digesto econômico nº 446

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Janeiro e Fevereiro de 2008

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3JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

CARTA AO LEITOR

Esta é a primeira edição da revista Digesto Econômico de 2008, ano que promete muitaluta e empenho para todos os brasileiros. Nem bem o ano começou e o governo anuncioumedidas para aumentar o peso da carga fiscal, supostamente para compensar a perda daCPMF, subindo as alíquotas do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e da CSLL(Contribuição sobre o Lucro Líquido). Em 2007, batemos um novo recorde de arrecadação deimpostos, que chegou a 36% do Produto Interno Bruto. Isso significa que, para cada R$ 100,R$ 36 foram parar nos cofres do governo. E pelo andar da carruagem e o cerco do fisco, umnovo recorde deverá ser alcançado este ano - e gostaríamos de ver a mesma eficiência nasdespesas e eliminação dos encargos burocráticos.

A carga tributária excessivamente pesada, sem o respectivo retorno em forma de serviços ebenefícios, atrasa o desenvolvimento do País, que não tem aproveitado o bom momento daeconomia mundial para crescer, a exemplo de países como China, Rússia, Índia e mesmo aArgentina. Em seu artigo, o tributarista Ives Gandra Martins aborda exatamente esteassunto, mostrando como o Leão vem fazendo o País eternizar o seu estigma de ser, sempre,"o país do futuro", e nunca o do presente.

E poderemos pagar caro por isso, pois os tempos de bonança parecem chegar ao fim. OsEUA dão sinais de que caminham para a recessão, e o mundo pode ir junto. A análise darecessão americana é tema do artigo do economista Roberto Fendt.

Na matéria de capa abordamos os 10 anos das privatizações do governo FernandoHenrique Cardoso. O setor de telecomunicações é um exemplo claro de que, quando háregras claras e respeito aos contratos, a iniciativa privada responde com eficiência e bonsserviços. Hoje, brasileiros de qualquer lugar do País têm acesso a um telefone, fixo ou celular,a custos acessíveis, o que era impensável quando o serviço estava nas mãos do Estado.

Entre outros destaques da edição, o sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeidacolaborou com dois importantes artigos, um mostrando como a atual estratégia de políticaexterna do governo Lula é moldada pelas diretrizes do Foro de São Paulo (movimento quepretende difundir o socialismo em toda a América Latina), e outro analisando a herança quePortugal nos deixou, refletida na atual situação do Brasil.

Contando com a colaboração de especialistas do mais alto gabarito, e ao abordar temasrelevantes ao destino do País, raramente discutidos na mídia ou mesmo no meio acadêmico,a revista Digesto Econômico tem cumprido o objetivo para o qual foi criada pela AssociaçãoComercial de São Paulo há mais de 60 anos – o de representar um canal de comunicação coma classe empresarial e política, o mundo acadêmico e todos aqueles que se dedicam aosestudos dos problemas brasileiros.

Boa leitura!

Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de São Paulo e da

Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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4 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteAlencar Burti

Superintendente InstitucionalMarcel Domingos Solimeo

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sDomingos Zamagna e Carlos Ossamu

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto GráficoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

D iagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Lino Fernandes

Ar teCéllus

Jair Soarez

Gerente ComercialArthur Gebara Jr.

([email protected]) 3244-3122

Gerente de OperaçõesJosé Gonçalves de Faria Filho

( j f i l h o @ a c s p. co m . b r )

I m p re s s ã oLab orgraf

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

w w w. d co m e rc i o. co m . b r

Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimaxfosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax

fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.

CAPAArte: Liliane DornelasFotografia: Marcos Muzi/Fator Z

ÍNDICE

6 A locomotiva das privatizaçõesPatrícia Büll

18 A herança portuguesa e a obra brasileiraPaulo Roberto de Almeida

Reprodução

Reprodução/Pintura de Nicolas Louis Albert Delerive

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5JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

32A história da históriado BrasilRenato Pompeu

Reprodução

40Imprensa brasileira faz200 anosHeci Regina Candiani

Reprodução

46O Brasil como atorregionalPaulo Roberto de Almeida

Dida Sampaio/AE

62Uma republiqueta fiscalIves Gandra da Silva Martins

66Delicadeza letalOlavo de Carvalho

Molly Riley/Reuters

70Greenspan e a recessãoamericanaRoberto Fendt

Justin Sullivan/AFP

74De Bali para o mundo...nada, por enquantoJosé Goldemberg

Dida Sampaio/AE

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6 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

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7JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

10ANOS

A locomotiva dasprivatizações

Mesmo com eventuais manifestações pelareestatização, o sucesso das privatizações

'atropela' o pedido de volta ao passado

Patrícia Büll

No momento em que o governo do Estado de SãoPaulo anuncia a licitação para a privatização doque resta da Companhia Energética de São Paulo(Cesp) e do trecho Oeste do Rodoanel Mário Co-

vas, enfrenta o velho e conhecido bordão "diga não à privatiza-ção", o mercado se prepara para comemorar, em 2008, uma dé-cada de desestatização do setor de telecomunicações no Brasil.Em julho de 1998, o Sistema Telebrás saiu das mãos do governofederal para ser explorado pela iniciativa privada. Foram 12 lei-lões consecutivos na então Bolsa de Valores do Rio de Janeiro paraa venda do controle das três holdings de telefonia fixa, uma delonga distância e oito de telefonia celular, configurando a maioroperação de privatização de um bloco de controle já realizada nomundo. Com a operação, o governo arrecadou um total de R$ 22bilhões. Apesar do ágio de 63% sobre o preço mínimo estipulado,até hoje há questionamentos sobre esses valores.

Esses questionamentos se juntam ao coro dos descontentescom a venda de outras 19 empresas dos setores petroquímicos,financeiro, de informática e mineração, como a Companhia Valedo Rio Doce, hoje só Vale, então a maior, mais importante e lu-crativa estatal brasileira. Passados mais de dez anos desde o iní-cio dessas operações, as empresas que agora controlam as ex-estatais ainda enfrentam brigas na justiça e vez ou outra, gruposde ex-funcionários e de políticos extremados realizam manifes-

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tações, passeatas e até plebiscito – como o queocorreu em setembro do ano passado envol-vendo a Vale, que tem cerca de 150 processos naJustiça questionando a mudança de lado – pe-dindo a reestatização.

Nacionalismo à parte, não há como negar osavanços que essas privatizações trouxeram.Quem não se lembra dos intermináveis planosde expansão para ter acesso a uma linha telefô-nica residencial, que chegavam a durar até 24meses? Ou do perigo das viagens pelas rodoviasde mão dupla, que ainda perduram em mais de90% das rodovias do País? Hoje, esses enredosparecem muito antigos. Afinal, de um telefonepúblico é possível solicitar uma linha telefônica eem poucos dias, ter o serviço disponível em casa.Trafegar em quatro faixas, principalmente nasrodovias estaduais, também é muito mais segu-ro e prazeroso. Por outro lado, a falta de concor-rência na telefonia fixa, com um quase monopó-lio privado, deixa a população refém de serviçosde qualidade às vezes duvidosos, de preços abu-sivos e de cobranças sem sentido. Isso sem falardos inúmeros – e caros – pedágios distribuídosao longo das estradas.

De carona no recente processo de concessãodo segundo lote de rodovias federais para ainiciativa privada, feito pelo Partido dos Tra-balhadores (PT) – historicamente defensor fer-renho do controle do Estado – e do anúncio,feito pelo governador José Serra (PSDB), daabertura de licitação para a venda da Compa-nhia Energética de São Paulo (CESP), ainda noprimeiro semestre deste ano e do leilão para aConcessão do Trecho Oeste do Rodoanel, a Di-gesto Econômico ouviu especialistas sobre oprocesso de privatização no Brasil. Avanços,retrocessos, acertos e equívocos desse tema tãobatido, mas que ainda divide opiniões.

Dívida pública, investimentoe eficiência

Alavancar investimentos, aumentar a eficiên-cia das empresas e aliviar o crescimento da dívi-da pública eram os objetivos primordiais dasprivatizações brasileiras, que de 1990 a 2002 ar-recadaram mais de R$ 105 bilhões, sendo R$ 87,2bilhões em receitas e R$ 18 bilhões em dívidastransferidas ao setor privado. "Visto que as recei-tas obtidas com a venda das empresas estatais fo-ram utilizadas quase que exclusivamente paracobrir a dívida pública, pode-se dizer que a pri-vatização foi muito bem sucedida", analisa Ar-mando Castelar, economista do Instituo de Pes-quisa Econômica Aplicada (Ipea).

Para ele, o setor de telecomunicações é um

bom exemplo desse sucesso, que viveu uma ex-plosão gigantesca de oferta de serviços no pe-ríodo pós-privatizações. Para se ter uma idéia,em 1998 o País contava com 8,4 milhões de te-lefones, entre fixos e celulares. Em 2006, dadomais atual da Agência Nacional de Telecomu-nicações (Anatel), esse número saltou para138,7 milhões. Números impressionantes que,para Castelar, se repetem nas rodovias concedi-das, que têm um desempenho muito melhor doque as não privatizadas, tanto em termos dequeda do número de acidentes, quanto na qua-lidade das pistas e melhora da sinalização. Paraele, mesmo as estatais lucrativas, como a Com-panhia Vale do Rio Doce, tiveram melhoras gi-gantescas tanto em termos de eficiência quantode lucratividade no período pós-privatização."A Vale virou outra empresa: além de mais efi-ciente, teve uma possibilidade de expansão quenunca teria se permanecesse como estatal. Tan-to que é hoje, a segunda maior empresa do Bra-sil e a maior companhia privada da América La-tina", exemplifica Castelar. Essa opinião é com-partilhada pelo advogado Renato Parreira Stet-ner, sócio do Castro, Barros, Sobral, GomesAdvogados. "É verdade que a Vale dava lucro,mas muito menos do que hoje. Atualmente elacontribui muito mais com o governo federal co-mo pagadora de impostos do que contribuía co-mo geradora de dividendos quando o governoera o acionista controlador", afirma Stetner.

Defensor da participação privada em qual-quer setor público, mesmo naqueles que consi-

A população tem hoje acesso fácil àtelefonia, fixa ou móvel.

Newton Santos/Hype

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dera de atuação tipicamente governamental,como saúde e educação "onde poderia agir atra-vés de parceria público-privada e de formapontual", Stetner afirma que as privatizaçõespoderiam avançar para áreas como portos, ro-dovias e até aeroportos, que ainda permanecemtotalmente sob controle estatal. "A privatizaçãonão surgiu de uma decisão ideológica, mas daconstatação de que alguns serviços públicosprecisavam ser melhorados – ou mesmo im-plantados – em uma situação que o Estado nãotinha dinheiro para atender. E, isso continua va-lendo. Basta avaliar a situação em que se encon-tram os setores que não foram privatizados".Como exemplo, o advogado cita as rodovias."onde não houve concessão, estão em estado la-mentável, não comportam tráfego, são mal cui-dadas e sinalizadas, exatamente o oposto doque ocorre nas concedidas."

Para comparar em termos de melhora de in-fra-estrutura, as 38 concessionárias de rodoviasem operação no Brasil investiram de 1996 a 2006,R$ 11,9 bilhões nos 10 mil quilômetros que admi-nistram, de acordo com a Associação Brasileirade Concessionárias de Rodovias (ABCR). Já oPrograma de Aceleração do Crescimento (PAC),do governo federal, prevê investimentos de R$25,3 bilhões para o período de 2008 a 2010 paramais de 42 mil quilômetros de rodovias, dividi-dos em recuperação, adequação e construção.

Desenvolvimento dos arredores

Para James Wright, coordenador do Profu-turo, programa da Fundação Instituto de Ad-ministração (FIA) e professor da Universidadede São Paulo (USP), além do ganho de eficiên-cia, as privatizações levam desenvolvimentopara as cidades no entorno. Como exemplo elecita as cidades onde as praças de pedágios es-tão localizadas. "Possuir uma malha viária dequalidade atrai interesse do setor produtivo,

que instala fábricas ou subsidiárias nessas ci-dades, geram mais empregos e tributos para acidade, com benefícios diretos e acesso cres-cente a repasses de tributos estaduais e fede-rais. Além de estimularem a própria economialocal, demandando produtos e serviços paraatender o próprio negócio. Isso tudo cria um ci-clo virtuoso de desenvolvimento da região.",explica Wright.

Se os especialistas são unânimes em apon-tar os benefícios da privatização, o mesmoocorre quando falam da importância das agên-cias reguladoras. "Mas elas precisam ser autô-nomas e ter eficiência técnica para cumprir opapel que lhes cabe", afirma James Wright, daFIA, complementando que elas devem traba-lhar para garantir um mercado equilibrado,onde empresas, governo e consumidores se-jam atendidos de maneira igual. Há quem di-ga, inclusive que, se um desses três persona-gens estiver mais feliz do que os outros, a agên-cia não está cumprindo seu papel. Verdade ounão, muitas delas têm até hoje seu papel ques-tionado, como foi o caso da Agência Nacionalde Aviação Civil (Anac) durante a crise aérea.

Na opinião do advogado Renato ParreiraStetner, sócio do Castro, Barros, Sobral, GomesAdvogados, que assessorou empresas duran-te o processo de privatização dos setores de te-lefonia, de energia e de rodovias, a atuação dasagências ainda precisa melhorar muito. "Mas asituação hoje é muito melhor do que era antesdas agências existirem", garante o advogado.Segundo Stetner, as agências são fenômenopositivo, mas não têm a capacidade de fiscali-zação necessária, por exemplo. "Há dois fato-res que impedem uma atuação mais eficaz dasagências: um é referente à própria estruturadas agências, com problemas decorrentes daarquitetura legal delas. O outro, e talvez maisgrave, é que elas precisam de mais dinheiro pa-ra investir na própria estrutura", afirma.

Pedágio naRodovia dosBandeirantes:usuário pagaR$ 0,127 porquilômetro,enquanto quena Fernão Diasserá de R$ 0,01.

Paulo Pinto/AE

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Em dez anostudo mudou

Moncau: o preço daassinatura mensalafasta boa parte dapopulação doserviço fixo, queacaba migrandopara a telefoniamóvel pré-paga.

Omercado está comemorandodez anos de privatização da te-lefonia brasileira. Sob o domí-nio estatal, uma linha de telefo-

ne fixo chegou a custar o equivalente a US$ 10mil e levava até dois anos para ser instalada.Dez anos depois, não há como negar o salto dequalidade do setor: as linhas de telefone fixodemoram menos de um mês para ser instala-das e o número de telefones fixos pulou de 17,5milhões para 40 milhões no final de 2007.Quando o Sistema Telebrás saiu das mãos doEstado para as da iniciativa privada por R$ 22bilhões, com ágio de 63% sobre o preço míni-mo estipulado, o maior desafio era criar ummecanismo que gerasse competição na telefo-nia fixa e viabilizasse a sua universalização.

Apesar dos avanços registrados em umadécada de concessão, a Agência Nacional deTelecomunicações (Anatel), criada para regu-lar o setor, afirmou na prestação de contas re-ferente ao ano de 2007, que essas metas não fo-ram alcançadas, principalmente no que se re-fere à questão da competição na telefonia fixa,e reconheceu que a agência pouco fez para exi-gir o cumprimento das mesmas. Ainda hoje, astrês empresas que adquiriram a divisão da Te-lebrás – Telemar (agora Oi), Telefônica e BrasilTelecom (BrT) – respondem por mais de 90%dos acessos fixos em suas respectivas regiões.Nem as chamadas empresas espelhos, queteoricamente deveriam concorrer com essas,conseguiram alcançar esse objetivo. E, na opi-nião de Armando Castelar, economista do Ins-tituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),há poucas chances desse cenário mudar. Se-gundo ele, a rivalidade entre as empresas natelefonia fixa é muito baixa e pela própria le-gislação, elas não podem "invadir" a regiãoumas das outras.

É essa falta de competitividade, na opiniãode Luiz Fernando Moncau, advogado do Ins-tituto Brasileiro de Defesa do Consumidor(Idec), que torna o telefone fixo inacessível pa-ra boa parte da população, apesar da expansãoda rede nesses dez anos. "Se por um lado a me-

Monalisa Lins/e-SIM

ta de universalização foi cumprida, porquehoje a rede de telefonia alcançou todas as re-giões do País, por outro, o preço da assinaturamensal afasta boa parte da população do ser-viço fixo, que acaba migrando para a telefoniamóvel, principalmente para o celular pré-pa-go, muito mais caro do que o serviço fixo, masque o usuário não tem obrigatoriedade de pa-gamento", explica Moncau. Segundo a Anatel,o preço da assinatura fixa subiu de R$ 13 em1998 para R$ 40 atualmente, uma alta de 207%,muito acima da inflação medida pelo Índice dePreço ao Consumidor Amplo (IPCA) do perío-do, que foi de cerca de 83%.

O resultado é que o Brasil encerrou 2007com 40 milhões de telefones fixos, um salto de135% quando do início das privatizações, masmuito abaixo dos 121 milhões de celulares, cu-ja adição líquida no ano passado foi de 21 mi-lhões de novas linhas, o que coloca o Brasil co-mo o 5º maior consumidor do serviço móvelno mundo. "Por conta dos preços cobrados natelefonia fixa, foram os celulares que se torna-ram universais", diz o advogado do Idec.

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Supertele nacional

A questão da falta de concorrência entre asempresas de telefonia fixa é um tema recorren-te entre os especialistas. Apesar disso, na visãode Castelar, do Ipea, uma possível fusão entreOi e Brasil Telecom para criar uma "supertelenacional", como foi divulgado recentemente,mudará pouco esse cenário.

Opinião semelhante tem Eduardo Tude, pre-sidente da Teleco, para quem a fusão poderácriar uma grande empresa em telefonia fixa,mas não na móvel, pois a participação de ambasainda é muito pequena nesse segmento. "Hoje,não dá para ver a competição desses dois seg-mentos isoladamente, pois elas estão se mistu-rando por conta da convergência", afirma Tude.Ele explica que a partir da convergência, servi-ços como voz, dados e imagens, até então pro-vidos por redes diferentes, passam a ser ofere-cidos pela mesma rede. "Daí a dificuldade de sefalar em aumento de competitividade entre asempresas, mesmo em se tratando de uma gran-de empresa de capital nacional, pois com a con-vergência, a telefonia móvel poderá oferecer osmesmos serviços que a fixa."

Na opinião de Tude, o benefício maior po-deria se concretizar na telefonia móvel, queatualmente conta com três grandes gruposque disputam entre si (Vivo, Tim e Claro) e apartir da fusão entre Oi e BrT, passaria a contar

com um quarto grande competidor. "De qual-quer forma, a fusão poderia ser benéfica paramanter uma empresa de capital nacional. Casocontrário, tanto a Oi quanto a Brasil Telecompossivelmente serão vendidas para grupos es-trangeiros, pois sozinhas serão engolidas poraqueles que dão as cartas nesse jogo", diz.

Luiz Fernando Moncau, advogado do Idec,diz que até agora as empresas não mostraramquais benefícios essa fusão – a aquisição da BrTpela Oi – trará para o consumidor. "Nós sabe-mos que o interesse privado é manter suas re-servas e ganhos monetários. Mas o quê o con-sumidor ganha?", questiona.

Segundo os analistas, usar como argumen-to para a criação de uma "superempresa de te-lefonia nacional" a defesa de um setor da in-dústria nacional, é dar um passo atrás aosavanços que o processo de desestatizaçãotrouxe para o País. Mesmo assim, se as con-versações entre Oi e Brasil Telecom prospera-rem, a fusão dependerá de mudanças da le-gislação, que hoje proíbe a troca de controleacionário entre as empresas de telecomunica-ções. Essa proibição foi estabelecida pelo Pla-no Geral de Outorgas, um detalhamento daLei Geral de Telecomunicações, que norteoua abertura do mercado à iniciativa privada.Depois disso, ainda terá que passar pelo crivoda Anatel e do Cade - Conselho Administra-tivo de Defesa Econômica. ( P. B . )

O Brasil encerrou 2007com 40 milhões de telefones fixos e

121 milhões de celulares.O País é o quinto maior consumidor de

telefonia móvel do mundo.

Eduardo Knapp/Folha Imagem

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12 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

Rodoviasaceleram processo

Divulgação

Paulo Resende: noprimeiro mandatodo presidente Lula,houve completainterrupção deprivatizações namalha federal.

OGoverno do Estado de São Pauloacaba de anunciar a licitação paraa concessão do Trecho Oeste doRodoanel Mário Covas para os

próximos 30 anos. O anúncio vem na seqüênciada licitação realizada pelo governo federal, emoutubro do ano passado, para a concessão de se-te trechos de rodovias federais. Ambos ocorremapós um período longo, sem mudanças de dire-ção na administração das rodovias brasileiras,fato que frustrou aqueles que esperavam que oritmo de concessões fosse o mesmo verificado apartir de 1995, quando 10 mil quilômetros de ro-dovias passaram para as mãos da iniciativa pri-vada, cerca de 5% da malha pavimentada brasi-leira. "O volume de concessões durante o pri-meiro mandato do governo de Fernando Hen-rique Cardoso nos deu a esperança de quehaveria uma aceleração. Isso não aconteceu. Noprimeiro mandato do presidente Lula, houveuma completa interrupção de privatizações namalha federal. E, na estadual, os avanços forammuito pequenos, inclusive em Estados como Mi-nas Gerais e São Paulo, que por serem governa-dos pelo mesmo PSDB de Fernando Henrique,não causaria surpresa se dessem continuidadeao processo de privatização. Mas não foi o queocorreu", afirma Paulo Resende, doutor em Lo-gística e coordenador do Núcleo de Logística daFundação Dom Cabral.

A surpresa, segundo Resende, ficou por contado governo federal no ano passado, que se an-tecipou aos governos estaduais – principalmen-te o do Estado de São Paulo – e concedeu sete tre-chos de rodovias, adotando como regra básicade concorrência o menor valor de pedágio a sercobrado do usuário. Já a licitação anunciada pelogoverno paulista é de concessão onerosa, ou seja,prevê que a concessionária vencedora – quetambém será a que cobrar o menor valor de pe-dágio – pague R$ 2 bilhões ao Estado nos doisprimeiros anos de contrato. Diferentemente daprimeira concessão estadual, quando foi priori-zado o maior retorno possível para que as rodo-vias passassem das mãos do Estado para as dainiciativa privada, a atual parece ser uma respos-

ta aos críticos do primeiro modelo, já que a com-paração inevitável com as concessões federaismostrou que é possível, sim, oferecer serviços dequalidade ao usuário, sem cobrar demais nospedágios. Comparativamente, o pedágio das ro-dovias federais será muito mais barato para ousuário do que nas paulistas. Na rodovia FernãoDias (São Paulo a Belo Horizonte) por exemplo, ataxa será de R$ 0,01 por quilômetro rodado. Jáem estradas estaduais concedidas anteriormen-te, como a Bandeirantes, cobra-se R$ 0,127/km ena Imigrantes, R$ 0,264/km.

Resposta ou não aos críticos, o diretor de in-fra-estrutura e logística da Trevisan Consultoria,Olivier Girard, aponta três diferentes processosde concessão de rodovias no Brasil. O primeiro,aplicado nas rodovias estaduais de São Paulo te-ve como objetivo obter o maior preço possívelpelas rodovias. O segundo, realizado no anopassado pelo governo federal, priorizou o me-nor valor do pedágio; e finalmente o terceiro,anunciado pelo governo de São Paulo para aconcessão do Trecho Oeste do Rodoanel, podeser considerado um "híbrido" dos dois anterio-

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13JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

res: cobrança de R$ 2 bilhões para a exploração,sem leilão, mas leva a concessão quem oferecer omenor valor de pedágio.

"No primeiro caso, o concessionário que ga-nhasse teria que dar o preço mais alto no leilão etambém arcar com as despesas de melhorias emanutenção necessárias. Inevitavelmente, essescustos foram repassados para o consumidor. Épor isso que os pedágios mais caros estão loca-lizados no Estado de São Paulo. O dinheiro daconcessão acabou entrando no tesouro estadualem detrimento do usuário", afirma Girard.

O diretor da Trevisan Consultoria reconhe-ce os ganhos que o usuário teve com as conces-sões, principalmente na questão de segurança.Na Via Dutra, por exemplo, uma das primeirasrodovias repassadas à administração privada,o número de mortos em acidentes diminuiu de560 por ano, quando administrada pelo poderpúblico, para cerca de 250 após a concessão, deacordo com o relatório anual de 2006 da Asso-ciação Brasileira de Concessionárias de Rodo-vias (ABCR). "Por outro lado, ficou claro que ocusto que ele está pagando poderia ser menor,como ficou comprovado pelas recentes con-cessões federais", afirma Girard.

Foram essas diferenças, na opinião do diretorde infra-estrutura e logística da Trevisan Consul-toria, que ocasionaram críticas severas ao mode-lo de concessão do governo do Estado de SãoPaulo e fizeram com que a Agência de Transpor-te do Estado de São Paulo (Artesp), ligada à Se-cretaria Estadual de Transportes, realizasse mu-danças na estrutura para a Concessão do TrechoOeste do Rodoanel Mário Covas. "A vantagemdesse modelo, além do usuário pagar menos pe-lo pedágio, é que os R$ 2 bilhões que a conces-sionária vencedora terá que pagar nos dois pri-meiros anos serão obrigatoriamente destinadosà construção do Trecho Sul", diz Girard.

Mal necessário

Uma pesquisa realizada por Paulo Resende,coordenador do Núcleo de Logística da Funda-ção Dom Cabral, sobre o nível de satisfação emrelação às estradas pedagiadas, apontou que ousuário vê a cobrança como um "mal necessá-rio", pois a utilização de estradas ruins aumentaos custos operacionais. A pesquisa foi feita em2007 com executivos de 149 empresas, represen-tando nove setores econômicos, do agropecuá-rio (22%) ao de máquinas e equipamentos (6%).

"A pesquisa mostra que a insatisfação com opagamento de pedágio vem diminuindo, masisso não significa que a satisfação aumentou.Na verdade, o usuário cada vez mais vê o pe-

dágio como um mal necessário, já que a utili-zação de rodovias em mau estado acarreta au-mento nos custos operacionais das empresas",explica Resende. Segundo a pesquisa, 52% dosentrevistados apontaram gastos adicionaisacima de 16% (alguns chegando a 40%), comcombustíveis e reposição de peças quandousam estradas em mau estado de conservação.Cerca de 50% dos entrevistados concordamplenamente que os custos operacionais sãomenores nas estradas pedagiadas.

A pesquisa apontou ainda, que a maioriados executivos (mais de 70%), não acredita nopoder público como único elemento a solucio-nar os problemas das rodovias brasileiras. En-tre os motivos, eles apontam dinheiro insufi-ciente, questões políticas que atrapalham oscronogramas de obras e falta de recursos paramanutenção das rodovias.

Opinião semelhante tem o diretor de infra-es-trutura e logística da Trevisan Consultoria, Oli-vier Girard, que acredita que a iniciativa privadapode arcar melhor com os custos de manutençãodas estradas. "Embora o governo tenha a Cide(Contribuição de Intervenção no Domínio Eco-nômico), criada para assegurar um volume mí-nimo de recursos para investimento em infra-es-trutura de transportes, os recursos acabam sedesviando no percurso. Isso faz com que a ma-nutenção das estradas estejam em péssimo esta-do. Então, ou ela é feita pela iniciativa privada,ou não terá a manutenção ideal", diz. ( P. B . )

As rodovias estaduais foram privatizadaslevando-se em conta o maior valor pago.

Divulgação

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14 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

Ferrovias avançamem marcha lenta

Onze anos de concessão e investi-mentos de R$ 15,3 bilhões (entre1997 e 2007) foram suficientespara redesenhar o mapa da ma-

lha ferroviária brasileira, mas não para colocaro setor totalmente nos trilhos. Aquisição e re-cuperação de locomotivas e vagões, introdu-ção de novas tecnologias, capacitação de pes-soas e aumento da participação desse modalno transporte de carga brasileiro foram algu-mas das conquistas. Mas a falta de concorrên-cia no setor e o alto custo dos fretes, poucoabaixo dos cobrados no transporte rodoviário,são alguns dos entraves que, dizem os especia-listas, nem a privatização conseguiu resolver.

Para Olivier Girard, diretor de infra-estru-tura e logística da Trevisan Consultoria, de ummodo geral a mudança de mãos dos 28 mil qui-lômetros da malha ferroviária brasileira da ex-tinta Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA)para a iniciativa privada trouxe resultados po-sitivos. Um exemplo é o aumento da participa-ção da ferrovia como matriz de transporte decargas, que segundo a Agência Nacional deTransporte Ferroviário (ANTF) saltou de 19%em 1999 para 26% em 2006. "Para o usuário em-presarial também foi benéfico, pois passou acontar com um serviço que até então não tinha,pois tanto a estrutura quanto os equipamentosestavam totalmente sucateados", diz Girard."O problema é que assistimos atualmente auma concentração muito grande do serviço,com mais de 90% de toda a carga transportadanas mãos de três empresas: ALL, Vale e CSN,que atuam em áreas geográficas diferentes e setornaram monopolistas dentro de suas áreas",complementa o consultor. Essa mistura deconcentração e monopólio, segundo Girard,acaba gerando um custo ferroviário muitomais alto do que poderia ser.

