge, à pintura de paisagem de Claude Lorraine ou Poussin e à prosa vibrante de
Rousseau, segundo a análise de Hazlitt –, indica um caminho diferente daquele
163 CWH, “Character of Mr. Burke, 1807”, 7, p. 303-4 e 310. 164 Idem, p. 308.
63
proposto por Burke. É isso o que parece sugerir o excerto citado antes sobre o lustre
refletido e os vapores luminosos que irrompem sobre a escuridão e preenchem o
espírito com um novo alento. Antes de Hazlitt ouvir o sermão de Coleridge em
Shrewsbury, Rousseau, com a força de seu estilo, “trouxe para o peito de cada um o
sentimento irreconciliável de inimizade para com as distinções sociais e o
privilégio”165. Ou antes ainda, os cristãos radicais, a partir de leituras do evangelho,
vislumbraram um mundo de ponta-cabeça.
A contribuição de Hazlitt para a escrita de ensaios é multifacetada e se
estende para muito além de sua época. Procuramos, neste capítulo, lançar luz sobre a
linguagem poética e inspiradora que marcam os ensaios da fase tardia do autor,
naqueles momentos em que ele olha para a sua primeira entrada no mundo das artes,
quando a própria natureza, diz ele, parecia trajada com o espírito da juventude e da
esperança. Nesses momentos reveladores, o ensaísta recria a sua herança dissidente
pelo olhar do artista. Embora, como observou agudamente David Bromwich, “para
Hazlitt, a perda na fé em Deus decerto coincidiu com o despertar de uma sensibilidade
às artes”166, também é verdade, segundo revelam os estudos mais recentes, que ele
incorporou a sua antiga educação dissidente na criação de uma forma única de
ensaios, “deixando de lado qualquer questão relativa à fé religiosa”167. Junto à fala
franca (plain speaking) – a qualidade extemporânea das conversas sobre o papel
(tema do próximo capítulo desta tese) e o vigor polêmico e combativo de sua prosa
(tema do capítulo terceiro desta tese) – as imagens arquetípicas que discutimos aqui –
a estrela da tarde, gotas de orvalho – também foram cunhadas a partir de uma
extensa tradição cristã e, em termos mais específicos, da cultura dos dissidentes. Esse
estilo de composição não criou imagens de contornos claros e bem definidos das
ideias de liberdade ou de igualdade social; mas, ao arrastar os leitores violentamente
para a agitação de uma mente em estado de ebulição, abriu uma porta para o
desconhecido, um mundo de possibilidades infinitas – pois, como observa Hazlitt, o
ensaísta “tem uma viagem pela frente; às vezes por estradas enlameadas; outras, por
caminhos difíceis e ainda não trilhados”168.
165 CWH, “On the Character of Rousseau”, 4, p. 89. 166 David Bromwich, The Mind of a Critic, p. 6. 167 CWH, “Lectures on the Dramatic Literature at the Age of Elizabeth”, 6, p. 183. 168 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 9.
64
Capítulo 2
Ao Pé da Lareira: solidão e boa companhia
Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto
bem sossegado em que eu possa ficar sozinho, quieto, pensando minhas coisas.
Rubem Braga, ‘A Casa’1.
1. O Amigo
Que é um amigo? Essa pergunta perseguem os ensaístas desde que há ensaio.
Em certo sentido, ela está na origem mesma dessa forma de composição literária. Em
“Considerações sobre Cícero”, Montaigne diz que facilmente teria adotado o gênero
epistolar tivesse ele um amigo a quem confiasse suas elucubrações2. Ele decerto o
teve, Étienne de La Boétie, mas eis que, na época, este estava morto e amigo não é um
ser que adoeça. La Boétie teve uma morte “maçante e melancólica”3. Montaigne
tomou nota das últimas entrevistas com o amigo e as narrou, em prosa direta e
descritiva, em uma carta que escreveu a seu pai. Para alguns, a carta é bem mais do
que um registro dos últimos dias de La Boétie, antes, ela é o próprio germe do ensaio,
na acepção moderna do termo. Ali encontramos não apenas as reflexões que
inspirariam “Da Amizade”, no qual Montaigne discorre sobre o conceito em sua
forma mais pura e perfeita, como se duas almas se fundissem4, mas também um dos
motes centrais dos Ensaios e quiçá do ensaio que se pratica desde então: “a
inconstância das coisas humanas”5. O ensaio, como a vida, diz Montaigne, não pode
durar6.
1 Ruben Braga, Crônicas Escolhidas (Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2011), p. 359. 2 Michel de Montaigne, Os Ensaios, Livro I (São Paulo: Martins Fontes, 2002), p. 375. 3 Montaigne, “Sobre Algumas Particularidades da Doença e da Morte de Étienne de La Boétie”, In. Serrote #16 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014), p. 277. 4 Montaigne, Os Ensaios, Livro I, p. 281. 5 A expressão “a inconstância das coisas humanas” aparece em duas ocasiões na referida carta. Serrote #16, pp. 228 e 230. 6 Montaigne, “Do Arrependimento”, In. Os Ensaios, Livro III, p. 27-8. Para uma discussão sobre essa passagem, ver o texto seminal de Erich Auerbach, “L’Humaine Condition”, In. Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, pp. 249-276.
65
Tampouco o podem as amizades, como Hazlitt demonstrou pela sua
argumentação, e sobretudo pela sua história de vida. Segundo Lopate, nenhum outro
ensaísta da amizade “antes de Hazlitt escrevera sobre seus aspectos problemáticos
com a mesma honestidade e sem sentimentalismo”7. Nenhum outro, talvez, viveu na
pele a incapacidade de combinar “a constância com o ardor da afeição”: “Briguei com
quase todos os meus velhos amigos (eles dirão que isso foi por conta do meu
temperamento difícil, mas eles também já brigaram uns com os outros)” 8 . A
franqueza dessas palavras, escritas em uma época particularmente conturbada de sua
vida afetiva, denuncia aquele traço de misantropia inveterada e constitucional de sua
mente, segundo o perfil que Thomas De Quincey escreveu de Hazlitt. A passagem
abaixo desse perfil é ilustrativa:
Um amigo dele (possivelmente Lamb), contou-me, como ilustração do
temperamento taciturno e sinistro sempre estampados sobre o semblante e gestos
de Hazlitt, que toda vez que ele involuntariamente enfiava as mãos nos bolsos de
sua casaca (por força inconsciente do hábito), ele subitamente puxava o gatilho do
medo, como se estivesse à procura de uma adaga escondida. Como “um mouro de
Malabar”, tal qual descrito em Faerie Queene, de quando em quando, Hazlitt
lançava seus olhares raivosos e madeixas escuras, como se quisesse afrontar o sol
ou como se buscasse hostilidade no próprio ar. O mesmo amigo, noutra ocasião,
descreveu uma espécie de fidelidade feudal dos deveres beligerantes de Hazlitt
que, na companhia de outros, pareciam animá-lo9.
Sua timidez natural e irritabilidade contraída eram ainda mais notáveis na
companhia das mulheres. Henry Crabb Robinson escreveu em Reminiscences: “Ele
tinha horror de conversar com mulheres, especialmente se fossem jovens, inteligentes,
belas e modestas”10. Entretanto, quer em Londres, quer em Paris (onde residiu em
7 Phillip Lopate, To Show and to Tell: The Craft of Literary Nonfiction (New York: Free Press, 2013), p. 154. 8 William Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, In. Serrote # 9 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011), p. 20. 9 Thomas De Quincey, De Quincey as Critic, pp. 370-1. Para uma discussão sobre esse perfil e, em geral, sobre o princípio que animava Hazlitt nas conversas, nossa discussão se valeu particularmente das observações de Jon Mee, “Hazlitt, Hunt, and Cockney Conversability”, In. Conversable Worlds, pp. 239-277: 239-40. 10 Citado a partir de John Gross, The New Oxford Book of Literary Anecdotes (Oxford: Oxford University Press, 2006), p. 94.
66
1826), Hazlitt frequentou alguns dos círculos sociais mais estimulastes de seu tempo11
e suas conversas, das quais a amizade se alimenta12, foram amiúde muitíssimo
estimadas. Nas palavras de Lamb: “A julgar pelas suas conversas, que desfrutei por
tanto tempo e apreciei tão intimamente, ou pelos seus livros (...), estaria traindo minha
consciência se não reconhecesse em Hazlitt, em seu estado natural e saudável, um dos
espíritos mais sábios e encantadores hoje vivos” 13 . John Hamilton Reynolds,
amicíssimo de Keats e, como ele, profundo admirador de Hazlitt, disse a seu respeito
em uma carta a Mary Leigh, 28 de abril de 1817: “ele é decerto uma excelente
companhia (...), farto daquilo que o dr. Johnson chama de ‘good talk’”14. Na ocasião,
reunidos à mesa, Reynolds e seus convivas discutiam sobre algumas passagens
favoritas “de nossos melhores bardos”. Hazlitt “passava de argumentos grandiosos e
imponentes à jovialidade e graça com engenho e humor”15. Sempre de olhos abertos
para o belo e boca pronta ao elogio, seu itinerário pela literatura era encantador. Ao
percorrê-la, fazia-o como alguém que gosta de errar pelos livros, sem ares de
superioridade, sem a obediência cega a sistemas, sem rótulos e fórmulas. Um livro
favorito era para Hazlitt como um bom amigo, com quem se discute, de quem às
vezes se zomba, mas a quem se quer bem. Em suma, Hazlitt trata um autor ou livro
com familiaridade. Quando à vontade, o que só lhe ocorria na solidão da leitura ou em
boa companhia, ele retribuía espontânea e gratuitamente (quer ao livro, quer ao
amigo) a finura e a vivacidade de seus achados com liberdade de pensamento e
honestidade intelectual. De fato, ele fez deste princípio, a atitude do ensaísta amigo,
seu credo de crítico literário, descrito por ele próprio no último dos três cursos que
ministrou sobre literatura inglesa, Lectures on the Dramatic Literature of the Age of
Elizabeth (1819):
Se não tivesse escrito essas lições para satisfazer a mim mesmo, estaria seguro de
que não satisfaria a mais ninguém. De fato, segundo eu concebo, o que empreendi
aqui e em casos anteriores foi meramente ler um conjunto de autores a um
auditório como o faria a um amigo, apontando algumas passagens favoritas e
11 Na época em que esteve em Paris, Hazlitt frequentou o círculo social de Stendhal. Ver Duncan Wu, The First Modern Man, pp. 359-40. 12 Montaigne, “Da Amizade”, In. Os Ensaios, Livro I, p. 276. 13 Charles Lamb, Selected Prose, pp. 252-3. 14 William Hazlitt, The Plain Speaker: the Key Essays (Oxford: Blackwell Publishers, 1998), pp. 198-9. 15 Idem, p. 198.
67
explicando certas objeções; ou, caso ocorressem comentários e teorias, deveria
expô-los como ilustração de meu objeto, mas com o cuidado de não entediar meus
ouvintes ou de me enredar em regras pedantes e fórmulas pragmáticas da crítica
que não fazem bem a ninguém (...). Não chego armado da cabeça aos pés de ‘dois
pontos’ ou ‘ponto e vírgula’, de glossários e índices com o intuito de ajustar a
ortografia ou de reformar a métrica, tampouco espero provar, por contradições
infinitas e impaciência ranzinza, que os comentadores antes de mim, de quem eu
não gosto, não compreenderam seus autores melhor do que eu, só porque não
estou de bom humor comigo mesmo – como se o gênio da poesia estivesse
chafurdado no lixo da imprensa16.
Se há na crítica hazlittiana algo a mais do que a simples leitura prazerosa na
companhia de um amigo, pois, como lembra John Kinnaird, esses cursos seguem um
itinerário seguro da história da literatura inglesa – de Chaucer aos seus
contemporâneos –, e o princípio de que as artes não progridem17, uma coisa é certa;
ela não distribui bons e maus pontos, não segue “‘a escala exata’ de Aristóteles,
tampouco se afasta de uma obra que serve para algo, porque ‘nenhum dos ângulos,
nos quatro cantos, era um ângulo reto’”18, como disse o autor acerca da crítica
montaigniana. Antes, o propósito geral da crítica hazlittiana é o de dar vida aos
autores que estuda, tornando-os bons amigos, sem lhes tirar o mistério e a grandeza.
Por esse motivo, os cursos de Hazlitt em Surrey Institution dividiram a
atenção do público. Na época e a poucas quadras dali, em London Philosophical
Society, Coleridge ministrava Lectures on the Pinciples of Judgment, Culture, and
European Literature e os frequentadores mais assíduos da “florescente cultura
londrina de aulas públicas”19 corriam de um curso a outro, dentro do intervalo de dez
minutos que os separavam. Entre eles, o jovem Keats: “escuto as lições de Hazlitt
regularmente”20. É bastante conhecida a importância que a crítica hazlittiana teve para
16 CWH, “On Miscellaneous Poems, F. Beaumont, P. Fletcher, Drayton, Daniel, &c. Sir P. Sidney’s Arcadia, and Other Works”, 6, p. 301 (grifo do autor). 17 John Kinnaird, William Hazlitt: Critic of Power, pp. 265-98. Sobre a ideia hazlittiana de que as artes não progridem, falaremos mais amplamente no próximo capítulo. 18 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, In. Serrote # 22 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2016) p. 21. 19 Sobre a cultura londrina de aulas públicas e sua importância para a formação literária de John Keats, ver Sarah M. Zimmerman “The Thrush in the Theater: Keats and Hazlitt at the Surrey Institution”, In. A Companion to Romantic Poetry, edited by Charles Mahoney (Oxford: Wiley-Blackwell, 2011), pp. 217-233: 217. 20 John Keats, Selected Letters (Cambridge: Harvard University Press, 1986), p. 95.
68
que Keats formulasse o conceito de “capacidade negativa”; isto é, a ideia de que o
poeta é o menos poético de todos os seres, posto que, para inflar de vida os objetos
que descreve, ele deve transcender os traços diferenciais de seu eu (self) e caráter
(character)21. Keats tomou Hazlitt como uma espécie de mentor, mas este jamais
abandonou a atitude mental do ensaísta amigo, sempre disposta à reinterpretação dos
assuntos e permanente ânimo de experimentar. “A última de suas lições [de Hazlitt]”,
escreveu Keats em uma carta a seus irmãos (George e Tom), “foi sobre Grey, Collins,
Young, etc., e ele ofereceu uma peça requintada de crítica minuciosa sobre Swift,
Voltaire e Rabelais. Fiquei, entretanto, um tanto desapontado com o seu tratamento de
Chatterton”22. Àquela altura, Keats frequentava jantares na companhia de Hazlitt,
Benjamin Haydon e Leigh Hunt (amigos de ambos), e é bem provável que ele tivesse
censurado Hazlitt viva voce, pois Hazlitt abriu a lição seguinte com essas palavras:
“Sinto muito se o que disse na conclusão da lição anterior sobre Chatterton produziu
um descontentamento entre pessoas com as quais estaria disposto a concordar em
todos os assuntos dessa natureza”23.
Ainda que o convívio entre Hazlitt e Keats fosse escasso e breve, pois Keats
trazia a “marca misteriosa dos que foram escalados para morrer cedo”24, e por mais
que na amizade não haja lugar para a conta corrente, pois nela as trocas sentimentais
são gratuitas, o poeta tomou de empréstimo do ensaísta a “profundidade de gosto”, o
“laconismo ardente”25, o estilo médio e a consciência de que a escrita de si só tem
validade se transmutada em coisa bela [a thing of beauty]26; o ensaísta, de sua parte,
alguma mocidade em face do começo da velhice e de consagrações inevitáveis:
“recentemente, ao ler Véspera de Sta. Agnes, de Keats, lamentei-me por não ser mais
21 Para o conceito de “capacidade negativa”, bem como seu desdobramento em outro conceito caro ao autor, “o poeta camaleônico”, ver as cartas de John Keats: “To George and Tom Keats 21, 27 (?) December 1817” e “To Richard Woodhouse 27 October 1818”, In. Selected Letters, pp. 59-61, 194-6. A lista de comentários sobre a influência de Hazlitt na formulação do conceito de “capacidade negativa” de Keats é vastíssima. Para duas visões antagônicas sobre o tema, ver Kenneth Muir, “Keats and Hazlitt”, In. John Keats: A Reassessment (Liverpool: Liverpool University Press, 1969), pp. 139-158, e Uttara Natarajan, “Hazlitt, Keats, and Shakespeare”, In. Hazlitt and the Reach of Sense (Oxford: Clarendon Press, 1998), pp. 107-119. 22 Keats, Selected Letters, p. 95. 23 CWH, “On Burns, and the Old English Ballads”, 5, p. 123. 24 A frase é de Carlos Drummond de Andrrade, como também é dele boa parte das reflexões sobre a amizade que apresentamos aqui. Ver “Recordação de Alberto Campos”, In. Confissões de Minas (São Paulo: Cosac & Naify, 2001), pp. 47-50: 47. 25 Keats, Selected Letters, pp. 70 e 232. 26 Famoso verso que abre o poema Endymion: “A Thing of beauty is a joy for ever”, In. The Complete Poems of John Keats, p. 61.
69
jovem”27. De sorte que um se tornou para o outro, nas palavras de David Bromwich,
“um outro eu” [another self]28.
Neste capítulo, falaremos do quanto a amizade, ou essa identificação de dois
eus, é um ingrediente fundamental para a escrita de ensaios. Isso se revela na empatia
recíproca que o ensaísta logra alcançar com o público leitor. Nas palavras certeiras de
Márcio Suzuki: “o ensaio se quer uma conversa escrita, onde o leitor e o autor estão
numa relação de ‘intimidade’”29. Ora, a intimidade, como sabemos a partir do estudo
de Marie Hamilton Law, é o traço distintivo daquele gênero ensaístico praticado
largamente na Inglaterra de Hazlitt, o familiar essay30. Pouco antes da era vitoriana,
os ingleses, quando se comparavam a outras nações, se vangloriavam de sua
hospitalidade, generosidade, de suas maneiras pouco afeitas a regras e sistemas e,
numa palavra, do quanto não suprimiam a possibilidade de um convívio mais familiar
mesmo no âmbito público; isto é, na imprensa periódica. Foi desse modo que Hunt
definiu o caráter inglês em “A Day by the Fire”, ensaio que “inaugura, no
romantismo, o familiar essay enquanto gênero”31. A partir de uma discussão da
palavra snug [aconchegado, bem instalado], que, segundo Hunt, pertence
exclusivamente ao idioma inglês, diz ele:
Será que Homero, observador dos caracteres, panegirista da liberdade, pintor de
tempestades, de paisagens e da ternura doméstica – arre, por que não, amante do
acolhimento aconchegante [snug] e de um bom jantar –, será que ele, dizia, se
queixaria de nossos humores, de nossa liberdade, de nosso clima instável, de
nossos campos verdejantes, de nossa felicidade conjugal, de nossa sociabilidade
junto à lareira e de nossa hospitalidade?32
27 CWH, “On Reading Old Books”, 12, p. 225. 28 David Bromwich, “Keats: Another Self”, In. Hazlitt: The Mind of a Critic, pp. 362-401. 29 Márcio Suzuki, A Forma e o Sentimento do Mundo: Jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII (São Paulo: Editora 34, 2014), p. 54. 30 Marie Hamilton Law, “The Turn of the Century: The New Periodicals and their Relation to the Essay”, In. The English Familiar Essay in the Early Nineteenth Century (New York: Russel & Russell, 1965), pp. 31-56. 31 Gregory Dart, Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: Cockney Adventures (Cambridge: Cambridge University Press, 2012), p. 2. 32 Leigh Hunt, “A Day by the Fire”, In. The Round Table 1817 (Oxford and New York: Woodstock Books, 1991), p. 134-5.
70
Própria a um ensaio que se realiza ao rés-do-chão, encontramos
copiosamente nos escritos de Hazlitt a expressão ao pé da lareira33. Ela servirá, neste
capítulo, de pano de fundo, de tableau, para aquela intimidade que se esforça por
encurtar as distâncias entre escritor e leitor, uma vez que o escritor se revela, ele
mesmo, leitor. Para uma maior compreensão do tema, falaremos também das matrizes
setecentistas do familiar essay, caras ao nosso autor, a saber, os ensaios em periódicos
de Richard Steele e Joseph Addison e sobre a amizade, inigualável na história da
literatura, entre o biógrafo, James Boswell, e o biografado, Samuel Johnson.
2. As horas se fundiam em minutos: uma digressão
Nunca estive numa situação melhor ou de tão bom humor quanto agora, em que
me ponho a escrever sobre este assunto. Uma perdiz está sendo assada para o meu
jantar; o fogo da lareira me aquece; a temperatura está amena para esta época do
ano; tive hoje apenas um leve acesso de indigestão (o único motivo pelo qual me
aborreço de mim mesmo), tenho três horas boas pela frente e, por isso, vou tentar
ocupá-las da melhor forma que posso; antes fazê-lo agora, de uma só vez, do que
procrastinar por uma semana ou mais34.
Essas palavras, que abrem o ensaio “On living to one’s self”, foram escritas
durante o inverno de 1821 em Winterslow, lugarejo situado nas planícies de
Salisbury. Lá havia uma choupana onde Hazlitt, dividido entre a vida na cidade e as
visitas periódicas ao campo, encontrou “um cantinho retirado totalmente seu”35. A
pequena propriedade pertencia à família da sua primeira esposa, Sarah Stoddart, com
quem foi casado de 1808 a 1822. Sarah e William se conheceram na casa dos irmãos e
33 A expressão aparece associada ora à solidão do ato da leitura, ora ao bom convívio social e também, em muitos casos, ao ensaísta e amigo Leigh Hunt, dada a notoriedade que seu ensaio, “A Day by the Fire”, adquirira na época, como se nota nesta passagem de “On Novelty and Familiarity”: “Espero, se se confirme que este será mesmo um inverno rigoroso, que ele [Hunt] novamente se agasalhe em flanela e lã de carneiro, se aconchegue junto à sua lareira e leia mais uma vez, de cabo a rabo, os romancistas ingleses”, CWH, 12, p. 300. Sobre Hunt, disse ainda Lamb, “ele é uma das mentes mais cordiais que jamais conheci, companhia incomparável junto à lareira”, Selected Prose, p. 251. 34 CWH, “On Living to one’s-self”, 8, p. 90. 35 Montaigne, Os Ensaios, Livro I, p. 359.
71
escritores Charles e Mary Lamb, que na época sediava encontros regulares, às
quartas-feiras, com amigos, escritores e artistas. Embora nunca tivesse se dedicado à
literatura, Sarah era mulher muito lida e de boa conversa. Vivia rodada de escritores,
era íntima de Lamb e Coleridge e irmã de um dos editores mais influentes da
Inglaterra do período, John Stoddart, ex-militante jacobino e um dos responsáveis por
reerguer o jornal The Times36, que goza de popularidade até os dias de hoje. No
entanto, apesar de muitas afinidades, William e Sarah raramente se entendiam em boa
parte do tempo que passavam juntos. O casamento foi um fiasco. “Nunca houve casal
mais desarmônico”, escreveu o neto, William Carew Hazlitt, “pois desde o começo
faltava-lhes a menor centelha de simpatia cordial um pelo outro”37. Quando brigavam,
e as brigas se tornaram mais frequentes depois da guinada conservadora do cunhado38,
ou quando, entre um contrato editorial e outro, a família se afundava em dívidas até o
pescoço, o que só aumentava os agravos, Hazlitt ia-se embora pra Winterslow, seu
“exílio voluntário”39, como disse certa vez. Lá tinha uma vida toda sua, au-dessus de
la mêlée40.
A vastidão dos gramados e bosques verdejantes, entremeados por caminhos
de cascalho que “coroam o semblante limpo e solitário”41 da paisagem castiçamente
inglesa em torno de Winterslow, satisfazia bem o gosto de nosso autor por devaneios
e caminhadas solitárias – sobre os quais falamos no primeiro capítulo: “Sei desfrutar a
sociedade”, diz Hazlitt, “entre quatro paredes; mas, quando saio, a natureza já me
basta como companhia. Nunca estou menos só do que quando estou só comigo”42.
36 Sobre a parceria perfeita entre John Walter II, proprietário do The Times, e John Stoddart, contratado pelo jornal em 1814, e sobre o quanto “a influência de Stoddart no The Times cresceu firmemente”, ver, The History of The Times: “The Thunderer in the Making”, 1785-1841 (London: The Office of The Times, 1935), pp. 157-64: 157. 37 Citado a partir de Stanley Jones, Hazlitt A Life: from Winterslow to Frith Street, p. 97. 38 Nas palavras de Duncan Wu: “Stoddart foi um republicano, que raspava a cabeça, vestia boina vermelha e falava abertamente de suas simpatias jacobinas; hoje [1812], a ambição o levou ao extremo oposto (...). À medida que progrediam as guerras napoleônicas, as críticas de Stoddart se tornaram cada vez mais violentas, e ele passou a ver Hazlitt como um completo tolo por sua firme adesão às aspirações revolucionárias”, The First Modern Man, p. 160. 39 CWH, “Weather Genius is Conscious of it’s Power?”, 12, p. 121. 40 A expressão em francês é de Stanley Jones (1916-1999), jornalista britânico famoso por suas invectivas antimonarquistas e de cuja obra Hazlitt: A Life from Winterslow to Frith Street extraímos boa parte das informações biográficas contidas neste parágrafo, “Withdrawal from London”, pp.1-35: 26. Reza a lenda que “se perguntassem a Jones, por exemplo, o que Hazlitt fez às seis da tarde do dia 2 de maio de 1812, ele responderia, com segurança, que o autor estava em companhia de Lamb e Wordsworth discutindo sobre as influências de Tasso na poesia de Spencer”. Ver, Philip Hobsbawm, “Obituary: Stanley Jones”, In. Idependent, Thursday, 18 March 1999.
41 CWH, “On the Past and Future”, 8, p. 24. 42 CWH, “On Going a Journey”, 8, p. 181.
72
Quantas vezes, como descreveu Virginia Woolf a seu respeito, deixava seus pés e
pensamentos caminharem ao léu pelo bosque de Tuderley, “cuja atmosfera exalava
música mística em seus ouvidos”!43 “Dá-me um céu azul sobre minha cabeça, uma
relva esverdeada sob meus pés, uma estrada sinuosa à minha frente e três horas de
caminhada antes do jantar: depois, de pensamentos!”44.
Mas em nenhum outro lugar desfrutava de maior prazer, em nenhum outro
lugar tinha uma vida toda sua como no quarto quieto e cômodo da choupana em
Witerslow; seja enquanto lia atentamente ao pé da lareira ou quando deixava o livro e
ficava a olhar pela janela45. “As horas se fundiam (melted down) em minutos com
pensamentos agradáveis”46, a existência pessoal, na universal. Aquele que tem uma
vida toda sua, diz o autor, ao contrário do que a expressão pode sugerir, é tomado
pelas coisas que o cercam e se esquece de si mesmo. Vive em um estado de
fermentação; o anonimato corre-lhe pelas veias; o ódio e o amargor ainda não o
enredaram em nervos e instintos. Segundo Hazlitt, ele se torna numa espécie de
espectador silencioso:
Ele lê as nuvens, olha para as estrelas; sente o retorno das estações, o cair das
folhas no outono, o ar perfumado da primavera; sobressalta-se com deleite com as
notas do bosque próximos a ele; senta-se junto à lareira; escuta o bramir do vento;
debruça-se sobre um livro; conversa durante as horas gélidas; ou dissolve as horas
em pensamentos agradáveis. Durante todo o tempo, ele é tomado pelas coisas que
o cercam e se esquece de si mesmo47.
43 Virginia Woolf, The Second Common Reader. “William Hazlitt”, p. 179. 44 CWH, “On Going a Journey”, 8, p. 182. 45 As expressões “look out of my window”, “look from the window”, etc., podem ser lidas em diversos momentos da obra de Hazlitt, por exemplo, em “On Living to One’s Self”: “Enquanto olho pela janela ao extenso e descampado brejo diante de mim e através da luz brumosa da lua vejo o bosque que tremula sobre o topo de Winterslow...”, CWH, 8, p. 90; em “Whether Genius is Conscious of its Powers?”: “Olho para fora da janela e vejo que a chuva acabou de cair, os campos parecem mais verdes e uma nuvem rósea paira sobre a face da colina...”, CWH, 12, p. 123.
46 CWH, “On Living to One’s Self”, 8, p. 91. 47 CWH, “On Living to One’s Self”, 8, p. 91.
73
Poucas expressões são mais recorrentes em Hazlitt, lembra Tom Paulin, do
que se derreter ou se fundir (to melt ou melt down)48. Sabemos que ele a tomou de
empréstimo de dois de seus autores favoritos, Milton e Burke, para os quais, como
para Hazlitt, ela funciona como uma espécie de emblema do trabalho criativo. Para
que o artista se liberte de si e produza uma obra íntegra e completa, seu espírito
precisa estar incandescente. É com o calor do forno ou do estômago que se abrem os
trabalhos. Este estágio do processo criativo requer paciência e lentidão. O trajeto é
reflexivo, pausado e em diálogo ininterrupto com o calor interior, “não com o calor da
hora”49. “A questão é ruminar”50, na expressão de Cynthia Ozick. Tanto no português,
derreter, como no inglês, melt, a palavra implica a fusão de substâncias sólidas, de
modo a produzir uma mistura pastosa e homogênea. Nesta e naquela língua, o
vocábulo é atravessado por expressões de caráter sensual, também no sentido de
voluptuosidade. Diz-se que ao ingerir um alimento apetitoso ele derrete na boca, melt
in the month; do apaixonado, que seu coração se derrete pela amada, melted heart. No
inglês, melt também se vincula à entrega mútua dos corpos, ao gozo ou mesmo ao
próprio sêmen. O ato de procriação se dá por derretimento, por uma dissolução de si.
O advérbio down reforça o caráter telúrico do gesto. Ele nos lembra que aquele que se
derrete não se desmancha no vazio, como bolhas, mas germina em matéria sólida.
Numa palavra, a escrita criativa – ao menos no estágio de que tratamos aqui – exige
prazer, entrega e dissolução da identidade pessoal.
“Pela leitura se aprende a escrever”51, disse o autor. O aprendizado é
prazeroso porque imitativo, segundo o princípio aristotélico52. “Quando se é jovem,
não há prazer maior do que a leitura”53. Porém, cedo Hazlitt descobriu que a escrita
requer um estímulo mais enérgico e de um “poder maior de intoxicação”54, sobre o
48 Ver Tom Paulin, The Day-Star of Liberty: William Hazlitt’s radical style, Capítulo 1: “A state of projection”, pp. 17-46. 49 Em inglês, “spur of the occasion”, expressão corrente em Hazlitt. Ver, por exemplo, “On Shakespeare and Milton”: “Elas [as palavras de Shakespeare] foram cunhadas na fornalha, no calor da hora, e possuem toda a verdade e vivacidade que provêm das impressões reais dos objetos”, CWH, 5, p. 54. 50 Cynthia Ozick, “Retrato do ensaio como corpo de mulher”, In. Serrote #9 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011), p. 12. 51 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 28. 52 Na Poética, diz Aristóteles: “Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito ao homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado”. Aristóteles, Ética a Nicômaco e Poética (São Paulo: Nova Cultural), 1987. p. 203. 53 CWH, “Whether Genius is Conscious of it’s Powers?”, 12, p. 126. 54 Idem, p. 125.
74
qual falaremos mais extensamente no terceiro capítulo desta tese. Na época, nosso
autor já era um crítico full time e as peias da vida adulta não lhe deixavam escolha:
era forçoso ocupar-se da escrita e de uma só vez. Por intermédio de Lamb, que lhe
pôs em contato com o editor James Perry, do Morning Chronicle, conseguiu seu
primeiro emprego na imprensa periódica. Começou como repórter parlamentar,
escrevendo alguns dos sketches políticos mais memoráveis de seu tempo. Em seguida,
por cinco anos, Hazlitt assinou colunas diárias e semanais de crítica teatral também
para outros três jornais: The Champion, The Examiner e The Times. O sucesso de
público conquistou a confiança de Perry, que lhe deu “carte blanche”55. Foi quando,
depois de horas mastigando os pensamentos, meditando sobre a crítica do dia
seguinte, eles se “dissolveram em palavras”56. O autor estava a um passo da “arte de
conversar sobre o papel”57 de que fez fama literária (table-talk, segundo nosso autor, é
outro nome para ensaio). De um modo todo seu, passou a escrever ensaios a um só
tempo personalíssimos e de interesse geral pela matéria humana. Ensaios que
incorporavam na escrita todas as licenças da língua falada (não apenas da boa
sociedade, mas da gente inglesa) e que “afetam profundamente os afazeres e o âmago
dos homens”58. “Aquele tempo”, lembra Hazlitt, “foi para mim uma espécie de lua de
mel da autoria”59.
3. A Lua de Mel da Autoria: leitura e público leitor
Há decerto uma pitada de ironia na expressão, “a lua de mel da autoria”, e
num duplo sentido. Primeiro, porque àquela altura o casamento com Sarah ia de mal a
pior; segundo, porque ela parece se chocar com a dissolução da instância do autor de
que falávamos acima. Hazlitt, de sua parte, parecia estar mais preocupado em
remendar outro laço matrimonial que, segundo ele, andava gasto na Inglaterra há um
55 CWH, “On Patronage and Puffing”, 8, p. 292. 56 Expressão recorrente em Hazlitt. Ver, por exemplo, CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 7. 57 John Gross, The Oxford Book of Essays (Oxford: Oxford University Press, 1992), p. xx. A expressão “conversation on paper” é empregada pelo nosso autor num dos momentos decisivos em que reflete sobre a experiência da escrita de ensaios em “On the Conversation of Authors”: “É preciso valer-se de lentes para reunir os raios dispersos e as luzes refratadas e irregulares da conversa sobre o papel”, CWH, 12, p. 40 (grifo do autor). A expressão é mais uma vez de origem montaigniana. Em “Do útil e do honesto”, diz o pensador francês: “falo com o papel como falo com o primeiro que encontro”. Os Ensaios, Livro III, p. 5. 58 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, Serrote #22, p. 19. 59 CWH, “On Patronage and Puffing”, 8, p. 292.
