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  • Universidade de BrasliaInstituto de Letras

    Departamento de Teoria Literria e LiteraturasPrograma de Ps-Graduao em Literatura e Prticas Sociais

    DO ROMANCE AO TEATRO

    A teatralidade como recurso para a representao na obra de Srgio SantAnna

    (Dissertao em 1 prlogo, 4 atos e 1 eplogo)

    Gleiser Mateus Ferreira Valrio

    Braslia, maio de 2008

  • 2Universidade de BrasliaInstituto de Letras

    Departamento de Teoria Literria e LiteraturasPrograma de Ps-Graduao em Literatura e Prticas Sociais

    Gleiser Mateus Ferreira Valrio

    DO ROMANCE AO TEATROA teatralidade como recurso para a representao na obra de Srgio

    SantAnna

    (Dissertao em 1 prlogo, 4 atos e 1 eplogo)

    Orientador: Prof. Dr. Andr Luis Gomes

    Braslia, maio de 2008

  • 3Gleiser Mateus Ferreira Valrio

    DO ROMANCE AO TEATROA teatralidade como recurso para a representao na obra de Srgio

    SantAnna

    (Dissertao em 1 prlogo, 4 captulos e 1 eplogo)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Prticas Sociais do Departamento de Teoria Literria e Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de Braslia, como requisito parcial para a obteno do grau de mestre em Literatura.

    rea de Concentrao: Representao na Literatura Contempornea.

    Orientador: Professor Doutor Andr Luis Gomes (UnB-TEL)

    Comisso Examinadora:Professor Doutor Andr Luis Gomes (UnB-TEL) Presidente.

    Professora Doutora Luciene Azevedo (UFU) Membro.Professora Doutora Regina Dalcastagn (UnB-TEL) Membro.Professor Doutor Joo Vianney Cavalcanti Nuto (UnB) Suplente.

    Braslia, maio de 2008

  • 4 minha famlia pelo total apoio nesses anos de pesquisa.

  • 5Agradecimentos

    Gostaria de expressar minha gratido a todas as pessoas que, de alguma maneira, contriburam para a realizao deste trabalho. A todos o meu sincero: Obrigado!

    A Srgio SantAnna pelo apoio nesses dois anos de pesquisa. Pelos comentrios, pela entrevista e minha total admirao de sua competncia enquanto autor.

    Ao professor Andr Lus Gomes, por ter acreditado em meu potencial e por conduzir firmemente o trabalho. A confiana de que poderamos produzir uma bela pesquisa.

    Regina Dalcatagn pelo profissionalismo e competncia com que me acompanhou durante o mestrado. Pelos ensinamentos e por ser um exemplo, e ainda por ter aceitado ser parte da banca examinadora.

    Aos professores do TEL pela grande contribuio minha formao.

    Aos membros do departamento que, de certa maneira, auxiliaram nos momentos de dvida, Dora e Jaqueline.

    Luciene Azevedo e Joo Vianney Cavalcanti Nuto no apenas pelo auxlio terico, mas pela participao em minha banca examinadora.

    Ao amigo Anderson por sua pacincia, perseverana e por acreditar em mim nos momentos em que mesmo eu tinha dvida. Sou eternamente grato

    Aos amigos Ana Carolina (Carol) e Rodrigo, no somente por serem presenas constantes em minha vida, mas por terem me mostrado o momento certo de no desistir.

    Aos amigos que, indiretamente, foram a fora necessria para a superao dos obstculos: Allan, Gabriela, Wesley, Fbio, Ludmilla e Daphne.

    Aos meus pais Vanilda e Juarez por tudo que fizeram em minha vida e por serem os grandes apoiadores de minha pesquisa.

    Aos meus irmos que se tornaram uma fora extra nas dificuldades: Daniela, Juarez Jnior e Katlen.

    Ao ensino pblico brasileiro que me proporcionou uma educao de qualidade da pr-escola ps-graduao. Minha credibilidade na melhoria e em um Brasil que somente crescer por meio de uma escola que fornea os subsdios necessrios para que os alunos sejam cidados ativos.

    A Deus, por permitir que eu chegasse at aqui.

  • 6Sumrio

    Resumo ...................................................................................................................viiiAbstract ..................................................................................................................ix

    Prlogo....................................................................................................................11Sobre a contemporaneidade e a formao da narrativa................................12A representao e a teatralidade...................................................................13Srgio SantAnna e a teatralidade como fonte da representao.................15

    Primeiro Ato Para uma esttica da representao: primeiras percepes dos elementos teatrais nos romances de Srgio SantAnna......................................19

    1.0 O conceito de representao e seus desdobramentos nacontemporaneidade......................................................................................20

    1.1 A representao e a personagem contempornea.......................231.2 A representao da personagem e a ordem doSimulacro..........................................................................................26

    2.0 As personagens simulacro......................................................................282.1 Representao, performance e engajamento..............................31

    3.0 O romance hbrido e a teatralizao da representao...........................343.1 As influncias teatrais e suas conseqnciaspara as obras de Srgio SantAnna: Robert Wilsone Antunes Filho................................................................................38

    Segundo Ato Simulacros e as personagens simulacro.....................................451.0 Simulacros e as mscaras narrativas......................................................462.0 O conceito de simulacro e a representao contemporneaem Srgio SantAnna...................................................................................473.0 Simulacros e o incio do processo de teatralizao darepresentao...............................................................................................51

    3.1 As mscaras de Simulacros e os nomes dados spersonagens como elemento da teatralizao da representao...................................................................................54

    Terceiro Ato O romance em um nico ato (no encenvel): crtica intelectual e o teatro poltico e de Brecht como fonte da representao...................................64

    1.0 O nico ato (no encenvel) e o romance de Gerao...........................652.0 Ele e Ela e a representao teatralizada..........................................693.0 O intelectual e a ironia como crtica daditadura........................................................................................................734.0 O teatro poltico brasileiro, Brecht e a crtica ao Engajamento................................................................................................77

  • 7Quarto Ato O romance-teatro e as inseres da temtica rodrigueana em A tragdia brasileira.................................................................................................................84

    1.0 A influncia de Antunes e a teatralidade na figurado diretor......................................................................................................85

    1.1 O conceito de tragdia e o teatro de NelsonRodrigues.........................................................................................881.2 Vida e morte de Jacira: inseres da temticae da linguagem rodrigueana em A tragdia brasileira....................89

    2.0 O romance em trs atos......................................................................952.1 A representao como encenao e as personagensde A tragdia brasileira..................................................................98

    2.1.1 A figura do Autor-Diretor e as consideraesfinais sobre o romance-teatro.............................................103

    Eplogo...................................................................................................................106O estilhaamento da realidade e o conceito de teatralizao darepresentao nas personagens de SantAnna: consideraesfinais............................................................................................................107Os espritos malfazejos, titereiros ou diretores teatrais de SantAnna....................................................................................................109A teatralidade e seus possveis desdobramentos.........................................111

    Bibliografia............................................................................................................113

    Anexo......................................................................................................................120

  • 8Resumo

    Ao ler a narrativa brasileira contempornea temos a impresso de que o terreno em que estamos encontra-se cada vez mais escorregadio. Os autores buscam exprimir a dificuldade de escrever por meio de obras que se mostram menos lineares e que jogam de maneira extremamente irnica com os elementos narrativos. Uma forma de se entender essa nova produo discutir, durante a anlise, as questes que se referem esttica da representao na literatura. Porque essas obras se diferenciam tanto das de perodos anteriores, conceitos como os de ps-modernidade e de descentramentos da identidade so chave para explicao de um texto fragmentado, metaliterrio. A representao precisa ser estudada desde o conceito de mimese aristotlica ao momento atual no que chamamos ordem do simulacro, da performance ou mesmo da teatralidade, fundamentais para se interpretar a criao do texto literrio. Essa associao entre a narrativa e o teatro resulta em textos altamente hbridos no que tange sua composio, que mesclam os gneros literrios com a finalidade de se por em xeque as questes sobre representao. Trata-se de uma maneira irnica de se estruturar os elementos narrativos, transformando o livro num campo em que ocorre o embate entre as mudanas sofridas pela literatura e a necessidade de se compor uma obra.

    Para a pesquisa, escolheu-se o autor brasileiro Srgio SantAnna, no somente por sua importncia no quadro literrio atual do pas, mas por suas obras que refletem claramente os posicionamentos sobre a representao contempornea e como ela resulta na teatralidade. Por meio da influncia do teatro, o autor transforma o ambiente de seus livros num local no qual se pode discutir ironicamente o fazer literrio e as prprias questes sociais, at porque representar visa um olhar sobre a sociedade. Dentre a vasta produo, de 1969 aos dias atuais, escolheu-se trs obras como principais para a anlise: Simulacros (1975), Um romance de gerao (1981) e A tragdia brasileira (1987). Decidimos por esses livros no somente por apresentarem uma certa continuidade e amadurecimento do processo de teatralizao, mas por comporem um ciclo na escrita de SantAnna, percorrendo mais de uma dcada de obras lanadas, bem como de um perodo brasileiro conturbado e significativo para se entender a posio da arte e dos artistas: a ditadura militar no Brasil (1964-1985).

    De um passo ainda inicial no teatral, jogando ainda de maneira tmida, Simulacrosfaz de seus personagens mscaras de tipos sociais. O conceito de simulacro no apenas explica, mas faz com que compreendamos um ambiente na obra que transforma as ruas em palco no qual os atores do cotidiano atuaro. Trata-se de algo que denominamos romance-laboratrio, um primeiro passo do teatral, algo que se desenvolver em Um romance de gerao e seu nico ato (uma comdia dramtica) no encenvel. Ainda jogando com os esteretipos, a obra apresenta discusses sobre o intelectual, bem como a influncia do teatro poltico brasileiro sendo criticado pela personagem central. J em A tragdia brasileira, no h mais uma relao simples entre o dramtico e o narrativo, mas o que SantAnna denomina um romance-teatro, analisado por meio da figura do autor-diretor. A influncia da temtica teatral brasileira se apresenta presente em uma relao direta com o ambiente das tragdias de Nelson Rodrigues.

    Palavras-chave: teatralidade, representao, hibridismo, performance, metaliteratura, romance-teatro.

