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  • DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RELIGIOSA NO BRASIL COLONIAL: a linguagem expressa na iconografia azulejar dos

    conventos franciscanos no nordeste.

    CAVALCANTI FILHO, IVAN

    Universidade Federal da Paraba. Departamento de Arquitetura Campus Universitrio I, Joo Pessoa - Paraba

    CEP: 58051-900 [email protected]

    RESUMO

    Entre 1585 e 1656 os franciscanos fundaram treze casas conventuais no Nordeste do Brasil, todas construdas segundo o iderio capucho, segundo o qual a pobreza e a simplicidade constituam requisitos bsicos para tais empreendimentos arquitetnicos. A partir do incio do sculo XVIII tais conventos comearam a ser embelezados tanto externamente quanto nos seus interiores, especialmente nos espaos destinados ao culto divino: nave da igreja conventual, sacristia, capela do captulo, coro alto, e claustro inferior. Nesse contexto de decorao que inclua a talha dourada e policromada, e xilopinturas, os azulejos que revestiam a parte inferior das paredes se destacaram pelas imagens ilustradas nos seus painis, contando episdios bblicos ou histrias de personagens da religio, onde edificaes religiosas freqentemente compunham a paisagem. Este trabalho tem como objetivo analisar essa arquitetura eclesistica existente nos silhares de azulejos dos conventos franciscanos nordestinos e estabelecer a relao dessa iconografia com o modelo de igreja produzido poca. Para tanto tais edifcios so documentados atravs de fotografias e classificados luz dos pressupostos formais que norteavam sua produo. Os resultados da pesquisa demonstram que a linguagem apresentada pelas edificaes corresponde quela bsica, ch, pioneira da arquitetura religiosa brasileira, condizente com o iderio de pobreza serfica.

    Palavras-chave: azulejo; igreja; arquitetura ch.

  • 3 SEMINRIO IBERO-AMERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAO Belo Horizonte, de 12 a 14 de novembro de 2013

    ISSN 1983-7518

    Introduo

    Uma das grandes interrogaes sobre a arquitetura religiosa produzida no Brasil no

    perodo colonial constitui aquela que diz respeito morfologia que assumiam as construes

    eclesisticas, principalmente entre o final do sculo XVI e incio do XVII. Os primeiros

    documentos iconogrficos apresentando edificaes do gnero foram as ilustraes do pintor

    holands Frans Post, que, integrando a equipe cientfica e artstica liderada pelo prncipe

    Mauricio de Nassau Von Siegen durante a ocupao batava no nordeste brasileiro

    (1630-1654), teve a incumbncia de documentar a paisagem dos assentamentos e vilas

    existentes no territrio ocupado (Sousa-Leo, 1973: p.16). A clebre gravura da vila de

    Igarau, apresentada na obra de Barlaeus, onde aparece a igreja paroquial de So Cosme e

    Damio em primeiro plano e o convento franciscano de Santo Antnio ao fundo, representa

    um cone artstico do sculo XVII, sinalizando para a real linguagem que as edificaes

    religiosas deviam apresentar poca (Barlaeus, 1980: p.44). Essa arquitetura eclesistica de

    leitura simples, desprovida de elementos decorativos, classificada pelo estudioso americano

    George Kluber como ch, e produzida especialmente durante o perodo da Unio Ibrica

    (1580-1640), era recorrente na metrpole, destacando-se atravs de edifcios guarnecidos de

    fronto triangular arrematando fachada provida de portada em pedra com duas aberturas

    simetricamente dispostas na sua poro superior (Kluber, 2005: pp. 25-27).

