disser ta cao parcial

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO CULTURAS E IDENTIDADES BRASILEIRAS ANA LUISA DUBRA LESSA Edição da Correspondência Mário de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944. VERSÃO CORRIGIDA O EXEMPLAR ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONÍVEL NA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS (IEB-USP) São Paulo 2012

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Dissertação UNICAP

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    CULTURAS E IDENTIDADES BRASILEIRAS

    ANA LUISA DUBRA LESSA

    Edio da Correspondncia Mrio de Andrade &

    Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944.

    VERSO CORRIGIDA

    O EXEMPLAR ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONVEL NA BIBLIOTECA DO

    INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS (IEB-USP)

    So Paulo

    2012

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    CULTURAS E IDENTIDADES BRASILEIRAS

    Edio da Correspondncia Mrio de Andrade &

    Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944.

    ANA LUISA DUBRA LESSA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. rea de concentrao: Estudos Brasileiros.

    Orientador: Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes

    VERSO CORRIGIDA

    O EXEMPLAR ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONVEL NA BIBLIOTECA DO

    INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS (IEB-USP)

    So Paulo

    2012

  • DADOS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    Servio de Biblioteca e Documentao do

    Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo

    reproduo total

    Lessa, Ana Luisa Dubra

    Edio da correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944 / Ana Luisa Dubra Lessa. -- So

    Paulo, 2012. Orientador: Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes. Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo. Instituto de Estudos Brasileiros. Programa de Ps-Graduao. rea de concentrao: Estudos Brasileiros. Linha de pesquisa: Brasil: a realidade da criao, a criao da realidade. Verso do ttulo para o ingls: Edition of the correspondence Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira and Stella Griz Ferreira 1926-1944. Descritores: 1. Andrade, Mrio de,1893-1945 2. Ferreira, Ascenso, 1895-1965 3. Ferreira, Stella Griz 4. Epistolografia 5. Modernismo I. Universidade de So Paulo. Instituto de Estudos Brasileiros. Programa de Ps-Graduao II. Ttulo.

    IEB/SBD03/2012 CDD 869.965

  • SUMRIO

    Resumo........................................................................................................................................5

    Abstract.......................................................................................................................................5

    Dedicatria..................................................................................................................................6

    Agradecimentos..........................................................................................................................7

    Edio da Correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira

    1926-1944...................................................................................................................................9

    Cartas e lacunas...........................................................................................................................9

    Modernismo, modernismos.......................................................................................................10

    Dilogo epistolar: os caminhos da correspondncia.................................................................18

    Folclore partilhado....................................................................................................................18

    Processo de criao...................................................................................................................22

    Viagens pelo Brasil...................................................................................................................27

    Eventos polticos e amizade......................................................................................................28

    Afetos e divergncias................................................................................................................30

    Consideraes finais.................................................................................................................31

    Esta edio................................................................................................................................32

    Correspondncia........................................................................................................................34

    1926...........................................................................................................................................34

    1927...........................................................................................................................................57

    1928.........................................................................................................................................106

    1929.........................................................................................................................................167

    1930.........................................................................................................................................192

    1931.........................................................................................................................................228

    1932.........................................................................................................................................238

    1933.........................................................................................................................................247

    1934.........................................................................................................................................254

    1935.........................................................................................................................................261

    1936.........................................................................................................................................269

    1937.........................................................................................................................................275

    1939.........................................................................................................................................277

    1940.........................................................................................................................................280

  • 1941.........................................................................................................................................291

    1942.........................................................................................................................................300

    1943.........................................................................................................................................303

    1944.........................................................................................................................................312

    Referncias bibliogrficas.......................................................................................................317

    Anexos....................................................................................................................................326

  • RESUMO

    Esta dissertao apresenta a edio fidedigna e anotada da correspondncia do polgrafo

    modernista Mrio de Andrade (1893-1945), com o poeta pernambucano Ascenso Ferreira

    (1895-1965) e sua esposa, Stella Griz Ferreira (1898-1974). A transcrio integral de 138

    cartas, pertencente ao Arquivo Mrio de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros da

    Universidade de So Paulo, a recomposio cronolgica dos dilogos, considerando a parcela

    de cartas de Mrio ao casal, j publicadas em livros, e o procedimento de anotao das

    mensagens epistolares buscam ampliar o conhecimento das redes de sociabilidade no

    modernismo brasileiro, oferecendo elementos biogrficos e testemunhais para o estudo da

    obra dos interlocutores e de seus processos de criao. A anlise da correspondncia, em

    perspectiva interdisciplinar, apreende os principais pontos da discusso acerca da criao

    potica e das manifestaes folclricas do nordeste brasileiro.

    Palavras-chave: Mrio de Andrade; Ascenso Ferreira; Stella Griz Ferreira; epistolografia;

    modernismo.

    ABSTRACT

    This dissertation presents a reliable and annotated edition of the correspondence the

    polygraph modernist Mrio de Andrade (1893-1945), with the poet from Pernambuco

    Ascenso Ferreira (1895-1965) and his wife, Stella Griz Ferreira (1898-1974). The full

    transcript of 138 letters, belonging to Archive Mrio de Andrade, the Institute of Brazilian

    Studies, University of Sao Paulo, the chronological rearrangement of the dialogues,

    considering the amount of letters from Mario to the couple, already published in books, and

    the annotation procedure of epistolary messages seek to broaden the knowledge of sociability

    networks in Brazilian modernism, offering biographical information and testimonial to the

    study of the work of the interlocutors and their creative processes. The analysis of the

    correspondence, in an interdisciplinary perspective, apprehends the main points of discussion

    of poetic creation and the folklore of northeast Brazil.

    Keywords: Mrio de Andrade; Ascenso Ferreira; Stella Griz Ferreira; epistolography;

    modernism.

  • Ao querido Rodolfo, meu amor.

  • Agradecimentos

    Ao Programa de Ps-Graduao Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos

    Brasileiros da Universidade de So Paulo. diretora Profa. Dra. Maria Angela Faggin Pereira

    Leite e vice-diretora Profa. Dra. Marina de Mello e Souza. s Profas. Dras. Flvia Camargo

    Toni, Mayra Laudanna, Mnica Duarte Dantas, Tel Ancona Lopez, Vanderli Custdio, pelos

    ensinamentos no incio da trajetria acadmica. Maria Cristina Pires da Costa, pela amizade

    e pelo apoio nos processos burocrticos.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela bolsa concedida.

    Capes, pela bolsa concedida.

    Ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes, por me guiar pacientemente pelos

    caminhos da correspondncia marioandradiana.

    A todos os mestres e docentes do Departamento de Histria da USP, pelo conhecimento

    transmitido durante minha graduao.

    Ao Prof. Dr. Antonio Dimas, pela primeira orientao acadmica, pelo incentivo

    incondicional e pelas palavras estimulantes da qualificao.

    Ao Prof. Dr. Francisco Alambert, pela leitura e pelos apontamentos na qualificao.

    Ao Prof. Dr. Ivan Marques, pela disciplina de Ps-Graduao, em que muito auxiliou na

    pesquisa, e por me aceitar como estagiria do Programa de Aperfeioamento de Ensino

    (PAE).

    Aos funcionrios e estagirios do IEB, principalmente: Elisabete Marin Ribas, Maria Izilda

    Claro do Nascimento Fonseca Leito, Monica Aparecida Guilherme da Silva Bento, Gabriela

    Giacomini de Almeida, Joana Pereira Lima, Bruno Cruz Santana, Joo Victor Chaves Serpa

    Kosicki, Maria Itlia Causin, Maria Clia Amaral, Livia Baro Vieira, Rosana Campos

    Nascimento, Bianca Maria Abbade Dettino.

    Fundao Joaquim Nabuco, em especial: Lcia Gaspar, Clia Carvalho, Carlos Ramos.

    Fundao Casa de Rui Barbosa: Laura Regina Xavier, Eliane Vasconcellos, Claudio

    Vitena.

    Biblioteca Nacional.

    filha de Ascenso Ferreira, Maria Luiza Gonalves Ferreira de Medeiros, pela entrevista

    concedida.

    Famlia Griz, em especial, ao senhor Gilberto Griz.

    Natlia Barros, por me mostrar Recife e compartilhar sua pesquisa.

  • s colegas de Ps que se tornaram amigas, compartilham as angstias e descobertas do fazer

    acadmico e da vida: Aline Novais de Almeida, Ana Lcia Guimares Richa Lourega de

    Menezes, Maria Viana, Raquel Endalcio, Vivian Caroline Fernandes Lopes.

    Lgia Procpio Souto Dubra, pelo incentivo e apoio ao longo de toda a minha vida.

    Ao irmo querido, Pedro Ivo Dubra, pelas infinitas conversas sobre literatura e pela reviso da

    pesquisa.

    Aos meus avs Lourdes e Adhemar, pelo carinho e amor de sempre.

    Dona Rosana, Seu Antonio, Eduardo e Victor, por me receberem de abraos abertos na

    famlia.

    Ao meu marido Rodolfo, pelo amor, amizade, incentivo e dedicao ao longo dessa trajetria.

  • 9

    Edio da Correspondncia Mrio de Andrade &

    Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944.

    Tudo ser posto a lume um dia, por algum que se disponha a realmente

    fazer a Histria. E imediato, tanto correspondncias como jornais e demais

    documentos no opinaro como ns, mas provaro a verdade. Mrio de Andrade

    1

    Cartas e lacunas

    Esta dissertao tem como proposta a edio fidedigna e anotada das cartas trocadas

    entre o polgrafo Mrio de Andrade (1893-1945) e o poeta pernambucano Ascenso Ferreira

    (1895-1965) e sua esposa Stella Griz Ferreira (1898-1974), entre 2 de novembro de 1926 e o

    final de 1944. As cartas assinadas por Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira constituem um

    conjunto de 138 itens (cartas, bilhetes, cartes-postais, telegramas). Entre eles, 103 foram

    assinados por Ascenso, 32 por Stella e trs em parceria, documentos conservados no Arquivo

    Mrio de Andrade, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (IEB-

    USP). A essa documentao, autgrafa e datiloscrita, a pesquisa acrescentou a parcela da

    correspondncia ativa do criador de Macunama dirigida ao casal Ferreira, publicada no

    terceiro volume de O movimento modernista em Pernambuco (Rio de Janeiro: Guanabara,

    1969, 3 v.) e em Os Andrades e outros aspectos do modernismo2, de Joaquim Inojosa, bem

    como em Um movimento de renovao cultural (Rio de Janeiro: Ctedra, 1975), de Souza

    Barros.

