direito administrativo no brasil
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O presente estudo tem por escopo a análise do movimento de formação do Direito Administrativo brasileiro que, como mais recente solução, apresentou o formato das parcerias público-privadas como principal ferramenta no ataque a problemas estruturais do Estado brasileiro. Busca-se, dessa forma, entender a caminhada histórica que, bem guiada, levará o Estado do “Leviatã” para o “Übermensch” - , explorando mais detidamente o que o movimento de distanciamento e aproximação de institutos de Direito Privado, contribuindo para o aperfeiçoamento da relação entre a Administração e seus Administrados, em perfeita harmonia com o que se entende, atualmente, por obrigações do Estado Pós-Social. Ao propor tais análises, enfrenta-se o problema da “dinâmica do colapso” relacionado ao Direito Administrativo Brasileiro, a fim de entender os motivos pelos quais novas soluções foram necessárias ao destravamento da máquina pública, o que pode ser percebido pela maior participação de entes privados em atividades historicamente exploradas exclusivamente pela Administração. O objetivo final deste trabalho é comprovar que a atuação direta do Estado não é a melhor ferramenta para todas as questões existentes no universo econômico-social, sendo certo que seu uso racional representa otimização das relações humanas e maior liberdade para o desenvolvimento da coletividade.TRANSCRIPT
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
DIREITO ADMINISTRATIVO NO BRASIL
Uma análise da produção legiferante sob o ambiente histórico e
econômico brasileiro
DANILO DE MORAIS VERAS1
RESUMO: O presente estudo tem por escopo a análise do movimento de formação do
Direito Administrativo brasileiroque, como mais recente solução, apresentou o formato
das parcerias público-privadas como principal ferramenta no ataque a problemas
estruturais do Estado brasileiro.Busca-se, dessa forma, entender a caminhada histórica
que, bem guiada, levará o Estado do “Leviatã”2 para o “Übermensch”
3-
4, explorando
mais detidamente o que o movimento de distanciamento e aproximação de institutos de
Direito Privado, contribuindo para o aperfeiçoamento da relação entre a Administração
e seus Administrados, em perfeita harmonia com o que se entende, atualmente, por
obrigações do Estado Pós-Social.
1 Advogado formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-Graduado em Gestão de Negócios
e Finanças pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC). Pós-graduando em Direito Constitucional e Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). 2 Leviatã é uma metáfora utilizada por Thomas Hobbes o qual toma a figura da fera bíblica para
equipará-la ao Estado. 3 Übermensch (Super-homem) é uma alegoria de Friedrich Nietzsche para representar o estado final da
raça humana, a qual sucederá a atual. Para o filósofo, a atual condição humana é uma transição entre um estado animal (besta) para um estado de maior evolução (super-homem). 4 Todas as traduções deste artigo são de inteira responsabilidade do seu autor.
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Ao propor tais análises, enfrenta-se o problema da “dinâmica do colapso”
relacionado ao Direito Administrativo Brasileiro, a fim de entender os motivos pelos
quais novas soluções foram necessárias ao destravamento da máquina pública, o que
pode ser percebido pela maior participação de entes privados em atividades
historicamente exploradas exclusivamente pela Administração.
O objetivo final deste trabalho é comprovar que a atuação direta do Estado não é a
melhor ferramenta para todas as questões existentes no universo econômico-social,
sendo certo que seu uso racional representa otimização das relações humanas e maior
liberdade para o desenvolvimento da coletividade.
Palavras Chave: Direito Administrativo, História, Histórico do Direito
Administrativo, Legislação Administrativa, Estado Pós-Social, Crise do Estado,
Evolução Econômica Brasileira.
1. BRASIL COLÔNIA – O NASCIMENTO DO LEVIATÃ BRASILEIRO
No Brasil, os primeiros momentos do Estado remontam à formação de um aparato
institucional pela Coroa Portuguesa, o que ocorreu com o estabelecimento das primeiras
vilas5-
6 e se aprimorou com a instituição das Capitanias Hereditárias, em 1532, no
intuito de viabilizar a ocupação do território sob o manto jurídico do Tratado de
Tordesilhas e de bulas pontifícias. Nesta época, o primeiro vínculo jurídico era
consubstanciado, entre a Coroa e o Capitão Hereditário (Governador), por uma Carta de
Doação. O segundo, entre o Governador e os demais exploradores a ele subordinados,
era regido por Cartas Forais, as quais especificavam os direitos, foros, tributos devidos
ao Rei e ao Capitão Hereditário. Os enlaces jurídicos representavam a assunção de
grandes incertezas e amplos poderes, a fim de justificar um mínimo equilíbrio
econômico que justificasse a empreitada ao novo continente.
5 Frise-se que, desde 1504, existia a figura do “Governo Municipal” a qual contava com a Câmara
Municipal, chamada de Conselho Municipal, que era formada por até seis vereadores, dois juízes – sem instrução formal em direito – e um procurador. No entanto, tal estrutura revelou-se frágil e incapaz de lidar com os problemas estruturais existentes nas primeiras vilas (ataques de nativos, roubos, brigas entre colonos), o que se tentou enfrentar mais frontalmente com a instituição das Capitanias Hereditárias. Interessante perceber que, desde esse início, já existia a figura do “Vereador de Obras”, responsável pelas obras públicas e segurança da Vila.
6Importa registrar que a presença da iniciativa privada, no entanto, antecede a do Estado Português. A
concessão do direito de exploração de pau brasil ao nobre Fernão de Noronha por três anos (1503 a 1506).
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Tais mecanismos de enlace são importados para o Brasil (pois já anteriormente
existentes em Portugal), a fim de “terraformar” o novo continente com as características
do Estado português. Sua ideia é regrar a incontornável necessidade da Coroa em
interagir com a iniciativa privada para a consecução de seus objetivos, o que, naquele
momento, era a expansão econômica para a abertura de novas rotas de comércio que
permitissem a majoração da arrecadação ao erário metropolitano.
Nesse esteio, embora tenham existido legislações aplicáveis durante o primeiro
período das Capitanias Hereditárias, fato é que a dinâmica jurídica existente se dava,
mormente, pela adoção de usos e costumes, utilizando esparsamente as então vigentes
Ordenações Manuelinas7, o que, apenas em 1613
8, teve sua situação alterada pela edição
das Ordenações Filipinas de D. Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal) as quais só
foram substituídas conforme os primeiros códigos do Império iam sendo baixados9.
O registro de investimentos privados era, neste período, relacionado
exclusivamente à ocupação da colônia e regido por uma mentalidade eminentemente
exploratória, a qual permeava os detentores dos poderes imperiais (Capitães
Hereditários)10
. Inexistia, à época, uma preocupação com a estruturação de uma
dinâmica econômica mais complexa ou qualquer necessidade de robustecimento da
máquina estatal, tampouco da criação de qualquer limitador ao poder dos escolhidos do
Rei. Ainda que tais movimentos fossem intentados, os constantes ataques de indígenas e
francesas em todo o território nacional impossibilitavam a estruturação de um
maquinário razoável e, consequentemente, o desenvolvimento de uma atividade
econômica de alta complexidade.
Tal panorama muda com as intendências das Minas de Ouro (1702) e de
Diamante (1734), responsáveis pela regulação, fiscalização e cobrança de impostos,
representam avanços na presença da Coroa na Colônia, embora ainda com mentalidade
eminentemente exploratória. A comercialização dos recursos era, até 1740, procedida
7 Na ocasião da descoberta do Brasil, a legislação aplicável era dada pelas Ordenações Afonsinas, de D.
Afonso V, que datavam de 1446/1447, e vigoraram até 1511. 8 A organização das Capitanias Hereditárias, do ponto de vista de organização da Administração, é tida
como embrião para o federalismo brasileiro. 9 Embora possa se remontar ao período de 1613 para verificar a junção das Governadorias Gerais no
Brasil, fato é que a estrutura estatal ainda era tímida. Não por acaso, em 1624, os mercenários holandeses aportaram na Capital da Governadoria Geral, em Salvador, e lá permaneceram por quase 1 (um) ano, no período que convencionou-se chamar “Brasil Holandês”. 10
Tal mentalidade deu origem à primeira revolta na colônia, contra a gestão do Governador Salvador Correia de Sá e Benavides, “por causa das muitas taxas, impostos e tiranias com que ele aterrorizava este extenuado povo” (Charles R. Boxter, Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686, Nacional/Edusp, São Paulo, p. 326).
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livremente pela iniciativa privada mediante o pagamento do quinto. A partir daquele
ano, no entanto, passou a ser realizada por concessão privilegiada e contrato. Só após
o ano de 1771 passou a ser empreendida diretamente pela Coroa (estatização),
utilizando a estrutura administrativa das Intendências e a mão de obra escrava alugada
dos proprietários locais11
-12
para a exploração dos metais e pedras preciosos.
Com a eclosão da Revolução Francesa, no ano de 1789, inicia-se uma nova fase
para o entendimento de “Estado” no mundo. O modelo Monárquico, onipotente e
extremamente intervencionista, passa a ser pesadamente questionado. A nova classe
burguesa, que se firma como motor das mudanças econômicas, necessita do
reconhecimento de seu direito de propriedade, a fim de dar seguimento à expansão das
corporações e outras organizações econômicas que se mantém tímidas face ao poder
ilimitado do Rei. A coexistência entre o “poder ilimitado”, da Coroa, e a “busca
desenfreada pelo lucro”, da burguesia, deixou de ser pacífica e, se enxergando
respectivamente, ambos os polos, como obstáculos.
No Brasil, em sentido contrário à essa crise mundial, o momento é de
consolidação da figura do Rei no poder estatal, tendo a Família Real Portuguesa, em
1808, se instalado no Brasil para refugiar-se da corrida expansionista napoleônica.
Nesse sentido, pouco há de se falar, aqui, em mudança do entendimento público sobre a
função do Estado. Limitar, na Colônia, um Poder ainda mais forte do que o dos Capitães
Hereditários seria uma tarefa árdua que, mesmo após a independência, não foi
imediatamente procedida13
.
O primeiro período da vinda da família real portuguesa para o Brasil representou
pontuais, porém importantes, avanços para a estrutura econômica-legislativa, o que foi
materializado, principalmente, com a instalação de três ministérios (Guerra e
Estrangeiros, Marinha, Fazenda e Interior) e inauguração do Banco do Brasil, o que se
11
Importante situar que, neste período, a organização política e econômica da Europa não mais contemplava Portugal e Espanha como principais centros econômicos. A exploração direta da extração de ouro e diamante se deu por uma necessidade de Portugal equilibrar sua balança econômica com a Inglaterra, a qual já se apresentava como principal produtora de manufaturados. 12
Registre-se também as mudanças promovidas por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, para quem, principalmente após o terremoto de 1755 que destruiu a capital Lisboa, o governo deveria ser responsável por “fomentar, reconstruir, educar, regulamentar, vigiar e punir”. Dentro desta lógica também, o Marquês fundou a Companhia Geral de Comércio do Pará e Maranhão (1755) e a Companhia da Paraíba e Pernambuco (1759) ambas concessionárias monopolistas do comércio naquelas regiões. (LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, p.214 e 225). 13
A permanência da Família Real, na figura de D. Pedro I, após a Independência (1822), realça a subordinação política do Brasil ao modelo Monarquista.
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seguiu da instalação de outras estruturas, como a Biblioteca Nacional e a Imprensa
Nacional. No entanto, conforme dito anteriormente, o relacionamento do monarca com
a máquina estatal não sofreria qualquer limitação. Exemplo clássico é o do selo “PR”
(Príncipe Regente), o qual determinava a desapropriação imediata de casas para
ocupação pela família real e seus convidados. A alcunha de “Ponha-se na Rua”, chiste
popularizado naquela circunstância, deixa clara a posição do Estado em respeito à
propriedade privada.
Em contrapartida, a abertura dos portos brasileiros, e a consequente inserção do
país na rota de grandes navegações comerciais (Liverpool, Havre, Nova Iorque,
Bordeaux, Baltimore, Bilbao, Barcelona, etc.), trouxe consigo a circulação de novos
indivíduos na colônia para atender as necessidades de uma infraestrutura de Capital do
Reinado Português, recebendo artistas, comerciantes, financistas, jornalistas e uma nova
variedade de profissionais antes pouco frequentes em terras brasileiras.
O novo caldo econômico-cultural deu o azo para às primeiras manifestações
organizadas com o objetivo de efetivamente regrar e limitar o poder monárquico, e
mudar a relação da Administração com a máquina pública. Tais iniciativas remontam à
Revolução Pernambucana de 1817, de forte matriz republicana. As propostas geradas
por tal revolução sugeriam uma abordagem mais profunda do separatismo,
questionando, inclusive, a natureza do poder constituinte. O autor Paulo Bonavides
chegou a afirmar que a “Lei Orgânica da Nova República era um projeto superior em
substância e qualidade à “Súplica” portuguesa de 1808”14
-15
, embora nunca tenha sido
efetivamente implementada no país.