De acordo com o diretor-executivo daANTF, Rodrigo Vilaça, as tarifas praticadaspelas concessionárias respeitam o limite máxi-mo fixado pelo governo federal. Ele diz ainda,que um estudo do Instituto de Pós-graduaçãoe Pesquisa em Administração da Universida-

de Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ)estima que o preço praticado pelas ferroviaspara o transporte de cargas chega a ser até seisvezes mais barato do que o das rodovias. "Valedestacar também que o setor de transporte fer-roviário é regulado pelo Poder Público, que re-gulamenta e fiscaliza as malhas ferroviáriasconcedidas. Ao mesmo tempo, é importantelembrar que o setor de transporte rodoviário éformado por grandes empresas, mas tambémpor um grande número de motoristas autôno-mos, que conta apenas com um caminhão e,por isso, acabam por definir a tarifa mais con-veniente", diz Vilaça.

Dependência

Para Paulo Resende, doutor em Logística ecoordenador do Núcleo de Logística da Fun-dação Dom Cabral, a malha ferroviária brasi-leira, mesmo depois de privatizada, é muitodependente do minério de ferro. "Isso signifi-ca que quaisquer investimentos em ativos fer-roviários serão direcionados para o transportede minério de ferro, o que cria um ciclo viciosoque prejudica, por exemplo, o transporte deprodutos agrícolas, também muito importan-te para o País", afirma Resende.

Para desfazer esse nó, ele diz que o governofederal deveria agir para expandir a malha fer-roviária em direção às fronteiras agrícolas, oque ajudaria a diminuir a dependência do mi-nério de ferro. "Eu acho que o governo federal,através do PAC (Programa de Aceleração doCrescimento), deveria tomar imediatamente adecisão de assumir a expansão das ferroviasem direção às fronteiras agrícolas ou de abrirnovas concessões ferroviárias. A ação é essen-cial para quebrarmos esse marasmo brasileiroem termos de ferrovias ligadas ao minério deferro", diz Resende.

Progressos

Monopólio e concentração à parte, não hácomo negar os avanços alcançados desde o iní-

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cio da desestatização em 1997. De acordo comlevantamento da ANTF, referente ao ano de2006, quando a iniciativa privada assumiu asoperações da RFFSA, as ferrovias contavamcom 43.796 vagões disponíveis para opera-ções, dos quais 42% estavam sucateados. Das1.144 locomotivas em atividade, 30% apresen-tavam péssimo estado de conservação. Dezanos depois, as concessionárias praticamentedobraram a frota em operação, hoje com81.642 vagões e 2.227 locomotivas.

A produção ferroviária nacional tambémteve um salto significativo, com aumento decerca de 70%, passando de 137,2 bilhões deTKU (tonelada por quilômetro útil transpor-tada) em 1997, para 232,3 bilhões de TKU em2006. Entretanto, segundo Rodrigo Vilaça,diretor-executivo da ANTF, há o risco dessaexpansão ser interrompida, pois ela depen-de da eliminação de gargalos atrelados à fal-ta de investimentos do governo federal emi n f r a - e s t ru t u r a .

De acordo com Vilaça, em dez anos de ope-ração, a arrecadação em tributos federais, es-taduais e municipais do setor atingiu R$ 3,7 bi-lhões, além dos R$ 2,6 bilhões pagos pelas em-presas quando da concessão e arrendamento."Entretanto, os recursos empenhados pelo go-verno federal nas malhas concedidas à inicia-tiva privada somaram pouco mais de R$ 649

milhões no mesmo período, cerca de 10% detudo que as concessionárias pagaram entreimpostos e o próprio valor da concessão",compara Vilaça.

As concessionárias acham que essa con-trapartida é pequena. E, apesar de a malhaferroviária ter sido privatizada sob a alega-ção de que a União não possuía recursos su-ficientes para investir no setor, as empresasreivindicam a ampliação de repasses públi-cos, sob o risco de não conseguirem cumpriras metas estipuladas, por exemplo, a expan-são da malha para 55 mil quilômetros, quecontinua nos mesmos 28 mil quilômetros daépoca da desestatização.

De acordo com o executivo da ANTF, a con-trapartida pública é necessária para solucio-nar gargalos, como passagens em nível críti-cas (cruzamento de uma ou mais linhas comuma rodovia); invasão de faixa de domínio(construções irregulares ao longo das ferro-vias) e o compartilhamento dos trens de cargae passageiros nas metrópoles, que reduzem avelocidade média de 35 Km/h para 5 Km/h,comprometendo o desempenho das ferro-vias. "O PAC (Programa de Aceleração doCrescimento) é a vitrine maior para que essesgargalos sejam enfim eliminados e as metasestipuladas pelas partes envolvidas, concre-tizadas", diz Vilaça. ( P. B . )

A Companhia Vale do Rio Doce (Vale) arrematou em leilão, realizadona Bovespa, a concessão de um trecho da Ferrovia Norte-Sul.

Agliberto Lima/AE

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Energia: faltamarco regulatório

Leonardo Rodrigues/e-SIM

Renato Stetner:nenhuma empresaprivada pode vivercom o risco que aquestão daconcessãoambiental gera noBrasil.

Mais de US$ 29 bilhões oriun-dos da venda de empresas es-tatais do setor elétrico e 12anos desde o início das priva-

tizações não foram suficientes para resolvero problema de falta de energia no Brasil. Bas-tou o País acelerar o crescimento em 2007,impondo uma velocidade de expansão umpouco acima da média registrada nos últi-mos anos, aliado a um fator climático desfa-vorável, com escassez de chuva em regiõesque concentram as hidrelétricas, para que aameaça de um novo "apagão" voltasse para apauta de discussões.

O tema ganha destaque pouco antes de ogovernador José Serra (SP) privatizar o queresta da Companhia Energética de São Paulo(Cesp) sob domínio estatal, e poucos anos de-pois do programa de racionamento ter sidoimposto aos brasileiros. Para os críticos, co-mo o presidente do Sindicato dos Eletricitá-rios do Estado de São Paulo, Antônio Carlosdos Reis, o anúncio do governador paulista éinoportuno, pois a discussão deveria ser so-bre "como resolver a iminente crise de energiae não o valor das ações da Cesp".

Já aqueles que são favoráveis ao processo deprivatização, como o advogado Renato Parrei-ra Stetner, sócio do Castro, Barros, Sobral, Go-mes Advogados, o "problema do apagão nosetor elétrico vem ocorrendo porque apenas asempresas ligadas à distribuição de energiapassaram para a iniciativa privada, e não as ge-radoras, que continuam sendo estatais e nãopossuem os investimentos necessários paraeliminar gargalos".

Aumento de eficiência e da produtivida-de são alguns dos exemplos citados paradestacar os benefícios da desestatização, eno setor elétrico não é diferente. "Além dis-so, livra o Estado de aplicar recursos na ges-tão e na expansão do setor elétrico, focando ogasto público em áreas sociais onde há de-mandas crescentes", afirma Paulo Godoy,presidente da Associação Brasileira da In-fra-estrutura e Indústria de Base (Abdib).

Ele reconhece, entretanto, que só a privatiza-ção não significa, imediatamente, a amplia-ção da quantidade de energia disponível noPaís, como de fato não ocorreu, haja visto oracionamento de 2001. "Essa ampliação sóocorrerá com políticas públicas orientadaspara tal objetivo, por meio de leilões de con-cessão de novas usinas de geração de energiatanto para empresas públicas quanto priva-das", diz Godoy.

Para Armando Castelar, economista doInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea), a privatização pode ajudar no au-mento da oferta de energia se vier com mu-danças no aparato regulatório, ainda umgrande inibidor de investimentos no setor."Existe muito dinheiro privado querendoentrar no setor de energia elétrica, mas issodepende principalmente de se criar um am-biente regulatório que dê segurança ao in-vestidor. E, na minha opinião, esse ambienteainda não existe", afirma.

A mesma opinião é compartilhada peloadvogado Stetner, que afirma haver uma sé-

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rie de indefinições que rondam o setor deenergia, como as licenças ambientais para aimplantação de novas unidades de geraçãode eletricidade. "Talvez hoje, o Estado nemconsiga atrair muito capital privado para ageração, pois nenhuma empresa privada po-de viver com o risco que a questão da conces-são ambiental gera no Brasil. O empresárioinicia um procedimento e não sabe quanto

tempo vai demorar para conseguir a licença,e nem mesmo se poderá fazer a implantaçãoda usina. Essa falta de clareza dificulta a par-ticipação das empresas privadas nesse se-tor", observa o advogado. Na sua opinião,"uma vez que esses problemas forem resol-vidos, não haverá razão para que não ocorrauma privatização mais abrangente em ener-gia", afirma Stetner. ( P. B . )

Apenas as empresas distribuidoras de energia foram para a iniciativaprivada, as geradoras continuam sendo empresas estatais.

André Dusek/AE

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A herança pe a obra bras

um balançoe uma avaliação

de dois séculos

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1. O que, exatamente, deve ser come-morado?

Em janeiro de 2008, Brasil e Portugalcomeçaram a "festejar" – se o verbose aplica – os 200 anos da vinda da fa-mília real para o Brasil. Alguns se

atêm ao ato da "fuga", outros celebram a "ge-nial estratégia" do Príncipe Regente, o únicoa ter enganado Napoleão, nas palavras dopróprio, como já fomos lembrados. Aprecia-ções positivas e negativas são inevitáveis, emambos os lados do Atlântico, uma vez que acontrovérsia sobre decisões de tanta gravida-de faz parte da trama da história, e não apenasentre historiadores. O fato determinado éque a partida (por certo precipitada), em no-vembro de 1807, e a chegada à Bahia, em ja-neiro de 1808, imediatamente seguida do fa-moso Alvará Régio de abertura dos portos, seimpunham como necessidades absolutas, àfalta, cada uma, de melhores alternativas.

Este ensaio não pretende retomar as cir-cunstâncias da "fuga" ou, então, do "traslado"da corte, já suficientemente cobertas na bi-bliografia consagrada – na qual se sobressai oclássico de Oliveira Lima, D. João VI no Bra-sil (várias edições, a mais atual pela Topbo-oks), o mais recente e "leve", mas bem pesqui-sado, de Laurentino Gomes, 1808 (Planeta) eo recentíssimo, "binacional", A Abertura dosPo r t o s , organizado por Luís Valente de Oli-veira e Rubens Ricupero (Senac-SP) – e obje-to de artigos de divulgação geral em muitosmeios de comunicação nas semanas que pas-saram e nos meses que ainda estão por vir. Aintenção seria a de oferecer uma espécie debalanço sobre o quê, exatamente, Portugalnos legou, como resultado dos 300 anos ante-riores de colonização e da sua marca deixadanos anos de Reino Unido, e também sobre oquê o Brasil, nos seus 186 anos de indepen-dência, foi capaz de realizar enquanto naçãoem construção.

ortuguesaileira:

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O que temos a "comemorar", neste anode 2008, seriam os duzentos de adminis-tração do Brasil a partir do próprio país,ainda que não efetivamente, no começo,a serviço da nação e, sim, a serviço da fa-mília real portuguesa que, junto com acorte, controlava o que poderia ser cha-mado de "governo" (ou seja, um decisorcentral, com alguns ministérios setoriaise vários conselheiros da corte em voltado primeiro). Essa transposição da admi-nistração "central" dos negócios do País,da metrópole para a colônia – que logodeixou de ter tal estatuto, em 1816, parapassar a ser "reino unido" – implicou nu-ma série de conseqüências administrati-vas, institucionais, econômicas e de in-fra-estrutura (aqui, inclusive, a "infra-es-trutura" social ou educacional), que to-das contribuíram para fazer do Brasil oque ele é hoje. Nossa tarefa é, então, de-terminar o que ocorreu, e o que poderiater ocorrido, com base nas condições quetínhamos no momento dessa mudança.Comemorações também são "rememo-rações"...

Muitas coisas mudaram, efetivamen-te, nos últimos dois séculos, e para me-lhor, num país onde tudo precisava serfeito (sem entrar aqui em consideraçõespoliticamente incorretas sobre a popula-ção autóctone). É preciso desde logo dei-xar registrado que nossas deficiênciasatuais – visíveis na injustiça social, na ini-qüidade com que são tratados os maishumildes, nas notórias carências educa-cionais e de infra-estrutura, na corrupção latente e na baixaqualidade geral de nossas instituições públicas – não podemser debitadas de modo algum a Portugal ou ao domínio por-tuguês, embora as estruturas da história sejam muito lentas ase formar e ainda mais lentas a se desfazerem. O que somos ho-je devemos, em parte, a Portugal, e muito mais ao que fomoscapazes (ou não) de realizar no período independente. Tendojá discutido alguns aspectos do "então" e "agora" em trabalhosrecentes – como em "O que Portugal nos legou?; um balanço de1808-1822 e as perspectivas do presente", Espaço Acadêmico(ano 7, nº 80, janeiro 2008; disponível no link: http://www.es-pacoacademico.com.br/080/80pra.htm), no qual foram exa-minadas a situação econômica do Brasil em 1808 e as mudan-ças ocorridas a partir de 1822 –, minha intenção seria fixar-me,agora, em alguns aspectos seletivos do legado português, al-guns já abordados no trabalho em questão.

Datas históricas, aniversários centenários servem para issomesmo: revisitar o passado e tentar retirar dele alguns ensina-mentos para o presente, como forma de construir um futuromelhor. Ainda que balanços do passado e projetos do presentecarreguem inevitavelmente uma carga insofismável de subje-

tividade – tanto a obra dos historiadores,como os objetivos de decisores atuais são ofruto de suas preferências pessoais, aindaque moldados pelo peso da tradição e dasevidências acumuladas em gerações e pe-la pressão dos interesses sociais que se ex-pressam através das instituições de modoconstante – tentarei ser o mais objetivopossível no julgamento do legado portu-guês e da obra acumulada pelas elites na-cionais que nos conduziram nos últimosduzentos anos.

Ao fazê-lo, quero, mais uma vez, deixarclaro que não considero Portugal ou osportugueses responsáveis pelo país quesomos hoje, e nisso retomo o que já disse notrabalho acima referido: "um país indus-trialmente desenvolvido, mas socialmen-te iníquo; economicamente avançado,mas socialmente atrasado; cientificamen-te realizado, mas tecnologicamente maldotado. Não se devem aos portuguesesnossos comportamentos atávicos e nossosfracassos de modernização. Eles não po-dem responder pelo que fizemos desde1822. Nós mesmos somos responsáveispelo muito que conseguimos fazer nesteperíodo, em termos de construção da na-ção, assim como devemos ser considera-dos culpados pelo quadro lamentável noplano social ou educacional que aindacontemplamos hoje."

2. Uma pequena digressão históricasobre convergência e divergênciaeconômica

Outra observação, de caráter metodológico, se impõe, numtrabalho que pretende fazer "um balanço e uma avaliação" dosúltimos duzentos anos: na ausência de critérios absolutos – euniformes, ao longo do tempo – para julgar o que representa,exatamente, o "progresso", o quê, nesse progresso (ou atraso)pode ser imputado ao passado, e o quê deve ser consideradocomo obra contemporânea, algum tipo de comparação comoutros países em situação similar aparece como inevitável. Umpaís só aparece como mais rico ou mais pobre quando compa-rado aos demais, uma vez que tudo é relativo, não apenas nafísica, mas também (talvez, sobretudo) nas questões humanase sociais. Crescimento econômico – e, portanto, prosperidadesocial – é o critério básico pelo qual medir o desempenho re-lativo de um país em relação a outro e, nisto, uma perspectivahistórico-econômica pode ser útil.

Tomo como exemplo uma simulação que figura na introdu-ção ao livro-texto de Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin, Eco-nomic Growth (2ª ed.; Cambridge, Mass.; The MIT Press, 2003).Utilizando-se de dólares constantes de 1996, eles "retroproje-tam" a renda per capita nos EUA em 1870, estimada em US$

Paulo Robertode Almeida

Doutor emCiências Sociais

pela Universidadede Bruxelas,diplomata decarreira desde

1977 e professorno mestrado emDireito no CentroUniversitário de

Brasília.site:

w w w. p r a l m e i d a . o r g

Divulgação

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21JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

3.340, e constatam o valor em 2000, equivalente a US$ 33.330.Tal é o resultado de uma taxa de crescimento anual acumuladade 1,8% do PIB, o que parece bastante modesto em relação aosvalores com que nos acostumamos neste início de século 21,mas ainda assim bastante razoável para os que lidam com ahistória econômica e sabem como a humanidade progrediulentamente ao longo dos séculos, de fato nos milhares de anosque precederam a primeira (1770-1830, grosso modo) e a se-gunda revolução industrial (a partir de 1870, aproximada-mente). Com base nesses resultados efetivos, os dois econo-mistas simulam, então, trajetórias diferentes de crescimento,uma "otimista", apenas 1% acima da efetivamente realizada,outra "pessimista", exatamente 1% abaixo.

Quais os resultados? Se os EUA, nos 130 anos que vão do fi-nal da Guerra Civil até o final do século 20, tivessem crescido2,8% ao ano, em lugar de "apenas" 1,8%, eles teriam, em 2000,uma renda per capita de US$ 127.000, algo não alcançado porqualquer outro país da atualidade (mas que poderia, plausi-velmente, ter sido realizado pelos EUA, caso tivessem crescidoapenas um "pouco" mais do que o fizeram). Ao contrário, se osEUA tivessem sido "infelizes" (ou incompetentes na gestão daeconomia), ao ponto de acumular uma taxa de crescimentoanual de apenas 0,8% ao longo desses 130 anos, teriam chega-

do em 2000 com apenas US$ 9.450, ou seja, o equivalente doMéxico atual. É importante observar que 0,8% ao ano foi a taxaefetivamente registrada ao longo do período por países como aÍndia, o Paquistão e as Filipinas, que não foram espetacular-mente bem sucedidos no curso do século 20. No sentido inver-so, o Japão (com 2,95% ao ano) e Taiwan (com 2,75%) se apro-ximam bastante da taxa de 2,8% que poderia ter levado os EUAao máximo da renda per capita, demonstrando, assim, que ariqueza potencial 38 vezes acima dos "meros" 10 vezes acimada renda realizada não apenas era possível, como foi efetiva-mente alcançada por outros países. No ritmo atual, os EUA sóchegariam àquela renda de US$ 127.000 em 2.074, mas ela pro-vavelmente será alcançada bem antes por algum outro país(não necessariamente os sultanatos petrolíferos, mas algumaoutra economia de alta produtividade do trabalho), isto se nãoconsiderarmos que a renda do habitante do sul de Manhattan,em NY, já se encontra perto desse patamar atualmente.

O que isso tem a ver com o Brasil, ou com Portugal, nossaorigem? Tudo. O Brasil foi um país que, junto com o Japão, maiscresceu no decorrer dos primeiros 80 anos do século 20, tendo,contudo, sido "penalizado" por suas altas taxas de crescimentodemográfico na comparação com o país asiático. Em outrostermos: no que se refere ao PIB, em si, o Brasil foi capaz até de

Tanto o Brasilquanto o Japãopartiram depatamares muitobaixos no século19. Mas o paísasiático, por terinvestido emeducação,conseguiu alçar-seà condição de paísavançado (...)

Reprodução

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22 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

crescer mais do que o Japão entre 1900 e 1980, mas pelo fato deo Japão ter realizado sua "transição demográfica" mais cedo,seus resultados finais, isto é, a renda per capita, foram mais fa-voráveis do que os do Brasil. Não apenas isso, obviamente,mas, como indicam os dois autores, growth matters, isto é, cres-cimento é importante, sobretudo no longo prazo, ou em ter-mos constantes, mesmo se a taxas modestas como as exibidaspelos EUA.

Tanto o Brasil quanto o Japão partiram de patamares muitobaixos no século 19. Mas o país asiático, por ter investido emeducação, conseguiu alçar-se à condição de país avançado nodecorrer do século 20, o que o Brasil ainda não fez e não pareceter condições de realizar no horizonte previsível (a despeitomesmo de sua industrialização "acabada", ou completa). O fa-tor chave é educação, e não apenas indústria ou equipamentospesados, como parecem crer alguns economistas desenvolvi-mentistas. Uma comparação com a Coréia do Sul pode ser per-tinente para ilustrar este ponto. Em 1960, quando o pequenopaís asiático era muito menos industrializado do que o Brasil,sua renda per capita, em paridade de poder de compra, era deapenas US$ 1.700, ao passo que Brasil ostentava uma renda percapita de US$ 2.700 (a mediana, no mundo, era, então, de US$3.390). Pois bem, em 2000, ano de referência na obra de Barro eSala-i-Martin, a Coréia do Sul já tinha alcançado US$ 18.000(mais de dez vezes acima), enquanto o Brasil exibia modestos

US$ 7.000, para uma mediana global de US$ 8.490 (2,5 vezessuperior ao valor de 1960).

O Brasil, teoricamente pelo menos, poderia ter alcançado ní-veis similares (ou semelhantes) de renda per capita, aos da Co-réia do Sul ou de Taiwan, se tivesse conseguido manter taxasde crescimento razoáveis – não necessariamente as da épocado "milagre", nos anos eufóricos da ditadura militar, em tornode 5 ou 7% ao ano, mas pelo menos em torno de 3,5 a 4% ao ano,o que seria suficiente para nos colocar naquele patamar – o quenada nos diz, entretanto, sobre os aspectos sociais, ou distri-butivos, de uma renda entre US$ 18 e 20 mil. O mais provável éque, à falta de investimentos sólidos em educação, o volume deriqueza total alcançado – seríamos, provavelmente, a quintaou a sexta economia mundial, com base numa industrializaçãopesada como aquela conduzida nos anos militares, uma espé-cie de stalinismo para os ricos – não estaria bem distribuído en-tre a população, gerando, portanto, um grande PIB, mas do-tado de fundamentos frágeis, com pouca inovação e desenvol-vimento autônomos.

O progresso diferenciado tem a ver, obviamente, com umasérie complexa de fatores estruturais e conjunturais. Mas mui-tas das políticas (macroeconômicas e setoriais) envolvidas emcada um dos países, Brasil e Coréia do Sul, seriam incompre-ensíveis, em sua dimensão própria, se não se leva em conta oque verdadeiramente diferencia um do outro (assim como no

Entre 1900 e 1980, o Brasil cresceu mais que o Japão, mas pelo fato deste último ter realizado sua"transição demográfica" mais cedo, seus resultados finais foram mais favoráveis.

Toshiyuki Aizawa/Reuters

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caso do Japão): a qualidade da educação. Este é, de fato, o ele-mento crucial e efetivamente determinante do progresso so-cial, o responsável essencial pela produtividade e inovação naeconomia. Nesse aspecto, o legado português foi propriamen-te catastrófico, mas, lá se vão 200 anos, e nós não precisaríamoster esperado tanto (ainda hoje) para descobrir isso.

Feita esta digressão de história econômica sobre o que nossepara, infelizmente, de países avançados – falta de crescimen-to, sem dúvida, em especial nas últimas duas décadas, mastambém investimentos e estímulos errados ao longo do tempo– seria útil voltar às razões de por que não crescemos tantoquanto poderíamos, ou por que nossa transformação estrutu-ral foi tão incompleta e deficiente, a ponto de sermos mais pa-recidos com os demais países da região, doque com outros países que conseguiram "sal-tar a barreira" do crescimento endógeno esustentável (ou sustentado, para não parecer"politicamente correto"). Em outras pala-vras, seria preciso ver quais aqueles fatoreshistóricos que nos foram legados na origemde nossa formação enquanto nação, paraavaliar o que poderíamos, ou deveríamos,ter feito, na perspectiva da história, para terlogrado, atualmente, resultados bem melho-res do que os que são efetivamente exibidospela sociedade e pela economia.

Gostaria, em primeiro lugar, de registraros elementos que me parecem positivos nolegado português, para depois me concen-trar nos fatores que julgo responsáveis pelonosso atraso, sempre tendo em conta o fatode termos assumido a responsabilidade efe-tiva pelos nossos negócios desde setembrode 1822, ou pelo menos desde 1831, segundoalguns, quando um governo verdadeira-mente "brasileiro" assume as rédeas da na-ção. Trata-se de uma livre digressão, isto é,não apoiada em notas bibliográficas ou remissões documen-tais, mas ainda assim amparada em muitas leituras históricas eeconômicas ao longo das últimas décadas.

3. A boa herança de Portugal e o que fizemos dela

O primeiro, e melhor, legado da formação portuguesa donosso povo está, justamente, no fato de ser um povo aberto àmiscigenação, o que nos distingue e nos qualifica no planomundial como nenhum outro povo, provavelmente. Por maisque isto seja um processo involuntário – que não nos torna nemmelhores, nem mais "astutos" do que qualquer outro povo –,trata-se, sem dúvida alguma, de uma condição eminentemen-te positiva no plano das relações humanas (para os que valo-rizam esse tipo de "mistura", obviamente).

A humanidade viveu, nos últimos dez mil anos, processosterríveis de lutas tribais, conflitos étnicos, disputas territoriaise enfrentamentos raciais e religiosos, todos com base na velhae terrível intolerância em relação à alteridade. O principal fatordesses enfrentamentos se encontra, precisamente, no ato de

julgar o seu semelhante como diferente, inferior ou não, masem todo caso potencialmente ameaçador de sua própria segu-rança. O principal fator de diferenciação encontra-se no fenó-tipo, por ele ser imediatamente visível. Obviamente, resultamdaí as políticas de separação, de apartheid e de dominação deuma comunidade por outra. A melhor garantia de que isto nãoocorra encontra-se, também obviamente, na completa ausên-cia de fatores de diferenciação, o que só pode ser conseguidoatravés da miscigenação racial, que supõe, ipso facto, a diminui-ção das distâncias cultural e psicológica, também.

Mesmo quando essa mistura racial adquire característicasassimétricas, isto é, quando é o resultado da dominação – comosão todas as situações derivadas dos fenômenos históricos da

colonização e da escravidão –, ainda assimtrata-se de fator essencialmente positivo paraa formação de um povo aberto e acolhedordas diferenças raciais, culturais e religiosas.Nem sempre essas coisas andam juntas, co-mo a própria história de Portugal nos confir-ma. O país se fez na luta de reconquista contraos mouros, quando a guerra contra o infiel eraliteral: os homens eram simplesmente elimi-nados ou convertidos em escravos e as mu-lheres e crianças submetidas aos novos se-nhores da terra. Portugal se lançou, logo de-pois, à conquista de novas terras e esses em-preendimentos guerreiros supunham altasdoses de violência pura contra os nativos e aexploração sexual do seu componente femi-nino.

Assim ocorreu durante o processo de colo-nização do Brasil (e de outros povos), mas oresultado, inegavelmente, foi um povo demestiços (e indiferente ao fato de sê-lo, istotambém é importante). A classe dominanteno Império era, provavelmente, mais mestiçado que jamais o foi na seqüência histórica do

sistema político brasileiro, com um gradual retorno a um pa-drão mais mestiço em tempos recentes. Devemos essa plasti-cidade, originalmente, aos portugueses, que por razões pró-prias à formação histórica do povo, souberam conviver e acei-tar todos os tipos de misturas possíveis, em quatro ou cincocontinentes. Ela foi por certo "aperfeiçoada" – as aspas se de-vem ao seu caráter involuntário – pelo próprio povo brasileiro,que parece desprovido de maiores sentimentos racistas tam-bém em função de sua conformação básica. Quando digo "pa-rece", isto se deve a que o racismo tende a se manifestar em vá-rios casos de "desconforto" – presumido ou real – a partir deuma situação de alteridade, e esta passou inclusive a ser maiorcom as grandes levas de imigração européia, entre o final doséculo 19 e meados do 20. O pensamento "científico" dominan-te nessa época aceitava a determinação racial das "hierarquias"humanas e, portanto, um forte componente racista, valorizan-do a eugenia e a purificação racial, no sentido "loiro dolicocé-falo", obviamente. Mas, essa situação tende a se diluir, nova-mente, com a grande mistura observada desde então.

Um outro componente menos nobre dos comportamentos

O primeiro, emelhor, legado daformaçãoportuguesa do nossopovo está,justamente, no fatode ser um povoaberto àmiscigenação, o quenos distingue e nosqualifica no planomundial comonenhum outro povo,provavelmente.

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sociais portugueses foi o sentimento anti-judeu – antes mesmoque o anti-semitismo estivesse "formalizado" no plano políti-co – mas isto se deve inteiramente ao integrismo de certas cor-rentes católicas que, desde a Idade Média, passaram a ver nosjudeus o bode expiatório de tantas misérias naturais que asso-lavam sociedades pouco equipadas para enfrentar calamida-des de diversos tipos. O fundo religioso da perseguição aos ju-deus – exacerbada por essa instituição central da contra-Refor-ma que foi a Inquisição – não foi apenas intolerável no âmbitodos valores cristãos; ele também foi catastrófico para o desen-volvimento de Portugal enquanto economia e sociedade.