    Muitas cartas de Mrio de Andrade a Ascenso Ferreira extraviaram-se, como

    testemunhou o destinatrio: Meu querido Edgard [Cavalheiro]: junto lhe envio algumas

    cartas do nosso querido Mrio, dirigidas a mim e a minha mulher Stella. Perderam-se muitas

    em mudanas etc.3 Dessa forma, a recomposio do dilogo epistolar apresenta lacunas

    expressivas, pois a pesquisa logrou localizar apenas o texto de 18 cartas assinadas por Mrio

    de Andrade.

    Esforos foram empreendidos na busca da correspondncia ativa de Mrio de

    Andrade. Realizei viagem ao Recife a fim de localizar documentos na Fundao Joaquim

    Nabuco, instituio responsvel pela guarda do acervo pessoal do poeta Ascenso Ferreira. A

    1 Fazer a Histria, Folha da Manh, em 24 de agosto de 1944.

    2 As cartas de Mrio de Andrade a Stella Griz Ferreira divulgadas nesse volume retomam e completam as

    missivas parcialmente transcritas em O movimento modernista em Pernambuco. Inojosa tambm publicou o

    poema Stella, escrito por Mrio de Andrade em 27 de dezembro de 1927. 3 FERREIRA, Ascenso. In INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3. Rio de Janeiro:

    Guanabara, 1969, p. 334.

  • 10

    pesquisa encontrou documentos pessoais do autor, manuscritos de poemas e textos, cartas,

    matrias extradas de peridicos e fotografias. Entretanto, no foi constatada a existncia de

    missivas de Mrio de Andrade.

    No Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio

    de Janeiro, consultei os acervos pessoais sob a guarda da instituio, localizando cartas de

    Ascenso Ferreira dirigidas a Francisco Incio Peixoto, a Rosrio Fusco e a Carlos Drummond

    de Andrade, bem como mensagens de Manuel Bandeira e de Ccero Dias destinadas ao poeta

    de Catimb. No acervo de Joaquim Inojosa, da mesma instituio, pude encontrar fotocpia

    de carta de Mrio de Andrade a Ascenso Ferreira, mensagem publicada parcialmente por

    Inojosa em O movimento modernista em Pernambuco. Cumpri tambm a consulta de artigos

    em peridicos citados e comentados na correspondncia trocada entre Mrio de Andrade e

    Ascenso Ferreira. Na Biblioteca Nacional, obtive textos de peridicos microfilmados e em

    papel aludidos e discutidos pelos correspondentes.

    Modernismo, modernismos

    A dcada de 1920, no Brasil, perodo em que se iniciou a correspondncia entre Mrio

    de Andrade & Ascenso e Stella Griz Ferreira, foi marcada por agitaes da ordem poltica,

    social e artstica. Em 1922, destacaram-se o movimento militar dos 18 do Forte de

    Copacabana, a criao do Partido Comunista e a Semana de Arte Moderna em So Paulo. No

    campo artstico, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos,

    Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros, propuseram novas

    perspectivas estticas, afinadas, principalmente, com a vanguarda europeia. Essas

    contribuies chocaram os fundamentos e valores da sociedade paulistana, ainda presa a

    valores literrios e artsticos academicistas.

    O iderio esttico que norteou o primeiro tempo modernista em So Paulo e no Rio de

    Janeiro no transformou de imediato o quadro das artes no pas, como se pensa. Em algumas

    regies, os preceitos artsticos libertrios daqueles jovens reunidos em fevereiro de 1922 no

    Teatro Municipal paulistano chegaram tarde e foram vistos com preconceito e desconfiana.

    O que se vivia em Pernambuco, local de nascimento do casal Ferreira, era um conflito

    de ideais. Como mostra Neroaldo Pontes de Azevedo, em Modernismo e regionalismo:

    A dcada de 20 em Pernambuco foi agitada por duas vertentes de ideias

    destinadas a sacudir, quer na poca em que existiram, quer nas suas

    consequncias, a vida cultural do Nordeste. De So Paulo, chegavam as

    sugestes do movimento modernista, tornado pblico na Semana de Arte

  • 11

    Moderna de 1922, ao mesmo tempo em que se intensificava, fazendo eco a

    uma preocupao generalizada no Brasil, a pregao em torno do

    regionalismo.4

    No incio dos anos de 1920, havia em Pernambuco um esprito valorativo das

    realidades locais, avesso viso cosmopolita da arte da vanguarda modernista. Em agosto de

    1922, uma comitiva de jovens partiu do Recife em direo ao Rio de Janeiro para o 1

    Congresso Internacional de Estudantes. O secretrio dessa comitiva era o jornalista Joaquim

    Inojosa que, em So Paulo, travou contato com os participantes da Semana, entre os quais

    Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e Anita Malfatti, e

    participou de uma reunio do grupo da revista Klaxon, na casa de Mrio de Andrade.5

    Inojosa, por fim, retornou ao Recife como representante de Klaxon, disposto a difundir

    a nova orientao esttica. Em 30 de outubro de 1922, assinou o artigo Que futurismo, em

    A Tarde, jornal da capital pernambucana, marcando, assim, o comeo da divulgao das

    ideias modernistas em seu Estado. Entretanto, o propsito de Inojosa enfrentou divergncias

    por parte daqueles que defendiam a valorizao do passado. Jos Lins do Rego se posicionava

    contra o futurismo por meio do semanrio Dom Casmurro, editado no Recife; Gilberto

    Freyre defendia o regionalismo. Em sua pesquisa sobre os anos de 1920 em Pernambuco,

    Neroaldo Pontes de Azevedo distinguiu os princpios norteadores do pensamento do autor de

    Casa-grande & senzala: Sua postura polmica, neste momento, decorre da preocupao em

    resguardar os valores tradicionais e em apontar a necessidade de valorizao das realidades

    regionais.6

    Essa postura defensiva dos valores regionais fez surgir, em 1924, o Centro

    Regionalista do Nordeste liderado por Gilberto Freyre, Moraes Coutinho e Odilon Nestor,

    entre outros. Um dos objetivos postos em prtica pelo Centro foi a realizao, em 1926, do 1

    Congresso Regionalista do Nordeste, no Recife, com a finalidade de organizar um esprito de

    unidade do Nordeste e de colaborar com movimentos polticos que visassem ao

    desenvolvimento e defesa dos interesses da regio, assim como congregao de elementos

    tradicionais da cultura nordestina. O Congresso no se deteve em questes literrias, mas,

    4 AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo. Os anos 20 em Pernambuco. 2 ed. Recife,

    UFPE/ UFPB, 1996, p. 11. 5 Em 24 de novembro de 1922, Os sonhadores do Sul, publicado em A Provncia do Recife, Joaquim Inojosa

    discorreu sobre o grupo modernista de So Paulo: Renem-se sempre; discutem, e desse trocar de ideias, ideias novas surgem. Numa dessas horas de arte em casa de Mrio de Andrade (primeiro andar silencioso, mesas,

    estantes, revistas de arte, livros, quadros modernos pelas paredes). [...] Mrio de Andrade diz trechos de uma

    conferncia sobre a poesia moderna (INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. v. 2, p. 11). 6 AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo, p. 41.

  • 12

    mesmo assim, Ascenso Ferreira recitou alguns de seus poemas a pedido do presidente do

    evento. A participao de Ascenso no certame denota a ambivalncia de seus interesses

    artsticos. Neroaldo explicitou:

    Sua produo potica [Ascenso Ferreira] no pode ser atrelada, de maneira

    mecnica, a um determinado movimento de ideias. Sua poesia, de dico

    nova, tem dbitos para com a proposta modernista, particularmente no que

    tange liberdade formal, mas tambm tem compromissos diretos com o

    regionalismo, na medida em que se alimenta, de modo especial, da vida da

    regio e suas tradies.7

    Ascenso Ferreira no se devotou de imediato ao modernismo, visto que compunha

    sonetos bem ao gosto dos parnasianos. Um dos poemas mais conhecidos dessa primeira fase

    Adeus! Eu voltarei ao sol da primavera!, estampado, em dezembro de 1923, na revista

    Mauriceia, de Joaquim Inojosa. Em 21 de setembro de 1924, no Jornal do Commercio,

    Salom, mostrou-se uma primeira tentativa de versos que marcasse seu rompimento com a

    poesia mais tradicional:

    Quando pus os meus olhos nos seus olhos

    Eu senti nalma como que deslumbramentos...

    Senti a sensao de todas as Belezas

    E a beleza de todos os sentimentos...

    [...]

    E ela era bela como um Pssaro Encantado;

    E ela era bela como a Estrela da Manh;

    Bela como a Salom do Yocanaan;

    Bela como dos Cisnes o noivado...

    [...]

    E dizer que vendo-a assim,

    Como que a rezar orao pag,

    Essa reza sem F,

    Pensei: quem dera eu fosse o teu Yocanaan

    E que rezasses por mim

    Salom... Salom...8

    7 Idem, p. 178.

    8 O poema foi publicado no primeiro volume de O movimento modernista em Pernambuco (pp. 92-93). No

    mesmo volume, Inojosa reproduziu trecho de entrevista concedida por Ascenso em 2 de fevereiro de 1965 e

  • 13

    A adeso definitiva de Ascenso ao modernismo, segundo o poeta, deu-se na

    conferncia de Guilherme de Almeida, realizada no Teatro Santa Isabel, no Recife, em 1925,

    ocasio em que o escritor paulista declamou os versos de Raa. Nesse momento, Guilherme o

    incentivou a continuar produzindo versos em novos moldes. Joaquim Cardozo e Benedito

    Monteiro, de acordo com Ascenso, tambm foram influncias importantes para gui-lo em

    direo esttica modernista. Aps esses acontecimentos, sua lrica foi construda em torno

    de temas relacionados cultura e s manifestaes do homem do Nordeste.

