dl umn - cadernos saÚde coletiva - iesc / ufrj · a; i t r: t i dl hlu oos loucos a0 grande...

13
Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera Navis lo ¿he great externment: an history of Foucault's h¡stor¡es of madness Arthur Arruda Leal Ferreiral Rris u Mo A mcta dcstc artigo é, inicialmcntc, fazer um lcva¡¡tamct¡to dos t¡abalhos dc Michcl Foucault sobre a história da loucura, do Rcnascimcnto (século XU ató os nossos dias. Lcvantamcnto que inclui náo apcnas o clássico A H¡stór¡a da Inurura (1961), mas igualmcnte outros trabalhos quc sc manifcstaram cm fascs mais tardias do scu pcnsamcnto. Estc mapeamcnto do t¡abalho de Foucault náo üsa apenas um rcccnscamcnto cxtcnsivo do tcma, mas pincipalmcntc um diagnóstico dos perigos atuais cxistcntcs no tmto com a loucur¿. No pr.esente, um destes riscos sc manifesta na conjungáo do p¡lccsso da Rcforma Psiquiátrica com a Rcfo¡ma do Estado brasilciro, cm quc a dcsarticulagáo do modclo asilar podc scr assimilada ao próprio dcsmontc dc ccrtos scrvigos públicos, langando toda uma populagáo enclausurada c tutclada no cspago público cada vcz mais cxíguo dc nossas cidadcs. Moümento quc faz com quc csta populagáo rccncont¡c alguns parceiros clássicos da grandc internagáo produzida cm mcados do sóculo XVII: mcndigos, prostitutas, blasfcmadorcs, ctc. Como cstc processo agora sc produz fora das gmdes e muros das casas, pragirs c prédios das cidadcs, scni elc denominado: o grandc cxclausuramcnto. PALAvRAs-cHAVI Histó¡ia da psiquiatria, políticas de saúde mental, filosofia contemporánea A BS t RAC',I Thc aim ofthis aniclc is, initially, to makc an inventory ofthc worls ofMichel Foucault's on tl¡e l¡istory ofmadness from thc si¡,tcenth-ccntury Renaissance until thc prescnt day. Tlris invcntory addrcsscs not only his classic Tlv Hstor¡ oJMalness (1961), but also other works pr.oduccd in later pcriods of lús i¡tcllcctual dcvclopment. This cxamination of Foucault's publications is not simply an cxtcnsivc ¡cvicw of his writiugs; it is a critical diagDosis of thc daogcrs which exist in today's treatmcnt of insanity, or radrcr, in today's politics of mcntal hcalü. In present-day Bmzil, one of thesc ¡isl¡s is manifestcd in drc conjoining of Psychiatric Rcform and Statc Rcform, in which the undoing of theasylum modcl can be asúmilated into its own destruction ofpublic services, Iaunclúng into drc strccts, cach timc morc fastidiously from our citics, thc cntircty ofdrc population ofthe intemed and the necd, a movcmcnt that forccs tlis populatio¡r into rcconnaissancc with bcggars, prostitutcs, blasphcmcrs a¡d crazics: thc classic cha¡actcn of thc grcat incarccration ofthe mid-scvcntccnth ccntury. How this proccss ofcxclusion takcs placc Pr1fessat ad)unto d0 Departanenlo de Ps¡col1gia Geral e Exper¡nenlal d0 lnstitulo de Ps¡colagia da UFBJ e D7utu en Psjc1lag¡a Clinica pela PUC SP Pesquisad1r f¡nanciado pela FAPERJ e pe¡a FUJB. CaDcn¡os Sarior CoLE¡rvÁ, Rro 0E J^Íflño, 9 (1):69 -81,2001 - 69

Upload: buitram

Post on 10-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

.

:

a

;

I

t

r

:

t

I

Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons

HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA

From Stultifera Navis lo ¿he great externment: an history of Foucault'sh¡stor¡es of madness

Arthur Arruda Leal Ferreiral

Rris u MoA mcta dcstc artigo é, inicialmcntc, fazer um lcva¡¡tamct¡to dos t¡abalhos dc MichclFoucault sobre a história da loucura, do Rcnascimcnto (século XU ató os nossos dias.Lcvantamcnto que inclui náo apcnas o clássico A H¡stór¡a da Inurura (1961), masigualmcnte outros trabalhos quc sc manifcstaram cm fascs mais tardias do scu

pcnsamcnto. Estc mapeamcnto do t¡abalho de Foucault náo üsa apenas umrcccnscamcnto cxtcnsivo do tcma, mas pincipalmcntc um diagnóstico dos perigosatuais cxistcntcs no tmto com a loucur¿. No pr.esente, um destes riscos sc manifestana conjungáo do p¡lccsso da Rcforma Psiquiátrica com a Rcfo¡ma do Estado brasilciro,cm quc a dcsarticulagáo do modclo asilar podc scr assimilada ao próprio dcsmontcdc ccrtos scrvigos públicos, langando toda uma populagáo enclausurada c tutclada nocspago público cada vcz mais cxíguo dc nossas cidadcs. Moümento quc faz com quccsta populagáo rccncont¡c alguns parceiros clássicos da grandc internagáo produzidacm mcados do sóculo XVII: mcndigos, prostitutas, blasfcmadorcs, ctc. Como cstc

processo agora sc produz fora das gmdes e muros das casas, pragirs c prédios das

cidadcs, scni elc denominado: o grandc cxclausuramcnto.