A perseguição aos judeus antecede ao descobrimento e co-lonização do Brasil e, aqui como em Portugal, teve efeitos de-letérios em ambas as nações, fazendo a fortuna de outras, quesouberam acolhê-los com grande tolerância religiosa e social(como a Holanda, por exemplo). Traços do anti-semitismoportuguês – mas não apenas dele, pois o fenômeno se desen-volve extraordinariamente na Europa do século 19 e do iníciodo 20 – tiveram prolongamentos no Brasil até uma data recen-te, o que novamente só pode ter atuado em nosso completodesfavor, inclusive no plano puramente mental ou da psico-logia "popular" (o que explica, obviamente, certos racismos or-dinários ainda hoje manifestados nesse plano).

Outro tipo de racismo ao inverso tende a se desenvolver

atualmente, mas ele não deve nada à herança portuguesa, esim se trata de uma importação equivocada de idéias mal con-cebidas nos EUA sobre um suposto componente afro-ameri-cano do seu povo. A cultura do afro-brasileirismo, se levada àsúltimas conseqüências, só pode desembocar no apartheidmen-tal e, depois, na separação racial de alguns elementos do povobrasileiro, seduzidos por essa defesa equivocada de progra-mas de "ação afirmativa". Acredito, porém, que a maioria dopovo brasileiro, que na verdade é composta de mestiços, sabe-rá recusar esse programa de segregação racial e de divisão dasociedade em categorias que não existem naturalmente.

Uma outra boa herança de Portugal, no plano institucional,é a sua diplomacia, base do competente serviço exterior forma-do diligentemente pelos líderes no Império e desenvolvidosob a República, que conserva alto grau de profissionalismo equalidade técnica. Como posso estar praticando elogio emcausa própria, dispenso-me de sublinhar seus traços positi-vos, agregando apenas que, como outras instituições do Esta-do, ela também pode ter exacerbado traços corporativos quepoderiam atuar no sentido de uma indesejável introversão.

Considero, por outro lado, a herança da língua portugue-sa como um elemento neutro, embora a língua sempre tra-duza uma cultura e seja um instrumento de saber e, portan-to, de poder. No caso de Portugal, a despeito de seu expan-

O sentimento anti-judeu foi catastrófico para o desenvolvimentode Portugal enquanto economia e sociedade.

Oleg Popov/Reuters

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sionismo precoce – que redundou em interessantes inter-câmbios lingüísticos nos vários continentes onde o gênioaventureiro esteve promovendo o comércio e a conversão àfé cristã –, a baixa qualificação educacional do povo portu-guês por certo impediu uma influência maior dos povos lu-sófonos nos terrenos da ciência e da cultura universal. A dis-seminação, hoje, pode ser dada pelo lado da música e do es-porte, assim como pela crescente diáspora de emigradoseconômicos. Ainda assim, se trata de uma base precária quese reforçará paulatinamente em bases regionais, a partir daexpansão de empresas brasileiras na América do Sul. O es-forço diplomático para estimular a união dos luso-parlan-tes, na Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, podeter efeitos positivos, mas alguns dos seusintegrantes também pertencem a outrascomunidades lingüísticas de modo simul-tâneo. Acrescento que considero inúteisesforços para unificar ortograficamente osdiversos "dialetos" lusitanos: cada língua éo resultado de seu desenvolvimento natu-ral e deve ser deixada inteiramente livrepara desenvolver de todas as formas pos-síveis. Acredito que os recursos devem sermais bem empregados na qualificação dapopulação nas línguas veiculares de co-mércio, cultura e produção científica: já ti-vemos o grego, o latim, talvez o francês;agora é o inglês, so be it...

Em todo caso, não considero que o Por-tuguês foi o responsável pela "união" dopovo ou o elemento motor da unidade na-cional, na formação da nação. A língua ge-ral, na colônia, estava mais próxima do tu-pi-guarani, ao que parece, e não foi a lín-gua, mas sim a força das armas, que preser-vou a unidade nacional nos primeirostempos. A língua e os vice-reinados nãoimpediram a divisão da América hispânica, da mesma for-ma como o Brasil poderia ter sido separado em unidadesdistintas, desde as invasões estrangeiras – francesa e holan-desa, notadamente – e os impulsos separatistas ou federa-listas existentes em diversas épocas. O peso da espada e aférrea vontade da casa dominante portuguesa preservarama unidade do País, quando ele era constituído, realmente, deum arquipélago de economias distintas, que jamais se co-municavam entre si, salvo nuns poucos intercâmbios.

4. Vamos agora à parte menos positiva da herançaportuguesa

Portugal foi, antes de tudo, um Estado precoce, formado pe-la férrea vontade de um chefe guerreiro que, para sua legiti-midade, foi pedir o reconhecimento papal. Estas duas institui-ções sinalizam o que pode haver de menos positivo no legadoportuguês ao Brasil. Por certo, Estado e religião foram partesconstitutivas de qualquer Estado moderno e, como tais, eraminevitáveis, por extensão, na formação do Brasil. O que é dis-

tintivo de Portugal é a extrema centralização estatal, a falta to-tal de independência dos corpos sociais, a ausência de uma "re-volução burguesa", ou de uma "fronda aristocrática" – no sen-tido barringtoniano de ambos os processos – que pudessemcriar instituições de mercado e de representação política, inde-pendentes e autônomas da vontade do rei.

Como ensinam estudos de sociologia histórica – entre eles oclássico de Barrington Moore Jr., Social Origins of Dictatorshipand Democracy –, a existência de instituições estatais exacerba-das e muito centralizadas é extremamente negativa, tanto noplano político, como no econômico, pois tende a gerar um cor-po político e judiciário resistente às mudanças, além de maissujeito a desvios e corrupção, como também estimula compor-

tamentos rentistas, patrimonialistas e extrati-vistas em economia, o que obviamente é pés-simo para uma economia pujante e inovado-ra. Na ausência de fatores que consigam re-distribuir ou "atomizar" o excesso decentralismo estatal – e que, nas experiênciashistóricas da Inglaterra, da França e dos EUA,foram conseguidas através de revoluçõesviolentas ou guerras civis – o mais provávelque ocorra é que o Estado tenda a absorverdeterminados corpos sociais e cooptá-los pa-ra o seu programa de "modernização pelo al-to", como ocorreu nos casos da Alemanha, doJapão e da Itália fascistas, ou então que esseprocesso resulte em "revoluções por baixo"que redundam em outros tipos de autoritaris-mo, como foi o comunismo.

Portugal, na verdade, esteve bem maispróximo do despotismo do príncipe, doque de qualquer tipo de revolução burgue-sa. No máximo passou por um despotismomuito pouco esclarecido, na pessoa dePombal, extremamente centralizador emercantilista (isto é, fazendo a junção do ca-

pitalismo comercial com a centralização operada pelo Esta-do), o que foi nefasto para o seu próprio desenvolvimentoeconômico (sem mencionar a expulsão dos jesuítas, que, pormais "fundamentalistas" que fossem na defesa da carolicereligiosa, eram os únicos a prover educação para as camadasmais humildes da população).

Na revolução constitucionalista, os impulsos moderniza-dores foram muito débeis e, sobretudo, incapazes de rever aestrutura mercantilista na qual se baseava o Estado. Em todocaso, a tentativa de "recolonização" do Brasil, operada pelascortes de Lisboa – embora fosse impossível na prática – con-tribuiu para o movimento da independência e, a rigor, o Es-tado brasileiro já não teria mais nada a ver, doravante, com oEstado português. Isto seria esquecer, contudo, que o Esta-do "português" aqui ficou, com todos os seus nobres, eno-brecidos e outros candidatos a um emprego, ou melhor, asubsídios estatais.

Na verdade, o "aparelhamento" do Estado brasileiro tinhacomeçado na sua própria constituição. A fuga da família realnão se restringiu, como se sabe, a meia dúzia de ministros e al-

Portugalfoi, antes detudo, um Estadoprecoce,formado pelaférrea vontadede um chefeguerreiro que,para sualegitimidade,foi pedir oreconhecimentopapal.

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gumas dezenas de funcionários do Estado. Foram alguns mi-lhares de "dependentes" do Estado que precisavam ser agra-ciados com os favores da corte. Apenas a título de comparaçãomencione-se que em 1800, ao transferir a capital da Filadélfiapara Washington, o presidente John Adams trouxe consigocerca de 1.000 funcionários governamentais. Com D. João, vie-ram entre 10 e 15 mil funcionários portugueses, segundo ascrônicas históricas (Laurentino Gomes, 1808, p. 188).

Era preciso dar "emprego" a toda essa gente; mas muitos de-les não trabalhavam, consoante seu estatuto de "nobres" (aosquais não se permitia o exercício de alguma atividade "ma-nual"). Em Portugal, para sermos precisos, não eram muitos osnobres, mas o coração generoso de D. João se encarregaria decriar muitos mais, ao aqui chegar, pela prática de enobreceraqueles que tinham cedido suas casas, contribuído financeira-mente para a manutenção da corte, participado na constitui-ção do Banco do Brasil e outros favores mais.

Como escreveu o historiador Oliveira Lima: "Os indiví-duos enobrecidos, agraciados com hábitos ou comendas, en-tendiam não lhes quadrar mais comerciar, sim viver das suasrendas, ou melhor ainda, dos empregos do Estado. Avolu-mar-se-ia desta forma o número dos funcionários públicos,com o rancor dos burocratas do reino, que tinham acompa-nhado a família real ou chegavam seduzidos por essas colo-cações em que as fraudes multiplicavam os ganhos lícitos,muito pouco remunerados" (in D. João VI no Brasil, p. 57). Enão eram poucos, os candidatos a um emprego público: alémda família real, 276 fidalgos e dignitários régios recebiam ver-ba anual de custeio e representação, paga em moedas de ouroe prata, retiradas do erário real; havia ainda 2000 funcioná-rios reais, 700 padres, 500 advogados, 200 praticantes da me-dicina, entre 4 e 5 mil militares, todos vivendo em torno daCoroa. Um dos padres recebia 250 mil réis (14 mil reais de ho-je), só para confessar a rainha (Fonte: Luiz Felipe Alencastro,"Vida privada e ordem privada no império" in História da VidaPrivada no Brasil, vol. 2, p. 12). Pode-se dizer que o costumecontinua e, embora Portugal atual não tenha mais nada a vercom isso, esse tipo de comportamento se coloca inteiramentena linha da tradição lusitana das prebendas estatais. O mes-mo processo continua nos dias de hoje...

O outro lado da equação formadora de Portugal foi, comovimos, a Igreja que, aliás, vivia do Estado, como não pode-mos esquecer. Os padres eram "funcionários públicos", ain-da que as riquezas da própria Igreja fossem privadas (mascontempladas com todos os tipos de favores fiscais, como,aliás, ainda hoje, a única diferença sendo o fim do monopó-lio católico). O lado fiscal, ou rentista, da corporação religio-sa no Brasil talvez não tenha sido o único aspecto negativopara o desenvolvimento brasileiro, ainda que o regime dopadroado tenha durado até a República e que o Estado "lai-co", criado com esta, nunca tenha se libertado, na verdade,do peso da Igreja e da religião católica (de resto, parte denossas tradições culturais, o que pode ser parcialmenteaceitável no plano dos costumes e dos ritos comemorati-vos). O mais nefasto, para ser cruel no plano das mentalida-des, foi, precisamente, o engessamento das mentes e de todoo processo de educação "científica" da população – se tal hi-

pótese fosse possível – em face de uma Igreja especialmentereacionária e obscurantista.

Como sabem todos os historiadores, Espanha e Portugalforam dois bastiões da contra-Reforma na Europa, o que po-deria não significar muito fora das querelas religiosas – poisoutros países capitalistas da Europa também tiveram suasdisputas de influência – se isto não se traduzisse em formi-dáveis obstáculos ao livre debate intelectual, ao avanço dasciências e ao desenvolvimento do espírito crítico, essencialem instituições de ensino superior (mas o Brasil não as ti-nha, obviamente). O obscurantismo da Igreja não foi apenasnegativo no plano da educação; ele continua nefasto até ho-je, posto que a "economia política" da Igreja – ainda mais ados grupelhos "sociais" que pululam em seu seio, mais oumenos identificados com a "teologia da libertação" – detestao lucro e a especulação e se bate, irracionalmente, por um

Entre os impostos em vigor em 1808, havia a taxa sobreengenhos de açúcar e destilações, variável por província.

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distributivismo inconseqüente, como se a sociedade fosseuma cornucópia generosa da qual jorrasse abundantemen-te, e sem custos, o leite e o mel para todos os "deserdados"(que são, obviamente, todos os assalariados e os não-capi-talistas).

Junto com seus atuais "colegas" da "teologia da prosperida-de" – aqueles que arrancam o dízimo dos ingênuos, sob pro-messa de melhorar suas vidas, mas que constroem fabulososimpérios de comunicações – a Igreja católica, na sua versão an-ti-reformista e praticamente integrista, constituiu uma dasmais poderosas forças do atraso mental e também material doBrasil independente. Pode até ser que a responsabilidade pelacontinuidade dessa influência nefasta no plano das mentali-dades e dos comportamentos econômicos seja inteiramentedos brasileiros, a partir de certo momento, mas, como no casodo Estado de favor e dos subsídios aos amigos da corte, a res-ponsabilidade inicial pelas fundações está com Portugal.

5. Duzentos anos de derrama fiscal e de espoliaçãodos contribuintes

O aspecto mais negativo do ponto de vista do desenvolvi-mento capitalista do Brasil está, provavelmente, na existênciado "Estado extrator", que impede a aplicação da poupança pri-vada na atividade produtiva, ao carrear recursos para o pró-prio Estado (ou melhor, para os que vivem do Estado, postoque, hipoteticamente, o Estado poderia ser um "modernizadorpelo alto", como nos casos da Alemanha e do Japão). A primei-ra evidência dessa condição se dá na política fiscal e mais exa-tamente no sistema tributário.

O sistema tinha sido inaugurado ainda antes da chegada dafamília real, como ficou claro na derrama das "minas gerais" eno movimento de que participou nosso herói (mítico) da inde-pendência: Tiradentes. Em todo caso, o que existia, no momen-to da chegada da família real, em termos de impostos, taxas econtribuições? Esta era a "coleção" em vigor em 1808:(A) Tributos de incidência local: selos, foros de patentes, taxasdo sal;( B) Tributos de incidência geral: subsídio real sobre carnes ecouros, taxa suntuária sobre lojas e armazéns; taxa sobre en-genhos; sisa de 10% sobre os imóveis; meia sisa sobre os escra-vos urbanos;(C) Impostos sobre o comércio exterior, nos dois sentidos (aprincipal fonte de receita).

Em 1821, quando D. João VI parte de volta a Portugal, a es-trutura tributária do Reino Unido compreendia, além das ta-xas gerais (selos, foros de patentes, direitos de chancelaria, ta-xas de correio, sobre o sal, as sesmarias, ancoragens etc., ou im-postos locais cobrados de particulares), os seguintes direitos eimpostos [entre colchetes, seu possível equivalente atual]:1º) subsídio real ou nacional (carne verde, couros crus ou cur-tidos, aguardente de cana e lãs grosseiras) [uma espécie deICMS, ou de sales tax, sobre o consumo];2º) subsídio literário (para custeio dos mestres-escola, per-cebido sobre cada rês abatida, sobre aguardente destilada esobre carne seca) [como se uma CPMF fosse cobrada para fi-nanciar a educação, sendo duvidoso que o dinheiro arreca-dado chegasse ao seu destino, como o seu moderno equiva-lente para a "saúde"];3º) imposto em benefício do Banco do Brasil (12$800 sobre ca-da negociante, livreiro, boticário, loja de jóias e artigos de co-bre, tabaco) [uma contribuição específica para dar dinheiro ao"banco do rei"];4º) taxa suntuária (também para o Banco do Brasil, sobre ca-da carruagem de quatro e de duas rodas, navios de três mas-tros, lojas de mercadorias e armazéns, 5% da compra de na-vios) [um verdadeiro imposto sobre o investimento, comoainda hoje se aplica];5º ) taxa sobre engenhos de açúcar e destilações (variávelpor província) [uma CIDE à disposição dos presidentes dep ro v í n c i a ] ;6º) décima predial urbana (casas ou quaisquer imóveis) [o IP-TU é mais velho do que se pensa, aliás é medieval, nem semprena faixa de 10% do valor patrimonial];7º) sisa (imposto de 10% sobre o valor da venda de imóveis ur-

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banos) [talvez os cartórios também aceitassem sub-avaliações,como ainda hoje se faz, tudo pago em dinheiro vivo, mas semIOF, naquele tempo, por algum defeito de imaginação];8º)meia sisa (imposto de 5% sobre a renda de cada escravo quefosse negro ladino, isto é, que já soubesse um ofício) [os encar-gos laborais, sem direitos trabalhistas, sempre foram elevadosno Brasil, mas cresceram muito mais, desde então];9º) novos direitos (taxa de 10% sobre os vencimentos dos fun-cionários da Fazenda e da Justiça) [certos partidos não inven-taram nada em matéria de dízimo...].

E agora, em matéria de impostos, taxas e contribuições, oque temos hoje? Existem, atualmente, 76 tributos federais, 12estaduais, 15 municipais, além de 5 outros "latentes", isto é,que podem vir a ser implementados (entre eles o das "grandesfortunas"), num total de 109 impostos, taxas e contribuições,sem contar pedágios e cobranças por serviços específicos.

O atual quadro de terror tributário nada deve ao antigoEstado português: este apenas inventou algumas modali-dades de extração, mas elas foram sumamente desenvolvi-das desde então. Nesse ponto, o Estado brasileiro é altamen-te funcional: ele conseguiu criar uma das mais poderosasmáquinas de extração de recursos que existe no mundo,pois sem ser eficiente para ampliar sua base de tributação,ela consegue dilapidar o universo de contribuintes até queestes, desesperados, se refugiem na elisão, na evasão e emdiversas formas de fraude fiscal.

Mas, a mera incidência quantitativa dos impostos constituiapenas uma parte do terror tributário: deve-se ainda conside-rar a burocracia do sistema declaratório, que consome dias edias e vários contabilistas, apenas para cumprir as obrigaçõese provar ao Estado que os assim tosquiados são honestos ci-dadãos e plenos cumpridores dos seus deveres de contribuin-tes. O Brasil é campeão na quantidade de horas gastas para queuma empresa pague todos os impostos e tributos. De acordocom análise da PriceWaterhouseCoopers, com base nos dadosreunidos pelo Banco Mundial, são necessárias 2.600 horas (352dias) para que uma empresa cumpra todas as obrigações fis-cais, o que deixa o Brasil em último lugar entre 178 países. Ain-da que brasileira, pode-se considerar esse tipo de burocraciacomo mais uma herança do Estado português.

6. E o ambiente de negócios, como ele tem se desen-volvido?

Ao chegar à Bahia, em janeiro de 1808, D. João, prínciperegente, não apenas decreta a abertura dos portos (absolu-tamente necessária), mas também aprovou os estatutos daprimeira companhia de seguros, a "Comércio Marítimo";mandou abrir uma fábrica de vidro e uma fábrica de pólvo-ra; autorizou o governador da Bahia a estabelecer a culturae a moagem de trigo; mandou abrir estradas, sim estradas(de fato, pouco mais que picadas...).

O que surpreende no modelo ibérico de administração, pre-servado em grande medida até os nossos dias, é que tudo tenhade ser autorizado ou ordenado pelo príncipe, mediante um de-creto, um Alvará Régio, um instrumento qualquer da autori-dade política. O que, por outro lado, faz a eficiência do modelo

anglo-saxão de organização social e econômica é que tudo oque não estiver expressamente proibido em alguma lei apro-vada por um parlamento ou conselho, está ipso factoautorizadoe aberto à iniciativa privada, exatamente o contrário do queocorria no mundo português e ainda ocorre entre nós.

De fato, a julgar pelo PAC, o Programa de Aceleração doCrescimento, continuamos cingidos pela autoridade política,circunscritos ao que ela possa determinar, autorizar, permitir,se dignar a nos deixar trabalhar. A mania que temos de tornartoda e qualquer atividade dependente das boas graças da ad-ministração é propriamente irracional, sobretudo quando sa-bemos que o processo burocrático de autorizações e permis-sões está eivado de descaminhos corruptores.

Em outra vertente, mas no mesmo terreno, pode-se exami-nar como evoluiu o "ambiente de negócios". Ao chegar ao Riode Janeiro, em março de 1808, D. João, por alvará de 1º de abril,revogou o alvará de D. Maria I, de 1785, que tinha proibido to-das as indústrias de tecidos no Brasil, exceto as de pano grosso,para os sacos e escravos. Vinhos, azeites, tecidos e todos os de-mais produtos úteis tinham, até então, de ser comprados dePortugal, a despeito do fato de possuir a colônia plenas con-dições de fabricá-los quase todos. Agora, os principais proble-mas que se colocam aos candidatos a empreendedores é o nú-mero absurdo de requisitos legais, exigências burocráticas eautorizações variadas para quem decide iniciar um negócio.Basta consultar o Doing Business anual do Banco Mundial pa-ra constatar que o Brasil continua a figurar nos últimos lugaresdo ambiente de negócios.

No plano da indústria, o que ocorria, duzentos anos

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atrás? Entre 1810 e 1811, novas medidas buscaram estimulara indústria local: isenção de direitos sobre fios e tecidos dealgodão, seda ou lã, fabricados no Brasil; foram criados ar-senais e fundições, no Rio de Janeiro, uma indústria de la-pidação de diamantes e um laboratório químico. Eram em-presas estatais, com a eficiência que se conhece nesse tipo dee m p re e n d i m e n t o .

E o que temos hoje, como pregação industrial? O presidentede um dos principais órgãos de planejamento estatal acreditaque novamente enfrentamos a mesma "dependência" da gran-de empresa agro-exportadora à base de cana-de-açúcar, comoexistia no século 16. E o que ele propõe para reduzir a suposta"nova dependência"? Segundo ele, "o Brasil precisa constituiruma empresa pública de agroenergia" e operar uma "centra-lização do comércio da energia renovável no País" ("Antídotoao novo dependentismo", Valor Econômico, 01.11.2007). Tra-ta-se, certamente, da receita mais segura para inviabilizarcompletamente uma indústria pujante do etanol e do biodieselno Brasil, só se justificando como uma forma de cobrar um "pe-dágio" dos verdadeiros criadores de riqueza no Brasil, que sãoos empreendedores privados.

7. Como evoluímos em termos de respeito aos direi-tos de propriedade e ao patrimônio?

Como ensinam os economistas da escola institucionalista(Douglass North e outros), o respeito aos direitos de proprie-dade e aos contratos – duas das mais importantes instituiçõesda vida econômica – estão entre os elementos mais relevantes

do progresso econômico. Nesse terreno, o legado da instalaçãoda família real no Brasil não é dos mais edificantes.

Quando a comitiva que acompanhava o príncipe regentechegou ao Rio de Janeiro, um grave problema habitacionalcolocou-se: onde acomodar tantos nobres? Criou-se, então,um sistema das "aposentadorias": as casas mais apresentá-veis e espaçosas eram requisitadas em nome do Príncipe, eos locais escolhidos eram logo pintados com as iniciais "PR",de Príncipe Regente. Mas, o povo carioca logo as interpretouà sua maneira, dizendo que representavam, na verdade, um"Ponha-se na Rua". Hipólito da Costa escreveu em seu Cor-reio Braziliense que o sistema das aposentadorias era um"regulamento medieval", um "ataque direto ao sagrado di-reito de propriedade", que "poderia tornar o novo governono Brasil odioso para o seu povo". Nem tão medieval assim,uma vez que ele continua existindo em nossos dias.

O que temos hoje, em matéria de desapropriações força-das, é um fenômeno diferente, mas não menos preocupanteem termos de legalidade e respeito aos direitos de proprie-dade: são contingentes organizados (em número relativa-mente desconhecido) de "sem-terra" e de "sem-teto" profis-sionais que, alimentados por cestas básicas fornecidas pelopróprio Estado e arregimentados de forma quase militar pororganizações igualmente sustentadas pelo dinheiro estatal,se dedicam a invadir propriedades rurais e urbanas em no-me da "justiça social". Eles o fazem invocando "direitos", quesempre são os seus direitos particulares, não os direitos dacoletividade. De fato, a Constituição brasileira de 1988 con-tém 76 vezes a palavra "direito", muito poucas vezes a pa-lavra "obrigação", raríssimas vezes a palavra produtividadee quase nenhuma o conceito de eficiência.

Mas, talvez esses ataques ao direito da propriedade, e aoscofres públicos – pois é deles que sairão os recursos para ga-rantir tantos direitos a terras e moradias – não sejam os maislesivos ao erário. Passados duzentos anos de desapropria-ções estatais para acomodar os poderosos do momento, oque temos hoje em matéria de "acomodação" dos nobres ser-vidores do Estado? A transcrição de uma matéria da Folhade São Paulo, de 22.10.2007, nos informa que: "Judiciário vaigastar R$ 1,2 bi para construir três tribunais". Subtítulos es-clarecedores: "Procuradoria investiga suspeita de desperdí-cio de dinheiro e superfaturamento"; "Presidente do Tribu-nal Regional Federal de Brasília terá um gabinete 4 vezesmaior que o da presidência".

Vale a pena transcrever alguns pontos da matéria: "O Ju-diciário vai gastar R$ 1,2 bilhão na construção de três sun-tuosas sedes de tribunais com suspeitas de desperdício dedinheiro público, direcionamento de licitações e superfatu-ramento. Os custos estimados pelos tribunais poderão au-mentar até o final das obras. O Tribunal Regional Federal da1ª Região, em Brasília, decide nesta semana quem tocaráuma obra de R$ 489,8 milhões com área total de construçãomaior do que a do Superior Tribunal de Justiça. Nas novasinstalações, o presidente do tribunal e seus assessores ocu-parão um gabinete quatro vezes maior do que o do presi-dente. O Ministério Público Federal pediu a suspensão dasobras e a anulação da licitação para a construção da nova

Hoje temoscontingentesorganizadosde "sem-terra"e "sem-teto"profissionais,alimentadospor cestasbásicasfornecidas pelopróprio Estado.

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sede do Tribunal Superior Eleitoral, estimada em R$ 336,7milhões."

8. Como foi o nosso desenvolvimento econômicocomparado com outros países?

Como se situava o Brasil no confronto econômico com ou-tros países? Éramos pobres, mas os demais países não eram

muito mais ricos do que nós. No início do século 19, a diver-gência econômica entre os países ainda não tinha alcançadoos patamares que ela ostentaria um século depois. Segundoos dados comparativos coletados em bases homogêneas peloeconomista-historiador Angus Maddison (The World Econo-my: a Millenial Perspective), a distância entre o Brasil e paísescomo México ou Japão não era significativa; assim como erarelativamente pequeno o diferencial de renda em relação àmaior parte dos países, com exceção dos Estados Unidos e daGrã-Bretanha, então a economia mais avançada em termos derenda em função do seu pioneirismo na revolução industrial,sendo o país americano o seu êmulo direto nesse processo. ATabela 1 dá uma idéia dos valores em dólares constantes(atualizados para 1990, segundo os cálculos de Angus Mad-dison) e sua proporção em relação ao Brasil. Veja tabela 1.

Como foi a nossa evolução desde então? A mesma tabela po-de ser construída com valores mais atuais. Veja Tabela 2.

A distância só fez aumentar, evidenciando o nosso baixo di-namismo econômico no longo período decorrido desde então.Aqui, os mesmos resultados em visão diacrônica (Tabela 3).

Muito desse baixo dinamismo econômico pode ser expli-cado por nossa pequena abertura internacional. Uma compa-ração de nosso coeficiente de abertura externa revela a redu-zida participação do comércio exterior na formação do PIB,quando é pelas transações externas que se realizam as incor-porações de capitais e tecnologias modernizadoras. No pe-ríodo recente, em particular, nosso crescimento tem sido pífioem relação à média mundial e, sobretudo, em relação aosemergentes dinâmicos da Ásia oriental. Considere-se, porexemplo, o PIB per capita da Coréia do Sul que, em 1960, re-presentava 50% do valor do PIB per capita do Brasil. Atual-mente, o país asiático nos superou por uma razão de três. Namédia, o crescimento dos países emergentes nos últimos dezanos tem sido três vezes superior ao do Brasil, que cresce maisou menos a metade do PIB mundial. Nesse ritmo, nossa rendaper capita vai dobrar apenas em três gerações (75 anos), aopasso que a da China dobra a cada 17 anos.

9. E o que a nossa Constituição tem a ver com tudoisso?

Bem, aqui já não estamos falando de nenhum legado por-tuguês, e sim de problemas e deficiências "made in Brazil". Ofato é que, desde a promulgação da Constituição de 1988, acarga fiscal promovida pelo Estado predador aumentouinapelavelmente a cada ano, passando de um quarto do PIBa mais de um terço (e crescendo continuamente). Em com-paração mundial, nos situamos atualmente no nível dos paí-ses da OCDE – que dispõem de uma renda per capita seis ve-zes superior à nossa –, o que representa cerca de dez pontospercentuais acima da média dos paises emergentes e vintepontos acima dos mais dinâmicos.