    Nos primeiros tempos das cartas trocadas com Mrio de Andrade, Ascenso, em sua

    atuao no modernismo pernambucano, angariou opositores, como verificado em Ascenso,

    traidor, artigo sem assinatura na revista recifense Frei Caneca de 17 de outubro de 1927. O

    texto permite perceber como Ascenso foi visto por uma parcela da intelectualidade de seu

    Estado, contrria s suas ligaes com os artistas do eixo Rio-So Paulo:

    Uma nova, meus senhores! Ascenso, o poeta inxundioso [sic] traidor da ptria. A cilndrica criatura tem um remelexo com o Sul que no se

    compreende, comprometendo a poesia matuta do Norte. E para que a histria

    no v adiante, sem uma demonstrao decisiva, contemos o seguinte: O sr.

    Mrio de Andrade fez uma espcie de livro de impresses do Amazonas,

    antes da viagem. Agora o resto: Ascenso sabia dessa cousa ridcula,

    entretanto, caladinho, pagou almoo e automvel para o poeta sarar,

    comentou trechos do livro sobre a viagem e, depois, com aquela sua prosa

    alexandrina, ainda fez uns elogiozinhos. E Ascenso ainda fala de poesia do

    Norte, de arte do Norte e de Ptria do Norte! Que traidor!9

    Experimenta-se nesse momento da histria do Nordeste e, em especial, de

    Pernambuco, a necessidade de negar o que vinha dos grandes centros econmicos e culturais

    do pas. Evidencia-se a ideia de que preciso manter a tradio e no se deixar contaminar

    pelas aes futuristas que repudiavam o passado. Esse passado deveria ser resgatado nos

    idos e vividos ureos do cultivo da cana-de-acar, tempo em que a regio era prspera e

    abastada economicamente.

    Desde 1924, os intelectuais brasileiros centraram esforos na busca de elementos

    capazes de promover a unio dos vrios Brasis, ainda percebidos como ilhas conectadas

    antes aos centros europeus do que entre si. Os modernistas, em especial Mrio de Andrade,

    acreditavam que, nacionalizando a cultura brasileira sendo o tratamento erudito de motivos

    da cultura popular uma das formulaes possveis , atingir-se-ia o mesmo patamar das

    publicada no peridico carioca Meio-Dia em 27 de maro de 1965, dois meses antes da morte do poeta de

    Catimb: ... quando lhe perguntei qual o seu primeiro poema modernista, respondeu: Salom (p. 94). 9Apud AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op. cit., p. 250.

  • 14

    realizaes dos pases de maior desenvolvimento cultural. Quando isso finalmente ocorresse,

    o Brasil no estaria mais em posio de subordinao no ambiente da cultura ocidental de

    extrao europeia.

    O interesse de Mrio de Andrade pelas manifestaes populares e o anseio de criar

    uma cultura nacional se fizeram presentes, particularmente, a partir de 1924. Em um primeiro

    momento, os intelectuais do modernismo brasileiro propuseram vrias experimentaes no

    campo esttico. Entretanto, logo aps essa fase heroica de abalo das convenes herdadas do

    sculo XIX, o movimento modernista tomou novas direes, como explica Eduardo Jardim:

    Esta mudana de rumos, generalizada em todas as orientaes modernistas

    que j comearam a se esboar distintamente, indica que a problemtica da

    renovao esttica, presente nos anos anteriores, cedia lugar, a partir de 24, a

    uma preocupao que, acirrando-se at 1930, se dirigia no sentido de, em

    primeiro lugar, elaborar uma literatura de carter nacional, e num segundo

    momento, de ampliao e radicalizao do primeiro, de elaborar um projeto

    de cultura nacional em sentido amplo.10

    As palavras de Mrio ao poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, em 1924,

    expressam essas demandas: [...] Ns s seremos civilizados em relao s civilizaes o dia

    em que criarmos o ideal, a orientao brasileira. Ento passaremos da fase do mimetismo pra

    fase da criao. E ento seremos universais, porque nacionais.11

    Deve-se enfatizar que, no ano de 1924, ocorreu a viagem dos modernistas paulistas s

    cidades histricas mineiras, que remontavam ao ciclo do ouro e dos diamantes e conservavam

    a arquitetura colonial. Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, seu filho Non, Tarsila do

    Amaral, o jornalista Ren Thiollier, Goffredo Telles, o poeta franco-suo Blaise Cendrars e

    Dona Olvia Guedes Penteado visitaram Minas Gerais durante a Semana Santa. A ida s terras

    mineiras causou impacto nos modernistas. Os quadros da fase pau-brasil de Tarsila do Amaral

    refletiram uma nova percepo de formas e cores com a integrao do tema brasileiro.

    Mrio de Andrade tambm no saiu intacto dessa viagem, tanto que, ao retornar a So

    Paulo, escreveu Noturno de Belo Horizonte, poema que, miticamente, mostra Minas Gerais

    como smbolo da nao e, posteriormente, elaborou Macunama, publicado em 1928.

    10

    MORAIS, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimenso filosfica. Rio de Janeiro: Editora Graal,

    1978, p. 73. 11

    [So Paulo, 1924] In ANDRADE, Carlos Drummond de; ANDRADE, Mrio de. Carlos & Mrio:

    correspondncia completa entre Carlos Drummond de Andrade (indita) e Mrio de Andrade. Prefcio e notas de

    Silviano Santiago. Organizao e Pesquisa Iconogrfica de Llia Coelho Frota. Rio de Janeiro: Bem-Te-vi, 2002,

    p. 71.

  • 15

    Desde Pauliceia Desvairada (1922), h um sentimento de redescoberta e de revelao

    do Brasil. No entanto, Mrio de Andrade s iria aprimorar essa questo na obra Cl do jabuti,

    livro de 1927, considerado pela crtica como o mais socializado e anti-individualista do

    poeta. Cl do jabuti traz em sua essncia o desejo marioandradiano de compreender e

    estabelecer os elementos culturais e sociais que uniriam o Brasil e os indivduos da vrias

    partes do pas. Cl do jabuti traz os versos de Dois poemas acreanos, representativos desse

    pensamento. No primeiro verso do poema, o letrado se encontra Abancado escrivaninha em

    So Paulo/ Na minha casa da rua Lopes Chaves e, de repente, d-se conta de que h uma

    realidade completamente diferente da sua. O poeta se comove com a situao do homem do

    Norte que, mesmo vivendo uma realidade diversa da sua, tambm brasileiro como ele. Tal

    certeza os une. Nesse poema, h a ideia de pertencimento, de que aquele pedao de Brasil to

    distante tambm dele, ou seja, h unio de brasis e de brasileiros que compartilham do

    mesmo passado e do mesmo presente, no importando de que parte do pas.

    A partir de 1924, portanto, Mrio de Andrade passa a se dedicar com mais intensidade

    pesquisa das manifestaes populares expressas no folclore. O escritor paulista procurava

    saber o significado de palavras presentes no vocabulrio nordestino a fim de compreender

    melhor a sua cultura; em carta de 1926, a Ascenso Ferreira, pediu esclarecimentos:

    Agora umas coisas. Tm nos poemas umas palavras que no compreendo e

    me interessam muito. Por favor, me mande contar o que significam: so:

    Ingonos, Tangerinos (gente de Tnger?), Japarandubas, sei pelo poema que

    nome de engenho, porm deve significar mais alguma coisa, rvore?; Covo

    e Jequi so lugares, ? Essas palavras me interessava conhecer bem em tudo

    o que significam.12

    A correspondncia confirma tambm o apreo de Mrio pela msica e sua percepo

    de que era preciso haver um relacionamento entre a cultura letrada (academias, sales,

    conservatrios) e a cultura popular, evidentes no seu texto Ensaio sobre a msica brasileira:

    O critrio histrico atual da Msica Brasileira o da manifestao musical que sendo feita

    por brasileiro ou indivduo nacionalizado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que

    estas esto? Na msica popular.13

    Mrio de Andrade propunha uma nova metodologia para se escrever msica erudita e,

    por essa razo, o seu empenho em coletar as expresses culturais do povo como fonte de

    criao de uma msica nacional com o fim de universaliz-la. Em carta pintora Anita

    12

    So Paulo, 2 de novembro de 1926 In INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 336. 13

    ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. 4 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 16.

  • 16

    Malfatti, em 1925, o pesquisador confessou que aplicava em sua msica o que recolhia do

    povo: [...] Estou trabalhando o Brasil [...] Dei tambm pra fazer modas e toadas feio dos

    cantadores rsticos copiando deles o que tm de aproveitvel.14

    Com aes diferentes para atingir o abrasileiramento das artes e do pensamento do

    pas, Gilberto Freyre e Mrio de Andrade no conseguiram estabelecer uma relao de

    amizade, muito menos por carta. No Arquivo do autor de Macunama, existe apenas um

    carto de visita, duas cartas e um bilhete do mestre de Apipucos.15

    Em carta de dezembro de 1926, Ascenso convidou Mrio a conhecer o Recife e

    mencionou que Gilberto Freyre poderia ajud-lo no meio intelectual pernambucano. A

    pesquisa no localizou a resposta de Mrio ao convite, mas em 8 de janeiro de 1927, Ascenso

    comentou:

    [...] no sei se valer a pena, em se tratando do Freyre... Em todo caso digo-

    te que vale a pena! Ele no um amigo como ns, cheio de sinceridades.