75
tempo: entre escritores e leitores. O título de sua primeira coletânea de ensaios, The
Round Table (escrita a quatro mãos, entre ele e o amigo Leigh Hunt), a multiplicidade
dos temas tratados, o ideal de clareza, acrescentando-se o sentido de formação
propiciado pela educação humanista, vinculam esta obra aos ensaios de periódicos de
Richard Steele e Joseph Addison: The Tatler e The Spectator. É o que afirma o
próprio Hazlitt na Advertência ao livro: “escrevi estas páginas à maneira de nossos
primeiros ensaístas de periódicos, The Spectator e The Tatler”60. Podemos ler a
confirmação dessa filiação no trecho a seguir do ensaio de número XXX, “On
Pedantry”, em que a expressão a lua de mel da autoria é novamente empregada:
A transição imediata do estilo pedante ao estilo popular em literatura foi uma
mudança que à época deve ter sido bastante agradável. Nossos ilustres
predecessores, The Tatler e The Spectator, foram muito afortunados a esse
respeito. Eles vestiram o favor do público com o ‘lustro mais novo’, antes de ele
se desbotar e se tornar uma peça comum; antes de a familiaridade engendrar o
desprezo. Era a lua de mel da autoria. Seus ensaios estão entre os primeiros
exemplos neste país de sacrifícios da erudição à elegância de entendimento
mútuo, de igualdade de bom-humor entre o escritor e o leitor. Esse novo estilo de
composição, para fazer valer a fraseologia do sr. Burke, “mitiga autores em
camaradas e força a sabedoria a se submeter ao colarinho mais brando da estima
social”. Os folhetins originais de The Tatler, impressos em meia folha de papel
almaço, eram servidos diariamente nos cafés da manhã, junto a chaleiras
prateadas e fatias magras de pão com manteiga; e seja lá o que o engenhoso sr.
Bickerstaff escrevesse à noite, reclinado em sua confortável poltrona, ele poderia
se lisonjear de na manhã seguinte contar com a aprovação elegante das mulheres,
do espirituoso (witty), do erudito e dos homens de Estado por toda parte do reino
onde progredisse consideravelmente a civilização61.
A nova dupla de ensaístas, Hazlitt e Hunt, estava comprometida e confiante
em mais uma vez acolher escritores e leitores “em torno desta Mesa Redonda”62.
Muito se escreveu nos estudos literários contemporâneos sobre a importância
que a imprensa periódica teve em criar um espaço de diálogo, ou nas palavras de 60 CWH, “Advertisement”, 4, p. v (grifo nosso). 61 CWH, “On Pedantry”, 4, p. 83 (grifo nosso). 62 CWH, “On Classical Education”, 4, p. 6.
76
Hazlitt, um entendimento mútuo e igualdade de bom humor entre o escritor e o leitor,
inexistente até então, e de seu papel-chave para a formação do público leitor63.
Façamos uma pequena excursão sobre o tema, mas com o cuidado, a exemplo de
nosso autor, de não submergir a matéria literária (o estilo popular ou familiar), o que
ocorre em alguns desses escritos, no terreno caudaloso da história cultural.
A partir de fins do século XVII, a Inglaterra passou a contar com um número
cada vez maior de jornais impressos diária ou semanalmente e de uma produção que
crescia a todo vapor. Se não foram poucos os entraves que impediam a Inglaterra de
arrogar o título de “uma nação de leitores”64, segundo a célebre frase panglossiana do
autor de Rasselas – o acesso à leitura, lembra Ian Watt, era dificultado por inúmeros
fatores socioeconômicos: a inexistência de um sistema educacional, o alto preço dos
livros, pouca privacidade e pouco tempo de lazer das classes mais baixas, etc65. –,
nenhum outro país experimentou igual expansão do público leitor no período. Em
certo sentido, nenhum outro país sequer conheceu um público leitor ou audiências de
leitores – não enquanto “simples agregado de leitores, mas como formações sociais e
textuais complexas, dotadas de tendências interpretativas e contornos ideológicos”66,
segundo a conhecida formulação de Jon Klancher. Na França do Antigo Regime, a
censura se impunha com mãos de ferro: “antes da publicação havia um habilidoso
exercício de censura, aplicado através de uma política de privilégios seletivos que
envolvia a inspeção prévia do conteúdo dos manuscritos (...). Após a publicação,
cabia à polícia exercer o controle”67 – a censura, como veremos no próximo capítulo,
também se tornou uma realidade inglesa durante as Guerras Napoleônicas, basta
lembrar que Leigh Hunt, William Cobbett, John Thelwall, entre muitos outros, foram
63 Sobre o tópico, a discussão que se segue se beneficiou, entre outras, das obras de Jon Klancher, The Making of English Reading Audiences, chapter one “Cultural Conflict, Ideology, and the Reading Habit in the 1790’s”, (Madison: The University of Wisconsin Press, 1987), pp. 18-46; e Lucy Newlyn, Reading, Writing, and Romanticism: The Anxiety of Reception, chapter 1 “The Sense of an Audience” (Oxford: Oxford University Press, 2000), pp. 3-48. 64 James Boswell, Life of Johnson, (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. 1113. 65 Ver Ian Watt, A Ascenção do Romance: Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, tradução de Hildegard Feist (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), capítulo 2 “O Público Leitor e o Surgimento do Romance”, pp. 34-54. 66 Jon Klancher, The Making of the English reading audiences, 1790-1832, p. 6. 67 Daniel Roche, “A Censura e a Indústria Editorial”, In. Revolução Impressa: A Imprensa na França 1775-1800, org. Robert Darnton e Daniel Roche (São Paulo: Edusp, 1996), pp. 21-22. Sobre o tema, ver também o célebre estudo de Robert Darnton, Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária (São Paulo: Companhia das Letras, 1998).
77
presos, processados ou perseguidos pelo que escreveram na imprensa68. Os inúmeros
e pequenos principados que compunham o território alemão impediam que um único
periódico alcançasse uma circulação mais ampla69. Tanto na França quanto na
Alemanha, grande parte do financiamento dos periódicos e das editoras ainda
provinha de nobres e aristocratas, os quais impunham um padrão de gosto e de escrita
amiúde avesso às formas populares70. Sem uma imprensa zelosa pela difusão do
conhecimento livresco, “a massa de todo um povo sucumbe à barbárie”71; e quanto a
esse argumento, Johnson é digno de nosso respeito.
No início do século XIX, a Inglaterra conheceu ainda um aumento substancial
de alfabetizados e do poder aquisitivo dos leitores72. Dois ingredientes fundamentais
foram o aperfeiçoamento das bibliotecas circulantes e a massificação da forma seriada
– jornais, ensaios, romances, contos, etc. – (as econômicas e magras “folhas de papel
almaço” que lemos no trecho de Hazlitt citado acima). Tanto um quanto o outro
ingrediente, na expressão irônica de Coleridge, são “refeições públicas da
literatura”73. Quanto às bibliotecas circulantes, se, de um lado, como nos lembra
Sandra Vasconcelos – retomando um topos fundamental da crítica coleridgiana (e até
certo ponto hazlittiana74) – elas colocaram à disposição do público não apenas
68 Sobre o assunto, ver William H. Wickwar, The Struggle for the Freedom of the Press 1819-1832 (London: George Allen & Unwin LTD, 1928); A. Aspinall, Politics and the Press, c. 1780-1850 (London: Home & Van Thal LTD, 1949); e Kevin Gilmartin, Print Politics: The Press and Radical Opposition in Early Nineteenth Century, sobretudo o capítulo “The Trials of Radicalism: Assembling the Evidence of Reform” (Cambridge: Cambridge University Press, 1996) pp. 114-157. 69 Sobre o tema, diz Habermas: “Na Alemanha dessa época, não havia nenhuma ‘cidade’ que pudesse ter substituído a representatividade pública das cortes por instituições de uma esfera pública burguesa. Elementos semelhantes encontra-se, no entanto, também aí: primeiro, nas eruditas comunidades de comensais, as antigas sociedades de conversação do século XVII. Elas são, naturalmente, menos atuantes e difundidas do que os cafés e salões”, Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003), pp. 49-50. 70 Para uma discussão histórica mais ampla sobre o tema, ver Marilyn Butler “Culture’s medium: the role of the review”. In. Stuart Curran, The Cambridge Companion to British Romanticism (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), pp. 120-147. 71 James Boswell, Life of Johnson, p. 477. 72 Nas palavras de Lucy Newlyn, “O número de alfabetizados cresceu ainda mais nas duas primeiras décadas do século XIX, quando, como resultado de mudanças tecnológicas (...), livros baratos se tornaram possíveis, permitindo que mais pessoas lessem como nunca ocorrera antes na história. A consequência do deslocamento de uma literatura escrita para uma audiência elitista a uma outra, escrita para o público em geral, promoveu uma rápida expansão da indústria da publicação”, Reading, Writing, and Romanticism, p. 7. 73 Samuel Coleridge, The Collected Works of Samuel Coleridge: Lay Sermons. (Princeton: Routledge & Kegan Paul, 1984), p. 38. 74 Richard De Ritter, retomando algumas passagens dos ensaios de Hazlitt, “On Reading Old Books” e “On Reading New Books”, mostra-nos o quanto o autor, a exemplo de Coleridge, censurava aqueles que corriam atrás das bibliotecas circulantes por nenhum outro motivo senão o de descobrir a mais recente novidade em literatura. Ver Richard De Ritter, “’In Their Newest Gloss’”: Hazlitt on Reading,
78
romances e ensaios que hoje têm importância indiscutível no cânone literário, como
um número considerável de obras “de valor duvidoso e de baixa qualidade”75; do
outro, elas possibilitaram uma maior democratização da leitura. Ou ainda, como
sugere Lamb em “Detached thoughts on books and Reading”, as bibliotecas
circulantes criaram uma espécie de receptáculo para experiência pública da leitura76:
Como eles [livros comercializados pelas bibliotecas circulantes] nos falam dos
milhares de polegares que com prazer correram por estas páginas! Como aqueles
da solitária costureira (a modista de chapéus ou a tecelã, trabalhadora dura) que,
depois de um longo dia de trabalho entre agulhas madrugada adentro, em seu
curto intervalo de hora mal dormida, embebeu suas preocupações em cálice de
Letes, decifrando os encantados conteúdos destes livros!77
Finalmente, ao lado das condições materiais, a linguagem coloquial e o
interesse que esses folhetins tinham em reconstituir situações do dia-a-dia também se
somam aos fatores decisivos de incentivo à leitura. Quanto a esse aspecto, as
semelhanças entre o ensaio e o romance se sobrepõem às diferenças. O que Hazlitt diz
sobre os ensaístas do século XVIII, que eles, “de suas muitas andanças e voltas da
vida, trazem de volta para casa pequenos espécimes curiosos de humores, opiniões e
costumes de seus contemporâneos” 78 , vale igualmente para os romancistas do
período.
Tema intimamente ligado à expansão do público leitor, ao qual alude o trecho
de Sandra Vasconcelos citado antes, é aquele que se pergunta sobre o aumento de
uma literatura de qualidade duvidosa e sobre os perigos de banalização do ato da
leitura. Segundo Raymond Williams, se equivocam os que supõem ser este um tema
novo. E o historiador da literatura o acompanha por uma longa e vagarosa
Gender, and the Problems of Print Culture”, In. The Hazlitt Review, Volume 3, (London: The Hazlitt Society, 2010), pp. 25-37. 75 Sandra Vasconcelos, Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII, (São Paulo: Boitempo editorial, 2002), p. 143. 76 Para um comentário sobre o ensaio de Lamb, ver Richard De Ritter, “’In Their Newest Gloss’”: Hazlitt on reading, gender, and the problems of print culture”, p. 32. 77 Charles Lamb, Selected Prose, p. 148. 78 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódico”, In. Revista Serrote # 22, p. 24.
79
revolução79 . Williams cita ainda uma passagem de Coleridge80 que muito nos
interessa (porque dela também se ocupou nosso autor), na qual o poeta, agora homem
de Estado, denuncia o efeito anódino da literatura barata, dieta das mentes cujo único
propósito é se livrar do vazio dentro de si. Hazlitt e Hunt não só não foram alheios a
esse sintoma (é bem provável que varassem noites discutindo a seu respeito com
Coleridge), como o propósito que tinham de restabelecer o entendimento mútuo e a
igualdade de bom-humor entre escritores e leitores era uma resposta a ele. A
alternativa da dupla de ensaístas de trazer novamente à mesa da gente inglesa o “pão
nosso de cada dia”81, difere da de Coleridge não só na forma como na ideia que um e
outro reclamavam de público leitor e de leitura. O caminho que tomaram foi decerto
oposto. Se Coleridge, como nos mostra Jon Klancher, se empenhou em formar uma
nova audiência de leitores – a que chamou de clerisy, coletivo de clerc: representante
e guia da vida intelectual82 –, Hazlitt e Hunt encontraram no ideal johnsoniano do
leitor comum, “não corrompido pelos preconceitos literários” ou por “dogmatismos
eruditos”83, um meio de recuperar aquela motivação primeva da leitura, curiosa e
simpática. Voltaremos a este ponto logo mais. Por ora, para uma maior compreensão
do comprometimento de Hazlitt com o público leitor, falemos, brevemente, sobre os
primeiros ensaístas de periódicos, The Tatler e The Spectator.
Desde que saiu do forno o primeiro número de The Spectator (dia 1 de março
de 1711) – com título em caixa alta, uma citação da Arte Poética de Horácio e a
chamada to be continued every day – nenhum outro dia o sol se levantou sobre a Grã-
Bretanha sem que um único folhetim fosse degustado junto a xícaras de chá e fatias
de pão com manteiga. Desde então, “ensaístas ingleses vêm-se sucedendo numa
79 Raymond Williams, The Long Revolution (London: Broadview press, 2001). Ver sobretudo o capítulo 2, “The Growth of the Reading Public”, pp. 177-236. 80 Sobre o argumento de Coleridge, diz Williams, “a leitura como esse tipo de droga fácil é a condição permanente de um grande volume de escritos efêmeros”, The Long Revolution (Peterborough: Broadview Press, 2001), p. 193. 81 Expressão que consagrou o ensaio em periódico. Ver, por exemplo, Alexandre Eulálio, “O Ensaio Literário no Brasil”, Revista Serrote #14, p. 8; e Maria Lúcia Pallares-Burke, The Spectator: O Teatro das Luzes, Dialogo e Imprensa no Século XVIII (São Paulo: Editora Hucitec, 1995), p. 90. 82 Ver capítulo quinto, “Romantic Theory and English Reading Audiences”, In. The Making of the English reading audiences, 1790-1832, pp. 135-171. 83 Famosa passagem de Johnson sobre Thomas Gray em Lives of Poets (Works of Samuel Johnson, volume XXIII, New Haven and London: Yale University Press, 2010, pp. 1470-1). Ver também o ensaio de Virginia Woolf “O Leitor Comum”, In. O Valor do Riso (São Paulo: Cosac & Naify, 2014), pp. 133-134. Ainda sobre o tema, em língua portuguesa, ver Lucia Miguel Pereira “Crítica e Feminismo”, In. Escritos da Maturidade: seleta de textos publicados em periódicos (1944-1959) (Rio de Janeiro: Graphia, 1994), pp. 97-101.
80
espécie de sucessão apostólica dessa forma literária de expressão”84, nas palavras de
Gilberto Freyre. Hazlitt e Hunt, além de peças-chave da renovação do artística e
intelectualmente elaborado ensaio literário, conheceram a história do gênero como
poucos, como se nota no ensaio de Hazlitt “Sobre os ensaístas de periódicos”, o que
nos deixa com a seguinte pergunta: por que, nas primeiras décadas do século XIX,
eles se empenharam na tarefa de imitar as maneiras dos primeiros ensaístas de
periódicos? Primeiramente, por nenhum outro motivo senão porque foram os
primeiros; isto é, eles queriam de algum modo reviver o efeito de novidade, “a
primeira ebulição de nossas esperanças e temores”85 que deve ter acompanhado
aquele gesto inaugural de sacrifício pelo outro, o leitor. À diferença de Montaigne e
dos ensaístas ingleses do século precedente, para os quais, lembra Auerbach, ainda
não havia um público86, The Tatler e The Spectator dispunham dos meios para
“transformar o ensaio (e o fizeram) em força civilizatória, em instrumento contra a
vulgaridade e o pedantismo”87; “surge pela primeira vez em Londres, e, salvo engano,
no mundo, o ensaio destinado à imprensa”88. Com a volta à “aurora da experiência”89
na imprensa periódica a dupla pretendia reacender “o primeiro fulgor da paixão”90,
sem a qual sacrifício algum é possível, e jorrar nova luz sobre os caminhos do
processo civilizatório. Em segundo lugar, porque os disfarces humorísticos e as
personagens ideais com as quais Steele e Addison revestiram seus nomes e animaram
o famoso clube dos espectadores (Isaac Bickerstaff, Roger de Coverley, Will
Honeycomb, Will Wimble e Andrew Freeport) permitiram-lhes maior licenciosidade
e mais plena realização de seus humores e opiniões particulares. Noutras palavras, o
ensaio, de livre, se fez libérrimo. Por fim, porque eles talharam um estilo prosaico à
medida do entendimento de seus leitores com os quais frequentemente invertiam os
papéis por meio da publicação de suas cartas. Este último motivo é sem dúvida a
principal razão do porquê nenhum outro periódico gozou de idêntico favor do público.
84 Gilberto Freyre, Alhos & Bugalhos, p. 69. 85 CWH, “On Novelty and Familiarity”, 12, p. 303. 86 Ver ensaio de Auerbach, “O escritor Montaigne”, In. Ensaios de Literatura Ocidental (São Paulo: Editora 34, 2007), pp. 145-166. Ou ainda, como diz Montaigne, “Escrevo meu livro para poucos”, “Da Vanidade”, In. Os Ensaios, Livro III, p. 296. 87 John Gross, The Oxford Book of Essays, p. xx. 88 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, Revista Serrote# 22, p, 10. 89 CWH, “On Novelty and Familiarity”, 12, p. 303. 90 Idem, p. 302.
81
Dos quinhentos e cinquenta e cinco artigos que compõem The Spectator, por
exemplo, mais da metade (por volta de trezentos) incluem cartas dos leitores. Alguns
foram inteiramente escritos por eles, cabendo ao Mr. Spectator unicamente o trabalho
editorial, ou o “papel moderador”91, na expressão de Addison. “Tanto um número em
forma de ensaio poderia ter sido extraído de uma carta de leitor, como uma carta
pessoal poderia vir das mãos do próprio Spectator”92, escreveu Maria Lúcia Garcia
Pallares-Burke, cuja obra The Spectator: o Teatro das Luzes é o mais extenso estudo
sobre o tema no Brasil. Nela, a autora explora a fundo o ideário e as estratégias por
meio das quais Addison e Steele envolveram ativamente o público leitor,
“estimulando o sentimento de coautoria”93. Por reiterados exercícios ou manifestações
de humildade, Steele e Addison se apresentavam como amigos íntimos e confidentes.
Travavam com seus leitores conversas leves e tranquilas como a própria manhã. Por
um artifício retórico que colheram dos antigos, que volta e meia eram citados,
deixavam o leitor à vontade, lembrando-o de que fazer ensaio é coisa vã94.
É verdade que parte desse clima ameno se arrefeceu com o excesso de
elegância e o temperamento sisudo de Addison, que se impôs a tarefa de mestre-
escola de reformar os costumes e educar a sociedade. A fim de levá-la a cabo, “as
indicações de personalidade e as tiradas de humor” foram sacrificadas “em habituais
dissertações”95. Não é que Steele não compartilhasse de semelhante projeto, mas os
meios de que um e outro dispunham eram de todo distintos. Como observou Lamb,
coube a Addison a generalidade fria, a Steele, o humor (humour)96. Por esse motivo,
Hazlitt, como o amigo Lamb, diz ter se demorado mais nas coisas simples deste, seu
91 Joseph Addison & Richard Steele, The Spectator, N. 197 (London: Printed by T. Bensley, 1806), p. 165. 92 Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, The Spectator: o teatro das luzes, p. 122. 93 Idem, pp. 130-1. 94 Para uma discussão sobre The Spectator como modelo de conversação, diz Jon Mee: “Ao longo do século XVIII e além dele, escritores e leitores de todos os tipos adotaram o Spectator (1711-14) de Joseph Addison e Sir Richard Steele como texto chave e paradigma de conversação (...). O que ele prometia era uma literatura comum, cujos pressupostos fossem ‘a interdependência mundana’, escrita nas entranhas da vida do dia-a-dia”, Conversable Worlds: Literature, Contention, & Community 1762 to 1830, p. 39. 95 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, Revista Serrote #22, p. 28. 96 Nas palavras de Lamb: “Por fim, Addison interviu com suas tiradas de espírito (wit), sua crítica e moral, as generalidades frias que extinguem o humor (homour)”. Ver Lamb, “Review of the First Volume of Hazlitt’s Table-Talk, 1821”, In. Selected Prose, p. 228. Ainda sobre o tema, diz Lucia Miguel Pereira: “Steele parece ter sido mais inventivo e vigoroso, Addison, mais elegante e correto; o impulso criador partiria antes do primeiro, os acabamentos seriam dados pela pena lesta do segundo”, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Revista Serrote #22, p. 11.
82
“registro dos costumes e personagens”97, do que na crítica e na moral daquele.
Também por esse motivo, o nome de Mr. Bickerstaff é citado no trecho de The Round
Table que lemos acima. Mas afinal, quem é Mr. Bickerstaff?
Esta mesma pergunta fizeram os leitores de Previsões para o ano de 1708, por
Isaac Bickerstaff, Esq. A primeira previsão era leve, não passava de uma ninharia,
mas alertava o público para os perigos da leitura de almanaques. Ela dizia que John
Partrige, importante comerciante do ramo, faleceria na noite do dia 29 de março
assolado pela febre caso não suspendesse a tempo suas atividades. Chegado o dia
aziago, o pobre Partrige, que certamente não dera ouvidos à tamanha patifaria, ficou
boquiaberto quando soube que vendedores ambulantes distribuíam de mãos em mãos
uma elegia escrita à sua pessoa. No dia seguinte, véspera de primeiro de abril (Fools’s
Day), um funcionário da Receita Pública (a mando do próprio autor da pilhéria)
expediu uma carta com a seguinte chamada: A consumação da primeira das previsões
de Mr. Bickerstaff. Estava claro que se tratava de uma piada. Passado um ano, veio a
público um folhetim com uma xilografia que trazia no título: Uma famosa previsão de
Merlin, mago britânico, escrita há mil anos e relacionada a 1709. O estilo, “a rima
em dístico, a letra gótica” e a alusão irônica a Partrige (um de seus almanaques se
chamava Merlinus Liberatus) fizeram com que o nome de Bickerstaff corresse mais
uma vez à boca pequena98. A suspeita de embuste se confirmou no próximo primeiro
de abril, doze dias antes da publicação do primeiro número de The Tatler, quando Mr.
Bickerstaff revelou a sua identidade. Era ninguém menos do que um dos maiores
escritores satíricos de todos os tempos, Jonathan Swift, amicíssimo de Steele e de
Addison. A brincadeira que divertiu a todos, exceto Partrige, não era inocente.
Tratava-se de um complô, uma estratégia editorial para demover a atenção do público
de almanaques, os quais sobejavam de notas astrológicas e previsões. Abria-se
caminho para a novidade jornalística: o ensaio destinado à imprensa. Swift chegou a
contribuir com alguns números para The Tatler, mas foi Steele quem deu acabamento
final à personagem, nas palavras de Hazlitt, que é “ele próprio um gentleman e um
97 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódico”, In. Revista Serrote # 22, p. 30. 98 Ver a introdução de Angus Ross, In. Selections from The Tatler e The Spectator of Steele and Addison (London: Penguin Books, 1982), pp. 26-7.
83
douto, um humorista e um homem do mundo, com um alto grau de sincera naïveté em
torno de si”99.
Os autores de The Round Table não assumiram semelhantes disfarces. Pois
sabiam, como Lamb, que “da prole de Bickerstaff, ai de mim! morreram todos com
ele”100. Além disso, diz Hunt na introdução a The Round Table, no tempo de Steele e
Swift, que homem de engenho não era conhecido nas tavernas e cafés, e quem daria
ouvido a um cavalheiro que, na noite anterior, em mesa de bar, “mal conseguia
articular uma palavra?”101. Certamente ligariam o nome à pessoa. Contudo, de
Bickerstaff, eles extraíram uma lição importante: “a perfeição das letras”, diz Hazlitt,
“só ocorre quando a ambição maior do escritor é a de agradar seus leitores e o orgulho
maior do leitor, o de entender seu autor”102.
Por um tempo, a imprensa periódica inglesa logrou esse “ajustamento
recíproco entre o jornal e o público”103, entre escritor e leitor. As coisas começaram a
desandar, segundo Hazlitt, “quando a cidade se tornou um clube de escritores”. “Hoje
em dia”, continua o autor, “cada um traz à mão o seu próprio folhetim, à espera da sua
vez de ser ovacionado”104. Falam-se muitas vozes ao mesmo tempo; nenhuma é
ouvida. A experiência pública da leitura perdia mais um de seus sentidos: deixava de
ser impressão de abertura, de enriquecimento, para se converter em “obturação da
mente diante do que procura penetrar nela”105, segundo a formulação do filósofo
espanhol Julian Marías, que se ocupou do mesmo tema um século depois. Era como
se o pedantismo recuperasse lugar na sociedade pela porta dos fundos, só que desta
vez sem aquelas velharias: os dogmas e os mistérios da religião. Há decerto algo de
pedante em nós, argumenta Hazlitt, sempre que somos bem sucedidos no vincular
interesse às nossas ocupações mais triviais; e quanto menos o outro conhecer daquilo
de que falamos ou escrevemos, tanto melhor. Noutras palavras, o pedante moderno
afeta ares idiossincráticos, ao mesmo tempo em que se vale de uma linguagem
99 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, In. Revista Serrote #22, p. 27. 100 Charles Lamb, “Review of the First Volume of Hazlitt’s Table-Talk”, In. Selected Prose, p. 228. 101 William Hazlitt & Leigh Hunt, The Round Table 1817, pp. 2-3. 102 CWH, “On Pedantry”, 4, p. 83. 103 Pallares-Burke, The Spectator: O Teatro das Luzes, p. 138. 104 CWH, “On Pedantry”, 4, p. 83. 105 Julian Marías, Tratado sobre a Convivência (São Paulo: Martins Fontes, São Paulo, 2003), p. 15. Ainda sobre o tema, diz Marías: “Nesta época em que a produção de escritos é imensa, em todas as suas formas, em que é inabarcável não já o conteúdo do que se publica sobre qualquer questão, mas os simples títulos, a capacidade de distinguir é salvadora, talvez a única forma de sobreviver à inundação que nos acossa por todos os lados”, p. 15.
84
coalhada de jargões profissionais. Escreve para os iniciados, não mais para uma
“comunidade de leigos”106. Esta é a pedra de toque para a decadência da leitura e do
jornalismo moderno, para, de um lado, “o adestramento das formas de expressão da
produção acadêmica e (do outro) para a redução progressiva, a teores mínimos, das
ambições intelectuais dos periódicos não especializados”107, nas palavras acertadas de
Paulo Roberto Pires, e não, como quis Coleridge, a simples expansão do público
leitor, “esta frase tão estranha”108. Consciente de que “o escritor só pode dirigir-se a
quem quer e deseja compreendê-lo”109, dizia Bento Prado Jr. – ou, nas palavras de
nosso autor, “aquele que fala deseja ser compreendido, mas ele só pode sê-lo por
aqueles que com ele partilham do segredo”110 –, Hazlitt, em repúdio à “antipatia
sistemática”111 de Coleridge pelo público leitor, estimula a todo o momento a
imaginação deste: fazendo-lhe contínuas cortesias ou embriagando-o com sua ironia
corrosiva.
Com efeito, foi no respeito mais verdadeiro pelo entendimento do leitor que a
nova dupla de ensaístas (Hazlitt e Hunt) apostou suas fichas; numa palavra, no estilo
familiar ou conversacional. “A arte de escrever, quando devidamente exercida (...), é
outro nome para conversação”112, disse Laurence Sterne, ensaísta a seu modo e
supremo estilista. A conversa esmorece, perde em vigor ou descamba em preleções
sempre que alguém, por excesso de teimosia ou de brilhantismo, a mantém por longo
tempo. O respeito pelo outro é humildade e abertura; alegria por descobrir algo com o
qual não se tinha contado. “A arte da conversação”, lembra Hazlitt, “é a arte de ouvir
e de ser ouvido”113.
106 Auerbach, “O escritor Montaigne”, In. Ensaios de Literatura Ocidental, p. 153. 107 Paulo Roberto Pires, “Viagem à Roda de uma Dedicatória”, In. Revista Serrote #12 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012), p. 189. 108 CWH, “Mr. Coleridge’s Statesman’s Manual”, 7, p. 124. 109 A formulação é de Bento Prado Jr. Ver ensaio do autor “Para quem escrevemos?”, in. A Retória de Rousseau, p. 225. 110 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 35. 111 CWH, “Mr. Coleridge’s Statesman’s Manual”, 7, p. 126. 112 Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, tradução de José Paulo Paes (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), p. 131. 113 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 39.
85
4. Rítmicos e Arrítmicos: uma anedota na casa de Lamb
Todos conversavam, bebiam, comiam, jogavam e riam à vontade. Era mais
uma noite de quarta-feira, mais um encontro, que agora virara rotina, na casa londrina
(em Mitre Court) dos irmãos Charles e Mary Lamb. Vieram alguns amigos; gente
ótima; bons companheiros de sempre. É verdade que entre os conhecidos de dez a
quinze anos atrás, havia outros mais novos. Uns trouxeram bebidas, rapé e fumos;
outros, apenas fígado, narinas e pulmão. Um trouxe torta de vitela; outros trouxeram
boca. Charles e Mary cuidavam para que todo visitante que transpusesse a soleira da
casa encontrasse a máxima “wit e boa-companhia”114 estampada nos rostos dos
anfitriões. Cuidavam também para que não faltassem drinques, boa comida (para
aquela noite, porco assado 115 ), lufadas, jogatinas e excelentes papos. De uma
sociabilidade e sensibilidade refinadas, era irresistível entrar em diálogo com Charles,
sobretudo quando bebia. Beberrão de primeira linha116, depois de excitado pelo kick
de bebidas-aperitivos, ficava animado de uma suave euforia: comunicativo mas nunca
transbordante. Mantinha-se, do começo ao fim, britanicamente rítmico. Entre uma
anedota e outra, provava passagens deliciosas de Donne ou de Sir. Philip Sidney (seus
autores favoritos) “como Epicuro prova da oliva”117, comentava uma personalidade
em evidência e suas observações somente às vezes deixavam um ressabio. Urbano até
a medula (morou a vida toda em Londres), sua conversa poderia ser elegante, exótica,
espirituosa ou grave. Noutro canto da mesa, Samuel Coleridge prendia a atenção do
almirante Burney, irmão da romancista Frances Burney (que às vezes dava as caras
nesses encontros) e do amigo de escola de Charles e autor das Cartas de Falstaff,
James White. Depois de um aperitivo ou outro, em vez de ficar eufórico, Samuel
transbordava, falava em excesso, era arritmíssimo. O assunto da vez: as categorias da
filosofia transcendental de Kant. Quando Thomas Holcroft, dramaturgo da velha
114 Idem, p. 36. 115 Sobre o tema, diz o conhecido ensaio de Lamb: “Sabor algum se compara, estou seguro disso, à aderência oleaginosa (quando quebradiça, fulva, bem servida e ao ponto) do torresmo, como é conhecido, e com razão (...); oh! não o chamemos de gordura”, “A Dissertation upon a Roast Pig”, In. Selected Prose. p. 167. 116 Nas palavras de Lamb: “Creio que existem pessoas de cabeça robusta e entranhas férreas para as quais o excesso não é prejuízo algum; para as quais brandy (...), consumido copiosamente, não produz outro mal senão o de embaralhar suas faculdades, a bem da verdade, talvez já não muito diáfanas. Para elas, esta conversa é uma perda de tempo (...). Falo aos fracos, aos inquietos, àqueles que sentem a necessidade de recorrer a algum auxílio artificial para animar seus espíritos na vida em sociedade e elevá-lo ao teor ordinário de tudo o mais que o cerca, e sem o mesmo auxílio. Este é o segredo do porquê bebemos”, “Confessions of a Drunkard”, In. Selected Prose. p. 155. 117 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 36.
86
guarda jacobina, que até então se recolhia a silêncio pouco comunicativo, o
questionou sobre um ponto que se discutia, Samuel deu rédeas soltas ao seu alazão
alemão [high german horse]:
Meu caro, esta sua observação me faz lembrar uma bela jovem alemã, de uns
quinze anos, que conheci no tempo em que morei na floresta de Harz, interior
daquele país. Estava eu um dia imerso na leitura sobre os Limites do Conhecido e
do Desconhecido, a mais profunda de suas obras, quando esta jovem camponesa
chegou por de trás de minha poltrona e reclinando-se disse: ‘o quê! O senhor está
lendo Kant, mas por que, se eu que sou alemã de nascença não o compreendo?’118.