A lista de problemas brasileiros é muito extensa, mas ela po-deria ser resumida da seguinte forma:

1. Constituição detalhista, intrusiva, concedendo muitos "di-reitos" e demandando muito poucas obrigações;

TABELA 1

TABELA 2

TABELA 3

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2. Estado extenso, também intrusivo, perdulário, gastador,"burrocrático" e gigantesco;

3. Regulação microeconômica hostil aos negócios e ao traba-lho, dando pouco espaço às relações autoreguladas e direta-mente contratuais;

4. Monopólios em excesso, cartéis e restrições de mercado,pouca competição e muitas barreiras a novos ofertantes debens e serviços;

5. Reduzida abertura externa, seja para comércio, investi-mentos ou f luxos de capita is ,criando ineficiências, altos custos epreços, ausência de competição ede inovação;

6. Sistemas legal e judicial atrasa-dos, permitindo manobras proces-suais que retardam a solução dasdisputas e aumentam os custos detransação.

Uma agenda das reformas abso-lutamente necessárias para garan-tir um processo sustentado de cres-cimento econômico, não detalha-da no presente ensaio por razõesde espaço, compreenderia açõesnos seguintes campos: político, tri-butário, educacional, previdenciá-rio, trabalhista e no da governançapública. A reforma política deveriacomeçar pela Constituição (ope-rando uma limpeza em regra); elacontinuaria pela redução das legis-laturas nos três níveis (a represen-tação parlamentar é excessiva,com enormes gastos, injustificá-veis); passaria pela reforma eleito-ral ( com a introdução do sistemadistrital misto) e atingiria a estru-tura partidária (diminuindo o"mercado" político que hoje impe-ra no Congresso).

A tributária choca-se com o problema da federação, masdeveria ser uma reforma completa, macro e micro; ela come-çaria por uma simplificação tributária geral e caminharia nosentido da redução progressiva dos tributos; teria continui-dade na abertura econômica, com redução dos impostos al-fandegários, e passaria também pela liberalização do comér-cio e dos investimentos estrangeiros; concederia, por fim, in-centivos à inovação (reforço da propriedade intelectual).

A reforma educacional deveria concentrar-se no ensino bá-sico, prevendo capacitação de professores, a introdução de umregime meritocrático de avaliação e de remuneração. Em qual-quer hipótese, se deveria conceder prioridade absoluta de re-

cursos para os dois primeiros ciclos de ensino, concedendo-sea tão solicitada autonomia universitária, igualmente em ter-mos de orçamentos. No plano da seguridade social, impõe-se,antes de mais nada corrigir o festival de privilégios ainda exis-tentes, ou seja, reduzir os benefícios abusivos do setor público;depois, seria necessário ampliar os prazos e as idades mínimas,modular as contribuições em função de uma relação estrita en-tre pagamentos e benefícios, com garantias mínimas, suprimiros regimes especiais e diminuir os desincentivos derivadosdos direitos garantidos.

Quanto à reforma trabalhista (e sindical), o ideal seria a fle-xibilização da legislação (mais contratualismo e negociações

diretas entre as partes), a eliminaçãoda Justiça do Trabalho (por ser, naverdade, uma instância estimulado-ra de conflitos, substituindo-se a elao regime arbitral) e operar de vez aextinção da Contribuição Sindical,que cria sindicatos de papel. Final-mente, quanto à governança públi-ca, o que se pretende seria uma redu-ção radical do governo (que seriamantido sob dieta estrita), a retoma-da das privatizações, o reforço dasagências reguladoras e o fim da esta-bilidade do funcionalismo público.

Existe alguma chance de sucessonum programa desse tipo? Duvido-so. O Brasil está provavelmente con-denado ao baixo crescimento, à pre-servação de uma estrutura social iní-qua e ao baixo dinamismo nos pro-cessos de inovação e modernização.Esse tipo de desempenho não é iné-dito em termos históricos: antes denós, a Grã-Bretanha e a Argentinaconstituíram as duas evidênciasmais remarcáveis de uma longa de-cadência e de empobrecimento con-tínuo. Talvez o Brasil seguirá o mes-mo caminho pelos próximos 20 anosou mais. [Remeto, nesse particular,aos meus ensaios: "Pequeno manualprático da decadência (recomendá-

vel em caráter preventivo...)", in Digesto Econômico (ano 62,nº 441, janeiro-fevereiro 2007, p. 38-47; disponível nos linksh t tp : / / ww w. d co m e rci o . c om . b r /e s p e ci a i s /d i g e st o / d ig e s-to_03/05.htm e http://www.dcomercio.com.br/espe-ciais/digesto/digesto_03/05a.htm); "Colapso!: prevendo adecadência econômica brasileira", in Espaço Acadêmico (anoV, nº 60, maio 2006; link: http://www.espacoacademi-co.com.br/060/60almeida.htm)].

Não é certo, mas é provável que isso ocorra, em vista da nos-sa incapacidade de empreender as reformas que são necessá-rias para corrigir as deficiências atuais do nosso sistema (que,repita-se, não têm mais nada a ver com o legado português). Aresponsabilidade está com cada um de nós…

A revista DigestoEconômico nº 441publicou o artigo"Pequeno manual

prático dadecadência

(recomendável emcaráter preventivo...)

Reprodução

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A históriada história do Brasil

Reprodução/Pintura de Jean Baptiste Debret

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Renato PompeuJornalista e escritor, autordo romance-ensaioO mundo como obra dearte criada pelo Brasil,Editora Casa Amarela.

Newton Santos/Hype E stá fazendo 200 anos que a famíliareal portuguesa se mudou para oBrasil, fugindo das tropas de Napo-leão, e que os portos da então colô-

nia, até então reservados apenas a navios daMetrópole, foram abertos a embarcações detodas as "nações amigas" (leia-se, particular-mente, a Inglaterra). Apesar da importânciada data, livrarias de São Paulo, consultadas,registraram o lançamento desde o ano passa-do de apenas três obras sobre o assunto. O cu-rioso é que esses livros foram publicados ori-ginalmente em intervalos de cem em cemanos: o primeiro, A vinda da família real portu-guesa para o Brasil, do tenente irlandês ThomasO’Neil, que acompanhou a viagem, foi edita-do originalmente em inglês em 1810 e foi ago-ra traduzido pela primeira vez para o portu-guês em edição da José Olympio Editora. É,dos três, o menos importante, por ter sido es-crito em linguagem patrioteira (do ponto devista britânico) e distorcer sempre os fatos pa-ra apresentar sempre os britânicos como he-róis, os franceses como canalhas, e os portu-gueses (que incluem os brasileiros) como me-ros coadjuvantes.

O segundo, e o mais importante, é de 1908:D. João VI no Brasil, do historiador-sociólogoOliveira Lima, que em um século, apesar deser um marco na historiografia brasileira, te-ve apenas quatro edições, a última pela Top-books. O problema é que esse grande livro,de mais de 800 páginas, é escrito numa lin-guagem por demais erudita, dificultando asua leitura e entendimento até para o públi-co mais culto de hoje.

O terceiro, o de leitura mais prazerosa e aomesmo tempo mais informativa, pois con-tém informações praticamente inéditas parao grande público, é de 2007: 1808 – Como umarainha louca, um príncipe medroso e uma cortecorrupta enganaram Napoleão e mudaram a His-tória de Portugal e do Brasil, editado pela Pla-neta, fruto de dez anos de exaustivas pesqui-sas pelo autor, o conceituado jornalista Lau-rentino Gomes, que trabalhou na revista Ve-ja e atualmente é diretor de um grupo derevistas segmentadas (isto é, não de interes-se geral e sim dirigidas a públicos específi-cos) da Editora Abril. O livro é escrito com ocaracterístico tom ao mesmo tempo sedutore sério do melhor jornalismo.

Com pouco mais de 400 páginas, o maisvendido entre os três, o livro de Gomes apre-senta momentos de excelência e, como todaobra de fôlego, alguns problemas. Suas con-tribuições maiores são, de um lado, a confir-

mação da tese de Oliveira Lima de que 1808foi um ano crucial, e o mais importante, para aconstrução da unidade brasileira, especial-mente se comparada à fragmentação da Amé-rica Espanhola em repúblicas pequenas emrelação ao gigantesco Brasil; foi a presençaaqui da Coroa portuguesa que centralizou oque era um conjunto centrífugo de capitaniasindependentes e isoladas umas das outras,com tendências separatistas no Norte, maisligado a Lisboa do que ao Rio; no Nordeste,mais independente tanto em relação a Lisboacomo ao Rio; e no Sul, onde sempre vigorou ochamado patriotismo gaúcho.

De outro lado, Gomes divulga informa-ções pouco conhecidas até mesmo de histo-riadores profissionais. Em primeiro lugar,ele esclarece que o desvio de uma parte dafrota portuguesa, escoltada por navios britâ-nicos, para Salvador e não para o Rio, comoera o plano inicial, justamente os barcos quetransportavam os membros da família real,não foi provocado, como sempre se propa-gou e ainda se propaga, por tempestades queobrigaram à mudança de rota, e sim por umadecisão deliberada de Dom João VI, preocu-pado em apaziguar as hostilidades das capi-tanias do Nordeste em relação às autorida-des do Rio de Janeiro. Afinal, fazia poucasdécadas que Salvador, mais próxima do açú-car da Zona da Mata, havia deixado de ser acapital da colônia, em favor do Rio de Janei-ro, mais próximo das minas de ouro e dia-mantes, e seus habitantes, particularmenteas classes altas, guardavam ressentimentossemelhantes aos que guardaram, com umaintensidade maior no passado recente doque agora, os cariocas em relação a Brasília.Isso mostra que, desde o início, ainda antesde desembarcar no Brasil, Dom João VI esta-va preocupado com a unidade política bra-sileira, que sabia estar ameaçada por separa-tismos. Por essa e outras razões é que pode-mos dizer que 1808 foi o ano crucial para aunidade nacional brasileira, e assim o anomais importante para a história do País co-mo um todo.

Em segundo lugar, de posse de uma docu-mentação pouco conhecida mesmo dos es-pecialistas em história, Gomes demonstraque a abertura dos portos esteve longe de serproduto da intervenção do visconde de Cai-ru em Salvador; ela já estava decidida desdeantes da partida da família real de Lisboa. Is-so tanto por pressão dos ingleses como pelavisão, por parte da Coroa portuguesa, de quenão seria possível a um Portugal ocupado

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pelos franceses manter o monopólio do comércio interna-cional brasileiro.

Se tem esses méritos principais, o livro de Gomes tem tam-bém alguns problemas, um deles a começar do título, pois a"rainha louca", dona Maria I, não teve a menor influência nosacontecimentos, já que estava mentalmente incapacitada e ofi-cialmente interditada para exercer qualquer tipo de poder.Também, se se pode imaginar que a informação a respeito deuma "corte corrupta" seja absolutamente correta, ela não estádevidamente documentada na obra de Gomes: apenas se men-cionam os casos de dois ou três cortesãos portugueses que fo-ram proibidos de retornar a Portugal em 1821, acusados dedesvios de verbas públicas para enriquecimento pessoal. Deresto, o que Gomes cita são casos de particulares brasileiros, enão da corte portuguesa, que faziam "doações" a Dom João VI,em troca de títulos nobiliárquicos.

Profusamente embelezado por coloridas ilustrações daépoca, o livro de Gomes apresenta as qualidades e os proble-mas característicos de sua estrutura. Ao invés de uma re-construção histórica sobre as diferentes fases da presença daCoroa portuguesa no Brasil, o que Gomes elaborou foi uma

Reprodução

Pintura anônima retrata o embarque da família real para oBrasil. No centro, em destaque, Dom João VI.

série de capítulos quase que independentes entre si, como sefossem reportagens jornalísticas, tendo por objeto aspectosespecíficos, e não uma visão geral da história, reservada pa-ra capítulos igualmente específicos sobre os resultados parao País da vinda da família real. Assim, há capítulos sobrePortugal às vésperas da invasão francesa, sobre a viagem,sobre os interesses ingleses, sobre a arquitetura e as condi-ções de vida em Salvador, sobre o Rio, sobre Dom João VI,sobre dona Carlota Joaquina (de quem Gomes confirma asconspirações contra o marido, mas diz que suas tão alardea-das traições conjugais não encontram respaldo na documen-tação existente), etc., etc.

Cada capítulo, internamente, tem uma ordem cronológica,que vai dos começos ao fim do período de que trata o livro, maso livro como um todo não tem uma ordem cronológica, a nãoser de um modo muito difuso, e assim o que temos é uma re-construção muito viva de aspectos parciais da vida cotidianadaqueles tempos, mas não uma reconstrução verdadeiramen-te histórica como uma totalidade, a não ser, como foi dito, noscapítulos específicos sobre os legados mais permanentes dapresença da família real portuguesa no Brasil.

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Por exemplo, no capítulo, ou melhor, nos capítulos sobreDom João VI, ficamos sabendo que ele não recebeu educaçãocomo governante, pois não era o príncipe-herdeiro, títuloque cabia a seu irmão mais velho, Dom José, que este sim re-cebeu educação para governar, mas faleceu antes de assumir.Isso é parte da explicação para as famosas hesitações e a co-nhecida abulia de Dom João VI, que além disso era realmentemedroso: tinha medo de trovoadas e de ser mordido por ca-ranguejos se entrasse nas águas do mar. Tinha hábitos poucohigiênicos: raramente tomava banho e nem mesmo trocavade roupa, mesmo que seus trajes necessitassem de remendosou de lavagem. Depois de alguns anos e da geração dos filhos,deixou de ter relações sexuais com dona Carlota Joaquina, eaté viviam não só em quartos como em prédios separados; te-ve um rápido caso com uma dama da corte, mas pedia a cria-dos homens que o masturbassem, de tão pobre que era suavida amorosa. Também urinava e defecava em público, emvasos sanitários portáteis, que o acompanhavam em seuspasseios ao ar livre pelas ruas cariocas.

Aliás, a sujeira é um personagem constante no livro de Go-mes. Em Salvador e no Rio, para não falar das cidades menosimportantes da colônia, e mesmo já em Lisboa, não havia ser-viço de limpeza pública, nem rede de esgotos, de modo quecada família tinha de se livrar por conta própria do lixo e dosdejetos orgânicos humanos (estes levados em geral para omar). O resultado, segundo a unanimidade dos viajantes es-trangeiros, era uma sujeira geral e pouco saudável nas ruasdas cidades luso-brasileiras, com as conseqüentes endemiase epidemias de várias doenças. Entretanto, sabendo-se que,por exemplo, em Londres, a rede de esgotos só foi instaladana segunda metade do século 19, ficamos sem maiores ter-mos de comparação entre as sujeiras luso-brasileiras e aeventual limpeza nos grandes centros do mundo, particu-larmente os europeus. Gomes, porém, contrasta a limpezaem termos de higiene pessoal dos brasileiros, mesmo as pes-soas comuns, comparados aos cortesãos portugueses, po-dendo-se presumir que já naquela época o banho era uma ca-racterística nacional.

Na alimentação da época, Gomes menciona a presençaconstante do feijão e do toucinho, da couve e da laranja e ba-nana como sobremesas, mas, estranhamente, não cita o arroz,fazendo-nos imaginar que este é uma presença mais recente naculinária brasileira, ou talvez não fosse tão característico doRio quanto de outros lugares; afinal, até hoje a famosa feijoadaà carioca é desacompanhada de arroz.

Praticamente todos os viajantes estrangeiros citados porGomes exaltam as paisagens e as riquezas naturais do Brasil echamam a atenção para a mentalidade tacanha dos seus habi-tantes. Essa mentalidade atrasada era explicável: só havia es-colas primárias na colônia, as de grau mais elevado eram proi-bidas pelas autoridades portuguesas, assim como era proibi-do ter gráficas que produzissem livros e jornais, cuja impor-tação era severamente controlada. Isso para que não sedivulgassem idéias libertárias e democratizantes.

Foi só com a vinda da família real portuguesa que se au-torizaram as primeiras gráficas e as primeiras faculdades. Oprimeiro jornal impresso no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro,

era um diário oficial, lançado em 1808; pouco antes tinha sidolançado em Londres o Correio Braziliense (veja matéria na página40), do empreendedor gaúcho Hipólito José da Costa, que seapresentava como independente e crítico em relação às au-toridades, mas na verdade era subsidiado pela corte portu-guesa para que amenizasse suas críticas.

O lançamento da imprensa e a inauguração do ensino su-perior, como uma escola de medicina na Bahia, não foram asúnicas contribuições de Dom João VI. Talvez sua contribui-ção principal tenha sido a abertura de estradas entre as ca-pitanias, estradas antes proibidas pelas autoridades colo-niais para evitar o contrabando de mercadorias que deve-riam ser principalmente levadas a Portugal, desencorajan-do o comércio interno brasileiro. Com a corte portuguesa noPaís, tornou-se possível viajar-se por terra do Sul para oAmapá, e do Nordeste para o Rio. Mas, acima de tudo, ao in-vés de relacionar-se como antes diretamente com Lisboa, ca-da capitania tinha agora de relacionar-se com uma autorida-de central no próprio Brasil, no caso no Rio de Janeiro. Esse éo segredo da unidade nacional, pois a língua, a religião e oscostumes comuns não bastavam para assegurar a unidadepolítica e territorial, como mostra a fragmentação, que per-dura até hoje, da América Espanhola – e até mesmo da Amé-rica Inglesa (afinal, o Canadá até hoje é separado dos Esta-dos Unidos, como o são também Belize, a Guiana e váriasilhas do Caribe, que antes foram, como os EUA, colônias bri-tânicas). Dom João VI também autorizou a instalação de fir-mas industriais e de navegação, inclusive a vapor; isso emprejuízo de Portugal, que antes exportava produtos portu-gueses e reexportava produtos ingleses e de outros paísespara o Brasil, e agora perdia mercado não só para os ingleses,como também para os produtores brasileiros. Outra contri-buição de Dom João VI referiu-se às ciências, como a insta-lação do Jardim Botânico do Rio e a autorização para a vindade cientistas estrangeiros.

Além de dar informações novas, sobre as decisões cruciaisdo paradoxalmente indeciso Dom João VI, de alterar o rumo dafrota real, desembarcando em Salvador, e de abrir os portos bra-sileiros ao comércio internacional, Laurentino Gomes desfrutade um triunfo pessoal, ao fim de seu livro, triunfo talvez nãomuito importante em si mesmo, mas altamente significativo co-mo profundidade de pesquisa. Como jornalista que há mais deduas décadas lida diariamente com o computador, com muitomais intensidade do que o fazem os historiadores profissionais,Gomes nos proporciona uma pequena jóia. Depois do capítulode encerramento, há um capítulo adicional sobre essa pequenafaçanha. Ao longo do livro, Gomes utilizou profusamente asmais de 180 cartas que o bibliotecário português radicado noBrasil, Luiz Marrocos, enviou a seu pai e a uma irmã em Por-tugal. Cruzando os dados pessoais de Marrocos com os dadosque constam no imenso arquivo genealógico na Internet man-tido pelos mórmons americanos em Salt Lake City, Gomes des-cobriu não só que Marrocos teve com a futura esposa uma filhaantes do casamento, como descobriu que essa filha foi entreguepara um orfanato. Esse detalhe íntimo da vida de um obscurofuncionário da corte portuguesa, ignorado pela sua própria fa-mília, Gomes veio a descobrir dois séculos depois, numa de-

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monstração das virtualidades das pesquisas pela Internet, umexemplo para futuros pesquisadores.

Mas o livro de Gomes, apesar de escrito um século depois,não supera e nem torna dispensável a leitura do livro de Oli-veira Lima, apresentado como um dos maiores, senão omaior, entre os historiadores brasileiros por ninguém menosdo que o sociólogo Gilberto Freyre e o historiador Evaldo Ca-bral de Mello, ambos aliás pernambucanos, como o autor deD. João VI no Brasil. O problema é que, para os leitores cultos dehoje, a linguagem de Oliveira Lima é algo complicada, cheiade frases longas e retorcidas e de palavras inusitadas. Alémdisso, o livro só pode ser apreciado em sua inteireza por lei-tores tão eruditos quanto ao autor, pois está cheio de referên-cias não explicadas: não se fica sabendo, por exemplo, quemé o "príncipe da Paz" tantas vezes citado, nem onde fica a lo-calidade chamada de "Russilhão".

Para o leitor de hoje, teria sido necessário que a editora ti-vesse providenciado notas explicativas sobre essas obscurida-des. Teria sido importante também apresentar quem foi Oli-veira Lima, sobre quem a edição não traz maiores informações.Manoel de Oliveira Lima, filho de um comerciante português,nasceu no Recife em 1867. Aos seis anos, mudou-se com a fa-

mília para Portugal, onde estudou o primário, o secundário e osuperior, formando-se em Letras em 1887. Retorna ao Brasil eao Recife em 1890, e se casa com uma professora de inglês efrancês, com a qual não teve filhos. Apesar de republicano, des-de a juventude sempre teve grande admiração pela família realportuguesa, em especial por Dom João VI.

Entrando no serviço diplomático brasileiro, parte para a Ale-manha em 1892, como secretário de Legação em Berlim. Publicalivros sobre a história de Pernambuco e a literatura colonial bra-sileira, torna-se articulista de jornais como o Jornal do Recife, Jornaldo Commercio do Rio e O Estado de S. Paulo. Em 1896, se transferepara Washington, ainda como secretário da Legação. Apesar deseu brilhantismo intelectual e de seu talento diplomático, suaadmiração pela família real portuguesa lhe gera problemas,pois, na época, no regime republicano recém-fundado, haviamuito temor em relação à possível restauração da monarquia noBrasil. Tem um primeiro desentendimento com seu superior emWashington, Assis Brasil, e é transferido para Londres, em 1900;na capital britânica, publica livros sobre os Estados Unidos, o re-conhecimento da independência do Brasil e o período imperialbrasileiro. Torna-se em Londres amigo do famoso intelectualabolicionista, também pernambucano, Joaquim Nabuco, autor

Reprodução/Gravura de Jean Baptiste Debret

Coroação de D. Pedro I: D. João VI parte para Portugal emabril de 1821. No ano seguinte, o Brasil seria independente.

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de Um estadista do Império, mas o temperamento crítico de Oli-veira Lima o leva a romper com Nabuco, acostumado a ser sem-pre elogiado.

Oliveira Lima fica em seguida dois anos como embaixadorno Japão, país sobre o qual também escreve um livro. Em 1903,

foi indicado membro da Academia Brasileira de Letras. Já esta-va pesquisando e escrevendo a obra sobre Dom João VI, motivopelo qual pediu a sua transferência de volta a Londres, para ficarperto dos arquivos em Lisboa, na capital britânica, em Paris eViena. Sua simpatia em relação à monarquia portuguesa, entre-tanto, novamente lhe funciona como obstáculo, e o barão do RioBranco, ministro das Relações Exteriores, não atende o seu pe-dido e o transfere para a Venezuela, onde fica até 1906. Final-mente, em 1908, servindo em Bruxelas, ali publica, em dois vo-lumes, a sua obra máxima, justamente D. João VI no Brasil.

Serviu ainda em Estocolmo e, quando começou a PrimeiraGuerra Mundial, estava em Londres, de onde então partiu pa-ra os Estados Unidos, onde morreu em 1928, tendo legado suabiblioteca de 58 mil livros para a Universidade de Washington.Em seu túmulo na capital americana está escrito: "Aqui jaz umamigo dos livros".

No livro sobre Dom João VI, Oliveira Lima se comportou co-mo um historiador do tipo antiquário, isto é, aquele que procurarealmente as fontes originais e nelas se baseia de preferência emrelação às chamadas fontes secundárias. Assim, sua grande ba-se é a correspondência, tanto a pessoal como a oficial, de DomJoão VI. Oliveira Lima restaura toda a importância do monarcaportuguês e do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, paraa história do País. Com essa documentação, Oliveira Lima secontrapõe à imagem corrente de Dom João VI como um tipo bo-nachão e indeciso, levado pela opinião dos outros. Ao contrário,como confirma o livro de Laurentino Gomes, Oliveira Limamostra como a atuação de Dom João VI, ao impor a autoridadeda corte no Rio a todas as regiões do Brasil, foi fundamental paraa manutenção da unidade nacional brasileira.

Aqui cumpre esclarecer que, no começo do século 19, não ha-via propriamente um patriotismo brasileiro. Cada cidadão sesentia, de imediato, ligado à capitania em que nascera, fosse a daBahia, fosse a do Rio Grande do Sul, e não se declarava "brasi-leiro" e sim "baiano" ou "gaúcho"; o termo "brasileiro" era reser-vado aos portugueses que vinham ao Brasil e recebiam essa ad-jetivação quando voltavam a Portugal; originalmente, significa-va "negociante de pau-brasil" e, depois, "negociante no Brasil".Em segundo lugar, o cidadão de cada capitania se julgava "por-tuguês". Afinal, até Dom João VI, a própria Coroa portuguesaimpedia que as capitanias brasileiras se comunicassem umas

CarlotaJoaquina:casada comD. João VI,levou fama deinfiel, feia,maquiavélica.

Reprodução/Gravura de Jean Baptiste Debret

Popularidade dos personagens históricos: D. Pedro II e D. Pedro I ornavam as notas de 100 e 200 cruzeiros...

Reprodução

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com as outras; foi o monarca, famoso por carregar nos bolsos pe-daços desossados de frango, para comê-los quando quisesse,que reuniu todas as capitanias numa Pátria única.

Diz Oliveira Lima: "Dom João VI não foi um guerreiro, nem,felizmente para ele, um mártir. Contentou-se em ser, como aca-bo de dizê-lo, sagaz e bom em um grau elevado e na medida danatureza humana. Não nos diz o clássico latino que se encon-tram mais freqüentemente deuses que homens?" Por essa ra-zão, talvez, Dom João VI foi mais popular, entre a multidão ca-rioca, do que Dom Pedro I e Dom Pedro II, que afinal acabaramdestronados. Por essa razão, igualmente, durante a vigênciado cruzeiro, dos anos 1940 aos anos 1970, enquanto Dom PedroII ilustrava a nota de cem cruzeiros e Dom Pedro I a de duzen-tos, Dom João VI ornava a de quinhentos cruzeiros, só perden-do para Pedro Álvares Cabral, homenageado pela nota demaior valor, a de mil cruzeiros, enquanto a maior nota reser-vada a um republicano era a de vinte cruzeiros, ornamentadapelo marechal Deodoro da Fonseca.

Essa iconografia das notas do antigo cruzeiro com toda cer-teza representa mais fielmente a importância de Dom João VI nahistória brasileira do que sua imagem popularesca e bonacho-na. Mas aqui temos de assinalar que, apesar de sempre ter sidoconsiderada importante pelos intelectuais de sua terra natal,Pernambuco, a obra de Oliveira Lima permanece, em termos dogrande público nacional, um tanto obscurecida. Seu livro sofreua mesma desconsideração que o próprio Dom João VI. Afinal,Oliveira Lima passa por cima das características estritamentepessoais de Dom João VI, como seu desmazelo, seus pedaços defrango no bolso, para situá-lo mais próximo do que realmente omonarca foi: apresenta-o como governante honesto, que se es-forçou – e o conseguiu – para transformar o Brasil num Estado-nação unificado, ou, como dizia, num "império".

Nesse sentido, Dom João VI pode ser considerado como ofundador do Brasil Nação e, assim, como indicavam as notasdo cruzeiro, o governante mais importante e de papel maiscrucial que o Brasil já teve. Pena é que a leitura do livro de Oli-veira Lima seja tão difícil, por causa de sua linguagem retor-cida, e das referências pouco claras a pessoas, locais e situaçõeshoje nada familiares mesmo ao público mais culto.

Em suma, o livro de O’Neil é de leitura mais fácil, mas pra-ticamente inútil do ponto de vista da informação correta, só va-

lendo, na verdade, pela introdução da historiadora Lília Mo-ritz Schwarcz; o livro de Laurentino Gomes é de leitura amenae contém as informações principais; o livro de Oliveira Lima,pouco estudado até nas universidades do País, é mais profun-do e abrangente, mas é de leitura pesada.

D. João VI:monarca

ficou famosopor carregarpedaços defrango nos

bolsos.

Reprodução/Gravura de Jean Baptiste Debret

... enquanto que D. João VI estava nas notas de 500 cruzeiros, só perdendo para Pedro Álvares Cabral - nota de mil cruzeiros.

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Imprensa brasiRe

prod

ução

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Três jornais hostis devem ser mais te-midos do que mil baionetas. A frase,atr ibuída a Napoleão, reflete aameaça que a liberdade de expressão

representa para os poderosos. Mas foi justa-mente Napoleão o responsável, ainda queindireta e involuntariamente, pelo nasci-mento dos dois primeiros jornais brasilei-ros. Dois jornais que, não por acaso, não lheeram muito simpáticos.

Foi a decisão de Napoleão de invadir Por-tugal que precipitou os acontecimentos paraque o Brasil recebesse sua primeira impresso-ra. Até então, o País era apenas uma colôniaonde as letras impressas eram expressamenteproibidas e onde as tentativas clandestinas depublicação de panfletos ou textos informati-

vos haviam sido reprimidas com a apreensãodos equipamentos (1).

A primeira impressora chegou ao País co-mo parte da "bagagem" de Dom João VI e dafamília real, em 1808. Era uma máquina no-víssima, recém-adquirida pela Imprensa Ré-gia portuguesa, órgão que se estabeleceu noPaís como responsável pelas publicações etambém pela censura.

