didier weill alain lacan e a clinica psicanalitica
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LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
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Alain Didier-Weill
LACAN E A
CLÍNICA PSICANALÍTICA
Estabelecimento do texto e tradução
Luciano Elia
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Copyright © 1998. Alain Oidier-Weill
Estabelecimento elo texto e tradução
LstciaMO Elia
Projeto gráfico e preparação
C o n l r ~ C11pa
ISBN85-860 l l - l l -8
1998
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
Rua Barata Ribeiro, 70 - Loja 208
22040-000- Rio de Janeiro - RJ
Tcl (55 2I) 236-1999
r:ax (55 21) 256-0526
SUMÁRIO
Lacm e a clínica psicanalítica
a escansão
Il
a pulsão invocante
41
opasse
65
lnsistuição: proposta de um
procedimento de passe tran.sinstitucional
81
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LACAN E A
CLÍNICA PSICANALÍTICA
Seminário em três lições
organizado pelo Corpo Freudiano
Pesquisa e Transmissão da Psicanálise,
realizado no
Auditório do Rio Datacentro,
Pon tifk ia Universidade Católica
do Rio d.e Janeiro nos dias
I, 2 de dezfmbro de 1995.
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AEscANsÃo
Agradeço a Marco Antonio Coutinho Jorge
po r me ter apresentado de modo tão generoso, e
esta tarde tentarei lhes trazer alguns elementos
para pensar uma questão que herdamos de Lacan,
a questão da escansão.
O que há de mais originário no sujeito é o
fato de que ele é o resultado de um pacto que se
produziu num tempo pré-histórico, no qual hou-
ve um encontro. uma interseção entre o real e o
simbólico. Lacan diz que, nesse momento, o real
padece do significante. Neste pacto, que precede
o recalcamento originário. no qual o imaginário
ainda não intervém, o que se produz é um encon
tro entre este real humano totalmente enigmáti
co, ou seja, es te corpo que chega ao mundo numa
materialidade que pesa, que se assemelha a uma
folha de papel branca, a uma ardósia mágica, eaquilo que sobre ela vem inscrever-se, a ordem do
significante. Af se produz um encontro entre "há"
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ALAJ:-1 DIDIER-WEILL
(simbólico) e "não há" ( real). Com este pacto se
delineia uma espécie de dimensão de promessa,
promessa de algo que ainda não se pode saber:promessa de um devir. Mas este pacto será um dia
rompido, e esta ruptura é o que, desde Freud, cha.mamos o trauma. Pode-se dizer que o trauma é :a
aparição violenta desta significação: "Não há
significante".
É na med ida em que o pré-sujei to - pois
ainda não estamos no nível do sujeito mas do présujei to - tem de integrar a significação do "não
ihá" que, no trauma. ele descobre como uma espé
cie de revelação às avessas: "Fui enganado". En
quanto o pa cto originário s ignifi cava: "Há
significante", o trauma lhe diz: "Você ac reditava
que havia significante, mas não há, o significante
não está lá".Ch egamos assim ao pon to sem dúvida mais
enigmático da psicanálise, aquele em torno do qual
me deterei hoje, qual seja. a maneira pela qual será
dada uma respos ta a esta ruptura de pacto . A res
pos ta será dada pela substituição do pacto origi
nário por um segundo.pacto que leva em conta o
"'há''to
"não há". E a integração desta contradição("há" e '' não há") será o nó desse processo enig
mático que nomeamos recalq ue originário. Lacan
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LACAN E A CLÍNI CA PSICANA ÚTI CA
funda a instituição do recalque originário na
nodulação das três consistências R. S. I. naquilo
que denomino segundo pacto. Tentarei falar domodo pelo qual essas três coisas se nodulam.
Na resultante da operação de nodulação
emergirá o que chamamos de sujeito. Um sujeitoque receberá imagem, palavra e corpo. Esse corpoque surgirá na cena do mundo é um corpo que a
psicanálise deve poder situar po r relação à tradi
ção. A concepção da nossa tradição é a dos doiscorpos, o corpo material e o corpo imaterial; o
corpo feito de matéria, destinado a retornar à terra, como cadáver, e o corpo espiritual que, segun
do as crenças, pode sobreviver sob o nome de alma.
Esta teoria dos dois corpos é a base mesma deuma concepção do poder no O c d e ~ t e : a concep
ção dos dois corpos do rei 1• Quando o corpo pe
recível do rei morre, sobrevive o corpo imaterial
I. N. do E. Sobre es te ponto, ver KANTOROWlCZ,Ernsc H . Os dois corpos do râ: um estudo sobre te{)logia polítita
medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Pau lo, Companh ia das Letras, 1998, e, dentre suas referências, particularmente SHAKESPEARE. William. "Ricardo li". Em:
Obra compltta, vo l. In : dramas históricos. Trad. F. Carlosde A ~ i d a Cu nha Medeiros e Oscar Mendes. Rio de
J;meiro, Nova Aguilar, I 995. p. 75-13 8.
I 3
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ALAIN OlDIER-WEll..L
que vai encarnar-se em seu sucessor, de maneira
que haja continuidade de poder.
Nós, psicanalistas, no entanto, lidamos com
um terceiro tipo de corpo, que é um misto, umcomposto que surgirá, e ao nível do qual perde-se
toda e qualguer noção de pureza originária. Podemos supor que este composto misto no qual a
inocência se perde pode suscitar fantasias de retorno à pureza, que não são estranhas a cercos
movimenws totalitários, nostálgicos de uma pu
reza originária que seria possível reencontrar.
Se o corpo é um misto, é que os diferentes
parâmetros que constituem esse corpo estão emvizinhansa, uns com os outros, segundo um tipo
de fronteira sobre a qual devemos refletir, pois ou
bem essa fronteira é impermeável, ou é permeável,
porosa. O que se passa, por exemplo, quando essafronteira entre o real, o simbólico e o imagináriocessa de ser impermeável? O real do corpo eman
cipa-se e começa a corromper o limite imaginárioe a informação que este limite recebia do simbóli
co, de tal modo que começa a surgir algo de mons
truoso: mostração da mixagem de todo monstro
que mostra a indeterminação dos limites. A forma humana esfacela-se bruscamente e é invadidapor esse real monstruoso que faz do homem umlobisomem; de um humano, um inumamo.