    Curiosamente tal linguagem arquitetnica igualmente encontrada na composio

    das paisagens urbanas e campestres de inmeros silhares de azulejos existentes nos

    conventos franciscanos do nordeste do Brasil. Esses painis historiados que revestem as

    partes inferiores das paredes de naves de igrejas, capelas, galerias de claustros, vias sacras,

    portarias de conventos e salas de captulos, tinham a funo pedaggica de documentar fatos

    e episdios da vida da Igreja e de seus santos, nutrindo na comunidade de frades e nos fiis

    que usufruam desses espaos, o iderio de f, penitncia e virtude prprias da Ordem e da

    religio catlica. Nesse sentido a imagem do templo carregava forte componente simblico

    denotando a presena inconteste da Igreja em qualquer circunstncia ou lugar. No seria

    ento essa tipologia apresentada nos painis azulejares a fotografia do edifcio religioso

    fabricado no mundo portugus poca? Afinal o modelo representado era basicamente o

    mesmo em todas as imagens.

    O presente trabalho procura exatamente destacar a linguagem dos edifcios religiosos

    apresentados na iconografia dos painis de azulejos das casas conventuais franciscanas

    como um documento que devia retratar a morfologia da arquitetura eclesistica em uso na

    poca. Para tanto a pesquisa investe no contexto da fabricao de azulejos portugueses

  • procurando destacar o processo de produo a que estavam submetidos, a existncia de

    matrizes imagticas que via de regra inspirava os desenhos, e o compromisso com as normas

    ps-tridentinas na mensagem geral estampada nos painis. Afinal o Conclio de Trento

    reforava o carter didtico-pedaggico da arte, que devia ser veiculada nos prprios recintos

    eclesisticos como instrumento de catequese e educao religiosa (Ratzinger, 2001: p.95).

    Com base num minucioso levantamento fotogrfico que contempla diversos painis

    onde o edifcio religioso est presente, e numa anlise geral de cada edificao considerando

    seus elementos morfolgicos e o confronto dos mesmos com os demais exemplares do

    gnero, a investigao sinaliza para a confirmao da hiptese de que os modelos

    apresentados nos silhares reproduziam a prtica construtiva de edifcios religiosos fabricados

    durante o perodo quando Felipe II de Espanha tinha o Reino de Portugal sob seu comando,

    sendo tal matriz imagtica preservada, talvez por ser aquela que melhor representava o ideal

    de pobreza franciscana. As imagens igualmente denunciam a implantao das igrejas em

    terrenos altos, obedecendo a uma das prerrogativas tridentinas sugeridas nas Instrues de

    So Carlos Borromeo, manual que funcionou como um verdadeiro cdigo de normas para

    construes eclesisticas, adaptado a partir das recomendaes do Conclio reformador da

    Igreja iniciado em 1545 e concludo em 1563 (Borromeo, 1985: p.4).

    Para se entender melhor a prtica dos revestimentos azulejares na arquitetura

    franciscana nordestina, so feitas algumas consideraes histricas sobre sua utilizao

    como recurso decorativo em edificaes da Metrpole e fora dela. Em seguida sua utilizao

    no Brasil destacada atravs das encomendas feitas pelas ordens religiosas,

    especificamente os frades menores, que foram grandes consumidores desta manifestao

    artstica, haja vista o significativo acervo de silhares de azulejos presentes em vrios

    ambientes dos seus complexos conventuais.

    Antecedentes histricos

    Criados aproximadamente no sculo IX, os azulejos foram introduzidos na Europa

    pelos rabes, mais precisamente na Espanha, onde durante sculos, se estabeleceram os

    mouros. A partir da Pennsula Ibrica as peas cermicas vitrificadas foram difundidas pela

    Itlia, Alemanha, Inglaterra e Holanda; neste ltimo, na cidade de Delft, se destacou

    principalmente atravs da produo de vasos e pratos (Ott, 1943:p.8).

    No obstante, de todos os pases europeus que conheceram o azulejo, Portugal foi

    aquele que mais desenvolveu sua utilizao e o tratamento artstico dado ao mesmo. Os

    descobrimentos e a expanso do imprio lusitano propiciaram tal desenvolvimento, haja vista

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    as trocas culturais decorrentes dos contatos empreendidos entre as diferentes naionalidades

    envolvidas nesse processo de expanso poltica e social. Os azulejos mais antigos tinham

    ntida influncia da cultura mourisca, se desligando aos poucos das razes face a contribuio

    renascentista. Nesse contexto, Sevilha e Granada representaram importantes centros de

    difuso do engenho azulejar, sem desmerecer a tcnica da faiana, desenvolvida na Itlia,

    mais precisamente na cidade de Faenza, na regio da Toscana (Meco, 1985: pp. 8-9).

