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Universidade do MinhoEscola de Direito
Carlos Roberto Rocha Coimbra Antunes
outubro de 2016
RELATÓRIO DE ATIVIDADE PROFISSIONAL
A denúncia anónima e o processo penal
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Carlos Roberto Rocha Coimbra Antunes
outubro de 2016
RELATÓRIO DE ATIVIDADE PROFISSIONAL
A denúncia anónima e o processo penal
Trabalho efetuado sob a orientação doProfessor Doutor Fernando Conde Monteiro
Mestrado em Direito Judiciário
(Direitos Processuais e Organização Judiciária)
Universidade do MinhoEscola de Direito
II
Nome: Carlos Roberto Rocha Coimbra Antunes
Endereço eletrónico: [email protected]
Número de Cartão de Cidadão n.º 10783880
Título do relatório de atividade profissional:
“A denúncia anónima e o processo penal”
Orientador: Professor Doutor Fernando Conde Monteiro.
Ano de conclusão: 2016
Mestrado em Direito Judiciário – Direitos Processuais e Organização Judiciária
É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO PARCIAL DESTE RELATÓRIO PROFISSIONAL APENAS
PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO,
QUE A TAL SE COMPROMETE.
Universidade do Minho, ______/______/_________
Assinatura:
III
AGRADECIMENTOS
À minha família, em particular à minha esposa Alexandra, e aos meus filhos - Tomás e
Daniel - nascidos no decurso deste trabalho.
Ao senhor Professor Doutor Fernando Conde Monteiro, pela honra que me concedeu
ao aceitar a orientação deste relatório profissional e pela total disponibilidade e preciosos
conselhos na elaboração do mesmo.
IV
A denúncia anónima e o processo penal.
O presente relatório crítico pretende, à luz da formação e experiência profissional do
signatário, propor uma breve reflexão sobre a natureza e condições de admissibilidade da
denúncia anónima enquanto embrião do processo-crime.
Nele se aborda o enquadramento normativo e a praxis judiciária na matéria,
sopesando-se a sua falta de fidedignidade e os perigos de manipulação, bem como as
consequências para os visados da instauração de processo-crime, em contraponto com o seu
contributo para a prossecução dos fins últimos do processo penal.
Nos termos da alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que
instituiu no artigo 86.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a regra da publicidade no
inquérito, alterou-se de igual modo o seu artigo 246.º, relativo à denúncia, com a introdução
do n.º 5 [atual n.º 6 após a Lei n.º 130/15 de 04 de Setembro], deixando explícito que a
denúncia anónima só poderá determinar a abertura de inquérito se dela se retirarem
indícios da prática de crime ou se constituir ela mesmo crime.
Postula-se, não obstante, a defesa de uma praxis e de uma formulação normativa
mais rigorosas nesta matéria, sobretudo num Inquérito com uma fase preliminar em regra
pública, deixando ainda mais evidente que tais indícios terão que ser objetivos e concretos,
e não meras generalizações ou suspeições, sem um lastro minimamente fundamentador.
Se ao denunciante deve ser admitida, ante certas circunstâncias, a preservação do
anonimato no exercício do direito de denúncia, a ele deve ser igualmente imputada, em
contraponto, uma necessidade acrescida de especificação e de sustentação minimamente
fundada da sua suspeita, atenta a potencial lesão na esfera jurídica do visado que a mera
instauração de processo-crime necessariamente comportará e os perigos da sua utilização
abusiva.
De qualquer modo, tal nunca poderá implicar, em regra, o reconhecimento de
qualquer valor probatório ao documento anónimo, exceto quando é ele mesmo objeto ou
elemento do crime, nos termos do artigo 164.º, n.º 2 do C.P.P., podendo apenas a denúncia
anónima servir como meio de aquisição da notícia do crime.
V
Anonymous report and criminal procedure
Throughout this master degree paper it is intended to stimulate, thru the signatory’s
education and professional experience, a brief reflection on the nature and eligibility
conditions of an anonymous report as an “embryo” for criminal procedure.
The major aim is to approach the normative framework and judicial practice related
to this matter, taking into account its lack of trustworthiness and the dangers of
manipulation, as well as the consequences to those aimed in the criminal prosecution, by
contrast to its contribution to achieve the purpose of criminal procedure itself.
According to the amendment made by Law n. 48/2007 (August 29th) it has been
established in n.1 of the 86th article (Portuguese Criminal Procedure Code), the rule of
publicity in the lawsuit, being also amended the 246th article, related to the report,
introducing the 5th article (currently n. 6, after Law n. 130/15 September 4th) where it is
clear that filing a lawsuit as an anonymous plaintiff can only take place if the report made
contains strong evidence of a crime or the report is a crime itself.
It is postulated, however, the defense of a praxis and a strictest normative
formulation regarding this subject, in particular in a lawsuit that is, in general, a matter of
public record in its preliminary stage, letting it clear that such evidence will have to be
objective and specific and not merely generalizations or suspicions, lacking a sustainable
basis.
If a person might be able, in certain circumstances, to file a lawsuit as an anonymous
plaintiff, that person has also to be aware that proceeding anonymously holds certain
responsibility such as the increased need to be carefully specific and sustain his founded
suspicions in order to ensure that the report made will not unduly prejudice the defendant
or that anonymous reports may be used abusively.
In any case, it could never imply, as a rule, the recognition of any probative value in
an anonymous document, except when it is the object or element of the crime itself (as
established in n. 2 of the 164th article of the Portuguese Criminal Procedure Code), and so,
the anonymous report may only serve as a way to obtain information that a crime occurred.
VI
ÍNDICE:
A denúncia anónima e o processo penal ................................................................................................. IV
Anonymous report and criminal procedure ............................................................................................. V
SIGLAS E ABREVIATURAS: ..................................................................................................................... VII
PARTE I Formação e atividade profissional ..................................................................................... 1
HABILITAÇÕES ACADÉMICAS. ........................................................................................................... 2
ATIVIDADE PROFISSIONAL ................................................................................................................ 3
PRÉMIOS E DISTINÇÕES .................................................................................................................... 7
PARTE II Relatório crítico ................................................................................................................... 8
I. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 9
II. DESENVOLVIMENTO ...................................................................................................................... 13
2.1 A denúncia anónima à luz dos princípios jurídicos fundamentais. O Princípio da
Legalidade e o Princípio da Oportunidade. A discricionariedade real ou de facto. ....... 13
2.2 A admissibilidade da denúncia anónima enquanto embrião do processo-crime.
Enquadramento normativo. ............................................................................................. 17
2.3 A praxis judiciária.............................................................................................................. 21
2.4 Breve estudo de direito comparado. ............................................................................... 26
2.5 A investigação de factos e a irrelevância das motivações............................................... 36
2.5.1 A instrumentalização da atuação judiciária para fins políticos, mediáticos ou de
perseguição pessoal. A denúncia caluniosa e a difamação..................................... 36
2.5.2 A necessidade da admissão da denúncia anónima atentos os fins da investigação
criminal. ................................................................................................................... 39
2.5.3 As garantias dos denunciantes no combate à corrupção: a Lei n.º 19/2008 de 21
de Abril. ................................................................................................................... 41
2.6 Valor processual e probatório da denúncia anónima. .................................................... 43
2.7 A salvaguarda do anonimato. ........................................................................................... 50
2.7.1 O informador. .......................................................................................................... 50
III. CONCLUSÕES .................................................................................................................................. 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ............................................................................................................ 56
NOTÍCIAS E ARTIGOS JURÍDICOS (consultados online em 20.09.2016): ............................................... 57
REFERÊNCIAS JURISPRUDENCIAIS: ........................................................................................................ 58
VII
SIGLAS E ABREVIATURAS:
Art. Artigo
BKMS Business Keeper Monitoring System (sistema encriptado de denúncia online
utilizado pela polícia do estado federal alemão de Baden-Württemberg)
Cf. Conforme
CPP Código de Processo Penal
CPP francês Code de Procédure Pénale (Código de Processo Penal francês)
CPP italiano Codice di Procedura Penale (Código de Processo Penal italiano)
CRP Constituição da República Portuguesa
DCIAP Departamento Central de Investigação e Ação Penal
DJE Diário de Justiça Eletrônico (Brasil)
DR Diário da República
MP Ministério Público
OPC Órgãos de Polícia Criminal
Op. Cit. Opus Citatum
PJ Polícia Judiciária
SMS Short Message Service
SS. Seguintes
StPO Strafprozeßordnung (Código de Processo Penal alemão)
STJ Supremo Tribunal da Justiça
TC Tribunal Constitucional
TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TRC Tribunal da Relação de Coimbra
V.G. Verbi gratia
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HABILITAÇÕES ACADÉMICAS.
Licenciatura em Direito, na área de ciências jurídico-económicas, na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, concluída em Setembro de 1999, com a média final de 14 valores.
Curso Livre de Contabilidade, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1997-
98).
Programa de intercâmbio universitário de estudantes Erasmus, realizado na Università Delgi
Studi di Siena - Facultà di Giurisprudenza, em Siena - Itália (1998-99)
Estágio de advocacia sob orientação do Dr. Fernando Rocha Peixoto, mediante inscrição no
Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados (2000-01).
Curso de preparação para admissão ao Centro de Estudos Judiciários, lecionado na
Faculdade de Direito da Universidade Portucalense do Porto (2002-03).
38.º Curso de Formação de Inspetores-estagiários, na Escola de Polícia Judiciária, concluído
em Outubro de 2004, com a média final de 14.01 valores.
Aprovação na componente curricular do Mestrado em Direito Judiciário (Direitos
Processuais e Organização Judiciária), na Universidade do Minho (2009-10), com a
classificação final de 15 valores.
- 3 -
ATIVIDADE PROFISSIONAL
Exercício da advocacia em nome individual, com a cédula profissional n.º 9174-P, em
matérias de âmbito cível, criminal, laboral, predial e comercial (2001-2003).
Ingresso na Polícia Judiciária (P.J.), na qualidade de Inspetor-estagiário, a 25 de Outubro de
2004, com os seguintes períodos de estágio:
De 25.10.2004 a 24.02.2005
Colocado na Diretoria do Porto da P.J., na 1.ª Secção da S.R.C.B. (Secção
Regional de Combate ao Banditismo) / 1.ª Brigada
Investigação de crimes de roubo com recurso a arma de fogo, sequestros,
raptos e utilização de explosivos.
De 25.02.2005 a 24.06.2005
Colocado no Gabinete Nacional da Interpol (Lisboa)
Cooperação policial internacional mediante recolha e difusão de informação,
extradições e mandados de detenção internacionais.
De 25.06.2005 a 06.11.2005
Colocado na Diretoria de Lisboa da P.J., na 2.ª Secção / 1.ª Brigada
Investigação de crimes sexuais (violação, coação sexual, abuso sexual de
crianças, abuso sexual de menores dependentes).
Nomeação definitiva como Inspetor na Polícia Judiciária, a 25 de Outubro de 2005, tendo
passado a exercer funções:
De 07.11.2005 a 23.04.2006
Inspetor (escalão 1), colocado na Diretoria do Porto da P.J. (S.R.I.C.C.E.F. -
Secção Regional de Investigação da Corrupção e da Criminalidade Económica
e Financeira)
Investigação de crimes de contrafação e passagem de moeda falsa.
- 4 -
De 24.04.2006 a 04.10.2011
Inspetor (escalão 1), colocado no Departamento de Investigação Criminal de
Braga da P.J., na 1.ª Secção / 2.ª Brigada
Investigação de crimes de roubo com utilização de armas de fogo, sequestro e
tráfico de armas.
De 05.10.2011 à atualidade
Inspetor (escalão 2), colocado no Departamento de Investigação Criminal de
Braga da P.J., na 4.ª Secção/ 2.ª Brigada
Investigação de criminalidade económico-financeira (corrupção, prevaricação
praticada por titular de cargo político, peculato, fraude na obtenção ou desvio
de subsídio, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais).
Realização de múltiplas diligências de investigação e de atos processuais enquanto
profissional de investigação criminal, incluindo, entre outros: buscas, vigilâncias, detenções,
extradições, inquirições, interrogatórios, acompanhamento de interceções telefónicas,
realização de expediente, elaboração de relatórios, participação em audiências de
julgamento e acompanhamento de detidos a Tribunal.
Incumbência da execução da investigação em centenas de Inquéritos-crime, dos quais se
destacam, a título exemplificativo e pela sua diversidade:
Inquéritos com detenções fora de flagrante delito, para apresentação a primeiro
interrogatório judicial, por crimes de roubo com utilização de arma de fogo e
sequestro:
NUIPC 696/04.4GAFLG, NUIPC 1276/05.2PBGMR, NUIPC 372/06.3GAFLG,
NUIPC 719/06.2GAEPS, NUIPC 530/06.0JABRG, NUIPC 431/09.0JABRG, NUIPC
82/10.7JABRG e NUIPC 624/10.8JABRG.
- 5 -
Inquérito com detenções fora de flagrante delito por crimes de homicídio e roubo
com recurso a arma de fogo (processo já transitado em julgado com condenações a
penas de 24 anos e 3 meses e de 22 anos e 3 meses de prisão efetiva):
NUIPC 89/07.1GAVCN (apenso ao NUIPC 133/07.2GACMN).
Inquérito com detenções fora de flagrante delito de indivíduos por corrupção (alvo
de acusação e despacho de pronúncia):
NUIPC 146/11.0JABRG (inquérito altamente complexo, com XIX volumes e
cerca de 5.000 folhas, centenas de intervenientes processuais, 13 apensos de
transcrições de interceções telefónicas, 8 apensos de buscas, e em
colaboração com o Gabinete de Recuperação de Ativos, arresto de 10 imóveis,
5 viaturas e instrumentos financeiros no valor aproximado de € 850.000,00).
Inquérito com matéria indiciária suficiente, (alvo de condenação em primeira
instância a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, e obrigação de indemnização
cível), por crimes de peculato praticados por titular de cargo político:
NUIPC 164/11.8TACMN.
Inquéritos com matéria indiciária suficiente, com proposta de suspensão provisória
do processo pelo arguido ou acusação, por crimes de fraude na obtenção de subsídio:
NUIPC 51/14.8TAVRM, NUIPC 2756/14.4TDLSB.
Inquérito com suficiente matéria indiciária, já alvo de dedução de acusação, por
crimes de prevaricação praticados por titulares de cargos políticos:
NUIPC 103/14.4TACBT.
Formação Profissional:
Seminário “Abuso Sexual de Crianças e Jovens – Contexto Legal e Recolha de Prova”,
Escola de Polícia Judiciária, Loures, 04 e 05/07/2005;
Seminário “A Investigação Criminal e os Direitos Humanos – Os meios especiais de
Obtenção de Prova – a Jurisprudência Nacional e do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem”, Escola de Polícia Judiciária, Loures, 02 e 03/01/2006.
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Participação no “1.º Congresso de Investigação Criminal”, organizado pela Associação
Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal, Porto, 16 e 17/03/2006.
Frequência do “Curso de condução defensiva avançada”, Escola de Polícia Judiciária,
Loures, 09 a 13/10/2006.
Seminário “O Novo regime jurídico das armas de fogo”, Escola de Polícia Judiciária,
Loures, 24 a 28/03/2008.
Seminário “Investigação de crimes violentos contra as pessoas”, Escola de Polícia
Judiciária, Loures, 12 a 16/10/2009.