  • 9Abstract

    Reading the Brazilian contemporary narrative, we might think the ground we are on is more and more slippery. The authors seek to express the troubles in writing throughout texts characterized by less linearity in contrast with tradition and by the mode they ironically play with the narrative elements. A path to understand such production is to discuss, during analysis, the problems related to the aesthetics of representation in literature. Due to such books be so different from the ones published in previous periods, concepts like postmodernity and identity displacements are the keys to explain why such texts are so fragmented, tending to metaliterature. Thus, representation must be reviewed from the Aristotles mimesis concept to the current moment which we call the order of the simulacrum, performance or theatrality, important to interpret the creation of literary texts. The association between narrative and theater results hybrid texts which mix the literary genres aiming to question the representation issues. It consists in an ironical way of structuring narrative elements, turning the book into a field in which the changes suffered by literature and the urge to write a novel struggle.

    We chose Srgio SantAnnas novels for the corpus not only due to his importance to the current Brazilian literary field, as for his narratives clearly reflect the theatrality in the discussion of the concept of representation. Influenced by the theatrical methods, the author turns his books space into a place where it is possible to ironically discuss the literary creation and the social issues, for the act of representing aims to elaborate a view over the society. Within SantAnnas vast production three narratives were drawn for the analysis: Simulacros (1975). Um romance de gerao (1981) and A tragdia brasileira (1987). We decided for the referred books not only due to the continuous development in the process of theatralization they represent, but because they compound a cycle in SantAnnas writing in a meaningful and disturbed period of Brazilian recent history to understand the position of the artists and the art itself: the military dictatorship (1964-1985).

    From an initial step in the theatrical, timidly playing with it, Simulacros turns its characters into social types masks. The concept of simulacrum explains how the narrative ambience transforms the streets into stages in which the everyday actors play its roles. It consists on a laboratory-novel, a first step of the theatrical which will be developed in Um romance de gerao and its non-playable one and only act (a dramatic comedy). The novel, still playing with stereotypes, presents a discussion about the position of the intellectual, as well as the range of the influence of the Brazilian political theater. On its turn, A tragdia brasileira does not invest on a simple relation between the dramatic and the narrative, but it shows what SantAnna calls a theater-novel, analyzed by the author-director. The influence of the Brazilian theater is present on an evident relation with the ambience of Nelson Rodrigues tragedies.

    Keywords: theatrality, representation, hybridity, performance, metaliterature, theater-novel

  • 10

    Mas aqui nesse texto, h palcos de verdade e uma parte de no fico. Estaremos agora, diante de um novo realismo da literatura brasileira? Um novo realismo que assume uma forma fragmentria? Pois est difcil, hoje em dia, no escrever em fragmentos. Porque a realidade, cada vez mais complexa, tambm se estilhaou. Principalmente, para um cara que desenraizou como eu. No existe uma cidade que seja minha cidade. No existe uma famlia que seja a minha famlia. E minhas vivncias, agora aqui no Rio de Janeiro, so cada vez mais diversificadas e fragmentrias em termos de pessoas, lugares, etc. Mas Joo Gilberto rege as muitas partes, contrapontos, deste concerto.

    Srgio SantAnna, O concerto de Joo Gilberto no Rio de Janeiro.

  • 11

    Prlogo

  • 12

    Sobre a contemporaneidade e a formao da narrativa

    O que acontece na obra contempornea visto que, a cada leitura, temos a ligeira

    impresso de perdermos o controle sob a narrativa? Como um terreno escorregadio, por

    vezes fragmentado, mas acima de tudo, sem uma linearidade para que nos apoiemos em

    uma sucesso de fatos com ligao com a impresso de continuidade. Seria incoerncia ou

    a cada dia o leitor tambm se encontra predisposto a uma leitura digamos mais complexa?

    Pelo fato de vivermos em um mundo que se transforma e se modifica diariamente, onde a

    velocidade e o tempo se tornaram inimigos do homem, talvez a melhor resposta para se

    compreender essa literatura esteja nessa nova forma de escrever a narrativa que j no se

    mostra predisposta s repostas fceis para nossas questes.

    Nesse campo a Literatura se destaca pelo fato de no somente no nos oferecer uma

    reposta eficiente, mas tornar a escrita um local de se posicionar e criticar a sociedade. Esse

    leitor da nova forma de narrativa tem que estar a par da obra que ler. Perda da linearidade

    apenas um dos fatores, mesmo porque, o leitor contemporneo tem que estar disposto a

    ser levado pela narrativa a questionar a si e seus conceitos. Com isso, no se visa somente

    fragmentar, mas colocar em xeque a viso de mundo que temos no momento em que

    abrimos as pginas de um livro, mesmo porque a moderna teoria literria est

    indissoluvelmente ligada s crenas polticas e aos valores ideolgicos de nossa poca

    (EAGLETON, 2003:268).

    Para Foucault (1996) o discurso dado por ns, e por meio dele expomos nossa

    maneira de pensar a realidade. Claro, ainda citando o autor, em meio atualidade, esse

    discurso se encontra cercado de lacunas, a serem preenchidas pelo autor e pelo leitor.

    Pensando a relao da obra com o mundo, esses espaos criados pela narrativa no apenas

    expem a necessidade de se participar na construo da obra, mas reflete um elemento

    ainda mais importante: aquele que escreve.

    a partir dessa viso, normalmente unilateral, que procuramos apreender a obra.

    Por meio de apenas um olhar que somos conduzidos pela narrativa e por ele que

    compreendemos o texto. Dentro da economia textual quem possui essa voz a figura do

    narrador, e esse elemento da escrita textual que o autor utiliza para desenvolver o enredo.

    Contudo, por ser criado por um homem, dotado de conceitos (e porque no dizer

  • 13

    preconceitos), esse narrador no pode ser considerado isento de tambm refletir uma

    opinio.

    As lacunas do texto que cita Foucault podem ser interpretadas pelas faltas, ausncias

    e silncios que o escritor produz ao compor uma obra. Pensando a realidade literria

    brasileira contempornea, digamos que esse perfil do escritor seja do homem branco,

    supostamente heterossexual, de idade adulta, considerado so no que tange sua sade e

    no possuindo necessidades especiais1. Esse a realidade que englobaria o autor de nossa

    sociedade. Dentro desse quadro fechado do qual parte, a ausncia de determinados grupos

    acaba sendo uma realidade. No por preconceito do autor, puramente, mas por ser parte de

    uma realidade socioeconmica repressora e limitadora. Desta forma, no de se estranhar

    essa unilateraridade da obra.

    Muitos autores procuram diferentes maneiras de se apresentar o mundo por meio de

    seu texto, e nele refletir sobre sua realidade. A obra esse campo no qual vrios elementos

    se confluem para gerar a representao. A fragmentao, a perda de controle, essa

    percepo das variedades de discurso so partes das vrias vises tericas que o autor

    contemporneo precisa pensar ao compor. Seria ingenuidade, durante a escrita, ignorar os

    vrios fatores que englobam o fazer literrio atual, e se tentar uma obra da arte pela arte.

    Cada autor buscar uma forma diferente de produzir seus livros em meio a esse

    momento. Alguns apelaro para um narrador irnico, que dialoga com o leitor e explicita

    suas escolhas durante a leitura, outros procuraro jogar com os preconceitos do indivduo,

    mas um elemento podemos considerar chave para todos: utilizaro das vrias possibilidades

    que a economia textual oferece para a escrita do texto.

    A representao e a teatralidade

    Para se pensar essas escolhas do autor para a escrita do seu texto, no se pode

    ignorar um conceito fundamental para a criao literria a representao. Por meio dessa

    1 Para esse questionamento, merece nota o trabalho desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contempornea da Universidade de Braslia e coordenado pela professora doutora Regina Dalcastagn. Trata-se de uma pesquisa realizada por anos, formada por vrios subgrupos que abordam questes sobre a personagem do romance, poesia e do teatro. Destaca-se tambm um dos primeiros resultados lanados na edio n 26 da Revista de estudos em literatura brasileira e hispano-americana contemporneaque trouxe os primeiros dados estatsticos sobre algumas inquietaes e silncios percebidos pela pesquisa e constatada nos romances o corpus abrangia os romances escritos na dcada de noventa e incio do sculo XXI da trs maiores editoras no momento: Rocco, Companhia das Letras e Record.

  • 14

    leitura realizada da realidade que o autor desenvolve os elementos narrativos. Desde o

    conceito inicial do termo, pela idia de mimese aos novos questionamentos que dialogam e

    questionam esse posicionamento, vrias so as vises sobre a representao no texto. No

    se procura a inteno de imitar a realidade (visto ser impossvel pelo fato da obra expor

    essa unilateraridade em sua criao), mas de discutir as formas que o autor busca para

    representar o mundo pelo menos aquele do qual tem conhecimento por meio da escrita.

    como afirma Compagnon: a finalidade da mimesis no mais a de produzir uma iluso

    do mundo real, mas uma iluso do discurso verdadeiro sobre o mundo real

    (COMPAGNON, 1999: 110).

    Partindo desse ponto de vista, o captulo 01 tem por finalidade apresentar as

    diversas possibilidades sobre o conceito de representao e seus desdobramentos na

    contemporaneidade. Do conceito de Aristteles em Arte potica, primeiro momento em que

    se props discutir uma esttica literria, passando por vises polticas, sociais,

    psicanalticas, enfim, por vrias hipteses de questes das humanidades, procuraremos

    apresentar uma teoria para a representao. Desde j, antecipa-se o fato de ser impossvel

    um resultado que abarque todas as possibilidades que um conceito to amplo possa

    oferecer, mas procurar perceber as idias que se repetem e nos fornecem uma possibilidade

    de interpretao para algumas obras recentes.

    Dentre as vrias anlises da representao, enfocaremos-nos na personagem.

    nesse elemento fundamental da escrita que as discusses sobre o termo se desenvolvero.

    Partindo de conceitos como verossimilhana, o outro, o lanar o olhar sobre o espelho,

    analisaremos as novas formas de se compor a personagem, bem como das novas

    possibilidades da criao em meio a um contexto de ps-modernidade e a hiptese de se

    pensar uma ordem do simulacro para alguns autores contemporneos, visto encontrarmos,

    quase como uma freqente, a utilizao de uma narrativa fortemente marcada pelo irnico e

    pelo metaliterrio no que se refere criao literria.