PALAvRAs-cHAVIHistó¡ia da psiquiatria, políticas de saúde mental, filosofia contemporánea

A BS t RAC',I

Thc aim ofthis aniclc is, initially, to makc an inventory ofthc worls ofMichel Foucault'son tl¡e l¡istory ofmadness from thc si¡,tcenth-ccntury Renaissance until thc prescnt day.

Tlris invcntory addrcsscs not only his classic Tlv Hstor¡ oJMalness (1961), but also otherworks pr.oduccd in later pcriods of lús i¡tcllcctual dcvclopment. This cxamination ofFoucault's publications is not simply an cxtcnsivc ¡cvicw of his writiugs; it is a criticaldiagDosis of thc daogcrs which exist in today's treatmcnt of insanity, or radrcr, intoday's politics of mcntal hcalü. In present-day Bmzil, one of thesc ¡isl¡s is manifestcdin drc conjoining of Psychiatric Rcform and Statc Rcform, in which the undoing oftheasylum modcl can be asúmilated into its own destruction ofpublic services, Iaunclúnginto drc strccts, cach timc morc fastidiously from our citics, thc cntircty ofdrc populationofthe intemed and the necd, a movcmcnt that forccs tlis populatio¡r into rcconnaissanccwith bcggars, prostitutcs, blasphcmcrs a¡d crazics: thc classic cha¡actcn of thc grcatincarccration ofthe mid-scvcntccnth ccntury. How this proccss ofcxclusion takcs placc

Pr1fessat ad)unto d0 Departanenlo de Ps¡col1gia Geral e Exper¡nenlal d0 lnstitulo de Ps¡colagia da

UFBJ e D7utu en Psjc1lag¡a Clinica pela PUC SP Pesquisad1r f¡nanciado pela FAPERJ e pe¡a FUJB.

CaDcn¡os Sarior CoLE¡rvÁ, Rro 0E J^Íflño, 9 (1):69 -81,2001 - 69

Page 2: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I

I Anrnun A¡nuo¡ L¡¡r F¡nnrn¡

today, bryond thc barrerl lr'indows and protcctivc walls of thc houscs, squarcs anobuildings ofthc citics, will bc known as thc great ,.extcr.ning,,.

Klt'-rvottt¡sHistory of psychiatry, politics of mcntal hcalth, contcmporary philosophy

An¡;n lun,lO Rio de Janeiro é uma cidade singular, que neqocia o scu cspago

urbano com os acidentes geográficos que a cercam, fazendo com que elasempre se abra para o exterior, para os seus limites. Alguns acidentes sáo

domesticados, outros provocados. O Aterro do Flamengo é um acidentepremeditado na conquista do mar para que a cidade se nutra de espaqo

externo; um espaqo público de circulagáo, em um processo inverso ao daprivatizagáo e interiorizagáo das grandes cidades modernas. Nesta longaextensáo de quadras, üas ejardins (uma pálida cópia do projeto original deBurle Marx), circula uma populaqáo heterogénea: moradores da cercania,desportistas, meninos de rua, mendigos, pregadores, mich€s, farofeiros delinal de semana e... alguns loucos. Curiosa populagáo congregada mr prazer,no lazer e na desconfianga e na auséncia de alternativa. Reúne-se umagrupamento táo heterogéneo como o que p6de ser congregado trés séculos

atrás na Europa no espago interno dos Hospitais Gerais, como mostraMichel Foucault em A Histórin da Loucura (196l). O que teria se passado

nestes t[és séculos entre o recolhimento e o ostracismo de populagóes táodiversas? Seria a simples revisáo de uma liberdade injustamente confiscadae enfim restituida? E, mais exatamente) o que pode se suceder.com os

loucos e seus companheitos de nomadismo? Devemos ter a esperanga derevéJos navegar em sua Shtbifera,Nbair (a Nau dos [,oucos) nos rios dejaneiro a janeiro, como p6de ocorrer no Renascimento?

N,ÍcHrx, FoucAUI;t : A Hls l óRrA D^s Hrs l.óRr^s D LoucuR/1.

Um grande parceiro na abordagem destas questóes será o pensadorMichel Foucault. Pensador de dificil classificagáo dentro dos ramostradicionais do saber. Historiador-, se náo propusesse uma genealogia deinspiragáo nietzscheana em substituiEáo á história tradicional das idéias,marcada pelo intele ctualismo, continuísmo e primazia do sujeito.Epistemólogo, se náo recuasse a abordagem epistemológica em prol deuma arqueologia, devotada á descriqáo dos solos epistémicos de onde os