1.1.Brasil Império – A Tentativa (Frustrada) de Limitação da Besta
“De que serve uma Constituição de papel? A Constituição deve estar
arraigada em nossas leis, estabelecimentos e costumes. Não são comissões
militares e medidas ditatoriais que deviam restabelecer a ordem, e sossegar
14BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos Avançados 14 (40). São Paulo, 2000, p.
159-160. 15
Não se ignore os outros movimentos separatistas contemporâneos da Revolução Pernambucana, e.g. a Conjuração Mineira (1789), a Conjuração Carioca (1794) e a Conjuração Baiana (1798). A própria Revolução Pernambucana evoluiu de um movimento anterior, conhecido por Conspiração dos Suaçunas (“Su-assunas” na grafia original), iniciada em 1801. No entanto, reputa-se que os escritos produzidos à época da Revolução Pernambucana já refletiam de forma mais madura o que viria a ser posteriormente implementado por ocasião da primeira Constituição em 1824.
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as províncias, mas sim a imediata convocação das câmaras, e um novo
ministério sábio, enérgico e de popularidade.”
- José Bonifácio de Andrada e Silva16
Com a independência do Brasil (1822), e consequente promulgação da primeira
Constituição (1824), o território passa a ser dividido em unidades (“províncias”)17
e
administrado por “presidentes” nomeados pelo Imperador. Embora a divisão de Poderes
fosse mencionada no texto constitucional, fato é que todos eles encontravam-se sob
controle direto do Imperador18
-19
. Obviamente, tais Administradores deviam obediência
à figura do líder e deveriam esforçar-se para atender às suas determinações.
Do ponto de vista econômico, o país permanecia focado em monoculturas que,
por se calcarem em mão de obra escrava, não contribuíam para a formação de uma
classe consumidora. Embora grandes nomes tenham sido críticos frontais ao modelo
escravagista brasileiro20
, os dados comprovam que o tráfico negreiro se intensificou
16
In LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP. 17
Conforme o art. 2º da Constituição Federal de 1824: “O seu territorio é dividido em Provincias na for-ma em que actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado” (sic). Tal fato pode ser verificado no texto constitucional da Carta de 1824. Por exemplo, o art. 13, que cuida do Poder Legislativo, deixa claro que “o Poder Legislativo é delegado á Assembléa Geral com a Sancção do Imperador (sic). Quanto ao Poder Executivo, reza o art. 102 que “O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado” (sic). No caso do Poder Judiciário, cumpre perceber que, na forma do art. 154, “O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas, preceden-doaudiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remettidosá Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei” (sic). 18
Tal fato pode ser verificado no texto constitucional da Carta de 1824. Por exemplo, o art. 13, que cui- da do Poder Legislativo, deixa claro que “o Poder Legislativo é delegado á Assembléa Geral com a Sancção do Imperador (sic). Quanto ao Poder Executivo, reza o art. 102 que “O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado” (sic). No caso do Poder Judiciário, cumpre perceber que, na forma do art. 154, “O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas, preceden-doaudiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remettidosá Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei” (sic). 19
Existiu, na ocasião, a tentativa de criação de um Conselho de Estado, o qual, diferentemente de sua concepção francesa, possuía função meramente consultiva e encontrava-se completamente subjugado ao entendimento do Imperador a respeito do assunto ao qual fosse incitado a se manifestar. Dessa forma, não chegou a efetivamente implantar uma jurisdição administrativa, como em sua concepção original. Tal estrutura permaneceu até o advento da República, quando extinguiu-se o Poder Moderador e o Conselho de Estado, optando-se pela jurisdição única, passando a Administração a submeter-se ao controle jurisdicional. Neste período, iniciado pela Constituição Federal de 1891 e vigente sob a égide da Constituição Federal de 1988, desenvolveram-se conceitos e institutos como o das (i) servidões administrativas, (ii) contratos administrativos, (iii) exceção do contrato não cumprido, (iv) teoria da imprevisão, (v) fato do príncipe, dentre outros. 20
Importa registrar a valiosa participação do constitucionalista José Bonifácio de Andrada e Silva, que já à época da constituinte, referindo-se à escravidão, propôs a “abolição gradual, no prazo de cinco anos,
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neste período, principalmente para o atendimento de uma demanda por insumos
altamente acentuada pelas guerras napoleônicas. Com a independência, o Brasil ganhou
apenas uma máquina mais pesada e menos submetida a Portugal (embora com evidentes
vinculações21
), a qual servia apenas aos interesses do Imperador. Embora monarquista,
o modelo estatal sugerido pelos constituintes já trazia consigo ideias razoavelmente
evoluídas sobre a Administração Pública, apresentando propostas no sentido de
contribuir positivamente com o que aparentava, pelo menos externamente, com o “bem
estar social”. Exemplos como a adoção de vacinas, do sistema métrico único, do estudo
da meteorologia, da reforma agrária e garantia de direitos civis aos analfabetos22
,
revelam uma mudança no sentido de não inibir totalmente o Estado, mas responsabilizá-
lo pela participação ativa na promoção de alguns interesses tidos por “comuns”.
A Independência brasileira marca, assim, o início de um Estado de Direito formal
e materialmente precário (ou inexistente), que possuía uma face abstencionista,
exemplificada pelo Decreto, de 23 de maio de 182223
, mas também o início de um
Estado ativo, interessado em promover a melhoria de alguns “interesses públicos”,
embora muito pouco vinculados a atender verdadeiramente a sociedade, e sim, ao
atendimento de interesses do Imperador pelo exercício do Poder de Polícia.
Medidas internas são pressionadas pelo plano internacional: a pungente classe
industrial inglesa necessita de novos mercados e, dessa forma, pressiona os países
escravagistas a abandonarem tal prática. O equilíbrio entre o Estado e as oligarquias
econômicas é frontalmente ameaçado por tal pressão. No entanto, diante da vinculação
umbilical entre os dois países, o Brasil é forçado, em 1823, a assinar um tratado de
dessa vergonha para qualquer povo civilizado”. 21
O historiador Caio Prado Júnior chega a afirmar que “por assim dizer estranhos ao Brasil, e que fazem dele momentaneamente sede da monarquia portuguesa, emprestam à Independência brasileira um caráter em que faltam a violência e os conflitos armados que observamos nas demais colônias americanas. Tivemos um período de transição em que, sem sermos ainda uma nação de todo autônoma, não éramos propriamente uma colônia. Mas, no fundo, o fenômeno é o mesmo” (Caio Prado Júnior, Evolução política do Brasil, 16ª Edição, Ed. Brasiliense, SP, 1987, p. 52-53). 22
Garantia de voto, conforme Instrução de 19 de julho de 1822. 23
Decreto, de 23 de maio de 1822, concedeu garantias para liberdades individuais, antecipando os benefícios de uma Constituição Liberal, ao determinar, por exemplo: a) que nenhuma pessoa livre (excluídos os escravos) pudesse jamais ser presa no Brasil sem ordem por escrito de um juiz ou magistrado, salvo em caso de flagrante delito; b) que nenhum juiz expedisse ordem de prisão sem proceder culpa formada e por fato declarado por lei anterior como passível de pena; c) que o processo se fizesse dentro de 48 horas, confrontando o réu com as testemunhas e facilitados todos os meios de defesa; d) que em caso algum fosse alguém “lançado em degredo ou masmorra estreita, escura ou infecta”, ficando abolido para sempre “o uso de correntes, algemas, grilhões e outros ferros inventados para martirizar homens ainda não julgados”.
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abolição do tráfico negreiro, o que (longe de significar qualquer avanço em Direitos
Humanos) representava o primeiro passo para a futura crise do sistema baseado na
figura do escravo, que culminaria com a ação abolicionista.
O suposto ambiente político para abertura da Assembleia Constituinte de 1823 foi
logo suplantado pela sua dissolução. Ato contínuo, o Imperador nomeia uma comissão
para a elaboração da Constituição, a qual foi chamada de “Conselho de Estado”24
. O
produto de tal Conselho foi uma Constituição liberalista, mas monarquista e
conservadora, portanto nada republicana ou democrática. Diferentemente do anseio dos
Constituintes, a Carta Constitucional não veio “limitar” os poderes do Monarca, ao
contrário, veio legitimá-lo por meio da instituição do Poder Moderador25
.
É instalada então a Assembleia Geral (1826), com a finalidade de dotar o país de
uma legislação própria, distinta da metropolitana, até então adotada em solo brasileiro.
De fato, o novo modelo de Estado não mais se harmonizava com as soluções oferecidas
pela legislação portuguesa, embora esta última fosse utilizada até que novo
ordenamento jurídico nacional fosse devidamente adotado (Lei de 30 de outubro de
1823). O Brasil permaneceria agrário e subdesenvolvido, tendo qualquer iniciativa de
industrialização sido flagrantemente desincentivada pelo Governo, que sofria pressão da
Inglaterra para abrir-se apenas como mercado de consumo, e não como concorrente.
Com a partida do Imperador Pedro I para a batalha pelo trono Português (1831), é
inaugurado o período das Regências, que segundo o historiador Francisco Iglésias é a
“fase mais rica da História do Brasil como manifestação popular e tomada de
consciência [...] A prova está nos nomes plebeus dos movimentos: Cabanos, Balaios,
Farrapos, característicos de rebeldia primitiva”26
. O país já contava com 14 (catorze)
Ministérios, os quais fornecerem insumos intelectuais para o Governo seguir pelo
período de Regências27
.
24
Registre-se, desta forma, que o Conselho de Estado Brasileiro foi criado antes mesmo da Constituição de 1824. 25
Diferentemente do Conselho de Estado francês, instituído para fiscalizar e limitar a atuação da Administração, no Brasil, tal órgão é criado com o intuito de prestar consultoria ao Imperador em assuntos de seu interesse. 26
IGLESIAS, Francisco. História Geral e do Brasil, Ed. Ática, São Paulo, 1989, p. 161. 27
Já durante as Regências, em 1834, o Ato Adicional revê alguns dispositivos da Constituição, estabelecendo, principalmente: a) Regência Uma; b) Dissolução do Conselho de Estado do Império do Brasil; c) Criação das Assembleias Legislativas provinciais; d) Estabeleceu o Município Neutro da Corte, o qual foi separado da província do Rio de Janeiro, e; e) Manteve a vitaliciedade do Senado.
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Além de politicamente conturbadas, as regências tiveram papel fundamental na
transição econômica do Brasil escravocrata, para o Brasil abolicionista. Neste período, a
pressão inglesa sobre o tráfico negreiro transmutou-se, na figura da lei Bill Aberdeen
(1845), em verdadeira caçada em alto mar. A consequência, foi a liberação do dinheiro
das contratações dos “tumbeiros”28
para o plano interno, o que resultou na maior
abundância de moeda para outros setores da economia, como o financeiro, comércio, o
setor de transportes e o de serviços públicos, o que ajudou na construção de um novo
contexto econômico que ensejou, por conta da exportação de café, a necessidade de
início da instalação de uma infraestrutura mínima para o seu escoamento.
Involuntariamente o país evoluiu.