    Para se entender essa construo da personagem por meio do simulacro, a discusso

    refletir sobre algumas escolhas do autor contemporneo. Por meio de tipos, esteretipos e

    uma caracterizao exageradamente explcita da representao, a obra nos apresenta no

    seres to verossmeis durante a leitura, mas que discutem sua prpria composio. O texto

    se volta para uma leitura marcada pela metaliterariedade para refletir sobre as dificuldades

  • 15

    de se criar uma personagem na atualidade, fruto, dentre outros fatores, das discusses sobre

    o discurso e a realidade comentadas anteriormente.

    A representao se estruturaria de maneira tal que levaria a personagem a agir como

    um ator dentro da narrativa. A teatralidade uma hiptese para marcar essa nova forma de

    criao da personagem. Mais que apenas representar um elemento real, o jogo que se cria

    prximo de uma encenao, a obra se tornou um palco do qual os atores agem sob o olhar

    de um diretor (esse o narrador do livro ou alguma personagem que reflete a inteno do

    autor). No apenas no que tange a teatralizao na composio, a idia de performance,

    partindo das teorias de Azevedo (2005), servir de base, visto ela abarcar a anlise de

    alguns autores brasileiros mais jovens como Marcelo Mirisola e Andr SantAnna. O foco

    da pesquisa no ser, necessariamente, essa nova forma de se pensar a representao, mas o

    que a autora discute como incio do processo de performance em escritores como Srgio

    SantAnna e Clarice Lispector, o que interpretaremos pelo conceito de teatralidade.

    As anlises partem no apenas da representao, mas da prpria estrutura do livro.

    Por meio de personagens/atores temos a hiptese de incio da teatralidade, mas no estilo

    adotado por alguns autores, encontramos um momento de mescla de caractersticas de dois

    dos principais gneros literrios: o dramtico e o pico nesse caso representado pelo

    romance. As diferentes estticas de escrita do texto se interelacionam para criar uma obra

    que podemos considerar mais aberta partindo dos conceitos de Rosenfeld (2006), ou

    como denominaremos, hbridas em sua produo.

    Srgio SantAnna e a teatralidade como fonte da representao

    Por apresentar uma produo que joga com elementos do teatral, Srgio SantAnna

    foi escolhido como autor do corpus da anlise. Suas obras so representativas do que

    Eagleton (2005) denomina terreno escorregadio no qual a narrativa contempornea se

    encontra. No temos a impresso de um cho firme durante a leitura de seus textos, mas

    ao contrrio, que somos levados o tempo todo a questionar as escolhas realizadas pelo autor

    por meio de seu narrador profundamente irnico.

    Dentre as vrias obras do autor, visto produzir em um perodo que vai de 1969 com

    seu primeiro livro de contos Os sobreviventes aos dias de hoje, trs foram escolhidas como

    fundamentais em sua teatralizao: Simulacros, Um romance de gerao e A tragdia

  • 16

    brasileira. No somente na composio da personagem, mas tambm, pelo uso de recursos

    tpicos da dramaturgia e a clara influncia de alguns dramaturgos que SantAnna cria livros

    que possuem um teor hbrido em sua composio.

    Os trs livros escolhidos so chave para se pensar o teatral, mas esto includos em

    uma questo ainda maior, so parte de um ciclo de obras do autor e ainda esto inseridas

    uma realidade brasileira de destaque para a interpretao: a ditadura militar no Brasil

    (1964-1985). Tratam-se de trs momentos diferentes do quadro poltico social brasileiro.

    Simulacros, de 1975, escrito em meio ao fim da grande represso ditatorial de 1970, o

    governo Mdici e o AI5. Com a leitura, percebemos um olho sempre a seguir as

    personagens, da mesma forma que o brasileiro se encontrava por parte dos censores que

    perseguiam e censuravam as artes no pas. O olho de PhD uma metfora da perseguio

    diria no somente da personagem, como do artista.

    Em Um romance de gerao, obra de 1981, a realidade era de processo de abertura

    poltica e o agonizar da ditadura visto seu trmino 5 anos depois. As personagens criticam

    a si e a prpria realidade marcada por um discurso elitista e o intelectual do alto de seu

    apartamento a divagar sobre os problemas da populao. Uma frase fundamental para o

    momento do pas, o nome escolhido por Santeiro para os demais escritores de seu perodo

    os rfos da ditadura. No mais h porque lutar, resta ao escritor, do alto do apartamento,

    divagar sobre tudo e nada em um perodo de crise da prpria temtica e da escrita. Uma

    influncia dramtica para essa obra o teatro poltico brasileiro, que se apresenta como

    elemento para ser ironizado por SantAnna. Sem o teor to politizado, A tragdia

    brasileira, ltimo livro da anlise, joga com literatura, metaliterrio, teatro e metateatro. A

    escrita se volta para sua produo, em um momento no qual o pas j se encontrava s

    portas de um processo eleitoral republicano aberto 1987.

    As obras se relacionam e refletem trs momentos da produo de SantAnna. Cada

    qual utilizar os elementos da teatralidade de maneira diferente. No somente pela questo

    scia-poltica brasileira, mas pelas influncias teatrais. O autor entra em contato com dois

    grandes diretores um norte-americano e um brasileiro decisivos para se pensar as

    discusses propostas. Robert Wilson e seu teatro dos sentidos e questionador da

    representao marcaro as personagens de Simulacros e Um romance de gerao. Em A

  • 17

    tragdia brasileira o diretor Antunes Filho e sua amizade com o autor influenciar na

    criao do ambiente rodrigueano da obra.

    O captulo 02 enfocar a obra Simulacros. As anlises partiro da dica fornecida

    pelo autor no ttulo e o conceito de simulacro como fundamental para representao,

    pensando as discusses propostas sobre o momento da crtica literria e a criao de

    personagens tipos/esteretipos. No somente por criar simulacros, as personagens possuem

    em seus nomes uma proximidade com elementos dramticos. A obra reflete sobre um

    primeiro momento no qual o autor trar a teatralidade como central em sua produo.

    Nomearemos de momento inicial ou romance-laboratrio da obra, visto ser o uma

    tentativa do autor de relacionar o teatro sua produo. Em um livro que inicialmente seria

    escrito em formato de pea, acaba por possuir estrutura romanesca, mas que traz em sua

    composio personagens que agem como atores a encenar em um palco que seria as ruas da

    cidade representada no texto.

    Esse processo iniciado em Simulacros se amplifica e chega no que SantAnna

    nomeou comdia-dramtica em um nico ato de Um romance de gerao. O captulo 03

    discutir a composio das personagens Ele e Ela, ou o escritor Carlos Santeiro e a

    jornalista Cla, respectivamente. Em uma estrutura teatral, eles discutem sobre os vrios

    elementos da realidade brasileira por meio de um discurso farsesco e irnico. A obra servir

    como um espelhamento da representao na qual somos espectadores em um teatro

    encenado dentro da narrativa.

    No somente pelas questes de estilo, mas pela escolha da discusso sobre a

    intelectualidade, Um romance de gerao se mostra uma das obras mais ousadas e irnicas

    do autor. Por meio de um discurso que explicita no passar de uma atuao, o autor joga

    no somente com os gneros literrios, mas com seu narrador irnico S.S. O objetivo do

    captulo ser abarcar, tambm, essa personagem, que pode ser interpretada como o

    desenvolvimento de doutor PhD e seu controle, prximo do de um diretor teatral,

    encontrado em Simulacros.

    A obra ser analisada tambm pelo fato de ser um dos primeiros momentos de

    exposio da relao com um momento teatral brasileiro. Esse escritor, uma figura

    intelectual e marcadamente fracassada dialoga com um teatro politizado engajado brasileiro

    que visava discutir sobre as grandes diferenas de classe e sobre o proletariado.

  • 18

    Interpretaremos o livro de SantAnna como uma irnica viso desse teatro, bem como de

    sua influncia europia Bertolt Brecht.

    O quarto, e ltimo, captulo enfocar a maneira na qual SantAnna traz a relao

    com uma tradio teatral j diretamente em seu ttulo: A tragdia brasileira. A escolha de

    um elemento fundamental do dramtico a tragdia ser basilar para um dilogo do autor

    com a temtica de um dos principais dramaturgos, e porque no dizer tragedigrafos,

    brasileiro: Nelson Rodrigues. No somente no mbito temtico, mas na composio de suas

    personagens, em um ambiente lgubre e antittico, partiremos da interpretao da obra e

    sua relao com o teatro, que podemos denominar expressionista, de Rodrigues.

    No aspecto estrutural, A tragdia brasileira tambm merecer uma leitura mais

    cuidadosa. No mais um romance-laboratrio, muito menos uma comdia-dramtica, a

    intitulao refletir a culminncia do processo de teatralidade na produo do autor o

    chamado romance-teatro. Por meio de seu protagonista, o Autor-Diretor, procuraremos

    definir esse gnero criado para a obra. Para isso, partiremos da viso da personagem por

    meio da aluso com Dr. PhD de Simulacros e S.S. de Um romance de gerao, em suas

    composies que trazem a imagem de um criador, um titereiro e seus tteres as

    personagens uma mente maior, e maligna, que conduz a narrativa, bem como a conduo

    de sua viso (e das interpretaes) que temos com a leitura.

  • 19

    Primeiro Ato

    Para uma esttica da representao: primeiras percepes dos elementos teatrais nos romances de Srgio SantAnna

    A literatura , pois, gnero dos mais abertos.Srgio SantAnna, Um romance de gerao

  • 20

    1.0 O conceito de representao e seus desdobramentos na contemporaneidade

    O que vem a ser o conceito de representao? Sendo bem etimolgico na resposta,

    aproximamo-nos da idia de re-presentar, ou seja, fazer com que algo j existente se faa

    presente simbolicamente. O que representar seno simular, formar uma simulao de

    realidade. Essa maneira de conceituar o termo no pode ser considerada abrangente, muito

    menos plausvel se pensarmos as diversas formas de compor a idia de outro, uma vez

    que faz parte da psique humana a necessidade de criao de uma imagem espelhada de si e

    do mundo. Tal necessidade se verifica no momento da criao literria e mais

    especificamente na composio de uma personagem.