    At o sculo XVI o azulejo era marcado predominantemente pelo desenho repetitivo,

    geomtrico ou floral, em composio de tapete; seu uso era recorrente em edifcios

    residenciais de vulto e sedes municipais, a exemplo do Palcio de Sintra. Na segunda metade

    do Quinhentos, edificaes religiosas como a Igreja de So Roque ou o convento da Graa

    em Lisboa j incorporavam seu uso, porm com predominncia das estampas repetidas e

    contornos trabalhados. Tal prtica foi aos poucos incorporando novos elementos, incluindo

    pequenos painis figurativos com temas da Antiguidade Clssica (Pais et al: 2005: p.15).

    Os azulejos figurativos constituram o prximo passo na evoluo da produo

    azulejar, os quais podem ser exemplificados atravs dos silhares figurativos da Casa dos

    Santos da Ordem Terceira de So Francisco de vora, sendo datveis de 1680-1690 (Meco,

    2002:58). Atravs desse partido de azulejos houve os grandes contratos tanto da nobreza,

    para ornamentar os interiores palacianos, como da Igreja para aplicar mais eficazmente as

    recomendaes tridentinas aos seus ambientes interiores e capelas. Os silhares figurativos

    compreendiam grandes painis historiados com temas condizentes com a funo do espao

    ou do edifcio onde os mesmos eram assentados. No incio do sculo XVIII, essa produo de

    azulejos ganhou impulso, sendo denominada Grande Produo, perodo correspondente ao

    reinado de D. Joo V (Pais et al: 2005: p.27).

    Foi nesse contexto da produo azulejar que foram feitas as grandes encomendas de

    painis para as igrejas e conventos de Portugal e do Brasil. Inicialmente emoldurados por

    barras desenhadas com folhagens ou arabescos, os painis tornaram-se as grandes obras

    artsticas das edificaes religiosas, as quais, integradas com a talha dourada e policromada,

    e aliadas s pinturas a leo sobre madeira, conferiam o grau de requinte e sofisticao

    condizentes com as sociedades metropolitana e colonial, na poca j articuladas e

    amparadas pela economia do ouro descoberto nas Minas Gerais. Posteriormente, no segundo

    quartel do sculo XVIII, as molduras dos painis figurativos j adotavam motivos rocaille, com

    contornos florais e dinmicas formais excedentes aos contornos dos painis.

    No contexto conventual franciscano a prtica desses luxuosos silhares apresentados

    segundo sua ltima verso tinha que ser aplicada com cautela e critrio. Afinal a Ordem dos

  • frades menores era mendicante, exaltando a pobreza como pressuposto bsico para uma

    vida plena de comunho com Deus. Ademais os Estatutos da Provncia qual os conventos

    do nordeste estavam subordinados a de Santo Antnio do Brasil assim rezava no captulo

    relativo aos edifcios e casas: Encomendase muyto que nos edifcios e obras resplandea

    sempre a santa pobreza, no fazendo curiosidades suprfluas, e desnecessrias (Estatutos,

    1681: p.113). Tal recomendao tornava-se na verdade um desafio para a Ordem.

    Diante dessas limitaes os frades menores justificaram as obras de embelezamento

    porque passaram os treze conventos do nordeste no segundo quartel do sculo XVIII, na

    argumentao de que para o culto divino todo o ornato seria pouco (Willeke, 1978: p.viii).