Participação no “3.º Congresso de Investigação Criminal – Novas Perspetivas e desafios”,
organizado pela Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal, Figueira
da Foz, 29 e 30/03/2012.
Congresso Internacional “Infrações Económicas e Financeiras: Estudos de Criminologia e
Direito”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 20/02/2014.
Seminário “Noções básicas de contabilidade”, Escola de Polícia Judiciária, Loures, 07 a
10/10/2014.
Classificações de serviço:
Em Fevereiro de 2008, a classificação de “Muito Bom”, com a média de 9,52 valores.
Em Abril de 2010, a classificação de “Muito Bom”, com a média de 9,52 valores.
Em Fevereiro de 2012, a classificação de “Muito Bom”, com a média de 9,52 valores.
Em Março de 2014, a classificação de “Muito Bom”, com a média de 9,72 valores.
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PRÉMIOS E DISTINÇÕES
Prémio do “Rotary Club” e da Câmara Municipal de Fafe: “Melhor aluno do 11.º ano da
Escola Secundária de Fafe”, no ano letivo 1992/93.
Pessoalmente mencionado no agraciamento com “Louvor Coletivo” atribuído pela
Ministra da Justiça, Dra. Paula Teixeira da Cruz, em 06.10.2011, ao seu grupo de
Inspetores da P.J., “por terem revelado altos índices de competência, profissionalismo,
voluntariedade e entrega à causa pública, contribuindo assim para o êxito de várias
investigações complexas no âmbito do combate ao crime violento, o que em muito
dignificou o papel da Polícia Judiciária” (Despacho n.º 14024/2011, publicado em Diário
da República, II.ª Série, n.º 200, de 18/10/2011, p. 41320).
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“Desordens evidentes, mas consagradas, e em muitas nações
tornadas necessárias pela fraqueza da constituição, eis o que são as
acusações secretas. Um tal costume torna os homens falsos e fingidos
(…) mas se eu tivesse que ditar novas leis, em qualquer canto
abandonado do universo, antes de autorizar uma tal prática, a minha
mão tremeria, e teria toda a posteridade diante dos olhos.”
CESARE BECCARIA, “Dos delitos e das penas”, Cap. XV - Acusações secretas
I. INTRODUÇÃO
Tendo por lastro a experiência profissional do signatário, pretende-se no presente
relatório crítico abordar uma questão jurídica concreta: a natureza jurídica da denúncia
anónima e as circunstâncias da sua admissibilidade enquanto embrião do processo-crime.
Não se pretende substituir o inilidível entendimento concreto de cada magistrado do
Ministério Público, a quem, nos termos dos artigos 241.º, 246.º, n.º 6 e 262.º, n.º 2, todos do
Código de Processo Penal, incumbe determinar in casu a abertura de inquérito, em função
da consideração da denúncia anónima como notícia de crime.
Apenas contribuir para uma breve reflexão sobre as circunstâncias da sua
admissibilidade, a sua formulação no direito positivo e alguma praxis judiciária, sublinhando-
se alguns efeitos perniciosos que comporta.
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Ao longo dos tempos a admissibilidade da denúncia anónima foi marcada por
sucessivos avanços e recuos1.
Durante o império romano, alguns indivíduos dedicavam-se a fazer negócio da
delação e houve senadores que a ela recorreram de forma sistemática para promoção das
suas carreiras.
Segundo Tácito, um dos períodos mais negros ocorreu nos últimos anos do reinado
de Tibério (14 D.C. - 37 D.C.), uma época de terror, com múltiplos procedimentos baseados
em delações anónimas que conduziam à execução por traição.
Após as críticas de Tácito2 e de Séneca3, os imperadores seguintes começaram a olhar
para a delação anónima com crescente desagrado.
Plínio, governador de Bitínia 4 , solicitou a Trajano instruções sobre denúncias
anónimas que visavam os cristãos, tendo obtido como resposta que não deveria persegui-
los, mas apenas castigá-los caso fosse feita prova, e de modo a que, se negassem o
cristianismo e prestassem culto aos deuses romanos, obtivessem o perdão. Determinou-lhe
ainda «em nenhum delito hão de admitir-se as denúncias anónimas já que são um péssimo
precedente e impróprias do nosso tempo»5.
Os imperadores Constantino e Teodósio aumentaram as suas reservas em relação às
delações, chegando a sancioná-las com a redução à escravatura e mesmo com a
determinação da pena capital aos delatores condenados pela terceira vez por denúncias
anónimas.
1 Seguimos as referências históricas de EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, “La posible inviabilidad de una denuncia anónima o fundada en fuentes no verificables como elemento precursor de una instrucción penal”, artigo consultado em 20.09.2016, disponível online em http://www.elderecho.com/penal/inviabilidad-verificables-elemento-precursor-instruccion_11_560680001.html, que cita BELLOMO, EDOARDO, “Comentario delle leggi: desunto dalle esposizioni dei motivi, dai rapporti delle commissioni e dalle discussioni seguite nel Parlamento / a cura dell`avv. Edoardo Bellomo” – A. 1 (1851) – Torino. 2 TÁCITO, “Annales”, VI, 7,7, apud EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, Op. Cit. 3 SENECA, “De beneficiis”, III, 26, 1, apud EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, Op. Cit. 4 Caius Plinius Caecilius Secundus, ou Plínio, o Jovem, foi nomeado por Trajano, em 111 D.C., governador imperial na Bitínia (território da atual Turquia) e não Britania como por lapso refere EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO. Fonte: Wikipedia, versão portuguesa, consultada em 20.09.2016. 5 CHURRUCA, JUAN, “Cristianismo y Mundo Romano”, Marcial Pons, Madrid, 2009, p. 137, apud EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, Op. Cit.
- 11 -
No Código Teodosiano, os delatores eram comparados aos traidores, sendo
castigados com a pena do corte da língua e afogamento6.
Já na Idade Moderna, a denúncia anónima foi recuperada como uma das peças-chave
do processo inquisitório, quer nos processos eclesiásticos, quer nos de direito régio.
No Antigo Regime, a denúncia anónima tornou-se um meio comum para iniciar uma
investigação criminal contra um súbdito.
Até mesmo na Sereníssima República de Veneza, tida como uma das mais modernas
e democráticas à época, se tornou comum os cidadãos instalarem caixas de correio,
conhecidas como “Bocca di Leone”, para recolha de denúncias anónimas junto dos vizinhos e
posterior encaminhamento para o “Conselho dos Dez”7, que as tramitavam de forma
secreta.
Já então se aduzia que tal expediente configurava um meio de promoção da
igualdade social, permitindo às pessoas mais humildes transmitir às autoridades crimes
perpetrados por pessoas de estratos superiores, sem o perigo de represálias.
Contra tais práticas, tantas vezes deturpadas e abusivas, começaram a insurgir-se
insignes pensadores do Século XVIII, como Montesquieu8 e Beccaria9, alertando para o
perigo para a saúde pública e coesão social de uma nação que estriba o seu sistema de
justiça na delação.
Prossegue, presentemente, a discussão secular, entre os que sustentam a
necessidade da denúncia anónima, baseados em razões de segurança nacional e de proteção
da vida dos cidadãos, na imprescindibilidade do anonimato para obtenção de notícias de
6 TEODOSIO, X (10.10): «Delatores dicuntur, qui aut facultates prodiderint alienas aut caput impetierint alienum. Quicumque delator cuiuslibet rei exstiterit, in ipso proditionis initio a iudice loci correptus continuo stranguletur, et ei incisa radicitus lingua tollatur, ut si quis proditor futurus est, nec calumnia nec vox illius audiatur.» [Ano 438 D.C.], apud EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, Op. Cit. 7 O “Consiglio dei Dieci”, “Consiglio dei X” ou simplesmente “Dieci”, era um dos órgãos máximos do governo da República de Veneza entre 1310 e 1797, formado por dez membros, eleitos anualmente pelo Grande Conselho de Veneza (“Maggior Consiglio”) tendo por incumbência zelar pela segurança do estado veneziano. Fonte: Wikipedia, versão italiana, consultada em 20.09.2016. 8 MONTESQUIEU, “De L´esprit des Loix”, Livre VI, Chapitre VIII, “Des accusations, dans les divers gouvernemens”, apud EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, Op. Cit. 9 BECCARIA, CESARE “Dei delitti e delle pene”, Cap. XV “Accuse Segrete”, apud EIRE, JOSÉ VICENTE RUBIO, Op. Cit.
- 12 -
crimes de outro modo incomunicadas e na obrigação profissional de investigação oficiosa
por parte das autoridades judiciárias independentemente da fonte, e, por outro, os que
sustentam que as denúncias anónimas causam um prejuízo social superior ao alegado
benefício10, introduzindo um vírus de desconfiança nas relações entre os cidadãos e
convertendo-se em elemento de desagregação social. Acrescem as dificuldades de defesa
que comportam para os cidadãos visados que desconhecem as fontes das acusações,
permitindo, além disso, frequentemente, a prolação de calúnias e difamações impunes.
Na verdade, trata-se de uma matéria que numa sociedade fortemente mediatizada,
como a nossa, e em particular agora num inquérito sob a regra da publicidade, lesa
frequentemente os direitos fundamentais dos cidadãos, e enceta uma injustificada
manipulação e oneração das autoridades judiciárias, seja por motivos fúteis, de suspeição
generalizada ou mesmo por deliberado atentado à imagem pública dos denunciados.
10 Assim parece entender a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, que aprovou em sessão plenária de 20.06.2013, a sua
Resolução N.º 16/2013/M, denominada “Por um regime político transparente e de responsabilização dos cidadãos”, com o seguinte teor:
“Um regime democrático tem de ser transparente e de responsabilização dos Cidadãos. Infelizmente, no sistema jurídico português, restam
ainda manifestações do período da ditadura. Uma dessas manifestações é o facto de uma denúncia anónima, expressão de covardia,
permitir a abertura de processos de inquérito judiciais ou policiais. Assim, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, nos
termos regimentais, resolve solicitar aos Senhores Deputados à Assembleia da República, eleitos pelo Círculo Eleitoral desta Região
Autónoma, a iniciativa de um diploma que vincule o prosseguimento processual de uma denúncia, ao conhecimento da identidade do
denunciante” (in Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, I Série, n.º 95, de 19.07.2013, p.2).
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II. DESENVOLVIMENTO
2.1 A denúncia anónima à luz dos princípios jurídicos fundamentais. O Princípio da
Legalidade e o Princípio da Oportunidade. A discricionariedade real ou de facto.
A Constituição da República Portuguesa preceitua no seu artigo 219.º que compete
ao Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar,
incumbindo-lhe, além do mais, “exercer a acção penal orientada pelo princípio da
legalidade”.
Funda-se aí a sua legitimidade, para, no âmbito de um processo penal de estrutura
essencialmente acusatória, mas temperado por um princípio de investigação oficial, ser o
titular da ação penal, baseado nos princípios da separação de funções, da legalidade, da
objetividade, da imparcialidade e da autonomia.
No que diz respeito ao princípio da legalidade, podemos reconduzi-lo a uma tripla
dimensão11:
i) Obrigatoriedade de iniciativa ou de promoção processual - o Ministério Público
encontra-se obrigado a proceder criminalmente sempre que obtém notícia de
crime, nos termos do artigo 262.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
“Ressalvadas as exceções previstas neste Código, a notícia de crime dá sempre
lugar à abertura de inquérito”; em estreita articulação com o princípio da
oficialidade, previsto no artigo 48.º do CPP e que dispõe: “O Ministério Público
tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições dos artigos
49.º a 52.º”, ou seja, com as limitações respeitantes à natureza dos crimes
particulares ou semipúblicos. Estipula ainda o artigo 241.º do CPP que “O
Ministério Público adquire notícia do crime por conhecimento próprio, por
11 Vide TEIXEIRA, CARLOS ADÉRITO, “Princípio da Oportunidade – Manifestações em sede Processual Penal e sua Conformação Jurídico-Constitucional”, Ed. Almedina, 2006, pp. 49-52.
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intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia, nos termos dos
artigos seguintes”.
ii) Obrigatoriedade de prossecução processual - o Ministério Público é obrigado a
promover efetivamente o inquérito, realizando todas as diligências de prova
tendentes apurar a existência de crime, a identificação do autor e a sua
responsabilidade;
iii) Obrigatoriedade de exercício da ação penal - o Ministério Público deve deduzir
acusação sempre que no caso tenha reunido indícios suficientes que
fundamentem a existência de crime, a identidade do seu autor e se mostre
razoável a expectativa de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Tem aumentado o número de autores que entendem que o artigo 219.º da CRP, ao
ver introduzida, na revisão de 1997, a expressão “orientada pelo princípio da legalidade”,
pressupõe uma prevalência, mas não absolutização, do princípio da legalidade12, não
excluindo por isso afloramentos do princípio da oportunidade13.
Entre tais afloramentos, são sobejamente conhecidos, os institutos da suspensão
provisória do processo, do arquivamento em caso de dispensa de pena e do processo
sumaríssimo.
Contudo, ao nível da promoção processual, e numa aceção estrita do princípio da
oportunidade a que normalmente se debate o seu exercício - que é o da intervenção do
dominus da ação penal, o Ministério Público - não parece existir qualquer lugar para tal
princípio, mas antes para o da estrita legalidade, corolário do princípio da igualdade e da não
discriminação: colhendo notícia de crime, o MP deve sempre abrir inquérito, nos termos do
art. 262.º, n.º 2, do CPP (ressalvadas as condicionantes próprias dos crimes de natureza
12 MONTEIRO, FERNANDO CONDE, “Reflexões sobre o Princípio da Legalidade em Matéria Penal a partir do Artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa”, In “Direito na Lusofonia, Diálogos constitucionais no espaço lusófono, Escola de Direito da Universidade do Minho”, 2016, pp. 181-188. 13 RODRIGUES, CUNHA, “Em nome do povo”, Coimbra Editora, 1999, pp. 165-166.
- 15 -
particular ou semipública, e ainda dos casos de promoção de julgamento em processo
sumário ou abreviado ou de aplicação de pena em processo sumaríssimo).
Não obstante, ainda que o operador judiciário se mova neste âmbito por estritos
critérios de legalidade, radica aqui um incontornável espaço de discricionariedade real ou de
facto14: o que é que concretamente deve ser considerado “notícia de crime” nos termos dos
artigos 241.º e 262.º, n.º2, do Código de Processo Penal?
Haverá cabimento para a distinção de notícias “sérias ou qualificadas” de “notícias
infundadas ou pseudonotícias”15?
Deverá seguir-se a prática de perante denúncia anónima com meras alegações
genéricas e conclusivas sobre putativos crimes, ainda que reportadas a episódios de vida,
mas sem qualquer fundamentação factual ou mesmo invocação de razão de ciência, ser
automaticamente aberto inquérito-crime?
Como vimos, a lei expressamente prevê no artigo 246.º, n.º 6, do CPP, que a
denúncia anónima só deve determinar a abertura de inquérito se constituir ela mesmo crime
(v.g., denúncia caluniosa, difamação, injúria, ameaça) ou dela se retirarem indícios da prática
de crime.