Neste período, registrem-se as empreitadas de Irineu Evangelista de Sousa (1813-
1889), mais conhecido como “Visconde de Mauá”, o qual foi responsável pela primeira
tentativa de industrialização do Brasil – até aquele momento, exclusivamente agrário –
fundando a primeira estrada de ferro, a primeira fundição e inaugurando a iluminação
pública à gás nas ruas do Rio de Janeiro. Dessa forma, os principais investimentos em
infraestrutura no país permaneciam relacionados, quase que exclusivamente, com a
iniciativa privada29
, por importação de tecnologia estrangeira e não por efetiva aplicação
28
Navios Negreiros. 29
A título de exemplo, são alguns dos investimentos de Mauá no Brasil: a) o projeto de iluminação a gás da cidade do Rio de Janeiro,1 cuja concessão de exploração obteve por vinte anos. Pelo contrato, o empresário comprometia-se a substituir 21 milhas de lampiões a óleo de baleia por outros, novos, de sua fabricação, erguendo uma fábrica de gás nos limites da cidade. Os investidores só começaram a subscrever as ações da Companhia de Iluminação a Gás quando os primeiros lampiões, no centro da cidade, foram acesos, surpreendendo a população (25 de março de 1854). Posteriormente, premido por dificuldades financeiras, Mauá cedeu os seus direitos de exploração a uma empresa de capital britânico, mediante 1,2 milhão de Libras esterlinas e de ações no valor de 3.600 contos de réis; b) a organização da Companhia de Navegação do Amazonas (1852),1 com embarcações a vapor fabricadas no estaleiro da Ponta da Areia. Posteriormente, em 1866, o Império concedeu a liberdade de navegação do rio Amazonas a todas as nações, levando Mauá a desistir do empreendimento, transferindo os seus interesses a uma empresa de capital britânico; c) a construção de um trecho de 14 quilômetros de linha férrea entre o porto de Mauá, na baía de Guanabara, e a estação de Fragoso, na raiz da serra da Estrela (Petrópolis), na então Província do Rio de Janeiro, a primeira no Brasil.1 No dia da inauguração (30 de abril de 18548 ), na presença do imperador e de autoridades, a locomotiva, posteriormente apelidada de Baroneza7 (em homenagem à esposa de Mauá), percorreu em 23 minutos o percurso. Na mesma data, em reconhecimento, o empresário recebeu o título de barão de Mauá. Este seria o primeiro trecho de um projeto maior, visando a comunicar a região cafeicultora do vale do rio Paraíba e de Minas Gerais ao porto do Rio de Janeiro. Em 1873 pela Estrada União e Indústria, a primeira estrada pavimentada no país, chegavam as primeiras cargas de Minas Gerais para a Estrada de Ferro Dom Pedro II (depois Estrada de Ferro Central do Brasil) empreendimento estatal inaugurado em 1858, que oferecia fretes mais baixos. Em 1882, vencidas as dificuldades técnicas da serra, os trilhos chegavam a Petrópolis; d) o estabelecimento de uma companhia de bondes puxados por burros na cidade do Rio de Janeiro, cujo contrato para exploração Mauá adquiriu em 1862, mas cujos direitos, devido a necessidades de
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de uma política interna focada ao desenvolvimento da indústria nacional.
Diante de forte oposição política dos setores agrícolas, a inibição nos
investimentos em infraestrutura permaneceram presentes durante a segunda monarquia
brasileira, embora se deva reconhecer os avanços jurídicos na garantia de direitos
mínimos aos súditos que garantissem um regime econômico liberal. A monarquia
parlamentar constitucional inaugura um modelo político que garante, de forma inédita,
os direitos civis da população30
, embora condene o país ao ostracismo de movimentos
responsivos à estímulos externos. Pouco se industrializa ou se envolve com o Capital
para oxigenar-se, consequência do governo de um Imperador-Filósofo e pouco
empreendedor.
Já havia naquele momento, no entanto, a noção de que a legislação administrativa
formava um corpo distinto dos demais ramos do Direito. Tal assertiva subsidiou a
criação da cadeira de Direito Administrativo nos cursos jurídicos da Faculdade de
Direito de São Paulo, em 1855, ministrada pelo Professor José Antonio Joaquim Ribas.
Em apenas 10 anos, já existia uma consciência clara de que o Direito Administrativo era
uma ciência, o que foi registrado pelo autor Furtado de Mendonça31
, para o qual:
“O direito administrativo constitue hoje uma sciencia positiva, verdadeira e
completa, que de um lado divide com o direito civil, e de outro com o publico
positivo. Tem sua legislação, que por não estar codificada não é menos numerosa,
caixa, foram cedidos à empresa de capital norte-americano BotanicalGarden’sRailroad (1866), que inaugurou a primeira linha de bondes em 1868, organizando uma lucrativa rede de transportes; e) a participação, como acionista, no empreendimento da Recife & São Francisco Railway Company, a segunda do Brasil, em sociedade com capitalistas ingleses e de cafeicultores paulistas, destinada a escoar a safra de açúcar da região; f) participação, como acionista, na Ferrovia Dom Pedro II (depois Estrada de Ferro Central do Brasil), mesmo tendo consciência que, pelo seu traçado, essa rodovia tiraria toda a competitividade da Rio-Petrópolis; g) a participação, como empreendedor, na São Paulo Railway (depois Estrada de Ferro Santos-Jundiaí), empreendimento totalmente custeado por ele, sendo a quinta ferrovia do país, em 16 de fevereiro de 1867; h) o assentamento do cabo submarino, em 1874; i) fundou o Banco Mauá, MacGregor& Cia, com filiais em várias capitais brasileiras e em Londres,8 Paris e Nova Iorque. No Uruguai, fundou em 1857 o Banco Mauá Y Cia., sendo o primeiro estabelecimento bancário daquele país, inclusive com autorização de emitir papel-moeda, sendo que tal banco abriu filial em Buenos Aires, tendo sido citado por Jules Verne como um dos principais bancos da América do Sul. 30
Os autores Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota registram, inclusive, que “embora em seu governo tenham ocorrido não só a Lei de Terras, discutível e limitada, e a extinção (tardia) do tráfico de escravos (1850), mas também as iniciativas em favor da imigração, o desenvolvimento da economia do café e a construção de estradas de ferro, de modo geral o país pouco se modernizou. O parque industrial brasileiro, por exemplo, pouco ou nada se desenvolveu. A rede universitária muito menos. E a sociedade permaneceu estamental-escravista, até mesmo depois da abolição da escravatura. Pedro II, aliás, não era um entusiasta da imigração” (História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 474). 31
MENDONÇA, Furtado de. Excerto de Direito Administrativo Pátrio, p. 25 in DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, 500 anos de Direito Administrativo Brasileiro, Revista Diálogo Jurídico, Versão Online, p. 10.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
variada, constante e obrigatória; sua jurisprudência cujas regras se vão formando,
assentadas sobre precedentes bem definidos, e cujas decisões não encerrão mais
antinomias do que as dos tribunaes judiciários; uma alta jurisdicção que oferece,
aproximando-se da inamobivilidade, as mesmas garantias de publicidade e defesa
que a dos tribunaes judiciários; um processo breve, simples, claro, quasi sem
despesas, não arbitrário, rigoroso em suas prescripções, igual para todas as partes,
sóbrio de excepções, dilatórias, e recursos, respeitoso para com a cousa julgada; um
ensino especial nas Faculdades de Direito e escholas militares; programma de
cursos; começa de ter tratados e ensaios geraes e especiaes: seu estudo importa a
milhares de cidadãos de todas as classes” (sic).
Naquele tempo, no entanto, o reflexo político do Brasil é turvo, baseado em uma
Monarquia “Parlamentarista” com um parlamento formado por políticos distantes do
povo, eleitos por voto censitário de menos de 4% de uma população de
aproximadamente dez milhões de brasileiros em 1872, representando partidos pouco
comprometidos com ideais, mas apenas com a conservação das forças econômicas do
país. Inexiste o debate profundo sobre qualquer tema. A máquina pública serve ao Rei e
às oligarquias, tentando protegê-las de influências econômicas externas que insistiam
em mudar as bases. Em um mundo notoriamente republicano e liberal, um Brasil
conservador e estamental tornou-se fortemente pressionado a uma mudança estrutural,
que culminaria com uma implantação abrupta de uma República por mano militari,
diante da incompetência do regime imperial em lidar com um mundo economicamente
mais avançado. As finanças do Rei estavam minguadas e seus gastos extremamente
inchados. A imigração em massa de povos para atender as demandas das monoculturas
latifundiárias impregnou o ideário nacional com filosofias novas, renovando no
ambiente social aquilo que a política buscava vedar.
O interessante é que a invasão das novidades não havia de ser inibida pelo medo
brasileiro da evolução. O autor André Saddy32
nos lembra que:
“Em 1881, por meio do Decreto 8.065 de 17 de abril, é autorizado o funcionamento
da ThelephoneCompanyofBrazil (Companhia Telefônica do Brasil). Nesse mesmo
ano, por resolução imperial, as linhas telefônicas são consideradas em iguais
condições às linhas telegráficas, pertencendo, como estas, ao domínio exclusivo do
Estado, cabendo ao Governo Imperial o direito de às conceder, ainda que para uso
particular das localidades. No ano seguinte (1882), foi publicado o Decreto 8.453, de
11 de março estabelecendo bases para a concessão de linhas telefônicas”.
32
SADDY, André. História dos Serviços Públicos no Brasil, tópico 1, edição online.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
Nesse sentido, imagine-se a situação de um senhor de engenho ter a oportunidade
de falar ao telefone, em 1883, sobre o comportamento de seus escravos. Tal imagem
representa bem a discrepância entre os momentos históricos vividos pelo Brasil em
relação aos países industrializados.
Uma empreitada militar esgarçante na Guerra do Paraguai (1864-1870) aliada a
abolição da escravatura (1888), a forte imigração para atendimento da cultura do café e
os exemplos políticos internacionais33
dão o ambiente histórico necessário ao
recrudescimento de uma consciência republicana, que viria a culminar em uma
Revolução (1889) que derrubaria o regime monárquico brasileiro e reposicionaria a
função econômica do Estado.
2. BRASIL REPÚBLICA – A CRISE DE IDENTIDADE ENTRE O
LEVIATÃ E O SUPER-HOMEM
Naquele momento, dois mundos coexistiam no globo ao se tratar da estruturação
de Estados “republicanos”: o primeiro, avançado, soberano e autônomo, impulsionado
pelos desenvolvimento econômicos e sociais; e o segundo, colonial ou sombras de
impérios em decomposição. No que tange à América do Sul, naquele momento, melhor
seria defini-las segundo Eric Hobsbawn, para o qual “no tocante às repúblicas da
América Latina, é impossível descrevê-las como democráticas, em qualquer sentido da
palavra”34
.
As interações entre Estado e Iniciativa Privada até aquele momento, tinham se
dado sob o manto de um sistema Imperial corrupto, pouco comprometido com o “bem-
comum” e cego diante da satisfação de suas necessidades pelo luxo. O Estado
massacrava a iniciativa privada nacional e se submetia à iniciativa privada mundial,
tentando aprisionar um oceano em um copo d’água, enquanto seu próprio navio
afundava nas ondas à beira da praia. Em um Brasil rico em insumos, a mentalidade
eminentemente exploradora, conservadora e estamental promoveu o massacre da
economia e da política interna, que remonta à advertência, ainda atualizada, de Paulo
33
A instalação República dos Estados Unidos da Venezuela - 1864, a Independência de Porto Rico - 1865 (e consequente instalação do regime Republicano, presidido por Francisco Ramirez) e, contemporaneamente, Panamá, Haiti, Santo Domingo. 34
HOBSBAWN, Eric. The Age of Empire, 1875-1914, Nova York: Pantheon, 1987.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
Prado a seu filho, então nos Estados Unidos, que previa a crise mundial que eclodiria
nos anos seguintes:
“Não vê [o Brasil] o desastre que se aproxima; não vê o perigo de estarmos à
margem dos grandes caminhos mundiais da navegação e da aviação; não vê que a
terra se tornou pequena demais para os imperialismos, pacíficos ou guerreiros, e que
é um paradoxo a laranjeira à beira da estrada, carregada de laranjas doces.
[...] Apesar da aparência de civilização, vivemos assim isolados, cegos e imóveis,
dentro da própria mediocridade em que se comprazem governantes e governados.
Neste marasmo poderá ser necessário fazer tábua rasa para depois cuidar de
renovação total”35
.
A virada do ambiente se deu com o Golpe de 1889, quando as oligarquias de São
Paulo e Minas Gerais, valendo-se dos Militares para isolar a tomada do poder por
qualquer iniciativa popular, participaram da vida política do país. A força econômica de
tais grupos (fragilizada pela abolição da escravatura) aliada ao momento político frágil
do Regime Imperial, suplantou a estrutura estatal e chegou ao poder corrompendo e
utilizando-se das forças militares que antes serviam ao imperador. Novamente, as forças
econômicas suplantam o aparato jurídico, e o fluxo histórico é determinado pela
violência do Capital.
Após um regime militar provisório, instala-se a nova Constituinte de 1890 e, no
ano seguinte, é apresentada um projeto de Constituição da lavra de Rui Barbosa e
Américo Brasiliense, a qual propunha uma república federalista e presidencialista, nos
moldes norte-americanos. A nova Constituição de 1891, dividiu os poderes, separou o
Estado da Igreja, determinou que o Chefe do Executivo seria eleito por voto censitário,
permitiu a liberdade de cultos, reduziu o mandato presidencial para 4 (quatro anos)36
e
criou o Registro Civil. No entanto, o novo modelo ainda não sabia lidar com as forças
econômicas cada vez mais inevitáveis: as oligarquias históricas eram pressionadas pela
pungência da pressão internacional pela formação de um grande mercado consumidor.