    Partindo do conceito de Hanna Pitkin2, terica de cincia poltica, ao representar

    trazemos algo que no est presente, ou seja, interpretamos algo que no se encontra

    fisicamente no momento. Se na poltica nossos representantes so aqueles com os quais

    encontramos semelhanas, compactuamos determinadas idias e lhes damos o direito de

    propor e votar algo em nosso lugar; na literatura, a idia de representar tambm pode ser

    pensada de forma aproximada se consideramos que sempre que se constri a representao,

    algo da vivncia do autor est colocado na economia textual. Desta maneira o conceito de

    Pitkin no se limitaria apenas poltica, podendo servir como um dos pontos fundamentais

    de se pensar como o empregamos na literatura, de como as personagens representadas se

    fazem presente na vida do autor.

    Em outro ponto da discusso, algumas teorias, afirmam que os homens possuem a

    incompletude como fundamental de sua constituio. Em Miroirs et visages3, Jacques

    Gorot traz a discusso sobre o olhar do homem no espelho pela primeira vez, esse primeiro

    contato se d pela incapacidade de se construir enquanto imagem e faz com que partam de

    um duplo que os imita e apresenta o mundo individual, uma nova hiptese de construo do

    eu. Num primeiro momento, o beb se reconhecer na voz da me, e, por conseqncia se

    considerar um duplo dessa imagem, entretanto, ao se chocar com esse outro, que copia 2 Hanna Pitkin, terica e cientista poltica, discute a multiplicidade do conceito de representao na obra El concepto de representacion. Sua obra enfoca a questo dos governantes serem eleitos para assumirem responsabilidades que tornem presentes a opinio dos eleitores que os escolheram. 3 Artigo retirado de Miroirs, visages et fantasmes, livro que aborda, de forma psicanaltica, resumindo teorias que vo de Freud a Lacan, questes sobre o olhar do indivduo sobre o espelho, bem como de sua funo no desenvolvimento e constituio de seu ego. Desde o sentido da viso aos pesadelos, os artigos enfocam esses elementos sobre a constituio da psique humana, o que influencia sua forma de interpretar a si e ao mundo.

  • 21

    seus gestos, suas expresses, um dos momentos mais difceis da constituio do ser est

    consolidado. um processo por demais trivial se levar em conta que ocorre de forma

    aparentemente normal, mas a est desenvolvido um elemento central da constituio

    psicolgica do ser humano, a representao.

    Como nossa construo de ser feita a partir desse outro no espelho, a necessidade

    de representar uma das caractersticas mais humanas no outro que conseguimos nos

    completar. Mas o que o outro? Apenas uma construo terica? Ou um dado concreto ao

    qual somente se tem acesso por meio da representao? Muitos estudiosos baseiam suas

    anlises a partir desse questionamento.

    A primeira tentativa de teorizar sobre o processo de representao a de Aristteles

    e a teoria de mimese, que define a literatura como imitao. Para o autor, em seu Arte

    potica, sempre que se produz uma obra, o escritor parte de um elemento real para criar

    algo ficcional, ou seja, a literatura seria mais prxima de um espelho da realidade. O termo

    verossimilhana sem dvida um dos mais recorrentes na crtica literria. A representao

    passa diretamente por esse conceito por supor a idia de criao de algo que existe apenas

    no livro. Sempre que falarmos de uma personagem, o fato de ela estar dentro da conjuntura

    de um espao ficcional precisa ser lembrado e questionado. Se escrever a obra fazer dela

    o olhar no espelho e se reconhecer, contido nos prprios elementos constitutivos da

    literatura, a representao ser formada a partir do paradoxo de ser uma realidade

    construda na fantasia simplesmente, e que adquire existncia apenas na leitura, as

    discusses surgiro a partir do momento que o leitor entrar com sua viso, e por

    conseqncia com seus conceitos e pr-conceitos.

    Em Teoria da literatura: uma introduo4, de Terry Eagleton, um ponto

    fundamental que se apreende : representar sempre passar por uma ideologia. Construir

    uma personagem nos remete ao duro dilema de, por muitas vezes, aproximarmo-nos de

    nossos padres ideais, de nossa cultura, da ideologia que constri e nos constri enquanto

    4 Na obra, encontramos a leitura de Eagleton sobre os vrios movimentos fundamentais da crtica literria: New Criticism, Estruturalismo e Ps-Estruturalismo, Fenomenologia, Hermenutica, Psicanlise, Crtica feminina. Partindo de um captulo inicial que aborda a pergunta bsica do conceito de literatura (O que literatura?), a obra discute no somente essas correntes literrias modernas, mas conclui trazendo uma discusso mais voltada para a viso poltica da literatura. Mesmo que traga um discurso por vezes irnico das novas vertentes, um ponto fundamental que a obra oferece pensar o texto como cercado pela ideologia do autor.

  • 22

    seres. Ao produzir um mundo fictcio, primeiramente, a leitura passar pelos

    preconceitos, valores culturais, dentre outros elementos constitutivos do leitor da obra.

    O que dizer ento: o nosso olhar sobre o espelho seria viciado, treinado, ou

    melhor, pr-concebido? Criar o desconhecido, ou seja, o que nos diferente, torna-se ento

    um tatear no escuro e que muitas vezes sublimado pela falsa impresso de realidade que

    a literatura oferece. No h realidade sem interpretao. Assim como no existe olho

    inocente, tambm no existe ouvido inocente (GOMBRICH, 1998: 318).

    Diante dessas novas discusses a respeito do ato de representar, a escrita se torna

    cada vez mais dilemtica para o escritor: ser que com o texto no estou expondo uma

    possvel interpretao que possa gerar idias contrrias? Se levarmos em conta o fato do ser

    humano ser de natureza preconceituosa5, escrever ento se torna algo impossvel? O autor

    deveria, assim, evitar produzir suas obras com o objetivo de no mal visto por esse ou

    aquele grupo?

    Deixar de escrever no a soluo, mas ignorar todos os fatores dialticos que o

    autor vivencia tambm resultaria em uma viso limitada do escritor. O que acontece,

    principalmente nas obras mais recentes, so novas formas de se representar que buscam

    explicitar esse elo entre produzir e no deixar com que determinada ideologia exposta no

    texto prejudique ou ofenda grupos durante a leitura dos livros. Vrias so as formas

    possveis encontradas pelos autores mais recentes, algumas apresentadas por Regina

    Dalcastagn em Entre fronteiras e cercado de armadilhas (2006) na sua anlise sobre as

    diversas formas de se construir representaes na literatura contempornea: o narrador

    irnico, a leitura que necessita cada vez mais de um leitor comprometido, que no leia,

    mas que dialogue com seus prprios preconceitos, ou mesmo a produo de personagens

    que so expostos em sua construo como verdadeiros tipos, ou mesmo, esteretipos que

    servem sim para gerar no leitor um desconforto em perceber que ele assim, ou ele v e

    considera as demais pessoas dessa forma.

    Entretanto, por mais que a personagem se mostre uma re-apresentao, um trazer de

    novo, ou mesmo, esse outro visto do espelho, dentro do campo literrio, ainda ser parte

    de uma obra. Pensando a elaborao da personagem, no se pode fazer dela um elemento

    5 Cabe ressaltar que, por no ser possvel no nos considerarmos como preconceituosos. Pensando etimologicamente, pr-conceito, gerar opinies sobre o outro, mesmo que desconhecendo sua base de formao, parte da existncia humana.

  • 23

    real, mesmo que consigamos produzi-la e constru-la em nossas mentes, ela sempre ser

    parte constitutiva da economia textual. Por isso, na contemporaneidade, procura-se avanar

    os conceitos aristotlicos e, dentre as vrias teorias propostas, uma das que mais se destaca

    a que considera o processo de mediao entre o campo dos referentes e o universo

    ficcional um processo complexo de representao, e no simplesmente a imitao da

    realidade.

    1.1 A representao e a personagem contempornea

    Por meio do espelho nos reconhecemos como indivduos, j nas pginas dos livros,

    o autor se percebe enquanto ser, pela escrita. A constituio da personagem engloba esse

    sutil elemento da literatura que a representao. Para Bakthin, ao compor a personagem:

    o autor vivencia a vida da personagem em categorias axiolgicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia a prpria vida e a vida das outras pessoas. (BAKHTIN, 2003, p. 13).

    Se nos pautarmos pela idia de espelho e de categorias axiolgicas de Bakthin, o

    conceito de mimese se torna insuficiente para pensar o texto literrio. Camos na discusso

    do processo de mediao no qual est a gnese do processo de criao da personagem.

    Como fazer de um ser ficcional algo presente e que gere uma empatia com o leitor a ponto

    de interpret-lo como algo verdadeiro, ou mesmo verossmil? Para essa ligao entre

    representar e criar essa sensao de proximidade entre o leitor e a personagem, Antonio

    Candido nos oferece uma anlise possvel:

    A personagem um ser fictcio, expresso que soa como um paradoxo. De fato, como pode uma fico ser? Como pode existir o que no existe? No entanto, a criao literria repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhana no romance depende desta possibilidade de um ser fictcio, isto , algo que, sendo uma criao da fantasia, comunica a impresso da mais ldima verdade existencial. (CANDIDO, 2002: 55)

    Compor a personagem resulta nesse paradoxo, uma existncia que acontece apenas

    nas pginas de um livro. A impresso de verdade acontece aps a leitura por meio de um

    processo de referenciao realizada pelo leitor da personagem com o seu cotidiano.

    Representar resulta nesse embate entre concretude e fico. Trata-se de um ser que existe

    apenas no campo literrio, parte de um processo que Bakthin denominou de categorias

  • 24

    axiolgicas, prximas, portanto, de nossa realidade. Desta forma, por meio da leitura, o

    leitor compreende o texto, e a intencionalidade do autor, visto este fazer da obra uma viso

    de si e do mundo realizado atravs desse ser ficcional, mas verossmil.

    Autores de escolas literrias oitocentistas, como os realistas e naturalistas

    construram obras que se utilizavam de sua composio como uma busca incessante de

    proximidade da realidade. Pginas e pginas de descries, detalhamento exagerado, a

    preocupao intensa de fazer de seu texto quase um quadro de um tempo, essa era a marca

    das narrativas. No momento atual, que se convencionou chamar ps-modernidade, torna-se

    invivel essa busca constante de uma aproximao de um real esttico, mesmo porque

    vivenciamos a velocidade das transformaes e, por conseqncia, da viso de mundo.