Relativamente ao conceito de «indícios», socorremo-nos de PAULO PINTO DE
ALBUQUERQUE16 que inclui «indícios» num dos quatro níveis de convicção do direito
Português, indicando que a lei expressamente equipara o crivo dos «indícios» ao crivo das
14 DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO e ANDRADE, MANUEL DA COSTA, “Criminologia – O homem delinquente e a sociedade criminógena”, Coimbra Editora, 1997, p. 496. 15 CHIAVARIO, MARIO, “A Obrigatoriedade da Acção Penal na Constituição Italiana: o Princípio e a Realidade”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, fasc. 3-4, Julho-Dezembro, 1995, Coimbra Editora, pg. 358-359, comenta sobre a realidade italiana: “na origem do procedimento deve estar sempre uma «notícia de um crime» (…) Estas não são todavia óbvias: e isto é compreensível quando se pensa que «notícias de um crime» podem ser também quaisquer notícias «inqualificadas» de que o Ministério Público tome conhecimento ao ler os jornais (ou, actualmente talvez um pouco menos, pela rádio ou pela televisão. Mas também no campo das notícias «qualificadas – isto é, no seio da grande massa daquelas que parecem ter todos os aspectos formais da «denúncia» - devem ser feitas algumas distinções, desde que se recorde que os «registos» que um decreto ministerial impôs no sentido da compilação [de] todas as participações à Procuradoria da República, existe um que tem a expressa denominação de «registo dos actos não constituintes de notícia do crime». Como que dizendo que se dá já por adquirido que, entre tudo quanto chega à investigação, existe não só um grande número de notícias «infundadas» mas, também, material não indiferente de «pseudo-notitiae criminis». E, tanto quanto parece, em certos serviços chegaram a ser inscritas naquele registo 25% das denúncias recebidas (e assim, consideradas não merecedoras sequer de um arquivamento que sempre chamaria o juiz a intervir)”. 16 ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, anotações ao art. 127.º, p. 347.
- 16 -
«suspeitas» (artigo 1.º, alínea e) do CPP), e reputando por isso como redundante o
qualificativo de «fundados», já que toda a decisão atinente à indiciação, à suspeição e à
imputação deve ser fundamentada, isto é, baseada em «razões», em «fundamentos», em
suma, em argumentos.
Para o mesmo autor, “indício” e “suspeita”, são por isso «razões» que sustentam e
revelam uma convicção sobre a probabilidade, mesmo mínima, de verificação de um facto:
“A suspeita [Anfangsverdacht] não tem de ser premente [dringend] e nem mesmo suficiente
[hinreichend], mas o acto formal da dedução da queixa não fundamenta, por si só, uma
suspeita, competindo ao MP apurar se a queixa apresenta ou não “indícios” ou “suspeitas” e,
havendo-os, se o facto é ou não criminoso” 17.
No caso das denúncias anónimas - ou notoriamente apócrifas, idênticas para o efeito
- perguntamo-nos se bastará uma imputação do género: “Fulano é corrupto. Recebe
dinheiros dos empresários com quem trabalha e amealhou um vasto património em nome
dele e de familiares. É só investigarem!”, para se concluir pela abertura de processo-crime.
Deparamo-nos aqui, conforme referido, com um juízo de discricionariedade real ou
de facto, ainda que vinculado ao princípio da legalidade, a formular in casu pelo magistrado
do MP18.
Tal juízo não poderá ser reconduzido a uma qualquer manifestação do princípio da
oportunidade nos moldes tradicionalmente definidos: não há aqui uma manifestação de
preferências mediante critérios de oportunidade, mas sim a subsunção de uma realidade
fática (a denúncia anónima) a um determinado conceito normativo (notícia de crime). Trata-
se de mera atividade interpretativa para aplicação estrita do princípio da legalidade,
corolário do princípio da igualdade e da não discriminação.
17 Ibidem, p. 348. 18 MIGUEL, JOÃO MANUEL SILVA, “Cartas anónimas: uma perspectiva jurídica”, artigo no jornal “Público”, de 27.01.2004, também entende: “Na avaliação a que tem de proceder, o Ministério Público atenderá ao disposto na lei (artigo 127.º do Código), actuando com pressupostos valorativos, quais sejam os critérios da experiência comum e a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Referem também os Autores que a consideração destes critérios conferem algum grau de discricionariedade ao agente, mas repudiam a ideia de arbítrio na formulação da convicção”. Consultado em 20.09.2016, disponível em: https://www.publico.pt/espaco-publico/jornal/cartas-anonimas-uma-perspectiva-juridica-183472.
- 17 -
Não obstante, tal não impede que esta questão possa ser inserida num plano mais
vasto da oportunidade, não já ao nível da intervenção do dominus da ação penal, mas num
sentido de intervenção de outros decisores politico-legais19.
Tal matéria poderia, assim, ser objeto da estipulação de critérios interpretativos mais
densos e uniformes, quer por via normativa, quer mediante circular da própria Procuradoria-
Geral da República.
2.2 A admissibilidade da denúncia anónima enquanto embrião do processo-crime.
Enquadramento normativo.
Como vimos, nos termos do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa,
compete ao Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei
determinar, incumbindo-lhe além do mais “exercer a acção penal orientada pelo princípio da
legalidade”.
Para o efeito, prevê-se no artigo 262.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
“Ressalvadas as exceções previstas neste Código, a notícia de crime dá sempre lugar à
abertura de inquérito”. Como vimos, além das condicionantes próprias dos crimes de
natureza semipública ou particular (que pressupõem a dedução de queixa, e, no segundo
caso, a constituição como assistente nos autos e a dedução de acusação particular), não será
ainda obrigatória a abertura de fase de inquérito nos casos de promoção pelo MP de
julgamento em processo sumário ou abreviado20 ou de aplicação de pena em processo
sumaríssimo21.
19 Assim TEIXEIRA, CARLOS ADÉRITO, Op. Cit., pp. 20-21, que inclui precisamente a definição das condições de admissibilidade das denúncias anónimas, entre outras, numa noção mais ampla da oportunidade, ao nível da intervenção político-legal do poder político, e, em particular, ao nível da intervenção de um organismo específico ou intermédio para o efeito, ao qual incumbiria, p. ex., o “estabelecimento de correntes interpretativas de nódulos legais e conceitos abertos (v.g. o que se deve entender por “suficiência de indícios” para deduzir acusação nas diversas tipologias de casos (…) no estabelecimento de guide-lines e circulares dirigidas aos estrangulamentos da pirâmide processual de litigiosidade (v.g. através de identificação de um valor de prejuízo abaixo do qual se deverá considerar penalmente não relevante, ou de recomendações sobre rotinas procedimentais a adoptar, ou de orientações sobre o tratamento a dar a denúncias anónimas, infundadas, pouco sérias, etc). 20 RIBEIRO, VINÍCIO, “Código de Processo Penal – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2011, anotação 3 ao artigo 262.º, p. 697. 21 SILVA, GERMANO MARQUES DA, “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento (Marcha do Processo), Vol. 3”, Universidade Católica Editora, 2014, p. 59.
- 18 -
Por outro lado, dispõe o artigo 241.º do CPP: “O Ministério Público adquire notícia do
crime por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante
denúncia, nos termos dos artigos seguintes”.
Não há, portanto, qualquer tratamento diferenciado quanto à origem da obtenção da
notícia do crime. E, no essencial, a distinção legal pode ser reconduzida a duas formas: a do
conhecimento próprio ou mediante denúncia, já que a lei trata o conhecimento obtido pelos
órgãos de polícia criminal como uma espécie de denúncia a ser transmitida no mais curto
prazo possível, podendo estes, também, por sua vez, obter a notícia do crime por
conhecimento próprio ou através da denúncia de terceiros22.
O conhecimento próprio do crime pelo Ministério Público pode advir da sua perceção
direta dos factos constitutivos do crime, ou de perceção indireta (mediante rumor público,
informação reservada ou de informação que não revista as características da denúncia,
como, p. ex., uma notícia nos meios de comunicação social). Nesse caso, só deverá dar lugar
à abertura de inquérito, “quando forem «credíveis» os factos divulgados”23.
A denúncia é, assim, “a transmissão ao Ministério Público, na forma estabelecida por
lei e para efeitos de procedimento criminal, do conhecimento de factos com eventual
relevância criminal”24.
E distingue-se da queixa, porquanto esta, além da declaração de ciência comum à
denúncia, exige ainda a manifestação de vontade de que seja instaurado um processo-crime
para averiguação da notícia e procedimento contra o agente responsável25, em caso de
crimes de natureza semipública ou particular.
A denúncia pode ser obrigatória - para as entidades previstas no artigo 242.º do CPP
e em razão das suas funções - ou facultativa- nos termos gerais do artigo 244.º do CPP:
22 Ibidem, p. 50. 23 COSTA, MAIA [et. al.], “Código de Processo Penal – Comentado”, Editora Almedina, 2014, p. 926. 24 SILVA, GERMANO MARQUES DA, Op. Cit., p. 54. 25 SILVA, GERMANO MARQUES DA, Op. Cit., p. 57.
- 19 -
“Qualquer pessoa que tiver notícia de um crime pode denunciá-lo ao Ministério Público, a
outra autoridade judiciária ou aos órgãos de polícia criminal, salvo se o procedimento
respectivo depender de queixa ou de acusação particular”.
Determina ainda o n.º 1, do artigo 246.º, do CPP que “A denúncia pode ser feita
verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais”, especificando o n.º
2: “A denúncia verbal é reduzida a escrito e assinada pela entidade que a receber e pelo
denunciante, devidamente identificado. É correspondentemente aplicável o disposto no
artigo 95.º n.º 3.”
Em termos conceptuais, portanto, não são assim presentemente exigidos requisitos
formais à denúncia, que, além do mais, tanto pode ser oral (v.g., chamada telefónica), ou
escrita (v.g., carta, e-mail, SMS), nem mesmo quanto à identificação do denunciante, sendo
por isso aptas à prossecução processual as participações anónimas, desde logo quanto aos
crimes de natureza pública.
Já no caso de denúncia anónima sobre crimes de natureza particular ou semipública,
o n.º 7, do artigo 246.º, do CPP, determina que “a autoridade judiciária ou órgão de polícia
criminal competentes informam o titular do direito de queixa ou participação da existência
da denúncia”.
Numa perspetiva histórica, até à revisão do CPP em 1987, a nossa lei adjetiva penal
obrigava à identificação dos denunciantes na formalização da denúncia (não obstando,
contudo, à consideração das denúncias anónimas, a título oficioso, pelo M.P.).
Assim, no Código de Processo Penal de 1929, instituído pelo Decreto n.º 16 489 de
15.02.1929, previa-se no artigo 161.º: «Se a participação fôr feita ao Ministério Público, sê-
lo-á por escrito e assinada pelo participante ou por outrem a seu rogo, e a assinatura
reconhecida por notário. Se fôr feita ao juiz, poderá também ser verbal e reduzida a auto
pelo escrivão, depois de reconhecida a identidade do participante, que deverá assinar o auto,
declarando-se a razão por que não o assina, se não souber ou não puder fazê-lo. § 1.º
- 20 -
Quando a pessoa que fizer a participação verbal não fôr conhecida em juízo, será a sua
identidade abonada por qualquer pessoa idónea que o seja”.
No Decreto n.º 35 007, de 13.10.1945, dispunha o artigo 6.º: “O Ministério Público
exerce a acção penal oficiosamente ou mediante denúncia”, estipulando-se, quanto à
denúncia, no artigo 9.º: “A denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito (…) § 1.º Se a
denúncia for feita verbalmente, será reduzida a auto pelo funcionário que a receber e pelo
denunciante, ou, quando este não saiba ou não possa escrever ou não prove a sua
identidade, por duas testemunhas abonatórias. § 2.º Se a denúncia for feita por escrito, por
particular, será a sua assinatura, ou a assinatura a rôgo, reconhecida por notário”.
Foi através do Decreto-Lei n.º 78/87 de 17 de Fevereiro - que procedeu à revisão do
Código de Processo Penal de 1987 - que passou a prever-se a ausência de quaisquer
requisitos de forma para a denúncia, nos termos do já referido artigo 246.º, n.º 1, do CPP.
Reconhecida a admissibilidade formal da denúncia anónima, o cerne da questão
deslocou-se para a sua relevância jurídica enquanto notitia criminis.
É que, como bem refere GERMANO MARQUES DA SILVA, há casos em que “a notícia
não o é sequer da prática de um crime, embora o denunciante o qualifique como tal, ou a
notícia não mereça credibilidade, como frequentemente sucede com as notícias anónimas”26.
Por sua vez, CUNHA RODRIGUES argumenta: “Uma denúncia anónima pode constituir
meio idóneo de aquisição de notícia do crime, embora as autoridades devam rodear-se, neste
caso, de cautelas. Se a denúncia é formalizada, segue-se, em princípio, a abertura de
inquérito. Se é anónima, cabe à autoridade ajuizar da sua credibilidade que pode resultar do
seu conteúdo ou de outras circunstâncias. Em situações de fronteira, deve proceder-se a
diligências para confirmar a notícia do crime” 27.
26 SILVA, GERMANO MARQUES DA, Op. Cit., p. 50. 27 RODRIGUES, CUNHA, “Justiça e Comunicação Social – Mediação e interacção”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7, fasciculo 4, Out.-Dez. Coimbra Editora, 1997, p. 568.
- 21 -
Subscrevemos PAULO DÁ MESQUITA, quando defende: “Sendo a notícia do crime o
embrião da questão penal, a respetiva comunicação tem de conter todos os elementos
fulcrais da mesma (narrativas factuais e eventuais declarações de vontade sobre o desejo de
procedimento criminal), atenta, em particular, a exigência que decorre dos princípios do
Estado de direito de que a notícia do crime se reporte a um facto específico com relevância
penal que constitua a mola idónea para o desenvolvimento do inquérito investigatório” 28.
O conceito de notícia de crime poderá, assim, apenas, alcançar-se por aproximação
ao artigo 243.º, n.º 1 do Código de Processo Penal - para o qual remete também o artigo
246.º, n.º 3, do CPP, quanto aos elementos constitutivos da denúncia – que define o “auto
de notícia” a elaborar pela autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra entidade
policial, adstrito à denúncia obrigatória nos termos do artigo 242.º do C.P.P., prescrevendo
como seus elementos constitutivos:
a) Os factos que constituem o crime;
b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e
c) Tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos
ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as
testemunhas que puderem depor sobre os factos.
Somos a entender que a denúncia anónima só poderá lograr a sua admissibilidade
enquanto notícia de crime, conquanto cumpra minimamente tais elementos, sendo
inaceitável que, num direito penal que investiga factos e não pessoas, se obrigue a “uma
investigação sobre o que se procura investigar”.
2.3 A praxis judiciária.
Em termos formais, segundo o artigo 247.º, n.º 5, do CPP, o Ministério Público
encontra-se obrigado ao registo de todas as denúncias que lhe forem transmitidas, 28 MESQUITA, PAULO DÁ, “Repressão criminal e iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal”, in I Congresso de Processo Penal, Ed. Almedina, 2005, p. 10.
- 22 -
conforme a Tabela de Registo de Expediente da Área Criminal determinada pela Ordem de
Serviço n.º 2/2013 da Procuradoria-Geral da República em 06.12.2013, complementada pela
Ordem de Serviço n.º 4/2015 de 27.05.2015.
Esse registo é exaustivo, e inclui as denúncias anónimas, quer tenham dado lugar a
novo inquérito, quer tenham sido juntas a processo já instaurado, ou ainda, aquelas cuja
destruição foi ordenada. Inclui igualmente as denúncias manifestamente infundadas29. Este
carácter exaustivo do registo das denúncias parece cumprir uma decorrência elementar do
princípio da legalidade no exercício da ação penal.