A primeira grande demonstração pública desta inabilidade no trato com as forças
35
Paulo Prado, Post scriptum, em Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (7ª Ed. Rio de Janeiro; José Olympio, 1972), pp. 234-235. Em edição italiana desta obra: Paulo Prado, RittratodelBrasileSaggiosulla tristeza brasiliana (Roma: Bulzoni, 1995), ver o breve estudo Carlos Guilherme Mota, “Paulo Prado, ilTommazodiLampedusa brasiliano”, p. 47-51, e também, AnielloAngeloAvella, “Odi et amo”: Rittratodi um amore negato e riaffermato”, p. 9,41 in LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 551. 36
Previsto inicialmente como 6 (seis) anos, para o Regime Provisório.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
econômicas foi a apresentação do Decreto da Reforma Bancária, de 17 de janeiro de
1890, o qual, dentre outras providências, (a) criou bancos regionais emissores de moeda
e (b) favorecia a expansão da indústria do crédito. Embora da lavra do eminente Rui
Barbosa, à época ministro da Fazenda, mirando justamente um reposicionamento
econômico do Brasil, fato é que tal ação deu gênese ao Encilhamento, que pode ser
caracterizado pelo primeiro colapso financeiro da República, ocasionado pela expansão
do crédito com aumento da especulação e da inflação em larga escala.
A segunda ação pouco feliz foi, logo no Governo do primeiro presidente civil
(1894-1898), Prudente de Morais (1841-1902), a revogação da tarifa alfandegária, que
encarecia o preço dos produtos importados. Tal tarifa protecionista pretendia estimular a
produção industrial local, porém os interesses dos exportadores de produtos primários
eram totalmente contrários ao protecionismo e favoráveis ao liberalismo econômico. A
ausência de uma política fomentadora do setor industrial, aliada ao encarecimento dos
produtos importados (consumido em volume), provocou uma valorização de tais
produtos, e um movimento de migração da moeda brasileira para outros países.
Outras tantas decisões revelam o distanciamento entre a Administração e a
realidade fática da iniciativa privada, que culminaram na necessidade de
reescalonamento da dívida externa brasileira (fundingloan) no governo Campos Sales,
que não conseguiu organizar as finanças públicas e conservou o país no seu status quo
econômico. A Administração ainda estava conhecendo seus braços e entendendo que
qualquer movimento, ainda que tímido, poderia concorrer para consequências de grande
magnitude.
No plano jurídico, o Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, que tratava da
organização da Justiça Federal, registrava na sua exposição de motivos que “é a vontade
absoluta das Assembleias Legislativas que se extingue, nas sociedades modernas, como
se hão extinguido as doutrinas do arbítrio soberano do Poder Executivo. Aí está posta a
profunda diversidade de índole que existe entre o Poder Judiciário, tal como se achava
instituído no regime decaído e aquele que agora se inaugura”. O art. 387 do referido
Decreto não esconde a matriz ideológica por detrás das mudanças políticas recém
instauradas, ao registrar que “os estatutos dos povos cultos e especialmente os que
regem as relações jurídicas da República dos Estados Unidos da América, os casos de
common law e equity serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”.
Até o final da primeira República, já se notava os excessos, antes cometidos pelo
Imperador e sua família, titularizado agora pelos presidentes “eleitos”. As campanhas
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
políticas se fundavam na necessidade de se “moralizar” a Administração, o que, na
corrida política de Wenceslau Brás, traduziu-se na expressão “Nem ceder, nem
usurpar”, como se, de fato, o problema fosse individual e não sistêmico. Os desvios
eram tamanhos, que sua maior luta foi o bloqueio da “prática de autorizações
extraorçamentárias”, para equilibrar débitos e créditos do Estado, com severa restrição a
estes. Ou seja, nessa política – precursora de responsabilidade fiscal – deveriam ser
publicadas todas as fontes de receitas e todas as “verbas de dispêndio”37
.
Ao final da República Velha, no governo de Washington Luís, novamente a
economia mundial impõe ao Brasil a assunção de suas perdas. A crise de 1929 faz o
preço do café cair substancialmente – subindo a média de falências de 200 (duzentas)
para 600 (seiscentas) – e o valor real dos salários cair pela metade38
. A inabilidade com
o ambiente econômico e a austeridade imposta pela crise, abriu, novamente, espaço para
o rearranjo político nacional. Segundo historiadores, “a República prolongava os
hábitos do império” e, por que não, suas incompetências.
O fenômeno consubstanciado na Crise de 1930 deixou clara a falência do ideário
do liberalismo exacerbado, sem freios. Entendeu-se, na prática, que embora o mercado
tenda ao equilíbrio, suas curvas de variância poderiam atingir extremos capazes de
colapsar a economia de um país ou, no caso, do mundo. A consequência foi uma revisão
da participação da figura do Estado na economia, o que nos EUA (epicentro da crise) foi
tratado com o “New Deal”, de Franklin Delano Roosvelt, que adotou, dentre outras
políticas, (i) o investimento maciço em obras públicas (o governo norte-americano
investiu US$ 4 bilhões39
na construção de usinas hidrelétricas, barragens, pontes,
hospitais, escolas, aeroportos etc.); (ii) a destruição dos estoques de gêneros agrícolas,
como algodão, trigo e milho, a fim de conter a queda de seus preços; (iii) o controle
sobre os preços e a produção, para evitar a superprodução na agricultura e na indústria;
(iv) a diminuição da jornada de trabalho, com o objetivo de abrir novos postos, (v)
fixação do salário mínimo, (vi) criação do seguro-desemprego e o seguro-velhice (para
os maiores de 65 anos). O mundo vive o período das “regulações” do mercado.
37
Em 1914, Wenceslau, em seu discurso de posse, exorta o patriotismo o patriotismo dos “homens de responsabilidade” propondo “intransigência moral administrativa”, denunciando o quadro de desequilíbrio entre exportação e importação, a diminuição das rendas aduaneiras (com eclosão da guerra, baixaram 50%; e mais, pouco depois), os enormes déficits mensais, moratória, emissões em excesso, baixa do câmbio, novo funding. 38
LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 591. 39
Valores históricos.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
No período dos anos 30, a grande crise de identidade do Estado chegou ao Brasil,
o qual deixou sua ação tímida para ingressar no mundo jurídico como um ente
interventor e socializante, atuando diretamente nos campos da saúde, saneamento,
educação, mercado financeiro, assistência e previdência social. A consequência foi o
inchamento da máquina estatal, por meio de pessoas jurídicas públicas, o que gerou
também o aumento do quadro de funcionários públicos necessários à consecução dos
fins colimados.
Capitaneado por Getúlio Vargas, o novo Estado (futuro Estado Novo)
demonstrava uma Administração mais participativa, que inaugurou a presença efetiva
nas relações trabalhistas, nas indústrias de base, no sistema educacional e na
organização da cultura. O Presidente embora inovando no Brasil, não aplicava nenhuma
ideia muito distante do que era experimentado nos Estados Unidos, representando uma
ressonância distante do New Deal. O período foi marcado pela difusão do ideário de um
planejamento, sobretudo na elaboração de planos econômico e político, o que promoveu
maior interação do Estado com o meio ambiente econômico, principalmente pela
participação direta na extração de petróleo (PETROBRAS) e minério de ferro (CVRD).
Com o gap inaugurado pela guerra, o “Estado Social” nasce no Brasil,
travestindo-se, imediatamente, de Ditadura.
3. DITADURA VARGUISTA – O LEVIATÃ EM TRAJES DE SUPER-
HOMEM
Em meio a influências dicotômicas externas, o Estado brasileiro curva-se aos
interesses de grupos políticos que se apoderam da Administração na figura da Getúlio
Vargas. O “Pai dos Pobres”40
, como ficou conhecido, instituiu políticas populistas que o
legitimavam no poder e, desde cedo, utilizou o maquinário estatal para ingressar no
meio econômico como player. A CSN e a Petrobrás são exemplos mais gritantes, mas
outras soluções foram desenvolvidas durante seu governo, e.g. as primeiras discussões
jurídicas sobre as Agências Reguladoras, apresentadas por autores do quilate de Bilac
Pinto41
e Luiz Anhaia Melo42
, que chegam a ser implementadas (precariamente) em seu
40
Tal qual a figura bíblica do Leviatã, a figura do “Pai dos Pobres” também é uma referência bíblica do Livro de Jó 26:19: “Dos necessitados era pai, e as causas de que eu não tinha conhecimento inquiria com diligência”. 41
PINTO, Bilac. Regulamentação efetiva dos serviços de utilidade pública. Rio de Janeiro: Forense, 1941. 42
MELO, Luiz de Anhaia. O problema econômico dos serviços de utilidade pública. São Paulo: Prefeitura
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
governo nas figuras do Instituto do Açúcar e do Álcool43
e do Instituto Brasileiro do
Café44
.
Apesar de aparentemente “olhar para os pobres”, fato é que o Governo Vargas
construiu um panorama favorável à inserção do Brasil em um novo lugar no plano
econômico mundial. O país, eminentemente agrário e estamental, se organiza para
transformar-se em uma sociedade urbana e industrial.
A Constituição de 1934 veio dar o embasamento necessário à nova figura
implementada por Vargas. Em decorrência da maior participação estatal no meio
econômico e social, foi instituído, em esfera federal, um Tribunal de Direito
Administrativo. A ideia desta jurisdição, diferentemente do que fora procedido pelo
Conselho de Estado no período anterior, era ter ação socializante, legitimadora da
crescente intervenção da Administração. A participação na economia, por meio de
decretos e códigos, de assuntos como o (i) trabalho45
-46
, o (ii) meio ambiente47
-48
, (iii) a
exploração de minérios49
. Para o cumprimento da finalidade, institui-se o estatuto
funcional do servidor, previsto no art. 170 daquela Constituição, que estabeleceu
garantias até hoje existentes, como (i) a estabilidade, (ii) a aposentadoria, (iii) a
reintegração em caso de invalidação de demissão por decisão judicial, (iv) a exigência
de concurso público, (v) a proibição de acumulação de cargos públicos remunerados das
três esferas do governo, (vi) a responsabilidade solidária dos funcionários com a
Fazenda Pública por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso
no exercício de seus cargos, dentre outros.
No rol das garantias e direitos individuais, passou-se a prever o instituto do
Mandado de Segurança e a Ação Popular, como meios de provocar o controle judicial
sobre atos da Administração Pública. Toda essa roupagem jurídica à arquitetura estatal
do Município de São Paulo, 1940. 43
Em 1 de junho de 1933, através do decreto nº 22.789, criou o Instituto do Açúcar e do Álcool, IAA. 44
Em 16 de maio de 1931, pelo decreto nº 20.003, é criado o Conselho Nacional do Café, substituído, em 10 de fevereiro de 1933, pelo Departamento Nacional do Café, através do decreto nº 22.452, posteriormente mudado para Instituto Brasileiro do Café (IBC). 45
Em 21 de março de 1932, instituiu, através do decreto nº 21.175, a carteira de trabalho, ou carteira profissional. 46
Em 1 de maio de 1943, pelo Decreto-Lei nº 5.452, institui a Consolidação das Leis do Trabalho. 47
Em 23 de janeiro de 1934, pelo decreto nº 23.793, criou o Código Florestal, vigente até 1965. 48
Em 10 de julho de 1934, pelo decreto nº 24.643, instituiu o Código das Águas, que com alterações, ainda está em vigor. 49
Em 10 de julho de 1934, pelo decreto nº 24.642, foi criado o Código de Minas que vigorou até 1940, quando foi substituído por outro do mesmo nome. O Código de Minas de 1934 foi muito criticado por Monteiro Lobato, no livro "O Escândalo do Petróleo", e, em cartas, pois o considerava restritivo quanto à lavra de petróleo.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
acabou por organizar o país para a chegada de investimentos externos, nos moldes do
que fora procedido pelo EUA. No entanto, diferentemente dos projetos dos países
nortistas, o Brasil segue no caminho de preparar-se como “grande provedor mundial”, o
que assolou a indústria nacional focada no suprimento de demandas internas50
.
Em meio à forças contrastantes no plano mundial, o Brasil flerta economicamente
com a Alemanha Nazista51
, que, após uma primeira guerra devastadora, concilia-se com
a indústria nacional para reerguer-se como potência mundial sob a batuta de um regime
totalitário capitaneado pela figura da Hitler. A ditadura brasileira divide-se entre o
interesse no regime alemão e interesses econômicos da superpotência norte-americana.
Com a consolidação dos Estados Unidos como vitorioso e principal player
econômico, o governo brasileiro revê seu posicionamento e corta relações diplomáticas
com o Reich. O Brasil sai da guerra alinhado com aquele que demonstrou possuir maior
capacidade econômica e de pressão política. No entanto, o ideário varguista não se
coadunava com uma república democrática, mas com uma ditadura populista, que se
reconheceria nos Estados comunistas durante a Guerra Fria.