L\CAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
Muitas pessoas têm um prazer particularmente intenso em ver filmes de terror, nos quais
os monstros são postos em cena. O que é que sequer ver? Que interesse pela aparição da monstruo
sidade é esse? Quando assistimos a uma tal metamorfose que faz com que se esfacelem os limites
hum.mos, e que o imundo se apodere do mundohumano, o que é impressionante não é a transfor
mação final. na qual partimos de um homem e
chegamos a um lobisomem. O que é particularmente impressionante, no testemunho dos pró
prios espectadores que declaram seu interesse nessetipo de cena, é o instante de indecisão, de luta
interior, na qual a forma humana resiste durante
um certo tempo à invasão da forma bestial, até o
ponto em que ela não pode mais resistir, é pro
gressivamence invadida e desaparece. Quando en
tão aparece o lobo definit ivo e estável, a angúst iaacaba, pois temos acesso a um limite estável que
nos retransmite nossa estabilidade. Este exemploda monstruosidade- eu o menciono porque ele
não é sem relação com a clínica psicanalítica, que nosensina que existem transformações monstruosas do
corpo assim como essas no imaginário humano -
coloca-nos a seguinte questão: o que faz com quea fronteira entre o real e o simbólico seja impermeável e o que faz com que ela possa não sê-lo?
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ALA!N OJOIU-WEILL
A partir desse preâmbulo, entro no cerne do
tema: como podemos representar para nós mes
mos o estabelecimento dessas fronteiras estáveisou instáveis? Abordo por esse viés o tempo origi
nário, mítico - pois ninguém nunca pôde
observá-lo diretamente, dele só falamos por sua
ausência, quando de não se produz na psicose, em
particu l a r - esse tempo fundador no qual a l g ~ ma coisa no recalque originário se nodula. Efetivamente, uma das formas de pensar a psicose ou
pelo menos cercas psicoses é aquilo que ímpede
esse tempo de nodulação originária.
Como pensar, então, esta operação na qual o
su jeito esboroado pela experiência traumática faz
a experiência de que o corpo da mãe é furado?Geralmente isso ocorre através da visão: a maio
r ia das observações nos introduzem no fato de
que é pela visão qu e esse furo simbólico no real é
apreendido. Como o sujeito, diante dessa catás
trofe que ele vivencia como.uma traição, desaba?
Em sua ex periência inaugural com o Homem dos
Lobos, Freud nos diz que o menino que testemu
nhara a cena primária faz cocô, produ z uma matéria fecal: ele se torna puro objeto diante dessa si
tuação traumática, ele cai. Eis o que chamamos aqueda humana. Corno, a parti r dessa queda, o hu
mano vai se levantar, reencontrar a postura erera
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LACAN E A CL1NICA PSICANALÍTICA
própria à espécie humana, a força que o fará colo
car-se novamente de pé?
Nesse ponto, a seguinte operação encontralugar: o sujeito vai poder substituir esse furo sim- •
bólico no real por um furo real no simbólico. N oponto em que havia um furo no fora, ele institui-
rá nele mesmo um furo. Corno será possível que osujeito faça o luto de uma parte de si para insti
tuir, em si, um tal furo? Vejam CJUe aqui a psicaná
lise não corrobora a concepção religiosa CJUe nosdiz que hf uma criação n i h í l o , a partir do nada.
A psicanálise dirige .sua atenção para uma coisainteiramente diferente, ela se volta para o fato degue, a partir do significante, o sujeito possa criar o
nada. Pois é a partir do momento em que cria em si
mesmo o nada que o sujeito t omará seu prumo.
Prossigo at ravés de aproximações parciais dadificuldade da questão. Nessa operação, o sujei
to substitui o mau- olhado2 pelo a l - e t : ~ t e n d i d oBasta que haja um furo para que apareça um olhar.
2. N. doTA expresSÃo utilizada no original émal-vu,ao
pé da letra mal-visto, 9uc traduzimos por mau-olhado por
quanto, em português, esta é uma expressão de uso cor
reme que inclui liceralmence a dimensão do olhar. Porsua vez, a expressão mal-mtmclu pode ser traduzida também por mal-ouvido, sentido que, no limite, é admissível.
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tALAIN DIDIER-WEJLl
Mostrem a uma criancinha uma folha branca na
qual tenham feito dois furos, imediatamente ela
vai gritar ou chorar, pois a dimensão do olhar secoloca em perspectiva. Em francês a palavra regard
[olhar] consoa com o furo de uma clarabóia [lucarne].
Este furo fala de um olhar. Fala-se também na língua francesa do olhar de uma falha geológica, um
furo no solo é um olhar. Portanto, a língua nos
ensina esse parentesco entre o surgimento do olhar
e .uma fratura no real. da qual de nasce.
Diria que o primeiro efeit o do recalcamento
originário é substituir esse mau-olhado por algu
ma co isa que é da ordem do mal-entendido: a parti r de um primeiro momento em que se encontra
na exterioridade, no real. esse fu ro vem tornar-seum fu ro no simbólico. Algo se insti tui, sofre um
duplo movimento: nu m primeiro tempo. o sujeito é ;miquilado pelo trauma e num segundo tem
po, após essa aniquilação em que o Logos perdeu
todos os seus direitos , est e há, que havia sido anu
lado, vol ta a se fazer ouvir por força de urna insis
tência própria ao simbólico e ao significante do
Nome-d o-Pai.
A saída do trauma se dá quando o sujeito
integra duas mensagens contradi tórias: a perma
nência do não báe a insistência do Nome-do-Pai quelhe diz, de maneira siderance: "Há sim, embora o
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LACAN E A CÚ NICA PSICANAÚTJCA
Lagos possa perder seus direitos, o simbólico pode
insistir e te dizer: há".O infans recebe assim duas
mensagens absolutamente contraditórias. Comoele poderá lida r com essa coexistência imposs ível?