Thomas, que quando bebia ficava por vezes violento, se levantou e disse num
tom arrítmico: “Camarada Samuel, nunca conheci homem mais eloquente ou cuja
eloquência fosse mais inoportuna”119. Na mesa ao lado, onde Edward Phillips (Ned
para os íntimos) e Sarah Battle120 comandavam um grupo de jogadores de uíste, fez-se
silêncio. Ned pôs as cartas sobre a mesa e trocou olhares com Thomas como se lhe
pedisse calma. Sem dizer palavra, Thomas tomou do chapéu e desceu as escadas que
davam à rua. Antes mesmo de dobrar a esquina topou com William Hazlitt, atrasado
porque trabalhara até tarde na redação, e sem cumprimentá-lo, transbordante que
estava, disse apenas: “Sabe, William, Samuel é um camarada muito inteligente, tem
pleno domínio sobre a linguagem, mas receio que nem sempre afixa ideias claras às
palavras de que se utiliza”121. Depois de subir as escadas e de Charles explicar a
William o ocorrido com algum dito chistoso, caíram todos na gargalhada. Samuel e os
outros, agora acompanhados de William, retomaram o bate-papo sobre a razão, a
imaginação e a vontade. Assim permaneceram até a hora neutra da madrugada. Foi a
118 Idem, p. 37. 119 Idem, ibidem. 120 Personagem do célebre ensaio de Lamb “Mrs. Battle’s Opinios on Whist”. Em “On Familiar Style”, diz Hazlitt: “Confesso que dos ensaios impressos sob a rubrica de Elia, aquele de que mais gosto (embora não ouso, em meio a tantas excelências, decidir qual o melhor) é o relato Mrs. Battle’s Opinios on Whist, além de ser o mais isento de alusões obsoletas e inflexões epigramáticas”, CWH, 8, p. 245. 121 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 38.
87
primeira e única vez nesses encontros de quartas-feiras, lembra William, que um
assunto de interesse literário prevaleceu sobre os demais122.
Esta anedota que me propus a recontar é talvez uma das mais conhecidas e
admiradas pelos leitores de Hazlitt; ela é uma das que ele relata no ensaio “On the
Conversation of Authors”. Se encontrasse um editor benevolente, disse nosso autor,
“sugeriria a ele que fizesse dela um suplemento à Biographia Literaria de
Coleridge”123. As personagens envolvidas, detalhes de suas personalidades, gestos,
diálogos, etc., se encontram todos lá. Mas seu kick veio de outro lugar, de um ensaio
de Gilberto Freyre, em Alhos & Bugalhos (de edição há muito esgotada, seja dito de
passagem): “A Propósito de Cachaças e de Outras Batidas: Inclusive de sua
Repercussão em Escritores e Artistas que Tanto Pode ser Rítmica como Arrítmica”.
Sem prestar-se a “considerações sisudamente sociológicas”124, Freyre investiga o
valor cultural da discreta presença de bebidas aperitivos na mesa dos brasileiros. Para
Freyre, a cachaça é um dos selos de nossa cultura, ao lado do samba, da feijoada e de
“expressões dengosas” na linguagem do dia a dia: como sinhazinha e iaiá125. E tanto
naqueles quanto neste, seu valor reside na miscigenação e nos rasgos de intimidade:
traços, segundo Freyre, que traem o “Brasil mais castiço”126. Entretanto, a digressão
que Freyre inclui ao final do ensaio sobre o efeito que as bebidas-aperitivos tinham
nas conversas de personalidades ilustres, artistas e escritores, brasileiros ou não, com
os quais travou contato durante a vida, classificando uns em rítmicos, outros em
arrítmicos, revela-nos um ensaísta mais preocupado com a matéria humana em geral
do que com o que há supostamente de particular ao caráter brasileiro. Nas palavras de
Freyre:
Os rítmicos seriam aqueles a quem a batida ou o seu equivalente anima de suave
euforia. Assim eufórico, ele é comunicativo. Expressivo. Vivaz, sem se tornar
transbordante. Sua inteligência é avivada, provocada, levemente excitada pelo
kick de aperitivo. Seu sense of humour chega a brilhos que podem ser quase
geniais, ao contar uma anedota ou comentar uma personalidade em evidência.
Seus sorrisos são giocondescos, tal a malícia que podem exprimir. Ri com gosto. 122 Idem, p. 37. 123 Idem, p. 38. 124 Gilberto Freyre, Alhos e Bugalhos, p. 98. 125 Idem, p. 101. 126 Idem, p. 97.
88
Gesticula à vontade, libertando-se daquela elegância excessivamente apolínea que
contém, nos indivíduos ditos bem educados, todos os gestos como se fossem
incorreções (...).
Já os arrítmicos, após os aperitivos, se tornam transbordantes de palavras e de
gestos. Em vez de eufóricos, ou falam em excesso ou recolhem-se a silêncios
pouco comunicativos127.
A aproximação que aqui fazemos entre Freyre e o ensaio de Hazlitt não é
fortuita, pois Freyre foi leitor assíduo de Lamb e dos ensaístas ingleses em geral: “é
na língua inglesa”, diz ele, “que vêm surgindo, desde que há ensaio literário, um
maior número de obras-primas desse gênero. Basta que se recordem (...) os ensaios de
Lamb, os de De Quincey, os de Walter Pater...”128. Entretanto, quer Freyre estivesse
consciente ou não, a hospitalidade e a cordialidade, que em “A Propósito de Cachaças
e de Batidas” ele assume como expressões características do brasileiro, são
precisamente, segundo a hipótese que perseguimos neste capítulo, atitudes mentais
próprias ao ensaísta amigo; isto é, próprias ao escritor de familiar essays (gênero
inglês por excelência). Falemos a seguir de uma das figuras-chave do familiar essay,
Samuel Johnson. Não de Johnson em público (o autor); mas de Johnson no âmbito
privado (o homem), tal qual capturado pela pena de James Boswell, seu biógrafo e
amigo, e interpretado por Hazlitt em “Sobre os Ensaístas de Periódicos”.
5. A Conversa e a Arte da Escuta
Já se disse que a arte da conversação é um dos principais legados do século
XVIII. Ela está no centro daquela forma refinada de sociabilidade que se desenvolveu
em nenhum outro século como nesse, quer nos cafés, clubes ou salões; e por meio da
qual se experimentava e se colocava à prova o mais simples dos assuntos, ao passo
que o mais intricado deles recebia um colorido interessante, novo e surpreendente,
jamais pesado ou maçante. Com ela, a filosofia ganhava contornos literários. A poesia
e a prosa literária, contornos filosóficos. Numa palavra, nunca o esprit géometrique e
o esprit de finesse estiveram tão intimamente interligados. Foi nesse século, por
127 Idem, p. 100 (grifo do autor). 128 Idem, p. 9.
89
exemplo, que o romance epistolar melhor floresceu – e o que é a carta senão uma
conversa à distância, em que se confidenciam intimidades ao leitor como a um velho
amigo e se discute familiarmente quaisquer assuntos?129 Tristram Shandy, romance de
Sterne citado acima, um dos mais populares de seu tempo, é, segundo Hazlitt, “a
essência pura do estilo conversacional em língua inglesa”130. Durante sua leitura, diz
o crítico alhures, o leitor se imagina em diálogo com as personagens131. Dr. Johnson,
depois de receber do próprio monarca George II uma pensão vitalícia pelo que havia
feito, o Dicionário da Língua Inglesa, passou a se dedicar, ainda que não
exclusivamente, à atividade de que mais gostava e que exerceu com a liberdade de
poucos: a conversação. Embora austero, o bom humor é a tônica de suas conversas, e
porque Johnson nunca se deixou cegar por preconceitos mesquinhos, acolheu de
coração aberto o libertino Boswell. Este lhe devotou amizade constante. Foi por ela e
pelo seu talento literário que deixou para posteridade o massudo Life of Samuel
Johnson, obra que, no tagarelar sobre todas as coisas, supera a biografia, “a mera
narrativa árida dos fatos” 132 com a “descoberta do permanente contido no
efêmero”133. Entre os filósofos do período que são hoje lidos sobretudo por suas
contribuições no campo da metafísica, Hume, Diderot e Voltaire eram apreciados ou
mesmo temidos em seu tempo pelo seu estilo e pelo brilho que irradiavam nas
conversas. Mesmo Rousseau, que por excesso de timidez se dizia incapaz de
acompanhar o rumo da prosa em palestras ou colóquios a dois134, foi exímio no imitar
o efeito de improviso que a conversa escrita nos dá. Analisando as diferenças de estilo
entre os séculos XVII e XVIII, Franklin de Mattos, importante estudioso do período,
observa:
129 É verdade, entretanto, que o romance epistolar no século XVIII tinha, entre os seus principais propósitos, “a reivindicação de historicidade” aliada a um “discurso auto-reflexivo” e “com o intuito de insinuar a objetividade documentada em seus materiais”, nas palavras de Michael McKeon acerca do romance de Richardson, Pamela. Ver “The Institutionalization of Conflict (I): Richardson and the Domestication of Service”, In. The Origins of the English Novel 1600-1740 (Baltimore: The John Hopkins University Press, 1987), pp. 357-381: 358. 130 CWH, “On the English Novelist”, 6, p. 121. 131 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 41. 132 James Boswell, Life of Johnson (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. 23. 133 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, In. Escritos da Maturidade, p. 136. 134 Ver o “Livro Terceiro” de Confissões, no qual o autor se queixa da grande dificuldade que encontrava em expressar por palavras, tanto na escrita quanto na fala, a vivacidade de seus sentimentos: “Se, só comigo mesmo, sou tão pouco senhor de mim, imagine-se o que devo ser em uma palestra em que, para falar a propósito, é preciso que se pense em mil coisas de improviso (...). Não conheço mais terrível incômodo do que a obrigação de falar de improviso e constantemente”, Rousseau, Confissões, pp. 124-5
90
O século XVII aposta principalmente na expressão justa (...). A esse estilo
corresponde um ideal de conhecimento que valoriza a estrutura sólida, o
encadeamento das ideais. O século XVIII não nega as construções lógicas, mas
deseja que permaneçam secretas (...); o que se aprecia aqui não é a clareza, mas a
delicadeza135.
Possivelmente, dos exemplos recolhidos acima, nenhum outro encarnou
melhor o estilo conversacional do que Life of Samuel Johnson, de Boswell. Talvez um
de seus motivos se deva justamente ao fato de seu autor sacrificar frequentemente a
delicadeza em nome daquele senso mais profundo e de difícil definição, o sense of
humour de seu protagonista; isto é, as suas reações espontâneas e cordiais da
sensibilidade. Pelo seu modo todo particular de se revelar e de conversar com os
leitores, pelo seu talento, celebrado por muitos, como Bernard Shaw, Jorge Luis
Borges136 e Hazlitt, de ocultar todo traço de autoria e de se doar por completo ao autor
que estuda, falemos um pouco de Boswell e dessa obra, do tipo de conversa que ela
preconiza, da importância imensa que ocupou na história do ensaísmo, mesmo se
tratando de uma biografia, e em especial para os ensaios de Hazlitt – vale lembrar que
ao fim da vida nosso autor publicou Conversations of James Northcote, or Boswell
Redivivus137.
Com as suas “pitorescas indignações, a sua mania de opinar sobre tudo, as
suas afirmações peremptórias, os seus julgamentos sem apelo, a sua extraordinária
vitalidade (...), de simpatia irradiante e virilidade intelectual”138, acrescidos de seus
modos intoleráveis, ou mesmo risíveis, no vestir-se, comer e andar, Samuel Johnson
despertava o interesse do já então lucrativo mercado editorial do gossip – “aquele
135 Franklin de Mattos, A Cadeia Secreta: Diderot e o romance filosófico (São Paulo: Cosacnaify, 2004), p. 46. 136 Sobre as leituras de Bernard Shaw sobre Boswell, ver, por exemplo, “Epistle Dedicatory to Arthur Binham Walker”, In. Man and Superman: a Comedy and a Philosophy. Nas palavras de Shaw: “Platão e Boswell, enquanto dramaturgos, inventaram, respectivamente, Sócrates e Johnson” (London: The Floating Press, 2012), p. 27. Extraímos boa parte de nossa reflexão do texto de Borges “Samuel Johnson Visto por Boswell: A Arte da Biografia, Boswell e seus Críticos”, In. Cursos de Literatura Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 2006), pp. 137-154. 137 Na primeira edição da obra, publicada em forma seriada em The New Monthly Magazine, diz Hazlitt: “À diferença da grande obra original de meu predecessor (James Boswell, Esq., de Auchinleck), se nesta ele supostamente não inventou nada, fantasiei sempre que julguei necessário. Esqueci-me, enganei-me, deturpei, alterei e inverti a ordem inúmeras vezes”, CWH, 11, p. 350. 138 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, Escritos da Maturidade. p. 138.
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modo de discorrer agradavelmente sobre assuntos vários, sem cansar os ouvintes”139 –
, antes mesmo de seus velhos amigos John Hawkins, sra. Thrale (mais tarde sra.
Piozzi) e Boswell se lançarem na corrida por quem publicaria sua primeira e melhor
biografia.
Pela manhã de sábado do dia 16 de março de 1776, após regressar a Londres
para mais uma temporada de férias do judiciário, Boswell foi ter com Johnson na casa
da sra. Thrale. Naquela manhã, Johnson estava de ótimo humor e entretinha os
amigos com uma longa e deliciosa conversa: “Senti-me elevado”, disse Boswell,
“como se alcançasse outro estado de consciência. Sra. Thrale e eu trocamos olhares
enquanto ele falava, e nossos olhares expressavam a admiração e o afeto congenial
que nutríamos por ele”140. A caminho de Blackfriars, durante a travessia do Tâmisa,
Boswell, que sempre acompanhava o doutor de perto “com perguntas na língua e lápis
no punho”141, introduziu o assunto sobre a publicação de Johnsoniana, or Bon-Mots
of Dr. Johnson. Fazia parte de sua estratégia interpelar o amigo nas situações menos
esperadas. Indignado, porque seu autor era desconhecido de ambos, ele sugeriu a
Johnson que levasse o caso ao júri ou que se pronunciasse publicamente contrário ao
seu conteúdo. Afinal, tal obra haveria de contar com uma infinidade de julgamentos
falsos que contribuiriam ainda mais para pespegar-lhe a imagem de sujeito parrudo,
sem papas na língua. Então Johnson, com sua usual sabedoria prática e seus
desconcertantes paradoxos, o surpreendeu dizendo: “De modo algum, meu caro. Há
sempre um misto de verdade em toda falsidade e quem pode determinar o que é o
verdadeiro e o que é o falso? (...) Uma estória é ou bem um retrato de um indivíduo
ou bem da natureza humana em geral. Se for falsa, será um retrato do nada”142.
Se verdadeiro ou falso, o retrato de corpo inteiro que Boswell nos legou leva
de vencida as demais biografias. Life of Samuel Johnson seduz o leitor tanto pela
palavra pronta de seu protagonista, seu riquíssimo anedotário, feito de incontáveis
conversas fiadas, sempre em tom íntimo, quanto pelo modo privilegiado com que o
biógrafo escutou o biografado, instalando-se em sua consciência. A partir de então o
nome dos dois se tornaram inseparáveis. Talvez nunca tenha havido outra igual
amizade e identificação de dois eus entre escritores. Johnson não foi o primeiro 139 Idem, “Gossip”, p. 162. 140 James Boswell, Life of Johnson, p. 680. 141 Lucia Miguel-Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, Escritos da Maturidade, 136. 142 James Boswell, Life of Johnson, p. 685.
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homem público ou de letras em quem Boswell “se obstinou a meter seu bedelho, sem
cuidar que era inoportuno” 143 . Nos idos de 1760, de visita ao continente,
correspondeu-se com o general italiano, Pasquale di Paoli, mais tarde líder da
independência da Córsega, e com dois dos mais populares escritores de seu tempo:
Voltaire e Rousseau. Chegou a travar amizade com este último, a qual se arrastou por
longos quinze dias, pois, como disse Borges: “Rousseau era um homem de péssimo
gênio”144. Com seu misto de rebeldia e introspecção e sua mania de pôr-se sempre à
sombra, Rousseau nunca soube viver, e ainda menos, conviver. O espirituoso
Voltaire, que julgava tudo pelo gesto e tendia a se desumanizar quando ria, só se deu
ao trabalho de responder às missivas do jovem libertino depois de muita insistência.
Por fim, eles se encontraram em Berna e enquanto Boswell se deleitou em suas
conversas, “la plus brillant que j’ai jamais entendu”145, Voltaire possivelmente o
tomou por mero “compêndio de boemia”146. A amizade com Paoli foi mais bem
sucedida. Se dela não resultou a mesma reciprocidade que encontramos entre Boswell
e Johnson, foi por incentivo de Paoli que aquele publicou sua primeira importante
obra, An Account of Corsica (1768). Mas nem Paoli nem Voltaire ou Rousseau
dariam um bom modelo. Dificilmente deixariam de posar de general, filósofo, poeta,
romancista, etc., isto é, dificilmente deixariam seus grandes feitos ou suas descobertas
se confundirem com as de um outro. A intimidade e o convívio mais familiar entre
Boswell e Johnson, disse Hazlitt, não se harmonizam muito bem com “a afetação de
virtude e as reivindicações um tanto pomposas da autoria”147.
Desse modo, o Johnson que hoje conhecemos e apreciamos não carrega
vestígio algum de uma profissão determinada, nem sequer de “leigo na condição de
escritor”, como disse Auerbach acerca de Montaigne148. Com sua propensão natural
ao ócio, ele gostava mesmo era de não fazer nada ou de se reunir com os amigos nos
clubes e cafés para um bate-papo. Quando só, durante suas frequentes e noturnas
perquirições melancólicas, tomava quantias exorbitantes de chá preto e ficava detido
diante da lareira, nutrindo pensamentos sobre fantasmas. Padecia de uma “melancolia
143 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, In Escritos da Maturidade p. 136. 144 Jorge Luis Borges, “Samuel Johnson visto por Boswell. A arte da biografia. Boswell e seus críticos”, In. Curso de Literatura Inglesa, p. 141. 145 Citado a partir de Maurice Lévy, Boswell: un Libertin Mélancholique: Sa Vie, ses Voyages, ses Amours et ses Opinions (Grenoble: Université Stendhal, 2001) p. 102. 146 Lucia Miguel Pereira, “Dr. Johnson, Boswell e as Convenções”, Escritos da Maturidade, p. 135. 147 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 33. 148 Erich Auerbach, Ensaios de Literatura Ocidental, p. 151.
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mórbida” e “horrível hipocondria”149. Tinha pavor de viver consigo mesmo. Por
contraste, Montaigne, nas “horas ociosas”, estava sempre atento aos seus devaneios,
punha-se a registrá-los, digeria-os no íntimo. Assim, disse este: “não fiz meu livro
mais do que ele me fez, livro consubstancial ao seu autor”150. Quanto a Johnson, disse
Hazlitt: “O homem era superior ao autor”151.
Se o Johnson biografado se destaca por algum ofício não foi por outro senão
aquele impudente de opinar sobre todos os assuntos, de viver em voz alta: “era este o
seu ofício; le esprit du corps”152. Para ressaltá-lo, Boswell apostou na força do
contraste. Life of Samuel Johnson é “uma verdadeira obra dramática, com diversas
personagens”153 que se movimentam, pensam, falam e vivem diante do leitor. Faziam
parte de sua seleta coterie alguns homens e mulheres públicos de evidente grandeza
pelo talento artístico e literário. Lá estão o pintor Joshua Reynolds, presidente da Real
Academia de Belas Artes, Oliver Goldsmith, poeta e dramaturgo irlandês, Elizabeth
Montagu, influente crítica literária e anfitriã de boa parte dos encontros do grupo, o
famoso ator shakespeariano David Garrick, o político e filósofo Edmund Burke, etc.
Contudo, todos eles, inclusive seu autor, o jurista e notável biógrafo, não aparecem
nessa obra como uma casta de homens públicos, de artistas e literatos154. Não são
nada além de bons companheiros, reservados à mesa, em relações de simpatia. Nada
pode ser menos pedagógico, menos pedante, do que a prosa fiada que Boswell registra
desses encontros.
Mas afinal, sobre o que falavam? Em um ensaio de 1847, “On Conversation”,
Thomas De Quincey se queixava da falta de inventividade nas conversas de um
círculo tão privilegiado, da ausência daquele princípio heurístico, que escapa ao
estudo dos livros porque próprio à conversação. Dizia ainda que alguns dos principais
tópicos de filosofia e literatura eram simplesmente negligenciados ou tratados com
desdém e sem profundidade, pois o terrível ditador das letras de seu tempo “tendia a
149 James Boswell, Life of Johnson, p. 47. 150 Montaigne, Os Ensaios, Livro II, “Do Desmentir”, p. 498. 151 William Hazlitt, “Sobre os ensaístas de periódico”, In. Revista Serrote # 22, p. 36. 152 James Boswell, Life of Samuel Johnson, p. 771. 153 Borges, Curso de Literatura Inglesa, p. 148. 154 Para uma discussão sobre a domesticação do círculo social de Johnson, que não se confunde com um retiro na vida privada, ver Jon Mee, “Proliferating Words, 1762-1797”, In. Conversable Worlds, pp. 81-133.
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ver todas as coisas somente pelo lado negativo, nunca pelo positivo ou criativo”155.
Que Johnson encarnou o espírito de contradição, nem ele nem Boswell relutariam em
admitir: “ele parecia”, diz Boswell, “ter prazer em contradizer, sobretudo quando
alguém expressava alguma opinião com ares de convicção” 156 . Mas talvez
devêssemos nos perguntar por que mesmo com todo o excesso de termos cortantes e
de seu aspecto grotesco e desastrado Johnson se apresenta ao leitor como um sujeito
simpático, uma espécie de Falstaff dos escritores, como sugere Hazlitt157.
“A melhor conversa – disse Johnson, e o fiel Boswell anotou
escrupulosamente – é aquela da qual nada em particular nos recordamos distintamente
senão o efeito geral, de impressão agradável”158. Mas então, se nos filiarmos na
fidelidade dos rasgos firmes dos retratos de Boswell, a conversa de Johnson não é das
melhores. Decerto Boswell não pretendeu que ela o fosse. Não há nela, por exemplo,
aquele “fluxo contínuo de conversação”159 que se observa em uma Elizabeth Montagu
ou em um Edmund Burke. Como observou Hazlitt: “Burke parece ter sido a única
pessoa que tinha alguma chance contra ele; o único pecado imperdoável da obra de
Boswell foi ter omitido propositadamente os seus combates de força e de
habilidade”160. Ainda sobre este último, disse Boswell, seja lá com quem ele topasse
nas ruas (não importava a classe social, pois Burke sabia tanto subir como baixar) se
com ele travasse uma conversa, ela seria agradável e distraída, como se ambos
estivessem pensando em voz alta. Após se despedir de Burke, diria a si mesmo: “lá se
vai um sujeito extraordinário”161. A conversa de Johnson, por contraste, era grosseira,
sem elegância ou beleza. O efeito geral que ela deixava no ouvinte era comparável,
disse Boswell, ao gosto de “mostarda no palato de uma criança”162.
155 Thomas De Quincey, “On Conversation”, In. De Quincey as Critic, pp. 141-3. Para uma discussão sobre o tema, ver o capítulo “Conversation in Decline: from raillery to reverie”, de Stephen Miller em Conversation: a history of a declining art (New Haven: Yale University Press, 2008), pp. 150-193. 156 James Boswell, Life of Samuel Johnson, p. 734. 157 Em “Sobre os Ensaístas de Periódico”, diz Hazlitt sobre a personagem Johnson: “Seus hábitos domésticos, a ternura para com os criados, a presteza em servir os amigos; a quantidade de chá forte que ingeria para refrear pensamentos melancólicos; os muitos trabalhos que relutantemente começava e irresolutamente abandonava; o reconhecimento honesto de seus erros e a indulgência para com as fraquezas dos outros (...); o encontro em Mitre com jovens damas que o admiravam, para dar-lhes bons conselhos, situação que, se não fosse explicada, faria com que ele passasse por Falstaff”, In. Revista Serrote #22, p. 37. 158 James Boswell, Life of Johnson, p. 1102. 159 Idem, p. 1278. 160 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódicos”, In. Revista Serrote #22, p. 37. 161 Boswell, p. 1279. 162 Idem, p. 1154 (grifo do autor).
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A data de publicação de Life of Samuel Johnson (1791) e sua imensa
popularidade, que se manteve firme desde seu aparecimento até pelo menos a
primeira metade do século XX, também dão o que pensar. Como as Reflexões sobre a
Revolução em França, de Burke, essa extensa biografia é a um só tempo monumento
e instrumento de demolição de uma era cujos primeiros sinais de ruína se tornaram
manifestos naquela última década do século XVIII. Talvez tenha sido por esse motivo
que Boswell escolhera para protagonizar suas conversas um autor da importância de
Johnson, cujas maneiras destoavam do senso de ordem e delicadeza dos modelos
classicizantes que ele próprio demonstrou pela sua argumentação e, sobretudo, pela
sua escrita.
Das conversas fáceis e fluidas, impressas nos folhetins de The Tatler e The
Spectator, à fala informe e sem regra de Johnson, tal qual registrada por Boswell, não
há retrocesso, mas complementaridade. Foi isso o que notaram os ensaístas de
periódicos do romantismo inglês, a primeira geração de escritores que se empenharam
na leitura receptiva e compreensiva de Life of Samuel Johnson163. A personagem de
Johnson, seu sense of humour e a maior liberdade quando discursava ofereciam um
contraponto àquele estilo fortemente homogêneo e equilibrado em todas as suas partes
que dominou a prosa ensaística de seu tempo. Em grau maior ou menor, encontramos
esse estilo em escritores tão díspares quanto Johnson, Shaftesbury e Hume. Uma de
suas marcas são as “leis rígidas”164, diz Hazlitt; isto é, o excesso de palavras de
origem latina, palavras longas, difíceis aos ouvidos ingleses, que dão a impressão de
sonoridade retumbante porque afastado das formas de dicção de sua gente. Sobre o
estilo de Johnson, diz Hazlitt: “não há nele nenhuma discriminação, nenhuma
preferência ou variedade. As únicas palavras de que lança mão são ‘altissonantes e
opacas’”165. Palavras que se enchem de ar, redondas, estufadas, brilhantes, pouco
importa se a matéria de que trata é “extensa ou curta, áspera ou suave, redonda ou
quadrada, diferente ou semelhante”166. Nada pode ser mais avesso ao estilo familiar.
Este, lembra o crítico, retomando um topos caro aos ensaios montaignianos167, quer
163 Além de Hazlitt e De Quincey, inúmeros outros escritores do romantismo inglês dissertaram acerca essa obra. Sobre Life of Johnson, disse Coleridge: “A fama do dr. Johnson repousa, hoje em dia, principalmente em Boswell. É impossível não se divertir com esse livro”, In. Passages from The Prose and Table Talk of Coleridge (London: Walter Scott, LTD, 1894), p. 246. 164 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 8. 165 CWH, “On Familiar Style”, 8, p. 243. 166 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 6. 167 Ver, por exemplo, o ensaio “Da educação das crianças”, capítulo XXVI, Livro I, pp. 216-265.
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que as coisas predominem sobre as palavras, que estas sigam aquelas, e não o
contrário. O falar seco, direto e cru de Johnson e sua “voz profunda e ressonante”168,
como mostarda no palato de uma criança, aguçaram os sentidos para aquelas formas
de expressão populares, condenadas por ele próprio como incorretas, as quais seus
ouvintes mais atentos, a exemplo de Boswell, aplicaram-se no seu aproveitamento
artístico.
Para a nova geração de ensaístas de periódicos, como a dupla Hazlitt e Hunt, a
fala e os modos rudes, porém simpáticos e cordiais, da personagem Johnson
apontavam para a capacidade imperecível de renovação do estilo familiar e para um
maior equilíbrio entre as virtudes cívicas e as que se formam e se exigem junto à
lareira169. As formas de expressão e conduta morais excessivamente polidas de um
Addison ou Hume, por exemplo, bem como a crença na superioridade de um único
modelo estético sobre os demais – no caso, o francês –, fizeram progredir a antipatia
da classe letrada pelo povo e embruteceram seus ouvidos ao clamor áspero da voz
humana que naquela virada de século, pela primeira vez, tornara-se sublime.
Trataremos com mais profundidade deste tema no próximo capítulo.
Dissemos mais acima que os autores de The Round Table não só
reconheceram seu débito para com os ensaios de Steele e Addison, como se
empenharam na imitação de suas maneiras (manners), daquele modo instrutivo e
agradável de falar sobre coisas vãs. Se The Spectator foi bem sucedido no seu projeto
de reformar os costumes, educar a sociedade e trazer a filosofia para a esfera
pública170, haveríamos de concluir, pergunta Hunt aos seus leitores na “Introdução” a
The Round Table (1817), que a sociedade progride em marcha uniforme e triunfante?
De modo algum. Pois, diz o autor: “todo progresso em geral (...) tende a se
168 Boswell, Life of Johnson, p. 1387. 169 Sobre a confluência entre as virtudes cívica e as domésticas, ver o ensaio XXXIX “A Day by the Fire”, de Hunt em The Round Table. Segundo o autor, a contribuição inglesa para a civilização será a de sociabilidade íntima e democrática que os ingleses cultivaram junto à lareira para se protegerem do mau tempo. Em comentário sobre esse ensaio, o importante estudioso do romantismo inglês, Gregory Dart, chama a atenção para as inúmeras referências que o ensaio faz ao mundo clássico (por exemplo, a chaleira transformada em urna grega pela corrosão do tempo), e cujo propósito, diz o crítico, “é transformar um dos ambientes mais comuns e ubíquos da casa em pequeno elo com o passado grandioso, sob a sugestão ousada de que todo aquele que meramente se reúne junto ao fogo, quer ele saiba quer não, participa de uma rica história cultural”. Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: cockney adventures, p. 3. 170 Sobre a forma dialógica e sua proximidade com o mundo da conversação nos ensaios de Addison e Steele e sobre o quanto este método contribuiu para a formação da esfera pública, ver Jürgen Habermas, “Instituições da Esfera Pública”, In. Mudança Estrutural da Esfera Pública, pp. 58-9.
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exceder”171. Ou, nas palavras de Hazlitt, retomando uma formulação de Rousseau: “o
excesso de refinamento produz igual grosseria”172. Como moedas de uso corrente ou
peças de vestuário, “a superfície da sociedade”173, o estilo e as maneiras se esgarçam
com o tempo. Uma de suas consequências – segundo o sarcasmo com o qual Hazlitt
abre o perfil “Mr Coleridge”– é que “a época atual é uma época de faladores
(talkers)”174. Para se reconciliar com o público leitor e contrabalancear a presunção e
a insipidez do excesso de gosto da chamada gente de boas maneiras, fazia-se
necessário ao ensaísta de periódico daquele início de século confessar suas origens
modestas, de costumes um tanto rudes, e a vanidade de escritor – sem a humildade de
fachada e o “orgulho nobiliárquico”175 de um Montaigne. E, ao mesmo tempo, como
advertia Hunt, com o cuidado de não despertar no público o “repúdio à suavidade”176.
Em “On the Literary Character”, ensaio de número XLV de The Round Table,
Hazlitt ironiza aquela fraternidade rarefeita entre os escritores. O tom de censura se
manifesta logo de início com a citação de um longo trecho da resenha de Francis
Jeffrey, editor da Edinburgh Review e seu futuro empregador, sobre Correspondence,
obra do famoso Barão Grimm, há pouco publicada em inglês. No trecho selecionado
por Hazlitt, Jeffrey ressalta o engenho (wit) e a crueldade (heartlessness) como
ingredientes essenciais da sociedade polida: “a mesma irritação pela uniformidade e
paixão pela variedade que conferem tamanha graça às suas conversas [de pessoas da
sociedade polida], porque excluem todo tédio e toda disputa teimosa, tornam essas
mesmas pessoas incapazes de se demorar por um único instante nos sentimentos e nas
ocupações dos outros (...), e as tornam igualmente avessas à simpatia séria e aos
pensamentos profundos”177.
Nas palavras de Hazlitt:
171 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817, pp. 12-13. 172 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 136. A passagem de Rousseau que o trecho evoca é do Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Na continuação do argumento, diz Hazlitt: “Disso decorre o severo sarcasmo de Rousseau ‘Tout homme réfléchi est méchant’”, p. 136. 173 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817, p. 12. 174 CWH, “Mr Coleridge”, 11, p. 28. 175 Starobinski, “É possível definir o ensaio?”, Revista Serrote # 10 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012), p. 45. 176 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817, p. 14. 177 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 132.
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Os literatos não se apegam à pessoa de seus amigos, mas a suas mentes e as
examinam sob a mesma luz com as quais leem os livros de suas bibliotecas, e as
leem até se cansar. Em encontros casuais, a amizade nasce do hábito. A gentileza
mútua gera o afeto mútuo. Os inúmeros e pequenos acontecimentos locais
fornecem, no curso de uma longa intimidade, aqueles tópicos agradáveis de
recordação, os quais são, entre essas pessoas, quase as únicas fontes de conversa.
Há um prazer imediato na companhia um do outro. Mas entre escritores, nada
disso ocorre. As circunstâncias triviais e locais estão aquém da dignidade
filosófica. Nada mais é tolerado senão a esperteza de um, ou a sabedoria do outro
(...). Quando nos cansamos de um livro, deixamo-lo de lado, mas não é fácil
deixar nossos amigos na estante quando nos cansamos de sua companhia. A
necessidade de manter as aparências, portanto, acrescenta ainda mais ao
descontentamento de ambos. Com o tempo, a indiferença estimula o desprezo178.