No período de vigência das Constituições desta fase histórica (1934, 1937 e
1946), além da consolidação do Direito Administrativo como ramo autônomo do
Direito, foram promulgadas algumas leis em matéria de Administração cuja vigência
dura/durou até recentemente, como por exemplo:
a) Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937 – sobre tombamento;
b) Decreto-Lei n. 3.365, de 21 de junho de 1941 – sobre desapropriação por
utilidade pública;
c) Decreto-Lei n. 9.760, de 05 de setembro de 1946 – sobre bens públicos da
União;
d) Lei 4.717, de 29 de junho de 1965 – sobre Ação Popular52
.
A mudança no papel do Estado, no entanto, cria um novo problema. O inchaço
das estruturas estatais evidenciam uma característica inerente à atuação direta
Administração naquele tempo: a ineficiência53
.
50
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil, Ed. Brasiliense, São Paulo, 2008, p. 291 e seguintes. 51
Nota para a parceria realizada entre o Brasil e as Indústrias Krupp, para montagem do maquinário da CSN em condições financeiras muito favoráveis. 52
Deste período, vale citar também a Lei n. 1.533, de 31 de dezembro de 1951 – sobre Mandado de Segurança, revogada pela Lei n. 12.016, de 07 de agosto de 2009. 53
A dependência brasileira do petróleo e do aço estrangeiros revelam que a criação de superestatais não foi suficiente para suprir a demanda interna por tais insumos.
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4. A VOLTA DA “DEMOCRACIA” – A MEDIOCRIDADE QUE SUFOCA
A BESTA
O “retorno” da democracia deu-se sob a batuta do capixaba Eurico Gaspar Dutra
(1946-1951) e representou a continuidade dos conservadores no poder, sendo a
mediocridade a tônica do seu governo. Submisso a Vargas e Góis Monteiro, não teve
uma postura firme quanto às suas ideologias, deixando a UDN e o PSD (partidos recém-
criados), representantes dos interesses de proprietários rurais, titularizar um retrocesso
da industrialização e a diminuição do processo de atualização do Estado.
Inflação, foco na agricultura como produto para exportação (principalmente o
café) e investimentos na indústria (principalmente automobilística) deram a tônica do
governo de Dutra, que posicionou o Brasil exatamente onde os Estados Unidos
necessitavam: uma nova “colônia de exploração”, na qual trocavam-se espelhos por
ouro, aproveitando-se da ignorância e inexpressão econômica dos agentes políticos
nacionais54
. Do ponto de vista da participação econômica no poder político, os
modernos “senhores de engenho” (ainda detentores de importante parcela da balança
comercial brasileira) foram forçados a dividir o palco com investidores estrangeiros, em
um cenário bem mais complexo do que a política do “café com leite”.
Um dos primeiros atos de seu governo foi a convocação de nova assembleia, que
culminou na Constituição de 1946, a qual objetivou o equilíbrio entre as regiões de um
país de proporções continentais e diferenças gritantes. O Plano “SALTE” (saúde,
alimentação, transporte e educação), criado em 1949 foi logo abandonado em 1951,
tendo se resumido à (inacabada) ligação entre o Rio de Janeiro-São Paulo e algumas
outras infraestruturas precariamente instaladas sob a lógica contratual do “contrato de
obra”. Para que o país funcionasse de acordo com os interesses dos novos parceiros
internacionais, foi suprimido o Direito de Greve e preservado o congelamento de
salários (inaugurado anteriormente, em 1942). A carga recebida pelo povo,
trabalhadores (sob a ótica capitalista) - eleitores (sob a ótica política), fez com que o
governo Dutra fosse severamente criticado e, consequentemente, a massa popular se
tornasse ávida por um “salvador”.
A inércia política era tamanha, que a consequência foi o crescimento da esquerda,
o que, diante da marcha vermelha, foi estrategicamente combatido pelos Estados Unidos
54
A ligação evidente entre a política econômica brasileira de Dutra, com a americana, de Truman, foi resumida pela estratégia do “take off” (decolagem) do Brasil.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
que, rapidamente, se aproximaram do Brasil para a profusão de ideias de pan-
americanismo. Diante do panorama mundial da Guerra, foi necessário suprir a demanda
brasileira por produtos industrializados estrangeiros. Tal dependência acentuou ainda
mais as disparidades entre os regionalismos brasileiros e, embora tal movimento tenha
sido ensaiado, não foi suficientemente forte para evitar o gasto, quase integral, das
reservas acumuladas durante a Segunda Guerra com compras de materiais
manufaturados.
O Estado, mais uma vez, não se integra com a iniciativa privada para direcionar-se
pelos caminhos da evolução política, econômica e social e é “carregado” pelas forças
econômicas externas para o mesmo lugar no plano mundial que ocupou desde a sua
descoberta.
O panorama político, no entanto era tão inusitado, que Getúlio Vargas, apoiado
por comunistas e sindicalistas, retorna ao poder, derrotando o liberal-conservador
Eduardo Gomes, candidato da UDN e único sobrevivente do levante dos 18 do Forte.
Logo no início de seu governo, Getúlio já apresenta a proposta de criação da Eletrobrás
(o que só foi efetivamente implementado 7 anos depois, no mandato de João Goulart) e
retorna sua estratégia de crescimento da presença do Estado no meio econômico. A
figura da “empresa pública” pouco se alinha com o conceito de “empresa privada”, se
configurando muito mais como uma extensão das políticas populistas de Vargas do que
como um veículo econômico de empreendimento capitalista.
Os interesses econômicos internacionais, no entanto, iniciam uma invasão do
espaço brasileiro para influenciar a política, a fim de não permitir que o governo Vargas
continuasse sua corrida pela maior participação no mercado privado e permanecesse a
promover o protecionismo. Diante da pressão liderada pelos EUA, que articulado com o
patriciado político tradicional, foram promovidas transformações modernizadoras que
tiveram como contrapartida a “desnacionalização” do Brasil. O primeiro grande
exemplo deste período é o repentino apoio político do governo à Light em detrimento da
Eletrobras.
Tal apoio se insere, novamente, em um plano maior. Para justificar-se no poder, o
alinhamento, com as superpotências que emergiram da II Guerra Mundial, foi
necessário. O Brasil, que viu-se ainda mal-educado, atolado em um passado colonial,
com suas elites regionais europeizadas (de uma Europa diferente da que emergia), foi
forçado a lidar com um Estados Unidos da América moderno, industrial, tecnológico,
educado, emergente de faculdades formadoras de elites dirigentes (Pricetown, Harvard,
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
Stanford, Columbia, Yale, etc.) e dedicado à consolidação de uma liderança econômica
mundial em face ao modelo soviético. Os grandes grupos americanos já davam a tônica
do que seria o próximo momento econômico do Brasil, o que fez com que Getúlio
Vargas, em seu diário, registrasse que “Nelson Rockfeller dominava, praticamente
sozinho, a política de seu país para a América Latina”55
.
A necessidade de alinhamento logo revelou que a estratégia brasileira era falha
(ou inexistente), pautando-se por movimentos responsivos aos americanos. Exemplo
clássico da vontade – e inabilidade – de aproximar-se dos EUA foi o encontro de dois
símbolos da cultura brasileira e norte-americana, respectivamente Linda Batista e Orson
Welles, em festa de aniversário de Vargas no Cassino da Urca, quando a cantora
brasileira, muito empenhada em agradar o visitante, demonstra não saber (i) ou o que
era, ou (ii) não dominar a ferramenta de comunicação estrangeira: “Brazilians are
Brazilians. Correct?”56
-57
. Qualquer resposta era válida, o importante era agradar. A
consequência dessa postura, também refletida pelo Estado, foi a exportação da tomada
de decisões do Brasil, que passou a ser realizada pelos norte-americanos, diante da
inabilidade no trato com o panorama que se construía.
No Segundo Governo Vargas (1950-1954), o que se viu foi a necessidade de um
alinhamento ainda maior com as expectativas americanas embora o Brasil caminhasse
no sentido oposto, o da autoconstrução. A criação do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE), que operava com uma taxa flexível de câmbio
(conforme a operação) no intuito de captar fundos para investimentos de base no país58
,
associada a um discurso nacionalista, escondiam-se ações e alianças com capitais
estrangeiros, a fim de propulsionar o Brasil na direção da industrialização. A Guerra
Fria, no entanto, impunha restrições aos avanços estatais de Vargas no meio econômico
protagonizados principalmente pela Eletrobras e a Petrobras.
A pressão externa, cujo cume foi a negativa de compra de café brasileiro pelos
55
Getúlio Vargas em seu diário, dia 27 de novembro de 1936, quando da visita de Roosvelt ao Brasil, apud Antonio Pedro Tota, O imperialismo sedutor (São Paulo, Companhia das Letras, 2000), p. 185 in LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 735. 56
“Brasileiros são Brasileiros. Correto?” 57
Getúlio Vargas em seu diário, dia 27 de novembro de 1936, quando da visita de Roosvelt ao Brasil, apud Antonio Pedro Tota, O imperialismo sedutor (São Paulo, Companhia das Letras, 2000), p. 185 in LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 737. 58
Empresas estatais de energia, transporte, siderurgia; a criação formal do Instituto Brasileiro do Café e a do Ministério da Saúde (que se desliga do Ministério da Educação), formulação de um Plano de Industrialização, criação de um serviço de bem-estar social; do Serviço Social Rural; do Parque Nacional do Xingu e do CNPq.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
EUA, aliada à tentativa de assassinato de Carlos Lacerda, culminaram no suicídio de
Vargas, diante da iminente queda livre de seu governo.
Após uma rápida passagem de Café Filho, assume o governo Juscelino
Kubitschek (1956-1961), com o compromisso de acelerar o Brasil 50 (cinquenta) anos
em 5 (cinco). A solução foi aquela determinada pelo Capital Estrangeiro estadunidense:
(i) assunção de empresas estrangeiras no país do ramo automobilístico, farmacêutico e
alimentício e (ii) o investimento brutal em infraestrutura regionalizada (da qual Brasília
é o estandarte principal). A aplicação deste binômio foi responsável por um salto
industrial às custas de uma concentração da renda, o esquecimento de questões sociais
(como a reforma agrária) e o abandono de causas sociais. Logo em 1957, o presidente
enfrentava lockout de cafeicultores da São Paulo, Minas e Paraná que, pelas estradas,
mobilizaram agricultores com suas máquinas (“Marcha da Produção”). No mesmo ano,
enquanto parte do Brasil se enaltecia com “a chegada da modernidade”, o que era
percebido na construção de estradas, cidades e a primeira central manual de telex, a
Rússia lançava a Sputnik I, o primeiro satélite artificial a permanecer em órbita da Terra
e, no ano seguinte, os EUA enviaria a Explorer I, inaugurando a corrida espacial.
Em momento seguinte de seu governo, o presidente JK decide não responder tão
complacentemente as forças econômicas externas59
e executar o plano econômico
nacional. O resultado foi um crescimento industrial sem precedentes às custas de uma
desnacionalização do setor secundário e a desvalorização da moeda: início de um novo
ciclo inflacionário60
.
As remessas lucros realizadas ilegalmente por empresas estrangeiras e detectadas
pela Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC, o desgaste pelo ciclo
inflacionário, as denúncias de desvio de dinheiro público para a construção de Brasília,
Comissões Parlamentares de Inquérito foram instauradas contra a Shell, Esso, American
Can e a encampação dos contratos das norte-americanas Bond &Share e a
InternationalTelegraph no Rio Grande do Sul, são os temas do fim do Governo JK, que
dão o ambiente político para a nova fase que se inauguraria.
Jânio Quadros, populista de esquerda, chega ao poder como uma reação das
massas ao centralismo econômico protagonizado por JK. Em 7 (sete) meses deixou o
governo alegando atuação de “forças ocultas”, deixando o caminho aberto para João
59
Cite-se, por exemplo, a demissão dos agentes econômicos do FMI, Lucas Lopes e Roberto Campos. 60
O Governo JK preferiu, ao invés de emissões de títulos da dívida pública, acelerar o país com a impressão de moeda nacional e tomada de empréstimos junto ao Banco do Brasil.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
Goulart.
“Jango”, como ficara conhecido, iniciou novamente o modelo de participação
efusiva do Estado no meio econômico, provocando os mesmos erros já conhecidos do
passado61
. Ao tentar implementar o seu Plano de Reformas de Base, talvez Jango tenha
objetivado corretamente, mas errou na forma de implementação econômica. A
“imposição” de direitos a outros mediante coerção estatal sempre gera insatisfação
popular, o que, em harmonia com uma insatisfação do Capital, é uma combinação
explosiva do ponto de vista político.
A tomada de contratos públicos de empresas americanas, o ataque frontal às elites
seculares, ao capital financeiro (moratória unilateral ao FMI), à Igreja Católica. O ápice,
no entanto, do suicídio político de Jango foi o envio de uma carta ao Presidente dos
EUA, Kennedy, manifestando-se contra a invasão de Cuba sob o argumento – razoável
– de que tal ato violaria o direito à autodeterminação dos povos. Nesse ponto, o
Presidente teria ido longe demais.