    Assim, a modernidade inaugurou um momento no qual a prpria realidade se fragmenta de

    tal maneira que dificulte sua prpria representao. Trata-se do que Auerbach discute em

    seu Mimese:

    Muito amide, nos romances modernos, no se trata de uma ou de algumas poucas personagens, cujos destinos so perseguidos, uns ligados aos outros; amide, nem se trata de contextos de acontecimentos levados a cabo. Muitas personagens, ou muitos fragmentos de acontecimentos so articulados por vezes frouxamente de tal forma que o leitor no consegue segurar constantemente qualquer fio condutor determinado. (AUERBACH, 2002:491).

    por meio dessa ligao, por muitas vezes, frouxa que a personagem

    contempornea se constri. O leitor cada vez mais convidado a ser elemento de ligao de

    fundamental importncia para os fragmentos que a leitura parece ser. Ler a literatura atual

    sentir pisar em um territrio de mltiplas possibilidades e que, de certa maneira, no nos

    coloca em situao de tranqilidade, uma vez que a realidade representada no como a

    construda como as lidas nos romances dos sculos XIX e XX. Mais que uma situao, ou

    uma figura tirada da realidade, as personagens na representao contempornea se voltam,

    muitas vezes, mais para a construo de uma mente, de pensamentos e discusses

    psicolgicas, como se observa em Tadi:

    A personagem j no se orienta para uma aco, para busca de um amor ou o combate contra a morte: transforma-se no puro lugar dos seus pensamentos (como o heri deixando de parte a estrutura potica dos ltimos poemas de Mallarm). (TADI, 1992: 44).

  • 25

    Mais que simplesmente uma perda dessa personagem tradicional, o novo conceito

    de estrutura narrativa se volta para algo ainda mais complexo, se pensarmos o prprio texto.

    Quando se quebra a necessidade de uma obra se apresentar como quadro ilusrio do real, a

    narrativa pe em xeque uma concepo de representao. Uma hiptese de se questionar

    essa quebra e a prpria obra se apresenta como elemento para a fico. O ato de escrever,

    antes tratado apenas no campo terico, gera textos metalingsticos e que servem como

    possvel resposta para as questes apontadas anteriormente sobre o olhar viciado no

    espelho. So idias prximas das de Nizia Villaa:

    No porque uma questo se revela um falso problema ou um problema mal colocado por muitos sculos de enfoques empricos (o fantasma da mimesis), ou como problema fora de um campo metodolgico especfico (o campo lingstico, por exemplo), que ele no formulvel de outra forma ou de um outro lugar. O desejo de realismo ou o programa realista engendrou, na prtica geral ou ocasional de certos escritores, realidades estilsticas, isto , a constituio de um tipo de discurso definido por um certo nmero de traos estruturais, de conotadores de mimeses, de esquemas retricos e narrativos particulares, e mesmo de uma temtica particular, passveis de serem registrveis, j que a suposta naturalidade do discurso realista um mito. (VILLAA, 1996: 86).

    Se a ps-modernidade traz a quebra do homem cartesiano6 e da rigidez de vrios

    padres7, neste caso a esttica da mimese, natural que as novas formas de escrita tragam

    em sua gnese a percepo de novas vises de composio da narrativa e da personagem.

    Evidentemente que, pensando a situao brasileira, a insero do autor contemporneo se

    d diferente das percepes de ps-modernidade que so advindas de pases desenvolvidos

    tecnologicamente e com padres morais, polticos e econmicos diferentes (Idem: 75), algo

    que tambm ser um dos focos da discusso quando iniciar os questionamentos sobre a

    produo de Srgio SantAnna. Assim, a nova concepo de representao nos leva a

    pensar a realidade brasileira com suas peculiaridades. Encontramos tendncias de

    exposio do ato da escrita que so explicitadas nas pginas dos livros, como foi dito

    6 O dito homem cartesiano se baseia na teoria de uma linearidade do pensamento humano. Os estudos scio-culturais modernos individualiza a mente do ser humano e faz com que ele no seja mais ligado ao conceito de universalidade, do homem como nico e centralizado. Sua identidade se constri de forma dividida, fragmentada, na qual esse novo pensamento parte para discusses de gnero, etnia, relaes de poder, mercado bem como de se pensar um ser social e psicolgico.7 Discutindo as teorias de A identidade na ps- modernidade, Stuart Hall prope que o sujeito contemporneo no est preso aos padres fixos de identificao, mas vivenciou e foi influenciado pelos grandes momentos de quebra do pensamento baseado no homem cartesiano: a teoria socialista com Marx, a teoria do poder com Foucault, a psicanlise com Freud, as teorias de gnero, entre outras teorias sociais e dos estudos culturais.

  • 26

    anteriormente, e influenciando diretamente os autores que seguiram em suas obras aps

    esse perodo.

    Essa seria talvez uma maneira de sair das hesitaes estticas (mimesis ou no mimesis?), de ultrapassar o bloqueio representado pela lingstica (a lngua no pode copiar o real) e unificar certo nmero de enfoques recentes (diacronismo de Auerbach ou de Foucault, mtodo estilstico imanente como em Riffaterre). Seria um modo de situar o problema no mais no nvel dos sistemas significantes, produzidos (uma coleo de enunciados), mas no nvel da inteno que presidiu a produo destes sistemas (um ato, um processo de enunciao, um pacto de leitura), isto , no nvel da relao entre o programa do autor e um certo estatuto do leitor a criar. esta valorizao do processo de produo, um certo distanciamento de referentes rgidos, que vai caracterizar a literatura que se inscreve na ordem do simulacro. (Idem: 86).

    A realidade algo extremamente palpvel, ou pelo menos era, de acordo com Terry

    Eagleton em Depois da teoria (2005), obra na qual se prope discutir o novo conceito de

    literatura em meio ao ps-modernismo. Segundo Eagleton, o homem na

    contemporaneidade: caminha numa realidade na qual: no que o gelo liso sob nossos ps

    tenha se transformado em terreno acidentado; o terreno era acidentado o tempo todo

    (EAGLETON, 2005: 90). A escrita representa, nos dias atuais, a dificuldade de se viver

    num mundo que se apresenta, a cada momento, menos palpvel e mais fragmentado. Se o

    homem cartesiano, dono dos valores ditos universais no cabe no mundo ps-moderno, os

    prprios conceitos derivados dos descentramentos j no se demonstram o suficiente para

    se pensar o mundo do final de sculo XX e incio de XXI.

    1.2 A representao da personagem e a ordem do simulacro

    Para se pensar a representao em obras recentes, deve-se questionar a situao do

    autor enquanto parte constitutiva do prprio ato narrativo. Ns, homens, nas palavras de

    Eagleton, como Nietszche nos advertiu, matamos Deus, mas escondemos o cadver e

    insistimos em nos comportar como se ele ainda estivesse vivo (EAGLETON, 2005: 90).

    Como lidar com esta situao de se perceber parte de um jogo que no enquadra nos

    padres antigos de se pensar o homem? O prprio autor prope um esboo de resposta:

    Como poderia voc conceber, em termos realistas, a representao dos grandes e invisveis circuitos de comunicao se entrecruzando, o incessante zumbir de signos indo e vindo que era a sociedade contempornea? Como poderia representar Guerra nas estrelas ou o

  • 27

    processo de milhes de mortos num ataque biolgico? Talvez o fim da representao viesse quando no existisse mais ningum para representar ou para ser representado. (Idem: 101).

    As novas formas de se compor a personagem contempornea se baseiam ento

    nesse paradoxo no representar, mas saber que a literatura parte de uma representao.

    O que se encontra nos livros a exposio da forma de composio. As obras explicitam

    seus prprios artifcios, suas estruturas que fazem de si uma fico. Vrias so as formas de

    se construir a personagem nesse ponto de vista, mas cada autor tender a demonstrar no

    corpo de seu texto essa realidade da economia literria, j fortemente marcada pelo avano

    dos conceitos e teorias.

    Dentre as possibilidades da nova escrita est a de se criar personagens de forma tal

    que este se descubra parte de um texto e, a partir da, exponha sua criao refletindo sobre a

    maneira do autor ver a si e ao mundo. A personagem se apresenta, assim, de modo mais

    crtico, e reproduz a dificuldade dos jovens autores ao compor suas obras. Essa exposio

    de forma crtica do conflito da representao feito por meio de uma construo irnica do

    texto contemporneo, principalmente se pensarmos o conceito de pardia de Linda

    Hutcheon:

    Mas quero afirmar que exatamente a pardia esse formalismo aparentemente introvertido que provoca, de forma paradoxal, uma confrontao direta com o problema da relao do esttico com o mundo de significao exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semnticos socialmente definidos (o passado e o presente) em outras palavras, com o poltico e o histrico. (HUTCHEON, 2002: 42)

    O que se percebe uma modificao como fruto da nova realidade, pensando o

    autor, que conheceu os conceitos do Modernismo, do ps-modernismo, e desse momento

    atual que quebra os prprios descentramentos do movimento anterior. No h mais

    necessidade de se matar Deus, nem ao menos enterrar o cadver, aludindo a Eagleton, mas

    conviver com o conhecimento da existncia deste. A personagem fragmentada, no mais

    linear e com aparncia de quadro do real8, porm constituda de maneira psicolgica e

    que se descobre parte de uma narrativa. O que se percebe nada mais que uma

    conseqncia da transformao da produo literria.

    8 No desmerecendo o conceito de realismo dos autores oitocentistas, mas pensando que o mundo contemporneo necessita de uma nova forma de se pensar o conceito de realidade e, por conseqncia, de sua relao com a obra.

  • 28

    Uma hiptese para se pensar essa nova personagem inseri-la na ordem do

    simulacro, como nos diz Villaa (2005), na valorizao do sistema de produo, e dos tipos

    sociais mais marcados, estereotipados. por meio de simulacros que a narrativa se

    desenrola. Por mais que tenhamos conhecimento ou domnio da tcnica de escrita, a

    produo acaba se voltando para os padres morais que nos conduzem a compor

    determinados tipos.

    2.0 As personagens simulacro

    Adotar a esttica prxima do esteretipo uma forma de lidar com esses

    questionamentos e discutir essa nova representao. Assim, cada autor faz de seus

    personagens seus prprios esteretipos, seus duplos que o estimulam e o reprimem, algo

    que se aproxima do conceito de Bhabha: algo de identificao comum e que est no lugar

    de sempre (BHABHA, 1998; 105-106). As personagens so prximas da viso que o leitor

    tem de seu outro, do desconhecido inserido em um corpo fora de si. Ao ler um livro, ele

    procurar uma identificao com algo que seja constitutivo de sua viso de mundo e assim

    entra a proximidade de uma ligao com o esteretipo, a maneira pela qual pensamos e

    formamos nossas opinies sobre os que nos cercam.