Nos termos do n.º 7, do artigo 246.º, do CPP, introduzido pela reforma de 2007 [atual
n.º 8 do mesmo artigo na redação conferida pela Lei n.º 130/15 de 04 de Setembro], não
dando lugar a inquérito, nem sendo junta a inquérito já existente, deve o MP promover a
destruição da denúncia anónima. Essa destruição deve ser registada em auto (com menção
do dia e hora da diligência, da autoridade que ordenou o ato e do funcionário que o realiza,
do número de entrada da denúncia no registo de denúncias e do meio utilizado para a
destruição), devendo ainda ser organizado um arquivo desses autos de destruição de
denúncias anónimas.
Contrariamente a outras ordens jurídicas, não se prevê que as denúncias e os
documentos anónimos devam ser arquivados por algum tempo até à sua destruição (v.g.,
em Itália, o Regolamento per l'esecuzione del codice di procedura penale30, que obriga à
organização de um registo com as denúncias e escritos anónimos que não possam ser
processualmente usados [artigo 5.º, n.º 1], à sua custódia mediante reserva pelo MP [artigo
5.º, n.º 2] e à sua destruição ao fim de 5 anos [artigo 5.º, n.º 3]).
29 Nos termos do artigo 248.º do CPP, os órgãos de polícia criminal estão obrigados a dar conhecimento ao MP de todas as denúncias que lhe forem transmitidas, no mais curto prazo possível, que não pode exceder os 10 dias, incluindo as “notícias de crime manifestamente infundadas”, conforme o n.º 2 do mesmo artigo. 30 Aprovado pelo Decreto Ministerial n.º 334, de 30 de Setembro de 1989, dispõe no artigo 5.º: “1. Le denunce e gli altri documenti anonimi che non possono essere utilizzati nel procedimento sono annotati in apposito registro suddiviso per anni, nel quale sono iscritti la data in cui il documento è pervenuto e il relativo oggetto. 2. Il registro e i documenti sono custoditi presso la procura della Repubblica con modalità tali da assicurarne la riservatezza. 3. Decorsi cinque anni da quando i documenti indicati nel comma 1 sono pervenuti alla procura della Repubblica, i documenti stessi e il registro sono distrutti con provvedimento adottato annualmente dal procuratore della Repubblica. Delle relative operazioni è redatto verbale”.
- 23 -
Segundo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE31, a “renúncia ao processo” com a
destruição da denúncia anónima não viola o monopólio constitucional da ação penal pelo
MP, porquanto aquelas denúncias não comportam uma base probatória mínima para
despoletar a investigação pública e o juízo sobre aquela base compete ao Ministério Público.
Tais considerações são congruentes com o argumento aduzido quanto a um juízo de
discricionariedade real ou de facto a cargo do Ministério Público, sob o princípio da
legalidade.
Uma nota resulta da experiência do signatário na investigação de criminalidade
económico-financeira instada por denúncias anónimas: enquanto nas pequenas comarcas,
entretanto reconfiguradas, sempre se notou uma propensão para a abertura automática de
inquérito, nas instâncias superiores do MP, designadamente no DCIAP, e até ao nível da
Polícia Judiciária, tem-se revelado frequente o recurso a averiguações preventivas, fundadas
no artigo 1.º, da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro, para a recolha de informação adicional
por este órgão de polícia criminal, que apenas resultam em inquérito mediante o aporte de
ulteriores elementos corroboradores da denúncia.
É bastante discutível se tal configura um uso próprio destas averiguações, porquanto
aparentemente destinadas ao acompanhamento de situações preventivas e prospetivas -
vide o seu âmbito de aplicação no artigo 1.º, n.º 3, da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro, em
particular, a alínea a) onde se refere “A recolha de informação relativamente a notícias de
factos susceptíveis de fundamentar suspeitas do perigo da prática de um crime” - e não
propriamente reativas ou de investigação32.
31 ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, Op. Cit., anotações ao art. 246.º, p. 669. 32 Note-se que o primeiro projeto deste diploma, incluindo esta alínea a), do n.º 3, do artigo 1.º, na versão “recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal”, foi declarado inconstitucional pelo acórdão do TC n.º 456/93, por “violação do núcleo essencial do direito fundamental que é o da reserva da intimidade da vida privada, consagrado no artigo 26º, nº 1, da CR, excessivamente exposto na sua esfera pessoal íntima (Intimsphäre), por tempo indeterminado e à revelia de qualquer controlo judiciário ou jurisdicional”. A sua reformulação na presente versão, “recolha de informação relativamente a notícias de factos susceptíveis de fundamentar suspeitas do perigo da prática de um crime”, apesar de não ter sido declarada inconstitucional, foi alvo de quatro votos de vencido no Acórdão do TC n.º 334/94. Por outro lado, a tese vencedora deixou vincado, no ponto 2.4, que “Objecto da recolha de informação deixaram assim de ser factos probatórios de um «crime praticado», único objecto possível de procedimento criminal, para passarem a ser factos probatórios do «perigo da prática de um crime», objecto possível de acções meramente preventivas de polícia”. Acórdãos consultados em 30.09.2016 e disponíveis em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
- 24 -
Não obstante, o recurso que a elas se faz parece sublinhar a questão jurídica versada
neste trabalho.
E ainda que a recolha de ulteriores elementos pela via informal destas averiguações
contemple sérias limitações33, têm na prática a vantagem de permitir um juízo mais
informado à autoridade judiciária34, partilhando nós do pressuposto - que lhe parece
implícito - de que há um elevado número de casos que pela sua inconcreção e falta de
fundamento, não deve, sem elementos adicionais, passar o crivo processual da sua admissão
como notitia criminis.
Em muitos casos, a escassa fundamentação da denúncia anónima não pode ser tida
por suficiente para, de per si, determinar automaticamente a abertura de inquérito e
desencadear os atos processuais formais destinados a aquilatar da sua veracidade,
porquanto, algumas delas, visam precisamente e tão só a prática de tais atos - inquirições,
interrogatórios, buscas, sindicâncias ao património e às contas bancárias, etc. – em
particular agora no âmbito de um inquérito sujeito à regra da publicidade, para sua posterior
publicitação com intuitos difamatórios e de aproveitamento político.
Dir-se-á que, em tal caso, extravasam claramente o simples exercício do direito de
denúncia, sendo criminosas e alvo de persecução penal.
Contrapomos que nem sempre assim será: em várias situações, como a da mera
suspeita conclusiva lançada sobre determinada pessoa, requerendo sindicância à sua
atuação, não se logrará a subsunção ao ilícito típico da denúncia caluniosa (mesmo se, e
33 As averiguações preventivas devem ser documentadas e permitem apenas a recolha de elementos que não ofendam os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro. Não obstante, segundo o artigo do “Jornal Ionline”, de 24.05.2015, com o título “Números do DCIAP sobre averiguações preventivas não bate certo”, e que publicitou as conclusões do relatório da inspeção do MP aos serviços do DCIAP entre 13.09.2009 a 13.09.2013, foram detetados problemas com as averiguações preventivas, quer quanto à sua natureza: «O relatório constatou que as AP funcionam como notícia do crime e como primeiro suporte físico do novo processo, mas observa que o procedimento suscita "alguma estranheza, mesmo reserva", na medida em que todo o procedimento decorre sob "grande sigilo, sem que aos suspeitos/visados e outros intervenientes se dê qualquer explicação ou satisfação, mesmo quando pessoal ou institucionalmente interpelados e, por vezes, até ouvidos em declarações registadas em auto, embora se diga que a audição foi informal"», quer relativamente aos números do seu registo: «“Discrepância que se aproxima das 200 AP, para cujo desaparecimento a inspecção não logrou encontrar explicação razoável que não seja a da incapacidade para um efectivo e fiável controlo estatístico da actividade processual do DCIAP nesta sede", lê-se no documento divulgado pelo Ministério Público”. Consultado em 20.09.2016, disponível em: http://ionline.sapo.pt/264540 34 Sendo ponto essencial que seja dado tempestivo conhecimento ao MP da abertura destas averiguações, podendo questionar-se a suficiência da informação mensal prestada pelo Diretor-Geral da PJ ao Procurador-Geral da República, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro (ainda que, nos termos do artigo 3.º, da mesma Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro, também se obrigue à comunicação e denúncia ao MP, “logo que a Polícia Judiciária recolha elementos que confirmem a suspeita de crime”).
- 25 -
quando, identificado, o denunciante poderá sempre alegar que apenas se referiu a uma
suscetibilidade de investigação). Simplesmente, em tais casos, não existem elementos
mínimos sustentadores das imputações, tratando-se de meras considerações e alegações
genéricas. E, não obstante, denúncias desse teor dão frequentemente lugar à abertura de
inquérito.
Mesmo no caso de denúncias dolosamente falsas, sendo anónimas, na prática,
dificilmente o seu autor será responsabilizado. É, aliás, precisamente essa salvaguarda que
alguns procuram ao “lançar a pedra e esconder a mão”.
Assim, além da questão da criminalização da denúncia dolosamente falsa, questão
diferente reside, a nosso ver, a montante: a de saber o que deve ser admitido no filtro da
promoção processual relativamente à denúncia anónima enquanto notitia criminis;
porquanto, se é verdade que a salvaguarda do anonimato permite a obtenção de notícias de
crime de outro modo desconhecidas, suscita igualmente denúncias caluniosas, ou outras,
conclusivas e diletantes, que não sendo necessariamente criminosas, simplesmente não
deveriam ser tidas como aptas a desencadear a promoção processual.
Para se fundar a abertura de inquérito e a prática de atos formais contra o visado,
com base numa denúncia anónima ou notoriamente apócrifa - que comporta um irreparável
prejuízo para a sua honra e consideração públicas, sobretudo no âmbito de um inquérito
agora sujeito à regra da publicidade - deve ser exigido um critério interpretativo estrito que
requeira ao denunciante um grau de concretização mínima da sua imputação, com factos,
razões ou interesses concretamente identificados, que permitam concluir pela plausibilidade
da existência do crime e não uma mera suspeição genericamente aduzida sobre
determinada pessoa.
A formulação legal “dela se retirarem indícios da prática de crime”, do artigo 246.º
n.º 6, alínea a), do CPP, é um conceito normativo, que poderia, assim, beneficiar de uma
reformulação legislativa, ou mesmo de uma circular da Procuradoria-Geral da República, no
sentido de melhor determinar os seus critérios de aplicação prática, devendo vincar-se a
estrita necessidade de “objetivação/especificação” das imputações por parte do
- 26 -
denunciante, bem como da sua “fundamentação”, sob pena da sua desconsideração
processual.
Alusões não concretamente fundamentadas, tantas vezes meras manifestações de
estados de alma ou pedidos de sindicância a certas pessoas, não podem ser tidas por
suficientes para derrubar o princípio de presunção de inocência que também aqui deve
lograr ponderação 35 , não podendo ser admitidas prossecuções penais arbitrárias,
caprichosas ou notoriamente infundadas.
2.4 Breve estudo de direito comparado.
Existem notórias diferenças para as realidades do direito comparado mais próximo,
que na maioria dos casos resolvem este problema por apelo a uma averiguação preliminar
de natureza policial.
Em Portugal, no que diz respeito às averiguações preliminares - que chegaram a
vigorar nos termos do Decreto-Lei n.º 605/75 de 03 de Novembro, com a redação do
Decreto-Lei n.º 377/77 de 06 de Setembro36, pouco depois da Revolução de Abril, também
conhecidas como “pré-inquéritos” - a sua “experiência foi de tal maneira negativa e mal
recebida nos círculos políticos e jurídicos que, aquando da elaboração do projeto de CPP de
1987 ela não foi sequer seriamente considerada”37.
35 Neste sentido, o Tribunal Constitucional de Espanha na Sentencia n.º 135/1989 de 19.07 – Fundamento jurídico 6 “ (…) al autor del Auto de procesamiento no se le puede exigir el mismo grado de certeza que al juzgador que condena, si bien si le es exigible que razone de dónde emanan los indicios de criminalidad” e ainda “(…) en los casos en que la decisión aparezca notoriamente infundada por carecer de base fáctica o de indicios racionales de cargo o por estar apoyada en fundamentos arbitrarios puede suscitarse la eventual vulneración del derecho a la presunción de inocencia (art. 24.2 C.E.)”. Consultado a 20.09.2016 e disponível online em: http://hj.tribunalconstitucional.es/es/Resolucion/Show/1341 36 Dispunha-se no seu artigo 3.º: “A obrigatoriedade legal da instrução preparatória não exclui que previamente o Ministério Público, ou qualquer autoridade competente, possa proceder a inquérito preliminar (…)”, e no seu artigo 4.º, n.º 1: “Além do Ministério Público, todas as autoridades policiais devem, sempre que seja caso disso, proceder a inquérito preliminar dos crimes públicos de que tenham conhecimento”. 37 DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO “Sobre a revisão de 2007 do Código de Processo Penal português”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 18, 2008, p. 374. Ainda sobre o tema, DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO: “Direito Processual Penal” – Lições coligidas por Maria João Antunes, Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988/89, p. 7.
- 27 -
Ainda assim, GERMANO MARQUES DA SILVA chegou a sustentar que “pode também
suceder que em razão das características da notícia, ainda que anónima, se justifique uma
atividade preliminar do processo, ainda que de natureza policial, no sentido de apurar da
eventual existência de indícios”38.
Presentemente, entre nós, encontram-se previstas apenas averiguações preliminares
no domínio específico do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
486/99 de 13 de Novembro39, justificadas pela existência de uma supervisão por parte da
Comissão do Mercado de Valores Mobiliários que funciona como uma espécie de “filtro
técnico especializado”40 e como decorrência do exercício dos seus poderes de supervisão e
de acompanhamento dos mercados, tendo ainda por objetivo a salvaguarda do correto
funcionamento destes.
Percebe-se a controvérsia desta matéria, atento o exercício da ação penal
constitucionalmente cometido ao Ministério Público41.