70 - C¡oentos SaúDE CorÉr|va, Rro or Jrrrrro, g {t):69 -01,2001

Page 3: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

0a tau 00s touc0s Áo cRAIDE EtcLAUsuRAxEt{Tol Ux¡ Hts¡0nra D¡s tttslónt^s FocauLTlÁtlas s08nf a toucuna I

saberes surgem, sem se indagar sobre a sua cientificidade. Filósofo, se náo

recusasse a primazia dos sistemas em prol de um pensamento estratégico,

problematizador das questóes atuais, modificando a partir destas os seus

conceitos e métodos. E é nesta atitude estratégica de seu pensamento que

a sua parceria será tomada: náo para extrair dele o sumo do qual possa

ser decantada uma verdade maior, mas utilizá-lo como uma ferramenta a

operar criticamente sobre a nossa contemporaneidader . E algo deve Éer

dito claramente sobre esta caixa de ferramentas foucaultiana: sua fungáo

náo é nos fornecer um apoio ou um fundamento, mas desmontar nossas

verdades mais caras, destronar as nossas evidéncias reificadas e calcular

os riscos do nosso presente. Pensar com um autor nesta perspectiva náo

é o juramento de fidelidade aos seus princípios, mas é estrategicamente

pensar com ele e, ás vezes, contra ele, se abrindo a outras parcerias,

Quando pensamos nesta ferramenta foucaultiana, neste martelo

destruidor das evidéncias tomado de empréstimo a Nietzsche, com o qual

se é necessário filosofar, pensamos em uma espécie de utensílio ou arma

única, com o mesmo porte para destruir qualquer certeza. Contudo, nós

enconraremos nos ditos e escritos de Foucault um farto arsenal de máquinas

de guerra, cada qual forjada para a sua evidéncia sólida. O tema da saúde

é um dos mais reconentes nos trabalhos foucaultianos por se tratar de um

aglutinador de dispositivos que produzem um alto capital de verdades ao

mesmo tempo que um vasto arsenal de formas de governo de si e dos

outros. Contudo, a abordagem deste tema varia em torno de uma série de

termos específicos, conceitos-chave e alvos estratégicos. Cartografar o tema

da saúde seria um árduo trabalho de cruzar e combinar temas, conceitos

e alvos estratégicos. Mais interessante seria a tomada de um tema nos

escritos foucaultianos e observá-lo variar em torno de conceitos e

problematizagóes. Insiste-se: náo para extrair dele um sistema, mas uma

montagem de seus dispositivos históricos, que sirvam para problematizar

as evidéncias presentes.

' l,ago aqui minhas as palavras dc Cillcs Dcltuzc (1972, p.7l)r "Una tcoria ó u'na (aixa

dc Ierramenlas... il prcci.o qu,: sirva, é prcciso quc luncionc. U neo Para si mcsnra. Sc

náo bá pessoas para util¡zá-la, a colrcaar pclo própr¡o teórico quc dcixa cntáo dc scr

teórico, é que cla ¡áo valc nada ou quc o |no cnto ainda náo chegou. N¡o sc rcláz uma

teor;a, I)zcrn-!,e outras; há outras para sercnr Ieitas-"

CaDEir¡os SaúoE CoLEÍva, Rr0 0E JÁxEr¡o, I (1): 69 -81, 200'| - 71

Page 4: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I A¡r¡un A¡nuo¡ L¡¡L Fenn¡rn¡

No caso da saúde, dentre uma arqueologia e genea.logia da clinica, daformagáo médica, do hospital e da saúde pública, destacarei uma genealogiada saírde mental. Com uma ressalva inicial do próprio Í-oucault feita emA História da ltucura: tanto a saúde mental como a doenga mental sáoinvenqóes historicamente datadas, próprias de uma forma de dominaqáoda loucura singular á modernidade. Neste aspector portanto, melhor seriafalar de uma história da loucura, ou de histórias da loucura, sabendo davariagáo no conjunto dos enunciados fout-aultianos dos conceitos e a.lvos

estratégicos. Passemos ao desfile dessas histórias da loucura, registrandonáo apenas o trabalho foucaultiano, mas igualmente o de outros pensadoresque ajrrdem a sinalizar os llossos riscos atuais.

Apesar de ter alguns textos publicados nos anos cinqüenta (por exemplo:Doenga Mental e Psicolngia), Foucault terá apenas o seu reconhecimento noinício dos anos sessenta com a publicagáo de sua tese de doutorado: IHisüria da Lou¿ara. Neste texto clássico, este filósofo mostra-los que opercurso do Renascimento até os nossos dias tem o sentido da progressivaseparagáo e exclusáo da loucura no seio das nossas experiéncias sociais.Para tal análise, sáo destacadas do século XV até o século XIX as diferentesmanilestagóes sobre o conhecimento teórico da loucura de um lado e apercepgáo social dos loucos, de outro. Deste modo é que no Renascimento(século XVI) r'ecai contra a loucura no máximo uma condenacáo decunho moral (enquanto presungáo, desregramento, irregularidade daconduta, defeito, lalta e fraqueza) sendo a sua experiéncia náo muitodistanciada daquela da própria razáo.

No periodo Clássico (séculos XVII e XVIII) a loucura é excluída daordem da razáo com Descartes e os loucos, enclausurados junto a umapopulagáo heterogé,nea, excedente moral e económico da sociedade:sodomitas, prostitutas, libertinos, blaslemadores, suicidas, magos, feiticeiros,alquimistas, etc. Outm marca deste período é a dissociagáo entre apercepgáo social dos loucos, governada pela experiéncia do internamento,e o conhecimento médico da loucura, regido por um paradigmaclassificatório-tarinómico, em que as diversas formas de loucur.a constituíamfamílias em continuidade com as demais doengas. Daí a auséncia dequalquer especificidade que conferisse ás doengas mentais um domínio áparte; no período Clássico elas náo existem.