    Gosta de morder, tem a volpia de aperrear. Mas, um tipo muito

    interessante de escritor.16

    Em 7 de fevereiro de 1927, Mrio tentou explicar ao amigo seu posicionamento

    ressabiado em relao a Gilberto:

    Se eu falei no sei se valer a pena conhecer Gilberto Freyre porque me parece que ele no tem muita afinidade comigo e meio que me desdenha.

    No posso forar ningum a me querer bem, quanto a admir-lo isso outra

    coisa: admiro e estimo apesar dos belisces que vive dando na gente e que

    no tem a mnima importncia porque no me parece maldade, so de

    diferena de opinio e isso perfeitamente lcito.17

    Em 5 de janeiro de 1928, Mrio demonstrou, ao amigo Manuel Bandeira, que o

    relacionamento com Gilberto Freyre era distante. O escritor paulista pediu auxlio para

    elaborar trecho de Macunama:

    Olhe, pergunte como coisa de voc, pro Gilberto se ele sabe o nome de

    alguma rendeira clebre de Pernambuco ou do Nordeste qualquer. Se no for

    de Pernambuco ele que diga donde ela . pro Macunama. No diga que

    14

    So Paulo, 4 de outubro de 1925 In ANDRADE, Mrio de. Mrio de Andrade, Cartas a Anita Malfatti (1921-

    1939). Marta Rossetti Batista (Org.). So Paulo: Forense Universitria, 1989, p. 104. 15

    Para um estudo mais aprofundado das relaes entre Mrio de Andrade e Gilberto Freyre, consultar o ensaio

    de Antonio Dimas, Barco de proa dupla: Gilberto Freyre e Mrio de Andrade In FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. Ed. crtica de Guillermo Giucci, Enrique R. Larreta e E. Nery da Fonseca. Madri/Paris/So Paulo:

    ALLCA XX, 2002. 16

    Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 17

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 341.

  • 17

    coisa minha seno ele capaz de fazer perfdia e dar nome errado s pra ter

    o gosto de ler besteira.18

    Em 11 de dezembro de 1928, Manuel Bandeira intermediou o encontro entre Gilberto

    Freyre e Mrio de Andrade no Recife, fato narrado pelo escritor paulista em seu livro de

    viagens:

    [...] Almoo Ascenso. Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a

    Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe,

    maravilhoso, com vista da cidade, depois dos arrabaldes, o da Madalena,

    com os velhos cais das vivendas das famlias ricas antigas, alguns deliciosos

    de monumentalidade simples, os coqueiros sempre espantados.19

    Gilberto, pela vez dele, em seu dirio, expressou:

    M impresso pessoal de M. de A. Sei que sua obra das mais importantes

    que um intelectual j realizou no Brasil. Que entende de msica como um

    tcnico e no apenas como um artista intuitivo. Que une muita erudio

    intuio potica. Mas me parece artificial e postio em muita coisa. E sua

    pessoa o que acentua: o lado artificioso de sua obra de renovador das artes

    e das letras no Brasil. Seu modo de falar, de to artificioso, chega a parecer sem ser delicado em excesso. Alguns dos seus gestos tambm me parecem precrios. Mesmo assim, um grande, um enorme homem-orquestra, que est

    sendo para o Brasil uma espcie de Walt Whitman. Um semi-Walt

    Whitman.20

    nesse panorama literrio de conflitos e embates intelectuais que se estabeleceu a

    amizade epistolar, de quase duas dcadas, entre Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella

    Griz Ferreira.

    18

    ANDRADE, Mrio de; BANDEIRA, Manuel. Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira.

    Marcos Antonio de Moraes (Org.). So Paulo: Edusp/IEB, 2000, p. 372. 19

    ANDRADE, Mrio de. O Turista Aprendiz. 2 ed. Prep. Tel Ancona Lopez. So Paulo: Duas Cidades, 1983,

    p. 347. 20

    FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: trechos de um dirio de adolescncia e primeira mocidade

    1915-1930. So Paulo: Global; Recife: Fundao Gilberto Freyre, 2006, p. 286. Gilberto Freyre datou o trecho

    citado como 1927; equvoco do diarista, pois o encontro entre eles se deu em 11 de dezembro de 1928. As

    memrias do autor de Sobrados & mucambos devem ser lidas com certa cautela, pois sabido que muitas

    passagens foram escritas posteriormente s datas determinadas.

  • 18

    Dilogo epistolar: os caminhos da correspondncia

    Folclore partilhado

    Se no bastassem os seus versos, mais essa qualidade musical de voc bastava pra

    que eu no te largasse mais21, escreveu Mrio de Andrade na primeira carta que enviou a

    Ascenso Ferreira, em 2 de novembro de 1926. De fato, Mrio levaria a srio a afirmao, pois

    a correspondncia se estendeu at poucos meses antes de sua morte.

    O incio do dilogo epistolar foi favorecido pelo folclorista potiguar Lus da Cmara

    Cascudo. Em 1926, o futuro autor da Geografia dos mitos brasileiros encontrava-se no

    Recife, onde estudava na tradicional Faculdade de Direito. Dedicado ao estudo da cultura

    brasileira e ciente do interesse de Mrio de Andrade por assuntos do Norte e do Nordeste,

    Cascudo certamente viu Ascenso como um possvel colaborador do amigo paulista. Em carta

    de 24 de setembro de 1926, dirigindo-se a Mrio, descreveu o poeta pernambucano:

    So, forte, bom, inatual pelo carter, moderno pela sensibilidade. Nome do

    ex-livro Rosas de cinzas. Nome do livro no prelo Catimb. Deduza. Ascenso conhece bem o serto. O serto de Pernambuco possui a desvirtude

    de uma influncia estrangeira mais intensa que o meu. Ascenso quer ser seu

    amigo porque est teimando em continuar admirador. Mando versos do

    Ascenso. Endereo Tesouro do Estado Recife. Pernambucano.22

    Menos de dois meses depois da mensagem de Lus da Cmara Cascudo, Mrio de

    Andrade iniciava com Ascenso Ferreira uma correspondncia marcada pelo debate literrio,

    pelas afinidades no campo da cultura popular, mensagens que atestam a admirao mtua e a

    amizade que superam tenses e divergncias.

    Na primeira carta remetida a Ascenso Ferreira, Mrio de Andrade mencionou sua

    concepo de estudo de brasilidade e a noo de que tudo estava por ser feito na construo

    de uma legtima cultura nacional, rogando ajuda ao novo amigo.

    Mrio de Andrade julgava que era necessrio construir uma cultura genuinamente

    brasileira, e ele prprio buscava cumprir essa tarefa. Afinado com as ideias de Mrio, Ascenso

    Ferreira tinha interesse declarado por tudo aquilo que o povo poderia lhe oferecer. Esse saber

    foi reconhecido por Mrio ao pedir auxlio para as suas pesquisas musicais na carta inicial da

    correspondncia. O escritor explicou a sua rotina diria de dedicao aos estudos de msica,

    no s sobre maxixe como da msica brasileira em geral, exemplificou o plano de escrever

    21

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 336. 22

    ANDRADE, Mrio de. & CASCUDO, Lus da Cmara. Cmara Cascudo e Mrio de Andrade: cartas 1924-

    1944. Marcos Antonio de Moraes (Org.). So Paulo: Global, 2010, p. 120.

  • 19

    um livro sobre o assunto23

    e demonstrou plena conscincia dos percalos da tarefa, j que no

    havia praticamente nada feito at o momento:

    Voc compreende que um trabalho penosssimo e cheio de dificuldades

    quase intransponveis, s vezes devido a no haver nada feito at agora.

    Careo que toda a gente me ajude. J tenho encontrado alguns amigos que

    me tm servido muito, sobretudo gente do Norte. O Antnio Bento de

    Arajo Lima que o Cascudinho conhece, me tem sido um ajutrio

    inestimvel aqui. Voc no ter tambm a pacincia de me ajudar? O que eu

    quero isto: que todas as cantigas e danas nossas que voc conhecer e no

    for utilizar delas em livro, me mande pros meus estudos e uso. E mesmo as

    que voc quiser empregar em livro seu, pode mandar sem receio, que sou

    absolutamente honesto e s as estudarei sem as empregar ou, se o livro de

    voc tiver sado, empregarei com citao da fonte.24

    Com esse pedido, Mrio de Andrade reiterava a importncia das informaes sobre a

    cultura popular fornecidas por intelectuais nordestinos como impulso dinmico para as suas

    pesquisas e seus projetos sobre fala brasileira, folclore, expresses populares e msica

    nacional. Ascenso era convidado a integrar uma espcie de rede de informantes na qual j

    figuravam o paraibano Antnio Bento de Arajo Lima e Lus da Cmara Cascudo. De forma

    sutil, Mrio tentava incutir em Ascenso a ideia de que no era possvel se esquivar de tal

    empreitada indita e essencial para a cultura nacional, da qual, alis, j estavam participando

    amigos seus de outras paragens.

    Ascenso recebeu o pedido de Mrio e, bem sua maneira, gracejou com uma suposta

    ansiedade do escritor paulista em receber colaboraes recolhidas da cultura local: Eu lhe

    escrevo do tumulto da minha repartio de Fazenda. Fao um parntesis no trabalho forado

    para acudir ao chamado angustioso dessa alma de voc ansiosa de encantos e alucinada pela

    curiosidade!.25 Em 6 de dezembro de 1926, o poeta pernambucano enviou uma srie de

    cantos de trabalho oriundos do samba do matuto. Ascenso retirou as informaes do povo, ao

    comentar a sua ida a Palmares, sua cidade natal, para registrar cantos populares: Fui a

    Palmares. Peguei um modesto msico, o mestre da banda local, Jos Janurio, e consegui

    gravar as seguintes canes de trabalho muito em voga, as quais se no so bonitas, so

    absolutamente tpicas.26 Mrio assinalou todas as canes desta carta e as incluiu no livro

    Ensaio sobre a msica brasileira, registrando o nome do informante.