    No conto Eu, um homem correto9, de Murilo Carvalho, o protagonista

    propositalmente branco, limpo, de classe mdia e conduz um grupo de pessoas a matar um

    homem por ser negro e pobre. O homem branco limpo, ele correto, enquanto o homem

    negro marginal, criminoso, um provvel estuprador. Essas vises percebidas durante a

    leitura no esto inseridas no corpo do texto, mas so formas de interpretao as quais

    somos levados. O homem correto do ttulo o narrador do conto, que nos conduz pelo

    enredo, mas tambm poderia ser associado a ns mesmo enquanto leitores. Ser que muitas

    vezes no nos consideramos verdadeiros homens corretos? No seria uma viso

    preconceituosa compactuar com as noes de certo e errado que o olhar do narrados nos

    leva a ter?

    Mais que uma forma de ressaltar preconceitos, o texto uma viso profundamente

    irnica dos discursos que se reproduzem em nossa realidade a partir de personagens criadas

    por meio de esteretipos. Se nos identificamos com esse homem correto, a finalidade do

    9 CARVALHO, M. (1977) Eu ,um homem correto, em: Razes da morte. So Paulo: tica.

  • 29

    autor foi atingida, pois a inteno fazer com que o leitor perceba o quanto ele reproduz

    certos (pr) conceitos impregnados, marcados e que vo ao encontro de uma sociedade

    opressiva e preconceituosa. Contudo, quando atingimos um mbito ainda mais agressivo e

    irnico, o simulacro se oferece como uma possibilidade.

    A esttica do simulacro talvez seja uma das formas de se lidar com as angstias

    vivenciadas pelo autor contemporneo, uma vez que, ao compor uma personagem que saiba

    ser elemento narrativo, que se critique e exponha seus limites, ele se revela crtico, e, ao

    mesmo tempo, prximo das novas teorias.

    O simulacro uma das formas de se pensar as novas concepes da personagem na

    ps-modernidade. Se a obra est cada vez mais voltada para expor sua produo e se

    constri como metaliteratura, a personagem acaba fazendo de seu representar uma forma de

    expor sua prpria composio. Se em Pirandello10, elas procuram seu prprio autor, porque

    no dizer que a nova tendncia da escrita seja fazer do romance um conjunto de simulacros.

    No mais homens to bem construdos que s vezes nos confundem, parecendo ser reais,

    mas, pelo contrrio, que deixam claro sua existncia enquanto elemento ficcional. Mais que

    apenas uma exposio do ato de escrita, o autor pode, muitas vezes, se utilizar de

    personagens que usem mscaras e, assim, ajam de acordo com os tipos sociais que

    representam a fim de critic-los.

    Para se pensar o conceito de simulacro, pode-se basear em Aumont em seu texto

    sobre a imagem quando diz:

    O modelo do simulacro pode ser encontrado entre os animais e sua prtica do chamariz (por exemplo, nas paradas nupciais ou guerreiras dos pssaros e dos peixes, sabe-se que, em certos peixes combatentes, a imagem no espelho provoca atitude agressiva idntica provocada pela viso de outro macho, por exemplo) mas, na esfera humana, a questo do simulacro est mais prxima, como observou Lacan, das mascaras e do travesti. A imagem que lhe proposta no ilusionista, ningum confundir com a realidade; mas perfeitamente funcional porque imita traos selecionados. (AUMONT, 2004: 102-103).

    Os simulacros, no mbito humano, esto mais voltados para a mscara, para um

    travestismo. Fazer-se passar por outro, mas de forma explcita, imitando os trejeitos e acima

    10 Luigi Pirandello, dramaturgo italiano do incio do sculo XX, marcou a representao contempornea por obras como Seis personagens em busca de um autor, que discutia o processo de criao da personagem que, literalmente, percebia-se elemento ficcional e procurava o seu autor.

  • 30

    de tudo representando. A teoria do simulacro muito prxima da de representao,

    diferenciando-se pelo fato de, nesse caso, no se procurar a aproximao com a realidade,

    mas deixar claro que algum trao do real foi escolhido para se representar e discutir,

    ressaltando caractersticas tpicas de determinado grupo social para que a literatura consiga

    atingir um alto grau crtico.

    As obras de Srgio SantAnna se prestam a essa discusso e anlise do conceito de

    representao, bem como a pens-lo a partir da teoria de simulacro. Dono de uma produo

    que se inicia no final da dcada de 60, com a coletnea de contos Os sobreviventes, o autor

    trabalha com personagens que, muitas vezes, se apresentam como fracassados, irnicos e

    que questionam a si e a realidade que os cerca, bem como o prprio ato da escrita. Em

    romances como As confisses de Ralfo e Simulacros (que merecer maior destaque nos

    captulos posteriores), sua obra se volta para os prprios elementos constitutivos da

    literatura.

    O conto Marieta e Ferdinando, em Notas de Manfredo Rangel: reprter, discute

    as teorias de representao citadas anteriormente. Em um apartamento de classe mdia, em

    So Paulo, Ferdinando chega em casa do trabalho, enquanto Marieta se olha no espelho. O

    encontro do casal desenvolve uma sucesso de momentos marcados pela farsa, pelo jogo de

    mscaras, o que demonstra uma forma irnica do autor lidar com o ato da escrita, e com

    isto discutir a representao na obra. O que acontece posteriormente no conto o embate

    entre as personagens, porm falso, visto que agem no texto como verdadeiros atores a

    encenar uma pea. O apartamento deixa de ser apenas um espao real de So Paulo, mas se

    transforma num verdadeiro palco no qual se discutir a vida do casal, e o leitor ser uma

    espcie de espectador.

    No so somente atores, mas simulacros de seres humanos. Marieta o esteretipo

    da mulher paulistana madura e sem ocupao, ao passo que Ferdinando tambm se

    apresenta como esteretipo do homem trabalhador, maduro, com suas atitudes grosseiras de

    macho e que chega em casa aps a dura rotina diria. Pensando desta forma, no h nada

    de inovador ou original no texto santaniano, quantas obras se ocupam de fazer os

    personagens prximos dos esteretipos consolidados socialmente. SantAnna, entretanto,

    vai alm ao criar um jogo de espelho e mscaras. Meia noite, no momento em que o casal

    est na cama, eles se confundem de tal forma que os esteretipos de gnero se perdem.

  • 31

    Marieta se transforma em Ferdinando e vice-versa, sendo que, depois podem dormir sua

    noite tranqilos. Esses personagens se metamorfoseiam para mostrar que so mais que uma

    realidade, so elementos de uma narrativa, uma representao.

    O conto apenas exemplifica um dos primeiros passos do autor no dilogo de sua

    obra com as novas tendncias da produo contempornea. Outros contos, entre eles alguns

    mais recentes, deixam claro que a forma de se pensar a personagem um dos focos da sua

    escrita.

    Um discurso sobre o mtodo, de Senhorita Simpson, de 1992, traz a baila a

    discusso sobre o ato de criao. O que se observa a vida de um pobre homem, limpador

    de janelas de uma grande empresa. Sobre o andaime, em mais uma jornada normal de

    trabalho, cumprindo sua funo diria, a personagem surpreende-se com um aglomerado de

    pessoas que acredita que ele seja um suicida. A idia de pular toma conta da personagem

    que vislumbra a oportunidade de vivenciar um momento de reconhecimento, por saber ser

    apenas um limpador, membro simples de uma sociedade massacrante e marginalizadora das

    classes menos favorecidas. SantAnna faz de seu texto local no qual seu narrador irnico

    controla a personagem. Qual o lugar que este est, ou melhor, usa para dominar seu

    trabalhador, no conhecemos, contudo, sabemos que uma mente maior est presente a

    influenciar esse pobre trabalhador a se jogar. As idias dessa personagem esto marcadas

    pelas discusses sobre a vida simples, a famlia, ou at o desejo de manter relaes com a

    funcionria jovem que trabalha no prdio. Quando os questionamentos passam para o

    mbito existencial, e uma angstia trgica toma conta da cena, no se trata mais desse

    simples assalariado e sim deste narrador que at o momento se escondia por detrs do

    discurso. Trata-se de um titereiro a brincar com seu fantoche, ameaando a integridade de

    sua vida, necessitando, para isso, apenas cortar as cordas. dele a infinidade de vozes que

    cercam naquele andaime, naquele momento, mais do que as pessoas da rua.

    Os contos citados mostram o quanto Srgio SantAnna faz de seu texto uma forma

    de questionar o prprio conceito de representao. Porm, como trazer o ato de representar

    a tona. Qual o resultado no momento em que se leva a representao ao extremo? Quando o

    processo de produo aparece como elemento chave da narrativa e expe todo o conjunto

    de elementos que a economia literria possui? SantAnna se utiliza de vrios recursos da

  • 32

    narrativa para fazer do romance um experimento, um momento de se jogar com os

    diferentes tipos de narrativa.

    2.1 Representao, performance e engajamento

    Uma tentativa de entender a construo do texto em SantAnna pensar a idia de

    performance proposta por Luciene Azevedo no seu artigo Representao e performance na

    literatura contempornea11. A autora nos apresenta uma possibilidade de resposta ao

    pensar a obra como fruto de um momento brasileiro de questionamento sobre o autor e de

    seu papel como intelectual na contemporaneidade. A dificuldade de se criar uma

    representao em meio a uma realidade na qual a idia de homem j est multifacetada

    acaba se refletindo na construo da obra como uma performance. Clarice Lispector uma

    das percussoras ao criar seu Rodrigo S.M. em A hora da estrela, um narrador irnico,

    preconceituoso e que faz de sua narrativa uma descrio do sentimento de impossibilidade,

    durante o ato da escrita, de se falar de algo que um outro para a realidade na qual o autor

    vive.

    na voz desse narrador de Lispector que se problematiza a representao. Matar

    Macaba ao trmino da obra nada mais que o grito de Rodrigo S.M. em sua dura tentativa

    de criar o mundo a sua volta em um universo chamado Literatura. Sempre que se prope

    escrever uma obra, o autor sabe que far nas pginas um retrato de suas ideologias. Uma

    excelente forma de se questionar a nova representao encontrada nesse narrador

    angustiado com suas personagens, que seriam um mero simulacro de ser que os obrigam a

    escrever, mesmo em meio aos problemas que sua prpria composio causam no escritor.