72 - C¡o¡nr¡os S¡úoE ColÉ¡rva, Rto DE JailoÍo,9 (1):69 -8.|,2001

Page 5: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I

Da x^0 oos t0ucos ^o

GnaNDE Erc!^usuR^r¡ENIoi lJx¡ Írsrónra DÁs ¡rsló¡ras tocaul¡at¡s so!¡E ^

LoucuBA I

A linha separatória entre razáo e desrazáo que surge no período

Clássico cava sulcos mais profundos na Modernidade (século XIX em

diante), quando os loucos se véem libertos das correntes por Pinel e Tuke,

mas ainda circunscritos ao espago asilar no estigma da doenqa mental,

verdade considerada agora a mais profunda do homem. Assim a loucura

é liberta no confinamento ao saber médico e na solidáo dos asilos, sem

mais as suas parcerias do período Clássico. Nas palavras de Foucault,

liberta-se o louco das correntes, mas ele é atrelado á esséncia humana.

Que alternativas sáo vistas aqui para as vozes da loucura caladas na

Modernidade pelo sono dogmático-antropológico? Náo certamente o espago

clinico da psicanálise, que mesmo se abrindo ao discurso da loucura em sua

integridade, recodifica todos os poderes médicos na figura do analista (crítica

que será repetida mais adiante). O extravasamento das vozes loucas só terá

uni lugar: o da literatura, entendida náo como espago clássico da obra

erudita, mas justamente como problematizagáo e limite deste. O próprio da

literatura será promover um "desobramento" regulado da linguagem comun,

aproximando-se da linguagem louca enquanto total "auséncia de obra". E

é deste modo, através da literahrra, que vozes loucas puderam ainda vociferar:

as de Sade, Hólderlin, Nerval, Nietzsche e Artaud. Contudo, deve ficar

claro que Foucault, ao afirnar a expressáo destas vozes da loucura através

destes autores, náo tinha a menor intengáo de atrelálos a uma esséncia

louca ou a um diagnóstico psicopatógico, como procede a medicina moderna.

O esforqo arqueológico próprio dos anos sessenta do trabalho de

Foucault, de dar conta das condigóes de possibilidade histórica dos saberes,

encontrará nos anos setenta o poder como o seu termo-chave. Inicia-se

aqui o projeto genealógico, na tentativa de conjugar a génese dos saberes

na reformulagáo dos poderes. E nesta fase do pensamento foucaultiano, a

g€nese do saber psiquiátrico náo assumirá tanta importancia como a das

prisóes, dedicando Foucault ao tema no máimo alguns cursosz e artigos.

Um dos mais emblemáticos destes trabalhos é A Casa dos Inucos (1974), em

que este pensador mostra-nos que a articulagáo entre poder e verdade

! Dos cursos prol¿fidos sobrc o 1c,Da no Coll¿gc de ltrancc: O loda l\¡Ctiáttito (1973/t974), ot ,4 atñaii (t974/ 1975) e t, pr¿riú d¿I¿nd¿t ¿ to.ied¿d¿ (t97:r/ 197 6), o primuiro ú

consonantc ao artigo quc será apresentado:,1 C¿ du\ Loucot (197 +). Os dcnrais al:ordarna questáo psiquiátrica vinculando-a á produfáo dos anormais at¡avós dc uma lbr¡na dcpodrr regulado pclos valores da vida, o biopoder, que encontrará a sua maior manil¡st¿(áono racis¡ro do Flstado.

C¡oEfii0s S^r¡0E CoLcÍva, Rro Dr Ja¡Erno, I (l)r 69 -81, 2001 - 73

Page 6: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I Arrnu, Arrroo LEAr FGnñErna

(entendida aqui como prova e náo revelaqáo) atinge um de seus pontosmáximos no confinamento asilar, onde o louco é conduzido a confessarsua natureza louca. Nesta confissáo produz-se, através do poder asilar, averdade de sua loucura. Náo se trata pois de um modo de produgáo deverdades tal como ocotre na ciéncia natural, em que o objeto náo é

constrangido a revelar a sua verdade, mas a testemunhála. como em uminquérito.

Contudo, segundo Foucault, algumas estratégias de despsiquiatrizagáo,de rompimento desta relagáo entre o poder asilar e a verdade da loucura,sáo produzidas na virada para o século XX: a psicocirurgia e

psicofarmacologia de um lado, e a psicanálise de outro (podemos ver aquiuma certa continuagáo de A História da Loucura). Sáo estratégias dedespsiquiatrizagáor uma vez que a produgáo de verdade sobre a loucuranáo se equaciona mais com o confinamento asilar. Na psicofarmacologiae na psicocirurgia isto ocorre ao se lazer o poder de confinamento recuarperante uma verdade sobre a loucura revelada nos laboratórios. Napsicanálise esta quebra do dispositivo asilar se produz ao perrnitir que olouco produza a sua própria verdade, mesmo que no sz zlzg analiticorecodifique-se integralmente o poder médico na figura do analista3.Contudo, a derradeira estratégia de despsiquiatrizagáo será produzidapelo moümento antipsiquiátrico, capitaneado por Daüd Cooper, RonaldLaing, Thomas Szaz e Franco Basaglia, ao derradeiramente libertar olouco de qualquer confinamento e de qualquer verdade; a ele caberia a

produqáo de seu próprio saber. Esta produgáo do próprio discur.so e daprópria verdade é o contrapoder ou alternativa mais palpável ao poderasilar e suas formas de despsiquiatrizagáo relativas. A literatura náo terámais o poder subversivo que teve investida nos anos sessenta, sendo pois

substituída por este elogio da antipsiquiatria.