O ensaísta moderno deve saber reconhecer o lugar do outro na conversa sem
aquela posição ligeiramente superior porém sedutora do gentleman. Ele ou ela já não
se dirige apenas ao leitor dos círculos domésticos e privados (como fazia Montaigne)
ou ao público de leitores elegantes (como faziam Steele e Addison), mas também
acolhe as lavandeiras e as hard-working tecelãs, tais quais aparecem nos ensaios de
Hunt e Lamb respectivamente179.
Por outro lado, diz Hazlitt, “não há nada mais pedante do que a afetação de
liberdade de pedantismo”180. Aquele que escreve quer enredar o leitor “nos labirintos
infinitos de sua imaginação”181. Em comentário sobre esse ensaio, a estudiosa de
Hazlitt, Uttara Natarajan, nos lembra do demasiado solipsismo do autor, apontando o
quanto se expõe e critica a si próprio em “On the Literary Character”182. O uso do
pronome na primeira pessoa do plural (“when we are tired of a book”) reforça seus
laços com a classe de escritores. Ou melhor, talvez devêssemos dizer, com uma classe
específica de escritores. Hazlitt não assumiu a posição senhoril do “fazedor de
178 Idem, p.134. 179 O ensaio de The Round Table de número XLIV, escrito por Hunt, recebe o título “On Washerwomen”, pp. 177-188. Sobre o ensaio de Lamb, ver a nota 79 acima. 180 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, pp. 34-5. 181 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 133. 182 Ver Uttara Natarajan capítulo 5, “Essay Political and Familiar: two aspects of Hazlitt’s ideal”, In. Hazlitt and the Reach of Sense: criticism, morals, and the metaphysics of power, pp. 166-190.
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livros”183, mas antes preferiu aquela cigana do ensaísta de jornal, “que toda noite arma
sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”184. Quase todos os ensaios de The Round
Table foram primeiro confiados à imprensa periódica (The Examiner, Morning
Chronicle, etc.) antes de serem reunidos em livro. Entre a originalidade dos
momentos poéticos, que “cria mundos fictícios em torno de nós”185, e o truísmo mais
corriqueiro, o leitor de The Round Table é frequentemente arrastado para dentro da
movimentação do pensamento de seus autores. Pela força do estilo e pela honestidade
das observações, se exige do leitor uma participação ativa. Desse modo, lembra Hunt,
a mesa redonda é uma expressão tomada de empréstimo tanto daquelas “associações
românticas” que evocam os tempos do Rei Arthur e a távola redonda, na qual se
admitia por membro apenas quem “vencesse o chefe”, quanto de outras, mais ao rés-
do-chão; numa palavra, a “mesa de jantar”186 de todo o dia.
Daí a aposta no estilo conversacional ou familiar de que o trecho acima dá
testemunho. “Como escritor”, diz Hazlitt, “esforço-me por empregar palavras simples
(plain words) e frases próprias ao uso popular”187. Exemplo disso são as frequentes
expressões idiomáticas: they look upon; friendship grows out; nothing will go down;
etc. Acrescenta-se a elas a sintaxe descomplicada e direta, costurada por frases
simples com um número ínfimo de orações subordinadas. Entre uma afirmação e
outra, o leitor pode sentir o efeito contínuo de espontaneidade que o autor
intencionava. Como se pudéssemos “ouvi-lo falar e ver seus gestos”188. Conjunções e
ligações sintáticas são frequentemente omitidas, o que faz com que o leitor suponha o
que muitas vezes é apenas sugerido. Noutras palavras, diz Hazlitt, “o leitor divide a
tarefa da compreensão com o escritor”189 – a contrapelo da tese de Coleridge, reposta
183 A expressão “fazedor de livros” é de Montaigne. Nas palavras do autor: “Sou menos fazedor de livros do que de qualquer outra tarefa”, Os Ensaios, Livro II, p. 675. Em comentário sobre ela, diz Hazlitt: “Montaigne foi o primeiro autor não fazedor de livros e o primeiro que escreveu não para converter os outros a crenças e preconceitos estabelecidos, mas para satisfazer a própria mente com a verdade das coisas”. In. Revista Serrote n. 22, pp. 21-2. Nesse sentido, a passagem de Montaigne e o comentário de Hazlitt põem em cheque a interpretação de Auerbach, quando ele diz: “ele [Montaigne] foi o primeiro faiseur de livres na acepção atual – nem poeta, nem erudito, mas autor de livros: escritor”, Ensaios de Literatura Ocidental, p. 151. 184 Em uma crônica intitulada “O Manifesto”, Rubem Braga expõe o credo e os ofícios do cronista. À diferença dos escritores que “fazem livros que são verdadeiras casas e ficam”, o cronista (ou o ensaísta) de jornal é como o cigano. Crônicas Escolhidas, p. 263 (grifo nosso). 185 CWH, “On the Literary Character”, 4, p. 133. 186 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817. pp. 8-9. 187 CWH, “On Familiar Style”, 8, p. 244. 188 Auerbach, “L’Humaine Condition”, In. Mimesis: a Representação da Realidade na Literatura Ocidental, p. 254. 189 William Hazlitt, “Sobre os Ensaístas de Periódico”, In. Revista Serrote #22, p. 28.
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por Jon Klancher, segundo a qual a falta de conectivos lógicos serve unicamente para
“aliviar a mente do peso das recordações”190.
Assim, na frase: “Nada mais é tolerado senão a esperteza de um ou a sabedoria
do outro” (bem ao gosto do autor por aforismos), a imagem cômica e sádica do
escritor que se ocupa do outro como dos livros de sua biblioteca, até se cansar, recebe
um contorno mais leve. Mas, porque o familiar essay está sempre reinventando seu
objeto, como em uma conversa saudável em que, dizia Hunt, passa-se de um tema ou
de um argumento a outro como se “passam caixas de rapé numa roda de amigos”,
“estimulando a atenção dos leitores”191, a imagem do livro/amigo mal acomodado
sobre a estante dá uma nova inflexão ao argumento. O que se diz aqui é que aquela
amizade compreensiva, sem sacrifício de temperamento entre um e outro, é
insustentável entre escritores – ao menos enquanto se mantém aquele ar de
superioridade que é um dos seus mais desagradáveis e mais frequentes defeitos. “Os
escritores, em geral, são péssimos ouvintes”, diz Hazlitt: “Alguns dos melhores
faladores (talkers) são, por esse motivo, as piores companhias”192.
Por contraste, a exemplo da relação entre o biógrafo e o biografado em Life of
Samuel Johnson, ou a de Montaigne com seus leitores póstumos, os ensaios familiares
(familiar essays) de Hazlitt (sobretudo os que escreveu em parceria com Hunt)
apelam para o entendimento de seus leitores na intimidade e com cordialidade193.
Talvez nenhum outro adjetivo seja mais frequentemente usado por Boswell do que
cordial. Seu sentido é aquele mesmo sentido etimológico que Sérgio Buarque de
Holanda finamente reconstituiu – não por acaso a personagem de Johnson é citada
nesse ensaio seminal da antropologia brasileira194. Entre as muitas idiossincrasias de
190 Apud Jon Klancher, The Making of the English reading audiences, 1790-1832, p. 155. 191 Leigh Hunt & William Hazlitt, The Round Table 1817. p.10. 192 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 39. Em “Hazlitt’s Rhetorical Style”, Ian Patel argumenta que, para Hazlitt, a base para o estilo conversacional é a abertura; isto é, ela é meio pelo qual o escritor se esforça para promover um nível democrático com seus leitores. O cerne da crítica de Hazlitt aos escritores de seu tempo é que eles frequentemente assumiam uma posição oracular, ao invés de sustentar um diálogo em que os argumentos e as opiniões dos outros fossem igualmente acolhidas. “Hazlitt’s Rhetorical Style”, In. The Hazlitt Review Volume 2 (London: The Hazlitt Society), pp. 33-38. 193 Ver Marie Hamilton Law, Chapter V, “Self-Revelation”, In. The English Familiar Essay in the Early Nineteenth Century: The Elements Old and New which went into its Making as Exemplified in the Writings of Hunt, Hazlitt and Lamb, pp. 184-219. 194 Buarque de Holanda lembra um trecho de Life of Samuel Johnson no qual o doutor fazia elogio à educação pela vara, cujo efeito termina em si, “ao passo que se forem incentivadas as emulações e as comparações de superioridade, lançar-se-ão, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmãos e irmãs se detestem uns aos outros”. Raízes do Brasil, “O homem cordial”, (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), p. 145.
101
Johnson, ele nutria um ódio especial pelos escoceses195, com a exceção espantosa de
seu biógrafo. Pois seu preconceito vinha do coração. Para ele, lembra Boswell, “a
amizade é uma gota cordial, ‘para que o caldo nauseante da vida seja absorvido
melhor’”196. “A inimizade”, dizia Buarque de Holanda, “bem pode ser tão cordial
como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem assim da esfera
do íntimo, do familiar, do privado”197. Com suas práticas de ensaístas de periódicos
populares, Hazlitt e Hunt incorporaram essa ética de fundo emotivo para melhor ouvir
os interesses e as necessidades de seus leitores. “Quanto a mim”, dizia Hunt, “um
ensaísta de periódico é o escritor que reivindica intimidade especial com o
público”198. Contudo, a essa ética eles acrescentaram um leve, porém decisivo desvio.
Contra a tirania e a dominação do homem pelo homem, que ressurgia com alarme
naqueles anos pós-batalha de Waterloo e Congresso de Viena, o ideal humanista de
liberdade íntima e compreensão generosa – impresso sob a forma do ensaio – era
domesticado, servido à mesa, resguardado à luz do fogo honesto. A familiaridade se
fazia instrumento político.
195 No seu Dictionary, Johnson define a palavra oats [aveia] da seguinte forma: “grau que, na Inglaterra é usado para alimentar os cavalos; na Escócia, para alimentar os homens”. Samuel Johnson, Dictionary of the English Language (London: J. & P. Knapton, 1755), shelfmark: 680.k. pp.12,13. Registra-se aqui meus sinceros agradecimentos a John Milton, por ter chamado a minha atenção a esta passagem. 196 Boswell, Life of Johnson, p. 1020. 197 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 205 (grifo do autor). Em “Why Distant Objects Please”, Hazlitt diz que seus piores inimigos, os articulistas da imprensa conservadora, sequer merecem dele que ele “os odeie cordialmente”, CWH, 8, p. 263. 198 Leigh Hunt, “On Periodical Essays”, In. The Selected Writings of Leigh Hunt, 6 vols (London: Pickering & Chatto, 2003), Volume 1, p. 35. Sobre o tema, ver Dart “The politics of familiarity”, In. Metropolitan Art and Literature, pp. 10-13.
102
Capítulo 3
As ruas da metrópole: rios de vida humana...
“Dia e noite, sem parar, correntes humanas palpitantes iam e vinham do coração
desta grande transformação, incessante, como sangue vital.”
Charles Dickens, ‘Dombey e Filho’1.
1. O Adversário
“Et voilà la Table Ronde dissoûte”2. A derrota de Napoleão na batalha de
Waterloo acertou Hazlitt em cheio. É bastante conhecido o relato de amigos que o
viram, naqueles meses pós-Waterloo, caminhando pelas ruas com ar circunspecto,
olhos no chão, embriagado, riso triste e passo demorado3. Esse evento, cuja presença
é constante, porém velada, em seus ensaios – “prefiro jamais mencioná-lo”4 –, teve
um impacto decisivo em sua vida pessoal e na forma que viriam adquirir seus escritos
desde então. Ele representou o fim de um ciclo que se iniciara com a Revolução
Francesa e a primeira infância do autor, “quando as esperanças e as expectativas da
raça humana pareciam se abrir no mesmo caminho feliz de nossas próprias”5;
representou também o rompimento com o círculo de escritores, sobretudo os poetas,
para os quais Waterloo significou a salvaguarda das soberanias nacionais, para Hazlitt
o que estava em curso era precisamente “o triunfo do despotismo e da escravidão por
todo o mundo”6; e representou ainda uma gradual abertura e aproximação da gente
comum, de “suas carências e anseios urgentes”7 e de suas formas de expressão.
1 Charles Dickens, Dumbey and Son, (London: Penguin Classics, 2002), p. 245. Citado segundo a tradução de Paulo Henriques Britto, In. Raymond Williams, O Campo e a Cidade, na História e na Literatura (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011), p. 275. 2 CWH, 4, p. xii. 3 O pintor Benjamin Haydon disse a seu respeito: “Parecia prostrado, no corpo e na mente; caminhava ao léu, sem tomar banho, com barba pôr fazer, intoxicado à noite, literalmente, e sem exageros, por semanas. Por fim, despertou, por assim dizer, de seu estupor; abandonou, de uma vez por todas, o estímulo do álcool e a partir de então nunca mais o tocou”. Autobiography, citado a partir de Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 180. Segundo Wu, a afirmação de que Hazlitt abandonou de vez a bebida alcoólica é questionável, pp; 180-1. 4 CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 38. 5 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 18. 6 CWH, “The Life of Napoleon”, 15, p. 259. 7 CWH, “What is the People?”, 7, p. 259.
103
Tudo isso contribuiu para a prosa tersa e argumentativa, o estilo escorreito, o
gosto pela controvérsia e pela provocação, o tom irônico (também auto-irônico) e a
decisiva incorporação da fala coloquial inglesa que caracterizam os ensaios da fase
madura do autor. Não cabe aqui analisar sua louca paixão por Bonaparte.
Ressaltemos, apenas, o sentido que esse evento teve para o autor; isto é, a inversão da
corrente e o corte com a perspectiva da revolução. O novo contexto lhe cobrava um
gesto menos afeito às atitudes do retratista e do amigo, sobre as quais falamos nos
capítulos anteriores. Numa palavra, a resistência à onda conservadora requeria a
oposição dura e exata de um adversário bem armado.
Para uma maior clareza do tom de enfrentamento e das ressonâncias políticas
mesmo nos ensaios mais pessoais do autor, sobretudo os da fase de The Plain
Speaker, que nos interessam em particular, falemos, em linhas gerais, sobre o chão
sóbrio da história à qual eles estão firmemente aderidos. Pelo o que e contra quem se
lutava?
No plano econômico e social, as guerras napoleônicas deixaram a Inglaterra
aos frangalhos. Naqueles anos, segundo Duncan Wu, biógrafo de Hazlitt, “a dívida
nacional chegou a £84 milhões”. As más colheitas e a Lei do Milho [Corn Law]
impulsionavam um contingente migratório que afluía em grande número para os
centros urbanos. Lá, com a introdução de novas tecnologias, essa massa, desprovida
de quaisquer direitos, foi relegada à pobreza e achacada de inúmeras maneiras. “Essas
condições”, continua Wu, “criou dois milhões de indigentes, em um país de dezenove
milhões.”8 O historiador E. P. Thompson lembra ainda que os setores mais atingidos
pela crise foram, justamente, os da indústria básica: “o ramo da relojoaria e a indústria
da seda.”9 Na cidade e no campo, o desemprego e a fome davam o tom geral que
marcaria a sociedade inglesa durante boa parte do século XIX. Em um contexto como
esse, escreveu Hazlitt, era impossível a alguém “se passar por neutro”10. Entretanto,
foi essa a postura dos defensores da legitimidade dos governos nacionais, isto é, de
ambos, liberais e conservadores, cujos sentidos, adormecidos à presença ubíqua da
miséria do povo, só despertaram com muito barulho.
8 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 192. 9 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, Livro 3: A Força dos Trabalhadores, p. 293. 10 CWH, “On the Clerical Character (concluded)”, 7, p. 255.
104
Aqueles anos pós-Waterloo ficaram conhecidos, segundo a formulação
célebre de E. P. Thompson, como “a era heroica do radicalismo popular.”11 À
diferença da década de 1790, quando os poetas e partidários da revolução conceberam
“a ideia da pantissocracia: uma sociedade comunista, livre e igualitária”12, o novo
contexto exigia um impulso mais rente ao chão e que respondesse com firmeza a cada
manobra do Estado de reduzir ao pó os direitos e as condições exíguas das “classes
industriosas”13. Foram elas, diz Thompson, que estavam por detrás do movimento de
reforma parlamentar: a solução imediata que se buscava naqueles dias. Por mais
fragmentado e mesmo frágil que fosse o movimento, ele ganhou forças nas mãos de
homens de imprensa. Entre eles, William Cobbett, a quem devemos a criação da
“cultura intelectual radical”14. Seu instrumento foi o periódico Political Register, a
novidade jornalística que Cobbett lançou no mercado após regressar do cativeiro, em
1812. Vendido semanalmente a preço de banana, o two-penny trash, nome de batismo
que o periódico recebera por parte dos inimigos, informava, em linguagem simples e
direta, os leitores ou ouvintes (pois os panfletos eram lidos em alto e bom som nas
tavernas) sobre “abusos fiscais, corrupção, sinecuras, acumulação de cargos,
benefícios clericais”15, etc., e os convocava à ação.
Duas das principais manifestações populares por melhorias no trabalho e
maior representatividade política, Spa Fields e Peterloo, foram direta ou
indiretamente incitadas por Cobbett, bem como, é claro, por Henry Hunt, “o orador
nas grandes assembleias pela reforma”16. Se a última dessas manifestações, Peterloo,
tornou evidente que a aristocracia não brincava naquele país – ao fim do protesto,
onze pessoas foram mortas e quatrocentas saíram gravemente feridas –, ela “instituiu
(por um paradoxo dos sentimentos) o direito de manifestação pública” 17 , deu
engrenagem à luta pela democracia e fortaleceu os laços entre a intelectualidade e a
vida popular, pois, dizia Hazlitt, “Cobbett não é apenas o mais poderoso escritor
político dos tempos de hoje, ele é também um dos melhores escritores de nossa
11 Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, p. 247. 12 Octavio Paz, Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda (São Paulo: Cosac & Naify e Fondo de Cultura Economica, 2013), pp. 50-1. 13 Em inglês, labouring classes. Expressão da época para se referir à classe trabalhadora. Hazlitt a emprega em diversas passagens de seus escritos. Por exemplo, em “Project for a New Theory of Civil and Criminal Legislation”, CWH, 19, p. 319. 14 Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, p. 467. 15 Idem, 247. 16 Idem, 277. 17 Idem, 427-8.
105
língua.”18 Foi esta última a aposta que fizera a imprensa radical e também, de um
modo todo próprio, o nosso autor.
Neste capítulo, abordaremos a ensaística hazlittiana a partir de suas
interfaces com o movimento radical, ressaltando, entretanto, o que há de singular
nela. Hazlitt investe contra todos os lugares-comuns dos jornais, seja da imprensa
conservadora, liberal ou radical: a liberdade de espírito é a palavra de ordem contra
certas forças opressoras do momento. Ao mesmo tempo, acompanharemos o ensaísta
“caminhando pelas ruas de Londres”19, deslizando entre a multidão anônima. A
intoxicação ou “a alquimia das ruas”20, para fazer valer a expressão de Charles Lamb,
foi o combustível para seguir adiante em um período em que os poetas e antigos
mentores de Hazlitt (Coleridge, Wordsworth e Southey) abandonaram a fé no povo e
“jogavam água fria” em suas “esperanças públicas.”21
2. ‘Good Hater’: resistência à ‘maré furiosa’22.
Henry Crabb Robinson, possivelmente o principal moderador das infindas
disputas entre os escritores do romantismo inglês, sintetizou a fonte do pensamento
hazlittiano na seguinte passagem de seus Diários:
Mais do que qualquer outra pessoa que eu conheça, ele [Hazlitt] mistura suas
paixões, mau-humor e sentimentos pessoais aos juízos sobre os eventos públicos e
as personalidades e isso deprecia enormemente o valor de suas opiniões, que,
dado os raros talentos que possui, seriam de outro modo valiosíssimas. Ele sempre
reivindicou Bonaparte não porque fosse insensível à enormidade de seus crimes,
mas por desprezo aos Tories deste país e aos amigos da guerra de 1792.23
O trecho reflete sua incompreensão ante o ensaísta, partilhada entre os velhos
amigos, quando soube do efeito devastador que a derrota de Bonaparte exercera sobre
18 CWH, “Character of William Cobbett”, 8, p. 50. 19 CWH, “On the Look of a Gentleman”, 12, p. 217. 20 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I (New York: AMS Press, 1903), p. 40. 21 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, Revista Serrote 9, p. 23 e 29. 22 Idem, p. 28. 23 Henry Crabb Robinson, Henry Crabb Robinson on Books and their Writers, Volume I (London: J. M. Dent, 1938), p. 133 (grifo nosso).
106
ele. Crabb Robinson, seu companheiro de bom convívio em outros tempos 24 ,
identificava assim a função cardinal do desprezo, ou do ódio, na confecção das
opiniões do autor, sobretudo no terreno da política. Sua percepção, ao menos num
primeiro momento, está de par com a de Hazlitt: “para ser um verdadeiro jacobino é
necessário a um homem que ele seja a good hater.”25 Porém, como veremos na
sequência, o ódio, para Hazlitt, cumpria antes um papel de resistência e tinha, por
assim dizer, um efeito de expurgação ou de desintoxicação.
A expressão paradoxal e provocativa, “good hater”, não é, como se sabe,
uma invenção dele. Ela fora tomada de empréstimo a Samuel Johnson, que a cunhara
em um contexto igualmente moral e político, porém, em sentido distinto ao de nosso
autor. Em conversa com a sra. Piozzi sobre o amigo que há pouco os deixara, Richard
Bathrust, disse Johnson a seu respeito: “ele odiava um tolo, odiava um trapaceiro,
odiava um whig; foi, verdadeiramente, a good hater.”26 No capítulo anterior, falamos
mais amplamente sobre o sentimento de amor e ódio que Hazlitt nutria por Johnson: o
amor pelo homem, pela “encenação dramática de suas conversas”, pela sua
honestidade, cordialidade e determinação; e o ódio pelo autor, por suas teses
escolásticas, pela “pompa e uniformidade do seu estilo”27 e sua moral melancólica e
debilitada. Das muitas dissonâncias entre ambos, a política era uma delas. Johnson foi
um conservador empedernido, um tóri; por isso o respeito por alguém como Bathrust,
que odiava os liberais, os whigs. Hazlitt, de sua parte, tampouco foi um whig e, desse
modo, o que ele propõe não é uma simples inversão da fórmula johnsoniana, como o
trecho de Crabb Robinson poderia sugerir. A good hater consiste em uma tomada de
posição a contrapelo dos partidos políticos existentes, conservador e liberal, e, em
certo sentido, dos reformadores.
Seguindo a voga crítica sobre o chão histórico, isto é, cultural e político, nos
estudos de romantismo inglês, Kevin Gilmartin oferece, a nosso ver, uma análise
distinta, pois liga os pontos entre a invenção artística e o ensaio de intervenção. Tanto
em seu recém publicado livro, William Hazlitt: Political Essayist (2015), quanto em
trabalhos anteriores, em particular o também brilhante “Afterwords: William Hazlitt –
24 Sobre as relações entre Hazlitt e Robinson, também em conexão com a expressão good hater, ver o artigo de Philipp Hunnekuhl, “Hazlitt and Crabb Robinson: The Commun Persuit”, In. The Hazlitt Review, Volume 6 (London: The Hazlitt Society, 2013), pp. 13-34. 25 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p. 151. 26 Samuel Johnson, Johnson Miscellanies, ed. George Birkbeck Hill 2 vols. (Oxford: Oxford University Press, 1897), i, p. 204. 27 William Hazlitt, “Sobre os ensaístas de periódicos”, tradução minha, Serrote # 22, pp. 37 e 33.
107
a radical critique of radical opposition?”, em Print Politics (1996), o estudioso
ressalta a persistência das convenções retóricas dos radicais, de um William Cobbett,
por exemplo, nos ensaios de Hazlitt: as transições bruscas e inesperadas, a energia de
improviso, “o ritmo combativo, vernacular, atual e mesmo apocalítico”28. Este é o
caso da série “Illustrations of The Times Newspaper”. Publicados orginalmente no
periódico de Leigh Hunt, The Examiner, entre 1º de dezembro de 1816 e 12 de janeiro
de 1817, e reunidos posteriormente em livro, Political Essays (1819), são três os
ensaios que a compõe: “On Modern Apostates”, “On Modern Lawyers and Poets” e
“On the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”. É deste último que extraímos
a passagem sobre, nas palavras de Gilmartin, “a versão jacobina de Hazlitt do ‘good
hater’”. A série ainda faz parte de “uma longa sequência de ataques” à imprensa
conservadora e, desse modo, expressava o “compromisso [do autor] de resistência ao
poder estabelecido e sua filiação ao movimento de reforma radical”. O que se
confirma, segundo Gilmartin, “por um método crítico flexível que explora paradoxos
e contradições”, “urdido por princípios, animosidades e estilos” comuns ao “espírito
predominante do jornalismo popular e radical”.29
Entretanto, se lermos a expressão good hater à luz do hoje clássico ensaio do
autor, “Sobre o Prazer de Odiar”, como o próprio Gilmartin sugere, veremos que, ao
contrário do que diz o estudioso do autor, o ensaio de The Plain Speaker pertence, por
uma via sorrateira, ao “domínio específico da política”, as opiniões ali defendidas são
menos “inflexíveis” e “preconceituosas”30 do que parecem e o ódio se converte em
um bem apenas para aqueles capazes de provar do seu próprio veneno.
A meio caminho, o ensaísta, inquiridor da alma humana, desenreda os “fios
de maldade” em quatro situações específicas: “odiamos velhos amigos; odiamos
velhos livros; odiamos opiniões velhas; e, por fim acabamos por odiar a nós
mesmos”.31 Quanto às velhas opiniões, são, sobretudo, suas opiniões políticas que ele
as coloca na berlinda, como vemos neste trecho do parágrafo que encerra o ensaio:
Em vez de patriotas e amigos da liberdade, vejo apenas tiranos e escravos,
pessoas agrilhoadas a reis nas correntes do despotismo e da superstição. Vejo a
tolice aliada à patifaria juntas forjarem o espírito público e a opinião pública. Vejo
28 Kevin Gilmartin, William Hazlitt: Political Essayist, p. 54. 29 Idem, pp. 17, 15, 47 e 23. 30 Idem, p. 16. 31 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, Serrote # 9, pp. 29 e 19.
108
o tóri insolente, o reformador cego, o whig covarde! Se a humanidade tivesse
optado pelo certo, podia ter conseguido acertar há muito tempo. A teoria é muito
simples, mas tende a erros, ‘impróprios para qualquer boa obra’. Vi tudo o que foi
feito pelas poderosas aspirações do espírito e do intelecto dos homens, ‘dos quais
o mundo não era digno’, e que prometia uma orgulhosa abertura à verdade e ao
bem com uma imagem do futuro, ser desfeito por um único homem, com brilho
bastante do entendimento para sentir que era um rei, mas não para compreender
como poderia ser rei de um povo livre! Vi esse triunfo celebrado por poetas,
amigos de minha juventude e amigos dos homens, mas que foram arrastados para
longe pela maré furiosa que, projetando-se desde um trono, abandonava as
distinções da razão diante da coroa; e vi todos aqueles que não aplaudiram esse
insulto e esse ultraje à humanidade serem proscritos, perseguidos (eles e seus
amigos fizeram disso um provérbio), de modo que se tornou bem compreendido o
fato de que ninguém pode viver de seus talentos ou conhecimentos se não estiver
disposto a prostituir esses talentos e esse conhecimento para trair sua espécie, e
ser um predador de seus pares humanos (...). E a Inglaterra, a arquirrefomadora,
redentora heroica, bravateadora da liberdade e instrumento de poder, fica
boquiaberta, não sente a geada e o mofo se acumulando, nem os próprios ossos
rachando e sendo esmagados sob as garras e as dobras concêntricas deste novo
monstro, a Legitimidade! (...) Vendo tudo isso que vejo, e desenredando a teia da
vida humana em seus vários fios de maldade, despeito, covardia, falta de
sentimento e de compreensão, indiferença para com o outro e ignorância de si
mesmo – vendo o costume prevalecer sobre toda a excelência, a concessão diante
da infâmia –, equivocado como tenho sido em minhas esperanças públicas e
privadas, calculando o outro por mim mesmo, e errando na conta; sempre
decepcionado onde mais tinha confiança; o bobo da amizade, o tolo do amor, não
terei motivos para odiar e desprezar a mim mesmo? Tenho de fato; principalmente
por não ter odiado e desprezado o mundo o bastante.32
Antes de nos determos a uma análise interna, ou estética, da passagem e à
imagem do ensaísta adversário que resiste à maré furiosa com sua crítica vivaz e
mordaz, “quando o costume prevalece sobre toda a excelência”, falemos, em linhas
gerais, deste que é um dos ensaios mais lidos e polêmicos do autor.
De saída, é importante ressaltar que “Sobre o Prazer de Odiar” não é uma
apologia ao ódio. Como bem observou o escritor Phillip Lopate, figura-chave do
ensaísmo norte-americano atual, o ensaísta é antes um observador que toma nota da
32 Idem, pp. 28-9.
109
“presença ubíqua [do ódio] em nossas vidas e tenta dar uma resposta a este fato”33;
mas, vale ressaltar, suas observações não são em nada imparciais. De uma ponta a
outra, Hazlitt mistura a prosa íntima do familiar essay com a perícia do detetive;
acontecimentos de sua vida, suas opiniões e sentimentos (como notara Crabb
Robinson), com a observação desinteressada do antropólogo.
O ensaio se abre com uma descrição em tom narrativo do quarto em
Winterslow (onde confeccionou este e boa parte dos ensaios da fase The Plain
Speaker), quando uma aranha “de espécie edificante” atravessou-lhe o caminho. “Ela
depressa desliza descuidada, cambaleia desajeitada na minha direção.”34 Segundo
Lopate, Hazlitt, neste trecho, “imita a sintaxe dos passos hesitantes da aranha.”35 Seja
pelo seu veneno, pela má intenção a outras criaturas e pela mescla dos sentimentos de
“astúcia, despudor e medo”, a aranha é uma espécie de símbolo da maldade. A
princípio, há um contraste expressivo entre ela e o ensaísta, o que se nota, por
exemplo, no indeciso balanço rítmico daquela e a prosa escorreita e gesto fácil deste:
“quando passa por mim, levanto o tapete para ajudar em sua fuga, feliz por me ver
livre da intrusa ingrata”. Hazlitt não a esmaga “como uma criança, uma mulher, um
clown ou mesmo um moralista do século passado” teriam feito; antes, ele é
condescendente para com ela e a observa com certa empatia. Ainda assim, a simples
visão da aranha desperta nele “uma espécie de horror ou asco supersticioso”. Por um
elo místico, o escritor – homem lido, filho dos progressos civilizatórios – se vê parte
de uma “tribo maldita” que ultrapassa as barreiras do tempo, da cultura ou mesmo da
espécie, e isso sem que qualquer demonstração externa de maldade fosse necessária,
pois, “o espírito malévolo sobrevive a seu próprio exercício”.36
Daí em diante, segue-se uma enxurrada de exemplos sobre esse “prazer
perverso e venturoso na maldade”, colhidos da observação da natureza, da cultura, de
efemérides do dia-a-dia e da literatura: os animais atormentam uns aos outros por
esporte; nos jornais, corremos primeiro às notícias “sobre acidentes e agressões”; os
espectadores preferem deixar o teatro às moscas para assistir a uma execução pública;
os patifes, idiotas ou loucos são motivos de chacota; as efígies de Guy Fawkes são
queimadas anualmente em cada vilarejo inglês; os pregadores evangélicos falam mais
sobre o diabo e o inferno do que sobre Deus e as bênçãos dos céus; “os canibais 33 Philip Lopate, “Hazlitt on Hating”, In. To Show and to Tell: The Craft of Literary Nonfiction, p. 147. 34 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, p. 15. 35 Lopate, To Show and to Tell, p. 148. 36 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, pp. 15 e 16.
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queimam seus inimigos e os devoram em clima de boa camaradagem”; os padres
cristãos lançam, “de corpo e alma”, no fogo do inferno quem quer que deles discorde;
o segredo do sucesso dos romances de Walter Scott se deve aos “preconceitos
arraigados e animosidades fatais” ali narrados, “à medida que lemos, deixamos de
lado os grilhões da civilização, o véu frágil da humanidade”; etc. “Que ser estranho é
o homem!”37
Na segunda metade do ensaio, quando o autor passa a falar de si próprio –
do ódio às velhas amizades, aos velhos livros, às opiniões e a si mesmo –, o tom geral
de desalento e amargor é ainda mais saliente; porém, de quando em quando, ele
aparece sob a capa do humor. É o que se nota nestas passagens: “velhas amizades são
como carnes servidas várias vezes, frias, desconsoladas, intragáveis. O estômago se
revolta”; “uma [bela] passagem, de fato, deixa no palato um sabor de néctar, (...) mas,
se a repetirmos sempre em tom corriqueiro, ela perde o sabor, fica vápida, ‘o vinho da
poesia é bebido, e só resta a borra’”; “quanto às minhas velhas opiniões, estou
profundamente enjoado de todas elas”. O que o humor evidencia, junto às passagens
citadas e segundo a interpretação que propomos aqui, é que o processo de resistência
começa no íntimo. Se o ensaio é um tribunal38, sua tribuna, para o ensaísta adversário,
é o estômago. É somente após ter “cuspido bastante [sua] bile”, examinado todas as
“fontes de insatisfação”, e ter respondido às agressões “com o pior veneno de [sua]
pena”39, isto é, somente após Hazlitt provar do veneno do mundo e de seu próprio que
ele se fortalece e se arma contra a maré furiosa. Em suma, “Sobre o Prazer de Odiar”
é menos o ponto de chegada do intelectual de esquerda desiludido com a vida do que
um exame da paralização necessária a este estágio que chamamos de fermentação.