    SantAnna tambm se apropria desse narrador irnico, como discutido anteriormente sobre

    o conto Um discurso sobre o mtodo. Nas vrias vozes que compem a vida do pobre

    limpador de janelas se cria a discusso sobre o ato de representar, a polifonia dessa figura

    que trata o texto como algo a ser entendido em sua prpria composio: a mente maior do

    narrador.

    A idia de performance est associada diretamente com os autores mais

    contemporneos, contudo, obras como as de Lispector e SantAnna, dialogam com o incio

    11 Texto publicado na revista Cerrados (02/2007), e parte da interpretao da autora em sua tese de doutorado na qual defende a idia de performance na literatura contempornea.

  • 33

    dessa possibilidade de jogar com a representao, mesmo que, tendo sendo como base a

    tentativa de abarcar esse outro por meio da escrita. Pensando a frase de Azevedo: A

    performance quer escrachar com todas essa sutilezas e expor a impossibilidade radical da

    representao (AZEVEDO, 2007), ser que a voz de Rodrigo S.M. e a do narrador que

    guia a personagem de Um discurso sobre o mtodo fazem de suas obras uma

    performance? Seguindo o que Azevedo diz:

    Os riscos so claros: a negatividade da apropriao crtica pode resultar apenas em rebeldia e desprezo e a mmesis desconstrutiva pode descambar para a cumplicidade, mas caracterstico da performance o equilbrio precrio entre a crtica (quase moralista) e a reiterao de muitos preconceitos e esteretipos, entrelugar que condio de possibilidade de sua existncia. (AZEVEDO, 2007: 210).

    Segundo a autora a performance caberia mais aos escritores atuais como Andr

    SantAnna (filho de Srgio SantAnna) e Mirisola, como exemplos. Obras como A hora da

    estrela e Um discurso sobre o mtodo esto nesse meio termo entre a perda do carter

    funcional e de questionamento da literatura e da viso do papel do autor na sociedade

    traado por Antnio Cndido em obras como Literatura e subdesenvolvimento e

    Formao da literatura brasileira e o da performance (essa podendo ser analisada do ponto

    de vista da idiotia12).

    Essas obras, de SantAnna e Lispector, so algumas das precursoras de uma

    tendncia literria performtica, por se relacionarem a essa viso estereotipada extrema da

    personagem, fruto de uma forte ironia em sua escrita, bem como de uma obra marcada por

    um teor metaliterrio. Esse o momento no qual a representao se problematiza mais

    claramente, em que a narrativa comea a questionar sua tal funcionalidade, as

    personagens so mimetizadas por meio dos esteretipos, personagens-tipo, simulacros. Sua

    escrita influenciar os demais autores por se tratar do instante em que a representao se

    modifica e aproxima de uma viso estereotipada do real.

    Mais que apenas metaliteratura, a forma desses autores dos anos 70 de se criar a

    narrativa no se entrega ao escracho total da realidade, ainda h uma preocupao social

    por parte do autor, mas voltada para a idia de um engajamento, porm, fracassado

    12 Algo que podemos definir segundo palavras da prpria autora em seu estudo sobre a performance da idiotia na literatura brasileira contempornea: escolha para mimetizar os esteretipos, a imbecilizao das condutas(AZEVEDO, 2007; 10).

  • 34

    (BARTHES, 2007). No somente propor o que fazer, ou como solucionar o problema, o

    autor faz sua obra questionar a composio, lanando a seguinte pergunta: Para que

    escrever? Um mero retornar para o prprio eu? O autor est fadado a questionar e ver suas

    dvidas no sarem do mbito do texto?

    3.0 O romance hbrido e a teatralizao da representao

    a partir da apropriao de elementos cnicos que podemos pensar as situaes

    engendradas por Srgio SantAnna em suas obras. O texto um palco onde os personagens

    (atores) agem representando (encenando) seus cotidianos, suas vidas compostas por trs de

    mscaras que os constroem. Uma aluso interessante para este questionamento o filme

    Poderosa Afrodite de Woody Allen. Um homem maduro, num casamento estressante se

    pega aos encontros com a me biolgica de seu filho adotivo. No se trata de uma histria

    de amor e sim o momento de questionar a prpria vida, para fazer isso Allen traz o teatro

    grego para cena. Um corifeu (interpretado no filme por F. Murray Abraham) canta em meio

    ao coro a vida do homem contemporneo. Personagens como dipo e Jocasta surgem em

    cena para discutir a catarse do cotidiano desses seres fictcios que compem o roteiro. No

    a mdia do cinema ou a narrativa teatral, a estrutura especifica das diferentes formas de se

    criar um enredo foi quebrada. A encenao cinematogrfica se volta para a teatral.

    SantAnna, certamente, um dos autores que faz de sua obra um trabalho

    semelhante. Se procurarmos em qualquer site, livro ou artigos sobre o autor, perceberemos

    nitidamente que as crticas feitas trataro de um exemplo de grande contista

    contemporneo. Sua escrita formada, primordialmente, por contos e romances, no entanto

    tratam-se de narrativas que discutem sua estrutura de forma tal que se utilizam de recursos

    tpicos de outros gneros literrios, no caso desta pesquisa, o teatro. Uma questo

    importante a maneira com a qual os gneros literrios se influenciam de forma que gerem

    textos que podemos considerar como hbridos.

    Partindo da diviso trade dos gneros literrios como pico, lrico e dramtico, para

    discutimos a subdiviso dos gneros e at a sobreposio entre os mesmos, formas adotadas

    na composio do texto literrio atual. Essa diviso proposta por Aristteles em seu Arte

    potica sem dvida o marco de todos os questionamentos que se sucederam e ainda hoje

    levantam perguntas nas diversas interpretaes sobre a literatura. A produo se tornou

  • 35

    hbrida de tal forma que a diviso entre os gneros literrios foi desmantelada. Como

    teorizar ou fazer crtica a respeito desses novos textos? Uma proposta muito vivel a

    leitura feita a partir da perspectiva trplice de Aristteles que se encontra no livro O teatro

    pico de Anatol Rosenfeld, que nos relata uma realidade literria em que:

    Na medida em que as peas se aproximarem desse tipo de Dramtica pura, sero chamadas de rigorosas ou puras, por vezes tambm de fechadas, por motivos que se evidenciaro. Na medida em que se afastarem da Dramtica pura, sero chamadas de picas ou lrico-picas, por vezes tambm de abertas, por motivos que igualmente se evidenciaro. (ROSENFELD, 2006: 20).

    O que Anatol Rosenfeld explicita em seu texto sobre a diferenciao dos gneros

    literrios nesse caso revertido para a relao em que procuramos evidenciar. Se os

    romances em geral so fechados por sua estrutura, em alguns casos, como nos de

    SantAnna, podemos perceber uma obra aberta, talvez predisposta a possuir um teor mais

    hbrido em sua produo. Pensar uma esttica do dramtico seria o mais vivel? No

    podemos denominar SantAnna de dramaturgo, mas de um autor que traz elementos do

    teatro para a realidade romanesca. As noes bsicas de narrador, narratrio, tempo e

    espao esto bem formadas e consolidadas, todavia, com personagens que transformam os

    dados tpicos dos textos narrativos em uma pea na qual so os atores principais, so

    dirigidos por uma mente superior que sempre est com os olhos voltados para eles, ou seja,

    uma espcie de diretor que controla a cena, nesse caso a prpria vida das personagens. Os

    tericos do texto romanesco questionam a multiplicidade de gneros empregada para sua

    composio, algo prximo do que afirma Bakhtin: uma forma sinttica e mista

    formao hbrida (BAKHTIN, 1988: 79). Para o romance, relacionar elementos da potica

    e do dramtico algo de sua estrutura inicial.

    A escolha da nomenclatura hbrido se aplica diretamente aos textos do autor, bem

    como uma forma escolhida por ele mesmo para nomear sua produo. Junk-Box de 1980,

    por exemplo, uma obra que j nos oferece como ttulo Uma tragicomdia nos tristes

    trpicos, num jogo em que teatro, poesia e narrativa se misturam. SantAnna, nesta obra,

    cria um palco para apontar todas as questes que o afligem no que tange o fazer literrio.

    Desde de I Jung, Freud, aos mitos de Si Si Fu (segundo o autor apontado muito

    ironicamente) e Oedipus Rex. Tamanha a mescla de gneros literrios que o escritor

  • 36

    aponta: Tem ainda um minipalco iluminado onde o autor, vestido de dourado palhaa nas

    perdidas iluses (SANTANNA, 2002: 10). Mais que apenas lidar com as temticas da

    literatura, o ttulo Junk-Box se relaciona tambm com os elementos musicais, algo que

    observamos tambm em O concerto de Joo Gilberto no Rio de Janeiro, no qual h o

    interesse do autor em trabalhar com a msica popular em seus textos. Enfim, uma excelente

    definio para Junk-Box fornecido pela prpria obra, e resume bem a escrita santaniana:

    A junk-box um produto hbrido (Idem: 10).

    O que observamos nessa obra de 1980, j se mostrava evidenciado desde alguns de

    seus primeiros livros como Confisses de Ralfo, no qual Srgio SantAnna j apresentava

    uma tendncia em jogar com as diversas possibilidades de lidar com diferentes formas de

    gneros literrios em suas obras no captulo Au Theatre. A personagem imaginria Ralfo

    se constri em meio a um palco no qual aparece como palhao. Nesta premissa que envolve

    uma suposta encenao criada na representao, o texto utiliza o universo teatral para

    oferecer ao autor a multiplicidade de possibilidades do desenvolver da narrativa. Se Ralfo,

    o magnfico, inicia sua cena com ilusionismo, o momento seguinte nos oferece um

    espetculo sdico na qual uma convidada da platia (ou seria uma atriz coadjuvante do

    show?) levada e chicoteada diante dos espectadores. A continuao em A ceia feita

    pela personagem que inicia sua gulosa e escatolgica cena de alimentao, jogando comida

    nos convidados. Por meio da comdia pastelo e de um co velho e esqulido, o humor

    levado ao palco. O animal, sobre a mesa, devora os restos dos pratos num rudo agressivo.