Mas, vejamos, então, a realidade de outros ordenamentos:
38 SILVA, GERMANO MARQUES DA, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2.ª Edição, Editorial Verbo, 2000, pp. 53-54, onde sustentava: “Como regra, os simples rumores não determinarão a promoção do processo, antes poderão e deverão ser objecto de investigações de natureza meramente policial no sentido da sua confirmação, da obtenção de indícios credíveis. De modo semelhante quando a notícia é transmitida anonimamente ao Ministério Público.” Estas considerações (sobre eventuais averiguações policiais) foram entretanto abandonadas, limitando-se a dizer na sua mais recente obra de 2014 - SILVA, GERMANO MARQUES DA, “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo), Vol. 3”, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 51-52: “Nestes casos o Ministério Público só promove o procedimento se se convencer da credibilidade da denúncia”. 39 Com antecedente histórico no Código de Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142-A/91 de 10 de Abril, que no seu artigo 16.º, n.º 2, previa: “No exercício dos seus poderes de fiscalização pode a CMVM: (…) b) Realizar inquéritos para averiguação de infracções de qualquer natureza cometidas no âmbito dos mercados de valores mobiliários que afectem o seu normal funcionamento, incluindo delitos de manipulação do mercado, abuso de informação, violação de segredo profissional e outros de natureza semelhante”. 40 PINTO, FREDERICO LACERDA DA COSTA, “O novo regime dos crimes e contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários”, Editora Almedina, 2000, pp. 104-106. 41 ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, Op. Cit., anotações ao artigo 248.º, p. 671, entende ser inconstitucional qualquer formulação (incluindo a do atual n.º 1 do artigo 248.º do C.P.P. que prevê até 10 dias para comunicação da notícia do crime pelo OPC), que confira aos órgãos de polícia criminal a possibilidade de atuar no âmbito das suas ações preventivas num período de “semiclandestinidade”, devendo sim comunicar o recebimento da notícia de crime “logo que” dela tomem conhecimento, admitindo como prazo máximo, face aos meios tecnológicos hoje existentes, as 24 horas, e não esperando até 10 dias. Isto mesmo no caso de notícias “manifestamente infundadas”, como expressamente prevê o n.º 2, do artigo 278.º, do CPP, de modo a não se frustrar a delimitação constitucional dos poderes funcionais do Ministério Público e do OPC, a estrutura constitucional do processo penal, os poderes constitucionais do MP de exercício da ação penal e de domínio do inquérito e as garantias de defesa (vide no sentido de alguns destes argumentos os já citados acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 456/93 e n.º 334/94). No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 105/2004 (que incidiu sobre os artigos 43.º e 44.º do então Regime Jurídico das infrações Fiscais Não Aduaneiras), entendeu-se não ser inconstitucional a existência de “processos de averiguações”, mas, como suscitasse sérias dúvidas a comunicação da sua instauração ao MP apenas no final do mesmo (vide voto de vencida de Fernanda Paula junto do acórdão), o novo Regime Geral das Infrações Tributárias suprimiu esta fase pré-processual, consagrando a comunicação “imediata” ao MP da instauração do inquérito pelos órgãos da administração tributária e da administração da segurança social, e um domínio permanente do MP sobre os atos destes órgãos por via da avocação do inquérito a qualquer momento (cf. artigo 40.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, Lei n.º 15/2001 de 05 de Junho).
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Em Espanha, exige-se formalmente a identificação do denunciante aquando da
apresentação de qualquer denúncia, oral ou escrita, nos termos dos artigos, 266.º, 267.º e
268.º da Ley de Enjuiciamento Criminal.
Contudo, a questão da tramitação de denúncias anónimas relativamente a crimes de
prossecução oficiosa, foi alvo de esclarecimento por parte da Fiscalia General del Estado,
através da Instruccion n.º 3/1993, de 16 de Março, que no seu ponto III titula precisamente:
“La denuncia anonima: su virtualidade como notitia criminis”42.
Aí se faz a resenha histórica do problema, que chegou a assumir foros trágicos,
recordando-se que, na Novissima Recopilación de 1806 (Titulo XXXIII, Ley VII), se chegou a
proibir a investigação de factos denunciados anonimamente, salvo os que assumissem
carácter de notoriedade.
Atento o seu desmesurado uso histórico, na formulação da Ley de Enjuiciamento
Criminal de 1872 (artigos 166.º e 168.º), e da Compilación General de 1879, chegou a
proscrever-se expressamente a denúncia anónima como forma de comunicação de factos
delituosos. Em idêntico sentido, a Real Orden Circular de 27 de Janeiro de 1924, veio
determinar que «las denuncias anónimas no deben ser atendidas por las Autoridades, y
menos dar lugar a actuación alguna respecto del denunciado sin previa comprobación de
hechos cuando parezcan muy fundados».
Conforme referido, a atual versão da Ley de Enjuiciamento Criminal, aprovada
originariamente por Real Decreto de 14.09.1882, continua a impor a identificação do
denunciante:
articulo 266.º: “La denuncia que se hiciere por escrito deberá estar firmada por el denunciador; y si no pudiere hacerlo, por otra persona a su ruego. La autoridad o funcionario que la recibiere rubricará y sellará todas las hojas a presencia del que la presentare, quien podrá también rubricarla por sí o por medio de otra persona a su ruego”
42 Consultada a 20.09.2016, disponível em: https://www.fiscal.es/fiscal/PA_WebApp_SGNTJ_NFIS/descarga/instruccion03_1993.pdf?idFile=12794dc6-9acc-4da0-bbc1-daf779e2f084
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articulo 267.º: “Cuando la denuncia sea verbal, se extenderá un acta por la autoridad o funcionario que la recibiere, en la que, en forma de declaración, se expresarán cuantas noticias tenga el denunciante relativas al hecho denunciado y a sus circunstancias, firmándola ambos a continuación. Si el denunciante no pudiere firmar, lo hará otra persona a su ruego”
articulo 268.º: “El Juez, Tribunal, autoridad o funcionario que recibieren una denuncia verbal o escrita harán constar por la cédula personal o por otros medios que reputen suficientes, la identidad de la persona del denunciador. Si éste lo
exigiere, le darán un resguardo de haber formalizado la denuncia”43.
Acresce que no artigo 259.º da Ley de Enjuiciamento Criminal até se impõe um dever
geral de denúncia a todos os cidadãos: “El que presenciare la perpetración de cualquier
delito público está obligado a ponerlo inmediatamente en conocimiento del Juez de
instrucción, de paz, comarcal o municipal o funcionario fiscal más próximo al sitio en que se
hallare, bajo la multa de 25 a 250 pesetas”44, ao contrário da lei portuguesa, que, como
vimos, impõe apenas a denúncia obrigatória às entidades mencionadas no artigo 242.º do
CPP.
Não obstante tais exigências formais, e ainda que a comunicação anónima não possa
ser conceptualmente subsumida à denúncia, alcança-se da referida Instruccion n.º 3/1993
da Fiscalia General del Estado, que não é posta em causa a sua aptidão para transmitir uma
suspeita geradora de investigação preparatória nos crimes de investigação oficiosa.
Simplesmente, em tais casos, fazendo apelo às diligências de averiguação preliminar que
entender oportunas, poderá o Fiscal, lograda a sua corroboração, instar o Juzgado de
Instruccion a iniciar as correspondentes diligências prévias, dando assim início à primeira
fase do processo penal45.
43 Consultado a 20.09.2016 e disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/1882/BOE-A-1882-6036-consolidado.pdf 44 Consultado a 20.09.2016 e disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/1882/BOE-A-1882-6036-consolidado.pdf 45 O acórdão do Tribunal Supremo espanhol nº 318/2013, de 11.04.2013, cita os antecedentes na matéria e resume: “DENUNCIA ANÓNIMA: las suspicacias históricas están más que justificadas. Un sistema que rindiera culto a la delación y que asociara cualquier denuncia anónima a la obligación de incoar un proceso penal, estaría alentado la negativa erosión, no sólo de los valores de la convivencia, sino el círculo de los derechos fundamentales de cualquier ciudadano frente a la capacidad de los poderes públicos para investigarle. Pero nada de ello impide que esa información, una vez valorada su integridad y analizada de forma reforzada su congruencia argumental y la verosimilitud de los datos que se suministran, pueda hacer surgir en el Juez, el Fiscal o en las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado, el deber de investigar aquellos hechos con apariencia delictiva de los que tengan conocimiento por razón de su cargo”. Note-se, que, como se salienta na fundamentação, embora se aceite a origem do processo com base em denúncia anónima, se faz alusão à necessidade de um juízo de “ponderação reforçado” que valore a sua verosimilhança, credibilidade e suficiência para a instauração do processo penal. E este juízo de ponderação reforçado impedirá que uma denúncia anónima possa servir, por si só “a una solicitud de medidas limitadoras de derechos fundamentales (entradas y registros, intervenciones telefónicas, detenciones, etc.), y, en consecuencia, a decisiones judiciales que adoptan dichas medidas, salvo supuestos excepcionalísimos de estado de necesidad (peligro inminente y grave para la vida de una persona secuestrada, por ejemplo). La supuesta información debe dar lugar a gestiones policiales para comprobar su veracidad, y sólo si se confirman por otros medios menos dudosos, pueden entonces solicitarse las referidas medidas". Consultado em 20.09.2016, disponível em: www.poderjudicial.es.
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Na Alemanha, o Código de Processo Penal (Strafprozeßordnung, ou por abreviatura
StPO) aborda a denúncia no seu § 158 “Strafanzeige; Strafantrag”, estipulando que a
denúncia pode ser transmitida, verbalmente ou por escrito, ao Ministério Público, às
autoridades e oficiais de polícia e aos tribunais locais, nada se requerendo quanto à sua
formalização.
Contudo, à semelhança do caso espanhol, prevê-se a possibilidade de recurso a uma
investigação preliminar - Vorermittlungen - para se aferir da existência de fundamentos
para instauração do processo-crime.
É particularmente interessante a formulação do princípio da legalidade no § 152 do
StPO: além de começar por referir que (1) compete ao Ministério Público a promoção
pública, diz no parágrafo seguinte (2) que salvo disposição legal diversa, lhe compete
investigar todos os crimes rastreáveis, “desde que existam suficientes indícios concretos”. Só
nesse momento fica o MP obrigado pelo princípio da legalidade.
É a seguinte a sua redação:
“§ 152 Anklagebehörde; Legalitätsgrundsatz
(1) Zur Erhebung der öffentlichen Klage ist die Staatsanwaltschaft berufen. (2) Sie ist, soweit nicht gesetzlich ein anderes bestimmt ist, verpflichtet,
wegen aller verfolgbaren Straftaten einzuschreiten, sofern zureichende tatsächliche Anhaltspunkte vorliegen.”
Nos casos em que não é clara a existência de suficientes indícios concretos (ou seja,
da suspeita inicial ou Anfangsverdacht), mas antes uma certa curiosidade, despoletada por
alguma anormalidade face às regras do quotidiano ou improvável ante as leis naturais (por
exemplo, o aparecimento de um cadáver no rio, vários incêndios devastadores geográfica e
temporalmente contíguos ou certas denúncias anónimas), pode o Ministério Público
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determinar uma investigação preliminar - Vorermittlungen46 - durante a qual poderão
apenas ser usadas medidas policiais que não afetem os direitos fundamentais dos cidadãos.
O regulamento com as orientações sobre os processos criminais - Richtlinien für das
Strafverfahren und das Bußgeldverfahren, ou por abreviatura RiStBV - dispõe no seu número
8, que, perante comunicações anónimas, o Ministério Público tem de analisar se deve iniciar
investigação:
“8 Namenlose Anzeigen
Auch bei namenlosen Anzeigen prüft der Staatsanwalt, ob ein Ermittlungsverfahren einzuleiten ist. Es kann sich empfehlen, den Beschuldigten erst dann zu vernehmen, wenn der Verdacht durch andere Ermittlungen eine gewisse Bestätigung gefunden hat.”
Contudo, só mediante o apuramento de suficientes indícios concretos, nos termos do
§ 152, parágrafo 2, do StPO, é que o Ministério Público passará a estar obrigado à promoção
processual.
Em Itália, dispõe o Codice de Procedura Penale:
“Articolo 333.º Denuncia da parte di privati
1. Ogni persona che ha notizia di un reato perseguibile di ufficio può farne denuncia. La legge determina i casi in cui la denuncia è obbligatoria.
2. La denuncia è presentata oralmente o per iscritto, personalmente o a mezzo di procuratore speciale, al pubblico ministero o a un ufficiale di polizia giudiziaria; se è presentata per iscritto, è sottoscritta dal denunciante o da un suo procuratore speciale.
3. Delle denunce anonime non può essere fatto alcun uso, salvo quanto disposto dall'articolo 240.º”.
Atenta a remissão do n.º 3, encontramos adiante:
46 Vide Artigo jurídico em “www.juraforum.de” sobre a “verdacht” [suspeita], indicando precisamente denúncias anónimas como exemplo de situações de incerteza da existência da “Anfangsverdacht” [suspeita inicial] pressuposta no § 152 parágrafo 2 do StPO, para a promoção processual pelo MP, motivo por isso para a “Vorermittlungen” [investigação preliminar]. Consultado em 20.09.2016, disponível em: http://www.juraforum.de/lexikon/verdacht. Em idêntico sentido, citando outras referências doutrinárias: WILHELM, JENS, “Strafverfahrensrechtliche Grundbegriffe”, consultado em 20.09.2016, disponível em http://www.jwilhelm.de/grundbegriffe.pdf
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“Articolo 240.º Documenti anonimi ed atti relativi ad intercettazioni illegali
1. I documenti che contengono dichiarazioni anonime non possono essere acquisiti né in alcun modo utilizzati salvo che costituiscano corpo del reato, o provengano comunque dall'imputato.”
Ou seja, de acordo com a lei italiana, qualquer pessoa pode fazer denúncia de crimes
de natureza pública que sejam do seu conhecimento, oralmente ou por escrito, junto do
Ministério Público ou oficial da Polícia Judiciária. Quando apresentada por escrito, tem que
ser assinada pelo denunciante ou por um seu procurador especial.
Nos termos do n.º 3, do artigo 333.º, do CPP italiano, é expressamente previsto que
das denúncias anónimas não pode ser feito qualquer uso processual, salvo o disposto no
artigo 240.º do Codice de Procedura Penale, isto é, nos casos em que constituam corpo do
delito ou se constate que provêm do próprio arguido.
Não obstante se reconhecer o desvalor processual e a ineficácia probatória dos
escritos anónimos isoladamente considerados, a maioria da doutrina admite a possibilidade
de a autoridade pública, a partir de tais documentos e mediante diligências de investigação
destinadas a aferir da fidedignidade do seu conteúdo, promover, em caso positivo, a
instauração formal da persecutio criminis47, mantendo-se, desse modo, a desvinculação
desse procedimento em relação às peças apócrifas apresentadas às autoridades48.
Em França, existem enormes diferenças face à nossa lei adjetiva penal, desde logo
pela consagração do princípio da oportunidade, nos artigos 40.º e 40-1.º do Code de
Procédure Pénale:
“Article 40
Le procureur de la République reçoit les plaintes et les dénonciations et apprécie la suite à leur donner conformément aux dispositions de l'article 40-1.
47 LEONE, GIOVANNI, “Il Códice di Procedura Penale illustrato articolo per articolo”, v.1., Milano: Società Editrice Libraria, 1937.p.562; apud MORAES, RODRIGO IENNACO DE, “Da validade do procedimento de persecução criminal deflagrado por denúncia anônima no Estado Democrático de Direito”, consultado a 20.09.2016 e disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/27935/validade_procedimento_persecucao_criminal.pdf 48 MIGUEL, JOÃO MANUEL SILVA, “Cartas anónimas: uma perspectiva jurídica”, in artigo no jornal “Público” de 27 de Janeiro de 2004, sustenta que, apesar da formulação expressa e aparentemente inequívoca da lei italiana, podem surpreender-se naquele país três correntes doutrinárias. Além do entendimento referido, há duas outras correntes (mais extremas): uma que sustenta que a denúncia anónima não pode ser usada por ninguém, nem sequer pelos próprios órgãos de polícia criminal, e outra, no sentido de que a denúncia anónima não faz nascer o “dever” para o M.P. de instaurar inquérito, mas que aquele “pode” fazê-lo, sempre que, valorando-a, estime como adquirida a notícia do crime. Consultado em 20.09.2016, disponível em: https://www.publico.pt/espaco-publico/jornal/cartas-anonimas-uma-perspectiva-juridica-183472.