Por isso a constância de imagens digestivas; por isso, também, o humor
corrosivo e a auto-ironia, que impedem toda fixidez. Mas vejamos de perto o
funcionamento desse princípio malévolo a partir dos argumentos filosóficos, por
assim dizer, que lhes serve de armação.
Investido da mola inquisitiva do ensaio e num primeiro esforço de
compreender a origem de nossos “impulsos mais desbragados”, Hazlitt diz: “sem algo
para odiar, acabaríamos perdendo o próprio ímpeto do pensamento e da ação”; “a vida
37 Idem, pp. 16, 19 e 17. 38 Gyorgy Lukács, “Sobre a Essência e a Forma do Ensaio: Carta a Leo Popper”, In. Serrote, 18 (Rio de Janeiro, Instituto Moreira Sales, 2014), p. 50. 39 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, pp. 20, 27, 28 e 23.
111
se tornaria uma poça estagnada.”40 Não nos parece mera coincidência a semelhança
do argumento com aquele que lemos no Ensaio Sobre o Entendimento Humano de
John Locke: “o incômodo é o principal, senão o único, móbil da ação humana.”41 Há
decerto um consenso entre os estudiosos do romantismo inglês de que nenhum outro
escritor do período estivesse tão afinado quanto nosso autor ao debate filosófico do
século XVIII42. Isso, por sua vez, não o torna um empirista stricto senso. Nos Cursos
de Filosofia Inglesa, ministrados por ele em 1812, Hazlitt se demora ao rebater a tese
lockiana de que a faculdade do entendimento e seus objetos, as ideias, estabelecem
entre si um “circuito da afecção”43 segundo o qual um não subsistiria sem o outro, isto
é, de que a mente não é outra coisa senão uma “tela em branco” que se forma, assim
como as ideias, a partir da justaposição de diferentes impressões sensíveis. Pois, diz
ele, “toda a natureza, todos os objetos e todas as partes que a compõe são igualmente
‘vazias e vagas’. Apenas a mente é formativa, para fazer valer a expressão de um
grande escritor alemão [Kant].”44 Mas em “Sobre o Prazer de Odiar”, sem descer aos
pormenores da discussão filosófica, Hazlitt retoma uma das teses fundamentais da
filosofia do século XVIII, segundo a qual a dor, ou o incômodo, porque nos tira da
zona de conforto, põe em atividade o corpo e a mente de um modo que as sensações
prazerosas jamais seriam capazes de fazê-lo. Mas não a dor pura e simples; antes,
aquela imantada por um sentimento de prazer.
Os ecos da filosofia setecentista se confirmam logo baixo, quando Hazlitt se
vale de exemplos extraídos da Investigação sobre o Sublime e o Belo, de Burke:
Uma cidade inteira está pegando fogo, e o espectador não se anima de jeito
nenhum a desejar que apaguem o incêndio. Seria melhor que apagassem, mas
perderia o interesse; e nossos sentimentos preferem as paixões ao entendimento.
Os homens formam multidões ávidas de entusiasmo para assistir a uma tragédia,
40 Idem, pp. 17 e 16. 41 John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano (São Paulo: Martins Fontes, 2012), p. 238. 42 No trabalho seminal de Elizabeth Schneider, The Aesthetic of William Hazlitt: A Study of the Philosophical Basis of his Criticism (Philadelphia: University of Pennsylvania, 1933), a autora já ressaltava o quanto o pensamento filosófico de Hazlitt estava mais próximo aos autores do século XVIII (Burke, Hume, Smith, entre outros) do que à filosofia de seu tempo, inglesa ou alemã. Ver “Introduction”, pp. 1-9. 43 A expressão é de Pedro Paulo Garrido Pimenta. Ver “John Locke: origem e formação das ideias”, in: Mente, Cérebro & Filosofia: Fundamentos para a Compreensão Contemporânea da Psique 2. (São Paulo: Duetto Editorial, 2007), p. 26. 44 CWH, “On Locke’s Essay”, 2, p. 153.
112
mas se houvesse uma execução em andamento na rua de cima, como observa o sr.
Burke, o teatro logo estaria vazio45.
Na Investigação sobre o Sublime e o Belo, esses exemplos cumprem o
propósito de definir a singularidade do sentimento do sublime, por oposição à beleza.
Nenhum autor antes dele melhor desenredou na alma humana aquela espécie de
prazer em situações “que desejaríamos veemente impedir”, mas, caso acontecessem,
nos regozijaríamos nelas; um prazer, dizia, que de modo algum coincide com a alegria
na contemplação do belo, pois “toldado pelo sentimento de horror”46. O exemplo de
Burke sobre os espectadores, “ávidos por entusiasmo”, que correm para ver a
execução na rua de cima, é, como se sabe, um desdobramento da tópica lockiana
quanto ao fascínio e à predominância da dor sobre o prazer – “o poder de operação do
prazer em nós não [é] tão grande quanto o da dor”47 – e ocorreu-lhe após a leitura de
um dos principais divulgadores da filosofia de Locke no continente, Abbé Dubos.
Assim, o sublime, para Burke, “a mais forte emoção de que o espírito é capaz”48,
guarda semelhanças com aquilo que ficou conhecido de “a poética da inquietude”49, a
saber, a ideia de que a busca por fortes emoções tem sua origem na fuga do tédio –
vale lembrar, a beleza, para Burke, “está próxima de uma espécie de melancolia”50 e
langor.
Será que o mesmo se dá com o prazer de odiar para Hazlitt, que seus
argumentos e exemplos servem antes para compreender por que a calmaria de uma
“poça estagnada” nos é tão aterradora? Sim, segundo a leitura de Lopate. “Depois de
sua estrutura inicial”, diz o ensaísta norte-americano, “o ensaio já não parece, de
modo algum, ser sobre o ódio, mas sobre a nossa inabilidade de sustentar o
entusiasmo”; ou ainda, noutro trecho, “de um ponto de vista psicológico, o que ele
45 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, p. 16. 46 Edmund Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo (Campinas: Editora Unicamp, 2013), pp. 68 e 59. 47 Locke, p. 239. Sobre o tema, ver Luiz Roberto Monzani, capítulo III, “Inquietude”, In. Desejo e Prazer na Idade Moderna (Campinas: Editora Unicamp, 1995), pp. 117-155. 48 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 59. 49 Sobre a expressão, “poética da inquietude”, ver Jean Deprun, “Poetique de L’Inquiétude”, In. La Philosophie de L’Inquiétude en France au XVIII Siècle (Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1979), pp. 65-80. Também sobre o tema, Marcio Suzuki, A Forma e o Sentimento do Mundo: Jogo, Humor e Arte de Viver na Filosofia do Século XVIII. 50 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 154.
113
parece dizer é que não se chega à felicidade que buscamos por cessar a tensão, mas
por uma quantidade apropriada de estímulo, que deve ser sempre calibrada”51.
A hipótese de Lopate é tanto mais verdadeira se lermos “Sobre o Prazer de
Odiar” em paralelo com outro ensaio de The Plain-Speaker, “On Depth and
Superficiality”. Neste, Hazlitt mergulha fundo na alma humana e em sua própria de
um ponto de vista menos distanciado; ao mesmo tempo, ele é mais direto quanto à
ligação entre o prazer de odiar e a fuga do tédio: “o anelo ardente pela excitação
perniciosa e violenta é a causa de nossa indiferença pelo bem e propensão à maldade
(...); mas [é ela] que nos afasta da ennui.”52 Ainda que remédio da alma, a fuga do
tédio não nos parece, entretanto, estar na origem da maldade, como tampouco o era
para Burke. Na explicação do porquê nos deleitamos na contemplação da cidade em
chamas ou na execução pública, diz o filósofo: “fortalecemos”, assim, o nosso
“propósito ativo” de “socorrer o próximo”53; somente o prazer na dor é capaz de
anular a indiferença aos infortúnios dos outros. Hazlitt, que estudou o pensamento de
Burke em todos os seus meandros, aproveita a deixa, que é justa, para desenvolver a
tese, em “On Deapth and Superficiality”, de que o ódio e a inimizade “fortalecem
nosso senso de poder”54. A busca incessante pelo entusiasmo pode e é, no mais, a
contrapartida do tédio. Mas não àquele que participa da realidade com o intuito de
mudá-la. Numa palavra, não ao good hater.
Isto posto, voltemos à passagem acima sobre o ódio às velhas opiniões, bem
como ao seu desfecho implacável e acrimonioso sobre o ódio a si mesmo. Hazlitt
qualifica suas opiniões políticas de velhas e mofadas, e, assim, recua diante delas
como se recuasse de alguém que o magoou mortalmente. Isso se nota pelo modo
como ele as personifica: “elas tristemente me enganaram”. Por isso ele as observa
desconfiado e com certo distanciamento, sem o “ardor da afeição”, como velhos
amigos que “passam uns pelos outros nas ruas como estranhos ou, se param para
falar, fazem-no friamente e tentam encerrar o assunto o quanto antes”55. O próprio ato
de observá-las, a atitude do antropólogo desinteressado, expressa um recuo necessário
porém estratégico – não é se lançando contra a maré furiosa que se pretende vencê-la;
por isso também o recurso à figura de linguagem da anáfora: o verbo ver – “vejo”, 51 Lopate, To Show and to Tell, pp. 156 e 150. 52 CWH, “On Depth and Superficiality”, 12, p. 349. 53 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, sobretudo, a Seção XIV “Os efeitos da simpatia pelos infortúnios de nossos semelhantes”, pp. 66-7. 54 CWH, “On Depth and Superficiality”, 12, p. 349. 55 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, pp. 28 e 20.
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“vi” – marca o início de cada sentença, de cada uma das velhas opiniões que desfilam
diante dos seus olhos. O emprego da repetição enfática, como observa Northrope
Frye, é uma característica peculiar à “retórica de ataque ou invectiva”56. Assim,
Hazlitt se mostra um observador a um só tempo arguto e abrasivo. A escolha do
verbo, bem como a alteração brusca, no meio do parágrafo, do tempo verbal – do
presente para o pretérito –, fazem-no uma espécie de visionário ou profeta, pois,
vendo a história em seu fluxo inclemente, um futuro se anuncia e este, dado o tom
geral do ensaio, assume um ar apocalíptico. Como observou Gilmartin, este é um dos
traços retóricos centrais à imprensa radical. Por meio dele os jornalistas expunham ora
“os pesadelos da realização catastrófica de um sistema de corrupção e exploração”,
ora “visões extáticas da súbita libertação popular da tirania e da desapropriação”57. No
trecho, as citações bíblicas, Epístola de Paulo a Tito e Hebreus, respectivamente, e a
comparação da Legitimidade a um monstro – quase uma besta do apocalipse, com
“suas garras e dobras concêntricas” – confirmam a adesão de Hazlitt às estratégias
retóricas dos radicais. O mesmo não ocorre, entretanto, com a resposta final que o
autor dá à pergunta que colocara antes: teria ele motivos para odiar a si mesmo? Sim,
“por não ter odiado e desprezado o mundo o bastante”.
Ficamos sem chão! A aranha reaparece rastejante agora na figura do ensaísta
“desenredando a teia da vida humana”. Seria um desfecho resignado, melancólico? A
aranha, como lembra Starobinski, a propósito de Baudelaire, faz parte do bestiário da
melancolia58. Mas, para Hazlitt, ela possui ainda outro sentido. No “Prefácio” aos
Ensaios Políticos, a aranha é símbolo do que há de mais maléfico, a Legitimidade:
“não sou leproso”, diz o autor, “as mentiras da Legitimidade não infringiram o veneno
mortal no mais íntimo de minha alma, tampouco, como uma aranha repulsiva,
enredou-me em suas dobras viçosas; não, ela se mantém à distância e se revolve em
seu próprio veneno.”59
Teria ele se permitido “uma dose extra de bile em [seu] estômago”, daí a
recorrência da “metáfora da ‘intoxicação’”, que, segundo Frye, é “frequentemente
empregada para a perda de controle retórico”?60 Um dos pontos que distinguiu Hazlitt
de outros jornalistas radicais, como Gilmartin frequentemente revela em seu estudo, 56 Northrop Frey, Anatomia da Crítica: Quatro Ensaios, p. 494. 57 Gilmartin, William Hazlitt: Political Esayist, p. 136. 58 Starobinski, A Melancolia diante do Espelho: Três Leituras de Baudelaire (São Paulo: Editora 34, 2014), p. 47. 59 CWH, “Preface”, 7, p. 10. 60 Frye, Anatomia da Crítica, p. 495.
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foi o fato de ele “se valer da linguagem do inimigo”61. Assim, o ensaísta adversário,
good hater, é aquele que aprendeu a nadar “no meio da corrente”62.
3. A Imprensa Periódica: o escritor ‘no meio da corrente’.
Das velhas amizades de Hazlitt, uma das poucas que não “escasseou, como a
neve do ano passado”63, foi a do pintor James Northcote. Antigo discípulo de Joshua
Reynolds, que na juventude travara amizade com Johnson e seu círculo, suas anedotas
exerceram grande fascínio em Hazlitt desde o primeiro encontro, em 180264. Este teve
Northcote como uma espécie de mentor ou conselheiro. Por anos frequentou o seu
ateliê, tomou nota de suas entrevistas e, no fim da vida, as reuniu em Conversations of
James Northcote (1830), obra que imita, como vimos no capítulo anterior, Life of
Samuel Johnson, de Boswell. As conversas giram em torno dos assuntos os mais
variados; mas, volta e meia, alguns temas reaparecem: as artes plásticas, a vida dos
pintores, a aplicação aos estudos, a diferença entre gênio e talento, entre outros. Na
décima primeira conversa, há uma passagem valiosa, pois momento raro em que
Hazlitt define o modo como concebe o ato de escrever ensaios. Northcote contava-lhe
sobre seu ofício de pintor: quando uma encomenda caia em suas mãos devia “começá-
la de uma só vez; do contrário, não consigo fazer nada (...). Metade das tarefas que
alguém não é capaz de vencer”, continua Northcote, “vem do medo de sequer tentar”
Em resposta, diz Hazlitt:
Deparei-me com algo muito parecido com o que disse quando comecei a
escrever para a imprensa. Não havia, até então, adquirido qualquer hábito de
escrita ou ficava rodeando um tema por muito tempo; mas percebi que com a
necessidade veio a fluência. Fiz alguma coisa; agarrei-me a ela; e fui convocado
a fazer inúmeras outras e de uma só vez. Estava no meio da corrente; era
afogar ou nadar65.
Neste trecho, a confecção de uma obra de arte ou de um ensaio para a
imprensa se encontram em dois pontos cruciais: 1. sem dedicação e impulsos
61 Gilmartin, William Hazlitt: Political Esayist, p. 90. 62 CWH, “Conversation the Eighteenth”, 11, p. 288. 63 Hazlitt, “Sobre o Prazer de Odiar”, p. 20. 64 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 79. 65 CWH, “Conversation the Eighteenth”, 11, p. 288.
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vigorosos, nada se faz; 2. é pelo hábito, ou repetição, que vem a destreza: “the more
we do, the more we can do”66. Mas a comparação para por aí. Na sequência, diz o
autor, seus ensaios não eram outra coisa senão “textos de ocasião”. Próximos à “fala
extemporânea”67, eles mal ficariam de pé na estante. Na melhor das hipóteses, a
proficiência do ensaísta, homem de imprensa, se equipara à do artesão. Como “o
vidraceiro que conforma o fluído vítreo com celeridade” ou “como bolhas em um
córrego agitado”, “as expressões apropriadas brotam na superfície do calor ou da
fermentação da mente”68. Table Talk e The Plain Speaker estão apinhados de
exemplos sobre o caráter efêmero e mesmo menor desse gênero de escrita: “não tenho
prazer algum em escrever esses Ensaios (...). Quando me ponho a fazê-lo, minha
única ansiedade é de chegar logo ao fim”69; “que aberrações são esses Ensaios!
Quantos erros, quantas transições mal remendadas, quantos raciocínios tortuosos,
quantas conclusões mancas!”70 Humildade de pura fachada? Em certo sentido, sim.
Mas esse não nos parece ser o ponto aqui. Hazlitt sabia que ensaio inclui a
contingência, sobretudo enquanto pedaço de página de um instrumento de grande
divulgação. Filhos do jornal e da era da máquina, eles não tinham pretensão de durar.
Passado um século desde que a literatura, pela primeira vez, penetrara fundo
no jornal, com The Tatler e The Spectator, ela, argumenta Hazlitt, tornou-se mais
popular e democrática. Muito se discutiu na fortuna crítica do autor sobre a sua
ambivalência frente ao fenômeno de massificação nas artes71. Por um lado, há um
enlevo elitista no excerto: “o sufrágio universal, por mais aplicável que seja em
matéria de governo (...), não o é em matéria de gosto”72; por outro, diz ele, “todos os
poetas, sábios e heróis pertencem originalmente e por direito ao povo”73, como
antípoda do privilégio. Longe de propormos uma resposta definitiva ao problema,
vejamos como ela traduz as inquietações de um desejo sempre insatisfeito daquele
que, a exemplo de nosso autor, reconheceu que era forçoso nadar para não se afogar.
66 CWH, “On Application to Study”, 12, p. 60. 67 CWH, “Conversation the Eighteenth”, 11, p. 289. 68 CWH, “On Application to Study”, 12, p. 62-3. 69 CWH, “On the Pleasure of Painting”, 8, p. 6. 70 CWH, “The Indian Jugglers”, 8, p. 79. 71 Sobre o tema, ver, por exemplo, John Barrell, “Benjamin Robert Haydon and William Hazlitt: Two Encyclopaedia Articles”, In. The Political Theory of Painting from Reynolds to Hazlitt ‘The Body of the Public’, (New Haven: Yale University Press, 1986); John Whale, “Hazlitt on Burke: The Ambivalence Position of a Radical Essayist”, In. Studies in Romanticism, Volume 25, (1986); e Kevin Gilmartin, “Conclusion: Radical Politics and the Arts”, In. William Hazlitt: Political Essayist, 2015. 72 CWH, “Why the Arts are not Progressive – A Fragment”, 4, p. 164. 73 CWH, “What is the People? (concluded)”, 7, p 269.
117
Numa publicação da Edinburgh Review de 1823, “The Periodical Press”,
Hazlitt traça um panorama dos principais jornais e revistas literárias inglesas, “o
grande opróbio de nossa literatura”. Mas o tom não tem tanta censura quanto a
passagem sugere. Hazlitt abre o ensaio ironizando aqueles que se perguntam se “a
crítica em periódicos é, no todo, favorável ou não à causa da literatura”; ou se
Shakespeare e outros grandes homens de gênio do passado conseguiriam produzir
suas obras num tempo em que tudo passa pelo escrutínio do jornal, este “viveiro da
crítica”. Não é por aí que se chega a uma solução do problema. Afinal, pergunta
Hazlitt, não são Lorde Byron e Walter Scott exceções à regra, posto que escritores
populares cujas obras trazem em si imenso valor literário? Se em cinco ou dez anos
elas ainda serão lidas ou se terão adquiridos o ar mofado de velharias, às quais só se
retorna por curiosidade histórica, “só o tempo dirá”. Também em tom irônico, conclui
o autor, “a crítica em periódicos é favorável à crítica em periódicos.”74 A partir daí
segue-se uma longa discussão sobre um dos temas fulcrais da crítica hazlittiana, como
bem observou David Bromwich75, a saber: não há progresso nas artes.
A tese não é decerto original, tampouco ele pretendeu que a fosse. Há nela
ecos da crítica que o precedera, sobretudo do século anterior. Entrementes, vale
ressaltar que a metáfora da corrente que temos perseguido aqui e aplicado à imprensa
captura um traço característico das letras na era da máquina: as águas turvas de uma
multidão anônima de escritores e leitores.
O mote do raciocínio hazlittiano pode ser resumido na seguinte fórmula:
quanto mais uma sociedade progride em conhecimento e refinamento, mais as artes
perdem em vigor, gênio criativo e sublimidade. No ensaio de The Round Table, “Why
the Arts are not Progressive?”, diz ele: “Os maiores poetas, os mais hábeis oradores,
os melhores pintores e os mais perspicazes escultores que este mundo já viu surgiram
pouco depois do nascimento dessas artes e viveram numa sociedade, sob outros
aspectos, comparativamente bárbara.”76 Este modelo de perfeição, como qualquer
outro, implica florescimento, decadência e “a suposição de um ponto máximo a que se
pode alcançar nas artes”77, como bem observou Márcio Suzuki acerca de David
Hume. Segundo o argumento específico de Hazlitt, por ironia do processo histórico,
chega-se cedo demais a esse modelo de perfeição. O mundo jamais verá outro 74 CWH, “The Periodical Press”, 16, pp. 239, 211 e 212. 75 David Bromwich, “Why the Arts are not Progressive”, In. Hazlitt: The Mind of a Critic, pp. 104-149. 76 CWH, “Why the Arts are not Progressive – A Fragment”, 4, p. 161. 77 Suzuki, A Forma e o Sentimento do Mundo, p. 20.
118
Homero, outro Ésquilo, outra Safo; não apenas porque foram os primeiros, mas
porque levaram à perfeição a arte que, se não as inventaram, contribuíram para dar o
acabamento formal a seus respectivos gêneros: épico, dramático e lírico. Todas as
alternativas estariam cortadas, restando apenas a decadência ou mesmo o fim da arte,
se Hazlitt não incluísse outras duas variantes: uma forma artística floresce sobre a
matéria morta daquela que a antecedeu; e “cada época ou nação possui um padrão que
lhe é próprio.”78
Quanto a este último argumento, um lugar-comum às poéticas do
romantismo, o que o autor diz, por um lado, é que só se pode julgar o mérito de uma
obra a partir de valores circunscritos “dentro de limites locais e temporais”79; por
outro, como não há nenhuma nação que subsista isoladamente, ao menos na
modernidade, o contato com o diferente estimula o espírito de emulação; o vigor
criativo floresce na vacância. Dante não é superior a Milton, nem este àquele; antes,
cada qual atingiu a perfeição na poesia épica de suas respectivas línguas porque
souberam trabalhar sobre um material herdado, porém em solo ainda pouco cultivado.
Além disso, a barbaridade de suas épocas, as inúmeras dificuldades que se
interpunham entre a vontade e a ação, cobrava-lhes um gesto firme e expressivo.
Nada mais congênere à natureza da poesia, que, segundo Hazlitt, “é a linguagem da
imaginação, das paixões, da fantasia e da vontade.”80 Não há como não reconhecer no
argumento a herança de Rousseau ou de Burke, sobre a qual nos detivemos no
primeiro capítulo. Para aquele, a energia expressiva da palavra, própria aos antigos,
foi substituída pela necessidade de clareza do homem civilizado, daí o declínio da
eloquência entre os modernos81; para este, as línguas antigas ou orientais são tanto
mais sublimes porque dotadas “de uma grande força e energia de expressão” e porque
nelas a imaginação prepondera sobre o entendimento, isto é, sobre “as distinções
rigorosas.”82
Hazlitt também encontrou na modernidade uma diminuição gradual da força
da imaginação, que foi substituída pelo rigor do entendimento. A consequência disso,
como veremos a seguir, não implica a anulação do entusiasmo, mas a busca por
78 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 215. 79 Idem, p. 216. 80 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 8. 81 Jean-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a Origem das Línguas (Campinas: Editora Unicamp, 2003), pp. 175-6. Sobre o tema, ver Bento Prado Jr., A Retórica de Rousseau e outros ensaios (São Paulo: Cosac & Naify, 2008), pp. 118-9. 82 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 213.
119
outros, ainda que efêmeros e insaciáveis: os fatos corriqueiros e sem foros de
grandeza veiculados pela imprensa.
A primeira variante ao mote exposto acima (de que um gênero artístico
floresce sobre a decadência de um outro), está, como se pode entrever, intimamente
ligada ao segundo. “A tragédia alcançou o ápice na França quando ela estava em
declínio entre nós”; assim como, em termos gerais, “a comédia floresceu com o
declínio da tragédia.”83 A explicação, é claro, não pressupõe uma visão absoluta da
história, pois a sua marcha não caminha no mesmo passo em diferentes nações;
tampouco segundo um fim preconcebido. À luta encarniçada por um ideal, que eleva
alguns homens acima dos demais com a corporificação da grandeza de caráter,
seguiram-se “as imagens de graça, de alegria e de prazer redobrado (...) sobre a
perspectiva de uma vida humana”84 não dignificada. Com o advento da comédia, a
literatura se mundanizou, novos caminhos se abriram e “novos pedaços de terra, antes
negligenciados, foram cultivados”. É verdade que sobre um solo mais amplo, melhor
distribuído e, portanto, menos rico em minerais preciosos. Em outras palavras, a
literatura e o mundo se tornaram mais prosaicos. “A partir daí”, diz ele, “os ensaístas
de periódico, Steele e Addison, sucederam nossos grandes escritores de comédia; os
romancistas (Fielding, Sterne e Smollett) sucederam aqueles; e cada um deles nos
legou obras superiores ao que se produzira antes, ou ao que viria a se produzir desde
então”85 – é verdade que Hazlitt não previra a extensa e rica cultura do romance que
floresceria em seu próprio século nas mãos de um Charles Dickens, por exemplo86.
Seja como for, as condições para o surgimento do romance e do ensaio em periódico
– a difusão do conhecimento, a formação do público leitor, “a aproximação e
amálgama dos diferentes estratos sociais”, entre outros – foram amplamente
analisadas por ele em “The Periodical Press”. Vendo o fluxo da história desaguar em
solos mais amplos, aplainados e agrupados nos centros urbanos, Hazlitt, aqui, parece
acertar em seu prognóstico: “o monarquismo da literatura está com seus dias
contados.”87
83 CWH, “The Periodical Press”, 16, pp. 215 e 214. 84 CWH, “On Wycherley, Congreve, Vanbrugh, and Farquhar”, 6, p. 70. 85 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 215. 86 Sobre as inúmeras conexões entre Dickens e Hazlitt, ver Tom Paulin, “Hazlitt’s Influence on Dickens in Baraby Rudge”, In. The Hazlitt Review, vol. 2 (London: The Hazlitt Society, 2009), pp. 5-20. 87 Idem, pp. 218 e 220.
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Se “os postos mais elevados já foram ocupados”, o que nos resta senão um
gênero literário menor, porém mais perto de nós? Se há uma classe de “escritores que
pode lograr alguma reputação acima das águas são os críticos anônimos” da imprensa
periódica. A época atual é a época da crítica. “Que assim o seja”, diz Hazlitt,
“sejamos críticos, caso contrário, não seremos nada.”88
A conclusão a que Hazlitt chega ganha em concretude a partir de uma análise
do momento histórico e de um dos traços característicos do ensaio inglês naquele
início de século XIX, o anonimato. Este é o tema da segunda metade de “The
Periodical Press”. Falemos dele, de sua relação com o surgimento da primeira
metrópole moderna, Londres, e da posição do escritor, Hazlitt, nesse mar de
periódicos.
“Há mais pessoas em Londres do que em qualquer outro lugar”89, disse
Hazlitt. De fato, “[Em 1800]”, segundo o importante estudioso de romantismo inglês,
James Chandler, “com uma população de quase um milhão de habitantes, nenhuma
outra cidade europeia ultrapassava o tamanho de Londres. No resto do mundo
(segundo as melhores estimativas), apenas Edo (Tóquio) e Pequim eram maiores.
Paris, por muito tempo a rival cultural de Londres, tinha aproximadamente metade da
população”. “Entre 1800 e 1850”, continua Chandler, “a população de Londres
dobrou, sustentando seu crescimento a despeito do fato de que a cruel taxa de
mortalidade excedia a de natalidade.”90
Com esse crescimento vertiginoso, e favorecidos pela expansão do público
leitor, algumas dezenas de jornais, Magazines e cadernos de resenhas pipocavam ano
após ano em uma metrópole a plenos vapores da Revolução Industrial. Em seu
brilhante estudo sobre o tema, Las Mesas de Plomo, Alfonso Reyes reproduz as
cifras: em 1821, na Inglaterra “se publica um periódico para cada noventa mil
habitantes; em 1832, um para cada cinquenta e cinco mil.” 91 John Walter II,
proprietário do jornal The Times, introduziu a novidade tecnológica, o sistema de
impressão por máquina a vapor, The Koenig92. A tiragem em larga escala e a maior
facilidade na distribuição permitiram que estipêndios regulares fossem criados aos
88 Idem, pp. 215, 221 e 213. 89 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 68. 90 James Chandler and Kevin Gilmartin, Romantic Metropolis: The Urban Scene of British Culture, 1780-1840 (Cambridge University Press, 2005), p. 2. 91 Alfonso Reyes, “Las Mesas de Plomo”, In. Obras Completas de Alfonso Reyes (Mexico D. F.: Fondo de Cultura Economica, 1955) p. 344. 92 The History of The Times: “The Thunder in the Making”, 1785-1841, p. 132.
121
articulistas; alguns eram muito bem pagos. A novidade editorial, de sua parte, veio
dos Magazines mensais (Gentleman’s Magazine, London Magazine, New Monthly,
Blackwwod’s, entre outros), os quais passaram a contar com uma miscelânea de
material literário, como resenhas críticas, relatos de viagens, sketches urbanos,
ensaios pessoais, ensaios analíticos, contos de terror, estórias de assassinato, poemas,
etc. Isto é, eram verdadeiros armazéns literários, no sentido primevo do termo93.
Junto aos salários e às inovações tecnológicas e formais surgia uma classe
até então inexistente, o escritor free-lance de profissão. Hazlitt esteve no epicentro
desse processo, posto que se dedicasse, como poucos, à forma literária de grande
influência na Inglaterra de seu tempo: o ensaio. Nas palavras do estudioso do período,
Lee Erickson, “os escritores de ensaios, segundo reflete o mercado editorial pela
forma, estiveram no centro das atenções públicas nos anos de 1810 e 1820 de um
modo como jamais ocorrera antes ou ocorreria depois.”94 Também por motivos
econômicos, Hazlitt condensa o perfil do novo escritor. Segundo ele mesmo dizia
sobre a classe operária, a sua vida foi uma luta “from hand-to-mouth.”95 Nesse
contexto, como fazer de seus talentos e conhecimento um ganha-pão sem “prostituir
esses talentos e esse conhecimento para trair sua espécie”, segundo o trecho de “Sobre
o Prazer de Odiar” que lemos acima? Entre outras alternativas estava o anonimato.
No extenso estudo sobre o tema, The Making of English Reading Audiences,
1790-1832, Jon Klancher argumenta que o anonimato foi um meio pelo qual os
articulistas da classe média letrada logravam alcançar um desprendimento das
próprias posições políticas e de classe a que eles e o jornal pertenciam e, desse modo,
formar uma audiência de leitores também ela capaz de semelhante exercício de
abstração. Na continuação do argumento, Klancher expõe o que segundo ele é a
intenção oculta dessa prática, a saber, o projeto de disseminação dos valores da classe
média. Noutras palavras, a identidade do escritor ou leitor burguês se define pela
própria capacidade de se abstrair de si mesmo e da sociedade, como se pairassem
acima do tecido social, transformando-os em objeto de conhecimento96. Entretanto, e
93 Sobre a discussão do tema em língua portuguesa, ver Alexander Eulálio, “O Ensaio Literário no Brasil”, In. Serrote 14, pp. 7-53; e Vilma Arêas “O Armazém Literário de José Paulo Paes”, In. José Paulo Paes, Armazém Literário: Ensaios (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), pp. 7-14. 94 Lee Erickson, The Economy of Literary Form: English Literature and the Industrialization of Publishing, 1800-1850 (Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1996), p. 89. 95 CWH, “A Reply to the Essay on Population by the Rev. T. R. Malthus”, 1, p. 337. 96 Jon Klancher, “Reading the Social Text”, In. The Making of English Reading Audiences, 1790-1832, pp. 47-75.
122
seguindo as valiosas observações de Gregory Dart e Erickson97, o argumento de
Klancher é falho em um ponto crucial. Ao insistir sobre um único lado da equação, a
formação das audiências de leitores, Klancher esquece que também a posição do
escritor profissional passava por profundas transformações e era menos inequívoca do
que o estudioso dá a entender. Na prática, isso significava que não apenas pudesse
haver diferenças entre as posições políticas ou de classe entre o editor e o articulista,
como o anonimato assumia outras funções. Sobre o tema, vale lembrar as palavras
certeiras de Alfonso Reyes:
O anonimato se tornou a via de regra do periodismo inglês; permitindo maior
liberdade ao escritor, tanto para dizer a verdade quanto para fazer transações
entre o seu critério pessoal e o do periódico, conquanto a força maior tivesse
respaldo na responsabilidade coletiva. Além disso, vendo as coisas de fora, o
anonimato concedeu ao periódico uma unidade imensa de combate coordenado,
um ‘tanque’.98
É verdade que esse “combate coordenado” era partilhado pelas imprensas
conservadora, liberal ou radical, e nos casos em que a “vitória, não a verdade, era o
objetivo”99, ele fornecia ajuda recíproca entre os adversários. Mas a batalha era dura e
desigual. As agitações populares pela reforma parlamentar foram sucedidas por
medidas drásticas que dificultaram, quando não impediram, a circulação de jornais
que expressassem opiniões políticas contrárias ao poder estabelecido. Entre elas,
talvez a mais importante, o Newspaper Stamp Duties Act (1819): a partir de então,
todo jornal que veiculasse sobretudo opiniões ao invés de notícias, se não viesse com
o selo da coroa, no valor de quatro penies, era retirado do mercado. A medida
“constituiu o principal divisor de águas de uma legislação que restringia a liberdade
97 Lee Erickson, “Ideological Focus and the Market for the Essay”, In. The Economy of Literary Form, pp. 71-103; e Gregory Dart, “Romantic Cockneyism: Hazlitt and the Periodical Press” In. Romanticism, 2000. 98 Reyes, Las Mesas de Plomo, p. 346. 99 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 234.