    Dentro desse raciocnio, podiam ser ornamentados com talha dourada e policromada e com

    painis azulejares a dependncia da igreja com capela-mor, a sacristia, a sala do captulo, as

    vias sacras, o claustro e o coro alto. Considerando os silhares de azulejos, que constituem o

    objeto de estudo do presente trabalho, os conventos da Bahia e de Pernambuco detem os

    mais expressivos acervos existentes no pas. Curiosamente o cronista oficial da Provncia

    franciscana nordestina Frei Antonio de Santa Maria Jaboato pouco explorou esses

    magnficos painis figurativos quando descreveu os conventos na sua Crnica, salvo em

    rpidas menes que fez, como aquela relativa aos azulejos da sacristia do convento de

    Santo Antonio do Recife, quando assim se expressou: ... deste athe o meyo correm as

    paredes limpas, e do meyo athe o pavimento ornadas de azulejo. (Jaboato, 1861, ii, p. 447).

    Os azulejos dos conventos franciscanos da Bahia

    Os franciscanos fundaram quatro conventos na Bahia: Salvador (1587), So Francisco

    do Conde (1629), Santo Antonio do Paraguau (1649), e Cairu (1650). Desse conjunto,

    apenas tres apresentam painis azulejares: o primeiro, o segundo e o quarto; Paraguau teve

    seus silhares retirados quando a casa foi abandonada e seu patrimnio alienado da Provncia

    qual pertencia, chegando quase completa runa (Fragoso, 2004: p.171). No complexo

    conventual de Salvador est o maior acervo azulejar portugus fora de Portugal: painis

    figurativos com motivos religiosos revestem as paredes da sala da portaria, da entrada da

    nave da igreja, da capela-mor, da via sacra, e da capela do captulo, enquanto motivos

    seculares, mais precisamente mitolgicos, so explorados nas paredes do claustro. A respeito

    dos trinta e sete painis que compem as galerias do citado ptio conventual, Sinzig (1933:

    p.170) destaca que foram doados por D. Joo V e assentados entre 1746 e 1748. Apesar do

    contedo supostamente pago dos painis, reproduzidos a partir dos emblemas de Otto Van

    Veen datados de 1608 (Fragoso, 2006: p.11), as imagens ali ilustradas festejam temas como

    as virtudes, que tm forte teor cristo. No tocante arquitetura religiosa representada nos

    painis, o componente cho muito presente, como se pode ver no painel XIX A morte

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    igual para todos (Pinheiro, 1951: p. 70), cujo cenrio longnquo apresenta uma igreja com

    fronto clssico, culo, cunhais e portada centralizada (Figura 1).. Num plano anterior,

    prximo ao observador, so destacados elementos de morfologia clssica como arcos plenos

    e cornijas em edifcios civis.

    O convento de Cairu tambm dispe de expressivo acervo azulejar figurativo,

    notadamente nas paredes da capela de Santa Rosa de Viterbo (anexa nave da igreja), na

    capela-mor e na via sacra, onde, em dois painis alusivos vida contemplativa franciscana, a

    arquitetura religiosa se faz representar atravs de igreja singela, com coberta em duas guas,

    implantada em terreno elevado, e dotada de cunhais, culo e portada clssica em cantaria

    (Figura 2). A prtica da decorao azulejar da via sacra com temas da religio igualmente se

    contextualizava com a orientao tridentina na medida em que a referida circulao

    compreendia o espao de ligao entre a sacristia, onde o celebrante se preparava para a

    cerimnia, e a capela-mor, o lugar mais sagrado da igreja, onde o celebrante de fato realizava

    o ato litrgico (Cavalcanti Filho, 2009: p.112).