tlin ¡mb¡s as forrrlas dc dcspsiqüiarrizaqio rcsidiria a lórrnuta: .,Sabc¡nos sot¡rc a suadoenqa e a sua singularidadc coisas sulicienres sobrc as quais vocC scqucr dcsconfia, pa.arcconhcccr que se trata de urna dornqa; rnas dcsta docnga conhccemos o basLarrLe parasabcr quc vocC n¡o podc excrccr sobrc cla c cm rcta9¡o a eta ncnhr¡nr rlircito. Sualoucura, nossa ci6ncia pcrrnirc quc chanrcmos docnfa c dai em dianre, nós, rnédicoscs(a¡nos qualilicados para intcrvir c diagnosticar uma toucura que lhe inpcdc dc scr unrdoente cor¡o or outros: voc¿ será enráo um docntc me¡tal.', (¡oulcault, l97i p.127)

74 - C¡o¡¡¡os Sarl0r C0LEr|va, Bt0 DE JarErs0, 9 (l): 69 -81, 2001

Page 7: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

Da ¡u oos roucos a0 cna¡08 Excrau$untxE¡To: t r¡ r¡tsTó¡t^ DAs HtsTónt¡s r0c¡uL¡¡ as soB¡E ^

LouGU¡^ I

Un pr:ntco coN t EMpoRANEo: o cRAND¡t rxctAUSURArrr.tN'l oNossa história foucaultiana terminaria aqui com a possibilidade do

triunfo libertador da antipsiquiatria, na tomada de assalto do aparatopsiquiátrico a partir dos anos setenta? E bem verdade que este caminhoaberto por Foucault náo foi mais trilhado por ele nos anos setenta e

oitenta, tendo se dedicado a outras lutas, como a dos presos, no GIP(Grupo de Inlormagóes sobre as Prisóes). Contudo as problematizagóes

foucaultianas sobre a loucura contagiam outros rabalhos, como os de

Gilles Deleuze (1990) e Robert Castel (1985), contágio que me implicaigualmente. Mais decisivo na transmissáo de um vírus náo é o seu simples

contágio, mas as suas sucessivas mutagóes. Deleuze irá propor a existéncia

de uma sociedade de controle, para além das sociedades disciplinares,

baseadas na transmissáo da ordem pelo confinamento, como no asilo

psiquiátrico. O apoderamento dos corpos aqui passa a ser exercido ao arlivre e de modo contínuo, como no modelo de Hospital Aberto, porexemplo. Castel em seu A C*stdo dos Riscos irá p6r em questáo a própriaestratégia antipsiquiátrica, como um exemplo dessa nova forma de geréncia

da doenga, enquanto responsabilidade do portador. Foucault (1982: p.

256) assim se posiciona quanto este trabalho:

"Eu conco¡do inteiramente com a posigáo de Castel, mas isto nio querdizer, como alguns supóem, que os hospitais psiquiátricos sáo melhores doque a antipsiquiatria; isto náo significa que náo possamos criticar estes

hospitais. Penso que seria bom fazéJo, pois eles eram o perigo. E agoraestá bastante claro que o perigo mudou. Por exemplo, na Itália, fecharamtodos os hospitais para doentes mentais, e há mais clínicas particulares etc.

novos problemas surgiram."

A minha contribuigáo ürótica é perguntar quais sáo os riscos desta

despsiquiarizagáo que desponta numa nova sociedade de controle,especialmente no caso brasileiro. O que melhor representa aqui este processo

atual é a chamada Luta Antimanicomial, surgida nos anos oitenta como

um rebatimento em uma lrente de largo espectro doutrinário dos

moümentos antipsiquiátricos oriundos dos Estados Unidos e Europa desde

os anos sessenta. Movimento que implica na mudanga de uma série de

dispositivos institucionais, como a criagáo de hospitais abertos como Naps

e Caps, sem qualquer mecanismo asilar. Movimento que se desdobra

inclusive em direqáo ao Congresso, onde tramitou durante a década de

C^otn¡0s SaúDt ColrÍvr, ffro or J^ilErno, 9 (1): 69 -81,2001 - 75

Page 8: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I ABIHus ABRODA L¡¡L F¡¡¡¡¡¡¡