123
de imprensa (...) e pôs fim ao Political Register de Cobbett [o two-penny-trash] entre
outros jornais radicais.”100
Via de regra, os jornais para os quais Hazlitt contribuiu não sofreram
semelhante represália; menos ainda os contribuintes anônimos (diga-se de passagem,
o anonimato não era uma prática tão comum à imprensa radical). Entretanto, se a
literatura de folhetim veio para ficar, suas páginas avulsas, ora submergiam na
corrente, ora dela emergiam com “o bramido da cidade”, a voz do povo. Como Hazlitt
metaforicamente definiu em “The Periodical Press”, “The Times segue o fluxo da
maré; navega rio acima”; “forte, porque sempre do lado dos mais fortes”. A grande
imprensa é “o pulmão da metrópole britânica.”101 Assim, Hazlitt, o good hater,
quando nela se infiltrava, trazia o leitor para perto do baço: íntimo, porém corrosivo.
Ao contrário dos articulistas ligados à imprensa conservadora, como veremos
a seguir, os ensaios anônimos de Hazlitt traziam a marca do autor: falavam
abertamente dos seus gostos, aversões, opiniões políticas, mesmo quando estas
divergissem da linha editorial do jornal – uma das razões do porquê jamais se firmara
nesta ou naquela imprensa –; contavam anedotas e situações do dia-a-dia, vividas por
ele ou por amigos; reportavam os leitores a outras de suas publicações, quer na forma
de artigo ou de livro; até mesmo suas fraquezas e preconceitos frequentemente
vinham estampados nas páginas do jornal. Ao correr por elas, seus leitores mais
assíduos identificariam o autor de bate-pronto. O anonimato, portanto, não era um
disfarce ou uma estratégia editorial para angariar leitores. Antes, tratava-se de uma
identificação empática com o público, também ele anônimo, e uma maneira de
imprimir sobre o texto a figura do escritor que caminha ao léu pelas ruas da
metrópole.
4. Na rua, com os homens: cockneyism e águas rasas.
A desilusão de Hazlitt quando os velhos amigos desertaram a causa do povo,
“viraram a casaca”102, para fazer valer a sua expressão, foi imensa! Doía-lhe como
canivete na carne vê-los tecendo louros à monarquia inglesa. Ao fim e ao cabo, ele
encontrou antídoto tanto em uma forma de pensar, em que discutir era combater,
100 A. Aspinall, Politics and the Press, 1780-1850, p. 59. Ver, também, William H. Wickwar, “The Press and the Reform Crisis, 1819”, In. The Strugle for the Freedom of the Press, 1819-1832, pp. 49-81. 101 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 225. 102 CWH, “Arguing in a Circle”, 19, p. 277.
124
quanto em uma gradual aproximação da gente inglesa, sobretudo da cidade; o que se
reflete em seus ensaios na estilização culta da linguagem popular. Ambas as
alternativas confluíram para que ele jamais se deixasse confundir com o indivíduo
recluso na solidão da cidade grande. Os ensaios da fase madura, fortemente inspirados
em The Tatler, são coalhados de tiradas espirituosas, gossip, visões e figuras londrinas
do período da Regência: murais de anúncios, tráfegos fervilhantes, vitrines, dândis,
lacaios, esportistas, malabaristas de rua, entre outros. Frequentemente o encontramos
na rua, com os homens, ou em bate-papos nos cafés sob as fumaças de “Virginia ou
Oronooko”, que se misturam às “densas nuvens que pairam sobre a metrópole.”103
Neste homem das ruas (man-about-town), flagrante da natureza humana na vida
londrina, notamos uma aproximação a um cotidiano que não é exatamente, em termos
de classe, o seu, mas o é em termos culturais; uma cultura cockney, como o autor
define no ensaio de The Plain Speaker, de que nos ocuparemos aqui: “On Londoners
and Country People”.
Hazlitt, junto a outros escritores do período, absorveu a metrópole inglesa em
seus textos e contribuiu para inaugurar a cidade moderna como objeto literário,
orientada, sobretudo, a uma percepção em que realidade e fantasia se confundem:
“um verdadeiro cockney (...) é a mais mecânica de todas as criaturas; e, no entanto,
ele vive num mundo romanceado, um conto de fadas todo seu.”104 Em certo sentido,
Hazlitt foi convocado a tomar o partido da cidade quando a imprensa conservadora,
mais propriamente o periódico escocês Blackwood’s Magazine, armou-se para refrear
os impulsos políticos radicais e populares daqueles anos de resistência. Foi então que
a expressão cockney school apareceu pela primeira vez, em 1817.
Naquele ano, o Magazine publicou o primeiro de uma série de ensaios, que
se estenderia por quase sete anos, sob o título “On the Cockney School of Poetry”. O
objetivo era expor o que o autor, Z. (o anonimato, como vimos, era uma prática
frequente na imprensa inglesa da época), chamou de a “depravação moral” e a
inconsistência artística e intelectual de escritores “de baixo status social e de maus
hábitos.”105 Por isso o epíteto cockney.
103 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 70. 104 Idem, p. 68. 105 The Blackwood’s Edinburgh Magazine (London: Edinburgh and T. Cadell and W. Davies, 1817-18), pp. 40 e 39.
125
Segundo o minucioso trabalho histórico de um importante estudioso no
assunto, Gregory Dart106, bem como o trabalho seminal de Jeffrey N. Cox107, o
cockney foi, por quase quatrocentos anos, uma figura cômica e, portanto, de baixo
estrato social na cultura inglesa. Sua presença é notável em autores como Chaucer e
Shakespeare. A etimologia do termo é incerta. Para alguns, a palavra deriva de
Cocanha, terra mítica de abundância, liberdade, ócio e prazeres absolutos (o próprio
Z. usa o termo cockaigne para zombar das aspirações libertárias – e libertinas – de um
grupo de “origem plebeia”108); para outros, de coken-ey, forma incorreta de cock’s
egg; ou ainda, do francês arcaico, coqueline, isto é, criança afeminada ou mimada109.
Seja como for, o termo se consagrou na literatura e cultura inglesa para se referir a um
tipo social, uma espécie de caipira da metrópole. Em Rei Lear (Ato II, Cena IV),
lembra Dart, o tolo interrompe um dos acessos de loucura do rei com a história do
cockney que demonstra completa inaptidão diante das questões práticas, sobretudo
quanto aos trabalhos no campo. Noutras palavras, a vida urbana transformou o
cockney em um tipo paradoxal, raso, satírico por excelência; sua “presunção”, diz
Hazlitt, “caminha no mesmo passo da ignorância.”110 Nesse sentido, Z. define o
escritor cockney, mais precisamente, o editor, ensaísta e poeta Leigh Hunt, a quem ele
batizou de “o rei dos cockneys”111, como alguém de baixa educação e de intenções
extravagantes:
Ele [Hunt] não conhece absolutamente nada de grego, quase nada de latim, e sua
familiaridade com a literatura italiana se limita a alguns sonetos de Petrarca e um
conhecimento imperfeito de Ariosto (...). Quanto aos poetas franceses, ele os
dispensa em conjunto, considera-os uma mera casta de aspirantes à literatura,
formalistas, escrupulosos e artificiais (...). Quanto aos grandes poetas alemães,
que nos últimos cinquenta anos iluminam este país com um esplendor por muito
106 Ver, sobretudo, o livro de Gregory Dart, Metropolitan Art and Literature, 1810-1840: Cockney Adventures, o artigo, “Romantic Cockneyism: Hazlitt and the Periodical Press”, Romanticism 6 (2000) e “Introduction” à antologia de ensaios de Hazlitt: Metropolitan Writings (Manchester: FyfieldBooks, 2005). 107 Jeffrey N. Cox, Poetry and Politics in the Cockney School: Keats, Shelley, Hunt and their Circle (Cambridge: Cambridge University Press, 1998). 108 The Blackwood’s Magazine, p. 196. 109 Para uma discussão sobre a etimologia da palavra cockney, ver Jeffrey Cox, Poetry and Politics in the Cockney School, capítulo I “The Cockney School attacks: or, the antiromantic ideology”, pp. 16-37; e Gregory Dart, Metropolitan Art and Literature, 1810-1840, “Introduction”, pp. 1-29. 110 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 71. 111 The Blackwood’s Magazine, p. 38.
126
tempo não antes visto, Hunt é um completo ignorante. Sobre os livros espanhóis,
ele leu Don Quixote (na tradução de Motteux) e alguns poemas de Lope de
Vega.112
O tom satírico é evidente nesse retrato do escritor cockney. Além de Hazlitt e
Hunt, outro alvo da série “On the Cockney School of Poetry” foi o jovem poeta John
Keats – “Pobre do Keats!”, diz Hazlitt, “o que divertiu toda a cidade, custou-lhe a
vida”113. Que Hazlitt, Keats e Hunt não tivessem a mesma educação formal ou
compartilhassem do mesmo ethos aristocrático do editor William Blackwood e de boa
parte dos leitores do Magazine, é algo de que eles próprios não se envergonhariam.
Mas a acusação de Z. era falsa, e ele sabia disso.
Naqueles anos, Hazlitt organizou três cursos de literatura inglesa e em cada
um deles o exercício de literatura comparada é um de seus traços distintivos – por
exemplo, entre Don Quixote, Gil Blas e o romance inglês do século XVIII; entre
Montaigne e o ensaio de periódico inglês; entre o drama alemão e o drama isabelino –
; Keats publicou poemas, como Endimião, que expressam um conhecimento sólido da
mitologia grega; e Hunt, no poema The Story of Rimini, reconstrói o episódio do amor
incestuoso de Paolo e Francesca, Canto 5 do Inferno de Dante, também a partir de
outras fontes, como Decamerão e Contos da Cantuária. Mas havia ainda outro
motivo para reunir esses autores sob a pecha de cockney, um motivo político.
Dissemos acima que o ethos aristocrático fazia parte da linha editorial do
Magazine e junto a ele, nas palavras de Klancher, “o propósito de moldar leitores
‘conscientes’ dos valores da política tóri e da igreja oficial”114. Por mais que naquele
início de século XIX, com lembram Dart e Cox, o termo cockney preservasse mais do
sabor satírico do que uma distinção política ou de classe, isto é, ele ainda não era
usado para se referir à classe operária londrina, salt-of-the-earth, o combate que deu
início a posições estéticas distintas, do Blackwood’s e dos cockneys, contribuiu, em
partes, para que também os sentidos político e de classe entrassem na acepção do
termo. Os sentimentos patrióticos do cockney, diz Z. no primeiro artigo da série, “é de
112 Idem ibidem. 113 CWH, “On Living to One’s Self”, 8, p. 99. 114 Jon Klancher, The Making of the English Reading Audiences, 1790-1832, p. 52.
127
um jacobinismo rude, vago, ineficaz e rancoroso”115. Na lista de acusações à escola,
Z. enumera: “a falta de respeito para com a Igreja Cristã (...), um desprezo pelo poder
monárquico e um modo indecente de atacar o governo de seu país”116. Com isso,
ficava selada a aliança entre cockney, ao menos sua classe de escritores, e posições
políticas radicais.
Não foi decerto com acusações de natureza política que Z. pretendia atingir o
grupo. Até aqui, colocava-se em pratos limpos o que era conhecido de ambos:
Blackwood’s falava em nome da Igreja e do Estado; o escritor cockney, em nome do
povo. As bordoadas e provocações iam muito além de um retrato satírico do escritor
que afetava ares de importância e empregava uma linguagem vulgar (The Story of
Rimini, segundo Z., é um “bom glossário de dialeto cockney”117). Z. se queixava, por
exemplo, da presunção de Hunt quando este dedica o poema, The Story of Rimini, a
Byron, a despeito dos conhecidos laços de amizade entre os dois; das “tendências
indecentes e imorais do poema”118, a paixão do incesto; da própria escolha de um
episódio da Divina Comédia e da filiação que os autores de The Round Table, Hazlitt
e Hunt, reivindicam com The Tatler e The Spectator. “Você realmente pensa”,
pergunta Z. a Hunt, “que The Round Table merece um lugar na estante ao lado de The
Spectator, e Rimini uma encadernação junto ao Inferno [de Dante]”119? A resposta de
Hunt, elegido pelo Magazine como pivô do grupo, foi imediata, iniciando-se um
verdadeiro toma lá, dá cá. No artigo que publicou em The Examiner (16 de novembro
de 1817)120 exigia uma retratação pública do autor e, antes de qualquer coisa, que
revelasse sua identidade. Quem é Z?
Por ora, deixemos a questão em suspenso para tratarmos de um assunto
correlato; isto é, “o espírito do cockneyism”121 ou a vida mental na metrópole; uma
vida, segundo Hazlitt, de águas rasas. A importância do homem da cidade está mais
para uma imagem de grandeza refletida sobre a sarjeta.
115 The Blackwood’s Magazine, p. 39. 116 Idem, p. 415. 117 The Blackwood’s Magazine, p. 198. 118 Idem, p. 194. 119 Idem, p. 415. 120 Leigh Hunt, The Selected Writings of Leigh Hunt, 6 vols. (London: Pickering & Chatto, 2003), II, p. 142. 121 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 72.
128
Em nenhum outro lugar o entendimento se afirma como a faculdade mental
por excelência tanto quanto na cidade grande. Essa faculdade aproximou a literatura
das pessoas comuns, seja pela cadência da língua coloquial, pelos fatos corriqueiros
de todo dia ou por um modo de raciocínio próximo a uma conversa sem rumo certo.
Não há nada mais próprio a ela do que os ensaios em periódicos, pois esta, como
vimos, requer a ambos, escritores e leitores, um exercício crítico. Na cidade grande, a
faculdade do entendimento predomina sobre a da imaginação, pois aquela, segundo
Hazlitt, “não julga as coisas segundo as impressões imediatas produzidas na mente,
mas segundo as relações que elas estabelecem umas com as outras”. Noutras palavras,
o entendimento é “uma faculdade distributiva”, ou ainda, na formulação conhecida do
ensaio de Hazlitt, “Corionalous”, “uma faculdade republicana”. A imaginação, por
contraste, é aristocrática. Ela é uma “faculdade monopolizadora”122, opressora, até
certo ponto, porque o princípio aqui em jogo implica a exclusão do que quer que não
contribua para “corporificar e dar forma” aos excessos da paixão ou aos “anelos
indistintos e inoportunos da vontade”123. Isto não significa, de sua parte, que a
imaginação deva ser descreditada em uma sociedade democrática, tampouco que
Hazlitt, o empirista radical, na expressão de Terry Eagleton, assim o desejasse. Antes,
ainda segundo Eagleton, Hazlitt encampou uma batalha em duas frentes: contra
aqueles que negam ou atrofiam a imaginação, o pensamento liberal e utilitarista de
um Jeremy Bentham, por exemplo, “e aqueles que a inflam caprichosamente”124 o
conservadorismo dos Poetas dos Lagos, sobretudo de Wordsworth.
Há ainda uma terceira atitude diante da imaginação que é particular à vida na
metrópole. Ainda que ela não corresponda inteiramente a de nosso autor, ele dela se
aproxima tanto na tarefa de compreendê-la desinteressadamente quanto na de
habituar-se a algo do qual ele, man-about-town, também participa. Esta imaginação
vem estampada nos rostos, no modo de andar e na constituição corporal do homem
moderno e metropolitano. Numa palavra, uma imaginação fantasmagórica125.
122 CWH, “Coriolanus”, 4, p. 214. 123 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 8. 124 Terry Eagleton, “William Hazlitt: An Empiricist Radical”, p. 111. 125 Sobre o tema, ver, Walter Benjamin, “O Flâneur”, In. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo (São Paulo: Editora Brasiliense, 1995), pp. 33-65
129
Ele [cockney] é um lojista, pregado o dia todo por detrás do balcão, mas vê
centenas ou milhares de transeuntes alegres e bem vestidos – uma infinita
fantasmagoria – e se regozija em suas maneiras libérrimas, em seus orgulhos
vistosos e adejantes. É um cocheiro – mas transporta no banco de trás uma
beldade por uma multidão de carruagens, e visita milhares de lojas. Será um
alfaiate, aquela última fraqueza da natureza humana? O estigma de sua profissão
se perde na elegância do modelo de costura e nas pessoas que ornamenta; ele
decerto é muito diferente de um mero remendeiro do campo. Mais ainda, mesmo
o gari ou o vigia noturno vê algo precioso na sujeira das ruas, pois o seu trabalho
é solene, silencioso, sagrado e peculiar a Londres! Um camelô na rua Monmouth,
um dono de brechó na avenida Radcliffe, um taverneiro de uma adega noturna,
um mendigo em St. Giles’s, uma prostituta em Fleet-Ditch, todos vivem sob os
olhos de milhares e ganham a vida, em uma existência fatigante, miserável,
escassa ou abominável em um cenário suntuoso, buliçoso e vivo ao redor deles.
Como diz o ditado popular entre essas pessoas: ‘antes ser enforcado em Londres
do que morrer uma morte natural em qualquer outro lugar’. – Tamanha é a força
do hábito ou da imaginação126.
Por mais que a cultura cockney, como vimos, não se limitasse, na época, a
uma questão de classe, ela a pressupõe, bem como a divisão do trabalho. Em “The
Periodical Press”, Hazlitt diz que em um estágio mais primordial da sociedade “todas
as grandes coisas se realizam pela divisão do trabalho, isto é, por uma concentração
intensa de inúmeras mentes, cada qual num objeto único por elas escolhido”. À
medida que a sociedade progride, continua ele, as diferentes ocupações, agora amiúde
impostas de fora para dentro, “impedem, ao invés de auxiliarem, umas às outras”127.
O excerto acima é um exemplo curioso do quanto a identidade que a divisão do
trabalho molda – perpassada pelo olhar de uma multidão anônima e num espaço onde
as diferenças pretensamente se diluem, as ruas da metrópole –, é, em certo sentido,
imaginária ou fictícia.
Neste momento de nossa pesquisa, nos valemos das finas análises do
sociólogo alemão Georg Simmel sobre as consequências psicológicas ou mentais
criadas pela acumulação de pessoas nas cidades modernas. Seguindo as valiosas
observações de James Chandler e Kevin Gilmartin, este também é um tema-chave não
126 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, pp. 68-9. 127 CWH, “The Periodical Press”, 16, p. 216.
130
apenas para Hazlitt, como para outros escritores do período128. São dois os principais
“fenômenos anímicos” reservados à vida na cidade, segundo Simmel. O primeiro, e
mais conhecido, é o caráter blasé. O excesso de estímulos nos centros urbanos, aliado
à “intensificação da intelectualidade”, ou, em termos hazlittianos, a ascensão do
entendimento e discernimento crítico na literatura e na sociedade, resultou “no
embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam
percebidas”, mas no modo como seus significados e valores “são sentidos como
nulos”. O segundo, que desemboca do primeiro, é uma tendência à “individualização
espiritual”, ou seja, a esquisitices, extravagâncias, caprichos e preciosismos como
forma de destacar, “de tornar notado”, um indivíduo cuja existência pessoal seria, do
contrário, dissolvida na multidão espessa; nada mais avesso, continua Simmel, à
vontade de “se distinguir uns dos outros”129, própria ao homem moderno do que a
impessoalidade.
É este último fenômeno anímico da individualização espiritual que peleja
pela distinção que está na base do imaginário cockney no trecho lido antes. Isso ocorre
não de maneira consciente ou segundo uma individualidade que lhe seja própria:
“embora de estatura nanica, sua pessoinha se infla e se expande de importância ideal e
magnitude tomada de empréstimo”130. Entre o cocheiro e a jovem aristocrata, diz
Hazlitt no ensaio “On Footmen”, “existem umas sete ou oito classes sociais”. No
entanto, por uma espécie de fantasmagoria, elas se anulam e o “trabalho diário (...) se
transforma num romance, um sonho de verão”131. Essa “visão romântica”132 de si
próprio, do mundo do trabalho e dos espaços da metrópole, é o pano de fundo da
segunda parte de “On Londoners and Country People”, momento em que as
extravagâncias e caprichos do cockney se tornam mais concretos, mais humanos133.
“On Londoners and Country People” tem uma estrutura semelhante a de
outros ensaios do período; uma estrutura, segundo Dart, dialética ou tripartida134.
Como em “Sobre o Prazer de Odiar”, também aqui o ensaísta parte de uma reflexão
128 James Chandler e Kevin Gilmartin, “Introduction: Engaging the Eidometropolis”, In. Romantic Metropolis: The Urban Scene of British Culture, 1780-1840, pp. 1-41 129 Georg Simmel, “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”, In. Mana, (São Paulo: 2005), pp. 581, 587 e 589. 130 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 68. 131 CWH, “On Footmen”, 17, p. 355. 132 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 69. 133 Dart, “Romantic Cockneyism”, p. 155. 134 Gregory Dart, “Introduction” to William Hazlitt, Metropolitan Writings, p. x.
131
geral sobre um traço comum aos homens – no caso, a oscilação entre a ignorância e a
petulância, própria à vida do espírito na cidade grande –; em seguida, desce aos
particulares, fornece exemplos de indivíduos concretos, pessoas comuns do dia a dia;
para, então, concluir com uma retomada do ponto de partida – de que o verdadeiro
cockney é alguém que “adquiriu todas as suas ideias”135 da cidade – noutra chave e
agora banhada, como veremos ao final deste capítulo, pela metáfora sublime,
metropolitana e democrática: rio de vida humana.
Por um corte brusco no foco analítico, Hazlitt introduz a história do dr.
Goodman, acompanhada de outras duas: a do sr. Pinch e do sr. Dunster. Como bem
observou Dart, neste momento do ensaio, Hazlitt “diminui o temperamento crítico” e
“reconhece a sua própria familiaridade – ou empatia – com o meio cockney que
descreve” 136 . Assim, o vemos na companhia de indivíduos concretos e
idiossincráticos. Se ficamos sabendo de suas atividades profissionais – o dr.
Goodman, “na cidade, é um gentleman solitário; no campo, um médico diletante”; o
sr. Pincher, um sportsman pretendente a cantor; o sr. Dunster, o peixeiro que se
gabava de na juventude jogar bolas de gude como ninguém – o que sobressai de suas
histórias são “suas veias indolentes” e o “solo natural, de águas rasas [shallowness],
sobre o qual o ascendem em insolência e presunção”137.
Nas três histórias, que ocupam quase metade do ensaio (em tom narrativo e
dialógico), a simplicidade do homem da metrópole é “conduzida ao cume de
extravagâncias”. Na primeira delas, o dr. Goodman, homem “grande em coisas
pequenas, inveterado em contendas insignificantes”138, apanha o ensaísta nas ruas,
pega carona em seu guarda-chuva e lhe interpela sobre Richard Pinch, amigo de
ambos, pois queria saber se a sua opinião batia com a do ensaísta; isto é, de que ele,
Pinch, era um péssimo jogador de game of fives139 e um mau cantor. Depois de ouvi-
lo, Hazlitt conclui: “Pinch, nesse aspecto, é um espécime completo de um cockney.
135 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 66. 136 Dart, “Romantic Cockneyism”, p. 155. 137 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, pp. 72 e 74. 138 Idem, pp. 73 e 71. 139 Jogo de raquete, semelhante ao tênis, bastante popular naqueles dias. Hazlitt foi um aficionado pelo esporte, ele próprio um jogador ardoroso. Sobre o entusiasmo de Hazlitt por game of fives, ver Ralph M. Wardle, “Good Hater (1815-1816)”, In. Hazlitt (University of Nebraska Press, 1971), pp. 157-180. Ainda sobre o esporte, diz Hazlitt, “é o melhor exercício do corpo (...) e a melhor maneira de relaxar o espírito (...). Aquele que pratica o esporte, é duas vezes mais jovem”, “The Indian Jugglers”, CWH, 8, p. 87.
132
Nunca tem nada a dizer; e, no entanto, tem sempre uma resposta na ponta da língua”.
Quando alguém lhe contrariava, ele dizia, “the same to you, sir”140.
Mas o dr. Goodman não fica para trás. Leitor que devia ser dos ensaios em
periódico de Hazlitt, conhecia a reputação de suas críticas teatrais, nas quais o exame
do canto e da voz é um traço distintivo141, e sabia que, há pouco, Hazlitt publicara em
The Examiner uma elegia em prosa, “entre a pilhéria e a sinceridade”142, ao esportista
John Cavanagh143. Pouco importa se o seu conhecimento fora tomado de empréstimo,
ele se infla e assume ares de crítico. Em certo sentido, ele está para o ensaísta como o
cocheiro está para o aristocrata que traz no banco da carruagem. Mas o que Hazlitt,
homem de imprensa, conhece sobre esportes ou sobre o canto? Não seria este também
um conhecimento de segunda-mão? Na cidade grande, mais vale aparentar
conhecimento ou status social do que de fato possuí-los. É isso o que Hazlitt
comunica aos leitores quando despe a capa do anonimato e se revela, ele também, um
cockney.
A empatia e a identidade cultural entre Hazlitt e os homens da cidade
marcam a diferença entre a persona literária de seus ensaios e a dos articulistas da
imprensa conservadora. Isto posto, retornemos à pergunta sobre a identidade de Z.
Se boa parte dos editores e leitores das revistas literárias de maior prestígio,
como Blackwood’s, eram membros da elite econômica e intelectual, o mesmo não
pode ser dito sobre os escritores. Daí a razão do porquê muitos ocultassem seus
nomes e personalidades. Como lembra Dart, “na imprensa, o escritor assumia a figura
do gentleman desocupado”144, como se estivesse de igual para igual com o púbico
leitor quando, na realidade, não passaria, aos olhos deste, de um apedeuta venal. O
disfarce era, portanto, um expediente eficaz para articulistas como Z. De família
simples mas altamente letrada, Z., ou melhor, John Gibson Lockhart, desde cedo se
revelou um prodígio pelos conhecimentos em letras clássicas, sobretudo o grego. Aos
quatorze anos, foi transferido da Universidade de Glasgow a Oxford, Balliol College.
Em seguida, regressou à Escócia e se formou em direito na Universidade de 140 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 71. 141 Ver, por exemplo, o ensaio de The Examiner, “Miss Merry’s Mandane”, In. A View of the English Stage, CWH, 5, pp.320-1. 142 CWH, “The Indian Jugglers”, 8, p. 86. 143 Um dos mais aclamados jogadores de game of fives na época da Regência, John Cavanagh foi celebrado por Hazlitt no famoso ensaio “The Indian Jugglers”, CWH, 8, pp. 86-89. 144 Gregory Dart, “Romantic Cockneyism: Hazlitt and the Periodical Press”, p. 148.
133
Edimburgo, em 1816. No ano seguinte, de visita ao continente, travou contato com
Goethe e se aperfeiçoou nos conhecimentos da língua alemã, da qual traduziria para o
inglês as Lições de História da Literatura, de Friedrich Schlegel. Sua maior
realização, como escritor, foi Life of Sir. Walter Scott, em 7 volumes, 1837-38. Outra
de suas realizações, no âmbito pessoal, foi ter se casado com a irmã de Scott,
Sophia145. Entretanto, naqueles anos que assinou colunas mensais a Blackwood’s,
Lockhart era Z., o escritor de profissão que afetava ares de importância. Trocando em
miúdos, é como se na descrição do cockney Lockhart falasse de si mesmo; ele não
passava de outra coisa, dizia Hazlitt, senão de um “cockney do norte”146. Sem que o
percebesse, a vida e a cultura metropolitanas corriam por suas veias.
5. Um Pássaro na Multidão: ‘ruas transbordantes’147.
Havia ainda outro motivo para as invectivas de Blackwood’s contra a
“cockney school”. Em 1814, logo após a publicação de The Excursion, poema
narrativo de Wordsworth, Hazlitt escrevera uma resenha crítica que pouco agradara
ao poeta e ao articulista do Blackwood’s, John Wilson, seu amigo. A partir de uma
análise interna do poema, Hazlitt sutilmente reconstrói o percurso poético de
Wordsworth148: de seu sonho juvenil, “a estrela-d’alva da liberdade, a primavera do
mundo”149, ao tom melancólico e resignado daquele que, sob a figura do personagem
The Solitary, vê hoje a liberdade, outrora glorificada, nada senão como uma
sombra150. Àquela altura, por razões políticas e pessoais, o convívio entre Hazlitt e
Wordsworth há muito minguara. Certa vez, como lembra o biógrafo Stanley Jones,
Wordsworth pediu expressamente a Lamb que não o convidasse aos encontros em sua
casa na presença de Hazlitt 151 . É conhecida a história da primeira vez que
Wordsworth topou com a resenha de seu poema em The Examiner. O episódio chegou
145 Para as informações biográficas de John Gibson Lockhart, ver Stanley Jones, Hazlitt: A Life, from Winterslow to Frith Street, pp. 288-9, e Duncan Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 253. 146 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 75. 147 William Wordsworth, The Prelude: The Four Texts (1798, 1799, 1805, 1850) (London: Penguin Classics, 1995), p. 286. 148 David Bromwich, Hazlitt: the Mind of a Critic, p. 162. 149 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 18. 150 Idem, p. 17. Ver “The Excursion”, Livro III, ll. 776-7, In. William Wordsworth, The Poems, Volume Two (London: Penguin Classics, 1989), p. 114. 151 Stanley Jones, Hazlitt: A Life, p. 174.
134
aos ouvidos de nosso autor, que o narra em A Reply to Z., escrita em setembro de
1818 e não publicada a pedido de amigos152.
Ao fim do ano de 1814, o sr. Wordsworth recebeu pelo correio um exemplar de
The Examiner, o que o irritou pelo seu conteúdo e custeio do jornal. ‘Por que
enviaram a mim esse jornal maroto e ainda me obrigam a pagar por ele?’ O sr.
Wordsworth é judicioso em seus princípios tanto quanto em seu bolso. ‘Oh’, disse
Wilson, ‘vejamos o que temos aqui. Acho que não o enviaram sem um motivo.
Ora essa! há nele uma crítica de The Excursion’. Isso fez com que o poeta (par
excellence) enfurecido e irritado o ficasse ainda mais. ‘O que eles sabem de sua
poesia? O que podem saber? É uma presunção do mais alto nível a um escritor
cockney pretender criticar um Poeta do Lago’. ‘Bem’, disse o outro, ‘seja como
for, passemos à leitura’. Então começaram. O artigo, no todo, era favorável ao
poeta e ao poema. Enquanto prosseguiam na leitura, ‘ah’, disse Wordsworth, um
tanto satisfeito, ‘o patife escreve com vigor (...). Muito bem escrito, senhor, não
esperava por algo do tipo’ e, caminhando de um lado para o outro na sala de bom
humor, continuava, vez ou outra, conjecturando sobre quem seria o autor (...) –
quando o sr. Wilson o interrompeu dizendo, ‘Oh, você não sabe quem é? É
decerto Hazlitt, dá para ver pelas iniciais’, o que lançou nosso pobre filósofo a um
alvoroço ainda maior153.
Depois de castigar tanto quanto pudesse o editor de The Examiner, Leigh
Hunt, Z. mudou de alvo. Hazlitt passou para o centro das atenções quando
Blackwood’s publicou o artigo “Hazlitt Cross-Questioned”. Em tom de conversa entre
Z. e o editor do jornal, aquele propõe a este um questionário, em oito perguntas, na
esperança de que Hazlitt (“ex-pintor, crítico teatral, resenhista, ensaísta, fabricante de
cursos, londrino” 154 ) se justificasse ou simplesmente assumisse seus erros e
inconsistências. As duas primeiras perguntas giram em torno das relações entre
Hazlitt e Wordsworth, do quanto o ensaísta devia sua formação literária e a própria
vida ao poeta. Z. alude a um episódio deveras controverso, quando Hazlitt fora
escorraçado do vilarejo de Keswick depois de uma suposta tentativa de estupro155. Foi
Wordsworth que na época lhe ofereceu guarida, lembra Z. Se o caso jamais fora
152 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 246. 153 CWH, “A Reply to ‘Z’”, 9, p. 6. 154 The Blackwood’s Magazine, p. 550. 155 Wu, William Hazlitt: The First Modern Man, p. 98.
135
comprovado, Wordsworth e Blackwood’s não hesitaram em espalhá-lo aos quatro
ventos. Quanto ao primeiro tema, a influência de Wordsworth sobre o pensamento
poético de Hazlitt, ele nunca o desmentira, o que se nota, entre outras, pela presença
das imagens crepusculares em seus ensaios, símbolo da revolução, sobre as quais nos
detivemos no primeiro capítulo. Esse é precisamente o motivo do porquê, após o
abandono da fé no povo, Wordsworth passou de mentor a inimigo a ser combatido.
Para uma maior compreensão do tema, voltemos à série “Illustrations of The Times
Newspaper” e à passagem sobre o good hater.
Apresentamos, anteriormente, ao editor do The Times uma definição do
verdadeiro jacobino como aquele ‘que viu a estrela da tarde se pôr sobre a
choupana de um homem pobre e a conectou com as esperanças da felicidade
humana’. O político da cidade zombou de nossa definição pastoral (...). Desde
então, a nossa imaginação se tornou menos romântica; assim, apresentemos a ele
outra definição, com a qual ele possa ruminar durante as horas vagas. Um
verdadeiro jacobino, pois, é alguém que não acredita no direito divino dos reis ou
em qualquer outra alcunha similar, na qual esteja implicada a ideia de que eles
possam governar ‘por desprezo à vontade do povo’; isto é, alguém que considera
todos os reis tiranos; seus súditos, escravos. Para ser um verdadeiro jacobino, um
homem deve ser um good hater. Mas esta é a mais difícil e a menos amável de
todas as virtudes156.