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Toute autorité constituée, tout officier public ou fonctionnaire qui, dans l'exercice de ses fonctions, acquiert la connaissance d'un crime ou d'un délit est tenu d'en donner avis sans délai au procureur de la République et de transmettre à ce magistrat tous les renseignements, procès-verbaux et actes qui y sont relatifs.”
“Article 40-1 Lorsqu'il estime que les faits qui ont été portés à sa connaissance en application des dispositions de l'article 40 constituent une infraction commise par une personne dont l'identité et le domicile sont connus et pour laquelle aucune disposition légale ne fait obstacle à la mise en mouvement de l'action publique, le procureur de la République territorialement compétent décide s'il est opportun: 1° Soit d'engager des poursuites; 2° Soit de mettre en oeuvre une procédure alternative aux poursuites en application des dispositions des articles 41-1 ou 41-2; 3° Soit de classer sans suite la procédure dès lors que les circonstances particulières liées à la commission des faits le justifient.”
Nos termos da lei francesa, as denúncias podem revestir a forma oral ou escrita,
serem identificadas ou anónimas, e dirigidas ao Procurador da República (artigo 40.º do CPP
francês), ou aos oficiais de polícia judiciária (artigo 17.º do CPP francês), que nesse caso têm
o dever de as retransmitir ao Procurador da República sem demora (artigos 19.º e 40.º do
mesmo código).
Contudo, não vigorando o princípio da legalidade, e nos termos dos artigos 40.º e
40.º-1 do Code de Procédure Pénale, o Procurador tem a disponibilidade da ação penal em
função de juízos de oportunidade: perante uma denúncia anónima e ainda que indubitável
notita criminis, tanto pode determinar o seu arquivamento imediato, como a persecução
criminal. Neste caso, pode promover um Enquête Préliminaire de âmbito mais policial
(artigo 75.º e seguintes do CPP francês), ou, nos casos de criminalidade mais grave, uma
Information Judiciaire ou Instruccion junto de um Juiz de Instrução (artigo 79.º e seguintes
do CPP francês).
Já no Brasil, tem-se assistido a uma intensa disputa quanto à validade de
investigações iniciadas com base em denúncias anónimas ou notoriamente apócrifas.
Os que lhe negam validade, sustentam a sua inconstitucionalidade à luz do artigo 5.º,
parágrafo IV, da Constituição da República Federativa do Brasil, que veda expressamente o
anonimato:
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“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”
Neste sentido, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, que apaixonadamente
defende: “a vingar entendimento diverso, será muito cômodo para os salteadores da honra
alheia vomitarem, na calada da noite, à porta das Delegacias, seus informes pérfidos e
ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros, da impunidade”49.
Para a corrente doutrinária e jurisprudencial oposta, tal proibição do anonimato -
disposta na lei fundamental desde a versão de 1891, no artigo 72.º, §12 - tem
essencialmente a ver com a proteção da liberdade de pensamento, visando assegurar a
eventual responsabilização de quem, a pretexto de exercê-la, viole direito de terceiro50, mas
não se reporta diretamente à investigação de crimes ou ao exercício da ação penal,
princípios igualmente com assento constitucional. Por isso, convocam uma harmonização
prática de princípios constitucionais incompatíveis, por apelo ao princípio da
proporcionalidade, admitindo assim como válidas e admissíveis as investigações de crimes
de natureza pública com origem em denúncias anónimas.
Até porque, sustentam, dispõe o Código de Processo Penal brasileiro:
“Art. 5º Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I - de ofício; II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou
a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
(…) § 3.º Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de
infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito”
49 TOURINHO FILHO, FERNANDO DA COSTA: “Código de Processo Penal Comentado”, São Paulo, Ed. Saraiva, 2009, p. 48. 50 MELO, CELSO DE, Ministro [Desembargador], do Supremo Tribunal Federal, em voto proferido no Inquérito n° 1.957-7 – Paraná, em 11/05/2005, apud MORAES, RODRIGO IENNACO DE, Op. Cit.
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Ora, se a lei dispõe que qualquer pessoa do povo pode comunicar a infração, o
anonimato tornar-se-á aqui irrelevante, sendo antes determinante a eventual ausência de
indícios de prova que suportem a verossimilhança dessa informação, ou seja, a ausência de
justa causa.
No fundo, segundo esta vertente, o problema das denúncias anónimas é antes o de
se poder dar início a um inquérito policial a partir de uma delação infundada. Por isso é que
a referida norma processual penal ressalva “verificada a procedência das informações”.
A jurisprudência brasileira parece ter, entretanto, encontrado a sua bissetriz:
Supremo Tribunal de Justiça: “Esta Corte Superior de Justiça, com supedâneo em
entendimento adotado por maioria pelo Plenário do Pretório Excelso nos autos do Inquérito
n. 1957/PR, tem entendido que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só,
não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal,
prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de
indícios que corroborem as informações da fonte anônima, os quais tornam legítima a
persecução criminal estatal”51.
Supremo Tribunal Federal: “Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, nada
impede a deflagração da persecução penal pela chamada “denúncia anônima”, desde que
esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados (86.082,
rel. min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008; 90.178, rel. min. Cezar Peluso, DJe de 26.03.2010; e
HC 95.244, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 30.04.2010) ”52.
Assim, a informação apócrifa não impede a recolha de informação sobre os factos
delituosos, no âmbito de procedimentos preliminares tendentes a apurar a veracidade dos
mesmos, podendo, caso corroborados, daí resultar verdadeira notitia criminis e consequente
deflagração da persecução penal.
51 In Superior Tribunal de Justiça, Quinta Turma, HC 121340/AM, Relator Ministro Jorge Mussi, em 01.03.11, DJE de 25.04.2011. 52 In Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, HC n. 99490/SP, Relator Ministro Joaquim Barbosa, em 23.11.2010, DJE de 31.01.2011.
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Aliás, nos termos da lei processual, a autoridade que conheça da prática de crime
mediante denúncia anónima, terá mesmo o dever de apurar mediante cognição sumária
informal e sem violação de liberdades públicas garantidas constitucionalmente, a
verossimilhança da informação.
Os documentos anónimos não possuem força probatória nem podem ser
incorporados formalmente no processo, salvo quando produzidos pelo acusado ou quando
constituírem elementos do corpo de delito (tal como em Itália)53.
2.5 A investigação de factos e a irrelevância das motivações.
2.5.1 A instrumentalização da atuação judiciária para fins políticos, mediáticos ou
de perseguição pessoal. A denúncia caluniosa e a difamação.
O recurso à denúncia anónima, seja por motivos diletantes e conclusivos, seja com
intuito dolosamente falso e persecutório, não apenas onera os escassos recursos disponíveis
à investigação, como ataca de forma iníqua e irreversível os direitos fundamentais do
cidadão, designadamente o direito ao bom nome, à honra e consideração social.
Numa época em que o espaço público se tornou interativo, polarizado e instantâneo,
com benefícios para a democraticidade, mas idênticos perigos para a emergência de derivas
populistas e sensacionalistas, corremos o risco de assistir a uma ação penal conformada em
instrumento de perseguição pessoal e social.
Tal perseguição não se confina, aliás, à luta político-partidária. Basta pensarmos, por
exemplo, em acusações anónimas visando um professor alegando abusos sexuais de
53 Para aprofundamento da questão no Brasil: MORAES, RODRIGO IENNACO DE, “Da validade do procedimento de persecução criminal deflagrado por denúncia anônima no Estado Democrático de Direito”, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/27935/validade_procedimento_persecucao_criminal.pdf
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crianças, para facilmente intuirmos as irreversíveis consequências para a vida pessoal,
profissional e social do visado, pela mera sujeição a processo-crime.
Com a agravante ignominiosa de nunca lhe ser permitida a reposição integral da sua
honra e verdade, precisamente por ser desconhecida a fonte da imputação, persistindo
assim perene e impune a sombra da infâmia.
É certo que tais consequências poderão ser mitigadas pela determinação excecional
do segredo de justiça no inquérito pelo M.P., nos termos do artigo 86.º n.º 3 do C.P.P.,
sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
Mas, certo é também que, instaurado o inquérito-crime e praticados os atos
processuais subsequentes, mostra-nos a experiência o quão difícil é ocultar por completo o
inquérito, sobretudo em localidades pequenas ou no caso de figuras públicas, subsistindo a
posteriori o rumor insultuoso.
Importa, assim, ter presente que o anonimato pode ser também usado para a prática
de crimes sem responsabilização, ou para comunicação de meras suspeitas diletantes,
revelando-se por isso de particular acuidade a questão da admissibilidade da denúncia
anónima enquanto notícia do crime.
É verdade que apenas entramos no foro criminal não ante uma simples falta de
fundamentação (cuja consequência deverá ser unicamente a sua não admissão enquanto
notitia criminis e destruição), mas sim perante denúncias verdadeiramente dolosas (com a
consciência da sua falsidade).
Dispõe o nosso Código Penal:
“Artigo 365.º Denúncia caluniosa
1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
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Note-se, ainda, que nos casos de mero exercício do direito de denúncia, por
contraposição ao direito à honra do visado, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido
que nos encontramos perante exercício de direitos, prevalecendo o primeiro na ponderação
de interesses, conforme detalhou no seu Acórdão de 21.04.201054:
“Relativamente ao crime de difamação agravada começar-se-á por assinalar que toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, obviamente que, objectivamente, atinge a honra do denunciado.
Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso.
Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – artigo 20º, da Constituição da República.
Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado.
A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lícita. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. A saber: o exercício de um direito (…)”.
E, mais adiante:
“Como o STJ vem decidindo, o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos. “Quase irrestrita” por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com a consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado. Como se refere na outra das mencionadas decisões, se emitidos juízos de valor ou epítetos integrantes de uma ofensa à honra, então a denúncia pode, mas só por essa razão, ser ilícita cedendo o respectivo direito perante a honra (desnecessária e gratuitamente lesada) do denunciado”.
Não obstante, em nosso entender, esta ponderação de direitos não poderá manter-
se inalterada no caso de denúncias anónimas: não estamos aí perante alguém que,
devidamente identificado, pretende comunicar os factos que conhece, com os elementos
54 Proc. 1/09.3YGLSB.S2, Relator: Oliveira Mendes, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2912a416a7be0f95802577130036597d?OpenDocument
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probatórios que possui, expondo-se pessoal e publicamente ao contraditório, sendo por isso
merecedor de toda a tutela jurídica na ponderação do exercício de direitos em conflito, mas
sim ante uma comunicação anónima e unilateral, onde se oculta a identidade do autor, que
assim se exime a qualquer possibilidade de responsabilização pelas consequências da sua
comunicação às autoridades.
Não poderá, por isso, atribuir-se à denúncia anónima a mesma fidedignidade, valor e
tutela jurídica, de uma denúncia devidamente formalizada.
Entendemos, aliás, ser precisamente essa ordem de razões que leva a que não seja
conceptualmente tida como denúncia em vários ordenamentos jurídicos.
Dito isto, desde que verdadeira, importa deixar bem vincada a irrelevância da
motivação subjacente à denúncia anónima: o facto de, com o exercício desse direito,
pretender exercer certa retaliação sobre o visado, será irrelevante, conquanto o seu teor
corresponda à realidade e não seja injustificadamente insultuoso.
Diferente será se essa motivação for transformada numa denúncia dolosamente
falsa, injuriosa ou ameaçadora.
2.5.2 A necessidade da admissão da denúncia anónima atentos os fins da
investigação criminal.
Os problemas da denúncia anónima não decorrem da falta de legitimidade jurídica,
mas antes da falta de fidedignidade e de responsabilização.
Não se visam aqui questões éticas ou morais, mas unicamente jurídicas: desde logo
nos crimes de natureza pública, a ausência de identificação do autor não assume qualquer
relevância jurídico-processual uma vez que a legitimidade é geral.
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Comporta é um risco acrescido de falsidade e de manipulação da justiça, com
consequências irreversíveis para o denunciado.
Não obstante, atentos os fins últimos do processo penal, não se pode prescindir da
denúncia anónima enquanto notitia criminis, já que em certas circunstâncias o anonimato
não só colhe justificação, como se mostra imprescindível à investigação de determinados
ilícitos, bem como à salvaguarda da integridade física, familiar e socioprofissional do
denunciante, que de outro modo não se exporia à colaboração com as autoridades na
prossecução da justiça.
Tem-se assistido, aliás, a um movimento de reforço dessa tendência em instâncias
internacionais - de proteção e garantia do anonimato - em particular na denúncia de crimes
económico-financeiros, como a corrupção, que as mais das vezes são acordados dentro de
círculos fechados de indivíduos, protegidos por regimes de segredo profissional.
Fruto dessa tendência, temos assistido, em vários países, à promoção de plataformas
online de denúncia anónima: por exemplo, desde 2003, o sistema encriptado BKMS da
polícia do estado federal alemão de Baden-Württemberg55, e, mais recentemente, entre
nós, o Sistema de Informação do Ministério Público no DCIAP56, a funcionar desde 10 de
Novembro de 2010.
O que se tem em vista com estes instrumentos é um canal de comunicação anónimo
para quem é diretamente afetado por esta realidade e para os que dispõem de “informação
privilegiada” no âmbito desses círculos fechados57.
Não tanto a comunicação de suspeitas diletantes.
55 Consultado a 20.09.2016, disponível em: https://www.polizei-bw.de/Dienststellen/LKA/Seiten/bkms.aspx 56 Consultado a 20.09.2016, disponível em: https://simp.pgr.pt/dciap/denuncias/den_criar.php 57 “PGR cria página para denúncia de corrupção”, publicado na Revista Digital de Justiça e Sociedade – Portal Verbo Jurídico “In Verbis”, em 10.11.2010, citando: «”Todos aqueles que se sentiram directamente afectados pela prática de actos de corrupção ou que dispõem de informação privilegiada são convidados a utilizar este meio para contactarem com as autoridades responsáveis pela investigação”, apela o DCIAP, liderado pela procuradora geral adjunta Cândida Almeida. Ao autor da denúncia será ainda atribuída uma chave de acesso, para poder aceder à comunicação e tomar conhecimento da investigação». Consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.inverbis.pt/2007-2011/ministeriopublico/pgr-cria-pagina-denuncia-corrupcao.html
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Note-se que em cinco anos, 2010-2015, o Portal da Corrupção do DCIAP recebeu
9.038 denúncias, das quais 4.376 anónimas, representando 48% do total. Das “9038
denúncias recebidas, 64,4% ou 5824 foram arquivadas. O DCIAP revela que apenas 121 ou
1,34% deram origem a inquéritos, enquanto 411 suscitaram averiguações preventivas” 58.
2.5.3 As garantias dos denunciantes no combate à corrupção: a Lei n.º 19/2008 de
21 de Abril.
No que concerne ao combate à corrupção, a Lei n.º 19/2008 de 21 de Abril veio
consagrar garantias especiais para os denunciantes deste tipo de ilícito, assegurando o
direito ao anonimato até à dedução de acusação. Mas, ressalva, “excepto para os
investigadores”.
Dispõe o n.º 1, do artigo 4.º, da Lei n.º 19/2008 de 21 de Abril:
“Os trabalhadores da Administração Pública e de empresas do sector empresarial do Estado, assim como os trabalhadores do sector privado, que denunciem o cometimento de infrações de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas não podem, sob qualquer forma, incluindo a transferência não voluntária ou o despedimento, ser prejudicados”
Previa ainda o n.º 3 do mesmo artigo:
“Os trabalhadores referidos nos números anteriores têm direito a: a) Anonimato, excepto para os investigadores, até à dedução de acusação; b) Transferência a seu pedido, sem faculdade de recusa, após dedução de
acusação.