No interesse do Capital norte-americano, os Militares tomam o Poder. Contam
com toda uma preparação e manipulação da Operação Brother Sam que, de tão rápida,
não encontrou qualquer resistência armada. Estava instaurada a Ditadura Militar no
Brasil, a serviço do capital privado internacional.
5. DITADURA MILITAR – OS GENERAIS DO LEVIATÃ
Como pode ser inferido a partir deste breve histórico brasileiro, a Ditadura Militar
foi só mais um dos momentos em que o Estado foi apropriado por um estamento
dominante, nesse caso, sob o lema de “Segurança e Desenvolvimento”, que durou mais
de duas décadas. A ideia era sobrepor o lema da própria República de 1889 “Ordem e
Progresso”, incorporado à bandeira também por pressão de militares positivistas,
deixando claro que a participação militar na política vinha sempre como “isolante
social” a movimentos genuinamente públicos, preservando a “Revolução” na mão dos
61
Embora avanços devam ser reconhecidos: em 1962, aprovou o Plano Trienal de Celso Furtado, promulgou a lei de imposto único sobre a energia elétrica – o que deu base financeira para a expansão da Eletrobrás, legalizou a organização de sindicatos rurais no país, enquanto, no Sul, Brizola desapropriou duas fazendas de sua família para a reforma agrária, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, reduziu o escopo de contratos públicos da Light e da Amforp (American &Foreing Power Company) ao retomar o monopólio da produção e distribuição de energia para a Eletrobras, cancelou contratos e registros de jazidas de minérios da Hanna Mining Company (o que voltaria a acontecer no Governo Castello Branco).
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
detentores do Capital sob a bênção da classe média.
Para lidar com os investimentos estrangeiros no Brasil e certificar que as ameaças
ao lucro não seriam intentados, como nos Governos de JK e Jango, os Militares logo
após o Golpe de 31 de março de 196462
, trataram de promover uma reforma que
garantisse a segurança jurídica das relações com o Estado63
. Não só uma determinada
área, mas todo um país precisa ser mudado para que o capital internacional adentre o
plano econômico brasileiro. Tal mudança foi assegurada, por exemplo, pelo Decreto
200/1967, o qual “moralizava” a Administração Pública e fornecia os insumos
necessários para que as empresas norte-americanas tivessem a certeza de que não
seriam, novamente, encampadas em seus contratos.
O apossamento do maquinário estatal é novamente protagonizado diante da
ineficiência do Poder anteriormente constituído em lidar com forças econômicas.
Rapidamente, até mesmo a Constituição é estuprada64
por uma nova (1967) para servir
aos desígnios irrefreáveis dos agentes econômicos sob o argumento da necessidade de
proteção da “Segurança Nacional”. Não existe enxoval jurídico que “estanque” o
poderio econômico das superpotências de maneira afrontante65
. Tal força é tão
enormemente grande que captura as forças militares do país e a usa para toma-lo. O
“Pacote de Abril”66
, plano pensado pelo General Geisel deixa clara a função dos
Militares no Poder: não deixar que nenhum movimento social sequer se aproxime do
Poder estatal e defender os interesses da “Corporação”67
.
62
A ironia histórica está no fado de que dias antes, em 20 de março de 1964, fora publicada a Lei n. 4.319, que criava o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, cuja composição deveria contar, além de outros profissionais, com “(...) Professor Catedrático de Direito Constitucional e Professor Catedrático de Direito Penal de uma das Faculdades Federais, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (...)”, e a Lei n. 4.320, que estatuía Normas Gerais de Direito Financeiro para Elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. 63
Frise-se que, apesar do discurso “nacionalóide” dos militares, por debaixo dos panos era publicada a Lei n. 4.403 de 14 de setembro de 1964, a qual dispunha sobre os bens e direitos de Companhias de Seguros Alemãs, que haviam sido anteriormente bloqueados, o que revela uma preocupação de ordem muito mais econômica do que ideológica. 64
Diante dos Atos Institucionais, chega a ser cômica a afirmação do Marechal Castello Branco de que “Pretendia respeitar a Ordem Constitucional”. 65
Tal assertiva é corroborada pela legislação da época. Dois anos antes da nova constituição, as Leis n. 4.932 e 4.933, ambas de 1965, já concediam isenção de impostos de importação para a Lamport&Holt Navegação e para a Dominium S.A., evidenciando a subserviência do regime às exigências do mercado externo. 66
Sobre o tema, Darcy Ribeiro ironiza: “Este maço de despautérios é que passou a ser chamado O Pacote de Abril. Para engendra-lo, Geisel se fecha, dez dias, sozinho, calado, enfeixando poderes totais, comendo raízes amargas, fazendo continência a si mesmo e ruminando sobre os destinos gloriosos do Brasil Potência.” (RIBEIRO, Darcy. Aos Trancos e Barrancos: como o Brasil deu no que deu, in LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 737. 67
Uma das primeiras Leis publicadas durante o Regime Militar foi a Lei n. 4.328, de 30 de abril de 1964,
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
De partidos a sindicatos, passando por movimentos sociais apartidários, o
Governo Militar tomou todas as precauções para preparar a máquina administrativa para
a opressão. A legislação cuidou da criação do Centro de Informações do Exército –
Ciex, seguido da criação do Destacamento de Operações de Informações - Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e o Centro de Informações de Segurança da
Aeronáutica – Cisa, órgãos vinculados às forças armadas para a vinculação de
informações sobre “subversivos”, foi o ápice do absurdo na inversão da arquitetura
institucional do Estado.
Ao ser “capturado” por agentes econômicos exógenos, o país teve sua composição
de passivos financeiros estabelecida de modo mais rentável para seus cobradores. Não à
toa, o Governo Militar, de fato, realizou uma série de obras públicas de infraestrutura,
embora tenha sido um dos maiores protagonistas do aumento galopante da dívida
externa do Brasil. Enquanto se garantia uma “soberania moralista”, o descolamento do
patamar histórico de dívida pública era inaugurado. A “soberania econômica” estava a
serviço do capital, como se pode ver pelo gráfico68
seguinte69
:
A partir do Regime Militar, a tendência de acentuação da Dívida Externa
Brasileira foi uma constante. Observando-se o gráfico acima, é possível verificar que o
grau de inclinação de uma linha média é praticamente o mesmo, independendo de quem
titulariza o Governo. Durante o Regime Militar, fosse uma linha mais dura, ou mais
que instituía o “Novo Código de Vencimentos dos Militares”. 68
Banco do Brasil, disponível em www.bcb.gov.br 69
A análise da produção legislativa desse período também evidencia as inúmeras linhas de crédito abertas para o Executivo nos mais diversos órgãos. É o caso, por exemplo, da Lei n. 5.175/66, que “autoriza a abertura do crédito especial de Cr$2.117.209.671 (dois bilhões, cento e dezessete milhões, duzentos e nove mil, seiscentos e setenta e um cruzeiros), para a restituição a “The Bank ofTokioLtd.” Sucessor de “The Yokohama Specie Bank Ltd.”.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
leve, o comportamento econômico é, quase sempre, semelhante.
Descobre-se, no entanto, que o massacre sistemático da sociedade civil também
não é um caminho saudável para o Governo Militar. A resistência, intelectual70
ou
violenta, foi a tônica do Regime. Novamente, também as forças econômicas não
conseguiram subjugar totalmente a opinião pública, a qual, com o tempo, foi se
apercebendo das circunstâncias que cercavam. Nesse sentido, a “reabertura” da
Democracia, após 21 (vinte e um) longos anos sob a nuvem de um Regime Ditatorial,
foi inevitável.
Os militares não se mostraram hábeis para lidar com mudanças macroeconômicas
que atingem o Brasil. Com a crise do Petróleo e a escassez de recursos no plano
internacional, a política militar baseada em energia barata e baixos custos financeiros
dos empréstimos internacionais entrou em colapso. Iniciam-se desalinhamentos dos
Militares com alguns setores da economia71
. A abertura, nas palavras dos autores
Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota, “nos leva a pensar (...) que ouve mais uma
transação do que uma transição”72
.
Em meio a uma nova organização mundial, com uma polarização totalmente
diferente da existente antes da II Guerra Mundial, novamente é dada ao Brasil a chance
de que seu povo chegue, de fato, próximo do centro de decisão. Ainda que por um breve
relâmpago, isso ocorre. O enfraquecimento do regime militar diante das mesmas forças
que o legitimaram fez com que a nova organização social promovesse uma verdadeira
ressurgência, pela qual o povo pôde participar do meio político. Os investidores norte-
americanos não mais admitiam renegociar a dívida, o modelo econômico brasileiro
tornou-se insustentável e o país foi mergulhado em uma recessão sem precedentes.
O resultado?
A eclosão de movimentos sociais de esquerda, que deram gênese à fundação do
Partido dos Trabalhadores e o lançamento da campanha pelas Eleições Diretas (“Diretas
Já”), o que foi personificado em uma Constituição Cidadã, Cooperativa, com traços de
entendimento Pós-Social, que lança o Brasil em direção a um futuro muito avançado do
70
Registre-se, aqui, a participação do Ministro Adauto Lúcio Cardoso, voto vencido diante do julgamento que reconheceu a constitucionalidade do AI-5, o qual, em protesto, jogou sua toga ao chão ao final do Julgamento. Importante também a participação do jurista Miguel Reale Júnior, então presidente da Assembleia, o qual ativamente liderou os advogados contra os impropérios jurídicos inaugurados pelo referido Ato. 71
Por exemplo, com a Light, companhia fornecedora de energia e luz, na exclamação irônica da Antônio Galloti, ex-presidente da empresa, 72
LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 852.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
que suas estruturas institucionais permitiam, naquele momento, alcançar. O Direito
Administrativo, criado a partir de então, seria o reflexo do entendimento da função do
Estado importando-se, principalmente, com o estudo da discricionariedade, na busca de
sua limitação.
Em termos numéricos, o Brasil de 1960 representava uma população de cerca de
71 milhões de habitantes, com 16 milhões de analfabetos maiores de 10 anos. Em 1980,
a população aumentara para 120 milhões, registrando-se 25% de analfabetismo adulto.
O balanço do regime militar, ao contrário do que insistem em alardear os apaixonados
românticos da Direita, não foi brilhante:
a) Dívida externa mais alta da história;
b) Inflação;
c) Desemprego;
d) Miséria, e;
e) Analfabetismo (60% da população do Brasil permanecia analfabeta ou
semianalfabeta).
Não se pode, no entanto, negar seus avanços. Os militares tiveram algum sucesso
no Planejamento estratégico do Estado brasileiro, atuando firmemente na expansão e
implantação de soluções de comunicação, economia, recursos energéticos e minerais,
tudo em harmonia com os interesses econômicos que patrocinaram sua estadia no
Poder.
5.1.A caminhada recalcitrante – O Super-Homem desnorteado
Infelizmente, o governo Sarney mudou muito pouco sua relação com o Poder.
Distribuindo favores a políticos e governadores de Estado que demonstrassem apoio ao
seu governo, a concessão de financiamentos para obras públicas estava muito mais
ligada a uma manutenção de mandato do que efetivamente a implementação de novos
caminhos para o Brasil. A inflação, herdada em patamares absurdos do governo militar
foi combatida com Planos, os quais, um a um, foram sendo vencidos pela força
inexorável dos atores econômicos.
O congelamento de preços do plano Cruzado, que durou um ano. A substituição
da moeda, agora chamada de “Cruzado”73
, o congelamento da taxa de câmbio, o
73
O Plano objetivava, em decorrência da inflação zero, a ocorrência de dois fatos: (a) o fim da
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
congelamento de salários (pela média dos últimos seis meses) com “gatilhos de
reajuste”, o congelamento da ORTN (que passou a chamar-se “OTN”), foram os
primeiros exemplos de plano econômico, o qual se revelaria, em um segundo momento,
mal sucedido74
. No entanto, a primeira impressão era de confiança na mudança
implementada.
Infelizmente, as dinâmicas econômicas estroçaram o plano como a uma partícula
em redor de um buraco negro. A não aplicação da taxa de desconto a ser implementada
sobre o valor presente de inúmeros produtos vendidos a prazo, aliada a reajustes e
abonos salariais, geraram um desequilíbrio entre demanda e oferta, que acabou por
acentuar as taxas de inflação, que irromperam galopantemente às limitações impostas
artificialmente75
. O pacote de julho76
, que visava antecipar as medidas necessárias ao
ajustamento da economia, mostrou-se demasiadamente tímido. A proximidade da
Constituinte também era um fator de risco considerável.