    23

    Compndio de histria da msica, publicado em 1929; o livro recebeu, em 1942, o ttulo de Pequena histria

    da msica brasileira. 24

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 336. 25

    [Recife, dezembro de 1926], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 26

    Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 20

    Em janeiro de 1927, Ascenso mais uma vez respondeu ao pedido de ajuda: Eu no

    tenho preguia de te ajudar, Mrio, e no pense vc. que o faa esperando qualquer

    recompensa a no ser o conforto de sua amizade to brasileira....27 Mostrou disponibilidade

    em auxiliar o interlocutor no que fosse possvel: No precisa, pois, voc discutir comigo.

    Basta que voc acuse a recepo de minhas cartas, pois o que eu quero ajud-lo e para faz-

    lo hei de arrancar msica at do Inferno.28 Em 7 de fevereiro de 1927, da Rua Lopes Chaves

    veio o agradecimento: No zanga comigo no, hein. Ascenso voc imagina como estou grato

    pra voc. As melodias que me tem mandado e as explicaes me deixaram entusiasmado e

    feliz.29 Na sequncia da carta, palavras de gratido e reconhecimento pela generosidade do

    amigo: [...] As melodias vm vindo graas a Deus e gente como voc das que mais me tm

    ajudado. Creio que vai sair coisa que presta e bem til se Deus quiser.30

    O incio da correspondncia entre os dois poetas foi marcado pela confirmao de

    amizade por meio de manifestaes de afeto, de agradecimentos e de elogios fervorosos. As

    estratgias de seduo intelectual permearam o dilogo entre os missivistas; Ascenso iniciou a

    carta de 8 de janeiro de 1927 com a forma de tratamento Bicho., o que sinaliza uma

    intimidade (epistolar) conquistada. Na carta seguinte, algo semelhante ocorreu com o uso de

    Mrio, meu neguinho.... A maneira como o poeta pernambucano se dirigia a seu

    destinatrio foi percebida e, em dado momento, Mrio se ressentiu de uma possvel mudana

    de tratamento ao longo da correspondncia:

    Imagine que at voc deixou de me chamar com os nomes gostosos e

    familiares de sempre na ltima carta e veio com um Meu bondoso Mrio to longnquo, to hiertico to desagradvel que fiquei num jejum danado

    do Ascenso verdadeiro que tanto quero e gosto!...31

    O largo saber folclrico de Ascenso Ferreira foi valioso para o aprimoramento da obra

    de Mrio de Andrade. Seu conhecimento de msica e sua capacidade e disposio de ir a

    campo procura do que despertava o interesse do autor de Macunama apareceram com

    vivacidade em meados de 1930, quando Ascenso se mostrou consciente da centralidade da

    sua colaborao:

    27

    Recife, 8 de janeiro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 28

    Idem. 29

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 337. 30

    Idem, p. 337. 31

    Idem, p. 346.

  • 21

    Voc bateu mesmo na porta de quem lhe podia dar o que voc queria. Penso

    no ser exagero em dizer-lhe haver em Pernambuco muito poucas pessoas

    capazes de o fazer e por uma razo somente: todas essas canes do passado

    esto profundamente atrapalhadas, e s os velhos as sabem de verdade. [...]

    E por hoje basta. Penso que voc no podia bater em melhor porta. Modstia

    a parte. E viva, bicho.32

    As cartas de Ascenso e Stella a Mrio trazem informaes referentes a danas

    dramticas, ao carnaval pernambucano, ao pastoril e msica, entre outros assuntos.

    Em algumas cartas do pernambucano, trazendo transcrio de canes do povo, Mrio

    anotou J aproveitada, sinalizando o uso delas em algum de seus trabalhos. Um exemplo

    ocorreu, em 16 de janeiro de 1930, quando Ascenso narrou a Histria da Cabra-Cabriola,

    personagem do imaginrio folclrico do Nordeste. No extenso relato transcrito na carta, ua

    viva tinha 3 filhos que deixava trancados em casa enquanto ia para o trabalho. A Cabra-

    Cabriola era um bicho medonho, de olhos de fogo e corpo lanzudo, que comia meninos

    quando topava com eles. A histria, integralmente, foi incorporada aos manuscritos As

    melodias do boi de Mrio de Andrade e depois transcrito no livro pstumo As melodias do boi

    e outras peas, obra organizada por Oneyda Alvarenga, em 1987, a partir dos papis reunidos

    pelo escritor.

    Stella Griz Ferreira tambm contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa folclrica

    de Mrio Andrade. Escreveu Ascenso, em duas oportunidades: As msicas Stella vai lhe

    mandar33; Stella tem msicas por desgraa pra mandar pra voc, as quais vo em carta

    registrada, amanh ou depois.34

    Stella mostrou-se disposta a colaborar no trabalho de colheita de msicas, receitas e

    simpatias de Pernambuco. Comunicou ao amigo em setembro de 1927:

    Vou copiar as suas msicas. Tenho mais duas: uma, um lindo canto de

    trabalho e a outra uma lenda muito interessante: a de uma menina que a

    madrasta matou e enterrou numa baixa de capim e quando o capinheiro ia cortar o capim ouvia uma voz que dizia: capinheiro de meu pai no me corte

    meus cabelos, etc. Voc sabe? Deve saber.35

    Esta lenda tambm pode ser lida em As melodias do boi e outras peas.

    Stella atendeu ainda aos pedidos de Mrio, enviando a histria Maria Borralheira e

    receitas de doces tpicos da culinria pernambucana. O Arquivo de Mrio de Andrade, do

    32

    Recife, 16 de janeiro de 1930, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 33

    Recife [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 34

    Recife, 7 de outubro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 35

    Recife, [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 22

    IEB-USP, preserva o material enviado por Stella Griz Ferreira, principalmente na Srie

    Manuscritos de Mrio de Andrade, que congrega trabalhos em processo do escritor em

    diversas reas.

    Processo de criao

    O dilogo epistolar pode expor etapas do processo de criao artstica e ensastica dos

    missivistas, transformando a correspondncia em um frtil laboratrio da criao.36 A

    carta pode tambm fornecer matrizes de um determinado escrito; verses abandonadas de um

    texto; justificativas de escolhas ou de recusas na elaborao de uma obra etc.

    Os carteadores muitas vezes trocam opinies, sugerem mudanas nas obras em

    processo ou oferecem subsdios para obras in progress do interlocutor. o caso da carta de

    Ascenso Ferreira, de 8 de janeiro de 1927, ao mencionar A gramatiquinha da fala brasileira,

    obra de Mrio de Andrade que permaneceu inacabada e indita: Tenho, tambm muitos

    termos que lhe poderiam servir para a gramatiquinha da fala brasileira. Vou dar-lhe uma

    amostra de interessantes nomes de molstias: o pela-quem-quem, o bute-caiana, a Erisipa, o

    roda.37

    Na mesma carta, Ascenso instigou Mrio a conhecer o Recife, mencionando as

    mangas de Itamarac: A sua carta fala-me de mangas! Mangas amarelas de So Paulo que

    enlambuzam o sol! Ai! Se voc visse as mangas de minha terra! Se provasse o impossvel das

    mangas de Itamarac!.38 As referncias oferecidas por Ascenso foram utilizadas por Mrio

    para recriar a lenda das mangas de Itamarac no sexto captulo da rapsdia Macunama

    (1928), A francesa e o gigante. O escritor adaptou as informaes do amigo: Em Itamarac

    Macunama passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dzia de manga-jasmim

    que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem.39

    Informaes que Ascenso, em fevereiro de 1928, ofereceu a Mrio, em cartas,

    ressurgiram em Macunama, no terceiro captulo da rapsdia, Ci, Me do Mato, com a

    presena de esclarecimentos em relao s rendeiras nordestinas. Ascenso ensinou:

    Rendeira coisa muito humilde, no chegando mesmo a ser pessoa.

    Entretanto eu cavei, com um amigo coronel, muito amante dessas tradies,

    36

    MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mrio de Andrade. So

    Paulo: Edusp/FAPESP, 2007, p. 92. 37

    Recife, 8 de janeiro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 38

    Idem. 39

    ANDRADE, Mrio de. Macunama, o heri sem nenhum carter. Texto estabelecido por Tel Ancona Lopez

    & Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 68.

  • 23

    as seguintes informaes: As irms Felinta e Maria Rodrigues de Rio

    Formoso, Pernambuco, falecidas h coisa de 2 anos, peritas trocadeiras de

    bilros. Joaquina Leito, conhecida por Quinquina Cacunda (Corcunda),

    falecida em So Jos da Coroa Branda, Pernambuco, h cerca de 10 anos.

    Vivas talvez venham do Cear e vivas daqui s esperando mais alguns dias,

    para tomar informaes com os Coletores dos Lugares onde se fabrica renda:

    Caruaru e Gravat. Escreverei.40

    Em Macunama, l-se:

    Todos agora s matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar para ele em

    So Paulo os famosos sapatinhos de l tricotadas por dona Ana Francisca de

    Almeida Leite Morais e em Pernambuco as rendas Rosa dos Alpes, Flor de Guabiroba e Por ti padeo tecidas pelas mos de dona Joaquina Leito, mas conhecida pelo nome de Quinquina Cacunda.

    41

    Em 27 de maio de 1928, Mrio solicitou colaborao do amigo pernambucano para o

    desenvolvimento de seu projeto O Sequestro da Dona Ausente, que pretendia estudar a

    ausncia da mulher nas expresses folclricas luso-brasileiras:

    At descobri uma coisa de que falo pra voc com absoluta reserva, peo pois

    no contar isso por enquanto pra ningum. Voc no conhece por a alguma

    cano de qualquer gnero, cantiga de roda, toada, coco, maracatu, tudo

    serve tratando de mulher que vem por mar, mulher que vem em barca,

    mulher que atravessa rio pra chegar junto da gente, enfim mulher

    embarcada? O assunto geral esse: Mulher ausente que afinal chega de

    outro lugar. Escarafunche bem na sua memria pra ver se encontra versos e

    cantigas a esse respeito. E me mande tudo que encontrar por mais

    desinteressante que seja. O tema que interessante e foi descoberto por

    mim. Vou tratar dele num opsculo especial. J indico esse opsculo entre as

    obras por publicar que vm indicadas no Macunama (pra junho) porm s

    indico o ttulo Sequestro da Dona Ausente sem indicar do que se trata.42

    Ascenso procurou auxili-lo, enviando alguma colaborao: No conheo nada de

    mulher que est pra chegar, apenas sei de uma cano que diz assim: A mar encheu/ A mar

    vazou/ Cad minha mulata/ Que ainda no chegou!.43

    A correspondncia revela que Ascenso, assim como Mrio, tambm aproveitou a carta

    como espao de compartilhamento de ideias, para expor suas intenes, planos e projetos.