    A cena final, e pice do captulo, quando Ralfo senta-se numa cadeira e observa os

    espectadores que o vaiam e jogam detritos. Contudo, quando o rosto do palhao comea a

    derreter, aps jogarem uma jarra de suco de laranja, que o pblico cai aos prantos, levando-

    os dura sensao de desconforto e de percepo da prpria animalidade.

    O lixeiro que varre os restos que sobram sobre o palco, leva tambm Ralfo, o

    magnfico, ou melhor, o boneco de cera derretido que sobrou do outrora palhao sdico. O

    olhar lanado sobre as pessoas evidencia o controle feito pela personagem. Os espectadores

    se sentem parte de uma cena de pavor da qual so membros fundamentais. Desejam,

    julgam, enojam-se, mas descobrem dentro dos recncavos mais obscuros de seus corpos o

    instinto animal perdido (at porque so seres racionais). no espao cnico que

    SantAnna se v livre de algumas amarras da escrita e faz de seu texto o que sua mente

  • 37

    ambiciona. Seu livro pode passar do espetculo fsico-grotesco para um processo de

    dominao psicolgica: o teatro lhe permite essa liberdade.

    Esse dilogo com a dramaturgia se manter em vrias obras da bibliografia do autor.

    Alm daquelas que sero representativas para a pesquisa e que consistiro no corpus dos

    demais captulos13. Ainda observamos caractersticas semelhantes de teatralidade na obra

    anterior Notas de Manfredo Rangel reprter: a respeito de Kramer de 197214, e em obras

    mais recentes como A senhorita Simpson de 198915, O monstro de 199416 e O vo da

    madrugada de 200417.

    Cabe destacar dentre a produo do autor a obra Um crime delicado de 1992,

    recentemente adaptado para o cinema18. A vida de um artista e sua paixo por uma mulher

    deficiente o mote para os acontecimentos que se sucedem. O desejo, a seduo, o grotesco

    se encontram em um jogo de espelhos criado pela narrativa. SantAnna sem dvida um

    autor que lida com o olhar como fundamental em suas obras. O fetiche do artista pela

    deficincia da jovem marcado primordialmente pelo sentido da viso, que, em quase toda

    a bibliografia do autor se mostra um dos pontos chaves de anlise. Luis Alberto Brando

    Santos um dos crticos que melhor discute as vrias possibilidades do olhar em sua obra

    Um olho de vidro. Segundo Santos, ver leva ao desejo, o desejo ao corpo, e o corpo feito

    a partir da imagem no espelho, contudo, questionamos: o que o espelho seno o momento

    da descoberta? nessa imagem refletida que nos construmos, nela que, por exemplo,

    Marieta atua como Ferdinando19, e assim os personagens se reconhecem como

    representao e passam a se metamorfosear em atores, meros simulacros de seres por se

    perceberem parte de uma construo narrativa. Com este processo que podemos dizer que

    representar se concretiza em teatralizar.

    13 Simulacros (1975), Um romance de gerao (1981) e A tragdia brasileira (1987) que fecham um ciclo teatralizado das obras do autor.14 Dentre os vrios contos desse livro destaco Marieta e Ferdinando anteriormente citado. 15 Obra em que se encontra o conto Um discurso sobre o mtodo que tambm estudado no captulo. 16 Destacamos nessa obra o conto O monstro que feito a partir da narrao de um homem maduro que estupra uma jovem feita por um gravador. 17 Este livro possui aluses a diversos tipos de artes, seja cinematogrfica, pictrica ou teatral em contos como: Contemplando as meninas de Balthus e O gorila. 18 Filme dirigido por Beto Brant em 2005.19 Conto publicado no livro Notas de Manfredo Rangel reprter: a respeito de Kramer e discutido anteriormente no captulo sobre a troca de papis entre Marieta e Ferdinando num jogo cnico.

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    A confuso gerada quanto ao gnero literrio ao qual pertencem as obras de

    SantAnna tamanha que algumas obras do autor so consideradas teatro pelos prprios

    editores. A tragdia brasileira traz, j em seu subttulo, a idia de romance-teatro20. No

    apenas exteriormente que h diferenas, a estrutura textual est formada por falas,

    construo de tempo e espao marcada por caractersticas da dramaturgia. Podemos

    perceber a teatralidade, porm entend-la precisar de questionamentos mais especficos.

    Cada uma das obras selecionadas para a pesquisa apresenta diferentes vises da

    representao enquanto teatralizao. No entanto, alguns pontos podem ser considerados

    chave para a interpretao proposta como as influncias teatrais durante o perodo de

    escrita das obras.

    3.1 As influncias teatrais e suas conseqncias para as obras de Srgio

    SantAnna: Robert Wilson e Antunes Filho

    Ao ler Srgio SantAnna, a complexidade das obras nos leva a procurar entender o

    porqu de usar os elementos de diferentes gneros literrios na estrutura da narrativa. Qual

    a finalidade de utilizar o universo teatral para um texto teoricamente romanesco? Quais as

    possibilidades que um texto hbrido pode oferecer para narrativa?

    Durante o incio da escrita de seus livros, SantAnna se encontrava em viagens que

    foram, segundo o prprio autor, cruciais para as obras que sucederam (1974-2004). 21

    No somente devido influncia da dramaturgia norte-americana, mas tambm a

    europia, em um perodo em que se consolidavam uma nova srie de hipteses nas teorias

    sociais, e mesmo literrias, desencadeadas pelo maio de 1968, e que modificaram a viso

    de escrita por parte de SantAnna.

    No h como se passar ileso em meio crescente inovao das discusses sobre o

    homem contemporneo, e o autor com certeza se liga diretamente a boa parte delas. Se

    desde Os sobreviventes j se observava por parte da crtica um interesse crescente pelas

    20 Poderamos interpretar essa escolha do gnero literrio pelo autor sob uma vis que ressalta apenas a ironia que permeia sua obra. Escolher caractersticas estruturais do teatro para compor seus textos uma forma de se discutir a representao. Todavia, cabe comentar aqui o fato de que essa relao se d de forma to intensa que na ltima reedio da obra A tragdia brasileira, a editora Companhia das Letras, a maior e mais importante, no mercado brasileiro atual, cataloga o livro como Literatura Brasileira: Teatro. A relao entre os gneros extrapola o jogo criado na narrativa e confunde a classificao como romanesco ou dramatrgico. 21 Doravante faremos referncia a nossa correspondncia eletrnica com Srgio SantAnna, que ser posta em anexo, em formato de entrevista.

  • 39

    obras, o contato entre sua literatura e o momento dramatrgico presenciado pelo autor nos

    Estados Unidos gerou uma obra que se mostrou marcante no que se seguiu nos anos 70/80

    e 90, bem como influenciou alguns novos autores que por sua vez se basearam na esttica

    santaniana para compor seus livros22.

    O encontro mais significativo sem dvida com o diretor teatral Robert Wilson, nos

    Estados Unidos. Mais que uma referncia, suas longas peas de mais de quatro horas foram

    fundamentais para que SantAnna desenvolvesse um estilo nico de compor suas

    personagens, marcado diretamente pela exposio da representao, bem como a esttica

    do simulacro e da teatralidade. Essa figura do diretor se mostra presente em vrios

    momentos de Simulacros na imagem de PhD a controlar a cena de seus personagens

    simulacros.

    Um detalhe interessante da produo do diretor norte-americano seu incio de

    carreira trabalhando com crianas com necessidades especiais. O estudo de Luiz Roberto

    Galizia em Os processos criativos de Robert Wilson mostra que o dramaturgo se envolveu

    com tais crianas, principalmente mudos, o que foi decisivo para a composio de algumas

    de suas peas, talvez por isso o teatro de Wilson seja muitas vezes marcado pelo silncio,

    que costuma representar mais que um texto excessivamente falado. Ralfo, o magnfico, de

    As confisses de Ralfo, se entrega totalmente no seu ato final, deixa que os espectadores

    ajam como querem e exponham ainda mais sua prpria animalidade que vaiem, critiquem,

    o agridam, mas que exponham seus instintos enquanto espectador de uma pea. Da mesma

    maneira, mesmo que controlando seus personagens, PhD abre brechas para que seu

    experimento reproduza a insatisfao e seus desejos mais obscuros, o que se culmina na

    morte e na percepo da fragilidade desse Deus encontrado na obra.

    O sentido da viso fundamental para a leitura das obras do autor23. So os olhos,

    seja de PhD, do intelectual, ou mesmo do autor-diretor, que perseguem as personagens e as

    expem. As obras do autor so fortemente marcadas por esse sentido, o que est 22 Como referido anteriormente no captulo, a idia de performance uma delas, e se associa diretamente a autores como Marcelo Mirisola e o Andr SantAnna.23 Anlises sobre o olhar e a que ele produz em SantAnna so encontradas na escrita de vrios de seus livros, destacamos a obra Um olho de vidro: a narrativa de Srgio SantAnna de Luis Alberto Brando Santos que relaciona a necessidade de se olhar construo da obra. por meio da viso que a personagem se constri, bem como por meio dela que o narrador conduz a narrativa. No apenas ver, mas o autor constantemente levanta a questo: qual o referencial desse olho que controla os elementos do texto? A partir de quais escolhas a representao da personagem se constri? Algumas dessas discusses estaro presentes nas anlises posteriores das obras que compem o corpus da dissertao.

  • 40

    relacionado, diretamente, s peas de Robert Wilson, primordialmente sensoriais. Galizia

    nos exemplifica que algumas obras do dramaturgo chegavam a durar dias, o objetivo era

    que o espectador pudesse sair do teatro e retornar quando quiser, sem obrigatoriedade de

    que a pea tivesse uma linha, cada momento em que chegasse para assistir seria um novo

    momento, sem necessidade de associao direta com as anteriores. Uma criao do autor

    nos mostra como se desintegra a linearidade para se obter determinado resultado:

    Vdeo 50 no chega a narrar nenhuma estria; e as cenas que compreende no desenvolvem aes que se sucedem, pelo menos aparentemente, de maneira catica e arbitrria. As imagens surgem como fenmenos, na forma espontnea com que afloram na mente humana. medida que se materializam na tela do vdeo, vazias de qualquer contedo facilmente identificvel, sem moldura contextual explcita, passam a funcionar, paradoxalmente, como eloqente comentrio sobre a natureza da