1990 um Projeto de reforma do sistema psiquiátrico, a Lei 10.216. Esta

lei, aprovada em 06 de abril de 2001, teve como base o projeto doDeputado Paulo Delgado apresentado em 1990, com versáo finalmodificada a partir do substitutivo do Senador Sebastiáo Rocha+. Talprojeto claramente desmantela o aparato asilar baseado em internaqóesinvoluntárias, a maior parte delas custeada pelo governo através dofinanciamento de leitos em instituigóes privadas, e subordina-as ao apar.elhojudiciário, impondo a sua notificaqáo junto ao Ministério Público (Artigo8", par'ágrafo l). Projeto pertinente, uma vez que enfrenta o enclausuramentoasilar e a inteffenqáo parasitária das clínicas particulares, especialmente

com relaEáo ao custeio estatal, além de contrabalanqar o poder médicocom o poder jurídico. A estranheza que envolveu a tramitagáo deste

projeto de lei, além de seu prolongado debate, é o jogo político que se

teceu em seu entorno. Pois se ele ganhou a antipatia óbvia do sistema

privado de saúde, que possuía boa parte de seus leitos de internagáocusteados pelo governo, por outro lado forneceu um apoio inusitado ao

projeto de reforma manicomial. Processo que, nas palavras do atual ministroda Saírde José Serra (2001, p.5) se dá na confluéncia da via legislativacom as normativas do próprio ministério, qr-re, desde a DeclaraEáo de

Caracas de 1990, estaria atuando no sentido de Gchar os hospitaispsiquiátricos iregulares, sendo estes substituídos por servigos alternativos,como leitos psiquiátricos em hospitais gerais e servigos de atenqáo diária.Estaria aqui manifesto o lesíduo esquerdista perdido do governo FernandoHenrique, agora entrincheirado nos gabinetes do Ministério da Saúde?

Por que se fomra aqui uma curiosa alianga entre o govemo e gruposligados á Reforma Psiquiátrica, isolando-se os representantes do sistema

de saúde privada em alguns poucos conchavos no congr.esso? Por que a

mesma alianga náo se reproduz entre os sindicatos de f'rabalhadores naEducagáo e o Ministério da Educagáo ou ainda com o núcleo duro dogoverno representado pelo Ministério da Fazenda?

De inicio náo se deseja aqui afirmar que esta conjugaqáo de forgas é

táo simples como se pretende aqui esquadrinhar. Nfas houve e há umaforte simpatia pelo projeto por parte de setores do governo, o que náo

' Dc 1992 ató hoic Ioranr cri¡das oiro Icis csraduair inspiradas no projc(o do DrpuractoPaulo Dtleado, scndo os csrados dc Pernamb co c rlo Rio cr¡ndc do Sul

76 - C¡o¡nr¡os SaúDE CoL€Íva, Rto DE Ja ErB0,9 (1):69 -g1,200.i

;

Page 9: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

D¡ l|Au D0s Lotrcos a0 ciatiot trcL¡t su¡¡ffltTo: [Jr¡¡ sIóRta oas Htsrónt¡s focautTt^l¡¡s so8Br a Loucuna ¡

implica necessariamente comunháo de interesses com os grupos proponentes

deste projeto, imbuídos em restituir a cidadania á loucura. Atás dos bons

acordos nem sempre se encontram as melhores intenqóes. Deve-se ressaltar

que náo se deseja aqui sugerir a restituigáo da estatizagáo psiquiátrica

centralizada e o retorno do modelo asilar, mas apenas destacar os liscos

deste projeto e de suas aliangas envolüdas. Certamente para fortalecéJo,

pois a dominagáo sobre a loucura sedimentada durante cinco séculos náo

haveria de se suprimir com a simples concessáo de cidadania á loucura.

Uma boa indicaqáo sobre estes riscos pode ser buscada nos trabalhos de

Foucault (1978) sobre a Govemamentalidade e o Liberalismo, em que

este náo é visto como uma estratégia de governo, mas uma critica á

interuengáo do governo em setores que sáo capazes de se auto-regularem,

especialmente aqueles que partem de iniciativas da sociedade civil. Em

alguns representantes do pensamento liberal como a Escola de Chicago,este mecanismo de auto-regulagáo é identificado ao mercado. Assim, se

os grupos ligados á Reforma Psiquiátrica visam conceder cidadania ao

louco, em oposigáo ao seqüestro e confinamento compulsório, o atual

governo pode ver aí uma simples possibilidade de se desobrigar, de lavar

as máos perante o mercado na regulagáo da vida daqueles quer em nome

do perigo ou da fragilidade, ele até entáo tutelava. Eles agorz que gerenciem

os riscos que eles mesmos portam. Náo apenas os loucos, mas os doentes,

os idosos e outras classes de esquecíveis. Eis uma marca do liberalismo

mesclado ás práticas de governo: delegar aos indivíduos a gestáo e aresponsabilidade sobre seus próprios riscos, repassando a estes os encargos

do próprio Estado. Insiste-se mais uma vez: a meta deste trabalho náo é

por a Reforma Psiquiátrica em xeque, mas calcular os riscos que ela traz

ao se atrelar ao processo de Reforma do Estado no Brasil, em que adesarticulaEáo do modelo asilar pode ser assimilada ao próprio desmonte

de certos servigos públicos.