    40

    Recife, 29 de fevereiro de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 41

    ANDRADE, Mrio de. Macunama, o heri sem nenhum carter, pp. 34-35. 42

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, pp. 346-347. 43

    [Recife], 14 de julho de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. Os versos

    enviados por Ascenso, pelo que constatou esta pesquisa, no foram includos por Mrio de Andrade nos

    documentos reunidos do manuscrito O sequestro da Dona Ausente (Arquivo Mrio de Andrade, Srie

    Manuscritos de Mrio de Andrade, IEB-USP).

  • 24

    Ascenso mostrou-se aberto ao dilogo crtico com o modernista de So Paulo. Na

    primeira carta do conjunto, Mrio escreveu:

    Uma coisa porm no posso sem falar. O poema Maracatu que positivamente uma gostosura de ritmo e de som e com um mistrio cheio de

    lirismo, tem uma coisa que me desagrada. o verso Onde estou eu quebrando o ritmo tanto do metro geral do poema como de ritmo do refro.

    verdadeiramente uma pena. Voc me avisa que tem msica e est no livro.

    ouro sobre azul e sei que o ritmo musical pode muitas vezes fazer ficar

    ritmicamente certo um verso quebrado. Porm isso s pra quando o poema

    for cantado.44

    O exame da correspondncia marioandradiana ajuda a identificar os ideais do autor em

    relao lngua, msica e, no caso, potica que deveriam ser feitas no Brasil, no s por

    ele mas tambm pelos outros intelectuais. Pela leitura das sugestes e dos aconselhamentos

    que destinava aos amigos/interlocutores, vislumbra-se a lgica de seu pensamento. Sabe-se

    que alguns comentrios no eram pura e simplesmente endossados, mas o fato de haver

    rplicas de recusa (s vezes longas, s vezes veementes) revela que ocorriam ao destinatrio

    momentos de meditao e de apreciao da relevncia da mensagem. Mrio partilhava suas

    ideias, recorrendo ao tom pedaggico, ao apontar os caminhos que poderiam ser escolhidos

    pelos mais novos ou os da sua gerao.45

    Negar os alvitres de Mrio tambm fazia parte da

    busca de uma dico particular.

    Ascenso, inicialmente, recusou a opinio do poeta paulista: H, realmente, uma

    quebra de ritmo no refro do meu Maracatu. Aquele Loanda, Loanda, onde estou eu destoa

    do ritmo geral, porm nas toadas do maracatu mesmo assim, e eu compus o poema ao som

    da toada da qual envio uma cpia p. voc.46 Porm, em outra carta, aps refletir um pouco

    mais, aceitou as sugestes: O Loanda, Loanda j est consertado de acordo com o teu

    sabor.47

    Em setembro de 1927, Ascenso escreveu:

    O meu livro [Catimb] est sai-no-sai e logo que o bote na rua seu Ascenso vai fazer um trabalho que julga digno de todo o cuidado: Eu quero estudar o grande movimento lrico do hoje chamado samba do matuto, o qual est tomando um incremento notabilssimo, chegando ao

    44

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 335. 45

    Ver a esse respeito o livro de Marcos Antonio de Moraes Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de

    Mrio de Andrade. So Paulo: Edusp; Fapesp, 2007. 46

    [Recife, dezembro de 1926], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 47

    Recife, 8 de janeiro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 25

    ponto de no haver mais ncleo rural sem possuir o seu Mestre de Samba.48

    Percebe-se, ento, que a criao um contnuo processo que recebe formulaes

    constantes por meio de novas leituras, novas ideias, opinies de outros indivduos presentes

    no cotidiano do criador.

    Em maro de 1930, Ascenso pediu ao amigo que se posicionasse em relao ao

    prefcio escrito para a obra Cana caiana: Junto te envio um ligeiro prefcio que fiz para o

    livro. [...] Responde urgente se devo por o prefcio.49 Em outra carta, novamente exigiu um

    julgamento sincero, reiterando os laos de amizade: Preciso que tu me mandes com urgncia

    dizer algo sobre a introduo do Cana caiana, que te enviei. Tenho de mandar o livro para a

    impresso. Peo sinceridade. Tu sabes que nesta coisa de arte ns somos mesmo que

    irmos.50 Em 4 de abril de 1930, a ansiedade do pernambucano chegou ao fim aps receber

    carta de So Paulo, no localizada pela pesquisa: Muito obrigado por sua lealdade de amigo.

    Eu j esperava que fosse esse seu pensamento, e, por isso, no quis publicar o prefcio antes

    de ouvir sua opinio.51 A sugesto de Mrio de Andrade foi acatada, e o livro veio a lume em

    1939 sem que o prefcio figurasse em suas pginas.

    A correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira reflete igualmente a atuao

    episdica do escritor recifense na crtica literria e artstica. Mrio guardou, em seu arquivo,

    artigos do amigo acerca de Amar, verbo intransitivo (1927) e Cl do jabuti (1927)52

    de

    Macunama (1928). A pesquisa tambm localizou crticas de Ascenso a obras de Jorge de

    Lima, de Cassiano Ricardo, de Antnio de Alcntara Machado e de Tarsila do Amaral.53

    O autor de Catimb apontou desajustes no poema Lenda do Cu, presente em Cl

    do Jabuti: Fiquei doente com v. no ter botado fumo no cu do caboclo. Onde que v. viu

    48

    Recife, [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 49

    Recife, [maro de 1930], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 50

    [Recife, anterior a 4 de abril de 1930], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 51

    [Recife], 4 de abril de 1930, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 52

    Os artigos escritos por Ascenso Ferreira receberam os seguintes ttulos: Mrio de Andrade o Revoltoso: Amar, verbo intransitivo (Recife, Jornal do Commercio, 3 de abril de 1927); Cl do Jabuti (Recife, Revista da Cidade, 4 de fevereiro de 1928), Arquivo Mrio de Andrade, Srie Matrias Extradas de Peridicos, IEB-

    USP; Brasilidade e dinamismo a propsito de Macunama de Mrio de Andrade (Recife, A Provncia, 18 de novembro de 1928) (Coleo Carlos Alberto Passos, IEB-USP). 53

    Todos os artigos foram publicados na Revista da Cidade, respectivamente Jorge de Lima: Poemas em 18 de fevereiro de 1928 (Publicaes Digitalizadas da Fundao Joaquim); Martim Cerer em 28 de julho de 1928 (Publicaes Digitalizadas da Fundao Joaquim); Path Baby em 14 de abril de 1928 (Arquivo Antnio de Alcntara Machado, Srie Matrias Extradas de Peridicos, IEB-USP); Tarsila em 21 de janeiro de 1928 (Coleo de Artes Visuais, IEB-USP).

  • 26

    cu de caboclo sem fumo? Te dana.54 Mrio diante da restrio do amigo, aprofundou o

    debate:

    [...] Sei to bem como voc quanto o fumo inerente ao homem brasileiro

    caboclo e se tivesse me lembrado disso tinha botado ele na poesia. Porm se

    no est isso no tem importncia porque em toda enumerao sinttica de

    lirismo, o que no est presente est implcito. Pegue no Serto por exemplo e j se pode fazer uma crtica nesse sentido mostrando tudo o que

    voc no botou na poesia e que essencial da psicologia que voc quis fazer.

    Porm est implcito no poema e por isso ningum no se lembra agora de

    estar perdendo tempo em lembrar. No tem poesia neste mundo que resista a

    uma crtica dessa ingenuidade. Se tivesse me lembrado do fumo de certo que

    tinha botado ele no que seja defeito sem ele porm porque era um elemento

    bom como evocao. Me esqueci, pacincia.55

    Em relao a Macunama, Ascenso escreveu em carta: Muito agradecido pela

    incluso de meu nome modesto entre tantos macumbeiros ilustres.56 No livro, no captulo

    Macumba, o nome do poeta aparece junto ao de Jaime Ovalle, Dod, Manuel Bandeira,

    Blaise Cendrars, Raul Bopp e Antnio Bento. Outras obras literrias mereceram

    consideraes do poeta, nas cartas, como Brs, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China de

    Antnio de Alcntara Machado e O quinze de Rachel de Queiroz, s para citar dois escritores

    relevantes. Casa-grande & senzala, escrito pelo socilogo e antroplogo Gilberto Freyre,

    figurou em missiva imediatamente enviada aps a sua publicao, em 1933: A nota do dia

    o livro do Gilberto Freyre. Ainda no o li, mas me agradou muito um pedao no qual ele

    assevera que os senhores de engenho antigos deixavam a mesa, acendiam o charuto,

    deitavam-se nas redes, cuspindo no cho e peidando... Gozadssimo e profundamente real.57

    A pesquisa tambm logrou descobrir que Stella escrevia versos. Filha, irm e esposa

    de poetas, Stella enviou, em 9 de outubro de 1936, um dos seus trabalhos, o poema Mulher,

    conservado por Mrio de Andrade entre seus papis58

    .