Através da invenção mais originária da metáfora,
pela qua l se produz uma espécie de copulação entre há e não bá.
Poderíamos co locar isso sob a forma de uma
fração há/não há, dizendo há "sobre" não bá.Surge
então uma nova significação, s i g n i f i c a ~ ã me tafórica que substitui o dualismo ou há ou não há
por uma significação terceira propriamente in audita, que é, quando ela tem êxito, a significação da
metáfora paterna . Esta nova significação sincrônica
é absolutamente incompreensível para nossa experiência racional. po r ser significativa da ausência no seio da presença.
Não seria a sucessão diacrônica que o há e não
há nos fa:L ouvir pelo ritmo da música? Quando ou
vimos música, seu riemo nos diz alternadamente há enão bá. Há é o instante em que soa o som; não bá, ointervalo vazio entre dois sons. Mas no momento do
não há existe como que uma p romessa: o som
retornará.
No segundo versículo do Ginesis encontramos a criação das trevas e no terceiro, a cr iação da
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A L A ! ~ DIDIER-WEILL
luz. Na opinião de todos os comentadores, a luz
não é a luz visível: t rata-se do verbo. A luz visível
aparece no décimo segundo ou décimo terceiroversículo, ela é a luz das luminárias e se opõe à luz
originária: o verbo. As trevas or iginárias são a au
sência do verbo: a origem do mal. Ora, aprende
mos no versículo seguinte que luzes e trevas são
posteriormente separadas pelo Criador. São sepa
radas (quinto versículo), e o Criador as nomeia
dia e noite. O fato de que sejam separadas nos
adverte de que, na origem, luz e trevas não eram
separadas, quer dizer, a luz era em suma uma pre-
sença que coexistia com as trevas, como se fosse
uma luz tenebrosa.
Essas considerações visam a lhes dar uma
idéia desta operação metafórica peb qual ocorre
que o significante originário faça o há e o não há
nodularem-se. Este significante, Lacan o escreve
no quadro negro: A maiúsculo com uma barra di-
ante do qual ele escreve S maiúsculo. Há um
significante da ausência de significante no Outro:
S de A barrado, S(j.) .Antes de prosseguir, gostaria de lhes fazer
obserVar que no trauma, se a metáfora paterna não
opera, o sujeito permanece com uma concepção
dualista do há e do não há. Em vez desses dois
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LACAN E A C L Í ~ I C A PSICANALITICA
termos copularem, ficam separados e, se vocês ad
mitirem imaginá-lo, esta é a origem do pensamento
gnóstico. O que é o pensamento gnóstico? É aqueleque contesta o monoteísmo, pois considera que
não é possível que o Mal e o Bem, ou seja, o não há
e o há, estejam assujeicados a uma mesma divinda
de. não sendo possível que do Um advenha uma
tal antinomia. Assim, os gnósticos supõem a exis
tência de duas divindades. Uma na origem do Mal.
do faca de que o mundo seja assim tão desgraça
do, outra, um Deus do Bem, um Deus que quer o
Bem, mas que é absolutamente ineficaz por<luan
to não pode lutar contra o Mal. Tudo se passa
como se a Lei dada pelo bom Deus fosse ineficaz,
inoperante para lutar contra o poder do Deus
maligno. E os gnósticos nos interessam porque,
na doutrina de São Paulo, fundadora do cristia
nismo, há uma marca gnóstica. Na recusa de São
Paulo pela Lei, ele diz: ' 'Não é possível que a Lei
destinada a salvar o homem nada mais possa
por ele depois do pecado original. ela se tornou
caduca, ela não pode mais operar, e é por isso
que Jesus veio, para restaurar o que o homem
não pode mais fazer, com seu livre arbítrio, graças
à Lei".
Retorno, após esses parênteses, à outra so-
lução possível ao ser humano: o êxito da metáfora
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AlAIN OIDlER-WEill
paterna. Pela produção desse significante S (f ), o
sujeito integrará uma nova significação: há e não
há serão nodulados entre si segundo um processoque Freud estabeleceu em A Dmegarão (1925) ao
abordar o mecanismo do sim e do não: o sim da
Bejahwtg (afirmação) absoluta e o não daAusstossung
(expulsão) . Nesse texto, Freud põe em jogo dois
pares de sim c de não, um dos quais funciona
segundo o princípio de prazer e o eu: o par
lntroji<jmn/Wtrjm
1•
lntrojiz.jtrtn é o eu que diz sim,e Wtiftn é o eu que diz não. É uma concepção
dualista própria ao funcionamento do eu, que
obedece ao princípio do bom de dentro/mau de
fora. O eu fundamentalmente é dualista.
O que se opõe ao eu e o princípio de prazer
é o além do princípio de prazer e o sujeito do
inconsciente, que enuncia um sim e um não de
ordem inteiramente diferente: o sim da Bejabung e
o não da Ausstossung não são dualistas, pois estão
J. N. do T. Esses dois termos em alemão, utiliza
dos pelo autor em sua exposição, enconcram-se no texto
Dit Vtrntinung (A Dmegação) de Freud [Stuàienausgabe,
Funkfurt am Main, S. Fischer Verlag, 1989, p. 374 ) ,
Edirão Standard Brasileira das 0/mu &icológicas Complettfs de
Sigm1md Frwd, vol. XIX. Rio de Janeiro, Imago Editora,
1976, p. 297.
22
LACAN E A CLÍNICA PSICANALlTICA
como que de acordo um com o outro. Isto signi
fica que o sujeito integra a contradição que há em
S(f). qual seja: bá (S) e não há (f ) . segundo oduplo processo sim t não ao mesmo tempo. Trata
se de um sim e um não que não são separados. Éporque há um sim e não que esse não não é a
foraclusão. Com efeito, uma das maneiras de de
finir, na minha opinião, o que é a foraclusão, é de
que se t rata de um não absoluto que não se faz
acompanhar de nenhum sim.