Em 1808, o Brasil ganhava sua impressora,mas qualquer texto impresso no País a partirde então teria que passar pela única impres-sora de todo o território colonial e, obviamen-te, só passava por ali material que fosse favo-rável ao poder do monarca. Assim, o primeirojornal brasileiro não pôde ser impresso na-quela máquina.

Heci ReginaCandiani

Jor nalista,especialista em

Teoria daComunicação e

Jor nalismoImpresso e mestre

em CiênciasSociais pela

PontifíciaUniversidade

Católica de SãoPaulo.

Primeironúmero do

CorreioBraziliense,

redigido eimpresso emLondres. Ao

lado, HipólitoJosé da Costa

Furtado deMendonça.

leira faz 200 anos

Repr

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ão

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42 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

Um visionário

Do outro lado do Atlântico, um jovem aris-tocrata brasileiro enxergava na chegada da fa-mília real ao Brasil a oportunidade de começara discutir os rumos políticos, econômicos e so-ciais do País, e em 1° de junho de 1808 publicouo primeiro número do jornal pioneiro a circu-lar no Brasil: o Correio Braziliense (2).

Redigido e impresso em Londres por Hipó-lito José da Costa Furtado de Mendonça (1764-1823), o jornal chegava ao Brasil nos navios in-gleses e, depois, de outras nacionalidades, quepassaram a ter permanência garantida naságuas brasileiras quando D. João abriu os por-tos às nações amigas.

Hipólito da Costa desafiou a censura queexistia no Brasil e, como estava fora do País,onde a impressão era livre, teve a oportunida-de de, já a partir do primeiro número, expres-sar-se com liberdade. Ele foi, em certa medida,um visionário que acreditava que as informa-ções enviadas de Londres poderiam influen-ciar os rumos políticos da nação e tinha talentopara escrever de forma direta, objetiva. Todasessas características o transformaram em pa-trono da imprensa brasileira e no responsável

pelo nascimento do jornalismo brasileiro, queagora comemora seus 200 anos.

A estréia do Brasil no jornalismo teria sido umfiasco oficialesco se não fosse pela ousadia de Hi-pólito. Graças a ele, entretanto, a primeira publi-cação do Brasil tinha um caráter combativo.

Oriundo de uma família rica e de prestígiodo Rio Grande do Sul, Hipólito José da Costaobteve o título de bacharel em leis e doutor emfilosofia pela Universidade de Coimbra e setornou um jovem funcionário promissor nosquadros do governo português. Em 1798, inte-grou uma missão portuguesa aos Estados Uni-dos; em 1800 conseguiu um emprego na Im-prensa Régia em Lisboa; em 1802 foi enviadoem missão a Londres.

Tudo estaria bem se Hipólito não fosse ob-cecado pela observação e pelos relatos de suasexperiências, duas características fundamen-tais a um bom jornalista. Nos EUA, escreveuum diário detalhado de tudo o que viu e ex-pressou sua admiração pela cultura políticados norte-americanos. Entre Portugal e Ingla-terra, envolveu-se com a maçonaria. Durantesuas viagens, Hipólito criou para si mesmouma certeza: o desenvolvimento das naçõespor onde passou estava diretamente ligado à

Impressora doséculo 19, similar àque foi trazida pela

família realquando de sua

fuga para o Brasil.Era uma máquina

nova, recém-adquirida pela

Imprensa Régia,órgão responsávelpelas publicações e

também pelacensura à

liberdade deexpressão.

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liberdade política e religiosa. Mas defenderessas idéias em Portugal, onde o podermonárquico de viés absolutista e a Igre-ja Católica ditavam as regras, não eraseguro. Tanto que Hipólito da Costafoi perseguido e preso pela Inqui-sição em Portugal e, em 1805, con-seguiu fugir para Londres.

Sua formação intelectual, suatrajetória política e suas via-gens foram importantes paracriar nele uma forte convicçãode que o Brasil precisava deum projeto liberal de desen-volvimento, baseado nos pre-ceitos econômicos do libera-lismo inglês. Em 1808, quandoDom João VI chegou ao Brasil,Hipólito percebeu que era aoportunidade de divulgar esseprojeto e realizou o principal em-preendimento de sua vida, o Cor-reio Braziliense, que foi o primeirojornal brasileiro livre e também o pri-meiro a circular no País, com a impres-são paga em Londres de seu próprio bol-so. Financeira e ideologicamente, Hipólitoteve a ajuda de amigos maçons e poderosos,como o filho do rei George III, Augusto Frede-rico, o duque de Sussex. A participação no mo-vimento maçônico influenciou suas idéias egarantiu a ele muitos contatos com pessoasque o ajudaram na criação e consolidação dojornal.

Hipólito não apenas se identificava com oprojeto da maçonaria, como com a corrente li-beral econômica inglesa, especialmente comas idéias de Adam Smith, e ia além: considera-va Brasil e Portugal extremamente atrasadosem relação às nações que conhecera, julgava aaristocracia dos dois países muito ignorante,indignava-se com o fato de a Inquisição aindaditar regras religiosas para a população e de-nunciava a ação da censura régia. Além disso,acreditava que o Brasil tinha possibilidades decrescer com a instalação de fábricas, universi-dades e escolas, a exemplo do que aconteciaem outras colônias da América do Sul, de co-lonização espanhola. Todas essas idéias passa-ram a ser articuladas em seus artigos no jornal,que era dividido nas seções de Política, Comér-cio (economia), A r t es , M i s ce l â n e a , Literatura eCiência.

Era em M is c e lâ n e a que Hipólito afiava suaverve, criticando algumas ações da monar-quia e, principalmente, a insistência da aristo-cracia brasileira em endeusar D. João VI como

um grande benfeitor para o Brasil. As açõesdo monarca, insistia o jornalista, não eram

voltadas para os interesses do Brasil e deseu povo, mas para seus próprios inte-

resses e nem tudo era tão promissorquanto parecia. A tão aclamada de-cisão de abrir os portos às naçõesamigas é um exemplo da visãocrítica do jornalista. De acordocom o redator do Correio Brazi-liense, a abertura era inevitávelpara a sede do reino. Simples-mente o Brasil – que abrigava afamília real e as decisões do go-verno – não podia mais depen-der da passagem das mercado-rias pelos portos portuguesesque, por sinal, estavam amea-çados pela invasão napoleôni-

ca.O jornal também trazia exten-

sos artigos sobre o projeto que Hi-pólito vislumbrava para o Brasil e

que incluía o liberalismo econômico, anão-intervenção estatal, a extinção dos

monopólios, a transparência nas contaspúblicas e a gradual substituição da mão-de-

obra escrava pelo trabalho livre de imigranteseuropeus, até que os escravos pudessem ser to-dos libertados. Hipólito defendia a liberdadeem todos os sentidos e os historiadores apon-tam que ele esteve diretamente envolvido emmovimentos revolucionários na América espa-nhola, tendo atuado até mesmo como interme-diário entre Simon Bolívar e soldados ingleses.Seus projetos para o Brasil, entretanto, erammais conservadores e, como um admiradorprofundo do sistema inglês, não queria ver seupaís transformado em uma República. Ele de-fendia uma monarquia constitucional para oBrasil, nos moldes do governo inglês, e acredi-tava que a transformação poderia ser gradual.

Sucesso de público

Mesmo sendo impresso fora do País, a im-portância do Correio Braziliense é gigantescapara o período. O jornal era publicado em for-ma de livro – como vários títulos da época –,trazia periodicamente ao País informaçõesnão apenas da Inglaterra, mas de outras partesdo mundo, além de trechos de livros traduzi-dos, artigos opinativos redigidos por Hipólito,informações comerciais como o preço dos pro-dutos no mercado externo e críticas ao governoe seus funcionários. Cada número somava, as-sim, cerca de 100 páginas de informação e tinha

Em1455, o alemãoJohannes

Gutemberginventou uma

impressora comtipos móveis demetal. Mas foi

somente em 1650que o primeiro

jornal diário surgiuem Leipzig,Alemanha,chamado

EinkommendeZeitung.

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44 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

uma tiragem aproximada de 200 exemplares,o número de assinantes da publicação.

Quando chegava aos leitores, o jornal, en-tretanto, passava por muitas mãos. O públi-co só não era maior porque saber ler e escre-ver, no Brasil da época, era raro mesmo entrea aristocracia. O que não impedia que o jornalfosse lido em voz alta em reuniões da socie-dade, em cafés, em espaços públicos onde osbrasileiros mais abastados – e certamentepreocupados com os rumos da economia e dapolítica colonial – estivessem reunidos.Além disso, o C o r re i o era escrito num estiloclaro, conciso, de leitura fácil.

Tudo isso fez do C o r re i o um sucesso de pú-blico e garantiu ao jornal vida longa para suaépoca: 14 anos. O Correio Braziliense só deixou

de circular em 1822, quando o Brasil se tornouuma nação independente e Hipólito conside-rou que o País tinha condições de produzir eimprimir livremente seus próprios jornais,com a divulgação de suas próprias idéias.(Posteriormente, na década de 1960, o título dapublicação foi retomado por Assis Chateau-briand, importante empreendedor da impren-sa brasileira, para um de seus jornais, publica-do em Brasília até os dias de hoje.)

O discurso objetivo do Correio Braziliense deHipólito da Costa contrastava com os textos daGazeta do Rio de Janeiro, publicação que poderiaser sua única concorrente no Brasil, porque erao único jornal impresso no Brasil. Entre 10 desetembro de 1808 e 1820, a G aze ta foi a únicapublicação autorizada a circular no Brasil.

O jornal foi o principal exemplo de como osrecursos públicos podiam ser usados, à época,em defesa de interesses e negócios particula-res. A Gazeta saía da impressora que pertenciaà Imprensa Régia, sua redação funcionava nasdependências da Secretaria de Estado dos Ne-gócios Estrangeiros e da Guerra, mas o empre-endimento era privado. Seus proprietários, osoficiais da secretaria, empregavam como reda-tores membros da Igreja que, por sua vez, tam-bém eram funcionários da mesma repartição.

Com tal dependência em relação ao poder, ojornal adulava e enaltecia D. João VI e as me-lhorias que ele empreendeu no País. Seu con-teúdo era o de uma folha oficial, dedicada a di-vulgar fatos relativos ao rei, além de traduçõesde artigos publicados na imprensa européia.

A Gazeta, entretanto, foi pioneira na contrata-ção de religiosos e jovens vindos da aristocraciapara a função de jornalistas e foi o jornal que efe-tivamente instituiu a função no País. Antes dela,apenas um cidadão brasileiro exercia a função dejornalista, Hipólito da Costa, que também era odono de seu próprio jornal. Depois dela, o jorna-lismo passou a ser uma atividade aberta.

À época, quem era alfabetizado tinha empre-go quase garantido em quadros administrati-vos do governo, como professores em institui-ções laicas ou como redatores dos primeiros jor-nais livres impressos no Brasil, que surgem ape-nas a partir de 1821. Foi só nesta data que aimpressão se tornou uma atividade efetiva-mente livre no País e o jornalismo passou a serexercido por outros empreendedores, comoEvaristo da Veiga (1799-1837) e José da Silva Lis-boa (1756-1835), no Rio de Janeiro, e Frei Caneca(1779-1825), com uma missão: a de educar. Osjornalistas passaram, então, a seguir a trilha tra-çada por Hipólito da Costa: escreviam para aselites, que podiam influenciar politicamente as

Em 10 de setembrode 1808 foi lançada aGazeta do Rio deJaneiro, que até1820 foi a únicapublicaçãoautorizada a circularno Brasil. O jornaladulava e enalteciaD. João VI e asmelhorias que eleempreendeu no País.

Reprodução

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Referênciasbibliográficas

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decisões de governo, para os quadros adminis-trativos do império, e para uma nascente classemédia formada por professores, pequenos pro-prietários e comerciantes.

A partir de 1821, como mostra Antonio Cân-dido (1971), em função das mudanças estrutu-rais pelas quais passava a sociedade brasileirae da intensa difusão dos ideais da Ilustração –os gêneros públicos de literatura (a oratória, oensaio político-social e o jornalismo) ganha-ram destaque, em detrimento da prosa e dapoesia. O jornalismo que se desenvolve entãoproduz um movimento de compensação ideo-lógica (CÂNDIDO, 1971, p. 227) em que, mes-mo nos periódicos livres, há uma gratidão emrelação ao rei por trazer tantos avanços para oBrasil e alguns problemas da administraçãoacabam por ser encobertos.

Cada vez que a Gazeta – e depois de 1821 ou-tros jornais – enaltecia D. João, Hipólito de-nunciava os interesses administrativos que es-tavam por trás das medidas. O jornalista de-fendia uma posição política antigovernista equestionava o poder soberano de Portugal so-bre o Brasil. Isabel Lustosa (2000) enfatiza queo C o r re i o teve o papel de ensinar as elites a re-fletir e discutir sobre seus interesses e os pro-blemas do País. Por meio do jornal, a aristocra-cia entrou em contato com as idéias que refle-tiam e correspondiam a seus objetivos.

Com esse conteúdo bombástico, não demo-rou muito para o jornal se tornar um alvo da cen-sura imposta pela Imprensa Régia. A publica-ção, que no início era tolerada, se tornou proibi-da e perseguida. Muitas foram as tentativas deemissários de D. João VI de banir a publicação.

Como mostram Sergio Goes de Paula e Patrí-cia Souza Lima no artigo Os Paradoxos da Liber-dade (2002), o governo monárquico tentou de tu-do: reprimir a publicação, proibir a Alfândega deliberar seu desembarque nos portos brasileiros,perseguir Hipólito e "comprar" o jornalista.

Este último episódio, que passou para a his-tória da imprensa brasileira como o "suborno" deHipólito da Costa é um dos mais obscuros daexistência do C o r re i o . O jornalista foi acusado de"vender sua pena", de aceitar dinheiro para nãofalar mal do monarca, de abrir mão de seusideais. Mas, aparentemente, a questão, emboragrave, não fez de Hipólito um "vira casaca".

Após um longo período de negociação compessoas ligadas ao governo de D. João VI, repre-sentantes de Hipólito da Costa firmaram umacordo, que fazia da monarquia uma das finan-ciadoras do Correio Braziliense. Por meio do acor-do, a Intendência de Polícia da Corte do Rio deJaneiro passou a pagar a Hipólito anualmente oequivalente a 200 assinaturas do jornal. O di-nheiro foi necessário para que o jornalista man-tivesse a circulação do jornal e Hipólito efetiva-mente abrandou o tom contra a figura do monar-ca depois do acordo, que aconteceu em 1811.

Em sua defesa, os historiadores afirmam que,mesmo na Europa, na época, o jornalismo nãoera uma atividade comercial e não gozava de in-dependência política e nem financeira. Alémdisso, mesmo sem atacar diretamente D. João VI,Hipólito não deixou de criticar o que considera-va prejudicial para o País em seu governo e mui-tas das críticas que publicava serviam ao própriogoverno para fiscalizar o que acontecia entreseus funcionários. Mas a verdade é que o primei-ro jornalista brasileiro, embora tenha sido acusa-do de "vender a pena" ao monarca, não praticounada muito diferente do que a imprensa realizaainda nos dias de hoje. Afinal, a publicidade go-vernamental ainda é uma das principais fontesde receitas de muitas publicações brasileiras.

Ao inaugurar o jornalismo brasileiro, por-tanto, Hipólito da Costa colocou a imprensabrasileira diante de uma de suas principaisquestões éticas, que é atual ainda hoje: a ques-tão da autonomia e da neutralidade em relaçãoao poder político.

N O TA S(1) A principal apreensão foi a da tipografia doportuguês Antônio Isidoro da Fonseca, instaladano Rio de Janeiro em 1747. Naquele ano, umdecreto português determinou a apreensão doequipamento, que foi remetido a Lisboa.(2)Em A Imprensa do Brasil em Minas Gerais(Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 2000),Djalma Alves de Azevedo argumenta que oprimeiro jornal brasileiro – por ser impresso emuma tipografia com todas as peças produzidas no

Brasil, em Ouro Preto – é o CompiladorM i n e i ro , publicação iniciada em 1823, quecirculava duas vezes por semana. Ainda assim,não restam dúvidas de que a atividade jornalística,entendida como a publicação periódica deinformações sobre assuntos de interesse do País,foi inaugurada no Brasil pelo C o r re i oBraziliense de Hipólito da Costa, em 1808. Já aGazeta do Rio de Janeiro foi pioneira emempregar cidadãos na função de redatores.

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O Brasil como ator regionalEstratégias de política externa e impacto na

Divulgação

Paulo Robertode AlmeidaDoutor em CiênciasSociais pelaUniversidade deBruxelas, diplomata decarreira desde 1977 eprofessor no mestradoem Direito no CentroUniversitário de Brasília.site: www.pralmeida.org

Introdução:

O presente ensaio, de caráter analítico-descriti-vo, pretende oferecer uma exposição das gran-des linhas da diplomacia brasileira na atualpresidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-

2006 e 2007-2010), combinando a apresentação das suas prin-cipais iniciativas no plano internacional com a discussão dosfatores que podem determinar o potencial de atuação do Bra-sil, nos planos regional e mundial, bem como suas limita-

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ções, nas atuais circunstâncias. O Brasil é um ator de certa re-levância em ambos os planos, possuindo obviamente maio-res faculdades de "intervenção" no cenário geográfico sul-americano. Mas também exerce alguma liderança em algunstópicos da agenda multilateral – é o caso das negociações co-merciais multilaterais, por exemplo – e tem sido visto, ulti-mamente, como um ator importante na evolução futura daeconomia mundial, como um dos chamados Brics, junta-mente com Rússia, Índia e China.

O trabalho enfocará, em primeiro lugar, o contexto maisgeral no qual se exerce a nova diplomacia brasileira, enfati-

zando alguns pontos de ruptura ou de continuidade em re-lação à anterior política externa; depois, seguirá os motivos einteresses que guiam o Brasil na tentativa de moldar uma no-va política externa; em seguida, discutirá quais estratégias depolítica externa derivam da postura do Brasil e onde se situa,exatamente, o seu foco; finalmente, examinará o que tudo is-to significa para a ordem internacional atual e futura. Não sepretendeu repassar a literatura acadêmica acumulada a res-peito da diplomacia do presidente Lula, mas as referênciasfeitas a outros trabalhos do autor permitirão consultar umabibliografia mais ampla.

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Bar

ata/

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e emergente global:nova ordem internacional

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1. O Brasil e a ordem mundial: mudanças e continui-dades na política externa

Da mesma forma (mas talvez não no mesmo ritmo ou inten-sidade) como o mundo passa por novas configurações políti-cas e econômicas desde o final da Guerra Fria e do término dodesafio socialista ao capitalismo, com a conformação de umaordem mundial de mercados abertos e globais e a emergênciaprogressiva de novos atores, o Brasil vem experimentando,igualmente, mudanças sensíveis em seu papel regional e en-quanto ator global. Essas mudanças na posição relativa do Bra-sil na região e no mundo têm ocorrido tanto por imposição dosdados objetivos da realidade externa – regional e global – queafetam de modos diversos o gigante da América do Sul, quan-to em função de decisões adotadas por suas lideranças políti-cas, com destaque para as iniciativas de política externa do go-verno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais conhecidocomo Lula, que concluiu seu primeiro mandato (2003-2006) einiciou, em janeiro de 2007, um segundo período na presidên-cia do Brasil (até 2010).

As mudanças estruturais e sistêmicas que marcaram o Bra-sil desde o início dos anos 1990 precisam ser vistas, em primei-ro lugar, na perspectiva do médio prazo, sobretudo a partir dogrande esforço em prol da abertura e da estabilização macroe-conômica iniciado na presidência Fernando Collor (1990-1992), com destaque, na seqüência, para o Plano Real, adotadosob a liderança do ministro da Fazenda Fernando HenriqueCardoso, na administração Itamar Franco (1992-1994). Bem-sucedido, o Plano Real foi consolidado durante as duas pre-sidências de FHC (1995-1998 e 1999-2002), a despeito de crisesfinanceiras que afetaram o Brasil em várias oportunidades, le-vando à negociação de acordos preventivos com o FMI (1998,2001 e 2002). Tratou-se de um processo complexo de mudançasregulatórias e institucionais, que exerceu seu impacto maissignificativo nos dados propriamente internos da realidademacroeconômica brasileira, mas que também apresentou ele-mentos relevantes na política externa, sobretudo no que se re-fere à integração regional, com o Mercosul, e às negociaçõesem torno do projeto dos Estados Unidos de criação de uma"área de livre comércio das Américas".

A estabilização também permitiu uma nova projeção inter-nacional do Brasil, graças ao grande trânsito obtido por FHCjunto às mais diversas lideranças mundiais (em especial, os di-rigentes do G-7). Independentemente, porém, do maior oumenor peso assumido pelo Brasil nos novos esquemas de po-der e influência regionais e globais que emergiram a partir daúltima década do século 20, cabe reconhecer que, por sua mas-sa econômica própria, por sua projeção diplomática, pela atra-ção regular de investimentos diretos estrangeiros e por outrosfatores intrínsecos e extrínsecos, o Brasil já detinha, antes dointenso processo de mudanças estruturais na economia mun-dial das últimas duas décadas, certo peso na região e no mun-do, pelo menos como grande fornecedor de commodities mi-nerais e agrícolas.

Em segundo lugar, as mudanças políticas e econômicasocorridas no Brasil desde os anos 1990 também precisam serconsideradas no contexto criado com a eleição do antigo líder

operário e dirigente sindical, Lula, feito presidente do Parti-do dos Trabalhadores (desde a criação deste em 1980) e can-didato em todas as eleições presidenciais desde a redemocra-tização do País (em 1989, 1994, 1998 e, finalmente de modovitorioso, em 2002). A despeito de algumas apostas dos ope-radores de mercado de que a eleição de Lula poderia repre-sentar grandes mudanças na política econômica – o que cau-sou grande deterioração na percepção de risco do Brasil du-rante a campanha de 2002, com elevação acentuada dos juros,da inflação e da paridade cambial e com queda no valor dostítulos da dívida externa brasileira negociados nos mercadosfinanceiros –, o que se observou, de fato, foi, ademais da pre-servação dos acordos com o FMI (1998, 2001 e 2002), umagrande continuidade na área econômica, com a manutençãodo núcleo essencial dos mecanismos implementados duran-te o Plano Real e nos seus ajustes: responsabilidade fiscal, me-tas de inflação e câmbio flutuante. Em contrapartida, ocorre-ram grandes mudanças na política externa, como será evi-denciado no seguimento deste texto.

As lideranças políticas brasileiras sempre tiveram cons-ciência da posição de destaque assumida naturalmente peloBrasil no imediato entorno regional – América do Sul – mastambém tiveram a pretensão, em algumas fases, de colocar oBrasil em posição de maior importância no plano internacio-nal, seja no plano econômico-comercial, seja no âmbito polí-tico-estratégico. Assim ocorreu, por exemplo, desde a confe-rência da paz de Versalhes (1919) e a criação da Liga das Na-ções, quando as lideranças políticas brasileiras manifesta-ram o desejo de ver o Brasil colocado na posição de atorrelevante no Conselho daquela organização, objetivo final-mente frustrado pela escolha da Alemanha para exercer essepapel, o que provocou a retirada do Brasil da Liga (1926). Damesma forma, ao final da Segunda Guerra Mundial, a partir

A estabilizaçãoeconômica nogoverno FHC

permitiu novaprojeção

internacionaldo Brasil

Lula Marques/Folha Imagem

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49JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

dos arranjos de Ialta e Dumbarton Oaks (1945), o Brasil espe-rava assumir uma das cadeiras permanentes no novo Conse-lho de Segurança da ONU, meta igualmente frustrada, tantopela oposição de alguns atores de peso (Reino Unido e UniãoSoviética, por exemplo), como pela carência de capacidademilitar ou financeira do Brasil.

Essa aspiração a uma posição de relevo no chamado innerc i rc l e da oligarquia política mundial é recorrente entre as lide-ranças políticas e militares do Brasil. Durante a fase de altocrescimento econômico (1969-1979) registrada no período doregime militar (1964-1985), as lideranças esperavam consoli-dar a posição do Brasil enquanto nova potência econômica,eventualmente também nuclear, como forma de fazê-lo in-gressar no pelotão de frente da economia e da política mun-diais. Esse desejo foi várias vezes frustrado pelas recorrentescrises econômicas enfrentadas pelo País no último terço do sé-culo 20 – crises do petróleo em 1973 e 1979, da dívida externaem 1982, descontrole inflacionário nos anos seguintes, culmi-nando com as crises financeiras dos anos 1990 –, colocando oBrasil como pretendente desprovido de reais condições para oexercício de algum tipo de liderança e confirmando-o na con-dição de eterno "país do futuro", segundo a designação feitapelo escritor austríaco Stefan Zweig, em 1941.

A despeito dos recuos relativos observados no processo decrescimento econômico e das dificuldades financeiras enfren-tadas desde os anos 1980, o presidente da redemocratização,José Sarney (1985-1990), não deixou de apresentar a candida-tura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Se-gurança, quando o tema da reforma da Carta da ONU foi no-vamente colocado na agenda. Naquela ocasião (1989), o Brasilnão se apresentou como possível candidato regional, sabedordas dificuldades que isto lhe causaria no âmbito continental(sobretudo com a Argentina), e fez questão de antecipar quesua candidatura poderia ser assumida com a dispensa do di-reito de veto. Mais importante do que essa pretensão, porém,foi o fato de o presidente Sarney ter também tomado a inicia-tiva de engajar decisivamente o Brasil no processo de integra-ção regional, o que teve início por acordos setoriais e protoco-los bilaterais com a Argentina (programa de integração e co-operação econômica, em 1986, e um tratado bilateral de inte-gração em 1988, já prevendo um mercado comum em dezanos), culminando com a formação quadrilateral do MercadoComum do Sul, Mercosul, em 1991, agregando Paraguai eUruguai aos dois grandes da América do Sul.

O presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) deupassos decisivos no sentido de redirecionar a política externabrasileira na via da não-proliferação nuclear regional e do tri-plo abandono do programa nuclear militar, do excessivo pro-tecionismo comercial e da antiga postura ligeiramente "ter-ceiro-mundista" adotada pela diplomacia profissional, apro-ximando um pouco mais o Brasil da filosofia econômica dospaíses da OCDE. Segundo consta, o presidente Collor – im-pedido por motivos de corrupção com menos de dois anos doinício do mandato – dizia preferir ver o Brasil assumir o lugarde "último dos países desenvolvidos", a vê-lo como o "pri-meiro dos países subdesenvolvidos", o que já conformouuma significativa mudança de visão para os padrões tradi-

Mesmo com a crise financeira, José Sarney (acima) nãodeixou de apresentar a candidatura do Brasil a umacadeira permanente no Conselho de Segurança da

ONU. Abaixo, Fernando Collor, que aproximou o Paísda filosofia econômica dos países da OCDE.

Eugênio Novaes/Folha Imagem

Ricardo Chaves/AE

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cionais e relativamente conservadores da diplomacia profis-sional, que sempre se bateu por manter o status do Brasil en-quanto "país em desenvolvimento" (com todas as implica-ções em termos do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras eComércio – GATT, Sistema Geral de Preferências – SGP e ou-tros regimes comerciais preferenciais).

No período seguinte (presidente Itamar Franco, 1992-1994),a diplomacia brasileira também começa a operar uma peque-na, mas importante, mudança conceitual, no sentido de aban-donar a velha adesão à dimensão geográfica da "América La-tina" em troca de nova e acrescida ênfase ao conceito de Amé-rica do Sul, o que foi confirmado pelas repetidas tentativas deobter acordos de associação ou de liberalização comercial en-tre o Mercosul e todos os vizinhos sul-americanos, reagindo aoprojeto americano da Alca, mediante a proposta de uma Alcsa,uma área de livre comércio sul-americana. Esta também foiuma importante fase de reformas econômicas, com o início doprocesso de privatizações, diminuindo em parte o enorme pe-so do Estado brasileiro na economia do País.

Os dois mandatos sucessivos de Fernando Henrique Car-doso (1995-1998 e 1999-2002) são relevantes em vista de umprocesso notável de reformas econômicas – com importantesemendas constitucionais que abriram a economia brasileira àglobalização –, mas também de uma maior presença do Brasilno cenário mundial, em grande medida graças à facilidade detrânsito de FHC nos meios internacionais. O presidente tam-bém confirmou a desnuclearização completa do Brasil ao fa-zê-lo aderir ao TNP, o tratado de não-proliferação de 1968,considerado durante três décadas por diplomatas e militarescomo iníquo e discriminatório. Apoiando-se quase que ex-clusivamente nos diplomatas profissionais, ele conduziu deforma objetiva as difíceis questões derivadas das assimetriasremanescentes no Mercosul – o que obstaculizou sua conso-lidação enquanto união aduaneira –, os problemas criadoscom os desequilíbrios financeiros externos – agravados a par-tir das crises asiáticas e parcialmente aliviados medianteacordos com o FMI – e as negociações hemisféricas em torno

do projeto americano da Alca, não muito bem-vista por di-versos setores industriais do Brasil, mas que não sofreu maio-res restrições em seu governo.