A imagem crepuscular, a estrela da tarde, captura, como poucas, a nostalgia
do passado que, nas mãos de Blake, Coleridge, Wordsworth, Hazlitt e outros, se
converteu em uma política e uma estética157. Mais explicitamente, o trecho faz alusão
a Michael, a Pastoral Poem, de 1802. Ali Wordsworth fala abertamente das
aspirações revolucionárias entre os mais pobres, os homens do campo. No entanto, os
tempos agora eram outros. Enquanto Wordsworth via a transição da sociedade rural
para a industrial como decadência158, da qual ele se lamentava simplesmente ou se
revestia da figura reclusa do poeta do lago, Hazlitt não evitou o choque das ruas. É
156 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p 151. 157 Ver o item “A estrela da tarde”, do primeiro capítulo desta tese e meu artigo “‘With Music and Painting in Mind’: Religion and Art in Hazlitt’s Imagery”, In. The Hazlitt Review, Volume 8 (London: Hazlitt Society, 2015), pp. 47-57. 158 Raymond Williams, O Campo e a Cidade na História e na Literatura (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011), p. 165.
136
precisamente nesse contexto que este cunhou uma das alegorias mais marcantes de
seu século: o poeta, ou o pássaro, em meio à turba das ruas que não o compreende.
Todo o trecho acima, sobre o verdadeiro jacobino, é estruturado segundo a
oposição entre o campo e a cidade: a definição pastoral de good hater versus uma
outra, menos idílica e mais afim ao político da cidade; o homem pobre do campo e a
estrela solitária versus o corporativismo da imprensa periódica. Seu sentido,
entretanto, não é o mesmo do contraponto tradicional entre a “inocência no campo e o
vício na cidade”; antes, ele é substituído por outro, mais complexo, assinalado pela
“perda de conexões (...) e de identidade na multidão (...) que se refletia na perda de
identidade do eu” 159 . Esta última, como vimos, aparece na fantasmagoria dos
indivíduos que projetam a si mesmos uma importância ideal, atravessada por milhares
de olhares anônimos – fenômeno próprio das grandes concentrações metropolitanas.
Outra de suas manifestações provém do “fluxo indistinto de sensações urbanas”160 de
homens e mulheres que se “deslumbram com o tumulto, as exibições e as
aparências”161.
Segundo Raymond Williams, poucos foram tão sensíveis às novas atitudes
mentais “que viriam a se tornar dominantes”162 quanto Wordsworth. Ele a descreve
com precisão no sétimo livro de The Prelude [Residence in London]. A passagem
abaixo é exemplar:
How often in the overflowing streets
Have I gone forward with the crowd, and said
Unto myself, ‘The face of every one
That pass by me is a mystery!’
Thus have I looked, nor ceased to look, oppressed
By thoughts of what or whither, when and how,
Until the shades before my eyes became
159 Idem, pp. 252 e 256. 160 Gilmartin, William Hazlitt: Political Essayist, p. 245. 161 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 68. 162 Williams, O Campo e a Cidade, p. 256.
137
A second-sight procession such as glides
Over still mountains, or appears in dreams,
And all the ballast of familiar life.163
Neste que é um dos “mais importantes épicos da consciência humana”164,
escrito no curso de uma vida e publicado postumamente, em 1850, Wordsworth narra
a formação de seu espírito, desde a terna infância à ascensão climática e metafórica de
Snowdon. Para a nossa análise, recorremos à versão de 1805, pois mais próxima
historicamente da vida londrina de que tratamos.
Nos primeiros dois versos, o poeta mergulha nas ruas sem saber aonde será
conduzido. A materialidade sonora na expressão overflowing streets, se dermos
ouvidos ao jogo do som e do sentido das palavras, sugere fluidez e rumo incerto,
porém uniforme. Overflowing é ritmicamente marcada pelo fonema /əә/. Como
sabemos, este é um dos sons vocálicos mais comuns em língua inglesa A repetição do
trivial é significativa, posto que ela corporifica a cidade como lugar da perda de
identidades e de mesmices. As distrações vulgares que se infiltram nos olhos e
ouvidos do poeta buscam, inutilmente, romper com o trivial: numa rua, “espetáculos
ambulantes”; noutra, “grupos de cantores”; noutra, ainda, uma vendedora grita “o
mais esganiçado dos bramidos de Londres”. As consoantes fricativas /v/ e /f/, que já
se mostram em often, e reaparecem em forward, junto ao sibilo repetido de streets,
formam sobre a mente do poeta a sugestão sonora do “fluxo perpétuo de homens e
moving things”. Rostos e mercadorias anônimas causam-lhe estranhamento sublime
(sublimed by awe). O poeta para para observá-los; fica estonteado. Sem fixar os olhos
em ponto algum porque a visão lhe é opressora – o que se nota no ritmo de vai-e-vem
da sequência de conjunções “what or whither, when or how” –, ele, por fim, recorre
aos olhos do espírito. Uma pré-visão (second-sight), um sonho o conforta: “o espírito
da natureza estava sobre mim ali.”165 Still mountains fazem, nos versos finais, de
vínculo metonímico entre a natureza perene, imóvel e familiar e o espírito do poeta
que anseia pelas mesmas qualidades, isto é, por tudo que seja capaz de içá-lo das ruas
transbordantes. 163 Wordsworth, The Prelude, p. 286. 164 Idem, p. xxv. 165 Idem, pp. 260, 258 e 292.
138
O livro sétimo, “Residence in London”, conclui com um dos ataques mais
“devastadores sobre a cidade” feitos em seu tempo: a artificialidade e o “senso de
alienação”166 dos divertimentos populares; sobretudo os que o encontraram na feira de
São Bartolomeu. Ali, “all moveable wonders”, “all freaks of nature”, um verdadeiro
paraíso de desajustados fascina os olhos de milhares; e também, a seu modo, os do
poeta. Mas é do alto, “above the press and danger of the crowd” e sob as asas da
Musa, que ele observa essa “blank confusion.”167 O que ocorreria a ambos, a
Wordsworth e à sua musa, se recolhessem as asas e ali se demorassem?
Hazlitt jamais conheceu esses versos de The Prelude. Entretanto, e sem
poder afirmar com precisão, é a Wordsworth que a alegoria hazlittiana do pássaro ou
poeta na multidão se refere. Não somente a ele, é claro; os termos da alegoria são
abstratos e descrevem, em linguagem imagética, o que ocorre com o espírito da
poesia em meio a ruas, praças, parques e feiras apinhadas de gente. Passemos, pois,
ao trecho em questão, publicado, primeiramente, no segundo ensaio da série
“Illustrations of The Times Newspaper: On Modern Lawyers and Poets”, em seguida,
em The Round Table, sob o título “On Poetical Versatility”.
[A poesia] tem a extensão do universo; atravessa o empíreo e olha a natureza
abaixo de uma esfera mais alta. Quando toca a terra, perde algo de sua dignidade
e uso. Sua força está em suas asas; seu elemento é o ar. De pé, acotovelada na
multidão, está sujeita a ser derrubada, pisoteada, desfigurada; pois suas asas são
de um brilho deslumbrante, ‘do tinto do próprio céu’, e a menor quantidade de
solo sobre elas lhes são desvantajosas. Atolada e degradada como a vemos, não a
insultemos, mas deixemos que o tempo remova as manchas e ela se veja por si
mesma como algo imortal.168
Se olharmos para o entorno onde esta passagem se encontra, veremos que
são algumas as alusões e referências diretas e indiretas a Wordsworth. Pouco antes,
Hazlitt cita o poeta duas vezes: primeiro, os famosos versos de Ode: The Morning of
the Day Appointed for a General Thanksgiving: “carnage is thy daughter”; segundo,
166 Dart, Metropolitan Art and Literature, p. 139. 167 Wordsworth, The Prelude, pp. 290, 288 e 290. 168 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 142.
139
uma passagem de The Excursion: “constrained by mastery”169. Naquele, sob a forma
irregular da ode pindárica, Wordsworth “expressa os seus sentimentos sobre Waterloo
com fervor e impetuosidade”170, ou seja, a sua repugnância aos jacobinos e antipatia a
Bonaparte; neste, a irregularidade da poesia da natureza, que não se deixa constranger
por leis externas, é o que distingue, segundo Hazlitt, os poetas dos advogados
modernos e permite aos primeiros “plainar sobre todos os obstáculos” 171 . No
parágrafo conclusivo, sobre a aliança entre poesia e revolução, a alusão a Wordsworth
é ainda mais explícita. Mesmo sem citar o seu nome, sabemos, por uma comparação a
outro escrito do autor172, que é de Wordsworth de quem se trata; ou melhor, de seus
anos de juventude, quando, por meio de uma poesia revolucionária, “todas as
distinções da arte ou da natureza eram niveladas.”173
Segundo uma evidência externa, em L. Boerne; Lettres Écrites de Paris
Pendant les Annés 1830 et 1831, Sainte-Beuve confirma a figura de Wordsworth
como o pássaro na multidão. Depois de comparar a natureza da imaginação do sr.
Boerne com uma cotovia “que, no crepúsculo do sol, se eleva, em círculo alegre”,
Sainte-Beuve lembra que a mesma comparação fora antes feita “por um célebre
crítico inglês, Hazlitt, aplicada felizmente ao poeta Wordsworth”174.
Mais importante, no entanto, do que saber se Wordsworth é o pássaro na
multidão par excellence são os sentidos atinentes à alegoria. Como se sabe, a
comparação entre o poeta e o pássaro do campo é bastante antiga – ela remonta às
Metamorfoses de Ovídio175. Naqueles anos, seguindo a voga helenística na poesia
romântica inglesa176, não foram poucos aqueles que a ela recorreram, como se nota,
entre outros, na Ode ao Rouxinol de Keats, ou em A uma Cotovia de Shelley. Para
169 Idem, ibidem. 170 Simon Baimbridge, Napoleon and English Romanticism, pp. 170-1. 171 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 142. 172 A parte final da lição “On the Living Poets”, em Lectures on the English Poets, que trata diretamente de Wordsworth, foi quase toda ela extraída da resenha de The Examiner. CWH, 5, pp. 161-164. 173 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 144. 174 Sainte-Beuve, Oeuvres I (Paris: Gallimard, 1949), p. 439. Dada a enorme influência de Sainte-Beuve na literatura francesa de seu tempo, não nos surpreenderia se Baudelaire, a partir de sua leitura, tivesse travado contato com o ensaio de Hazlitt e a imagem do pássaro-poeta na multidão, tal qual o encontramos no célebre poema “O Albatroz”. 175 Ver As Metamorfoses, Livro VI, de Ovídio (Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 1983), pp. 113-18. 176 Sobre o helenismo na poesia romântica inglesa, ver Julio Cortázar, “A Urna Grega na Poesia de John Keats”, In. Valise de Cronópio (São Paulo: Editora Perspectiva, 2011), pp. 17-56. Também sobre o tema, ver Jeffrey N. Cox “Cockney Classicism: history with footnotes”, In. Poetry and Politics in the Cockney School, pp. 146-186.
140
ficarmos apenas com nosso autor, em “Sobre a Poesia em Geral”, “seu melhor ensaio
teórico”, segundo Harold Bloom177, Hazlitt explora a aliança secreta de certos
pensamentos e sentimentos com modulações de sons enquanto traço que distingue a
linguagem poética da linguagem prosaica. Se na prosa as palavras não passam de
signos arbitrários, pois “não há aí qualquer princípio de imitação natural,
correspondência às ideias individuais ou ao tom dos sentimentos transmitidos a um
outro”178; na poesia, de sua parte, os significados de um termo, pela sua sonoridade ou
pelo seu aspecto visual, são fundidos à palavra. Histórica e poeticamente, a imagem
que melhor define a atitude da poesia em relação à palavra, libertando-a da
ambiguidade do signo, é aquela entre o poeta e o pássaro. A poesia, diz Hazlitt, “tira
do chão a linguagem da imaginação, habilitando-a a abrir as asas onde possa
satisfazer os seus próprios impulsos.”179 É bastante significativa a oposição entre o ar
da poesia e o chão da prosa, sobretudo quando esse ar é adensado pelas nuvens
espessas das fábricas, e esse chão por um mar tumultuoso de cabeças humanas.
Convém observá-la melhor.
Em 1802, apareceram dois escritos distintos, quase antagônicos, sobre as
ruas e o ar metropolitanos: um, o poema de Wordsworth, Escrito na Ponte
Westminster, 3 de Setembro de 1802; o outro, The Londoner, curto ensaio que Lamb
confiou ao editor de “The Reflector”, Hunt.
O argumento wordsworthiano de que a poesia, esse “transbordar espontâneo
de sentimentos poderosos (...), modificados e dirigidos pelos pensamentos”, se atrofia
na cidade grande é uma de suas principais bandeiras. “O caráter uniforme das
ocupações humanas” e “o anelo pelo incidente extraordinário, que a rápida
comunicação de informação satisfaz a cada momento”180, fizeram com que, segundo
ele, o homem da cidade fosse constantemente compelido pelo novo, desaprendendo a
ver “as coisas como elas são nelas mesmas.”181 Entretanto, em Escrito na Ponte
Westminster, a paisagem urbana se mistura aos aspectos da natureza para gerar uma
177 Harold Bloom, William Hazlitt, Modern Critical Views (New Haven: Chelsea House Publishers, 1986) p. 5. 178 CWH, “On Poetry in General”, 5, p. 12. 179 Idem, ibidem. 180 William Wordsworth, The Prose Works of William Wordsworth, Volume I (Oxford At The Clarendon Press, 1974), pp. 126 e 128. 181 Idem, Volume III, p. 26.
141
nova fisionomia do mundo182. “Nada há de mais belo”, diz ele, do que o despontar do
sol sobre a metrópole. “Templos, teatros, barcos, torres e abóbadas”, juntos às
“colinas escarpadas” que se observam ao longe, tranquilizam sua alma. Ao contrário
do trecho acima em The Prelude, aqui, Wordsworth jamais põe os pés no chão. Antes,
ele paira nas alturas; a sua visão da cidade é como a de um panorama ou uma
fotografia: “parecem dormir as moradas”183, as ruas estão vazias e todas as coisas,
incluindo seu próprio coração, imobilizadas (lying still). Converge para essa “imagem
naturalizada da metrópole”184 o ar límpido daquela manhã (smokeless air).
The Londoner, de Lamb, em tudo lhe é distinto. Sua “paixão pela multidão”
é a receita185 para o seu “estado de espírito maníaco-lírico-depressivo”186: “por
natureza, estou inclinado à hipocondria, mas ela se esvai em Londres, como todos os
outros males.”187 Assim, Lamb, “o poeta-prosador de Londres”188, sai do seu “mundo
de cortinas corridas”189 e se lança, da cabeça aos pés, nas ruas da metrópole. “Full-
time funcionário público e part-time flâneur”190, ele caminha com os pés firmes sobre
ruas enlameadas, entre uma multidão de clientes, vendedores, batedores de carteira,
mendigos e limpadores de chaminé; uma “deformidade que, se a outros causa
desgosto, a mim, por força do hábito, não me desagrada”191. Lamb tem aqui em mente
ninguém menos do que Wordsworth. Em uma carta de 1801 ao poeta, ele se desculpa
ao amigo por recusar “o gentil convite” de visitá-lo em Cumberland: “pouco me
importa se jamais vir uma montanha em minha vida”. A natureza selvagem, para ele,
é uma “natureza morta”; a metrópole, por contraste, é impregnada, dia e noite, de vida
182 Curiosamente, Walter Benjamin, em “O Flâneur”, desconhece essa que é, possivelmente, a primeira expressão poética sobre a cidade moderna. Antes, Benjamin lembra um poema de Shelley, Peter Bell The Third, de 1819, que estabelece um paralelo entre o inferno e a cidade, Londres. Ver, Walter Benjamin, Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo, p. 56. Para uma discussão do poema de Wordsworth em paralelo com o ensaio de Benjamin, ver Chandler e Gilmartin, Romantic Metropolis, pp. 12-3. 183 William Wordsworth, O Olho Imóvel pela Força da Harmonia, tradução e apresentação Alberto Marsicano e John Milton (São Paulo: Ateliê Editorial, 2007), pp. 60-1. 184 James Chandler, Romantic Metropolis, p. 12. Encontramos uma imagem semelhante no poema de Wordsworth Versos Escritos a Poucas Milhas da Abadia Tintern, Revisitando as Margens do Rio Wye, 13 de julho de 1798. Registra-se aqui meus agradecimentos ao Prof. Dr. John Milton por ter chamado a minha atenção a esse poema. 185 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, p. 39. 186 Expressão cunhada por Vinícius de Moraes para se referir ao ensaísta Charles Lamb. Ver “O Exercício da Crônica”, In. Para uma Menina com uma Flor, 1966, p. 53. 187 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, p. 39. 188 Marie Hamilton Law, The English Familiar Essay in the Early Nineteenth Century, p. 177. 189 Vinícius de Moraes, Para uma Menina com uma Flor, p. 54. 190 Dart, Metropolitan Art and Literature, p. 144. 191 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, p. 40.
142
e recordações românticas: “as luzes das vitrines em Strand e Fleet Street (...) todo o
alvoroço e perversidade ao redor de Covent Garden; ah, as mulheres da cidade (...);
cenas embriagadas, a balbúrdia”. “Emoções”, conclui Lamb, “que podem parecer
estranhas a você [Wordsworth]. Assim como as emoções rurais são estranhas a
mim.”192 O ar é carregado tanto quanto as ruas: “há algo substancial e gratificante na
névoa da metrópole – você sente e vê o ar que respira.”193 Esses elementos mais crus
e prosaicos se misturam à sua “fidelidade oscilante entre o verso e a prosa.”194 Eles
compõem a alquimia de uma mente avessa aos excessos de pureza; uma mente que se
dirige aos seus ouvintes não de cima para baixo, mas de igual-para-igual, ao rés-do-
chão. Nas palavras de Dart: nascia aqui um “um romantismo metropolitano e ele é
coevo ao romantismo primitivista.”195
Em meio às ruas transbordantes, segundo a alegoria hazlittiana, a imaginação
romântico-primitivista se infla, é embriagada com a ilusão de poder. Para que suas
asas, “de um brilho deslumbrante”, não sejam cobertas de lama, ela, com o jornal The
Times, “navega rio acima, ao invés de lutar contra a corrente.”196 Há em ambos uma
atitude aristocrática. A imaginação romântico-metropolitana, por contraste, a exemplo
de Lamb, diz Hazlitt, conduz-nos por “vias subterrâneas (...), encanamentos e
tubulações”; navega entre a poesia e a prosa, “o egoísmo e a humanidade
desinteressada.” 197 . “As ruas são o grande palco para o estímulo de [sua]
imaginação”198. No miolo da vida moderna, cabe a ela, ou melhor, a ele, o ensaísta ao
rés-do-chão, realizar a fusão da cidade com o mundo natural por meio de uma
imaginação sublime, metropolitana e democrática.
192 Charles Lamb, Selected Prose (London: Penguin Classics, 2013), p. 331. 193 Charles Lamb, The Works of Charles and Mary Lamb, Volume I, “London Fog”, p. 351. 194 Mathew Beaumont, Night Walking: A Nocturnal History of London, Chaucer to Dickens (London: Verso, 2015), p. 324. 195 Dart, Metropolitan Art and Literature, p. 143. 196 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Lawyers and Poets”, 7, p. 137. 197 CWH, “Elia, and Geoffrey Crayon”, 11, p. 179-180. 198 Phillip Lopate, “Bachelorhood and its Literature”, In. Bachelorhood: Tales of the Metropolis (New York: Poseidon Press, 1981), p. 261. Ainda sobre o ensaísta enquanto o flâneur e em conexão com Lamb e Hazlitt, diz Lopate: “O narrador solteirão é uma criatura urbana. Primeiro, porque é apenas na cidade que as diversões financiáveis estão facilmente ao seu alcance; segundo, porque a cidade oferece a ele um campo de percepções sinistramente adequadas ao seu temperamento genioso; terceiro, porque a cidade dá a ele liberdade para cultivar suas fantasias de encontrar um novo amor na esquiana ao lado, um potencial ilimitado para aventuras eróticas que quase sempre não se materializam”, p. 260.
143
6. ‘Rio de Vida Humana’ 199 : a imaginação e o sublime metropolitanos e
democráticos.
Originalmente, a resenha de Hazlitt sobre o poema The Excursion foi
publicada em três partes. A meio caminho da última delas, há um longo parágrafo no
qual ele se opõe duramente não apenas às emoções rurais de Wordsworth, mas às
supostas virtudes rurais. A frase de abertura, em tom proverbial, anuncia a pegada
combativa, polêmica e jocosa, própria ao ensaísta adversário: “todo homem do campo
odeia um ao outro.”200 Logo abaixo, como justificativa para a influência moral nociva
que a rusticidade exerce sobre os homens, segue-se uma descrição do campo que é um
“catálogo de privações moralmente ambíguo”201:
[No campo], não há nenhuma loja, nenhuma taverna, nenhum teatro, nenhuma
ópera, nenhum concerto, nenhum quadro, nenhum edifício público, nenhuma rua
apinhada de gente, nenhum baralho de tráfego, nenhuma corte de justiça –
tampouco bajuladores ou cortesãs; nenhuma reunião literária, nenhum itinerário
elegante, nenhuma sociedade, nenhum livro ou conhecimento sobre os livros. A
vaidade e o luxo civilizam o mundo e suavizam a vida humana. Na falta de
objetos de prazer ou de ação, ela germina de maneira dura e rabugenta: a mente se
torna estagnada; os afetos, calejados; os olhos, embotados. Quando só, consigo
mesmo, o homem logo se degenera numa pessoa muito desagradável.202
Há, decerto, algo de caricatura neste relato. Sua hostilidade ao campo se
investe de recursos retóricos, o que se nota, entre outros, pela repetição enfática do
pronome indefinido – nenhum, nenhuma (no, em inglês) – para compor uma
paisagem nula, de terra arrasada, sobretudo quando a contrastamos com a cidade. O
trecho cobra dos leitores um exercício comparativo, posto que é na cidade onde
encontramos tudo aquilo de que o campo carece. Civilidade e vida cívica caminham
lado a lado. Ligada a ela, está uma ética do prazer: divertimento, luxo e beleza. Só se
chega à humanidade pelo supérfluo. “No campo”, diz Hazlitt em “On Londoners and
199 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 77. 200 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 21. 201 Kevin Gilmartin, “Hazlitt’s Visionary London”, In. Repossessing The Romantic Past (Cambridge University Press, 2006), p. 46. 202 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 22.
144
Country People”, “o homem não passa de um rebanho de gado.”203 A coletividade ali
é desprovida de qualquer abstração; o entendimento, inoperante. É o conhecimento,
diz ele, que nos permite alargar a mente com a aquisição de “ideias liberais”, isto é,
ideias que “nos transportam para fora de nós mesmos”, com as quais, e somente por
meio delas, desenvolvemos um senso de alteridade. Esta é a utilidade das peças
teatrais, dos concertos, quadros e leituras. Eles nos tornam íntimos de “personagens e
situações imaginárias”, alheias a nós mesmos. Na falta deles, os homens “são um
bicho-papão de sua própria espécie (...), dão vazão a todo o estoque de spleen, malícia
e invenção sobre os seus amigos e vizinhos da casa ao lado.”204 Em suma, no campo,
a imaginação não corresponde àquela “atividade mental capaz de transformar a
realidade em consciência da realidade”205.
Ora, não é precisamente esse o sentido de imaginação para Wordsworth,
Coleridge e os Poetas do Lago em geral? Sim. Entretanto, para Hazlitt, quando essa
imaginação se mistura ao terreno da política, suas consequências podem ser
catastróficas; como o fora com a retórica antirrevolucionária de Burke, e como era,
agora, na poesia conservadora dos Poetas do Lago206. Para uma maior compreensão
do tema, voltemos à relação ambígua de Hazlitt com Burke, sobre a qual nos
detivemos no capítulo primeiro desta tese.
Burke é o progenitor da apostasia moderna. Outrora figura de destaque da ala
oposicionista e progressista dos whigs, por décadas, ele conduziu as principais pautas
de seu partido com o espírito de um verdadeiro “herói dos radicais.”207 Do mesmo
modo, a linguagem que então empregava no parlamento era límpida e persuasiva –
não por outro motivo, em um quadro do pintor James Barry de 1776, Burke aparece
sob a figura do guerreiro solerte, Ulisses. A reviravolta ocorreu com a Revolução
Francesa. Em seus discursos e escritos públicos contrarrevolucionários, a linguagem
se tornou hiperbólica, apaixonada e sublime. Em outras palavras, ela é revestida “da
luz de uma imaginação (...) estonteante”. Por meio dessa “eloquência apóstata”,
Burke, diz Hazlitt, “foi o mais hábil retórico que este mundo já viu”; inverteu a 203 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 77. 204 CWH, “Character of Mr. Wordsworth New Poem, The Excursion”, 19, p. 23. 205 Davi Arrigucci Jr., Coração Partido: Uma Análise da Poesia Reflexiva de Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2002), p. 66. 206 John Whale, “Hazlitt and the Limits of the Sympathetic Imagination”, In. Imagination Under Pressure, 1789-1832, Aesthetics, Politics and Utility (Cambridge University Press, 2000), pp. 110-139. 207 David Bromwich, “Introduction” to Edmund Burke, On Empire, Liberty and Reform: Speeches and Letters (New Haven: Yale University Press, 2000), p. 10.
145
corrente revolucionária e “estragou os planos do conhecimento e dos progressos
civilizatórios, lançando-os de volta a, pelo menos, um século e meio atrás.”208
Tamanha é a força da imaginação moderna. Se, no mundo antigo, “as ideias se
mantinham confinadas e bem definidas pelas formas materiais ou pelos veículos com
as quais elas eram conduzidas”209, a imaginação moderna “passa da terra ao céu, do
céu à terra”210 e promove a união dos extremos. Nesta “era liberal em que vimemos”,
à contraparte do argumento exposto acima, há uma licença para a apostasia política,
pois é permitido a qualquer um “mudar de lado (...), de um extremo a outro.”211
Entretanto, a maneira como isso se deu em Burke e nos Poetas do Lago não foi a
mesma, constrangidos, como estavam, à “lógica das formas.”212 Em “On the Prose-
Style of Poets”, Hazlitt expressou essa contraposição a partir de duas imagens
distintas, porém igualmente rústicas e sublimes: a águia e a camurça.
The Plain Speaker, a última coletânea de ensaios reunidos por Hazlitt, abre-
se com um texto seminal, “On the Prose-Style of Poets”. Este, segundo Tom Paulin,
“concentra as reflexões de uma vida sobre a natureza da prosa e traça, com efeito,
uma poética da prosa.”213 No parágrafo de abertura, reencontramos a imagem do
pássaro-poeta que caminha desajeitado, cambaleante, sobre o chão duro da prosa:
“como um pássaro, ele [o poeta] desliza sobre o ar com facilidade para consigo
mesmo e deleite dos espectadores; mas, como aquelas ‘criaturas emplumadas de duas
patas’, quando tocam o chão da prosa e as matérias-de-fato, não possuem o mesmo
domínio sobre seus pés.”214
A primeira metade do ensaio descreve a singularidade da matéria, cadência e
tarefa da prosa de não-ficção (o ensaio) por oposição à poesia e sua interface com a
linguagem do dia-a-dia e os bate-papos entre amigos. Na segunda parte, “a explicação
das observações anteriores a partir de exemplos”215, Hazlitt propõe um exercício de
leitura, uma análise comparativa do estilo de Burke em Letter to a Noble Lord, com
208 CWH, “Arguing in a Circle”, 19, pp. 271 e 273. 209 CWH, “Character of Mr. Burke”, 7, p. 312. 210 Shakespeare, “Sonhos de uma Noite de Verão”, In. William Shakespeare, Teatro Completo: Comédias, tradução de Carlos Alberto Nunes (Rio de Janeiro: Agir, 2008), p. 202. A Passagem é citada por Hazlitt em “On Poetry in General”, In. CWH, 5, p. 2. 211 CWH, “Illustrations of The Times Newspaper: on Modern Apostates”, 7, p. 131. 212 William Hazlitt on The Elgin Marbles (London: Hesperus Press Limited, 2008), p. 34. 213 Tom Paulin, “Introduction” to William Hazlitt, The Plain Speaker: The Key Essays (Oxford: Blackwell Publishers, 1998), p. vii. 214 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 5. 215 Idem, p. 10.
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um artigo de jornal sobre a morte de Lorde Castlereagh (diplomata inglês no
Congresso de Viena), seguido da análise dos estilos em prosa de Coleridge, Southey,
Hunt, Byron e Scott. Os pontos que amarram as duas partes do ensaio são a imagem
do “chão da prosa” e, junto a ela, o argumento de que “a boa prosa possui textura,
forma, padrão, beleza e, em termos hazlittianos, momentum.”216
É no primeiro desses exemplos, sobre o estilo prosaico de Burke, que Hazlitt
se vale das imagens da águia e da camurça como símbolos, respectivamente, da
poesia e da prosa sublimes:
Sempre me pareceu que o mais perfeito estilo prosaico, o mais poderoso, o mais
estonteante e o mais ousado – aquele que esteve mais próximo do precipício que
separa a poesia da prosa sem, contudo, jamais se desgarrar dele – foi o de Burke.
Ele possui a solidez e os efeitos reluzentes do diamante (...); nunca perde o objeto
de vista; mais ainda, está sempre em contato com ele, do qual obtém a ampliação
e as variações de seus impulsos. Pode-se dizer que ao caminhar ‘sobre a ponta
sólida do cabo de uma lança’ ele transpõe sorvedouros; ainda assim, há um lugar
de descanso e um suporte tangível para os seus pés: ele não está suspenso no
nada. O estilo de Burke se diferencia da poesia, a meu ver, tal como a camurça da
águia. A primeira ascende a quase igual altitude da segunda: toca nas nuvens,
olha para o precipício abaixo, é pitoresca e sublime; mas, entrementes, ao invés de
plainar sobre o ar, mantém-se firme no despenhadeiro rochoso, escala de maneira
abrupta e intrincada e pasta pelos córtices mais rugosos ou colhe das flores mais
ternas. O princípio com o qual guiou a sua pena foi a verdade, não a beleza; não o
prazer, mas o poder.217
A princípio, ficamos surpresos pela escolha de Burke, arqui-inimigo de
Hazlitt na causa revolucionária, como exemplo do mais perfeito estilo prosaico. A
escolha dele, entretanto, junto à paisagem agreste e sublime na descrição acima,
estabelece, alusivamente, um elo entre a contrarrevolução e a Investigação sobre o
Sublime e o Belo; ou ainda, como ressaltou John Whale, entre poder e imaginação218.
216 Paulin, “Introduction” to The Plain Speaker: The Key Essays, p. vii. 217 CWH, “On The Prose-Style of Poets”, 12, p. 10 (grifo nosso). 218 John Whale, “Hazlitt on Burke: The Ambivalent Position of a Radical Essayist”, In. Romantic Studies, Volume 25, p. 474.
147
São algumas as passagens de The Plain Speaker que remetem os leitores à
obra de juventude de Burke. Antes de entrar para o mundo da política, lembra Hazlitt
em “On Diferences Between Writing and Speaking”, Burke foi autor de “um tratado
sobre o Sublime e o Belo.”219 Nesta obra, que é um divisor de águas nos estudos sobre
o tema, a partir de “um exame atento do âmago de nossas paixões”220, Burke cristaliza
as diferenças entre o sublime e o belo. Em linhas muito gerais, enquanto o belo
corresponde ao sentimento de prazer decorrente da conformação dos sentidos às
representações do mundo exterior; diante do sublime, os sentidos e a imaginação se
veem incapazes de formar uma imagem clara e distinta. No esforço de abarcar o todo,
a mente, em seu vínculo estreito com o corpo, se projeta ao píncaro da tensão para,
em seguida, despencar no vazio representacional. Física e metaforicamente, os
precipícios dos vastos desfiladeiros montanhosos, junto às suas texturas escarpadas,
formam as paisagens sublimes por excelência, como observamos no trecho abaixo:
A extensão pode ser em comprimento, em altura ou em profundidade. Dentre essas o
comprimento é o que causa uma impressão menor: um terreno uniforme de uma
centena de jardas nunca produzirá um efeito semelhante ao de uma torre de cem
jardas de altura, ou um rochedo ou montanha dessa altitude. É lícito supor,
igualmente, que a altura seja menos importante do que a profundidade e que nos
choque mais olhar para um precipício abaixo do que para um objeto de altura
equivalente (...); e os efeitos de uma superfície irregular e acidentada parecem mais
fortes do que quando ela é uniforme e polida.221
Desse modo, a camurça é símbolo de resistência daquele que rivaliza com o
cenário ameaçador. Sem negar a terra, nem dela fugir, como a águia, ela alcança
altitudes monumentais. Decerto, isso não ocorre com a mesma facilidade ou beleza,
pois seus “materiais prometem pouco” e se ocupam de “áridas matérias-de-fato e
raciocínios cerrados.”222 Se a águia voa para o Parnaso, a camurça, com suas pernas
fortes, terrenas e maciças, “mantém-se firme no despenhadeiro rochoso”. A
materialidade sonora do excerto em inglês é significativa: “it stands upon a rocky
219 CWH, “On the Difference Between Writing and Speaking”, 12, p. 269. 220 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e do Belo, p. 22. 221 Idem, p. 97 (grifo nosso). 222 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 10.
148
cliff”. A sequência de palavras monossilábicas, acentuadas ritmicamente pelas
consonantes surdas /t/, /p/ e /k/, mimetizam a ascensão dura e gradual da camurça.