Retorno assim a esta idéia de que o trouma4 é
da ordem do mau-olhado. Quando o sujeito n c e ~gra o S (/+..) (Bejahung), diria que há um tempo de
sideração no qual ele integra o significante sem
contudo compreendê-lo; é isso a s ideração , o que
substitui o mau-olhado pelo mal-entendido. O
fato de que haja um mal-entendido é algo que se
aproxima do chiste. O pr imeiro tempo em que
somos tocados pelo chisce é um rempo de
sideração, tempo em que somos tocados pelo
4. N. do T. Trou, em francês, significa J••l-o, o que
permite o jogo de palavras encontrávd entre troumatismt
e traumatismt . Em português esse jogo seria impossível,
já que o neologismo .forauma (ou .for'alma ) não guarda a
mesma homofonia com traum11, razão pela qual adotamos
a forma híbrida trouma.
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ALAIN DIDIER.-WElLL
significante, nada compreendemos, permanecemos
em espera para compreender. e compreen deremos
no tempo poster ior em que aparece a luz, o ri r.Há portanto um tempo enigmático, um tempo delatência. antes do tempo do bem-entendido, um
temp o de espanto, de sideração, no qual há o mal
entendido. E o mal -entendido é melhor do que o
mau-olhado. Esc:e mal-entendido é promessa deatingir um bem-entendido, e p romessa que não é
uma vez que o espírito da metáfora pode efetivamente prod1,1zir-se.
Examino agora como esse sim e esse não inconscientes funcionarão. E retorno à idéia colocada pela questão da nodulação. Observávamos que
havia substitu ição de um furo real no simbólico
por um furo simbólico no real. Há pois uma primeira interseção en tre o real e o sim bólico. Quan-
. do o corpo entrar em cena, o que ocorrerá é que o
real pdo qual esse corpo vem à cena poderá serencadeado po r dois lados ; de um lado, ele será
encadeado pelo simbólico, e- de ou tro, pelo imagi
nário. É esta c.adeia que fará com que esse corpose sustente.
Como ler então este encadeamento? Embora
não se trate de tempo cronológico, é preciso começar por algum ponto, então direi, como hipótese,
24
LACAN E A CtiNJCA PS1CANAÚTlCA
que, num primeiro tempo, o imaginário faz barra
sobre o real (1/R ). O que se passa quando o ima
ginário se impõe sobre o real? O que se passa éque o real, em seu caráter proliferante, do qual eu
falei anteriormente quando evoquei a prolifera
ção do real na mons truosidade que nos espreita
todo o tempo - o .câncer, por exemplo, é a pro life-
ração do real que cessa de ser encadeada e que se
desencade ia -. é detido por um limite trazido por L
Concebo , portanto, o imaginário como umlimite dado à proliferação do real, ao poder
proliferante do real. dando-lhe um freio, conferindo- lhe limites espaciais que se tornarão atémesmo visíveis. O real encontra assim um limite
a seu apetite de ilimitado e de proli feração. Há
aqui, portanto, uma primeira interseção, do real
com o imaginário
A interseção do rea l com o simbólico (RIS)
se faz segundo a ascendência que o real t em sobre
o simbólico. Pelo fato desta conexão entre o real eo simbólico, diria que o real recebe do simbólico
um t ipo de informação diferente daquela que lhe
vem do imaginário: o real recebe, através de uma
conexão real-simbólico, a informação do aparecimento de um significante do real, ou um real dosignificante, que é o que denominamos osignificante
2 S
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AU.IN OIDIER.WEILL
fálico. O significante, o falo, é isso: o surgimento
desta significação estranha, esta conexão entre es
tas duas ordens que parecem tão diferentes, o reale o simbólico.
E em decorrência disso, o corpo recebe uma
significação fálica. Ele cessa de ser um corpo de
pura materialidade, portador do futuro cadáver,
na medida em que adquire a significação do que
a m a m o s a ca rne.A carne é o que significa que o
corpo é erotizado.
Enfim, uma terceira conexão se produz, aque
la pela qual o simbólico e o imaginário se articu
lam: o simbólico, fazendo barra sobre o imaginá
rio (S/1) , cria um furo no imaginário. Pode-se dizer
que é o segundo mandamento de Moisés, ou seja,
que, para além da imagem, há um in maginável, uma
proemi'nência do simbólico. ·
Essas três interseções que tracei de modo
panorâmico formam um furo cuja t i m ~ i r a apari
ção no ensino de Lacan se dá em O Semimzrio, livro
1: os escritos tlcnicos de Fmcà (I 95 -4) e O Seminário,
livro 2: o eu na teoria de FreuJ e na técnicA da psicanálise
(1954-5) 5, quando ele estabelece um esquema
5. N. do T. Ver , respectivamente, ''A tópica do ima
ginário", O Stmindrio, liwo 1, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
26
LACAN E A CLINICA PSICANALÍTICA
ótico e desenha es te vaso que representa o eu
inconsciente, i (a) , que tem um gargalo. É graças
ao vaso e ao gargalo que o objeto, a flor, poderáaparecer, poi s Lacan fazia observar que o menino
psicótico que era o pequeno Dick - vim a saber
que era o próprio filho de Mdaníe Klein - , que
não via as flores pois o mundo lhe era opaco e
insignificante, põe-se a ver o mundo. As flores
começam a aparecer quando se encontram no gar
galo do vaso. Vejo esse gargalo, esse furo, como a
origem do furo borromeano, onde vocês vêem que
convergem o imaginário que é o vaso, a flor que é
o real e o furo simbólico do gargalo, que desenha
o furo no qual real. imaginário e simbólico e n ~ oos três em conexão.
Tentarei agora aprofundar um pouco o que
coloquei em jogo. Imagino que nesse tempo do
recalque originário em que o sujeito vai aceder a
si mesmo perdendo uma parte de si, fazendo o
luto de uma parte de si, o que ocorre evoca o que
se passa sobre um al tar sacrificial, no qual todos
os sacrifícios humanos têm em comum o fato de
que aq uele que se submete ao sacrifício perde
Editor, 1979. p. 89-ss., e "Os esquemas freudianos doaparelho psíquico", O Stmimírio, livro 1. ; Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1985. p. l l3 -ss.