    O conjunto conventual de So Francisco do Conde apresenta importante acervo de

    azulejos revestindo as paredes da nave da igreja. So vinte e quatro painis que remetem

    vida e aos milagres do Taumaturgo Santo Antnio, importante devoo franciscana, que se

    tornou um dos santos mais populares no contexto da religiosidade no Brasil colonial (Fonseca,

    1975: p.37). A exemplo dos silhares existentes nas outras casas franciscanas baianas, aqui

    tambm as edificaes religiosas so representadas como pano de fundo, com caractersticas

    simples e austeras, sem o exagero decorativo prprio da linguagem barroca, atendendo assim

    s prerrogativas de pobreza e mendicncia da Ordem dos frades menores. A aproximao

    com o modelo arquitetnico franciscano era, em alguns casos, contemplada atravs da

    proviso de ptio externo antecedido por cruzeiro, sem contar as caractersticas morfolgicas

    chs estampadas na imagem, como o caso do painel 20 da nave, onde Santo Antnio

    salva um operrio que tem um bloco de pedra cado sobre suas pernas durante a construo

    de uma igreja (Figura 3). Este partido de fachada simples, com fronto encimando a cornija e

    disposio de duas aberturas para o coro alto, foi denominado de jesutico (Santos, 1951: pp.

    139-140), porm a iconografia da poca demonstra que era um modelo geral para qualquer

    edifcio religioso, fosse ele pertencente ao clero regular ou secular.

    importante destacar que em todos os exemplos supracitados a edificao religiosa

    catlica integrava uma paisagem imaginria, que tentava representar um cenrio da histria

    da igreja. A preocupao do artista ao representar a arquitetura eclesistica estava to

    somente na obedincia a uma determinada morfologia arquitetnica, no caso a maneirista

    portuguesa. No obstante, a iconografia azulejar tambm poderia retratar edifcios religiosos

  • reais, como aconteceu nos silhares da Ordem Terceira de Salvador, que reproduzem a

    imagem urbana de Lisboa na primeira metade do sculo XVIII. Como a cidade foi devastada

    por um grande terremoto em 1755, os trinta e nove painis dos Terceiros, distribudos no

    claustro de So Roque e na Sala do Consistrio (Garcez, 2007: p.72), se revestem de grande

    importncia por constiturem o nico documento imagtico da capital lisboeta antes da

    catstrofe. Nos vinte e um painis existentes no Salo Nobre esto representados vrios

    monumentos que foram danificados ou totalmente destrudos pelo sismo, entre os quais o

    Mosteiro de So Vicente de Fora, a Casa Conventual da Madre de Deus, alm dos conventos

    franciscanos de Xabregas e de Santa Clara, estes desaparecidos. As imagens dos referidos

    monumentos denunciam a natureza ch de sua arquitetura, onde a erudio estampada nos

    frontes clssicos, nas pilastras e nos entablamentos definia a leitura geral dos edifcios

    (Figura 4).

    Os azulejos nos demais conventos franciscanos nordestinos

    Como na casa conventual de So Francisco do Conde, na Bahia, citada acima, as

    paredes da nave de igreja de Santo Antnio em Igarassu, no estado de Pernambuco so

    revestidas com silhares de azulejos com motivos da vida e dos milagres de Santo Antnio de

    Portugal. So treze painis nos tons azul e branco que reproduzem episdios marcantes da

    histria do santo. Como no convento baiano, todos os painis foram baseados em gravuras de

    autoria do alemo Martin Engelbrecht (1684-1756), editadas em Ausburgo, e disponveis

    ainda hoje no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa (Silva, 2000: p.51; p.54)

    Motivos similares com Santo Antnio como personagem principal so encontrados nos

    onze painis que revestem a parte inferior das paredes da nave da igreja de Santo Antnio do

    conjunto franciscano do Recife. Importados de Portugal entre 1720 e 1750, os painis

    reproduzem os milagres atribudos ao santo portugus, como o do paraltico, dos peixes, do

    envenenamento, e do exorcismo da mulher, entre outros (Mueller, 1956; pp. 38-40). No

    tocante arquitetura representada nesses painis, notria a presena da linguagem

    maneirista, seja em elementos morfolgicos em evidncia, como os arcos plenos do cenrio

    do milagre do envenenamento; ou em imagens contendo igreja como pano de fundo, como

    aquela dotada de fronto clssico no quadro do milagre do menino paraltico.