FHC não chegou a freqüentar as reuniões do G-7 – nessa faseampliado à Rússia pós-soviética – mas manteve contato muitoestreito com vários líderes social-democratas do grupo, aexemplo de Bill Clinton e Tony Blair. Essa aproximação tradu-ziu-se numa espécie de parceria informal entre FHC e o pre-sidente americano, inclinado a ver o Brasil assumir um papelmais importante nos conflitos regionais – o caso da Colômbia esua luta contra a narcoguerrilha sempre foi colocado em evi-dência –, com alguma relutância do próprio FHC, conscientedos limites impostos à capacidade de projeção externa do Bra-sil, em função de fatores objetivos. FHC tampouco insistiu nacandidatura brasileira a um lugar permanente no CSNU, aten-to às objeções de princípio que seriam levantadas pela vizinhaArgentina, cujas relações com o Brasil no plano bilateral e noâmbito do Mercosul ele sempre considerou estratégicas de-mais para colocá-las em perigo.

As mudanças mais significativas na postura externa doBrasil e em algumas linhas de sua política externa ocorreram,obviamente, ao longo do primeiro mandato do presidenteLula (2003-2006), com novas ênfases e alianças preferenciais,uma nítida mudança no discurso e na forma de se fazer di-plomacia, talvez mais do que em sua substância, com algu-mas correções de estilo e também de prioridades ao início doseu segundo mandato (2007). Ainda que a maior parte daagenda diplomática tenha apresentado mais elementos decontinuidade do que de ruptura com a política anterior, al-guns elementos inovadores devem ser destacados comoidentificadores das novas ênfases e prioridades. Ademais daforte ênfase no multilateralismo político, tradicional na di-plomacia brasileira – mas agora com uma evidente inclinação"anti-hegemonista", isto é, contra o unilateralismo america-no –, a preferência recai nitidamente na diplomacia Sul-Sul eno grande empenho em ver reforçado e ampliado o Mercosul,como a base de uma integração política e de consolidação de

2003Na Líbia, emdezembro, opresidenteLulaencontrou-secom o líderMuammarKadafi eganhou umaespada deempresários.

2004Lula se protege do sol, durante umavisita, em maio, ao Palácio de Verãodos Imperadores, em Pequim.

Dida Sampaio/AE Sergio Dutti/AE

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um espaço econômico unificado na América do Sul. Juntocom a intensa busca de uma cadeira permanente no CSNU e aeleição de alguns parceiros privilegiados como "aliados es-tratégicos" – nominalmente a África do Sul, a Índia e a China,com a eventual inclusão da Rússia, para alguns temas –, a vol-ta ao "Terceiro Mundo" e a reafirmada vocação integracionis-ta no âmbito sul-americano constituem, claramente, os gran-des eixos da diplomacia de Lula.

Ainda que a retórica sobre a liderança brasileira no conti-nente tenha amainado bastante ao longo do primeiro manda-to, essa pretensão foi de certo modo afirmada, mesmo que in-diretamente, em seu início. O presidente Lula chegou a falarem "diplomacia da generosidade", a partir do tamanho e dopoder industrial do Brasil, recomendando, aliás, aos importa-dores nacionais que comprassem mais dos países vizinhos,mesmo que a preços relativamente desvantajosos no planodos negócios, como forma de equilibrar os fluxos de comércioe contribuir para a prosperidade comum na região. Promessasfeitas quanto a financiamentos diretos aos países vizinhos, porparte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico eSocial (BNDES), não chegaram, contudo, a se materializar, anão ser sob a forma de operações vinculadas a vendas de bense serviços (obras de engenharia) de empresas brasileiras ematividade nesses países. O ativismo diplomático na Américado Sul, tendo a ampliação do Mercosul e a constituição de umacoordenação política como pano de fundo das diversas inicia-tivas empreendidas nessa região, pode, paradoxalmente, terresultado em reações contrárias à ampliação da influência bra-sileira. Mesmo no Mercosul, as preocupações com o "peso ex-cessivo" do Brasil podem ter influído na decisão dos países me-nores de apoiar o "ingresso político" da Venezuela no esquemaintegracionista do Cone Sul.

Num sentido amplo, as autoridades diplomáticas e polí-ticas brasileiras tinham a propor aos parceiros regionais e aoutros países em desenvolvimento exteriores à região umacoalizão do Sul para "mudar as relações de força no mundo"(ou o "eixo da política mundial"), bem como para viabilizar a

criação de uma "nova geografia comercial", feita bem mais deintercâmbio no sentido Sul-Sul do que de uma suposta "de-pendência" do comércio "desigual" com o Norte. O que, de fa-to, os países cortejados pelo Brasil perceberam foi, de um la-do, a busca prioritária de uma cadeira permanente no CSNUe, de outro, o desejo de imprimir sobre a América do Sul a mar-ca dos interesses econômicos brasileiros, ou seja, dois objeti-vos nacionais apresentados como sendo a expressão de umanova ordem multilateral contemplando o interesse de todos.Em ambos os aspectos, os resultados foram bastante modes-tos, para não dizer frustrantes, a despeito dos grandes inves-timentos diplomáticos realizados.

Como explicação para esse descompasso entre os objetivospretendidos e as realizações realmente alcançadas, alguns ob-servadores aventaram a hipótese, não de falhas operacionaisda agência diplomática brasileira – o Itamaraty –, mas de equí-vocos de concepção que se situam na própria origem da "novadiplomacia" brasileira. Esta recolhe vários elementos da "di-plomacia partidária" do Partido dos Trabalhadores – formula-dos quando ainda na oposição – que não são necessariamenteconsensuais entre os parceiros designados como alvo das prio-ridades brasileiras. Os procedimentos utilizados, aliás, tinhammais a ver com a concepção do partido dominante na coalizãogovernamental do que com as concepções tradicionais do Ita-m a r a t y.

Em resumo, as mudanças efetivamente ocorridas forambem menos significativas ou importantes do que a agendasugerida de "inserção soberana" na economia mundial, coma conseqüente redefinição da ordem econômica e política in-ternacional. Isto se deve, provavelmente, ao peso do Brasilnos fluxos relevantes de bens, serviços, tecnologia e capitais,bem como no provimento de ajuda técnica e cooperação emescala mundial, seja relativamente modesto e parcimoniosoem relação ao seu papel mais vocal e bastante visível nosprincipais foros negociadores internacionais. Assim, a des-peito de um incremento significativo do comércio exteriorbrasileiro no decorrer do primeiro mandato do presidente

2004Com amedalha Gal.Eloy Alfaro, opresidenteLula participade sessãosolene doCongressoNacional doEquador, emagosto.

2004Em dezembro,o presidenteparticipa da 3ªReunião dePresidentes daAmérica doSul, em Cuzco,no Peru. Nafoto, Lula usaroupas daregião andina.

Celso Júnior/AE

Dida Sampaio/AE

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Lula, com a ampliação de parceiros – sobretudo na dimensãoSul-Sul – e continuidade na diversificação da pauta, a par-ticipação do Brasil nos fluxos globais de comércio permane-ce modesta (em torno de 1%), dada a contínua elevação deseus níveis, a taxas que representam o dobro, em média, docrescimento do PIB mundial. Em qualquer hipótese, em fun-ção de uma modesta colheita de resultados, a implementa-ção prática da diplomacia regional e da orientação Sul-Sul,reafirmadas ao início do segundo mandato, parece estar en-caminhando-se para um maior grau de pragmatismo, doque foi o caso no primeiro período.

2. Quais motivos e interesses guiam o Brasil na ten-tativa de moldar uma nova política externa?

As novas prioridades da política externa brasileira foramrazoavelmente explicitadas em diversas ocasiões, desde odiscurso inaugural do presidente Lula, em janeiro de 2003,passando por pronunciamentos em encontros quando de vi-sitas oficiais ao Brasil e de suas próprias viagens ao exterior,por uma intensa agenda de contatos diplomáticos mantidosem encontros regionais e multilaterais, bem como pela rea-firmação dessas mesmas prioridades quando da reinaugura-ção presidencial. Em 1º de janeiro de 2007, por exemplo, Lulaafirmou que o Brasil tinha mudado para melhor "na estabi-lidade monetária; na robustez fiscal; na qualidade da sua dí-vida; no acesso a novos mercados e a novas tecnologias; e naredução da vulnerabilidade externa". De fato, neste discursomais recente, a situação externa do Brasil tinha conhecidoconsiderável melhora.

Ele reafirmou a "clara opção (do Brasil) pelo multilateralis-mo", as "excelentes relações políticas, econômicas e comerciais(mantidas) com as grandes potências mundiais", ao mesmotempo em que confirmou a prioridade dada aos "laços com oSul do mundo", em especial com a África, descrita como "umdos berços da civilização brasileira". O "entorno sul-america-no" foi novamente enfatizado como o "centro" da sua política

externa, ao dizer que o Brasil "associa seu destino econômico,político e social ao do continente, ao Mercosul e à ComunidadeSul-Americana de Nações" (esta última transformada em Una-sul, União das Nações Sul-Americanas quando de reunião naVenezuela, em abril de 2007).

Essas são, portanto, as prioridades de política externa doBrasil, adotadas em função de uma visão do mundo que com-bina tanto as prioridades tradicionais do establishment d i p l o-mático profissional – uma vez que o ministro das relações ex-teriores continua a ser um diplomata de carreira –, quanto aperspectiva própria à esquerda, em geral, e ao Partido dosTrabalhadores, em particular. De fato, mais do que em qual-quer outra área de atividade executiva governamental – ecertamente não na política econômica, que continua a se pau-tar pelos padrões conservadores da administração anterior,para grande desconforto dos militantes do partido – é na po-lítica externa que as escolhas do governo Lula mais se pare-cem com as antigas opções políticas do PT, aliás seguidas fiel-mente em várias de suas vertentes (em especial na diploma-cia Sul-Sul e nas alianças "estratégicas" com alguns grandesatores não-hegemônicos).

Essas prioridades vêm sendo perseguidas mediante umavariedade de meios tradicionais – próprios à diplomaciaprofissional do Itamaraty, reputado pela excelência dos seusquadros –, por meio de uma especialmente ativa diplomaciapresidencial – ainda que esta não seja designada por este con-ceito, com vistas a não identificá-la como uma continuidadedo antigo estilo diplomático do presidente FHC – e atravésde uma modalidade de atuação relativamente inédita paraos padrões da política externa brasileira, que poderia ser des-crita como "diplomacia partidária", feita de alianças privile-giadas com os aliados progressistas e esquerdistas do perío-do oposicionista anterior, quais sejam, os partidos de orien-tação socialista e marxista (agrupados, em grande medida,no Foro de São Paulo ) e os movimentos sociais, cuja agendapolítica e foco de atuação estão obviamente mais próximosdaqueles do Fórum Social Mundial do que os do Fórum Eco-

2005O presidenteLula veste o

Pano Kempe,do povo

Dubar, emrecepção naembaixada

brasileira emAccra, em

Gana, África,em abril.

2005Em fevereiro,

Lula épresenteadocom um colarde boa sorte

dos povosindígenas da

Guiana, aodesembarcar

emGeorgetown.

Joedson Alves/AE Celso Júnior/AE

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nômico Mundial, de Davos.Esses objetivos representam uma combinação de fatores

vinculados a políticas domésticas e setoriais (como, por exem-plo, a necessidade de vincular-se a uma agenda progressistaou social, para compensar a adesão pouco confortável a umapolítica econômica conservadora), mas também retomam an-tigas tradições da diplomacia brasileira, como a chamada "po-lítica externa independente", formulada e implementada nosgovernos progressistas que antecederam ao regime militar ini-ciado em 1964. Essa última agenda pode ser apresentada comouma afirmação de posições autônomas (em relação aos Esta-dos Unidos, obviamente) nos campos da política e da econo-mia internacional, em matéria de segurança e de estabilidadeestratégica, com ênfase nos temas do desenvolvimento econô-mico e de "espaços nacionais" de políticas setoriais, ademais daprioridade concedida à integração regional latino-americana(atualmente sul-americana). A afirmação autônoma do Brasilno mundo deve se dar, sobretudo, através do reforço dos forose modalidades próprias ao sistema multilateral, através doqual o Brasil, dotado de reduzida capacidade de projeção ex-terna (em termos militares ou financeiros) poderia exercermaior influência nos processos globais.

Cabe destacar, quanto aos princípios diretores que susten-tam a atual diplomacia brasileira, que a política externa, no go-verno Lula, é chamada a desempenhar um papel auxiliar noprocesso brasileiro de desenvolvimento. Não existe, a rigor,nenhuma novidade conceitual ou operacional nesse tipo de"instrumentalização" da diplomacia brasileira: de modo geral,essa visão política, quanto à sua funcionalidade para o desen-volvimento do País, acompanha, no plano histórico, as gran-des preocupações brasileiras desde a tomada de consciênciado atraso relativo do Brasil em relação às principais potênciasdesenvolvidas, em torno dos anos 1930 (na seqüência, portan-to, da grande crise que afetou bastante o País). Mais de um au-tor já se referiu, no passado, a essa orientação geral como re-presentando uma "diplomacia do desenvolvimento". O quepode haver de novidade no governo do presidente Lula é que

essa mesma "ideologia" da política externa é inserida, pelo me-nos teoricamente, no quadro de um "projeto nacional", que de-veria ainda ser marcado pela integração soberana na economiamundial e pela mudança nas "relações de força" do mundo. Es-sa postura vem sendo expressa em reiteradas declarações a res-peito do "reforço do multilateralismo" – em oposição ao que se-ria o unilateralismo da atual potência hegemônica –, bem comoquanto a uma "mudança na geografia comercial mundial". Es-ta última idéia evidencia o desejo manifesto da atual adminis-tração de lutar por uma união dos países em desenvolvimentode molde a habilitá-los a negociar, em melhores condições po-líticas, uma alteração no padrão de trocas prevalecente entre oNorte e o Sul, considerado desigual, notadamente no que se re-fere ao protecionismo agrícola, aos subsídios à produção e àssubvenções às exportações nessa área.

Em função dessas idéias, o Brasil lançou-se em diversasiniciativas diplomáticas que engajaram tanto o corpo profis-sional como o próprio presidente da República, convertidonum dos principais articuladores do novo ativismo brasilei-ro. A ofensiva foi conduzida desde o primeiro dia da novaadministração, quando, aproveitando a presença em Brasí-lia, para a posse de Lula, dos ministros das relações exterio-res da Índia e da África do Sul, o Brasil propôs a criação do G-3, ou IBAS. O mesmo ativismo manifestou-se, por exemplo,na constituição do G-20, quando da reunião ministerial daOMC em Cancún (setembro de 2003), apontado como uminstrumento essencial para alcançar aqueles objetivos de"mudança na relação de forças" e de criação de uma "novageografia comercial internacional".

Todas as modalidades de ação diplomática – nos planos bi-lateral, regional, multilateral, bem como propostas de foros egrupos mais flexíveis de ação, tanto no plano governamental,da sociedade civil e de contatos políticos com partidos e orga-nizações não-governamentais – estão sendo mobilizadas e de-senvolvidas, com vistas a reforçar a capacidade do Brasil de in-fluenciar políticas nos níveis regional e global. Aquelas áreasque possuem uma interface direta com a sociedade civil – como

2007Acompanhado

da rainhaSonja, Lula

participa emsetembro de

jantaroferecido pelorei Harold noPalácio Real,em Oslo, na

Noruega.

2007O presidente Lula chega de helicópteroao Hotel Belvedere para participar doFórum Econômico Mundial em Davos,na Suíça, em janeiro.

Ricardo Stuckert/PR Beto Barata/AE

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a questão do meio ambiente e a luta contra a Aids, por exemplo– servem de terreno de manobra ao que já foi descrito comouma "diplomacia engajada" e especialmente ativa.

Os atores que participam da formulação e da implemen-tação da política externa brasileira atual são vários, situa-dos em planos diversos e com discursos por vezes não co-ordenados, o que pode dar a impressão de fragmentação doprocesso decisório, que de fato surge da convergência de ve-tores distintos, em contraste com a relativa unidade organi-zacional e conceitual encontrada em administrações ante-riores. Tradicionalmente, a diplomacia ficava resguardadana própria sede das relações exteriores, isto é, o Itamaraty,que também fornecia os conselheiros presidenciais e os as-sessores internacionais de outras agências públicas. No go-verno Lula, ademais do histórico anterior de posições empolítica internacional do PT, a assessoria presidencial foi re-servada para um antigo secretário de relações internacio-

nais, na pessoa do professor Marco Aurélio Garcia. Sindica-tos e movimentos sociais também se mobilizaram em tornode seus temas prediletos, seja em apoio ou em oposição a de-terminadas questões da agenda internacional, com desta-que para as negociações comerciais hemisféricas da Alca e achamada "diplomacia Sul-Sul". Três exemplos podem ilus-trar a composição ampliada dos novos "insumos" em maté-ria de política externa.

Antes da posse do governo Lula, foi organizada enormecampanha anti-Alca, da qual participaram vários movi-mentos da base social, política e sindical de apoio ao PT, ten-do o partido mantido formalmente uma posição neutra porrazões puramente eleitorais. Tratou-se de uma mobilizaçãoideológica, no sentido de que as negociações em torno deum acordo da Alca não estavam terminadas e sequer tinhamsido definidos seus contornos comerciais mais importantes.Mas essa oposição maciça forçou, de certo modo, sua rejei-ção no plano diplomático. No caso da diplomacia "ao Sul",ela se traduziu, na prática, pela escolha seletiva de parceiros"estratégicos" situados nessa vertente, componente aindareforçado pelo elemento político-partidário da opção prefe-rencial por líderes políticos de orientação esquerdista ouprogressista, com manifestações de apoios pré ou pós-elei-torais – em campanhas presidenciais em vários países sul-americanos – que destoam da tradicional postura discretada diplomacia brasileira em matéria de política interna deoutros países. Ainda na mesma vertente, a postura protagô-nica que o Brasil pretende assumir no contexto dos paísesem desenvolvimento pode diluir posições mais ofensivasque o País poderia adotar no âmbito de negociações comer-ciais multilaterais – de que são exemplos contradições den-tro do próprio G-20 entre o Brasil, de um lado, e a China e aÍndia, de outro, ou entre este grupo e o G-33, de países de-pendentes de importações agrícolas – ou no quadro de umpossível diálogo com o G-7/8 e com os países da OCDE.

Finalmente, um terceiro exemplo da influência de atores"externos" na atual diplomacia também evidencia a existên-

2008Em janeiro, o presidente Lula vai aCuba e visita o amigo Fidel Castro,

que recentemente renunciou àpresidência após 49 anos no poder.

No governo Lula, a assessoria presidencial foi reservadapara um antigo secretário de relações internacionais, napessoa do professor Marco Aurélio Gracia.

Lula Mraques/Folha Imagem

Adaberto Roque/AFP

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cia de prioridades conflitantes no campo da política externaoficial: a solidariedade entre partidos e movimentos de es-querda se revela problemática no caso da Colômbia, umavez que um dos grupos guerrilheiros que alimentam a cruelguerra civil no país vizinho, as Farc, é membro, como o PT,do Foro de São Paulo, o que pode ter levado a uma posturacomplacente do governo brasileiro na concessão de asilopolítico a representante daquele grupo no Brasil, acusadode ações criminosas comprovadas pelo governo da Colôm-bia. O Brasil é, reconhecidamente, vítima da narcoguerrilhacolombiana, seja pelo contrabando de armas, seja pela pas-sagem de drogas (que abastecem crescentemente o consu-mo nas metrópoles brasileiras), seja ainda pela lavagem dedinheiro e outras operações do crime organizado.

Esses diversos atores participando da formulação ou daimplementação da política externa podem, portanto, deter-minar uma rota político-diplomática relativamente inéditapara os padrões tradicionais do Itamaraty, da mesma formacomo alguns dos novos "aliados estratégicos" podem in-fluenciar ou mesmo determinar a posição do Brasil em forosmultilaterais de interesse setorial: seria o caso, por exemplo,de direitos humanos – em relação à China ou a Cuba, entreoutros – ou de temas ambientais ou ecológicos, com o envol-vimento de grupos de pressão que encontram eco em diver-sos setores do governo. O mesmo pode ser dito de movimen-tos "camponeses" que – sem mencionar as violações do di-reito interno, sob a forma de invasões de propriedades – secolocam abertamente contra o agronegócio e o comércio li-beralizado nessa área, fragilizando a posição negociadorado Brasil na tentativa de conciliar demandas opostas numamesma agenda.

Como a política externa se tornou relevante tanto no pla-no interno – na medida em que ela permitiu atender a aspi-rações de partidos e de movimentos de esquerda – como noexterno, em função do novo ativismo diplomático, sobretu-do em direção ao Sul, ela despertou, naturalmente, um de-bate interno como jamais se viu no campo das relações in-ternacionais do Brasil. Os meios de comunicação, a comu-nidade acadêmica – geralmente alinhada à esquerda – e osempresários e líderes patronais dos setores industrial e agrí-cola se mobilizaram em torno das principais opções de po-lítica externa do governo Lula. Pela primeira vez em muitosanos, a diplomacia brasileira parece ter perdido a unanimi-dade favorável no seio da sociedade de que ela desfrutou emoutros períodos, em grande medida em função das posiçõespolíticas já referidas, que derivam de antigas orientaçõespolíticas do PT. Ressalte-se, de fato, que um dos poucos ele-mentos da agenda governamental que recolhe o apoio in-discutível do principal partido governamental é a políticaexterna, todos os demais sendo objeto de algum tipo dequestionamento interno. No quadro mais amplo da opiniãopública bem informada, o debate se dá sobretudo no campoda política comercial – negociações multilaterais, integra-ção regional e acordos preferenciais com países em desen-volvimento – e nos temas da cooperação com os vizinhossul-americanos, em virtude da instabilidade política e dasopções ideológicas em alguns deles.

3. Quais estratégias de política externa derivam dapostura do Brasil e onde se situa o seu foco?

De forma geral, pode-se dizer que, com a nova administra-ção Lula, todos os instrumentos e modalidades de política ex-terna – multilateralismo, relações bilaterais e mecanismos in-formais de cooperação – foram mobilizados para promover asnovas prioridades diplomáticas. Os foros multilaterais são na-turalmente privilegiados para o tratamento dos temas globais,em especial em comércio, meio ambiente, cooperação técnica efinanceira para o desenvolvimento, direitos humanos e desar-mamento. No campo da integração regional, há uma combi-nação de ferramentas bilaterais – sobretudo com a Argentina –e de esforços de coordenação plurilateral para a criação de con-dições favoráveis ao avanço da integração física na América doSul: energia, transportes, comunicações de modo geral.

Acima, gerrilheiros colombianos das Farc, que assimcomo o PT, são membros do Foro de São Paulo. Abaixo,reunião do Conselho de Segurança da ONU, em que o

Brasil deseja uma cadeira permanente.

João wainer/Folha Imagem

David Karp/AP/AE

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Uma das principais prioridades da diplomacia de Lula – defato a mais importante – foi a conquista de uma cadeira per-manente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, ob-jetivo em função do qual uma variedade de estratégias e ins-trumentos foram utilizados pela diplomacia profissional e pe-lo próprio presidente da República. O tema foi inscrito em to-das as conversações bilaterais, aparecendo em praticamentetodas as declarações bilaterais quando o Brasil lograva a ob-tenção do apoio em questão, em alguns casos, tendo como con-trapartida o cancelamento de antigas dívidas bilaterais – casode vários países africanos e de alguns latino-americanos – ou oaumento e a extensão da cooperação para o desenvolvimentopara quase todos os interlocutores de menor desenvolvimentorelativo. Esse objetivo foi, provavelmente, o elemento subja-cente à decisão brasileira de liderar a missão de estabilizaçãoda ONU no Haiti, com o engajamento de recursos importantesnos planos militar, diplomático e financeiro. Ele também foidecisivo para a liquidação dos débitos contributivos do Brasilem praticamente todas as agências multilaterais. Ele também

sua causa já está em grande medida ganha em vista dos apoiosjá conquistados um pouco em todos os cenários. A conquistade uma cadeira permanente no CSNU, mesmo sem direito deveto, é vista pelo establishment diplomático e militar do Brasilcomo um símbolo relevante do statusdo País como grande atorinternacional. Ainda que o tema esteja sendo debatido em ter-mos regionais, o Brasil não necessariamente considera a suacandidatura como emanando de qualquer mandato a ser con-ferido pela região geográfica de origem, tendendo a ver sua as-piração como um reconhecimento de seu importante papel emprol da construção da paz e do desenvolvimento em bases ver-dadeiramente universais.

Existe um virtual consenso entre as elites, e um apoio "vir-tual" em praticamente todas as camadas da sociedade – aindaque o tema, e sobretudo os custos e as contrapartidas que delederivam, não tenha sido extensamente debatido fora da elite –,sobre a legitimidade desse pleito, situação que não se reproduzem relação a um possível ingresso do Brasil na OCDE. O acessoà organização de Paris é visto como uma "graduação" indese-

jada do País ao "clube dos ricos", o que poderiadificultar o diálogo e a coordenação de posi-ções com os vizinhos e os demais países em de-senvolvimento, sem mencionar os efeitos prá-ticos em termos de tratamento preferencial noplano multilateral – SGP e outras facilidadescomerciais – e de novas obrigações a serem as-sumidas no tratamento de temas globais

O governo Lula vê a assunção do Brasil a cír-culos mais elevados de responsabilidade inter-nacional – o que poderia se materializar numG-8 ampliado a G-13, por exemplo – como o re-conhecimento de sua importância própria nocontexto da economia e da política mundiais,mas provavelmente prefere que essa elevaçãode status se dê em conjunto com outros atoresglobais que ele mesmo considera relevantes:seria o caso da Índia, da China e possivelmenteda África do Sul, países com os quais a diplo-macia brasileira considera haver maior aproxi-mação de conceitos quanto às novas regras deuma governança global, livre do unilateralis-mo e das manifestações mais arrogantes da po-

lítica de grande potência. O Brasil não acredita que se possa es-tabelecer nenhum "concerto de superpotências", preferindoenfatizar o reforço das instituições multilaterais e dos foros re-gionais como o caminho ideal para afirmar o primado do di-reito internacional e da cooperação num sistema mais demo-crático do que o atualmente existente.

A despeito de seu firme engajamento na não-proliferaçãonuclear, nos instrumentos de controle de armas de destruiçãoem massa de todos os tipos, e nos regimes restritos de controlede materiais e equipamentos sensíveis (uso dual), o Brasil nãoconsidera aceitáveis os esquemas que perpetuam os sistemasdiscriminatórios atualmente existentes, a exemplo do próprioTNP. O desarmamento convencional não é enfatizado pela suadiplomacia e pelo establishment militar, mas o Brasil é um dospaíses de menor gasto militar per capita, na região ou no mun-

O Exército brasileiro lidera a Força de Paz da ONU no Haiti, com o engajamentode recursos importantes nos planos militar, diplomático e financeiro.

ensejou um debate de alto nível com os demais candidatos de-clarados, resultando daí a formação do G-4 – com a Alemanha,a Índia e o Japão – para o estabelecimento de uma posição co-mum nos debates em torno da reforma da Carta de São Fran-cisco e da ampliação do CSNU. O Brasil conseguiu o apoio de-clarado de pelo menos dois membros permanentes – a Françae o Reino Unido –, o apoio ambíguo de um terceiro – a Rússia –e a não-oposição aberta dos EUA. Uma estratégia de aproxi-mação e de "conquista" da China foi tentada por diferentesmeios – com o seu reconhecimento formal enquanto "econo-mia de mercado" –, mas o Brasil provavelmente esperava que opaís asiático fosse mais positivo na agenda da ampliação.

A despeito da oposição aberta da Argentina, na região, e dopequeno entusiasmo dos EUA por uma ampliação "exagera-da", o Brasil considera que os esforços não foram em vão e que

Evelson de Freitas/AE

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do, e vem de fato atuando como um elemento de pacificação ede estabilização política no âmbito regional, com aspirações adesempenhar o mesmo papel em cenário mais amplo. O Brasilfoi o articulador e vem sendo o principal animador da Zona dePaz e de Cooperação no Atlântico Sul, e por isso mesmo nãofavorece a idéia de ser constituído qualquer esquema defen-sivo – modelado num esquema similar ao da OTAN – no âm-bito dessa região geográfico-marítima.

O principal foco de atuação política, econômica e estratégi-ca do Brasil está obviamente centrado na América do Sul, con-ceito que vem sendo enfatizado pela diplomacia brasileiradesde o início dos anos 1990, em substituição à noção politi-camente vaga e geograficamente difusa de América Latina. Asiniciativas adotadas pela diplomacia brasileira na região – aexemplo da Alcsa, proposta quando do lançamento da Alca,ou de uma rede de acordos comerciais entre o Mercosul e ospaíses sul-americanos, como também da Comunidade Sul-Americana de Nações, agora convertida em Unasul – vêm sen-do, contudo, complicadas, seja pelo quadro de instabilidadepolítica vivida em vários países da região andina e caribenha,seja em virtude do grande poder de atração exercida pelosEUA, sobretudo no terreno financeiro, comercial e de investi-mentos, áreas nas quais o Brasil apresenta menores condiçõescompetitivas do que o gigante do norte.