Próximo à Constituinte, foi lançado o Plano Cruzado II, como resposta aos
primeiros indicativos de colapso do primeiro plano. Com o constante aquecimento do
consumo e colapso da oferta, o volume insuficiente de investimentos e a balança
comercial deficitária (com redução da capacidade de investimento do setor público) foi
necessário repensar rapidamente a política econômica do país. Com essa finalidade, a
Administração volta a sobretaxar itens muito consumidos, criar novas modalidades de
caderneta de poupança, adia investimentos estatais, reduz gastos do setor público
mediante o impedimento da contratação de pessoal e da extinção e fusão de
empresas estatais (BNH absorvido pela CEF, por exemplo), estímulo às exportações,
desindexação da economia, inauguração do IPC restrito (alusivo ao consumo de
especulação financeira, que retirava investimentos de empreendimentos efetivamente produtivos e, (b) incentivo à ganhos de produtividade dentro das empresas, sem repasse da própria ineficiência ao consumidor final, uma vez que a inflação estava próxima de zero. 74
O comportamento econômico foi justamente o contrário, em função dos seguintes motivos: (a) migração dos valores em especulação para o consumo de bens duráveis, (b) aumento da massa salarial em virtude da expansão do emprego e da remuneração real média, (c) mudanças fiscais que reduziram a retenção de imposto de renda na fonte e (d) explosão de consumo baseada na falta de confiança na manutenção do congelamento de preços. 75
Quanto ao tema, vale registrar a contribuição valiosa do autor Marcelo Averbug, cuja análise está registrada em seu artigo “Plano Cruzado: Crônica de Uma Experiência”, disponível em http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev2408.pdf. 76
O pacote tinha como principais pilares: (a) instituição de empréstimo compulsório sobre carros e combustíveis, (b) determinação de pagamento de encargo financeiro na compra de passagens e moeda estrangeira, (c) Plano de Metas com foco social e infraestrutura, (d) criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento – FND, (e) incentivos à poupança e (f) exclusão do empréstimo compulsório da base de cálculo do IPC.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
trabalhadores até 5 salários mínimos) e aplicação do gatilho salarial. A resposta foi
tímida, mas importante. Mais de 560 mil empregos criados entre janeiro e junho de
1986 (estima-se que, neste ano, tenham sido criados mais de um milhão de postos de
trabalho). A expansão do consumo, inclusive, incentivou não apenas a contratação, mas
o pagamento de melhores salários aos novos contratados.
No entanto o plano falhou. Embora inúmeras medidas tenham sido estruturadas de
forma economicamente correta, fato é que a Administração não cortou na própria carne.
A austeridade fiscal e econômica restringiu-se apenas à iniciativa privada, a qual
minguou e, fraca, não foi capaz de gerar o superávit primário necessário à manutenção
das engrenagens públicas. A tentativa de impor-se com poder de imperium levou o país
a uma crise de confiança dos empreendedores, uma vez que as recorrentes apropriações
compulsórias eram interpretadas – corretamente – como violação do princípio da livre
iniciativa.
No plano internacional, o Brasil declara moratória.
6. CONSTITUINTE – A PRIMEIRA IMAGEM DO SUPER-HOMEM
A transição para o regime democrático se deu de forma relativamente pacífica77
.
Embora muitos intelectuais da época afirmassem se tratar de uma “redemocratização”,
fato é – como testemunhado nas linhas anteriores – que o Brasil nunca havia, realmente,
presenciado um regime essencialmente democrático. A Primeira República contou com
a ajuda militar para se instaurar, da mesma forma que o segundo regime, o que revela
por si mesmo um caráter pouco popular. A Assembleia (ou Congresso, na preferência
de alguns) Constituinte, foi um capítulo à parte. A participação popular em massa
inaugurou um cenário completamente desconhecido do Brasil, o que já fora conhecido
das outras nações há pelo menos dois séculos: o povo, ainda que momentaneamente, se
aproxima do centro de poder.
O caldo econômico em que se instaurou o movimento das “Diretas Já” era sem
precedentes na história do país. Contou com a participação de diversos segmentos da
sociedade com amplitude inédita. A então recente experiência de eleição indireta, via
“Colégio Eleitoral”, não havia traduzido os verdadeiros anseios populares. A eleição do
“sucessor de Figueiredo” com esse mecanismo já não havia surtido efeito e condensou a
77
A despeito do atentado no Rio Centro que revelou a (in)competência dos militares brasileiros com assuntos econômicos e, inclusive, militares.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
insatisfação geral com a arquitetura político-econômica adotada78
, o que era entendido
como “entulho autoritário” na legislação, nas instituições, na economia e na vida em
geral. Eram pontos críticos: (i) a malversação do dinheiro público e (ii) a fragilidade dos
partidos políticos.
A histórica corrupção dos governos, reflexo comportamental da ligação de
propriedade entre os Administradores e a estrutura pública, produziu ricos a granel, e
milionários, cuja fortuna estava calcada no “milagre econômico”, especialistas na
transgressão moral da Administração, muitas vezes estabeleciam-se sob a fachada de
empreiteiras, apenas para “girar” o moedor das finanças públicas para seus bolsos. Os
próprios militares, agora em trajes civis, vestiam nas palavras da Adriana Lopez, “a
fantasia de executivos que não resistiam à “gentilezas” no convívio com as
multinacionais, empreiteiras e indústrias de automóveis, de autopeças, de material
bélico, companhias de seguros, de aviação, etc”79
.
O Brasil era, novamente, levado para as conhecidas marés dos coronéis, os quais,
desejosos do status quo e experientes na contrarreforma, esperavam dominar a
sociedade civil nos moldes do que historicamente operavam. No entanto, o mundo era
outro. As relações sociais moldadas “a ferro frio pelos grilhões da Ditadura” eram
demasiadamente fortes para se iludir com as primeiras movimentações
pseudodemocráticas. Entram em cena a Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”), a
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (“SBPC”), a Associação Brasileira de
Imprensa (“ABI”), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (“CNBB”), a
Associação dos Advogados de São Paulo (“AASP”) e tantas outros grupos, inclusive as
honrosas associações de professores, como a Associação dos Docentes da USP
(“DUSP”) e a Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
(“APEOESP”). Um mundo cuja complexidade não comportava mais o maniqueísmo
coronelista.
Aqueles que participaram diretamente do processo constitucional testemunham
investidas de grupos historicamente invisíveis ou, ao menos, pouco expressivos. É o
caso de Dalmo de Abreu Dallari que, ao mencionar visita à Montes Claros, cidade de
Darcy Ribeiro, fora abordado por uma associação de mulheres, das quais recebeu “um
78
Essa é, inclusive, a principal crítica do atual Ministro Luís Roberto Barroso à aplicação direta do ensaio “Good Bye Montesquieu”, de Bruce Ackerman, à realidade brasileira, conforme exposição realizada em 14 de junho de 2013, na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. 79
LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil – Uma interpretação, Ed. Senac, SP, 2008, p. 887.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
documento, muito bem elaborado, contendo propostas objetivas e absolutamente
razoáveis, com o pedido de que eu o encaminhasse à Constituinte. Eis um exemplo de
participação popular consciente e racional, mostrando que o povo está preparado para
manifestar opiniões e quer participação, não tutela.”80
. Quebrava-se o conservadorismo
cego, que subestimava a capacidade e a heterogeneidade da sociedade que
historicamente se formara.
Em termos gerais, a Constituição de 1988 é a mais progressista que o país já teve.
Registre-se, por exemplo, a possibilidade de qualquer cidadão mover uma ação contra o
governo, a instituição do habeas-data (em reflexo ao imoral monitoramento do Regime
Militar à cidadãos como fonte de intimidação), fim da censura prévia, independência
sindical permitindo o amplo direito de greve, além de ampliar direitos trabalhistas
constitucionalizando-os. No plano econômico, reservou várias atividades somente para
empresas nacionais, protegendo o empresariado pátrio e no campo da arquitetura
institucional, reforçou o federalismo, ampliando a autonomia administrativa dos
Estados.
Infelizmente, nas primeiras eleições, o contraponto político ao avanço
constitucional era personificado pelo candidato jovem, atlético, bom orador, oriundo de
um partido pequeno e desconhecido: Fernando Collor de Mello. Com uma esquerda
completamente desarticulada, a melhor opção, como posteriormente foi desenhado, era
Luis Inácio Lula da Silva. O segundo turno foi marcado por uma imagem, no mínimo,
peculiar: de um lado, o candidato das oligarquias históricas, jovem, rico e esportista; de
outro, o candidato dos metalúrgicos, saído do mundo do ABC paulista.
O resultado foi o mesmo daquele percebido na primeira república, sob o lema de
Wenceslau Brás “Nem ceder nem usurpar”, sempre recorrendo à moralização da
Administração, foi eleito Exmo. Presidente o Sr. Fernando Collor de Mello, que enchia
seus discursos de expressões cunhadas nas mesas de marketing como “luta contra os
marajás” e a “defesa dos descamisados” (expressão originalmente do líder populista
argentino, Juan Domingo Perón), o que logo deixou transparecer sua genética política
no uso de expedientes bem conhecidos: troca de favores, cobrança de comissões para
realizar obras públicas, dentre outros hábitos bastante habituais ao longo da história
nacional.
Logo de início, o novo presidente anunciaria a sua estratégia econômica, o “Plano
80
Depoimento de Dalmo de Abreu Dallari aos historiadores Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
Collor”, como ficaria conhecido, cujo objetivo era, prioritariamente, o combate à
inflação. Como não deixaria de ser, a habilidade do presidente com a economia era
semelhante à dos senhores de engenho, da região da qual saiu, no trato cívico com seus
escravos. O “Plano Surpresa”, dirigido pela igualmente competente professora Zélia
Cardoso de Mello, teve como medida inicial o confisco dos ativos financeiros de todos
os cidadãos. As perdas econômicas, políticas e sociais foram incalculáveis...
O Plano Collor revelou-se um verdadeiro “neoliberalismo de botequim”. Com a
adoção de medidas que superariam o fracasso do “Plano Cruzado”, substituindo a
moeda pelo Cruzado Novo e tentando uma privatização desesperada. Foram demitidos
inúmeros funcionários públicos, eliminadas as barreiras a importações (flagrantemente
contra os interesses registrados na recente carta constitucional), criação de novos
impostos e elevação de outros. A exemplo do plano no qual foi inspirado, o Plano
Collor também não se dedicou a efetivamente equilibrar a economia nacional, mas tão
somente “coibir o consumo” e sofreu o mesmo destino: após um suspiro de esperança,
foi jogado no abismo do descontrole.
O ambiente político no qual se desenhou a atuação de Collor foi único. Com a
recente participação da sociedade no jogo de Poder, o então presidente logo começou a
ser vítima de denúncias de corrupção, o que foi titularizado pelo próprio irmão, Pedro
Collor, que não economizou nas informações: fraude eleitoral, subornos, desvio de
dólares, falsificações de concorrências públicas etc. A consequente manifestação
popular, com a figura iconográfica dos “Caras Pintadas”, culminou no seu impedimento
votado pelo Senado.
Após cumprir pena de oito anos de afastamento da vida política, volta ao
parlamento nacional na condição de Senador pelo Estado de Alagoas, figurando
alinhado, frise-se, ao governo Lula, seu primeiro adversário.
Em seguida aos escândalos do Governo que culminou com a expulsão de Collor
do meio político, assume o seu vice, o mineiro Itamar Franco (1992-1994). Em seu
governo, deram-se alguns momentos jurídicos de peso para o país: (a) realização do
plebiscito em que foi aprovado o regime republicano e o sistema presidencialista, (b) a
edição da Lei de Contratos e Licitações Públicas – Lei 8.666/93 e (c) a elaboração e
implementação do Plano Real.
Em sentido completamente diferente dos planos anteriores, o Plano Real foi
antecedido por uma série de medidas que prepararam o terreno para a sua implantação.
Em 1993, o Cruzeiro foi substituído pelo transitório Cruzeiro Real e somente em julho,
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do ano subsequente, apresentaria o Plano, ficando proibido qualquer tipo de indexação.
O sucesso do Plano, baseado nas novas teorias econômicas da Teoria Neo-Estruturalista
da Inflação Inercial81
, foi sentido logo de início pelos brasileiros, já escaldados com as
promessas de planos anteriores. A inflação brasileira, como sentida pelos 13 (treze)
planos econômicos anteriores, não era solucionada pelas Teorias Monetaristas (baseadas
no déficit público, na emissão de moeda e nas decorrentes expectativas inflacionárias)
nem pelas Teorias Keynesianas (apoiadas no déficit público e no decorrente excesso de
demanda), dessa forma, nem o ajuste fiscal, nem o controle monetário se revelavam
suficientemente efetivas. Mesmo que se tratassem as causas, existia uma “inércia
inflacionária”82
. O choque para a mudança de direção inercial foi ameno.