    Ainda no convento franciscano recifense so dignos de nota os painis das galerias do

    claustro: vinte e sete quadros representativos de passagens do Antigo Testamento, como a

    criao de Ado, a expulso de Ado e Eva do paraso, a Arca de No, o sacrifcio de Abrao,

    o crime de Caim, etc. Os desenhos, baseados na Bblia Ilustrada Histoire Sacre de La

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    Providence (Mueller, 1956; p. 36), se detm mais na essncia dos episdios bblicos, ficando

    a iconografia da arquitetura menos contemplada.

    A vida do fundador da Ordem dos frades menores, So Francisco de Assis, foi

    igualmente contemplada na iconografia azulejar de conventos nordestinos. O claustro da casa

    franciscana de Olinda contm uma coleo desses azulejos figurativos que remontam

    episdios da histria de Francisco, como seu nascimento, sua converso ao Evangelho, a

    recepo dos estigmas, bem como sua morte. Os dezesseis painis foram feitos a partir de

    uma coleo de vinte desenhos originais gravados pelo artista flamengo F. Harrewyn, tendo

    sado do prelo em Lisboa em 1730, o que sugere que a obra de revestimento tenha acontecido

    entre 1735 e 1745 (Mueller, 1954: p.111). Aqui tambm a arquitetura revelada aquela sbria,

    erudita, provida de traos maneiristas, que a rigor, no corresponderia linguagem

    arquitetnica caracterstica do sculo XII, quando So Francisco de fato viveu. Com

    caractersticas similares no tocante ao tratamento das edificaes religiosas, a casa da

    portaria do convento, grande salo anexo ao claustro, apresenta em suas paredes painis

    azulejares alusivos vida de SantAna, me da Virgem Maria.

    Dedicado a So Francisco, o convento dos frades menores de Sirinham, em

    Pernambuco, igualmente detm magnfico patrimnio azulejar os painis que recobrem as

    paredes da nave da igreja conventual, os quais contam, como no claustro do convento

    olindense, episdios da vida do santo. Tambm inspirados nas gravuras da coleo

    supracitada, intitulada Histria admirvel do Serfico S. Francisco, exemplo de toda a

    perfeio evanglica, os quadros reproduzem passagens emblemticas da trajetria do

    Poverello de Assis, a exemplo da gravura onde ele se despe perante o Bispo e a comunidade

    em represlia s aes autoritrias de seu genitor D, Bernadone ((Mueller, 1954: p. 117). A

    imagem, profusa em elementos arquitetnicos clssicos, apresenta como longnquo pano de

    fundo, paisagem buclica contendo edificao religiosa ch (Silva, 2002: p.259).

    A partir do exposto, pode-se perceber que as colees de painis azulejares

    figurativos baseados em gravuras de origem alem eram produzidas de acordo com a

    inteno de homenagear o padroeiro para o qual o espao religioso era dedicado. Assim as

    seqncias dos milagres de Santo Antnio via de regra revestiam as paredes das naves das

    igrejas conventuais dedicadas ao santo portugus, haja vista a presena de colees

    congneres nos conventos de So Francisco do Conde, Igarassu, e Recife, todos de devoo

    antonina. J os painis figurativos de So Francisco eram colocados naquelas igrejas

    dedicadas a So Francisco, como foi o caso de Sirinham.

  • No caso do convento da Paraba, apesar de ter devoo antonina, os azulejos que

    revestem a nave da igreja reproduzem a vida de Jos, personagem o Antigo Testamento que

    fora vendido como escravo no Egito e, por ter o dom de interpretar sonhos, torna-se pessoa de

    confiana do fara. Apesar de a histria se passar no Egito, a arquitetura representada nos

    painis acompanham a prtica recorrente nos demais silhares de azulejos franciscanos,

    adotando traos da linguagem ch.

    importante destacar tambm que essas encomendas s fbricas portuguesas eram

    dispendiosas, envolvendo alm dos custos para sua confeco, aqueles relativos ao

    transporte martimo. Como os franciscanos se sustentavam a partir de esmolas e doaes,

    apenas as comunidades de frades sediadas em locais de melhor status social poderiam arcar

    com empreendimentos decorativos do gnero. O convento de Salvador ilustra bem essa

    assertiva: como estava localizado no maior centro econmico da Amrica Portuguesa, a

    probabilidade de benfeitores para custear os grandes investimentos de embelezamento do

    complexo conventual era bem maior que aquela de um centro urbano como Ipojuca, em

    Pernambuco, o menor dos conventos franciscanos do nordeste colonial, e por conta das

    limitaes de doaes e esmolas o mais capucho em termos de dimenses e elaborao.