Esta é também símbolo daquela atividade da imaginação que parte do
construído, daquilo que é herdado pela tradição. Ao analisar uma passagem de Letter
to a Noble Lord (“a mais ligeira, impetuosa, oblíqua e esportiva de todas as suas
obras” 223 ), Hazlitt se pergunta: de que outro modo senão pela imaginação a
Constituição Inglesa e as baixas planícies de Bedford são “corporificadas em um todo
único”224? Ainda que por vias distintas, na poesia ou na boa prosa, é a imaginação que
coalesce uma ideia na outra. Entretanto, porque na prosa ensaística “o tema geral e a
imagem particular são incompatíveis”225, ou ainda, porque há aqui uma “não-
identidade entre o modo de exposição e a coisa”226, para que seus tropos e figuras
ocupem o lugar dos argumentos, a imaginação é artificial e violentamente engastada
na matéria, “ao invés de brotar naturalmente dela.”227 Em outras palavras, os trabalhos
envolvidos no ato de criação do ensaio em prosa são árduos e exigem uma dura e
muscular energia, uma força sublime, tal qual a escalada da camurça.
Esse sentido de imaginação guarda alguma semelhança com aquele que
encontramos na Biographia Literaria de Coleridge. A partir das observações de Kant
sobre a imaginação produtiva e imaginação reprodutiva228, o poeta desenvolveu a
importante distinção entre imaginação e fantasia. Enquanto esta consiste no simples
rearranjo dos materiais fornecidos pela experiência empírica, aquela é, num primeiro
momento, “força vital” e agente de toda percepção humana e, num segundo, “vontade
consciente” que “dissolve, difunde e dissipa, para então recriar.”229 A esse segundo
momento da imaginação, Coleridge cunhou um termo específico: esemplastic (“to
223 CWH, “On the Difference Between Writing and Speaking”, 12, p. 275. 224 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 12. 225 Idem, p. 11. 226 Theodor W. Adorno, “O Ensaio como Forma”, In. Notas de Literatura I (São Paulo: Editora 34, 2008), p. 37. 227 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 11. 228 Ver, sobretudo, Immanuel Kant, “Analítica do Belo (Crítica do Juízo, §§ 1-22)”, In. Crítica da Razão Pura e Outros Textos Filosóficos (São Paulo: Editor: Victor Civita, 1974), pp. 303-334. 229 Samuel Coleridge, The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria I (Princeton University Press, 1983), pp. 304-5.
149
shape into one”), ou, como bem definiu Davi Arrigucci Jr., “modo orgânico de
plasmar a matéria múltipla na unidade.”230
O ensaísta Hazlitt – animal pedestre, sem asas para teorias sofisticadas –
jamais vestiu a camisa de força do jargão. Assim, em seus escritos, os termos
imaginação, fantasia e poesia são, a rigor, indistintos. Até mesmo para Coleridge, diz
Hazlitt em tom de pilhéria, “essa inquisição sobre a imaginação era ininteligível”231,
ou ele foi incapaz de explicá-la ao resto do mundo, o que dá na mesma232. Em partes,
isso se deve a sua alma de poeta; “sua metafísica foi um peso morto sobre as asas de
sua imaginação”. A partir de então, Coleridge, outrora um grande poeta, “escolheu ser
um mau filósofo e péssimo escritor político”. Se a sua poesia juvenil, como as de
Wordsworth e Southey, libertou a palavra das amarras tradicionais e reagiu contra
toda opressão ou estreiteza de gosto, seus escritos em prosa reatavam com o poder
dominante. Rente ao chão comum, seus voos giram em falso, “oscilam com um
movimento vertiginoso e nauseante”233 e parecem, segundo o símile de Hazlitt,
“montar sobre um balão, subir aos céus, acima do rés-do-chão da prosa.”234
Além disso, o produto final do ensaísta prosador contraria, em tudo, o padrão
da forma orgânica. Seus materiais são pré-existentes e compõem, segundo a analogia
de Paulin, “uma peça de bricolagem”235. Implícita a ela está a ideia de que, ao fim e
ao cabo, o ensaio em prosa recusa os pressupostos de uma arte separada da vida
prática. Isso não significa que ela aspire, necessariamente, a uma transformação
social. Pelo contrário, a prosa sublime de Burke reforçava “a causa do despotismo”;
“é o excesso de poder individual que impressiona e obtém a adesão da imaginação”
230 Essa definição de Arrigucci, com base no capítulo X da Biographia Literaria, aparece em seu estudo sobre a poesia reflexiva de Drummond em que o crítico brasileiro com frequência recorre aos conceitos e às imagens forjados pelos romantismos ingleses e alemães, p. 21. 231 CWH, “Coleridge’s Literary Life”, 16, p. 136. 232 Em “Letter to a Young Man Whose Education has been Neglected”, Thomas De Quincey expressa uma opinião similar. Se Coleridge compreendeu a filosofia kantiana melhor do que qualquer outro inglês de seu tempo, “ele abriu o oráculo com uma obscuridade délfica ainda maior do que o original em alemão”. The Collected Writings of Thomas De Quincey, Vol. X (London: A. & C. Black, 1897), p. 77. 233 CWH, “Coleridge’s Literary Life”, 16, p. 137. 234 CWH, “On the Prose-Style of Poets”, 12, p. 15. 235 Paulin, “Introduction” to The Plain Speaker, p. xv. Vale lembrar, Montaigne associa seus ensaios a quadros grutescos ou remendos: “Examinando o procedimento de um pintor num trabalho que possuo, senti vontade de imitá-lo. Ele escolheu o lugar mais belo e no centro de cada parede para ali instalar um quadro elaborado com todo o seu talento; e o vazio a redor, encheu-o de grutescos, que são pinturas fantasiosas cuja única graça está na variedade e estranheza. O que são estes também, na verdade, senão grutescos e corpos monstruosos, emendados como membros diversos, sem forma determinada, não tendo ordem, nexo nem proporção além da causalidade?”. Montaigne, Os Ensaios, Livro I, pp. 273-4.
150
dos homens. Seria possível mobilizar essa mesma força imaginativa para fins
contrários, isto é, para uma arte que estivesse a serviço do povo, da “causa da
liberdade”236?
É isso o que parece sugerir a Londres visionária de Hazlitt, segundo a versão
metropolitana e democrática de outra imagem sublime, “rio de vida humana” [stream
of human life], que encontramos no parágrafo conclusivo de “On Londoners and
Country People”:
Em Londres o homem se torna, como quer o sr. Burke, uma espécie de ‘criatura
pública’. Ele vive no olho do mundo e o mundo no seu. Se testemunha poucos
detalhes da vida privada, há para ele maior oportunidade de observar suas massas
mais extensas e movimentos variados. Ele vê o rio de vida humana jorrando pelas
ruas – suas comodidades e ornamentações empilhadas nas lojas. As casas dão
provas de sua indústria; os edifícios públicos, da arte e magnificência do homem;
enquanto os entretenimentos públicos e balneários formam um centro e sustento
para os sentimentos sociais. Uma casa de espetáculos é, por si só, uma escola da
humanidade, onde todos os olhos se fixam sobre a cena alegre ou solene, onde
risos ou lágrimas se espalham de um rosto a outro e onde milhares de corações
batem em uníssono! (...) Em Londres existe um público, e cada homem faz parte
dele. Somos gregários e agimos segundo a espécie. Temos um tipo de existência
abstrata; os laços sociais e de boa-camaradagem se formam por uma comunidade
de ideias e conhecimento (não pela proximidade local). Esta é a principal razão do
tom de sentimentos políticos das cidades vastas e populosas. Aqui, o corpo-
político é visível, um tipo e imagem daquele enorme Leviatã, o Estado.
Compreendemos aquela vasta denominação, o Povo, da qual vemos diariamente
uma décima parte se movendo à frente de nós; e, ao emancipar nossas
imaginações de interesses insignificantes e da dependência pessoal, aprendemos a
venerar a nós mesmos enquanto homens e a respeitar os direitos da natureza
humana.237
Se compararmos a paisagem que o trecho descreve com aquela que lemos
acima, sobre o estilo prosaico de Burke, notamos, de saída, a clássica oposição entre o
campo e a cidade; ou ainda, em termos mais específicos, entre os desfiladeiros
236 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants”, 7, p. 149. 237 CWH, “On Londoners and Country People”, 12, p. 77.
151
montanhosos, entrecortados por fissuras, e a superfície abundante e transbordante da
metrópole. Em ambos, os termos para descrevê-los são igualmente sublimes – não por
acaso, o último trecho se abre com uma citação de Burke, aproximando os leitores,
por associação de ideias, à Investigação sobre o Sublime e o Belo. As massas da vida
humana são extensas; os edifícios públicos, magnificentes; o Estado, um enorme
Leviatã; o povo, uma vasta denominação; ou seja, todos aqueles adjetivos com os
quais Burke descreve a paisagem sublime – vastidão, infinitude, magnificência e
poder – reaparecem aqui; com exceção, entretanto, de dois: a obscuridade e a
privação238. Ora, obscuridade e privação, segundo a resenha de Hazlitt do poema de
Wordsworth, são os traços distintivos do campo e de seus homens. Daí, por exemplo,
o ódio que nutrem um pelo outro; um ódio, vale lembrar, que torna seus afetos
calejados; seus olhos, embotados. Não é esta, obviamente, a consequência do ódio
para o good hater. Virtude cidadã por excelência, o bom ódio é um exercício de
abstração; é necessário conhecimento para odiar o que deve ser odiado: a “tirania (...),
os inimigos da liberdade (...) e as injúrias cometidas contra o povo.”239 Essa é a mais
difícil das virtudes, dizia Hazlitt, pois ela não ocorre sem que tenhamos “emancipado
nossas imaginações de interesses insignificantes e da dependência pessoal”. “Razão e
imaginação, ambas, são coisas excelentes”240 ; sobretudo quando se unem para
promover a ruptura com a obscuridade opressora e preencher o vazio com a luz de
uma nova vida coletiva. O sublime metropolitano, segundo o excerto sugere, promove
essa união.
Ainda segundo uma análise comparativa entre os trechos de “On the Prose-
Style of Poets” e de “On Londoners and Country People” – entre o sublime rústico e o
metropolitano –, naquele, os conceitos de verdade e poder, de tal modo engastados
nas imagens, produzem um efeito deslumbrante sobre a imaginação; neste, jamais
esquecemos da natureza abstrata dos conceitos de público, Estado e povo. Entretanto,
também aqui os conceitos são corporificados em imagens; eles se tornam, por assim
dizer, visíveis. A visão é o órgão dos sentidos que comanda todo o trecho: o londrino
vive no olho do mundo; vê o rio de vida humana; na casa de espetáculos, todos os
olhos se fixam nas cenas; o Estado é um corpo-político visível; vemos o povo mover-
238 Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, Parte II, pp. 81-113. 239 CWH, “The Times Newspaper: on the Connection Between Toad-Eaters and Tyrants,” 7, pp. 151-2. 240 CWH, “Coleridge’s Literary Life”, 16, p. 137.
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se diante de nós, etc. Na longa história da filosofia e arte ocidentais, de todos os
órgãos dos sentidos, a visão está mais próxima do conhecimento, estabelecendo uma
espécie de elo entre o corpo e o espírito241. Assim, por mais abstrata ou idealizada que
seja a Londres de Hazlitt, são os conceitos do entendimento, plasmados na imagem
concreta do rio, que dão a forma dinâmica de um imenso movimento político.
Movimento esse que é a expressão de uma imaginação emancipada e coletiva. No
trecho, isso se expressa pela sutil transição no uso dos pronomes: da impessoalidade
do pronome ele (o homem da cidade), para o plural majestático, nós. Nós, quem? O
povo.
O coração de Londres é atravessado por um grande rio. Por ele, a natureza
entra sorrateira na paisagem urbana. Mas ela é humanizada, transmutada no povo. No
léxico político de Hazlitt, poder e povo são sempre antípodas um do outro. Este é o
tema central do ensaio “What is the People?”, “uma das peças de discurso político
mais magníficas jamais escritas na Inglaterra”, segundo Terry Eagleton242. A forma de
pergunta, no título, é um gesto retórico, a indagação sobranceira de um interlocutor
imaginário e conservador. A ela, o ensaísta rebate: “e quem é você que pergunta
senão um membro do povo? Mas se você é alguém, como afirma que o povo é
ninguém?”. Segue-se, então, uma saraivada de golpes contra a visão de que o povo é
um simples ajuntamento de átomos humanos. Antes, ele se identifica com os mais
pobres, aqueles que sustentam o Estado com suas “lágrimas, suor e sangue.”243
Nesse sentido, surpreende encontrarmos nas ruas de Londres “um tipo e
imagem daquele enorme Leviatã”. Mas o povo mede forças com ele. Se o Estado é
enorme, huge (palavra, em inglês, que denota energia concentrada, como o cimo dos
montes), o povo é uma “vasta denominação” [vast denomination]. Sua sublimidade é
como a de um “rio de vida humana que jorra pelas ruas”: quantitativa e consciente de
sua direção. Numa palavra, um sublime democrático. Isso não significa, entretanto,
que Hazlitt levantasse a bandeira deste ou daquele sistema político, pois, dizia ele, a
241 Ver Jules David Law, The Rhetoric of Empiricism: Language and Perception from Locke to I. A. Richards, em particular, o capítulo “The ‘Character’ of Reflection: Hazlitt on Depth and Superficiality” (Ithaca: Cornell University Press, 1993) pp. 165-203. 242 Terry Eagleton, “Ulster Altruism: Francis Hitcheson and William Hazlitt”, In. The Hazlitt Review, Volume 6 (London: The Hazlitt Society, 2013), p. 12. 243 CWH, “What is the People?”, 7, pp. 259 e 265.
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causa do povo é militante, jamais triunfante244. Esse sentido de povo e enfrentamento
foi o toque emancipador que Hazlitt, o ensaísta adversário, deu à imprensa radical
inglesa naqueles anos de resistência. Afinal, ensaio é combate!
244 “Se a causa da liberdade e da espécie humana se tornasse triunfante, ao invés de militante, talvez não arrancaríamos do peito um suspiro de lamento em relação ao passado? (...) Mas não nos alarmemos com esse evento, ainda que fosse o caso; pois o caminho para a Utopia (...), do jeito que as coisas andam, ainda vai levar alguns milhares de anos!” CWH, “Common Places”, 20, p. 138. Para uma discussão sobre esta e outras passagens em Hazlitt quanto à oposição entre causa militante e causa triunfante, ver Kevin Gilmartin, “Afterwords: William Hazlitt – a radical critique of radical opposition?”, In. Print Politics, pp. 232-233.
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Conclusão
Excêntrico e Concêntrico
El ensayo: este centauro de los géneros, donde hay de todo y cabe todo,
propio hijo caprichoso de una cultura que no pode ya responder al orbe
circular y cerrado de los antiguos, sino la curva abierta.
Alfonso Reyes, ‘Las Nuevas Artes’1.
O romance é uma espécie de filho pródigo da literatura. Nega o aconchego
do lar, lugar aprazível mas ameno, para desbravar o mundo e viver uma vida de
ardores e perigos. Parte para regiões longínquas; descobre reinos perdidos; trava
guerras com inimigos ferozes; vive e morre de amores; sobe aos cumes mais
suntuosos, desce às profundezes mais abjetas; percorre desertos, mares, vilarejos e
grandes cidades. Sempre nômade, nunca se fixa. À diferença da personagem bíblica,
quando regressa à casa do pai, por um desvio de percurso, e é por ele e seus criados
recebido com festa e banquete, não esconde a todos que está ali de passagem. Não são
raros os romances de outrora que traziam no subtítulo aventuras, fortunas,
adversidades; marcas que ainda hoje não lhes são de todo estranhas. Movido pelo
gosto do novo e por certa aversão ao repouso, o romance ambiciona grandes feitos.
Novel, novo ou novel, é o nome que os ingleses atribuíram a esse gênero de escrita. É
essa constante busca pelo novo, por aventuras, que tece a trama de dois dos romances
que definiram o futuro do gênero: Don Quixote e Robinson Crusoé. Naquele, de tanto
se engolfar em leituras, pareceu conveniente a Don Quixote sair pelo mundo
“desfazendo todo gênero de agravos e pondo-se em transes e perigos”2. Neste,
Robinson Crusoé empreendeu um caminho fora da rota comum, renunciou aos
conselhos do pai, preferiu a vida de destemperos e desconfortos à “condição média”3,
1 Alfonso Reyes, Obras Completas de Alfonso Reyes, IX (México: Fondo de Cultura Económica, 1952), p. 403. Registra-se aqui meus sinceros agradecimentos ao latinista mexicano, e grande amigo, Claudio GH por ter chamado a minha atenção a esta passagem. 2 Miguel de Cervantes Saavedra, O Engenhoso Fidalgo Don Quixote de la Mancha (São Paulo: Editora 34, 2002), p. 60. 3 Daniel Defoe, A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), pp. 46-47.
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mais adequada, dizia este, à felicidade humana. Talvez o motivo para reiteradas
renúncias ao espaço seguro e familiar e à eterna busca pelo desconhecido se deva à
própria natureza da ficção, traço distintivo do gênero romanesco, por meio do qual ele
se desprende de si e se “insinua em corpos estranhos”4. Como magistralmente definiu
José Paulo Paes, o romance é o lugar da outridade5.
O ensaio, que aqui comparamos ao irmão mais velho do filho pródigo – em
razão de ter sido uma personagem secundária nos estudos sobre os gêneros literários6
–, em tudo lhe é diverso. Fruto a um só tempo da experiência artística e intelectual, a
meio caminho entre criação e epifenômeno ou acontecimento7, por longo tempo, mais
de quatro séculos, o ensaio passeia despreocupado e despercebido pelo mundo da
literatura. Quando com ele cruzamos pelas ruas, em suas frequentes caminhadas ao
léu, não parece haver nele nenhum traço particular que o distinga. E, no entanto, seu
convívio nos revela ora um distinto cavalheiro, um gentleman – no sentido que a
palavra tinha para David Hume, isto é, homem cultivado cujo encanto é sempre maior
quando menos aparece8 –, ora uma figura idiossincrática, dada a caprichos. Culto,
mas desprovido de arrogância; fantasioso, mas de um realismo prudente;
personalíssimo e egotista, mas respeitoso e interessado pelas diferenças entre os
homens, o ensaio tem sempre no horizonte um gesto, um convite cordial ao leitor para
recebê-lo em sua casa e com ele travar uma conversa de peito aberto. O lugar do
ensaio, diz acertadamente Cynthia Ozick, é “junto à lareira”9; noutras palavras, é o
lugar da convivência entre o eu e o outro.
4 A expressão é de Cynthia Ozick, Retrato do ensaio como corpo de mulher, como também é da autora a ideia de contrapor o romance ao ensaio, tomando-os como personagens literárias, Serrote #9, p. 13. Para a relação entre o romance e o filho prodigo, inspirei-me no também brilhante artigo de Michael McKeon, “Parables of the Younger Son (I): Defoe and the Naturalization of Desire”, In. The Origins of the English Novel, pp. 315-37. 5 José Paulo Paes, O Lugar do outro: ensaios (Rio de Janeiro: Topbooks, 1999), pp. 15-26. 6 Como observou Carl H. Klaus: “a despeito do extraordinário crescimento de interesse pelo ensaio nos últimos vinte e cinco anos (...), o ensaio continua sendo um tema amplamente ignorado no mundo da crítica e da teoria”, “Preface”, In. Essayists on the Essay (Iowa City: University of Iowa, 2012), p. xi. 7 Num ensaio de 1947, Max Bense, um dos principais nomes do pensamento alemão de seu tempo, definiu conceitualmente o gênero em termos bastante semelhantes ao nosso. Para ele, o ensaio é um tipo de literatura experimental que habita um “terreno intermediário”, onde criação e convicção (os estados estéticos e éticos) coincidem. Ver, “O ensaio e sua prosa”, in. Serrote # 16, pp. 169-183. 8 Ver Márcio Suzuki, “O Ensaio e a Arte de Conversar”, In. A Forma e o Sentimento do Mundo: jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII. Nas palavras de Suzuki: “Diferentemente dos franceses (que, entre outras coisas, têm um fraco pelas estocadas, trocadilhos e tiradas de espírito), os gentlemen têm uma maneira constante de agir e não se destacam por nenhum gesto de civilidade em particular”, p. 55. 9 Cynthia Ozick, Retrato do ensaio como corpo de mulher, p. 12.
156
É com esse gesto e imagem de acolhida íntima, acrescidos de detalhes quanto
à simplicidade de vestimenta, que Hazlitt descreve a figura de Montaigne, “o primeiro
que, em seus Ensaios, abriu caminho entre os modernos a esse gênero de escrita”, um
gênero que se pretende uma conversa íntima e familiar com o leitor. “Ele não
conversa conosco”, continua Hazlitt, “como um pedagogo com seu pupilo, a quem
deseja transformar num cabeça-dura igualzinho a si mesmo, mas como um filósofo e
amigo”10. A esse gesto e imagem gostaria de sobrepor uma outra, também extraída de
Hazlitt, sobre a condição desterrada do escritor de ensaios, em suas palavras: “ele é
um estrangeiro que não se naturaliza mesmo em seu solo natural”11.
Que o ensaio moderno tenha recusado sua pátria de origem para fazer
morada do outro lado do Canal da Mancha é tão certo quanto seu surgimento com
Montaigne. De Hugo Friedrich a Jean Starobinski, Cynthia Ozick a John Jeremiah
Sulivan, Gilberto Freyre a Lucia Miguel Pereira, os estudiosos são unânimes: em
nenhum outro lugar o ensaio floresceu como na Inglaterra. Depois que o título e o
estilo dos Ensaios, por sorte, aprova Starobinski, se impuseram na pátria adotiva12.
Lucia Miguel Pereira, a quem devemos em língua portuguesa uma das reflexões mais
argutas sobre o tema, ela própria uma ensaísta de mão cheia, definiu o ensaio numa
palavra: excêntrico. Vale lembrar que a autora usa o termo em seu sentido primitivo:
isto é, aquele ou aquilo que carece rigorosamente de um centro. O adjetivo explica,
segundo a autora, a aliança profunda entre o que ela chamou de a índole do ensaio e o
gênio inglês. Em suas palavras, “o ensaísta escreve como o inglês viaja: pelo gosto da
aventura, pelo prazer de descobrir novos horizontes”13; ou ainda, noutro texto
esclarecedor, ela afirma haver no ensaio, sobretudo aquele cultivado na Inglaterra,
algo que parece “escapar às influências telúricas”14. Home is home, be it never so
homely, diz o antigo provérbio inglês, que sugere, segundo Lucia, que a doçura do lar
às vezes produz um tédio amargo. Ora, não é verdade que nos séculos XVIII e XIX a
Inglaterra era conhecida pelos estrangeiros como o país onde as pessoas se
enforcavam para passar o tempo?; e que “o inglês mais ajuizado”, dizia Stendhal, “é
10 William Hazlitt “Sobre os ensaístas de periódico”, In. Revista Serrote, n. 22, p 21. 11CWH, “On the Conversation of Authors”, 12, p. 42. 12 Jean Starobinski, “É Possível Definir o Ensaio?”, In. Revista Serrote # 10, p. 44. 13 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Revista Serrote #22, pp. 5-6. 14 Lucia Miguel Pereira, “Ilha ou Navio”, In. Escritos da Maturidade, p. 147.
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louco uma hora por dia; é visitado pelo demônio do suicídio”?15 É desse modo que o
inglês, filho de Plutão, segundo Heine16, quando escritor de ensaios se exprime por
antinomias: entre a solidão do lar e a atenção ao mundo que se descortina pela janela,
entre o apego à rotina e a necessidade de novas experiências, entre o espírito prático e
uma imaginação inquietadora, entre a morosidade sombria e uma atitude esportiva
perante a vida; e é desse conflito, quando o ensaísta sonda a alma humana e luta com
as ideias, que de ilha, a Inglaterra, ou o ensaio, se fazem navio.
Se, de um lado, nas palavras de John Jeremiah Sulivan, “o ensaio moderno
não se desenvolveu em um país específico, mas em um campo de vibração
transnacional que vai além do canal da Mancha”17; do outro, o autor nos lembra de
uma pequena curiosidade etimológica: “a palavra ensaísta”, diz ele, apareceu
primeiro em língua inglesa “antes de ter sido registrada em francês (...), e não apenas
alguns anos, mas séculos antes”18. Montaigne nunca se definiu como ensaísta e depois
dele o ensaio na França, continua Sulivan, “vira algo menos íntimo, mais opaco, se
transforma nas meditações de Descartes e nos pensamentos de Pascal”19. Numa peça
de Ben Jonson, Epicoene ou a mulher silenciosa, encenada pela primeira vez na corte
de Jaime I em 1610, a personagem Jack Daw é incitada pelos seus colegas a recitar
um poema de sua lavra. Mas Jack Daw é a um só tempo vaidoso e péssimo poeta.
Seus colegas sabem disso e lisonjeiam-no, para que faça mais palhaçadas, dizendo:
“há algo em si de raro engenho e razão; é um Sêneca... é um Plutarco”. “Tenho
minhas dúvidas”, respondeu Jack Daw, “se aqueles sujeitos têm algum crédito entre
cavalheiros”. “São autores sérios”, retrucam-no. “Asnos sérios, isso sim!”, ele diz.
“Meros ensaístas, de umas poucas frases soltas e só”20. E foi então que a palavra
ensaísta veio ao mundo, não isenta de uma nuance pejorativa.
15 Stendhal, O Vermelho e o Negro, tradução de Raquel Prado (São Paulo: Cosac & Naify, 2006), p. 302. 16 Heinrich Heine, Os Deuses no Exílio, tradução de Márcio Suzuki e Marta Kawano (São Paulo: Iluminuras, 2009). Nas palavras do autor: “Às vezes, essa ilha branca também é chamada de Brea ou Britinia. Será que com isso se faz alusão à branca Albion, às rochas calcárias da costa inglesa? Seria uma ideia humorística querer caracterizar a Inglaterra como a terra dos mortos, como o reino de Plutão, como o inferno. Mas, de fato, talvez ela se apresente assim a alguns estrangeiros”, p. 88. 17 John Jeremiah Sullivan, “Essai, Essay, Ensaio”, In. Revista Serrote #19 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2015), p. 143. 18 Idem, p. 131. 19 Idem, ibidem. 20 Idem, p. 144. Para o trecho da peça, ver Epicoene or the Silent Woman (Lincoln: University of Nebraska Press, 1966), p. 32.
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Na época, Francis Bacon, que estava na plateia, publicara pouco antes uma
primeira versão dos Essays (1597). Antes mesmo dele, o próprio monarca Jaime I,
homem de letras muito sério, publicou Ensaios de um Aprendiz, obra de 1584, isto é,
quando Montaigne ainda preparava o segundo volume dos Essais. Se Jaime I tinha ou
não conhecimento do livro de Montaigne, não sabemos. Entretanto, há fortes indícios
de que ele o tivesse, pois seu tutor era George Buchanan, “um dos gigantes da
Renascença”, que décadas antes dera aula em Bordeaux e “um de seus alunos (...) era
um menino da cidade chamado Michel Eyquem”21. Seja como for, na Inglaterra, o
ensaio e o ensaísta nascem juntos e cobertos “pela placenta da ambiguidade”22. Ou
ainda, segundo Sullivan: “o ensaio é francês, mas o ensaísta é inglês”23.
Quanto à origem etimológica da palavra ensaio, Sullivan remonta às suas
raízes latinas: exagium, exagere, exigo...24, isto é, palavras que dão a ideia de
“empurrar para fora”, na definição de Starobinski, “expulsar, depois exigir”25. Ou
seja, segundo a hipótese que perseguimos aqui, o ensaio, curvilíneo e centrífugo, ao
mesmo tempo não tem centro algum. Desse modo, ele compartilha algo da intrepidez
do romance, mas sem jamais abandonar sua “têmpora meditativa”26. A multiplicidade
de temas que percorre é quase tão vasta, ou talvez ainda maior que a do romance. Nas
palavras de John Gross, “existem ensaios sobre o entendimento humano, ensaios
sobre o que fiz durante as férias, ensaios sobre a verdade e ensaios sobre batata frita;
ensaios que começam com uma resenha crítica; outros, que terminam com um
sermão”27. Contudo, a principal diferença entre um e outro – o romance e o ensaio –
não está decerto na matéria, mas na maneira. Se o romance, como dissemos, nunca
regressa ao conforto da casa paterna senão como hóspede ilustre, o ensaio (que por
contraste comparamos ao irmão mais velho do filho pródigo), entre a obediência e a
recusa, conquistou debaixo do solar de sua família um canto todo seu.
Foi somente em idade avançada, logo após a morte do pai, e depois de ter
ocupado diversos cargos públicos, entre eles o de conselheiro no Parlamento de
Bordeaux, que Montaigne se retirou para as terras que lhe couberam de herança, mais
21 Idem, pp. 135-7. 22 Idem, p. 144. 23 Idem, p. 132. 24 Idem, p. 138. 25 Jean Starobinski, “É Possível Definir o Ensaio?”, p. 43. 26 Cynthia Ozick, Retrato do ensaio como corpo de mulher, p. 12. 27 John Gross, The Oxford Book of Essays, p. xix.
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especificamente para a torre onde mandara reformar sua biblioteca, a fim de meditar e
escrever seus ensaios. Montaigne, como é sabido, não é o nome de família de Michel,
mas da propriedade. E foi por ela que quis ser lembrado – ele foi o primeiro de sua
linhagem a abandonar o antigo nome (Eyquem) –, justamente porque ali firmou porto
seguro para “a maré muito variável”28 de uma mente tão fértil e inquieta. O momento
da descoberta dos ensaios, que conhecemos da própria pena de Montaigne, merece ser
lido na íntegra:
Ultimamente, que me recolhi em casa decidido tanto quanto puder a não me meter em
outra coisa e passar em repouso, e à parte, este pouco de vida que me resta, pareceu-
me não poder fazer maior favor a meu espírito do que deixá-lo em plena ociosidade, a
etreter-se consigo mesmo, parar e sossegar: o que esperava que ele pudesse doravante
fazer mais facilmente, tendo se tornado com o tempo mais ponderado e mais maduro.
Mas descubro que, ‘a ociosidade sempre torna o espírito inconstante’, ao contrário,
agindo como cavalo fugido, ele dá cem vezes mais liver curso a si mesmo do que
daria a outros, e engendra-me tantas quimeras e monstros fantásticos, uns sobre os
outros, sem ordem e sem propósito, que para contemplar à vontade sua inépcia e sua
estranheza comecei a assentá-los num rol, esperando, com o tempo, que ele se
envergonhe de si mesmo29.
Em comentário sobre essa passagem, último parágrafo do ensaio “Da
Ociosidade”, o importante filólogo e romanista norte-americano Blanchard Bates nos
lembra que esse recanto “agradável e cômodo”30, como Montaigne costumava se
referir à sua biblioteca, em nada se confunde com uma “torre de marfim”31. Quando
demovia os olhos dos livros, podia observar pela janela alta o extenso e estimulante
mundo lá fora; e com frequência era convocado a tomar parte nele, o que sempre se
dispunha a fazer de bom grado. Sua solidão, dizia Auerbach, era algo que ainda não
tinha nome, era o meio pelo qual dava ele “livre curso” às forças interiores de seu
28 Famosa expressão de Alexandre Eulálio com a qual o autor consagrou sua reflexão sobre o gênero. Ver “O Ensaio literário no Brasil”, In. Revista Serrote n. 14, p. 7. 29 Michel Montaigne, Os Ensaios, Uma Seleção. Tradução de Rosa Freira D’Aguiar (São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2009), pp. 49-50. 30 Montaigne, Os Ensaios, Livro III, “Da Vanidade”, p. 300. 31 Blanchard Bates, “Introduction”, In: Montaigne Selected Essays, The Charles Cotton – W. Hazlitt translation (New York: The Modern Library, 1949) p. xv.
160
espírito e corpo32. A observação de Bates nos interessa em particular porque a ele
devemos a continuidade de um projeto idealizado por Hazlitt e concretizado pelo
neto, William Carew Hazlitt, notável biógrafo da era vitoriana: a saber, o de editar as
obras de Montaigne segundo o tradutor inglês do século XVII, Charles Cotton. Ela
nos interessa sobremaneira junto à passagem de Montaigne citada antes porque
captura os movimentos excêntricos e concêntricos com os quais pautei minha reflexão
sobre o ensaio. No descanso e repouso do quarto, a mente imita um cavalo fugido, sai
de si, “percorre cem milhões de lugares num instante”33.
Se não for possível, como creio, definir o ensaio, espero ao menos, com esse
percurso fantasista, e seguindo as valiosas observações de Starobinski34, assumir
como ponto de partida que, mais do que em qualquer outro gênero literário – ou,
segundo Lucia Miguel Pereira, mais do que em qualquer outra “atitude mental”35 –, o
exercício de reflexão interna, a tomada de consciência de si e a conquista de um teto
todo seu, aspectos tão intrínsecos ao ensaio, não se separam da inspeção da realidade
exterior, da descoberta do outro e da consciência de que o trabalho de imaginação do
escritor ficaria incompleto sem a participação ativa do leitor.
32 Erich Auerbach, Ensaios de Literatura Ocidental, p. 148. 33 Xavier De Maistre, Viagem em volta do meu quarto, tradução de Sandra M. Stoparo (São Paulo: Editora Hedra, 2009), p. 40. 34 Starobinski, É possível definir o ensaio?, pp. 43-61. 35 Lucia Miguel Pereira, “Sobre os Ensaístas Ingleses”, p. 17.
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