Os próprios desacordos entre os países da região quanto àssuas prioridades respectivas e a desconfiança histórica em rela-ção ao peso específico do Brasil vêm dificultando o exercício doque muitos observadores consideram ser a "liderança natural" doBrasil numa região ainda pouco integrada fisicamente – os obs-táculos geográficos são respeitáveis – e com grandes disparida-des econômicas e sociais – as chamadas "assimetrias". A noção de"liderança regional" foi sempre afastada pela diplomacia tradi-cional do Brasil, pelo reconhecimento dos problemas que umaafirmação desse tipo causaria na região, mas ela foi por um mo-

mento "flertada" pela atual diplomacia, com base inclusive emdemandas feitas por alguns dos países menores (talvez desejososde uma cooperação econômica mais importante, obviamente embases não-recíprocas). A despeito da magnitude do seu PIB e doavanço de sua indústria, o Brasil dispõe, contudo, de condiçõesinsuficientes para prover ajuda, nos mesmos moldes dos paísesdo CAD-OCDE (Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da Or-ganização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ain-da assim, ele assumiu, voluntariamente, um papel de "corretor deassimetrias" e vem impulsionando esquemas de reconversãoprodutiva e de capacitação econômica e infra-estrutural em favordos países menores, aceitando, por exemplo, ser o principal pro-vedor – à razão de 70% – num fundo de financiamento compen-satório no âmbito do Mercosul. Mesmo adotando princípios depolítica econômica bem mais cautelosos – e ortodoxos – do que amaioria dos países da América do Sul (à exceção, possivelmente,do Chile), ele participa de discussões e negociações em torno deesquemas de financiamento ao desenvolvimento com base em re-cursos públicos, como poderia ser a eventual criação de um Bancodo Sul, em moldes similares aos do Banco Inter-americano de De-senvolvimento (BID) ou da Corporación Andina de Fomento(CAF), da qual o Brasil tornou-se membro em 1996.

Algumas diferenças de opinião se manifestaram entre o Bra-sil e alguns países da região, sobretudo a respeito da coopera-ção energética e o peso relativo dos combustíveis fósseis e dasenergias renováveis – o Brasil é um grande produtor de etanola partir da cana-de-açúcar e já desenvolveu esquemas de co-operação tecnológica com os EUA para estimular o seu uso emâmbito internacional –, o que não o impede de continuar a bus-car os entendimentos possíveis para a plena integração físicado continente. A integração energética se revela mais compli-cada do que o previsto inicialmente, uma vez que ela contem-pla países fornecedores – Venezuela e Bolívia, notadamente,mas também o Peru e o Equador – e países consumidores – Bra-

O principal foco deatuação política,econômica eestratégica do Brasilestá centrado naAmérica do Sul. Nafoto, o presidenteLula participa,juntamente com osministros CelsoAmorim (esq.) eGuido Mantega(dir.), de reunião doMercosul.

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

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sil, Argentina e Chile –, com interesses não necessariamenteconflitantes, mas talvez não exatamente coincidentes. O Brasilvem experimentando dificuldades para o cumprimento dostratados de cooperação e dos acordos de exploração de gás fir-mados com a Bolívia nos anos 1990, que na verdade foram mo-dificados unilateralmente pelo país andino a partir de 2004(aprovação da lei de renacionalização dos hidrocarbonetos),culminando com o decreto de nacionalização de 1º de maio de2006 e a ulterior expropriação dos ativos da Petrobras naquelepaís. Diante de tal situação de insegurança jurídica, deve, ade-mais, analisar com cuidado a proposta venezuelana de umenorme gasoduto unindo seus imensos campos de gás aosconsumidores brasileiros e argentinos. Suas iniciativas nessaárea transcendem inclusive o cenário regional e o âmbito me-ramente comercial, uma vez que o Brasil está interessado empromover o uso intensivo de combustíveis verdes em escalaglobal, mobilizando sobretudo os países africanos, a partir definanciamento dos países desenvolvidos e da tecnologia bra-sileira, amplamente competitiva nessa área.

Essa "liderança não consentida" na região sul-americana –não assumida plenamente, mas ainda assim real, em termos demercados, de investimentos brasileiros crescentes e de proje-tos de obras transfronteiriças de infra-estrutura –, não implicaque o Brasil pretenda falar em nome dos demais países, inclu-sive porque estes não permitiriam que isto ocorresse, por umasérie de razões históricas e geopolíticas. Não apenas a Argen-tina reluta fundamentalmente em reconhecer no Brasil umprotagonismo de qualquer espécie, mas mesmo os pequenosdesconfiam do ânimo "solidarista" do Brasil, preferindo com-pensar sua "massa atômica" mediante arranjos de diluição depoder. O Mercosul, por exemplo, não possui nenhum meca-nismo decisório que seja ponderado em função do peso rela-tivo dos seus membros, cabendo a todos os membros um po-

der igualitário de veto sobre toda e qualquer decisão ou reso-lução. O Parlamento do bloco, da mesma forma, foi constituí-do com base numa representação igual i tár ia , nãop ro p o rc i o n a l .

Cabe ressaltar, em qualquer hipótese, que a diplomacia regio-nal do segundo mandato do presidente Lula vem sendo condu-zida por meio de procedimentos mais cautelosos, e bem mais rea-listas, do que tinha sido o caso no primeiro período. Com efeito, oentusiasmo com a causa da integração e as iniciativas políticasadotadas de maneira relativamente impetuosa na fase inicial logose chocaram com realidades políticas distintas, em cada cenáriosub-regional, e com fatores internos e externos de instabilidadepolítica ou de "desalinhamento" em relação ao Brasil. O projetomais ambicioso do Brasil, que era lograr a ampliação do Merco-sul, como base tanto do exercício da liderança regional como da"resistência continental" à Alca, não conseguiu superar as mes-mas dificuldades que já tinham paralisado o bloco desde a crisede 1999: diferenças de competitividade entre os membros e estru-turas industriais não integradas e pouco complementares conti-nuam a impedir o pleno funcionamento da união aduaneira apartir de uma tarifa externa comum uniformemente aplicada portodos. A Alca foi barrada, no encontro presidencial de Mar delPlata (novembro de 2005), mas apenas para ressurgir sob a formade uma rede de acordos bilaterais comandados pelos EUA. Em2006, o Mercosul foi ampliado à Venezuela, mas sua adesão foiuma decisão de ordem essencialmente política, cabendo aindaserem de fato observados os prazos previstos no protocolo deconvergência para sua plena incorporação ao regime aduaneirocomum e a todo o acervo de normas internas. Na verdade, o Mer-cosul não possui, a exemplo da antiga Comunidade EconômicaEuropéia, um acquis communautaireque sirva de base à construçãoprogressiva de um mercado comum: as diferenças não são ape-nas institucionais, mas também de ordem política.

O Brasil estáinteressado empromover o uso

intensivo decombustíveis verdes em

escala global,mobilizando sobretudo

os países africanos, apartir de financiamento

dos paísesdesenvolvidos e da

tecnologia brasileira.Na foto, usina Santa

Cruz (RJ).

Fábio Motta/AE

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No plano bilateral, por exemplo, o Brasil teve de acomodarreclamações argentinas, aceitando diversas restrições unilate-rais ao livre comércio, antes de consolidar o novo regime de ex-ceções num protocolo de salvaguardas, eufemisticamentechamado de "Mecanismo de Adaptação Competitiva". No pla-no da integração sul-americana, o "fardo da liderança" nemchegou a ser exercido, uma vez que a Comunidade Sul-Ame-ricana de Nações permaneceu um projeto ainda a caminho deimplementação: quando de sua constituição, por exemplo, emencontro regional realizado no Peru (dezembro de 2004), ne-nhum dos três outros presidentes do Mercosul compareceu àcerimônia. Não é seguro que, sob seu novo nome de Unasul –proposto pelo presidente da Venezuela Hugo Chávez – e con-tando com um secretariado em Quito, a nova entidade consigasuperar as diferenças de visões e de objetivos que alimentamcada um dos líderes da região.

4. O que tudo isto significa para a ordem internacio-nal ?

O Brasil ocupa uma posição singular, não necessariamenteúnica, mas específica, a seu modo, no sistema de relações inter-nacionais contemporâneas. Trata-se certamente de um país-continente que, em análises exploratórias, já pôde ser enquadra-do na categoria de "países-baleia" – ou m o n s t e r- c o u n t r i e s , comouma vez referido por George Kennan, junto com outros gigan-tes, como os EUA, a Rússia e a China – ou ainda "países-âncora",como parece preferir a sociologia política germânica. Esse tipode caracterização política é certamente ambígua, uma vez que adimensão primária dos dados populacionais ou da extensão doterritório nem sempre corresponde a uma importância propor-cional no plano da política internacional ou da economia mun-dial, como ocorreu durante certo período do século 20 com aChina, ou no seu final com a Rússia.

Junto com esses grandes atores, emergentes ou já enquadra-dos na categoria de grandes potências, o Brasil está presumivel-mente destinado a desempenhar um futuro papel de relevo noscenários evolutivos da governança global, mais provavelmentepelo lado da economia do que na vertente estratégico-militar,haja vista ser grande produtor de commodities – primeiro forne-cedor mundial de uma longa lista de produtos primários, geral-mente de base agrícola – e dotado de imensas reservas de recur-sos naturais e produtos da biodiversidade. O Brasil foi, durantemuito tempo, aliás, em seus três ou quatro primeiros séculos co-mo nação, basicamente um ofertante eficiente de "produtos desobremesa" – açúcar, café, cacau e alguns poucos outros –, com-plementando atualmente essa linha de matérias-primas comuma vasta gama de muitos outros insumos de origem primária,além de alguns bens manufaturados de baixa intensidade tec-nológica. Hoje, ele continua a ser um fornecedor competitivo decommodities, mas também comparece na linha de frente de algu-mas tecnologias de ponta, como a aeronáutica civil (Embraer).Futuramente, e pela primeira vez em sua história econômica, oBrasil se tornará um fornecedor relevante de energias renová-veis – etanol à base de cana-de-açúcar e biocombustíveis em ge-ral –, não apenas pelo lado do produto em si, mas igualmente nasua dimensão tecnológica e científica.

O Brasil foi aparentemente penalizado, em sua história eco-nômica passada, pela ausência de fontes abundantes de ener-gia – carvão ou petróleo, na primeira e na segunda revoluçãoindustrial –, o que, junto com a baixa qualificação educacionalda população, atrasou seu processo de industrialização e de in-serção na moderna economia industrial. Hoje plenamente in-dustrializado, mas ainda arrastando uma pesada carga deatraso educacional e baixa produção tecnológica – a despeitode uma notável ascensão na produção científica de tipo uni-versitário –, o Brasil se prepara para assumir um papel demaior relevo econômico no âmbito da globalização. As baixastaxas de crescimento econômico registradas nas últimas duasdécadas – depois de um notável desempenho na agregação devalor ao PIB, junto com o Japão, durante os primeiros oitentaanos do século 20 – devem persistir no futuro previsível, emrazão da elevada carga fiscal do Brasil, comparativamente aosdemais emergentes: os gastos públicos representam cerca de38% do PIB, similar à média da OCDE, em face da média de

O baixo crescimento econômico deve persistir, por conta daalta carga tributária. Na foto, Impostômetro da ACSP.

Paulo Pampolin/Hype

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28% dos países emergentes e de uma taxa ainda mais reduzidapara os mais dinâmicos dentre eles (17 e 18% para China e Chi-le, por exemplo).

Com efeito, o exercício conduzido em torno dos Brics pelosdois economistas do Goldman Sachs confirma que o Brasil é opaís de menor dinamismo relativo nesse conjunto, conseguin-do ultrapassar a França e a Alemanha apenas depois de 2030.Mas, ainda que ele venha a manter a taxa média, bastante mo-derada, de 3,5% de crescimento do PIB no horizonte 2050, istobastaria para enquadrá-lo no novo G-6 da economia mundialprevista nesse estudo. Do conjunto dos Brics, aliás, o Brasil é opaís que apresenta as melhores estruturas de mercado, frutode um capitalismo que foi se desenvolvendo de modo relati-vamente "ortodoxo" ao longo do século 20 (em face dos diver-sos experimentos socialistas dos outros três). A despeito dasdisfunções geradas por um Estado intrusivo e por uma pesadacarga tributária – em grande medida responsáveis pelos altoscustos de transação e pela elevada informalidade geral – o Bra-sil moderno possui instituições de governança estatal ou cor-porativa relativamente desenvolvidas e funcionais para finsde inserção nos circuitos da economia globalizada. Se o Paísconduzir um novo pacto social – o pacto anterior, gerado pelaConstituição de 1988, sobrecarregou as despesas públicas, jus-tamente –, no sentido de diminuir o peso da tributação e da re-gulação excessivas, podem estar surgindo as condições paraque o Brasil ingresse num círculo virtuoso de crescimento sus-tentado (ainda que a taxas relativamente mais modestas doque as dos demais emergentes), com preservação da estabili-dade macroeconômica, uma situação certamente inédita paraos padrões inflacionários conhecidos ao longo do século 20. OBrasil ainda manterá, durante uma ou duas gerações, um per-fil iníquo na distribuição de renda, com um alto coeficiente deGini comparativamente à média mundial, mas a tendência pa-

rece ser a de uma redução lenta, mas segura, com base na ma-nutenção da estabilidade macroeconômica, investimentoseducacionais e transferências governamentais.

No plano da sua presença internacional, o Brasil, junto comalguns outros grandes atores, como a Indonésia e a Repúblicada África do Sul, não parece ser "satelitizável", como pode terocorrido com alguns outros países emergentes da periferia.Ainda que seja uma orientação difusa em certos meios da elite,o establishment diplomático-militar e as lideranças empresa-riais do Brasil parecem propensos a impulsionar uma inserçãosoberana no sistema de poder econômico e político mundial,não sendo assim de esperar que o Brasil venha simplesmente aaderir a qualquer esquema restrito de poder internacional li-derado por um ou outro dos grandes atores da atualidade. Aclara noção da independência política nacional e de uma ex-pressão econômica própria no contexto global parecem sersentimentos comumente partilhados pelas diferentes elitesque se sucederam no comando político do Brasil ao longo doperíodo moderno. Ainda que, em algumas épocas, algumasdelas alimentassem ilusões de uma "relação especial" com osEUA – o grande aliado objetivo do período da Guerra Fria –,não parece subsistir nenhuma vocação atual a inserir o Brasilno "grande Ocidente liberal" – qualquer que seja a definiçãodeste último –, ou num sistema internacional dominado exclu-sivamente pelos EUA.

A orientação geral das elites brasileiras é a de buscar alian-ças diversas, de caráter mais pragmático do que ideológico, edesenvolver o potencial do País segundo uma combinação deelementos políticos, inclusive diplomáticos, e de fatores eco-nômicos – com base em evidentes vantagens comparativas, decunho "ricardiano" –, de modo a permitir a plena afirmação so-berana do Brasil no cenário internacional. Obviamente, umaevolução positiva em direção à desejada inserção soberana e à

Desigualdadesocial: o Brasil

ainda manterá,durante uma ou

duas gerações, umperfil iníquo nadistribuição de

renda, com um altocoeficiente de Gini

comparativamenteà média mundial,mas a tendência

parece ser a de umaredução lenta (...)

Ricardo Padue/AFG

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assunção de uma maior presença econômica mundial depen-de de que seja bem-sucedida uma série de reformas internaspara permitir maior aceleração no crescimento econômico econsolidar o processo de transformações estruturais, que re-tirará, definitivamente, o País da categoria de "país em desen-volvimento" para a de "plenamente desenvolvido".

Esse itinerário otimista não pode ainda ser garantido. Cená-rios prospectivos desenhados pela antiga Secretaria de Assun-tos Estratégicos da Presidência da República no final dos anos1990 permitiram traçar três evoluções possíveis para o Brasil nohorizonte 2020. Segundo um cenário exploratório mais otimis-ta, "em 2020, o Brasil é uma potência econômica sólida e moder-na, mas ainda apresenta níveis de desequilíbrio social". Tem-sea aceleração do crescimento econômico, mas "registram-se ain-da graves problemas sociais e regionais, porforça da persistência da má distribuição de ren-da e da concentração espacial da economia".Num cenário intermediário, em contrapartida,o Brasil de 2020 "apresenta-se como uma socie-dade mais justa. O papel do Estado concentra-se na redução da pobreza absoluta e do hiatoentre ricos e pobres, (mas) a participação doPaís no comércio exterior permanece em me-nos de 1%." Num outro cenário exploratório,mais pessimista, em 2020, "o Brasil enfrenta cri-ses de instabilidade política e econômica, cujoprolongamento leva ao agravamento dos pro-blemas sociais. O quadro de instabilidade é, emlarga medida, decorrente da não concretizaçãodas reformas estruturais. A vulnerabilidade doPaís é agravada diante da prevalência de umcenário internacional de fragmentação, com re-crudescimento do protecionismo. O Brasil per-de espaços no mercado mundial, fechando-seem si mesmo, sem possibilidade de contar comfatores externos capazes de impulsionar o cres-cimento econômico".

Esse cenário mais pessimista foi refletido em estudo do "Na-tional Intelligence Council", entidade filiada à CIA, que traçouno quadro de um "Projeto 2020", perspectivas para o Brasil e aAmérica Latina, nas quais tenta visualizar algumas linhas ten-denciais da evolução brasileira e regional. Segundo esse estu-do, "o Brasil vai provavelmente falhar em sua tentativa de li-derança na América do Sul, devido tanto ao ceticismo de seusvizinhos, quanto à sua ênfase freqüentemente determinanteem seus próprios interesses. Ele vai continuar, entretanto, a sera voz dominante no continente e o mercado principal para seusparceiros do Mercosul. O Brasil ainda não terá conseguido asua cadeira permanente no Conselho de Segurança, mas con-tinuará a se considerar um ator global. A despeito de que o de-sempenho econômico brasileiro não será espetacular, as di-mensões de sua economia ao lado de sua vibrante democraciacontinuarão a desempenhar um papel estabilizador na região.Esquemas comerciais com a Europa, os Estados Unidos e gran-des economias em desenvolvimento, principalmente China eÍndia, ajudarão a manter o crescimento de suas exportações osuficiente para compensar a falta geral de dinamismo de sua

economia. Mesmo após 20 anos, os esforços para implementarreformas vitais nas instituições brasileiras estarão ainda emcurso. Apesar de que a situação tenderá a apresentar algumamelhoria, o assim chamado "custo-Brasil", um problema degovernança, continuará a dificultar os esforços para moderni-zar inteiramente sua economia. O sistema tributário complexoe pesado do Brasil, guerras fiscais entre os Estados e limites àinfra-estrutura interna de transportes persistirão. Tirandovantagem da fome na Ásia e de seus vínculos reforçados com aEuropa, o Brasil conseguirá compensar suas debilidades es-truturais graças a seu robusto setor do agribusiness. A grandedívida e sua vulnerabilidade à inflação também continuarão aser matérias de preocupação."

Em resumo, o Brasil continuará a avançar, mas aparente-mente não num ritmo que o coloque no pelo-tão de frente da economia mundial no futuroimediato, considerando-se, é claro, que ne-nhum grande problema econômico ou socialvenha perturbar o cenário prospectivo relati-vamente otimista traçado no estudo da Gold-man Sachs. Em qualquer hipótese, sua presen-ça nesse G-6 apresenta implicações sobretudoeconômicas, não derivando para conseqüên-cias no plano estratégico ou militar, que o es-tudo não pretende abordar. É previsível, as-sim, que o Brasil continuará exibindo traçosrelativamente similares aos que sua diploma-cia cautelosa e ao mesmo tempo participativatem demonstrado no período recente, ou seja:uma posição protagônica nos foros comer-ciais, uma menor presença nos meios financei-ros ou tecnológicos, mas a continuidade de seuativo engajamento nos organismos multilate-rais. As alianças ao Sul, em especial aquelas noâmbito regional sul-americano, continuarão aser bastante enfatizadas em sua política exter-na, ao mesmo tempo em que o diálogo com as

principais potências econômicas, políticas e militares conti-nuará a se intensificar, não sendo de se excluir um ingresso amédio prazo na OCDE e num G-8 ampliado.

O cenário preferencial de atuação continuará a ser o daAmérica do Sul e possivelmente o dos países africanos maispróximos, mas a qualidade da interação diplomática com osparceiros desenvolvidos também deve presumivelmente serincrementada. Os grandes países europeus com forte presençacorporativa e cultural no Brasil, a exemplo da Alemanha, con-tinuarão a ter papel de destaque nessa teia complexa de rela-cionamentos econômicos, financeiros e tecnológicos. O Brasiliniciou, em 2007, um diálogo de alto nível com a União Euro-péia, o que deve ter prolongamentos no âmbito do Mercosul eda América do Sul, compensando a presença sempre impor-tante dos EUA na região.

Em conclusão, pode-se dizer que a emergência do Brasil en-quanto grande ator regional e global depende bem mais dacontinuidade de seu processo interno de reformas econômicase políticas do que, na verdade, de sua capacidade de projeçãoexterna, que parece garantida.

O Paíscontinuará aavançar, masaparentementenão num ritmoque o coloqueno pelotão defrente daeconomiamundial nofuturo imediato.

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62 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

UMA R E P U B L I Q U E TA

Ives Gandra daSilva MartinsProfessor Eméritodas UniversidadesMackenzie,UNIFMU, UNIFIEO,UNIP e das Escolasde Comando eEstado Maior doExército-ECEME e

Superior deGuerra-ESG,Presidente doConselho Superiorde Direito daFecomercio e doCentro de ExtensãoUniversitária - CEU.

Luiz

Pra

do/L

UZ

O Banco Mundial, em recente re-latório, declarou que o País cres-ceu, em 2007, menos que a mé-dia dos países emergentes e

continuará crescendo menos, no ano de 2008.Os números são decepcionantes para o go-

verno Lula. Enquanto a médiados países emergentes foi de umcrescimento de 7,4% do PIB, em2007, e será de 7,1%, em 2008, o PIBbrasileiro apresentou um cresci-mento de 4,8%, em 2007, e deverácrescer apenas 4,5%, em 2008.

Nada obstante o presidente Lula esgrimircom dados estatísticos que lhe são contrários,como se fossem favoráveis, o Brasil, em seu go-verno, cresceu, nos primeiros cinco anos, me-nos que a América Latina e o Caribe. É de selembrar que, nos períodos de crise recessivamundial (1997-2002), o Brasil de FernandoHenrique elevou o seu PIB, no ano de 2002, em2,7%, enquanto a América Latina e o Caribe ti-veram um crescimento negativo de 0,5%. Apartir da era Lula, a América Latina e o Caribesempre estiveram a frente do Brasil, inclusiveno ano de 2007, lembrando-se que a Argenti-na, com toda a crise decorrente do calote finan-ceiro de alguns anos atrás, cresceu 7,8%, em2007, e crescerá 5,7%, em 2008.

Em outras palavras, o governo Lula, porforça do céu de brigadeiro da economiamundial, apresenta números absolutosmelhores que seu antecessor e pioresem números ponderados e comparati-vos. Cresceu, proporcionalmente emrelação à economia mundial, menos doque o governo anterior, e só apresentadados positivos ainda, porque copiou,rigorosamente, o modelo econômico deFernando Henrique, no que diz respeitoà política monetária.

Todo o drama brasileiro reside no fatode que o governo não tem projeto, suapolítica assistencialista e eleitorei-ra custa-lhe pouco(menos de 1,5% do or-çamento federal), apolítica econômica re-produz o governo an-

terior e o inchaço da máquina administrativaatrasa o desenvolvimento brasileiro.

Em outras palavras, seu governo ostentaboas realizações (política monetária) e realiza-ções originais (inchaço da máquina), sendo queas boas realizações não são originais (cópia dogoverno FHC) e as originais não são boas (oaparelhamento do Estado com sindicalistas enão concursados, o que torna a administraçãoineficiente e atravanca o progresso nacional).

Para sustentar esta incrível, esclerosada eadiposa máquina, que cresce na exata propor-ção das acomodações políticas para manter ainstável e pouco confiável base aliada – cons-tantemente levada às barras dos tribunais, porconduta incompatível com a moralidade públi-ca –, o presidente Lula tem elevado, ano apósano, o peso dos tributos sobre a sociedade bra-sileira, que gera desenvolvimento e empregos,nada obstante todos os esforços da Administra-ção Pública para atrapalhá-la neste desiderato.

Estou convencido de que o Brasil só nãocresce no mesmo nível – detectado pelo BancoMundial – da Índia (9,0% em 2007 e 8,4% para2008), China (11,3% em 2007 e 10,8% para2008), Rússia (7,5% em 2007 e 6,5% para 2008),

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FISCALporque o governo obstaculiza o crescimento.A retirada de recursos da sociedade através detributos objetiva, primordialmente, asseguraro alargamento da máquina governamental, ofestival de desperdícios em festas, cartões decrédito, empreguismo oficial e benesses "prodomo sua", sem na utilização de recursos – nãopara a saúde ou para investimentos em infra-estrutura no Brasil – mas para doações em be-nefício do governo cubano do ditador e homi-cida Fidel Castro, que nos idos de 50 assassi-nou, sem julgamento, nos famosos "pare-dons", milhares de seus irmãos de pátria. Des-ta forma, o contribuinte brasileiro é obrigado apagar mais do que os contribuintes russos, chi-neses e indianos e de todos os países da Amé-rica Latina e do Caribe. A política tributária noBrasil, portanto, é iníqua.

Compreende-se, pois, o esforço hercúleo daadministração pública – hoje até com uma forçatarefa encarregada de desestruturar o terceirosetor – para liquidar com aquelas entidades tor-nadas imunes pela Constituição, pois fazemelas o que o governo deveria fazer com os nos-sos tributos e não faz.

Assim é que instituições hospitalares comoas Santas Casas de Misericórdia – que a Cons-tituição pôs a salvo de tributos e que fazemmais pela saúde do que o governo brasileiro –estão sendo vítimas de perseguições tributá-rias, em face da necessidade pantagruelescado Estado de retirar cada vez mais tributos dopovo brasileiro. São melhores do que os hos-pitais públicos, assim como atendem mais àpopulação do que o governo. Na visão ape-quenada dos áulicos governamentais, toda-via, é melhor pisotear a Constituição e exigirimpostos e contribuições destas entidades –reduzindo, pois, o serviços a serem prestadosà sociedade – do que permitir que o terceirosetor continue fazendo bem o que o gover-no faz mal com os nossos tributos.

O mesmo ocorre com as faculda-des e universidades federais ecom o ensino público – de boaqualidade, no passado – eque se encontra deteriora-do, nada obstante o esforçoque reconheço no ministro Fer-nando Haddad, um dos poucosque se salvam, no emaranhadode aliados não confiáveis e de ocasião dopresidente Lula.

No que diz respeito aos direitos do contri-buinte, jamais foi ele tão maculado quanto naadministração Lula. O direito de "ampla de-fesa", constitucionalmente assegurado (art.5º, inciso LV), ano após ano torna-se menos"amplo", ao ponto de ter o Secretário da Recei-

ta Previdenciária e Tributária – pessoa inte-ligente, culta e de fino trato – mudado a

composição dos Conselhos do Con-tribuinte, objetivando torná-lo umórgão homologatório de suas de-cisões. Autorizou, por outro lado,

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64 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

o valor arrecadado pelareferida contribuição

(uma vez e meia).Por esta razão, Brasília não tem qualquer in-

teresse na reforma tributária, pois, se a fizesse,correria o risco de perder sua participação nobolo fiscal, hoje em 60%.

Como Estados e Municípios desejam elevarsua participação, hoje de 40%, na arrecadaçãotributária, se vier um projeto de reforma tribu-tária só haverá um perdedor: o contribuintebrasileiro, que a deseja para redução e não paraaumento da carga.

Valem pouco as promessas do presidente darepública, que, como dizia Roberto Campos,"apenas comprometem quem as recebe e nãoquem as faz" . Tanto é assim que, apesar de terprometido não aumentar o nível impositivo,nem ofertar novos pacotes, ao negociar com aoposição a aprovação da DRU, maculou suacredibilidade, lançando um pacote e elevandoa CSLL e o IOF, poucos dias depois.

Com ameaças de cortes nas despesas do Ju-diciário, espera o governo compelir o STF a en-contrar solução jurídica para manter os au-mentos do início do ano.

O certo é que a palavra oficial não é confiá-vel, a política tributária não existe – há apenasum fantástico e, muitas vezes, ilegal esforço de

a Procuradoria da Fazenda Nacional a proporprojeto de lei em que o Judiciário é excluídoda execução fiscal, podendo a própria PGFNleiloar os bens, independentemente de auto-rização judicial, amesquinhando o direito docontribuinte, que, se recorrer ao Judiciário esair vitorioso oito ou dez anos depois, recebe-rá sem correção o produto arrecadado nos lei-lões judiciais, sempre em valor inferior ao demercado. Passou-se, agora, a enviar o nomedos presumidos devedores ao Fisco à Serasa,intentando cortar seu crédito junto ao sistemafinanceiro e nas casas comerciais, reeditan-do-se, assim, procedimento da Ditadura Var-gas (sanções de devedor remisso) que foi ful-minado pelo STF. Seu único objetivo é, de res-to, desestimular a discussão judicial e obrigaro contribuinte a pagar o que deve e, principal-mente, o que não deve. Monta, ainda, opera-ções cinematográficas, com a ajuda da políciafederal e do Ministério Público, contra os con-tribuintes, que são presos e têm sua imagemdenegrida "sem sequer ter havido lavraturade autos de infração". Há inúmeras outrasmedidas cerceadoras do direito, que podemser apontadas.