58 SIMÕES, SANDRA ALMEIDA, “DCIAP recebe 4376 denúncias anónimas de crimes económicos”, artigo publicado no jornal “dinheirovivo.pt” em 05.01.2016, onde se refere ainda: «”Os factos são objeto de apreciação pelos magistrados do Ministério Público no DCIAP. Apesar de possivelmente validarem os dados, o departamento alerta que poderá não ser instaurado um inquérito de imediato, mas garante que nenhuma informação será deixada sem desenvolvimento. “Será decidido qual a forma processual através da qual será iniciada a investigação”. A cada participação é atribuído um número, que permitirá ao denunciante acompanhar o resultado da informação reportada». Consultado a 20.09.2016, disponível em: https://www.dinheirovivo.pt/banca/dciap-recebe-4376-denuncias-anonimas-de-crimes-economicos/
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Pela Lei n.º 30/2015 de 22 de Abril, foi ainda aditada uma alínea c) a este n.º 3 que
amplia as garantias:
c) Beneficiar, com as devidas adaptações, das medidas previstas na Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que regula a aplicação de medidas para a proteção de testemunhas em processo penal, alterada pelas Leis n.os 29/2008, de 4 de julho, e 42/2010, de 3 de setembro.”
Esta alínea c) remete assim para a possibilidade prevista no artigo 16.º e seguintes da
Lei n.º 93/99 de 14 de Julho (lei de proteção de testemunhas), de reserva do conhecimento
da identidade da testemunha durante alguma ou em todas as fases do processo.
Trata-se aqui, contudo, de uma questão diferente: pretende-se garantir o anonimato
do denunciante apenas face ao denunciado, atenta a sua posição de particular fragilidade e
de dependência funcional deste.
Nestes casos, o denunciante é conhecido dos investigadores, prevendo-se
expressamente no artigo 16.º, da Lei n.º 93/99 de 14 de Julho, que o anonimato possa
subsistir noutras fases processuais ou em todo o processo, caso se verifiquem
cumulativamente os requisitos aí elencados, a apreciar por juiz de instrução, entre outros:
“c) Não ser fundadamente posta em dúvida a credibilidade da testemunha” e “d) O
depoimento ou as declarações constituírem um contributo probatório de relevo”.
Teve-se em vista a conformação do nosso direito interno com as disposições da
Convenção Penal do Conselho da Europa sobre a Corrupção de 199959, designadamente
relativamente ao seu artigo 22.º (“protecção aos colaboradores da Justiça e testemunhas”),
e com as disposições da Convenção de Mérida sobre Corrupção de 200360, quanto aos
artigos 32º (“protecção de testemunhas, peritos e vítimas”) e 33º (“protecção de pessoas que
dão informações”).
59 Aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 68/2001 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 56/2001 - DR I-A, de 20/10/2001. 60 Aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 47/2007 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 97/2007 - DR, 1ª Série, de 21/09/2007.
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A nível global, tem-se constatado que neste tipo de ilícito, atentas as enormes
dificuldades da prova, perante acordos realizados em ambiente de reserva e em círculos
fechados de interesses, não basta permitir, como efetivamente garantir, o anonimato, para
se lograr realização de justiça.
2.6 Valor processual e probatório da denúncia anónima.
O primeiro ato formal do inquérito é o despacho do Ministério Público a determinar a
sua abertura, e sem ele o processo é juridicamente inexistente, ainda que a nossa
jurisprudência tenha vindo a admitir a sua delegação nos órgãos de polícia criminal
mediante validação posterior por despacho do MP.
A denúncia anónima será assim um ato exterior ao procedimento, pré-
procedimental.
Não obstante, GERMANO MARQUES DA SILVA refere que “são ainda processuais os
actos que, não se integrando na sequência processual, produzem efeitos processuais, embora
sejam, em si mesmos, exteriores ao processo”61, incluindo nesse âmbito a “notícia do crime”,
alvo das disposições dos artigos 241.º e seguintes do CPP e que impõe ao MP a abertura do
procedimento tendente a investigar a eventual prática do crime noticiado62.
Não decidiu assim o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de
25.10.200663, concluindo: “II- Uma denúncia anónima carece de valor de acto processual”,
sustentando (controversamente):
“Como claramente se apreende do referido texto, as investigações policiais de que se deu nota foram despoletadas, fundamentalmente, por uma denúncia anónima, acto em si, por tal sorte – desconhecimento da identidade do respectivo
61 SILVA, GERMANO MARQUES DA, “Curso de Processo Penal”, Volume II, 5.º Edição, Editorial Verbo, 2011, p. 33. 62 SILVA, GERMANO MARQUES DA, “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento (Marcha do Processo), Vol. 3”, Universidade Católica Editora, 2014, p. 50. 63 Processo n.º 1425/06.3YRCBR, Relator: Abílio Ramalho, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/0/c985dce5a9488df08025721700413283?OpenDocument
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emitente –, sem qualquer valor jurídico-processual, e, por isso, juridicamente inexistente – ou, pelo menos, nulo – como meio válido de transmissão do conhecimento de crime público, (cfr. arts. 241.º, parte final, 244.º e 246.º, do CPP, e, ainda, 220.º, 294.º e 295.º, do Código Civil).
Por conseguinte, não possuindo valor de acto processual, é apodíctico que o respectivo teor não justificará qualquer especial protecção, particularmente a inerente ao segredo de justiça, cujos conteúdo e limites se encontram definidos no citado normativo 86.º, n.º 4, máxime al. b), do C.P.P.”.
Controversa é também a aptidão da denúncia anónima para fundamentar, de per si,
o recurso a meios de obtenção de prova mais intrusivos, maxime a interceção e a gravação
de conversas ou comunicações telefónicas nos termos no artigo 187.º, n.º 1, do CPP.
No sentido da suficiência da denúncia anónima, pronunciou-se, em 2004, ANDRÉ
LAMAS LEITE64, “(…) por força do imperativo constitucional contido no art. 34.º, n.º 4, da
Constituição, o recurso às escutas telefónicas só será admissível quando esteja pendente um
processo criminal (…) O mais desejável será que somente após a abertura do inquérito se
possa recorrer às escutas telefónicas. No entanto, caso tal não aconteça, «mas sempre desde
que já tenha havido queixa ou participação criminal», poder-se-á lançar mão deste meio de
obtenção de prova (…)”. Detalha ainda em nota de rodapé: “Nada impede, por outro lado e
ao que cremos, que o processo criminal em que se autoriza o recurso às escutas tenha por
base denúncias anónimas, desde que, como é óbvio, elas contenham «factos determinados»
que conduzam à formação da convicção judicativa exigida pelo art. 187.º n.º 1”.
Invoca o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.200165, com argumentos
idênticos, mas que concluiu, no caso concreto, pela falta de fundamentação para o
deferimento das escutas telefónicas.
Em idêntico sentido ponderou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de
10.05.201166, ainda que no caso concreto tenha também concluído: “III - Não constando dos
64 LEITE, ANDRÉ LAMAS, “As escutas telefónicas – Algumas reflexões em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano I, Coimbra Editora, 2004, pg. 21. 65 Processo n.º 0140346, Relator Dias Cabral, disponível (apenas o sumário) em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9b33b96b658df51780256ad200377b15?OpenDocument Sumário: “O conhecimento, através de uma simples fonte, que quer manter o anonimato, da existência de uma rede de tráfico de droga, sem qualquer outra diligência, não constitui fundamento suficiente para deferir pedido de escutas telefónicas e apreensão de factura detalhada, na medida em que não permite concluir pela existência de «razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova» (artigo 187, n.º 1 do Código de Processo Penal)”.Consultado a 20.09.2016. 66 Processo n.º 65/11.0JAFUN-A.L1-5, Relatora: Margarida Blasco, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/a4c72ca6744d803f802578a80051d2a1?OpenDocument
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autos mais que uma denúncia anónima contra determinada pessoa, o facto desta ter
antecedentes criminais da mesma natureza do ilícito denunciado, não é suficiente para a
mesma ser considerada suspeita por novo crime, razão por que não ocorrem os requisitos
mínimos legalmente exigíveis para ser autorizada uma escuta telefónica”.
Não obstante, na sua fundamentação, e citando o referido acórdão do Tribunal da
Relação do Porto de 09.05.2001 e doutrinariamente ANDRÉ LAMAS LEITE, vincou a título de
princípio: “No entanto, queremos ainda esclarecer que nada impede que o processo criminal
em que se autoriza o recurso às escutas tenha por base denúncias anónimas – que, como
denúncia anónima, não está sujeita a formalidades especiais, conforme dispõe o art. 246º,
n.º 1 –, desde que, como é óbvio, elas contenham factos determinados que conduzam à
formação da convicção judicativa exigida pelo art. 187º, n.º 1”.
No sentido da suficiência da denúncia anónima, chegou mesmo a decidir o Tribunal
da Relação de Évora, por acórdão de 12.04.201167, aduzindo: “A este propósito é, ao que
sabemos, entendimento pacífico que deve existir um acrescido rigor na apreciação dos
indícios susceptíveis de fundamentar o recurso legal ao meio de obtenção de prova em causa
(escutas telefónicas) exclusivamente decorrente do carácter anónimo da denúncia. Com
efeito, tal acrescido rigor deriva naturalmente da possibilidade de um desconhecido imputar
dolosa e falsamente indícios da prática de um crime de catálogo, tendo em vista
exclusivamente a devassa da vida privada do visado, sem que, recorrendo a escutas
telefónicas, seja possível mais tarde, verificada aquela falsidade, responsabilizá-lo por tal
conduta criminosa. (…) De qualquer forma, mesmo que se entenda que a denúncia é
absolutamente anónima, entendemos que o seu conteúdo concreto permitia o legal recurso
a este meio de obtenção de prova”.
Na doutrina, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE entende que “Em regra, a escuta
telefónica não deve ser determinada como primeiro meio de obtenção de prova logo na
67 Processo n.º 98/08.3PESTB.E1, Relator: Edgar Valente, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/0d8834423aa44ac080257de10056f4e4?OpenDocument Este acórdão teve o voto de vencido de ANA BACELAR CRUZ, sustentando: “Note-se, desde logo, que do teor desse relatório não resulta que quem o elaborou tivesse conhecimento da identidade do denunciante (…) E por ser assim, o conhecimento, através de uma simples fonte, que quer manter o anonimato, da existência de uma rede de tráfico de droga não constitui fundamento para deferir pedido de escutas telefónicas”.
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abertura do inquérito, nem com base em mera denúncia anónima, mesmo que desta se
possam retirar «indícios da prática do crime» (…) Igual prudência se impõe diante de
denúncia anónima, atento o carácter intrinsecamente insuficiente e lacunoso desta
denúncia. A determinação da escuta telefónica no início do inquérito ou com base em
denúncia anónima só é admissível em circunstâncias excepcionais, isto é, quando ela
constitua o único meio de obtenção da prova de um crime que já se incidia nos autos”68.
Pronunciando-se frontalmente contra a possibilidade da denúncia anónima poder
sustentar, de per si, o recurso à interceção de comunicações, comentou CARLOS ADÉRITO
TEIXEIRA, após a revisão do Código de Processo Penal de 2007: “Leio a actual formulação do
n.° 1 do art. 187 do CPP como representando: i) uma mais exigente ponderação, no plano
concreto, sobre a necessidade, a proporcionalidade, a adequação ou a idoneidade do meio
(escuta); ii) a exigência de uma suspeita fundada — não uma mera suspeita — da prática de
certo crime do catálogo; julgo que fundada suspeita pressupõe que já haja um certo nível de
indícios; logo, não basta a mera ‘notícia do crime’ e muito menos a denúncia anónima,
mesmo que muito verosímeis e suficientemente concretizadas”69.
E, na jurisprudência, pronunciou-se igualmente contra a suficiência da denúncia
anónima o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdãos de 28.10.200470: "Mas, como
assinala o Senhor Juiz no despacho recorrido, a denúncia, ocultada a identidade de quem a
fez, só pode, do ponto de vista do processo, qualificar-se de anónima, sendo como tal
desprovida de valor e insusceptível de servir de sustentáculo ao uso de um meio de obtenção
de prova tão delicado como são as escutas telefónicas. E não é a circunstância de a Polícia
Judiciária considerar a sua fonte «fidedigna» que modifica as coisas”, e ainda de
24.11.200471, onde concluiu: “III - Esta séria e concreta hipótese criminosa não pode assentar
em fontes anónimas ou meros informadores policiais”.
68 ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, Op. Cit. p. 524. 69 TEIXEIRA, CARLOS ADÉRITO “Escutas Telefónicas: A Mudança de Paradigma e os Velhos e os Novos Problemas”, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, Número 9, 2008, pp. 244-245 70 Processo n.º 7968/2004-9, Relator: Goes Pinheiro, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e983933f23fc14a580257110004e0fe4?OpenDocument 71 Processo n.º 7166/2004-3, Relator: Carlos Almeida, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e80c9f50f42c0201802570a000553e29?OpenDocument
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Mesmo quanto à autorização de buscas domiciliárias fundadas em simples denúncia
anónima – e sendo os pressupostos dos artigos 174.º e 177.º do CPP menos exigentes do
que os do 187.º do CPP relativo às escutas telefónicas – também se encontra jurisprudência
que conclui pela insuficiência da denúncia anónima, como o acórdão do Tribunal da Relação
do Porto de 12.02.201472: “Uma carta anónima, desacompanhada de qualquer outro indício,
e sem que o próprio texto daquela aponte algum facto concreto susceptível de investigação,
não é suficiente para autorizar a realização de uma busca domiciliária, sob pena de se abrir a
porta à devassa da vida privada”.
Já quanto ao seu valor probatório, o artigo 164.º, n.º 2, do CPP prevê uma verdadeira
proibição de prova no que diz respeito à declaração escrita anónima:
“2 - A junção da prova documental é feita oficiosamente ou a requerimento, não podendo juntar-se documento que contiver declaração anónima, salvo se for, ele mesmo, objecto ou elemento do crime”.
JOÃO MANUEL SILVA MIGUEL73 estabelece uma distinção - no que respeita à junção -
entre o momento da denúncia (na qual se narra o facto criminoso), e a prova documental
produzida em sede de inquérito (como meio de comprovação dos factos noticiados),
aplicando-se a proibição apenas ao segundo caso. Argumenta que “sendo junta ao processo
carta anónima que o não devia ter sido estar-se-á em presença de simples irregularidade,
que se sanará se não suscitada em tempo, nos termos previstos na lei”. Além disso, sustenta
que quando a denúncia anónima vise os mesmos factos ou factos conexos com inquérito já
aberto, “emergindo delas factos ou elementos circunstanciais que se admita possam vir a ter
interesse para a investigação do crime, nada obsta à sua junção ao processo. Verificando-se,
afinal, que a junção do escrito se revelou irrelevante para a investigação e que ele constitui
ofensa à reserva da vida privada, a lei consente o seu desentranhamento, e mesmo a
destruição, o que deverá ficar documentado no processo”.