Q¡ral pode ser a conseqüéncia mais perigosa deste acordo entre a

quebra dos muros psiquiátricos e o desgoverno liberalizante? A Lei 10.216,

através de seu artigo 5", mostra-se extremamente cuidadosa com os antigos

internos que se encontram no caso de dependéncia institucional, garantindo-

os através de uma política especifica de leabilitagáo. Náo há, pois, o que

supóe os críticos possíveis desta lei: o langamento puro e simples de uma

C¡or¡ros Saúoc Colrrrvl, Rro or J¡{Erno, I (1): 69 -81, 2001 - 77

Page 10: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I

I Anrnun Anruor IEAL FEsnETRA

populaqáo, até entáo psiquiatrizada e tutelada, na rua. Contudo, os novos

casos com a política de internagóes curtas podem ter. duas direqóes: as

clínicas psiquiátricas particulares, no caso dos indivíduos pertencentes afamílias abastadas; e a rua nos demais casos, Nas duas alternativas o seiofamiliar é o alvo mais improvável para os loucos, afinal todos os cidadáostem que se voltar para o trabalho e para a produgáo e ninguém pode se

dedicar aos loucos, Os que se direcionam para as ruas certamentereencontraráo uma populagáo outrora irmanada no enclausuramentoclássico, com a ressalva apenas de que ela está agora trancada por fora.Se o mercantilismo no periodo Clássico levou ao confinamento dos náo-produtivos e a economia de mercado moderna conduziu á reabsorgáo dosnáoJoucos nos séculos XIX e XX, na atualidade o trabalho torna-secategoria precarizada na produqáo de riquezas, acarretando a produgáode um resíduo populacional dispensável para o mercado. E cada vez maneste gesto de exclusáo torna-se mais amplo: pragas sáo cercadas, edi{iciosgradeados, calgadas bloqueadas com ferros e dormentess. Nas palavrasde Carvalho (2001, p.34): "A lógica do confinamento inevitável do louco/diferente tem a sua contrapartida no confinamento dos sáos/iguais." Umapopulagáo-resto é entáo jogada cad^ \ez mais para fora: para o asfalto,

viadutos, pontes, e estes cada vez mais e mais cercados. Neste aspecto, oAterro do Flamengo é um resquício de um espaqo exterior náo interiorizado,por onde ainda circula livremente esta populagáo externada e consternada.Talvez o que esteja em questáo por ora seja a impossibilidade degradeamento.

Existe um conjunto de trabalhos que póe em discussáo este afluxo daloucura no seio da populagáo de rua em fungáo da quebra do modeloasilar. Talvez seja cedo para obselar a concretizagáo deste risco emfungáo da recentidade da reforma psiquiátrica e do seu caráter náo radical.Contudo, um trabalho merece ser destacado: o de Maria Tavares Cavalcantie de sua equipe (2001-a, pp. 24-25), que, na abordagem de uma amostrada populaqáo de rua carioca abligada junto á Fundaqáo Leáo XIII,constatou o indice de apenas 9,9olo de doentes mentais graves. Para aequipe este seria um argumento satisfatório de que a desinstitucionalizagáo

5 Co¡sra o lblclor( car;oca que inclusivc houvc um prrt¡iLo quc havia ptancjacto cobriras calqad¿s dr crcolina, cxpulrando csla poputaCáo dr scu útrirno rcduro. O rnars currosoé que esre prcl¡ito suposra "loucura" conro lraqo dr narkcring poti(¡co.

78 - C¡ornros SariDE ColErlva, Rro 0E JaNEtno, g (l): 69 -81,200'|

Page 11: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

D¡ r¡u oos rouco$ ¡0 6¡¡rDE Ercl^üs0ta¡E¡To: u a Hts¡ónta DAs titsTónt¡s ¡oc¡ut¡¡¡¡¡$ $0¡¡¡ ¡ roucua¡ I

náo aumentou a freqüéncia de doentes mentais na rua. O diagnóstico

destes autores está baseado na avaliagáo de uma amostra populacional

abordada entre 0l/07 / 2000 e 18/04/2001 na Fundagáo Leáo XIII. Este

seria o primeiro problema: tratando-se de um grrpo de moradores de rua

assistidos pela Fundagáo, isto náo imporia um viés tendencioso na selegáo

desta populagáo? Como considerar os moradores de rua resistentes á

abordagem da Fundaqáo? Um outro problema é que este estudo é realizado

numa faixa muito restrita de tempo, náo havendo dados sobre o período

anterior á reforma. Ainda que houvesse este estudo, podeúamos nos

perguntar se o viés do diagnóstico seria igual. Apesar das dificuldades de

comparagáo com o passado, um estudo que, a partir do presente,

acompanhe a evolugáo da populagáo de rua através de uma longa duragáo

é desejável. Mas, também este possível estudo teria um problema: considerar

apenas o percentual de doentes mentais numa populagáo de rua para

avaliar o seu crescimento é insuficiente. Pois, estaríamos ignorando outras

raz6es que levam á exclusáo desta populaqáo para a rua. É necessário que

se avalie o aumento absoluto dos supostos doentes mentais e náo a sua

freqüéncia relativa. Talvez neste aspecto igualmente importante seja avaliar

o próprio aumento da populagáo de rua. Enquanto náo existem indices

seguros, permanece o risco de que esta exclusáo esteja se ampliando,

Contudo, alguns antídotos estáo sendo produzidos com relagáo a este

possível processo, como os chamados Lares Abrigados, em estado de

implementagáo aqui no Rio de Janeiro e com um sentido operacional

ainda náo muito claro, apesar de sua expansáo. Outra possibiiidade é o

trabalho de atendimento da populagáo de rua, e um exemplo disto é o

projeto desenvolvido pela própria Maria Tavares Cavalcanti (2001-a; 2001-

b), buscando-se eütar o enquadramento no modelo asilar.