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ALAJN DID lE R.Wii l l l
alguma coisa, e é nessa medida que ele recebe em
retorno algo. Eu diria que aí se passa uma situa
ção comparável ao faco de que o sujeito, pelo processo da Ausstossung, diz não, e perde ao dizer sim
a esta perda. Nã o se trata de uma foraclusão, ra
zão pela qual o sujeito diz sim a esta perda; ele
perde alguma coisa, perde o que chamamos o falo:
t rata-se da castração originária.
O que é perdido retornará de duas formas
totalmente diversas segundo o sujeito se ja homemou mulher. Se ele é homem, o falo lhe retornará
nu ma relação na qual ele tem o falo, e de encon
trará, no objeto feminino, a causa daquilo que fará
ereção nesse falo; se esse sujeito é mulher, o falo
não é perdido simbolicamente mas realmente, e
r n : ~ d por intermédio de um objeto mas
de um S ,. Assim, poderíamos dizer que o falo per
tence mais à mulher do que ao homem, já que é
preciso uma mulher para que um homem aprenda
que ele tem um falo, dando -o a ela.
O ponto que considero mais difícil de com
preender é aquele que mostra que é perdendo esta
coisa qu e chamamos de falo qu e, em retorno, o
sujeito recebe a Lei sob duas acepções: ele a rece
be sob a forma da palavra, o que a tradição chama
de lei oral. e ele a recebe sob a forma do interdito ,
28
LACAN E A CLÍNICA J>STCANALITICA
de um dizer que é interdizer6, o que a tradição
chama a lei escrita.
Em minha concepção, as coisas se passam daseguinte forma: o pai intervém nesse ponto, pois
toda essa operação metafórica não se efetiva a
menos que, em decorrência da relação entre o pai
e a mãe, a mãe consinta em fazer o dom do btipelo
pai e, mais do que consentir em fazê-lo, ela faça
apelo a isso. Uma mãe pode, em relação à doação
do há, agir de três maneiras: ou bem ela diz sim,ou bem ela pode dize r não segundo o modo do
recalque, ou bem ela pode dizer não segundo o
modo da foraclusão. São os três destinos pelos
quais se transmite ou não o significante do Nome
do-Pai. E, na medida em que se transmite assim a
Lei, o ponto em que estamos autoriza-nos a dizer
6. N. do T. O termo utili:udo no original é intmlin ,
cuja tradução em português mais exata, em sentido
denotativo, seria intmlitar (proibir) e não n t t r J í ~ . como
traduzimos, pela razão de que o autor joga com um sen
tido de interdição bastante central no ensino de Lac.m,
sobretudo em seus últimos seminários, particularmente
a partir do Livro 20: mais, ainda (I 975) e para o qual a
categoria do; ~ , .
é de gnnde importância, como aliás severi fica em utilizações posceriores desse mesmo termo
ao longo da presente exposição.
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AI.AIN DIDIER.-WEJLL
que o sujeito recebe, em troca do que perdeu, três
coisas que o fazem humano: ele recebe um corpo
- pois é preciso compreender que o corpo quetemos é um dom, não é absolutamente natural.
não é um corpo de um animal que nos éconsubstanciai, ele deve advir, e ele advém exata
mente porque é um dom; ele recebe uma imagem,o do m de uma imagem, e ele recebe o dom da pa
lavra. E esses três dons não se fazem sem seremnomeados, o que faz aparecer o que Lacan deno
mina a função do pai nomeante, ou seja, a funçãode nomeação. Retomo então as categorias R. S e Ipara mostrar-lhes como se pode fazê-las funcionar.
RSI . portanto: R te m barra sobre o simbólico,
S te m barra sobre o imaginário e I, sobre o real.Épor esta razão que não se era ta de um n6 olímpico, mas de um nó bo rromeano: se cortamos
um anel , os crês se desfazem. No nó olímpico,se cortamos um anel, só esse anel cortado se des
faz.
A separação exprime a ascendência que o real
tem sobre o simbólico. Isto significa que o sim
bólico não diz tudo, nele há um furo. Éo umbigo
do sonho de que fala Freud, e este furo, que se
situa além do dizív.el, coloca em perspectiva a di
mensão do inaudito. O inaudito, podemos dizer
30
LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
que ele é radicalmente barrado, eliminado , cassa
do pelo discurso dogmático que diz o que diz e
não evoca nada diferente do que diz O discursopoético, ao contrário, é o di scurso que tem o po
der de transportar-nos para além do sentido e delevar ao entendimento.
Assim, eu diria que é na interseção real-sim
bólico que o do m do inaudito faz o dom da pala
vra e onde aparecem as primeiras nomeações, o
que essas duas palavras fundamentais nomeiam:fala ou silêncio.
O furo no imaginário é o dom do inimaginável,
o dom do invisível, é o que faz com que sobre o
corpo algo não seja e s p e c u l a ~ o que é colocado emjogo pelo recalque originário: o corpo não aparece
senão e l a d o pelo tapa-sexo. O tapa-sexo é o quetestemunha, ensina-nos que alguma coisa não sevê, é invisível. O falo, neste n íve l, é invisível. De
vemos fazer uma distinção entre a roupa de baixo
que é o tapa-sexo e a roupa. pois a função da rou
pa é velar a roupa de baixo. A roupa é da ordem doI sobre R (I/R), ou seja, o real do corpo é revestido
pela roupa. e é essa roupa que dá sua consistência aocorpo e é por ela que se produz o dom do corpo.
E voeês vêem que a reflexão sobre as três in terseções do nó borromea:no já nos dá uma indi-
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AWN DIDIER-WEILL
cação sobre as três orientações pelas quais o ho
mem pode se guiar na criação, pois a ascendência
de R sobre S, que ind ica a di mensão do inaudito,é o que o artista, como músico, nos fará ouvir: o
qu e é que nos faz ouvir a música senão o inaudi
to? A ascendência de S sobre I, que produz o invi
sível , é o que o pintor nos fará ver. A ascendência
de I sobre R, at ravés da qual o corpo se to rna leve,
subtraído de seu puro peso material. produzindoa imaterialidade possível do corpo, é o que o dan
çarino, que po de esvoaçar por sobre a gravidadeterrestre, livrar-se dela, nos mostrará.