Consubstanciou-se no controle fiscal e, principalmente, na fase da URV (moeda-índice)
do Plano.
O Estado entende a sua força e consegue, finalmente, controlar as ameaças sem
precisar, no entanto, destruir todo o ambiente econômico nacional para a chegar ao seu
objetivo.
6.1.Reforma do Aparelho do Estado – O Super-Homem e a Sociedade contra
o Leviatã
Antes de analisar o período seguinte, necessário se faz a reflexão sobre a reforma
do aparelho do Estado procedida pelo Governo FHC. O autor Marcelo Rangel Lennertz,
em sua dissertação de Mestrado83
, desenhou perfeitamente o panorama brasileiro
naquele momento. Na década 1990, após a turbulência havida pela abertura e a
necessidade de se controlar os impulsos econômicos mais violentos, um grupo de
notáveis, desejosos de um novo modelo de Administração, decidiram repensar o Estado.
Não só o Estado como entidade abstrata que povoa as ciências sociais, mas a arquitetura
institucional que se materializa no comportamento econômico-financeiro do quotidiano
Administração-Administrado. Pela primeira vez no Brasil, a Administração seria
desmontada, estudada e, finalmente, remontada sem os vícios que se perpetuavam nos
81
Teoria que inova no estabelecimento da diferenciação entre os fatores aceleradores e os fatores mantenedores da inflação. 82
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A economia e a política do Plano Real. Disponível em http://www.rep.org.br/pdf/56-10.pdf , acessado em 12/08/2013. 83
Este capítulo foi diretamente influenciado pelo trabalho de LENNERTZ, Marcelo Rangel. Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: Entre a Faticidade e Validade. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077221.pdf, acessado em 15/08/2013.
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diferentes momentos históricos do Brasil.
O grupo liderado por Fernando Henrique Cardoso, contava com a participação de
Luis Carlos Bresser, Persio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco, Pedro Malan,
Edmar Bacha, Clóvis Carvalho e Winston Fritsch. Lennertz expõe que o Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE divide a atuação estatal em 4 (quatro)
níveis, a saber:
a) Núcleo Estratégico – correspondente ao Governo em sentido amplo, cujas
atividades não poderiam ser delegadas pelo Estado;
b) Atividades exclusivas do Estado – ou seja, aqueles serviços que só o Estado
poderia realizar e que, portanto, não poderiam ser transferidos;
c) Setor de Atuação Simultânea do Estado e Outras Organizações Públicas Não-
Estatais e Privadas – que seriam atividades com caráter essencialmente
público, mas nas quais o Estado não atuaria privativamente, e;
d) Setor de Produção de Bens e Serviços para o Mercado – menos característico
em termos de intervenção “exclusiva e/ou necessária” do Estado, podendo tais
atividades, portanto, serem privatizadas ficando o Estado com a
regulamentação e controle do seu exercício pelos entes privados84
.
A gradação seria, portanto, vista
de um ângulo em que eram pesadas a
efetividade e a eficiência. No plano
da atuação estratégica, no qual estão
englobadas as atividades do
Legislativo, do Judiciário e aquelas
que não podem ser delegadas pelo
Executivo, o que se visa é a
efetividade ante a eficiência. O ajuste
fino com a expectativa pública é mais
importante do que a busca pela melhor gestão dos ativos na sua implementação. No
Setor de Produção de Bens e Serviços para o Mercado, ao contrário, o que se visa é a
eficiência. A efetividade será garantida por meio da regulação, o que acena com a
possibilidade de se conseguir a Diretriz Estatal e a Eficiência Executiva Privada.
84
LENNERTZ, Marcelo Rangel. Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: Entre a Faticidade e Validade. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077221.pdf, acessado em 15/08/2013, p. 30-31.
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Nesse sentido, modifica-se a histórica organização do Estado em torno dos
escritórios (“boureaus”), para uma postura gerencial, gestora. A Administração deixa de
se comprometer apenas com a efetividade de determinada interação com os
Administrados, mas no monitoramento da qualidade e quantidade, a ser implementada
por um parceiro privado, devidamente constituído para este fim. Para isso, o PDRAE
aponta três esferas necessárias à modificações:
a) Institucional-Legal – reforma do sistema jurídico-legal, principalmente da
ordem constitucional;
b) Cultural – necessidade de cooperação entre Administradores e Funcionários
para constituição de uma “cultura gerencial”;
c) Gestão – ou seja, a absorção pela Administração, de conceitos e práticas que
tenham compromisso com a efetividade e eficiência na prestação dos serviços
por ela titularizados.
No plano jurídico, portanto, vale a máxima de Delfim Netto, para quem “primeiro
se faz o faroeste; depois se traz o xerife”85
, entendendo que as soluções jurídicas nascem
para acudir necessidades que, via de regra, as outras ciências jurídicas apresentam.
Diante dessa virada radical do pensamento sobre as instituições e atuação política, o
Direito Administrativo não poderia virar as costas. Novos entendimentos, institutos e
princípios tiveram de ser desenhados, ou resgatados, para possibilitar as pontes
necessárias entre o que existia, de fato, e o que era desejado pelo Governo.
A redução do aparelho Estatal, dessa forma, estava menos ligado a uma ideia de
posicionamento político à esquerda ou à direita. Era a primeira tentativa efetiva de um
dimensionamento economicamente eficiente. O design comprometido com o
desenvolvimento de um capitalismo pró-social ensejava uma maior participação privada
nos assuntos públicos, não para dele se “apoderar”, mas para trazer ao ambiente estatal
aquilo que era desejado no ambiente privado: a eficiência competitiva.
As mudanças seguintes foram, no ano de 1995, a edição das Leis 8.987 e 9.074,
que materializam o movimento da “contratualização” do Estado. O modelo do
“contrato” para a Administração registra o abandono do autoritarismo para a adoção da
consensualidade, segundo a nova mentalidade inaugurada pelo pensamento estatal. A
apropriação da eficiência privada traria o tempero econômico necessário para o
reposicionamento fiscal. Diferentemente do feito por Fernando de Noronha em 1503,
85
GATTO, Coriolano; FARO, Luiz Cesar; ALMEIDA, Rodrigo de. José Luis Bulhões Pedreira – A invenção do Estado Moderno Brasileiro. Insight Engenharia de Comunicação, 2009, p.45.
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aqui, o parceiro privado contaria, ombro a ombro, com a presença do parceiro
público, em uma “simbiose” econômico-jurídica que responderia às necessidades
daquele planejamento, fundado no “Best Value for Money” (melhor valor para o
dinheiro)86
.
Os primeiros avanços foram sentidos nos serviços públicos inicialmente
concedidos aos privados. A criação das Agências Reguladoras daria o subsídio para a
harmonização dos interesses das esferas pública e privada. Os primeiros serviços
concessionados foram aqueles em que o monopólio, do ponto de vista econômico, não
era necessário. Assim, a telefonia e a energia elétrica87
seriam os primeiros setores a
absorver a nova metodologia de interação do Estado, o qual não mais seria titular de sua
primarização vertical.
Segundo Dinorá Adelaida MusettiGrotti88
, a política subsequente à lei geral de
concessões garantiria à modelagem de concessões, as seguintes características:
a) Eliminação na exclusividade na prestação do serviço público;
b) Estabelecimento de política tarifária embasada no valor da proposta vencedora,
não mais na garantia de remuneração fixa, visando eficiência;
c) Estabelecimento de regime de controle e fiscalização do serviço, do qual o
próprio usuário participa, e de gradação de penalidades pelas faltas cometidas,
com vistas à elevação dos padrões de eficiência na prestação do serviço
público.
Ao final de seu segundo mandato, FHC ainda edita a Lei Complementar n. 101,
conhecida por “Lei de Responsabilidade Fiscal”, a qual deixaria um legado bastante
desejável nas diretrizes de finanças públicas para Estados e Municípios. O panorama, no
entanto, deveria ser aprimorado. Algumas características pontuais de autocracia
cismavam em perpetuar: a larga utilização de medidas provisórias para a resolução de
questões que deveriam ser debatidas e votadas pelo Congresso.
No entanto, cenário melhor não poderia existir que não aquele proporcionado por
uma nova eleição presidencial.
86
Neste ponto, vale mencionar o excelente estudo do autor Leonardo M. Grilo Rubens T. Alves, “Parceria Público-Privada (PPP): Análise do Mérito de Projetos de PPP no Brasil. 87
Em sentido semelhante, o segmento de energia elétrica necessitou de trato específico, o que foi resolvido com a edição da Lei n. 9.427/96 e respectivas alterações. 88
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A Experiência Brasileira nas Concessões de Serviço Público, p. 12. Disponível em http://www4.tce.sp.gov.br/sites/default/files/A-experiencia-brasileira-concessoes-servico-publico-artigo_0.pdf, acessado em 19/08/2013.
Artigo para Discussão – últimaversãoem 17 de novembro de 2013
7. O GOVERNO LULA/DILMA ROUSSEF
A titularidade da Administração Pública passaria de mãos. Embora o novo
governo fosse liderado pela oposição, fato é que a passagem de faixas se deu de forma
cordial e pacífica, o que era simbólico: o intelectual reformista passaria a faixa
presidencial ao primeiro operário a subir a rampa do Palácio do Planalto. A mensagem
implícita era de que as ideologias eram dicotômicas, mas o ambiente era de harmonia.
Lula também soube acalmar os ânimos a seu respeito. Assim que chegou, deu
uma satisfação ao mercado financeiro, escolhendo o experiente Henrique Meirelles, ex-
Bank Boston, para dirigir o Banco Central brasileiro. No entanto, a tranquilidade duraria
pouco. Inúmeras invasões no campo, bem como escândalos de desvio de dinheiro
assolam o Governo do Partido dos Trabalhadores. Se a Direita, no passado, apropriou-se
do maquinário público para a perpetração dos maiores absurdos políticos, era chegada a
vez da Esquerda comprovar que era diferente e, infelizmente, não era.
Em meio a escândalos financeiros, políticos e brigas no campo, o Governo Lula
não se desviou do Plano Geral definido pelo PDRAE. A interação entre a iniciativa
pública e os organismos privados seria levado a outro nível. Por influência de
legislações exógenas, principalmente as de origem inglesa, o Brasil incorpora a figura
dos PFI (private financial initiative) ingleses, dando-lhes o nome de “Parcerias Público-
Privadas”, editando, no plano federal89
, a Lei 11.079/05 para dar o tratamento legal do
assunto.
Era clara a ruptura com o modelo estatal anterior testada diante da presença de
políticos de centro e de esquerda, e que consubstanciava o fim dos “golpismos
desenfreados” que por 500 anos tomaram o Brasil. Foram estabelecidos os institutos
necessários à interação entre a Administração e seus Administrados em bases sólidas,
estáveis. Uma nova fase, que mudaria o Estado de uma posição autoritária, a serviço dos
grupos socialmente mais privilegiados, o Leviatã, para a defesa dos grupos
historicamente desamparados, utilizando-se da força da própria sociedade e do capital, o
89
No plano Estadual, já aprovaram suas leis Minas Gerais (Lei Estadual 14.868/03), São Paulo (Lei Estadual 11.688/04), Santa Catarina (Lei Estadual 12.930/04), Distrito Federal (Lei Distrital 3.792/06), Goiás (Lei Estadual 14.910/04), Bahia (Lei Estadual 9.290/04), Sergipe (Lei Estadual 5.507/04), Ceará (Lei Estadual 13.557/04), Rio Grande do Sul (Lei Estadual 12.234/05), Pernambuco (Lei Estadual 12.765/05), Amapá (Lei Estadual 921/05), Piauí (Lei Estadual 5.494/05), Rio Grande do Norte (Lei Complementar 307/05), Maranhão (Lei Estadual 8.437/06), Rio de Janeiro (Lei Estadual 5.068/07), Paraíba (Lei Estadual 8.684/08), Alagoas (Lei 3.363/0 Lei Estadual 6.972/088), Amazonas (Lei Estadual 3.363/08), Espírito Santo (Lei Complementar 492/09) e Tocantins (Lei Estadual 2231/09).
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Super-Homem. Resta saber se o Direito Administrativo entende da mesma forma, ou se
permanecerá trazendo para o mundo jurídico, os posicionamentos já superados no
universo fático.
Com isso, também pôde ser percebido um amadurecimento no Direito
Administrativo Brasileiro. Em meio à estabilidade econômica e política, o “pensar no
Estado” passou a ser uma realidade factível. A consequência foi a maior aproximação
entre a Administração e a inciativa privada, aproximando os atores desta relação tanto
comercialmente quanto juridicamente. Alguns conceitos foram mitigados, como ocorreu
no oferecimento de garantias do parceiro público para o parceiro privado no âmbito das
parcerias público-privadas, e o ataque a problemas sistêmicos na infraestrutura puderam
ser realizados com êxito.
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