    Consideraes finais

    A partir do que foi exposto no presente trabalho, ficou evidente que o modelo de

    arquitetura religiosa apresentado nos painis de azulejos dos conventos franciscanos

    nordestinos devia reproduzir a morfologia dos edifcios eclesisticos fabricados na Metrpole

    entre final do sculo XVI e o incio do sculo XVIII. Essa verso corresponde quela adotada

    pelos franciscanos nas suas primeiras fundaes, como a de Igarassu, registrada no leo de

    Frans Post, onde o fronto clssico constituiria um dos seus principais indicadores formais,

    sem contar a cantaria dos cunhais, da portada nica e do culo que compunham a fachada.

    Com relao recorrncia do modelo supracitado nos silhares produzidos a partir da

    segunda metade do sculo XVIII, quando a extravagncia das formas barrocas constitua a

    tnica da arquitetura eclesistica, pode-se atribuir que a preservao do mesmo se deveu ao

    componente de simplicidade e pobreza que regia o modus vivendi franciscano, recomendado

    nos estatutos da Provncia e fundamentado na Regra da Ordem dos frades menores. Como

    os painis azulejares, enquanto expresso artstica, tinham uma funo pedaggica, segundo

    a orientao tridentina, no era cabvel a representao de templos suntuosos, ricos em

    detalhes arquitetnicos, pois constituiria uma contradio retrica da pobreza dos frades

    menores. A propaganda da arquitetura franciscana tinha que ser minimalista, fundamentada

    em valores cristos onde o requinte e a soberba no tinham ressonncia.

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    Finalmente, esta pesquisa demonstra que os painis azulejares existentes nos

    espaos onde a decorao era permitida no mbito dos conventos franciscanos do nordeste

    do Brasil interior da igreja conventual, sacristia, claustro, capela do captulo e via sacra, por

    caracterizarem locais do culto divino constituem documentos patrimoniais de inestimvel

    valor na medida em que fornecem informaes basilares acerca das prticas religiosas

    catlicas, dos dogmas da Igreja e das tradies e costumes da sociedade colonial e da

    Metrpole poca. Atravs dos recursos tcnicos e artsticos que lhes so prprios, os

    silhares de azulejos informam, denunciam, descrevem .... e escrevem a histria sua

    maneira, no atravs de registros textuais, mas segundo imagens de leitura clara e definida

    nas cores azul e branco. Ademais os azulejos em questo representam valiosos documentos

    para a pesquisa, atravs dos quais se obtm dados histricos e iconogrficos importantes,

    como a configurao volumtrica do Convento de Xabregas e da Casa Conventual de Santa

    Clara, ambos destrudos no grande terremoto que devastou Lisboa em 1755, sem contar o fiel

    registro da linguagem adotada pelos franciscanos para a representao de suas casas

    religiosas a arquitetura ch.

  • Figura 1 Claustro do Convento de Salvador -A Morte igual para todos. Fonte: Acervo pessoal Ivan Cavalcanti Filho.

    Figura 2 Via sacra do convento de Cairu - Detalhe do 3 Painel. Fonte: Acervo pessoal Ivan Cavalcanti Filho.

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    ISSN 1983-7518

    Figura 3 Nave da igreja conventual de S. Francisco do Conde - Painel 20. Fonte: Acervo pessoal: Ivan Cavalcanti Filho.

    Figura Painel da Ordem III de Salvador -Vista do Convento da Madre de Deus. Fonte: Acervo pessoal Ivan Cavalcanti Filho.

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