Temos, portanto, três nomeações e três se
parações. Não estou ainda no nível da escansão
mas pouco a pouco dela me aproximo. Concebo ointerdito como a capacidade de operar, de criardistinções através da no meação. O interdito ori
ginário pode ser compreendido como a capacidadede apreensão do significante sobre o real, estabe
lecendo distinções separadoras que impedem a
confusão caótica. Por exemplo, ainda há pouco
quando lhes falava de luze trevas, eu lhes fiz observa r que luz e trevas encontravam-se indistintas,
que a luz, como o trauma, não estava distinta das
trevas. Situo no qu into versículo a aparição dopai nomeador que, nomeando, dist ingue, substi
tui luz e revas po r dia e noite.
32
1-'.CAN E A CLfNICA PSICANALíTICA
Contudo, através da nomeação, ocorre tam
bém um empobrecimento, pois o dia não resti tu i
toda a luz. O dia é uma apreensão da luz que, emfunção do limite da nomeação, estanca também o
que há d.e ilimitado na luz, ou seja, a nomeação é
um avanço no sentido do in terdito e das distinções, mas é também um empobrecimento, e eu d ire i
que é contra este empobrecimento que luta o artista, poi s o artista é aquele que nos rest itui a d imensão do ilimitado da luz do verbo originário,
que foi empobrecido pela nomeação dia .
O problema mais difícil a que chegamos é queo dizer do interdizer nomeia. mas. do mesmo modo
que o dizer nada pode fazer além de semi-dizer, o
interdizer não pode interdizer Ínteiramente1.
Isto signi.fica que o interdito separador incide
sobreum ponto
, noqual
ele oper
a, mashá tam
bém um ponto em que el e não chega a nomear e a
operar dis tinções, um ponto que escapa à nomeação. Aqui também darei um exemplo que extraí
dos primeiros versículos da Bíblia. Vocês observarão no primeiro e no segundo vers íc ulos que as
co isas se passam em do is tempos. O primeiro
versículo nos diz o que Deus cr ia, e no segundo
7. N . do T. Cf. nota 6, p. 29.
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ALAIN PIOIER-WEILL
ele nomeia o que criou. Ora, há uma coisa que é
criada, e apenas uma, que escapa a toda e qualquer
nomeação. É o que aparece no segundo versículo:o abismo. É criado o abismo, o furo absoluto, e
vocês verão que esta é a única coisa à qual a nomeação não advirá fi. posttriori. Ou seja, mesmo no di
zer onipotente do Todo-Poderoso alguma çoisa
se subtrai à nomeação e penso que é a partir dissoque se pode pensar o surgimento do supereu. De
minha parte, vim a compreender a aparição da fi
gura da lei ptrsecut6ria, supereuóica, como ligadaao ponto em que o interdizer é insuficiente ou
deficiente.
Nesse ponto então o real não é mais contido
nem pelo imaginário nem pelo simbóliCo, e aí algoescapa radicalmente à simbolização, produzindo-se,
no lugar da separação esperada, um contato. ocontato é o mundo do tabu, e vocês sabem que otabu é o ponto do real com o qual o contato do
sujeito pode levá-lo à morte, e eventualmente o
leva. Se o tabu era reconhecido nas sociedades ditasprimitivas, em nossas sociedades não o identifica
mos, não conhecemos o tabu, mas podtmos supor
que um certo número de doenças mortais talvez es
tejam ligadas ao que sobrevém quando não há distinções simbólicas, quando não há escansão.
34
LACAN E A CLINJCA PSICANALÍTICA
O qu e é escandir? Escandir é transcender;transcender é a distinção absoluta. É transcender
o real, estabelecer entre o real, o simbólico e oimaginário uma dimensão transcendente. Quando is to opera, estabelece-se uma interdição que
torna impossível , no sujeito, o contato entre real
e simbólico. Ve jo a origem do ·Mal ligado ao
supe-reu como aquilo qu e se passa quando no s
avizi:nhamos do real mortífero, do real não trans
cendido. Somos então colocados em perigo por
este contato imediato com o real. É o que se passacom relação ao monstro. O monstro é a mortifi
cação de um sujeito humano, o que se produz
quan.do o real subvene os limites, quando estes
não mais se sustencam, quando não há mais
t ranscendência em relação ao real. e quando o
real corrói, poderíamos dizer, subverte, derruba
os limites.
O que se passa quando há contato entre oreal e o simbólico, ou seja, quando o simbólico
não é mais trancendente ao real?A palavra passa a
estar- em perigo, ela morre e surge um olhar
supereuóico sob o qual o sujeito não mais pode
dizer uma palavra; à simples idéia de falar ele en
gasga. ou é reduzido ao estado de morto-vivo,mudo, autista.
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A1--"IN DIDlER-WEllL
O que ocorre quando o simbólico e o i m a g i ~nário deixam de estar separados? Se o invisível
desaparece, o que nos acontece? No caso mais benigno, o que nos acontece é enrubescer de vergonha. O que se passa quando enrubescemos de ver
gonha? Mostramos nossas cores. E por que
mostrá-las, enrubescendo, é uma experiência cão
dolorosa para nós? Porque temos então o semi
menta de que nada mais há em nós de invisível,t o r n a m o ~ n o s inteiramente visíveis, inteiramentetransparentes ao olhar do Outro. Introduz-se aqui,portanto, uma segunda forma do supereu, uma segunda manifestação do que se passa quando não há
mais transcendência entre essas duas categorias.
E quando o imaginário e o real não mais estão separados, quando a imaterialidade é posta emperigo, o que se dá? Pois bem, a capacidade quetenho de ser um corpo dançante, dotado deimaterialidade, que pode voar como um pássaro,cessa< e logo esse corpo torna-se rígido como um
corpo de pedra submetido ao peso da gravidade e,por exemplo, caio em depressão, sinto o peso demeu corpo pesar.