Este processo de exclusáo, náo mais no interior dos asilos, mas no

exterior das cidades é simétrico ao "Enclausurame nto clássico", destacado

por Foucault. Por tal razáo, batizo-o de "O Grande Exclausuramento",

que náo se trata certamente de uma exclusividade brasileira, mas de um

desmonte em escala global e a toque de caixa dos aparelhos públicos de

acolhimento, tutela e governo de populagóes. A gestáo das populagóes

náo é mais alvo da governamentalidade, sendo substituída por aquilo que

deve se tornar meta e medida de todo o valor de agora em diante: o

mercado e suas flutuagóes. Se a produgáo, a mais racional, lucrativa e

CaDE¡Nos SaúDE Cortrrra, Rr0 DE JÁ[sno, I (l)j 69 -81, 2001 - 79

Page 12: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

I

I Anrrun Annuo¡ [EAL FEFnErn^

eficaz comporta sempre um resto, um dejeto (seja pelo excedente, sejapelo náo-aproveitável), por que o mesmo náo deve se dar com as populagóes,

agora táo precarizadas quanto o traba.lho que delas se esperava na geragáo

de riquezas? Sempre um resto populacional do qual tentaremos nos defendervagará no coragáo das cidades, levando a uma separagáo cada vez maisradical entre o interior gradeado e o exterior nas cidades. Como se as

fronteiras das cidades medievais que demarcavam o espaqo por onde os

loucos deveriam navegar com as suas Naves fosse introjetado para ointerior das cidades. Como lembra Paul Virilio (1997). as cidades seráo deagora em diante divididas entre os ndmades e os sedentáúos, diferenciadospela posse de novas tecnologias (os carros, celulares e tnptnps, por exemplo),que habilitaráo os segundos, onde quer que estejam, a estarem sernpre emcasa, ao contrário dos despossuídos. E dentre os n6mades que vagamvagabundo neste vago mundo, divagam os loucos, cada vez mais distantes,enclausurados no fora do dentro de nossas cidades e sem mais qualquerdireito á sua StulQfera Nauis.

R¡rEREtcrns BtBLtocBÁFtcAS

Cnstut., R. A gestdo dos rü¿o¡. Rio deJaneiro: Francisco Alves, lgB5.

C,tnv,tt.Ho, J. J. Saúde mental e diferenga: a üoléncia da exclusio.Reuista da Satfule. Ano II, Número 2. Dezembro de 2001.

C,tv.ll.c..tntt, M. T. et alli. A psiquiatria e o social: aproximagóes e

especificidades. In: C¡v,u.t',nr,¡ n, M. T. & VEN^Ncro, A. T. (Orgs.) Salletrlental: Campo, Saberu e Dücursos Rio deJaneiro: Edigóes IpUB-UFRJ,2001-a.

A loucura na rua. In: C,rv,lr.c,,rrvrr, M. T. & Ftcutrnnno,A. C. (Orgs.) A refonna psiquiátrica e os daafns da desinstitucimali¿agd.o. Node Janeiro: Edigóes IPUB-UFRJ, 2001-b.

Dt:r.r:uzr:, G.; Fouc,,rur.r', M. Os intelectuais e o poder. In: M,tcu,rno,R. (Org.). Microfuba dn Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982 (entrevistarealizada em 1972).

Drt.v,u't.t',, G. Conaasagda. Rio de Janeiro: Editora 34, 19g0.

Fouc,tut.'t , M. A História da Ltua¿ra. Sáo Paulo: Perspectiva, l97B (tese

de doutorado defendida em 196l).

80 - C¡o¡ntos S¡úoe Corrrrvr, Rro oe Jrrrrno, 9 (l)j 69 -g1,2001

Page 13: Dl Umn - CADERNOS SAÚDE COLETIVA - IESC / UFRJ · a; I t r: t I Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA From Stultifera

D¡ x^u Dos !0üc08 r0 e¡^rft ErcttuSünafttr0: Ur¡ Htsrú¡t¡ o^s itsT0nra8 Foc¡ütl|¡i¡s 8ot¡¡ ¡ Louou¡r I

. A Casa dos Loucos. In: MacHaoo, R. (O.g). Minofisita dn

Poda. Rio deJaneiro: Graal, 1982 (artigo publicado em 1974).

Os Awrmnü. Sáo Paulo: Martins Fontes, 2001 (Curso de

1974-1975).

. E preciso defmder a sodzdadz. Sáo Paulo: Martins Fontes,

2001 (Curso de 197,1-1975).

. Do governo dos üvos. ln: Fouce.urr, M. Resmn dos r¿rsos.

Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

. Sobre a genealogia da ética: uma revisáo do trabalho. In:DRgytruss, H. & Rerulow, P, (Orgs). Mbhel Foueault nn hqieürin filosófua.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 (enrevista publicada em

1983).

Macueoo, R. Cihuin e Saber: a trajeüria mpnlógica de Miñel Forcuk. Node Janeiro: Graal, 1982.

Snnna, J. Apresentagáo. In: kgislagáo em Saúde Mental. Brasília:

Mnistério da Saúde, 2001.

VttIt-to, P. A caástrofe u¡bana. In: Foka de Sdn Pauh (Cadmn Mais). 28

de setembro de 1997.

C^oEii08 S¡r¡0r CoLErvr, f,ro or Jutrno, I {1}r 69 -81,2001 - 81