72 Processo n.º 89/13.2GACHV-A.P1, Relator: Augusto Loureço, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/96a397a5072c9a8180257c8a0037c5d1?OpenDocument&Highlight=0,89%2F13.2GACHV-A 73 MIGUEL, JOÃO MANUEL SILVA, “Cartas anónimas: uma perspectiva jurídica”, in artigo no jornal “Público” de 27 de Janeiro de 2004, consultado em 20.09.2016, disponível em: https://www.publico.pt/espaco-publico/jornal/cartas-anonimas-uma-perspectiva-juridica-183472
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Independentemente da junção, a lei fixa uma verdadeira proibição de prova
relativamente ao documento escrito anónimo, nos termos do artigo 164.º, n.º 2 do CPP,
salvo quando constitua ele mesmo objeto ou elemento do crime.
O documento escrito anónimo - e como tal deve entender-se não só o que não está
assinado, mas igualmente o que é ilegível, apócrifo ou o seu autor não for por qualquer
modo identificável - só pode constituir meio de prova válido, nos termos do artigo 164.º n.º
2 do CPP, se for “objecto que tiver servido ou estivesse destinado a servir a prática do crime
ou que constitua o seu produto, lucro, preço ou recompensa, nos termos conjugados do
artigo 178.º e 164.º, n.º 2”74.
Trata-se, assim, de uma prova proibida, cuja nulidade não admite sanação, por se
tratar de meio intrinsecamente enganoso, nos termos artigo 126.º, n.º 2, alínea a) do CPP,
que dispõe:
“2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos”.
Contende, por isso, com a constituição processual criminal, como é conhecido o
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que prevê as garantias do processo
criminal, estipulando, no seu n.º 1, que “O processo criminal assegurará todas as garantias
de defesa”, no seu n.º 5, que estarão “a audiência de julgamento e atos instrutórios que a lei
determinar subordinados ao princípio do contraditório”, e no seu n.º 6, que “São nulas todas
as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da
pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações”.
Tal entendimento, quanto ao valor probatório de documento anónimo, parece
consolidado: “a junção de documento que envolva ou encerre «declaração anónima» não
pode valer de modo algum como meio de prova, salvo quando o próprio documento anónimo
74 ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, Op. Cit., anotações ao art. 164.º, pp. 459-460.
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se prefigure como objecto ou elemento do crime «sub judice», caso em que essa junção pode
e deve ser feita”75.
O mesmo há de aplicar-se à denúncia anónima verbalmente transmitida e reduzida a
escrito nos termos do artigo 246.º, n.º 2, do CPP.
Importa reter, neste sentido, que “A prova documental é inadmissível se o respetivo
conteúdo violar proibições legais respeitantes aos restantes meios de prova. Este princípio
geral está refletido no artigo 129.º n.º 2. Por exemplo, não é admissível a junção de um
documento que contenha vozes ou rumores públicos”76.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, embora não se tenha
pronunciado especificamente sobre a admissibilidade da denúncia anónima enquanto
embrião do processo-crime, emitiu diversos acórdãos sobre a apreciação de prova baseada
em elementos total ou parcialmente desconhecidos do arguido.
Assim, por regra, toda a atividade probatória deve ser produzida na presença do
acusado, em audiência pública, e sujeita ao princípio do contraditório77.
Contudo, admite-se o recurso excecional a informadores anónimos na fase da
investigação78, e de testemunhos anónimos em sede de audiência79, mas que nunca poderão
75 MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO, “Código de Processo Penal – Comentário e Notas Práticas”, Coimbra Editora, 2009, p. 426. 76 ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, Op. Cit, anotações ao art. 164.º, p. 459. 77 WINDISCH v. AUSTRIA (Application n.º 12489/86) de 27.09.1990: “All the evidence must in principle be produced in the presence of the accused at a public hearing with a view to adversarial argument. However, the use as evidence of statements obtained at the pre-trial stage is not always in itself inconsistent with paragraphs 3(d) and 1 of Article 6 (art. 6-3-d, art. 6-1), provided the rights of the defence have been respected”, consultado em 20.09.2016, disponível em: http://hudoc.echr.coe.int . 78 DOORSON v. THE NETHERLANDS (Application n.º 20524/92) de 26.03.1996: “69. As the Court has held on previous occasions, the Convention does not preclude reliance, at the investigation stage, on sources such as anonymous informants. The subsequent use of their statements by the trial court to found a conviction is however capable of raising issues under the Convention”, consultado em 20.09.2016, disponível em: http://hudoc.echr.coe.int . 79 VAN MECHELEN AND OTHERS v. THE NETHERLANDS (Applications n.º 21363/93, n.º 21364/93, n.º 21427/93 e n.º 22056/93) de 23.041997: “54. However, if the anonymity of prosecution witnesses is maintained, the defence will be faced with difficulties which criminal proceedings should not normally involve. Accordingly, the Court has recognised that in such cases Article 6 para. 1 taken together with Article 6 para. 3 (d) of the Convention (art. 6-1+6-3-d) requires that the handicaps under which the defence labours be sufficiently counterbalanced by the procedures followed by the judicial authorities (ibid., p. 471, para. 72)” , consultado em 20.09.2016, disponível em: http://hudoc.echr.coe.int .
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ser a prova principal ou decisiva da condenação80 ou um obstáculo inultrapassável para a
defesa81.
2.7 A salvaguarda do anonimato.
Caso a identidade do denunciante anónimo venha a ser estabelecida ainda a tempo
de ser ouvido no processo, deve o mesmo ser inquirido como testemunha, ou interrogado
na qualidade de arguido (se a denúncia anónima configurar crime), com vista ao
esclarecimento da verdade material dos factos, nos termos gerais.
Excecionam-se os casos que possam ser abrangidos por legislação especial, como a
Lei n.º 93/99 de 14 de Julho (lei de proteção de testemunhas), em que possa ser
expressamente salvaguardado o anonimato perante alguns intervenientes processuais.
2.7.1 O informador.
Caso particularmente interessante é o dos chamados “informadores” ou “pessoas de
confiança” dos órgãos de polícia criminal, indivíduos não raras vezes do próprio meio
criminal ou com forte acesso à informação desse meio, dispostos a colaborarem com as
autoridades na transmissão de factos delituosos.
Nesse caso, quando conhecidos, deve o órgão de polícia criminal mencionar que o
autor da denúncia é pessoa do seu conhecimento e confiança, que requereu o anonimato
80 DOORSON v. THE NETHERLANDS (Application n.º 20524/92) de 26.03.1996 “a conviction should not either solely or to a decisive extent upon anonymous statement”, consultado em 20.09.2016, disponível em: http://hudoc.echr.coe.int . 81 WINDISCH v. AUSTRIA (Application n.º 12489/86) de 27.09.1990: “Being unaware of their identity, the defence was confronted with an almost insurmountable handicap: it was deprived of the necessary information permitting it to test the witnesses’ reliability or cast doubt on their credibility”, consultado em 20.09.2016, disponível em: http://hudoc.echr.coe.int .
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por razões de segurança ou outras igualmente atendíveis, atribuindo assim alguma
rastreabilidade e fidedignidade à denúncia82.
Concedemos, neste ponto, alguma razão ao ex-Bastonário da Ordem dos Advogados,
ANTÓNIO MARINHO PINTO, no seu artigo “Carta anónima que incriminou José Sócrates foi
escrita por sugestão da P.J.”83: se a identidade do participante é conhecida do órgão de
polícia criminal e este deliberadamente omite tal facto, fere-se no mínimo o princípio da
lealdade processual que obriga a todos os sujeitos e participantes processuais.
No caso do “informador” ou “pessoa de confiança”, não existindo qualquer norma
que, ao contrário por exemplo do código de processo penal italiano, autorize à Polícia a
manutenção do sigilo profissional quanto às suas fontes em termos similares ao dos
jornalistas, se e quando instado nesse sentido, deve o órgão de polícia criminal revelar a
identidade do denunciante e ser aquele ouvido no processo.
Configurarão exceções os casos abrangidos por legislação especial, designadamente
pela Lei n.º 93/99 de 14 de Julho (lei de proteção de testemunhas), e pela Lei n.º 101/2001
de 25 de Agosto (agente encoberto), devendo a prova ser apreciada pelo Tribunal nos
termos específicos de tais normativos.
Aliás, se o tal informador ou homem de confiança, após ter transmitido a notícia de
crime, regressar às suas relações com o denunciado - quanto mais não seja para colher
ulterior informação em favor do órgão de polícia criminal, que no fundo o controla - deverá
requerer-se o estatuto de agente encoberto para a prossecução dessa atividade, sob pena
de poder vir a ser questionada a validade da prova recolhida, como meio enganoso.
82 Entendendo que nesse caso não estamos perante verdadeira denúncia anónima, vide o acórdão Tribunal da Relação de Évora de 12.04.2011, Processo n.º 98/08.3PESTB.E1, Relator: Edgar Valente, consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/0d8834423aa44ac080257de10056f4e4?OpenDocument. Também neste sentido o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2006, de22.06.2006, quando refere: “Em primeiro lugar, porque a decisão de ordenar as escutas não teve origem numa «denúncia anónima», mas antes numa denúncia efectuada por pessoa identificada perante o inspector da Polícia Judiciária responsável que, por uma questão de segurança, solicitou que não fosse identificada a fonte”. Consultado a 20.09.2016, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060370.html . 83 PINTO, ANTÓNIO MARINHO E, “Carta anónima que incriminou Sócrates foi escrita por sugestão da PJ”, in “Boletim da Ordem dos Advogados”, Março, 2009, pg. 20, consultado a 20.09.2016, consultado em 20.09.2016 e disponível em http://www.oa.pt/upl/%7Be9c642f0-45cd-4368-8737-19044506cb87%7D.pdf.
- 52 -
III. CONCLUSÕES
Em muitos ordenamentos a comunicação anónima não é formalmente tida como
denúncia.
Tal sucede, não por razões de legitimidade, maxime nos crimes de natureza pública,
mas antes por falta de fidedignidade e de possibilidade de responsabilização do seu autor
pelo teor da comunicação.
Não obstante, tal não poderá obstar à admissão da comunicação anónima enquanto
meio idóneo de conhecimento dos factos criminosos por parte da autoridade judiciária, já
que em certas circunstâncias o anonimato não só colhe justificação, como se mostra
imprescindível à investigação de determinados ilícitos, e à salvaguarda da integridade física,
familiar e socioprofissional dos denunciantes, que de outro modo não se exporiam à
colaboração com as autoridades na prossecução da justiça.
Se pensarmos não apenas no âmbito da criminalidade económica, mas também, por
exemplo, nos crimes de violência doméstica, abusos sexuais de crianças, tráfico de
estupefacientes, e particularmente nos dias de hoje, de terrorismo e associação criminosa,
facilmente concluímos ser imprescindível a admissão da denúncia anónima enquanto meio
de comunicação da notícia do crime.
Mas a denúncia anónima comporta igualmente riscos de manipulação das
autoridades judiciárias e dos órgãos de polícia criminal, atenta a sua falta de rastreabilidade,
fidedignidade e responsabilização, podendo não só onerar intoleravelmente os escassos
recursos disponíveis à investigação, como, particularmente, atacar de forma iníqua e
irreversível os direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente o direito ao bom nome,
à honra e consideração social.
- 53 -
Vimos que as denúncias anónimas não são tidas, em vários ordenamentos, de per si,
como notitia criminis, prevendo-se o recurso a uma averiguação preliminar de natureza
policial, com vista à sua eventual corroboração e aquisição de verdadeira notícia do crime.
Entre nós, a experiência de tais averiguações preliminares mostrou-se negativa,
sendo de difícil harmonização com o imperativo constitucional que comete ao Ministério
Público o exercício da ação penal (artigo 219.º da CRP).
Por isso, apesar da admissão de averiguações preliminares no domínio específico e
técnico do Código dos Valores Mobiliários, bem como da existência de averiguações
preventivas no âmbito da criminalidade económico-financeira conforme a Lei n.º 36/94 de
29 de Setembro, somos a entender que competirá sempre ao Ministério Público aferir o que
é ou não notícia do crime, como decorrência fundamental - e primeira - do exercício da ação
penal que lhe está confiado.
Assim, ante denúncia anónima, deve o Ministério Público determinar a abertura de
inquérito, nos termos do artigo 246.º n.º 6 do CPP, sempre que configure ela mesmo crime,
ou dela se retirem indícios da prática de crime, com os requisitos mínimos da notícia do
crime e por reporte aos elementos constitutivos elencados no artigo 243.º, n.º 1, do CPP: que
refere a indicação dos “factos”, do “dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi
cometido” e de “tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos
ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que
puderem depor sobre os factos”.
Tal é exigível num direito penal que investiga factos e não pessoas, não sendo
concebíveis investigações sobre o que se procura investigar.
Para se fundar a abertura de inquérito e a prática de atos formais contra o visado,
com base numa denúncia anónima ou notoriamente apócrifa - que comporta um irreparável
prejuízo para a sua honra e consideração públicas, sobretudo no âmbito de um inquérito
agora sujeito à regra da publicidade - deve ser exigido um critério interpretativo estrito que
requeira ao denunciante anónimo um grau de concretização mínimo da sua imputação, com
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factos, argumentos ou razões de ciência concretamente identificados, que permitam
concluir pela plausibilidade da existência do crime, e não uma mera suspeição
genericamente aduzida sobre determinada pessoa.
Daí que a formulação legal da alínea a) do n.º 6, do artigo 246.º, do CPP “Dela se
retirarem indícios da prática de crime”, pudesse beneficiar de uma reformulação legislativa,
ou mesmo de uma circular da Procuradoria-Geral da República, que melhor delimitasse os
seus critérios de aplicação prática, devendo vincar-se a estrita necessidade de
“objetivação/especificação” das imputações por parte do denunciante, bem como da sua
“fundamentação”, sob pena da sua desconsideração processual.
A difusão pública desse critério estrito teria o benefício de disciplinar o denunciante
anónimo, obrigando-o a uma maior concretização e delimitação factual da denúncia, de
auxiliar o juízo interpretativo do magistrado do Ministério Público sobre o destino a conferir
à denúncia anónima, de auxiliar a investigação com a prossecução de factos concretos e não
de meras dilações, e de dificultar a prolação de suspeitas diletantes e infundadas que
injustificadamente atentam contra os direitos fundamentais dos cidadãos.
Se é verdade que não se pode prescindir da denúncia anónima para conhecimento de
factos delituosos, também é verdade que não pode a mesma ser erigida em método-regra
de transmissão da notícia do crime às autoridades.
Tal reveste particular acuidade num ordenamento jurídico como o nosso, que não
exclui a admissão da denúncia anónima enquanto notícia do crime, nem lhe impõe qualquer
aferição em sede de averiguação preliminar, cominando, além do mais, a regra da
publicidade no inquérito, tornando-se deste modo perigosamente permeável à
instrumentalização do processo penal para intuitos persecutórios e difamatórios.
Mas ainda que venham a ser estipulados critérios interpretativos que auxiliem o
magistrado do Ministério Público no seu juízo interpretativo, nos moldes expostos, certo é
que sempre será nele constitucionalmente depositada a responsabilidade de, in casu, aferir
da existência de notícia do crime e consequente promoção da ação penal, por apelo aos
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princípios da legalidade e da objetividade que norteiam a sua atividade, tendo em vista a
prossecução dos fins últimos do processo penal e a realização da justiça que lhe estão
legalmente cometidos.
- 56 -
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