A part ir dessas considerações, começo a po
der falar de escansão. Tomei tempo para chegar aesse ponto. E penso agora ter elementos para
LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA
dizer o que é a escansão: é o que deve restaurar atranscendência dessas três separações, intervir, de
modo apropriado, nos três casos que citei.O corpo, que nos foi dado, é um corpo que
pode dançar. Direi que o tipo de escansão que poderest ituir ao·depressivo a leveza de seu corpo, faloa partir de minha experiência, não é da ordem dainterpretação. Nunca vi uma interpretação fazero menor efeito em um deprimido ou em um me
lancólico. Em contrapartida, o que pode criar umaescansão e devolver a vida ao corpo do deprimidoé o ritmo. O ritmo, isto é, o que há de maisassemântico e que não cem nenhum sentido, o rit
mo da música, o que faz mexer, dançar.
O que se passa quando o ser humano estásob a transparência do olhar que o reduz a este
objeto enrubescente da vergonha? Há sujeitos quenão falam pois vivenciam-se o tempo todo como
transparentes. Pois bem, direi que a escansão queé esperada nessa situação é que o olhar fascinanteque petrifica aquele que perdeu sua invisibilidadeseja substituído por um outro olhar, do qual oanalista deve poder dispor. Não posso garantir queele possa dispor desse olhar, que seja capaz disso,
mas digo que o analista dtve dispor do que vem aser o olhar do pintor. Denomino "olhar do pintor"
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ALAIN DrDIEJt.-WEJU.
este olhar que não apenas pode ver e mostrar o
invisível, mas que, ao ver o invisível, o faz apare
cer e o faz com toda a clareza. O enigma do invisível que o olh.ar do pintor pode fazer aparecer éum segredo, um segredo que tem necessidadedas sombras para se esconder, como a maioria do s
segredos. Os segredos são frágeis, pois não existem senão na sombra, e um segredo que só existe
na sombra é frágil po rque basta o clarão de uma
lâmpada elétrica para fazer desaparecer o segredo
aí escondido. O segredo de que se trata aqui é uminvisível que pode eclodir em plena luz. E esta é,
segundo penso, a escansão que o olhar do pintor,o olhar do analista, pode trazer.
Enfim, quando o sujeito perde a fala, quan
do ele é mudo, o tipo de escansão que deve serintroduzido é a escansão pr ópria ao significante
siderante. Não digo que seja fácil, mas digo que oanalista deve poder, em dado momento, t ransmitir, por intermédio de uma palavra siderante, com
parável ao chiste, aquilo que tem por função restituir o suporte da palavra ~ q u e l e que perdeu a
fala, ou seja, retirá-lo do tempo traumá t ico do não
há em que ele se encontra, res t ituir-lhe a palavra
que nasceu com a metáfora que diz hti enio há aomesmo tempo. Como fazê-lo? Isso não é explicá
vel, é o ponto em que isso exige Juling, às vezes
LACAN E A Ct.fNICA PSICANAÚTICA
sorte; às vezes isso exige muito tempo até,que se
encontre a palavra que tornará traduzível o co
mando siderante, ou seja, o comando da palavraque diz ao sujeito: ."Tu podes falar na medida em
que reconheces tua dívida para com a sarça ardente do significante, e que tu consentes em viveressa dívida no ato de sideração".
Diria que a escansão, o analista deve t ~ m á - l aa seu encargo no pon to em que o supereu age em
função de uma deficiência do ip.terdizer. Enquanto Freud coloca o supereu na origem e a ética
corno uma reação secundária à culpa supereu6ica,eu situaria o supereu como secundário ao simbó
lico, secundário ao fato de que o simbólico é defi
ciente, barrado. Pode-se sempre lutar contra osupereu, e faz parte do desti no humano de todos
os t e ~ p o lut ar contra ele, mas o supereu não é
unicamente ligado, como pensa Ferenczi. ao fato
de termos pais malvado s. Existem pais malvados,. .co m certeza, pats perversos que transmttem
supereus mortais mas, para além disso, há, na
transmissão da própria linguagem, um efeito de
estrutura q ue faz com que o bem-dizer entrel.acese com o mal-dizer: o mal-dizer, que maldiz, é
inseparável do bem-dizer, pois há, no bem-dizer,o bem inter-dizer, um furo na nomeação ao qual o
tabu faz suplência. E é por isso que o supereu é
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AL\IN DIDIER-WEILL
consubstancial, não se pode prescindir dele. Podese ultrapassá-lo, mas é preciso saber que, se o ul
trapassamos, ele não será abolido de uma vez portodas. É um fato de estrutura que o interdizernão pode subsumir todo o real. E talvez isso ocorratambém em outros campos, o horror que o ho-
mem tem em considerar-se inacabado, em ver que
na vida humana algo é desgraçado.
Em resposta a esta lei supereu6ica que nos
persegue, cabe-nos exercer a possibilidade de nãocessar de dever simbolizar esse real não simbolizado que se manifesta nas nê s direções que indiquei. Temos que assumir o encargo desse real emostrar ao analisante que podemos, como analistas, ousar olhar de frent-e o supereu mortífero, sempor isso morrermos. É preciso lhe ensinar e lhemostrar que podemos olhar a Medusa sem ser
mos petrificados, ainda que ela jamais venha a serdestruída.
40
A PU LSÃO INVOCANTE
2 . h ~ h f 9 9 5
A presença que fala em nós, será ela sexuada?Digamos que antes daquilo que chamamos o
trauma, o sujeito fa la e ainda não é sexuado. Eletem, na origem, uma relação à palavra que lhe vemdo Outro, e que não tem o caráter do sexo porquanto o Outro não é sexuado. Podemos dizerque, por isso, entre a recepção e a emissão, o su -
jeito recebe uma palavra que não é s e x u ~ d ~ ,que a partir do trauma e do recalque ongmán o,tendo-se constituído um corpo como sexuado, umaparte da palavra se d submetida ao e t e r ~ i ~ i s m osexual, enquanto uma outra permanecera vtrgem,
indeterminada.
Assim. hoje tentarei abordar como homem emulher situam-se diferentemente por relação à palavra e procurarei diferenciar, nessa clivagemmem/mulher, que afinal de contas é bastante tradtcional, em que consiste o desejo que está em jogona palavra e em que consiste a pulsão invocante.