    No Arquivo de Ascenso Ferreira sob a guarda da Fundao Joaquim Nabuco, no

    Recife, dois poemas assinados por Stella foram localizados: Confisso, publicado no Jornal

    do Commercio e Natal, em A Seleta.59 Artigos da poca tambm se referem atuao de

    54

    [Recife, anterior a 28 de dezembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 55

    ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, pp. 343-344. 56

    Recife, 26 de agosto de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 57

    [Recife], 15 de maro de [1934], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 58

    V. Srie Matrias Extradas de Peridicos no Arquivo de Mrio de Andrade, IEB-USP. 59

    Infelizmente, os recortes de jornal no esto datados. Transcrio do poema Confisso: Que s tu para mim?/ Vou te dizer baixinho: Vida!// Gosto de fechar bem os meus olhos/ quando a saudade me vem falar de ti.// Por que ser?// que tu vives no meu ser/ na minhalma,/ fechos os olhos/ para te sentir melhor.// Que s tu

    para mim?/ Vou te dizer bem alto: Vida!. Os versos de Natal so: Jesus menino no seu bero humilde/

  • 27

    Stella na imprensa local. Em julho de 1944, o texto Ascenso Ferreira & Cia, assinado por

    F.G., publicado no Boletim da C.G.P.60

    discorreu sobre Stella:

    A esposa de Ascenso Ferreira o tipo da senhora que, alm de ser uma

    excelente dona de casa, tambm conhecedora profunda da poesia, pintura e

    msica; aprecia a matemtica e acompanha com interesse o desenvolvimento

    da guerra atual. No somente uma apaixonada da poesia, como tambm

    poetisa: faz como o seu marido poesia modernista. Porm, h 5 anos no faz

    mais poesia, porque um gurizinho toma todo o seu tempo.61

    Viagens pelo Brasil

    O dilogo epistolar travado entre Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella Griz

    Ferreira, tambm historia a viagem de Mrio ao Nordeste em 1927 e 1928/9, a de Manuel

    Bandeira em 1927 ao Recife e tambm a ida de Ascenso a So Paulo, em 1927. Nesta ltima,

    com Manuel e Mrio, Ascenso seguiu para a Fazenda Santa Tereza do Alto, propriedade de

    Tarsila do Amaral. Na capital paulista, Ascenso travou conhecimento com Oswald de

    Andrade e Lasar Segall. Essa estadia no Sudeste do pas valer cartas de agradecimentos

    hospitalidade e impresses sobre os intelectuais modernistas: Minha saudade de vocs

    enorme. S. Paulo mesmo a capital artstica do Brasil. Aguarde minhas crnicas. No direi

    mais para no melindrar os cariocas, que tambm foram muito gentis para comigo.62

    Em 1927, Mrio de Andrade, juntamente com D. Olvia Guedes Penteado, rica

    senhora da sociedade paulista e mecenas dos modernistas, Margarida Guedes Nogueira

    (Mag), sua sobrinha, e Dulce do Amaral Pinto (Dolour), filha da pintora Tarsila do Amaral,

    percorreram o interior dos Estados nortistas e chegaram at Iquitos, no Peru. nessa viagem

    que aconteceu um desencontro entre Ascenso e Mrio, que no avisou ao poeta de Catimb

    acerca de sua passagem pelo Recife. Ascenso comentou aps os nimos acalmados:

    Contava poder obsequiar melhor vc. e D. Olvia, oferecendo a vcs. uma festa

    tpica, com carter absolutamente nordestino. Para isso eu esperava que vcs.

    me avisassem do dia da passagem, mode poder juntar o pessoal... [...] Eu

    mandara at pintar a casa e arranjara um cozinheiro conhecedor profundo da

    tradio. [...] A pintura da casa no era por sua causa, vc. bem sabe, mas por

    causa de D. Olvia, diante de quem no queria parecer to Jeca...63

    Perfumado/ Pelo amor/ de Maria e Jos!// Jesus to grande na misso do Pai! E o homem/ guardando para Ele/ o

    espinho e o madeiro!// Jesus homem feito: Amor e Verdade/ ensinando/ mostrando/ o caminho/ da Vida e do

    Bem!// Jesus amando... sofrendo... chorando por todos ns!/ Entretanto/ todos ns temos feito to pouco por amor a Ele// Ns que queremos tanto:/ O cu!. 60

    rgo da Campanha do Ginasiano Pobre, segundo Luiz do Nascimento em Histria da Imprensa em

    Pernambuco (1941-1954), v. 10. 61

    Artigo encontrado entre a documentao pertencente a Ascenso Ferreira na Fundao Joaquim Nabuco. 62

    [Recife, posterior a 28 de dezembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 63

    Recife, [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 28

    As viagens ao Norte e ao Nordeste do pas foram essenciais para que Mrio de

    Andrade pusesse em prtica as ideias de construo da cultura nacional, engendrada por meio

    de muito estudo, reflexo, anlise e interpretao das manifestaes do povo brasileiro. O

    passado nacional e a pesquisa das expresses populares deveriam ser estudados para que a

    essncia da brasilidade pudesse ser utilizada no momento de criao. Mrio lamentava o

    descaso de muitos pensadores brasileiros em relao nossa cultura e expressou esse

    descontentamento no livro Ensaio sobre a msica brasileira (1928): Pode-se dizer que o

    populrio musical brasileiro desconhecido at de ns mesmos. Vivemos afirmando que

    riqussimo e bonito. Est certo. S que me parece mais rico e bonito do que a gente imagina.

    E sobretudo mais complexo.64

    Eventos polticos e amizade

    Nas cartas trocadas, Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira

    comentaram os fatos marcantes do pas como a Revoluo de 1930, a Revoluo

    Constitucionalista de 1932 e a nomeao de interventores indicados pelo presidente Getlio

    Vargas. Estes episdios causaram grande impresso nos missivistas. A correspondncia

    permite apreender como Mrio, Ascenso e Stella pensaram e sentiram os acontecimentos

    polticos da dcada de 1930 no Brasil.

    Durante as negociaes de sucesso presidencial de 1930, So Paulo e Minas Gerais

    romperam a aliana conhecida como poltica do caf com leite ao divergirem em relao

    indicao do candidato ao poder. Os paulistas apoiaram Jlio Prestes e os mineiros se ligaram

    s oligarquias da Paraba e do Rio Grande do Sul na chamada Aliana Liberal e indicaram

    Getlio Vargas como candidato presidncia e Joo Pessoa, vice-presidncia.

    Nas eleies de 1930, Jlio Prestes saiu vitorioso, mas no chegou a tomar posse. Em

    3 de outubro do mesmo ano, a Aliana Liberal articulou e apoiou a ecloso da Revoluo de

    1930 em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Nordeste. Em 24 de outubro de 1930, o Palcio

    da Guanabara foi cercado e o presidente Washington Lus deposto.

    Os acontecimentos, aqui descritos de forma sucinta, foram vistos por Ascenso com

    entusiasmo. O poeta contou como irrompeu a Revoluo de 1930 em terras pernambucanas:

    Aqui o queima foi danado e quem fez a revoluo foi realmente o povo. De Pernambuco

    dependeu a queda de todo o Norte. E j que contaste tua odisseia, na qual eu muito pensei,

    64

    ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. 4 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 17.

  • 29

    passo a contar-te a minha.65 Ascenso narrou sua viagem a trabalho, um servio fiscal de

    ordem do Governo, na fronteira com a Paraba, ocorrida durante os fatos. Depois de ter sido

    parado e revistado em diversas cidades, conseguiu retornar ao Recife em pleno fogo.

    Entretanto, Ascenso no encontrou imediatamente Stella, que ficara na casa de seu pai, na

    zona de maior fuzilaria, prximo do quartel do Derby.

    Na mesma carta de 25 de novembro de 1930, a excitao pelos eventos deflagrados

    apareceu em afirmaes de defesa ao novo governo como: Enfim, pessoalmente eu nada

    sofri, e pude mesmo gozar a esttica revolucionria, que foi maravilhosa e Enfim tudo

    passou e o novo governo vai muito bem, graas a Deus, e foi de uma humanidade estupenda

    para os vencidos. Ascenso perguntou ao amigo como estava a situao em So Paulo e a

    recepo dos paulistas diante da nomeao do interventor Joo Alberto. Por fim, solicitou um

    posicionamento de Mrio Manda dizer se voc est bem com ele.

    Em 2 de janeiro de 1931, Ascenso escreveu palavras tranquilizadoras sobre os

    desdobramentos que a Revoluo poderia causar na sua carreira de escriturrio do Tesouro do

    Estado de Pernambuco: Aqui tudo em paz. Meu emprego no periga, salvo se viesse

    qualquer mudana de interventor, o que no acho provvel, pois em Pernambuco a revoluo

    continua a ser um fato.66 O desempenho do interventor Carlos de Lima Cavalcanti, em

    Pernambuco, foi visto por Ascenso de forma positiva: O nosso interventor MADEIRA DE

    LEI. Bicho moo, bem intencionado e cheio de nobres execues. O povo est satisfeito.

    Meses depois, a decepo de Ascenso diante dos artistas plsticos e dos msicos

    recifenses se deflagrou: A revoluo que foi formidvel de pitoresco e maravilhosa de

    esttica no inspirou as bestas dos pintores daqui nem um quadro sequer e nem uma cano

    aos musicistas.67 Para Ascenso, a intelectualidade pernambucana no soube aproveitar os

    acontecimentos ocorridos para renovar as artes e quebrar paradigmas.

    Aps assumir o governo em carter provisrio, Getlio Vargas protelou a

    constitucionalizao do pas e as eleies livres. Esses fatos aliados ao alijamento da

    oligarquia paulista, desencadearam a Revoluo de 1932.

    Em 19 de dezembro de 1932, cinco meses aps a Revoluo de 1932, Stella se

    mostrou receosa de um possvel rompimento dos laos de amizade com Mrio, j que os

    paulistas no conseguiram cooptar os demais Estados do pas na luta contra o governo

    provisrio de Getlio Vargas:

    65

    [Recife], 25 de novembro de 1930, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 66

    Recife, 2 de janeiro de 1931, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 67

    [Recife], 10 de agosto de 1931, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 30

    Mrio, eu tenho ainda uma alegria grande em lhe assegurar que nem todo

    brasileiro do Norte tem esse dio pequenino por S. Paulo. Esse dio que no

    mais do que uma vergonhosa inveja. Felizmente, graas a Deus, nem todo

    nortista pensa pela mesma cabea. So vrios os semblantes e vrios so os

    coraes e os crebros. Por Deus, eu no lhe digo isso para lhe ser agradvel.