Paralelamente, cresce, preocupantemente,o nível da arrecadação federal. Bate recordes,mês após mês, para sustentar o inútil dinos-sauro estatal.

Com o nível de arrecadação que possui, àevidência, não precisaria o governo da

CPMF, pois só em 2007 arreca-dou além de suas próprias

previsões, mais do que

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arrecadar mais, sem qualquer compromissocom o desenvolvimento nacional ou a justiçafiscal –, o País cresce pouco em comparaçãocom seus concorrentes diretos entre os emer-gentes (Rússia, China e Índia), e quase nada sefez para a infra-estrutura. Já se vê o risco deapagão e aumento de mortes nas rodovias fe-derais e outras deficiências da falta de inves-timentos públicos, nos últimos cinco anos.

Nesta republiqueta fiscal em que vivemos,em que os tributos são fundamentalmentedestinados às sustentar uma máquina esclero-

sada, assim como os amigos de Cuba, da Bolí-via e o futuro Banco de Chávez, a "sorte" dopresidente Lula, com o sucesso da economiamundial em seu mandato, no qual o Brasil pro-grediu por força do "efeito maré", pode vir amudar, se realmente o desenvolvimento mun-dial decrescer em 2008.

Para o bem do Brasil, gostaria que seu es-tilo de governo mudasse, o que é pedir mui-to. Torço apenas para que, pelo menos, sua"sorte" continue.

Um personagemsempre emevidência: osleões queilustram esteartigo forampublicados nojornal Diário doComércio

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Bonecos deHillary Clinton eBarack Obamano Museu deCera MadameTussauds deWashington DC.

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Divulgação

Olavo deCarvalhoJornalista, escritor eprofessor de Filosofia

No momento em que escrevo esteartigo, o Partido Republicanohesita entre o pastor batista Mi-ke Huckabee e o veterano de

guerra John McCain. Os democratas aindanão se decidiram entre Barack Obama e Hil-lary Clinton. O quadro eleitoral americanodivide-se, portanto, entre três enigmas e umacerteza temível. Ninguém tem a menor idéiado que se pode esperar dos três primeiros ca-so eleitos, mas a quarta tem todo o curriculumvitae necessário para completar o trabalho dedesmantelamento da Presidência americana,inaugurado com brilhante sucesso por seumarido com a ajuda de espiões chineses, delobistas ladrões, da srta. Monica Lewinsky,dos narcotraficantes das Farc, que tanto lu-craram com o famoso Plano Colômbia e, lastnot least, de uma infinidade de agentes de in-teligência colocados na CIA para servir à fa-mília Clinton em vez do Estado americano. Amaior vantagem em favor de Hillary Clintoné que, como diria Paulo Francis, todo mundojá viu esse filme e sabe quem morre no fim.Num momento de tantas incertezas, isso po-de gerar alguns votos.

Huckabee apresenta-se como um "socialconservative", mas ao mesmo tempo apóia aspesquisas com células-tronco, colocando seuseleitores na maior incerteza. O que ele tem aseu favor é que nada se espera dele de tão ca-tastrófico quanto de qualquer dos outros três.Se ele conseguir provar que é inócuo, terá ain-da alguma chance contra McCain.

O que se passa na cabeça de John McCain,nem ele próprio sabe. Ele já provou que é capazde mudar de idéia subitamente e estrangularno ato quem não goste da novidade. Os con-

servadores dizem que ele é o mais democratados republicanos, que é impossível distingui-lo nitidamente do senador Ted Kennedy, queele mal consegue refrear um orgasmo cada vezque vê um aumento de impostos; mas na es-querda há quem jure que ele está à direita deGeorge W. Bush, que ele é o falcão dos falcões,que a primeira coisa que ele vai fazer na pre-sidência é sair logo bombardeando o Irã e de-sencadeando a terceira (ou quarta) guerramundial. Talvez tudo isso seja verdade, mas,certamente, nada disso é bom. Dos quatro can-didatos, ele ainda é o que mais tem condiçõesde ser eleito, mas é certo que muitos de seuseleitores votarão nele tremendo de medo, se-guros de que o fizeram só para evitar que umdos partidos, dominando a Presidência juntocom o Senado, a Câmara e a maioria dos votosna Suprema Côrte, se torne onipotente (osamericanos odeiam isso por instinto).

Quanto ao senador Obama, ele é decertomenos interessante do que os motivos quemuitos americanos têm para votar nele. Se al-guém é insistentemente acusado de um defei-to ao ponto de se tornar complexado por isso,com muita probabilidade acabará caindo nodefeito oposto. Aplicado com astúcia, o truqueé quase infalível. Acuse um sujeito de sovina eele se tornará um desperdiçador compulsivo.Acuse-o de machista e ele se deixará dominarpela esposa. Embora o racismo nos EUA tenhasido um fenômeno muito limitado geografica-mente, o país inteiro foi tão acusado de racistaque os americanos em geral acabaram sacrifi-cando sua dignidade ante a moda grotesca dopoliticamente correto. E agora muitos deles sesentem obrigados a votar em Barack HusseinObama só para mostrar que são bonzinhos. O

Delicadezaletal

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senador fala bonito, mas até agora ninguémconseguiu descobrir nos seus discursos algoque se assemelhasse mesmo de longe a um as-sunto. Na mais substantiva das hipóteses apa-rece ali alguma promessa de campanha igual-zinha às de sua concorrente Hillary Clinton,senão às dos candidatos republicanos. Tal co-mo McCain, ele promete entregar a cabeça deOsama Bin Laden, só faltando, é claro, encon-trá-la. Tal como a sra. Clinton, ele promete as-sistência médica de graça para todo mundo(não só para os pobres, os incapazes e os ve-lhos), sem que jamais lhe ocorra a idéia de ex-plicar de quem vai tomar o dinheiro para fazerisso, nem muito menos como vai tapar o rom-bo da previdência, que já se calcula em tri-lhões. O senador especializou-se mesmo foiem exortações adolescentes do tipo "Vamosmudar o mundo", porque sabe que ninguémespera que ele faça alguma coisa na Presidên-cia, apenas que esteja lá como um símbolo.

Símbolo do quê? Os latinos diziam que no-men est omen, "o nome é profecia". Barack Hus-sein significa "abençoado descendente do Pro-feta" e há provas concludentes de que seu por-tador está mentindo quando diz que nunca foimuçulmano (Daniel Pipes tirou isso a limpoem http://www.danielpipes.org/arti-cle/5286 e http://www.danielpipes.org/ar-

ticle/5354). É mais ou menos como se em plenaguerra do Vietnã os EUA elegessem presiden-te um sujeito chamado John Paul Ho Chi Minh,educado em Hanói, filho de um membro doPartido, mas que jurasse nunca ter sido comu-nista e ficasse ofendidíssimo se alguém duvi-dasse dele. A candidatura Obama é uma pro-vocação calculada: serve de termômetro paraavaliar quão profundamente o hábito adquiri-do da autocensura politicamente correta já in-fundiu na mente dos americanos a disposiçãode deixar-se levar ao forno só para não fazeruma descortesia com o cozinheiro.

Um detalhe significativo ilustra isso às milmaravilhas: quando o senador ouve o hinonacional, ele não põe a mão direita no cora-ção, como manda o protocolo, mas segura li-teralmente a bolsa escrotal com as duas mãose todo mundo se sente inibido de dizer que is-so é um insulto. Teste semelhante já foi feitono tempo de Bill Clinton. O presidente se per-mitia transformar a Casa Branca num bordel,mentia descaradamente e acusava de conspi-ração direitista quem quer que achasse ruimuma coisa ou outra. O ar de indignação na ca-ra dos democratas quando defendiam a hon-ra do sem-vergonha era tocante. Tanto naque-le caso quanto agora, a mais cínica proibiçãode perceber o óbvio é imposta em nome da

Jim Young/Reuters

Quanto aosenador Obama,ele é decertomenosinteressante doque os motivosque muitosamericanos têmpara votar nele.

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moralidade, instilando na opinião pública ohábito da inversão revolucionária (ver emh t t p :/ / w w w. o la v o d e c a r va l h o . o rg/ s e m a-na/071029dc.html). Tudo isso parece muitoextravagante, mas é uma obra de engenhariapsicológica de alta precisão.

O panorama desta eleição é, sob todos os as-pectos, miserável. Mitt Romney mostrou ter fi-bra de estadista justamente no discurso emque abdicou da sua candidatura. Ele disse quea presente eleição gira em torno de temasmaiores, não de rotinas administrativas. Nun-ca os EUA tiveram de decidir sobre questõestão graves, dispondo de cérebros tão levianospara arcar com essa responsabilidade. A des-proporção entre os problemas e os persona-gens é tragicômica, mas o lado comédia vaipassar e a tragédia vai ficar.

As culpas da presente situação repartem-seigualmente entre os democratas, que sobrepu-seram suas ambições políticas à segurança dosEUA, e George W. Bush, que se recusou a en-xergar isso e preferiu embarcar o país numailusória união nacional contra o inimigo exter-no. A união não durou três semanas. Qualquerobservador inteligente podia prever isso, masBush apostou tudo na cartada do patriotismo,sem querer enxergar que o de seus adversáriosera totalmente fingido.

Na tradição americana, os funcionários pú-blicos, principalmente de alto escalão, sempretiveram orgulho de servir ao Estado, indepen-dentemente de saber qual partido estava nopoder. Desde a era Clinton, o Partido Demo-crata rompeu com essa tradição, espalhandona rede burocrática militantes que servem aele, não ao Estado, ao povo ou à nação. Todos jávimos isso acontecer em algum país, não é

mesmo? E todos sabemos como termina. Des-de o 11 de setembro, os planos de guerra deGeorge W. Bush foram boicotados desde den-tro pelos "clintonistas" do Departamento deEstado e da CIA, que assim produziram as si-tuações insustentáveis, cuja culpa era em se-guida imputada ao presidente. A história écontada em detalhes no livro de Kenneth R.Timmerman, Shadow Warriors, The Untold Sto-ry of Traitors, Saboteurs, And The Party of Surren-der (Crown Forum, New York, 2007), e quemnão a conhece não entenderá jamais o que sepassa hoje em dia nos EUA. Recusar-se a en-xergar o mal é tão vergonhoso quanto produzi-lo. George W. Bush carrega nas costas a respon-sabilidade de haver fugido ao combate internomediante o subterfúgio de uma guerra noalém-mar. Quando ele foi eleito pela primeiravez, os republicanos tinham todas as condi-ções para permanecer no poder por vinte anose levar às últimas conseqüências as grandestransformações iniciadas na era Reagan. A ti-midez (ou o rabo preso) de George W. Bush pôstudo a perder. "Par délicatesse j'ai perdu ma vie"(Por delicadeza, perdi minha vida), dizia Rim-baud. Mas a profecia, infelizmente, não se apli-ca só à pessoa do atual presidente americano. Étodo um povo que arrisca se desgraçar paranão cometer a impolidez de declarar os nomesdos seus inimigos.

Jim Young/Reuters

John McCain jáprovou que écapaz de mudarde idéiasubitamente eestrangular noato quem nãogoste danovidade.

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Greenspan e arecessão americana

Como avaliar a probabilidade e a extensão de umarecessão nos Estados Unidos este ano? No início de2007, e depois em várias ocasiões ao longo do ano, om a e s t ro Alan Greenspan – chairman do Federal

Reserve Board (Fed), o banco central dos Estados Unidos, entre11 de agosto de 1987 e 31 de janeiro de 2006 – alertourepetidamente para a possibilidade de uma recessão nos EUA.

A afirmação de Greenspan no início de 2007 de que haviauma chance em três de que a economia americana estaria emrecessão nesta época do ano compreensivelmente sacudiu osmercados financeiros. É claro que nada assegurava que omaestro estaria certo; não temos evidência concreta de que os

Justin Sullivan/Getty Images/AFP

Bel Pedrosa

Rober toFendtEconomista evice-presidentedo InstitutoLiberal

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71JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

EUA já estão em recessão, embora játenhamos tido o sinal do Conference Boardda possibilidade de uma contraçãoeconômica a caminho.

O argumento de Greenspan era oseguinte: em 2007, completavam-se seisanos de expansão continuada da economiaamericana. Uma expansão tão longa excediaa média das fases de expansão anteriores. E,como costuma ocorrer, à medida queamadurece uma fase do ciclo econômico,diversos desequilíbrios vão ocorrendo emsetores específicos da economia, acabandopor levar a uma reversão no cicloeconômico. Um claro indicador disso seria ofato de que as margens de lucro nos EUApararam de crescer no início do anopassado, um claro e seguro indicador do fimde uma longa fase de expansão. E aexperiência americana a esse respeito indicaque, no passado, a economia mudou de umafase de expansão para uma fase de contraçãocerca de um ano depois do pico da margemde lucro média na economia. Daí a previsãode Greenspan, no início do ano passado, dofim da fase de expansão ainda em 2007 ouno princípio de 2008.

Certo ou errado, Greenspan apoiava-sena evidência disponível para as fases dociclo econômico nos EUA. A média históricadas fases de expansão é de cinco a seis anos,embora a expansão anterior à atual tenhadurado dez anos. Dados esses fatos, o quepoderia levar a economia americana a umacontração econômica?

Cada ciclo econômico tem suaspeculiaridades, mas os determinantes desuas fases são mais ou menos sempre osmesmos: crédito, investimentos e lucros.Tanto nas fases de expansão como decontração, esses fatores interagem e seauto-reforçam. E se é verdade que aexpansão do crédito é que financia e iniciao processo de expansão, o que determina acontinuidade da fase de expansão são osinvestimentos e os lucros, e asexpectativas de lucros futuros.

Na atual fase do ciclo econômico, o acessofácil ao financiamento imobiliário iniciou aexpansão. Proprietários de residênciassentiram-se mais ricos à medida que ospreços das casas subiam de forma contínua,estimulando a oferta de novas unidades. Opersistente aumento dos preços criou umaexpectativa de lucros cada vez maior para osconstrutores e encorajou as instituiçõesfinanceiras a ampliarem os empréstimos.

Todos queriam emprestar a tomadores compatrimônios líquidos cada vez maiores.

Esse processo leva, é óbvio, à assunção deriscos crescentes por tomadores deempréstimos e instituições financeiras.Como ensinou Ludwig von Mises na décadade 1930, todos os ciclos revertem, às vezesporque as condições de crédito se tornammais apertadas, às vezes porque já nãocasam investimento e demanda. Em ambosos casos, gera-se uma oferta excessiva queresulta em maus empréstimos e mausinvestimentos. Ao que tudo indica, o atualciclo econômico nos EUA tem um pouco dosdois e as perdas foram se acumulando aolongo do ano que passou. Perderam osconstrutores e famílias; as instituiçõesfinanceiras estão acumulando perdasrecordes, associadas a um aumento agudona inadimplência dos mutuários.

A maioria dos analistas e autoridadesconsiderou os problemas dos mercadosimobiliário e de hipotecas dos EUA, duranteboa parte do ano passado, de poucaimportância, por considerá-losconcentrados no mercado de hipotecas

No início de 2007,Alan Greenspanafirmou quehavia uma chanceem três de aeconomiaamericana entrarem recessão.

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AFP

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72 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

subprime. Só quando os riscos dessesempréstimos se espalharam por todo omercado financeiro, interno e fora dos EUA,eles deixaram de ser ignorados.

Quanto aos compradores de imóveis, coma elevação das taxas de juros no final de2006, perceberam que o valor presente desuas dívidas era maior que o valor dosimóveis que haviam comprado, decidiramparar de pagar e entregar os imóveis. Essadecisão é correta do ponto de vistaeconômico, mas fatal do ponto de vista domercado. A pressão de venda dos imóveisrecebidos pelas instituições financeirasprovocou uma queda nos preços dessasresidências de 25%, somente em 2007.

Provavelmente já estamos sentindo osefeitos da segunda onda da perda depatrimônio das famílias americanas com adepreciação de seu principal ativo, suaprópria casa. Não se trata, repita-se, de umproblema pequeno. Nos últimos sete anoso valor das hipotecas das famíliasamericanas aumentou 5 trilhões de

dólares – um aumento equivalente aoocorrido nos 50 anos anteriores.

É claro que a decidida redução das taxasde juros pelo Fed permitirá a muitasfamílias refinanciar suas hipotecas a umataxa de juros menor que as que haviamcontratado. Contudo, alguns argumentamque a solução veio tarde, já que o Fedsomente reduziu de forma expressiva astaxas de juros quando o problema já tinha setornado explosivo e ameaçava contaminartodo o mercado. Não ajudou em nada o fatode que, diferentemente de outras crises, ados tomadores de crédito subprime estarespalhados por todos os EUA. Tambémpiorou o problema o fato de que novosinstrumentos financeiros foram criados eutilizados para usar as hipotecas subprimepara alavancar novos empréstimos – nosEUA e no exterior.

O que concluir dos eventos até agora? Aprimeira conclusão é que uma reversão dociclo econômico, do final da fase deexpansão para uma fase de contração,decorrerá dos efeitos negativos dos preçosreais dos ativos (residências e hipotecas) edo impacto da depreciação desses ativossobre a percepção do valor do patrimôniodas famílias, afetando sua liquidez econfiança na economia – como de fato vemocorrendo.

A segunda conclusão é que estamosassistindo a uma forma nova de reversãodo ciclo econômico. No passado,geralmente a reversão do ciclo para umafase de contração se dava pela acumulaçãoexcessiva de estoques de produtos,decorrentes de erros de percepção eplanejamento das empresas no mercado –provocando o mesmo fenômeno apontadoanteriormente, com a redução das margensde lucro e eventual queda nos preços dosprodutos. O que está ocorrendo agora temorigem não na acumulação de estoques debens, mas no estoque de residências e nabrusca e significativa queda nos preços dosimóveis. Como as residências constituem amaior parcela do patrimônio dosamericanos, a contração econômica, emúltima instância, está decorrendo dacorreção do valor dos imóveis.

A terceira conclusão é que provavelmentea mudança do ambiente de regulamentaçãodos mercados financeiros nos EUA tenhacontribuído – junto com a globalizaçãofinanceira, que levou o problema a váriaspartes do mundo, da Austrália à Europa –

Só quando osriscos dessesempréstimos seespalharam portodo o mercadofinanceiro,interno e fora dosEUA, elesdeixaram de serignorados.

Stan

Hon

da/A

FP

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73JANEIRO/FEVEREIRO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

para uma maior atividade financeira dasfamílias e das empresas. Talvez tenha sidoisso que tenha potencializado o que poderiater requerido uma pequena queda de preçospara a correção do desequilíbrio.

Finalmente, não há que deixar dereconhecer o papel central do crédito nosciclos econômicos. No passado, expansõesdo crédito eventualmente produziaminflação de preços de produtos e acabavampor mudar a direção do ciclo econômico, deexpansão para contração. Já havíamos,contudo, observado subidas de preços deativos nos dois últimos ciclos econômicosamericanos. Primeiro, nos preços dos ativosna década de oitenta; depois, nos preços dasações, na década de noventa. Agora, ainflação ocorreu nos preços dos imóveis.

A grande questão é saber o que virá pelafrente. No passado, quando a liquidezestreitava pelo aperto no crédito, os preçosque haviam subido eventualmente eramcorrigidos pela correspondente queda

nesses preços. Como os preços quedesalinharam foram os das residências, amaior parte da correção deverá se dar nessespreços. Contudo, no mercado de imóveis, aoferta de novas unidades é pequena emrelação ao estoque já existente. Trocando emmiúdos, as pessoas terão que aceitar a perdade valor inflado de seus imóveis, para que omercado se ajuste. Isso levará tempo, já queninguém aceita passivamente perdas degrande ordem de magnitude.

Além disso, se o crédito está ficando maisapertado, a liquidez bancária estáaumentando pelos repetidos estímulos,tanto da política monetária, como agora dapolítica fiscal.

Moral de toda a história: ainda vaipassar muita água debaixo da ponte, antesque os mercados se ajustem e tudo volte ànormalidade nos EUA. Greenspan, umeconomista "austríaco" por formação,pode ter errado a data, mas pode vir aacertar no diagnóstico.

No passado,expansões docréditoeventualmenteproduziaminflação depreços deprodutos eacabavam pormudar a direçãodo cicloeconômico, deexpansão paracontração.

Fred GreavesFG/GAC

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De Bali para o mundo...

É difícil avaliaracontecimentoshistóricos antesque o tempo

torne clara a suaimportância ouinsignificância. Estaobservação vale para aConferência realizada emBali no começo dedezembro para discutirações que precisam sertomadas em relação àsmudanças climáticas pelasquais somos responsáveis.

Os 192 países que sãosignatários da Convenção do Climaadotada no Rio de Janeiro em 1992 sereúnem todos os anos, mas se esperavaque a reunião de 2007 em Bali fosseparticularmente importante porque oProtocolo de Kyoto (que resultou daConvenção do Clima e deu "dentes" a ela) temapenas mais 4 anos de validade. Em 1997, em Kyoto,os signatários da Convenção do Clima decidiram que ospaíses industrializados cortariam suas emissões em 5,2%(abaixo do nível de 1990) até o ano 2012. Os países emdesenvolvimento foram isentos de fazer reduções, sob oargumento de que fazê-lo prejudicaria suas possibilidadesde crescimento econômico e desenvolvimento.

Com o Protocolo de Kyoto foi criado o Mecanismo deDesenvolvimento Limpo, que permite que paísesindustrializados (países ricos) contabilizem reduções empaíses em desenvolvimento (países pobres), no lugar defazê-lo dentro do próprio país. A lógica desteprocedimento é a seguinte:

1) Custa mais caro reduzir emissões nos países ricos doque nos países pobres; é portanto mais interessante fazerreduções nestes países do ponto de vista econômico.

2) Se a redução for feita num país pobre, vai levarrecursos e também tecnologia do país rico a ele,contribuindo para o desenvolvimento sustentável.

Se o MDL fosse baseado apenas no primeiro item, elenão teria sido adotado, porque muitas organizações nãogovernamentais se opuseram ao uso de um argumento delógica econômica para reduzir as emissões. Foi lembrado

que seria até imoralfazer reduções nos países pobres,porque isto livraria os países ricos de fazerem o que erasua obrigação de reduzir suas emissões. Em outraspalavras, que o MDL não seria mais do que um "zero-sumgame", em que os países pobres reduziriam emissões paraque os países ricos continuassem a emitir.

Foi por esta razão que o MDL foi cercado por váriasrestrições, para garantir que não fosse apenas um métodode aliviar as responsabilidades dos países industriais.Uma delas é a de que o MDL não pode ser o únicoinstrumento usado pelos países ricos e de que as reduçõesde emissões fossem adicionais às que ocorreriam naausência da atividade envolvida.

Energia Nuclear foi excluída por não se enquadrar comodesenvolvimento sustentável, bem como redução dodesmatamento (desmatamento "evitado"), por razõespouco claras sobretudo de natureza técnica, porquequantificar a redução das emissões, bem como garantirque sejam permanentes, não é trivial. Reflorestamento foi

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aceito, mas asexigências feitas sobre

este projeto fizeram com quepoucos projetos prosperassem.

Ao longo dos anos, desde 1997, o MDL sefirmou, mas os projetos são todos pequenos e a burocraciacriada em torno deles tornou-se muito grande.

Uma análise da situação atual do MDL mostra queforam aprovados e estão em execução cerca de 2.300projetos: 30% na China, 29% Índia e 10% no Brasil. Aquantidade total de emissões que será evitada até 2012 éde 800 milhões de toneladas de CO2 (ou 126 milhões detoneladas de carbono anuais), o que não é muito,considerando que são emitidas por ano mais de 6 bilhõesde toneladas de carbono.

Na Conferência do clima em Montréal, há 3 anos,decidiu-se incluir projetos estruturais maiores, quereduzissem as emissões, como sistemas de transportecoletivo, mas poucos deles se materializaram. O"desmatamento evitado" foi discutido, mas osrepresentantes brasileiros se opuseram a incluí-lo noMDL, usando o argumento das ONG´s em Kyoto, de queisto permitiria que os países ricos continuassem a emitir.

Com essa " bagagem" deproblemas não resolvidos, o que seesperava é que Bali desse novoalento às negociações para resolver oproblema e - que é fundamental -atrair os Estados Unidos a aceitar o

Protocolo de Kyoto ou algoequivalente, bem como fazer com que

os países em desenvolvimentoaceitassem também reduções em suas

emissões (ou reduzissem odesmatamento, que contribui cerca de 20%

para as emissões globais).Os Estados Unidos se recusaram a aderir ao

Protocolo de Kyoto e não aceitaram reduçõesmandatórias, argumentando que isto arruinaria

sua economia, o que a China usou como argumentopara também não fazê-lo, apesar de ter se tornado o

maior emissor mundial em 2007. Na visão da China,aceitar reduções mandatórias prejudicaria seu

desenvolvimento.Ambos estão errados e as decisões deste tipo refletem no

fundo os interesses das empresas de petróleo, carvão e gás,cujos produtos – os combustíveis fósseis – são osprincipais responsáveis pelo aquecimento global. Aliás, omesmo argumento foi usado nos Estados Unidos emmeados da década de 70, quando foi adotada naquele paísa " Lei do ar limpo", destinada a reduzir a poluição localregional (que é ainda hoje o grande problema ambiental daregião metropolitana de São Paulo). O argumento é o deque reduzir a poluição custaria muito caro e desviariarecursos que poderiam ser usados para aumentar aprodução. A verdade é que o povo americano nãosuportava mais a poluição urbana, que prejudica a saúde,e que valia a pena pagar o preço. Na prática, o que ocorreué que as indústrias aprenderam rapidamente como evitar apoluição a custo muito mais baixo do que se pensava euma nova indústria surgiu, que é a dos equipamentos decombate à poluição.

Não há a menor dúvida que os Estados Unidospoderiam repetir esta "performance" com a poluiçãoglobal, isto é, as emissões de gases de "efeito estufa", comoaliás os europeus estão fazendo sem prejudicar seucrescimento econômico.

Da mesma forma, a China (e os outros países emdesenvolvimento) poderia continuar crescendo

nada, por enquantoALF

ER

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76 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2008

economicamente se utilizasse tecnologiasmais modernas e menos poluentes,renunciando às tecnologias velhas epoluentes que os países industrializadosexportam para eles . Exemplo gritantedeste fato é mencionar que as usinastermoelétricas do Japão, que usam carvão,têm uma eficiência média de 40%,enquanto as da China apenas 30%.

Outro exemplo de sucesso é verificar arapidez com que telefones celulares seespalharam pelo mundo todo, tornandoobsoleta a telefonia fixa, que exige muito maisinfra-estrutura que a telefonia móvel .

Tendo em vista estes fatos, esperava-seque em Bali se chegasse a um acordo quepermitisse estender o Protocolo de Kyotoalém de 2012 e que todos os países(inclusive os Estados Unidos) aceitassemlimitações obrigatórias em suas emissões eum calendário para cumpri-las.

O que ocorreu foi um acordo costuradona última hora, para evitar o fracassocompleto da Conferência, que estabeleceuque um novo esforço – e provavelmente umnovo Protocolo – seja adotado em tempo desubstituir o Protocolo de Kyoto em 2012que inclua:

- Compromissos ou ações "mensuráveis,reportáveis e verificáveis" de reduzir asemissões por todos os países

industrializados (incluindo os EstadosUnidos);

- Ações "apropriadas", definidasvoluntariamente pelos países emdesenvolvimento, para reduzir as emissõesde uma forma "mensurável, reportável everificável", suportadas por tecnologia efinanciamento.

Distingue-se algum progresso nestasresoluções em relação ao conceito antigo de"responsabilidades comuns, masdiferenciadas," entre paísesindustrializados e em desenvolvimento,que tem sido usado e abusado parajustificar a inação dos países emdesenvolvimento do qual o Brasil é um dosmais ferrenhos advogados, apesar delebeneficiar prioritariamente não o Brasil,mas a China.

Finalmente, em Bali, decidiu-se iniciarnegociações sérias para reduzir as emissõesdo desmatamento e degradação dasflorestas, incluindo "políticas e incentivosfinanceiros" também, para a conservaçãodas florestas ("desmatamento evitado"). Foifixado um calendário para as negociações,que possa ser apreciado pelos paísesmembros da Convenção do Clima em 2009.

Não é muito, mas é melhor do que umfracasso completo em Bali, que só foievitado por milagre.

JoséGoldembergProfessor daUniversidadede São Paulo

Paulo Pampolin/Hype

A quantidade totalde emissões queserá evitada até

2012 é de 800milhões de

toneladas de CO2,ou 126 milhões de

toneladas decarbono anuais, o

que não é muito,considerando que

são emitidas porano mais de 6

bilhões detoneladas de

carbono.

Jim Young/Reuters

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