    Sou absolutamente sincera e sincera sempre que falar para voc.68

    Nesse quadro conflituoso, o estado de So Paulo foi visto como inimigo do restante do

    Brasil. Em carta de junho de 1933, Mrio ao se referir sobre uma possvel Constituinte no pas

    reafirmou que So Paulo estava de um lado e o Brasil de outro: Aumenta a animosidade

    entre brasileiros e paulistas.69 Por fim, explicou os motivos de no ir at o Nordeste naquele

    momento por temer questionamentos sobre o separatismo paulista: No estou absolutamente

    disposto a encontrar algum brasileiro indiscreto que me pergunte sobre como vai o

    separatismo aqui ou se sou separatista.

    Afetos e divergncias

    Alm das discusses acerca da criao potica e das manifestaes folclricas e

    populares, do testemunho de viagens e da vida poltica brasileira, o dilogo epistolar entre

    Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira foi marcado por momentos em que

    o cotidiano surgiu, em que sentimentos foram expostos de forma contundente.

    Stella lamentava as ausncias de Ascenso, sentimento apaziguado pelo recebimento de

    palavras de amizade: Me ajuda Mrio, manda uma carta pra mim mode ir matando essas

    durezas da minha vida.70 Em outra mensagem, Stella rogou o envio de algumas palavras do

    amigo paulista como forma de suavizar as distncias: Tenho uma grande saudade de voc, e,

    as cartas sempre enganam a gente. Aqui o povo diz enganar no sentido de mitigar,

    suavizar.71

    As angstias de Mrio durante sua estadia no Rio de Janeiro aps o afastamento do

    Departamento de Cultura da Municipalidade de So Paulo tambm foram retratadas em cartas

    trocadas, principalmente, com Stella. Ao lado de Oneyda Alvarenga e de Henriqueta Lisboa,

    Stella se configurou como mais uma interlocutora disposta a compartilhar as frustraes

    narradas por Mrio. A missivista teceu mensagens reconfortantes aliadas ao tom fraternal:

    68

    Limoeiro do Norte, 19 de dezembro de 1932, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 69

    So Paulo e So Joo [24 de junho] de 1933. In INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em

    Pernambuco. v. 3, p. 352. 70

    Recife, 1 de dezembro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 71

    [Recife, dezembro de 1937], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 31

    Sempre e sempre penso em voc. Sei bem, no precisa me falar, que a nesse

    Rio voc no sente a alegria da sua vida de S. Paulo. [...] L se vai, de

    quando em vez, o meu pensamento para voc e como num carinho de me eu

    queria consolar a sua cabea no meu colo e botar para longe todas essas

    tristezas que matam esse seu sorriso to bonito. Voc um amigo irmo, um

    filho a quem eu aprendi a querer muito bem.72

    O trecho acima recebeu resposta desesperanada, prpria de um indivduo dilacerado

    pelas circunstncias:

    Sua carta suave, quente, murmurante, escuto bem nela a doce voz de voc

    que das coisas mais preciosas do meu mundo. [...] Anda minha irmzinha

    querida, fala para eu sarar! Ando vazio, Stella, completamente

    inconsequente. Bebo, ando bebendo muito pra esquecer que mal? no sei.

    No sei o que que eu tenho ou que no tenho. um grande mal vagarento,

    um enorme desgosto escuro, uma espcie de arrependimento de crimes no

    cometidos, a ntida conscincia de um formidvel pecado que no sei qual

    .73

    O poeta de Catimb tambm se valeu da carta para exprimir os pormenores de seu

    pensamento, permeado de afetos. Ascenso exps seu descontentamento em face da publicao

    da entrevista cedida a Manuel Bandeira, Um poeta do Nordeste, em 1 de janeiro de 1928,

    n O Jornal: Botou sempre umas sacanagens que, felizmente, s eu entendo. O menininho

    quer mostrar que j tem teso na bimbinha....74 Entretanto, pouco mais de um ms depois, o

    tom empregado era outro: A sacanagem que o Bandeira fez comigo, longe de me magoar, me

    fez gozar como o diabo. Ela foi toda sem malcia, e no a explico para no me tornar

    maante.75

    Consideraes finais

    A edio da correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz

    Ferreira aponta para um rico manancial de explorao no campo dos estudos

    interdisciplinares, mobilizando questes literrias, histricas, do memorialismo, da sociologia

    da cultura.

    O presente trabalho tencionou contribuir para a ampliao do conhecimento das redes

    de sociabilidade no modernismo tanto quanto oferecer elementos testemunhais para o estudo

    72

    Recife 17 de julho de 1940, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 73

    Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1940 In Os Andrades e outros aspectos do modernismo, Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 1975, pp. 212-213. 74

    Recife, 19 de janeiro de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 75

    Recife, 10 de fevereiro de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.

  • 32

    da obra dos interlocutores e de seus processos de criao. Os documentos epistolares reunidos

    nesta pesquisa contribuem, particularmente, para que se compreenda melhor aspectos do

    projeto marioandradiano de construo de uma cultura brasileira.

    Esta edio

    O estabelecimento do texto das cartas de Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella

    Griz Ferreira orientou-se pelas normas previstas na Coleo Correspondncia Mrio de

    Andrade (Edusp/IEB), coordenada pelos Profs. Drs. Tel Ancona Lopez, Marcos Antonio de

    Moraes e Tatiana Longo Figueiredo. O trabalho norteou-se pelas seguintes diretrizes

    metodolgicas: a) atualizao do texto das cartas, de acordo com a norma ortogrfica vigente;

    b) respeito pontuao; c) eventuais intervenes no texto das missivas foram explicitadas

    em nota de rodap; d) abreviaes e abreviaturas foram mantidas para preservar o fluxo da

    escrita, revelador do grau de intimidade dos missivistas; e) respeito s locues nominais,

    verbais e adverbiais diz-que, bom-dia, arranhacu etc., quando sinalizavam aspectos do

    projeto lingustico nacionalista dos interlocutores; f) preservao das idiossincrasias

    lingusticas de Mrio de Andrade, assim como de sua particular maneira de grafar nomes

    prprios, como, por exemplo, Osvaldo (Oswald de Andrade) etc.; g) uso de itlico nos

    ttulos de livros, manuscritos, quadros, esculturas, filmes, peas de teatro ou composies

    musicais, peridicos, nomes de navios etc.; ttulos de poemas e de contos aparecem entre

    aspas, de acordo com a norma bibliogrfica vigente; h) na impossibilidade de leitura de

    algumas palavras, optou-se pela colocao de [ilegvel]; vocbulos ou expresses entre

    colchetes apontam para possibilidades de leitura; i) manuteno dos sublinhados e das

    solues grficas dos autores; j) dados atestados (locais e datas) foram colocados entre

    colchetes; l) ao final de cada carta, foram descritas as caractersticas documentais (anlise

    documentria), a fim de se registrar a materialidade das mensagens, visto que tambm so

    produtoras de sentido no dilogo epistolar.

    A elaborao de notas da pesquisa tencionou elucidar dados biobibliogrficos de

    personalidades, eventos culturais/histricos, expresses da poca e/ou regionais e fatos

    tratados pelos missivistas, a fim de proporcionar ao leitor uma compreenso mais clara e

    aprofundada da correspondncia. Nesse sentido, valeu-se, alm de fontes bibliogrficas, da

    consulta no arquivo e na biblioteca de Mrio de Andrade, sob a guarda do Instituto de Estudos

    Brasileiros (IEB-USP), recuperando documentao de fonte primria (manuscritos,

    marginlia em livros, dedicatrias, fotos, matrias extradas de jornais e revistas); a descrio

  • 33

    documentria dos manuscritos foi recuperada do Catlogo Eletrnico Mrio de Andrade,

    IEB-USP, cujas pesquisas foram coordenadas pela Profa. Dra. Tel Ancona Lopez, no IEB-

    USP, entre 1989 e 2003 e resultaram na Organizao da Srie Correspondncia de Mrio de

    Andrade, Auxlio Pesquisa FAPESP e VITAE, 1989-94, no Catlogo da Srie

    Correspondncia de Mrio de Andrade, Auxlio Pesquisa VITAE, 1995-96, no Preparo para

    publicao do Catlogo da Srie Correspondncia de Mrio de Andrade, Auxlio Pesquisa

    VITAE, 1996-97 e no Preparo para publicao do CD-ROM da Srie Correspondncia de

    Mrio de Andrade, Auxlio Pesquisa VITAE, 2000-3. Textos inditos em livros, citados nas

    cartas, como artigos e outros escritos, compe um Dossi ao final da dissertao.

    A leitura minuciosa da correspondncia trocada entre Mrio de Andrade e Ascenso

    Ferreira e Stella Griz Ferreira, tendo em vista a elaborao de notas de pesquisa, propiciou a

    reordenao cronolgica das cartas (atestando-se mensagens no datadas) e favoreceu a

    apreenso das linhas de fora do dilogo.

  • 34

    Referncias bibliogrficas

    Obras de Mrio de Andrade

    ANDRADE, Mrio de. Amar, verbo intransitivo: idlio. Texto estabelecido por Marlene

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    __________. Aspectos da msica brasileira. So Paulo: Martins, 1965.

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    __________. Cartas a Murilo Miranda. 1934/1945. Ral Antelo (Org.). Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira, 1981.

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    pelo destinatrio. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.

    __________. Cartas de Mrio de Andrade a Prudente de Moraes, neto. 1924/1936. Georgina

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    Ed. Itatiaia; Braslia: INL, Fundao Nacional Pr-Memria, 1982. 3 vol.

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