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ALAIN O D ER.-WE ILL
O que é o ato de invocar? E por que o canto, maisdo que a palavra, presta-se à invocação?
Esbocei de modo muito sumário no quadroo fragmento de um desenho utilizado por Lacanem seu Stminlirío' e que representa, como vocêssabem, um vaso com uma flor. Esta é a maneiracom que Lacan, em sua primeira reflexão na qualfaz uso de espelhos, presentifica esses vasos como gargalo que representa um furo. Ele exemplificadesse modo o que é o eu (moi), í'sto é, a imageminconsciente do corpo. Vocês vêem então que essevaso representa o eu inconsciente, a imagem furada pelo gargalo que permite que a flor aí se colo
- é isso que faz com que originariamentetenhamos uma relação com o objeto de nosso desejo. Podemos ver que o mundo aparece para nósdo mesmo modo que a flor, pelo fato de que há
uma tomada do real que é o objeto no imagináriopor intermédio desse furo, desse gargalo quee s ~ u e m a t i c a m e n t e representa o furo no corpo,deaxado pela castração no recalque originário.
Esse furo não é o mesmo, não tem a mesmaestrutura do lado do homem e do lado da mulher.Do lado do homem, podemos dizer que o fato da
8. N. do T. Cf. nou 5, p. 26.
42
LACAN E A CLÍNICA PSICANAL ITICA
cas tração faz um furo simbólico, um furo simbolizado - pois para conviver com um furo é preci
so simbolizá-lo - por um significante que é osignificante fálico. E é em função deste significantefálico, que entra numa relação específica com oobjeto do desejo, que o corpo do homem ganhasua consistência. Tomo um exemplo simples, oexemplo do primeiro jogo que um menino inventa, sem que tenhamos que ensinar-lhe, o jogo defutebol: de repente, ele chuta uma bola. Propo
nho-lhes compreender que o chute, como a raquete de tênis, é o símbolo do falo , que se especifica no tocar na bola, quer dizer, no ~ e p a r a r -desse objeto enigmático a bola, que ele constituí como eternamente perdido. Sim, porque abola não tem interesse algum quando a prendemos nas mãos, a bola só interessa quando nos se
paramos.dela, quando a chutamos, isto é, quandoa constituímos como objeto perdido, atrás do qualo homem correrá por toda a vida. É correndo atrásda bola que ele isolou graças a seu pé ou à raquetede tênis erguida que seu corpo se faz ereto e consistente. Então, poderíamos dizer que é isso quedá ao corpo do homem sua consistência.
Para uma mulher, esse furo não tem a mesmaestrutura, pois não é um furo simbólico, é um furode ordem real. E, sendo real, ocorre que a relação
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AlAIN OJOJER-WEJLl
que a mulher tem com o falo faz com que este lhe
venha do simbólico po r meio daquele que é seu
legítimo detentor. Mas a relação que esta mulher
tem_ om o falo não basta para simbolizar esse furo
na medida em que ele é real. Pois o falo para uma
mulher não pode dar conta de todo o real. É nisso
que, éomo diz Lacan. a mulher é não toda na ordem
do falo. Ela é não toda porque o falo não tudo faz
po r ela. Resta assim uma parte de real que não é
subsumida pelo sexual e que faz apelo.a outra coi
sa para ser simbolizada. Esta ou tra "coisa", que é"A Coisa", eu lhes assinalo sua aparição por um
dos primeiros jogos da menina: esponuneamen
te, ela não brinca com a bola da qual se separaria,
como o menino, ela rende antes a separar-se, ela
própria, do chão, brincando de saltar no ar, pu
lando corda. É muito diferente lançar-se no ar e
lançar, no ar, uma bola. É muito diferente porquenão se trata da separação de um objeto causa de
um desejo. Nesse jogo precoce a menina inventa adança, ou seja, inventa o ato de aliviar seu corpo,
torná-lo leve, retirar-lhe: o peso. A que faz apelo a
menina para que seu corpo. que não é inteiramen
te simbolizado pelo sexual. encontre um comple
mento de simbolização? Penso que, quando dan
ça, ela espera uma simbolização do Outro, do Ou
tro com um O maiúsculo. Ela a espera e a obtém.
l.ACAN E A CLÍNICA PSICANAlÍTICA
pois, quando pula e volta ao chão, não são seus
músculos que o fazem, é uma relação com o Outro
com o qual ela entra numa invocação. Se ela o in
voca, o Outro responde de forma a torná-la leve,de forma a tomá-la e a elevá-la no ar, mesmo a
deixando cair de novo. É o significante que a tor
na leve, que a enleva, e, por essa disparidade entre
os jogos precoces do menino e da menina, vocêspodem ver as referências que observamos em dois
tipos de or ientações possíveis.
Para o homem, creio que se pode dizer que
sua relação com o falo e com o objeto pequeno a
intervém a partir da questão do recalque originá
rio, ou seja, quando, na esteira do recalque origi
nário, integra-se a significação desse furo real no
simbólico que é A Coisa, Das Ding. Esta coisa, en
guanto inaudita, invisível e imaterial, é aquilo so
bre o que o s u j e i ~ o do inconsciente ($) é posto
em relação c o ~ um real que transcende o que évisível. audível de modo finito e limitado.
A operação que faz do homem um homem,que tem que se haver com este ilimitado, este inacessível, é aquela pela qual ele substituirá este ili
mitado pela significação de um objeto limitado, o
ob jeto pequeno a, simbolizado para ele, na maio
ria das vezes, por uma mulher. Lá onde havia o
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ALAIN DIDIER·W6lll
ilimitado, ele o substitui por um lugar-tenente do
Outro, que é o objeto. Este homem opera, pode
riamos. dizer, um deslocamento da questão, elerecebe a questão do real ~ m sua dimensão de ilimitado ou de infinito, e responde diundo <jue há
um objeto finito que adquire uma significaçãosexual.
Enquanto para Freud a sexualização é pri
mária e a su blimação secundária, para nós asexualização é secundária à i n s t a u r a ç ~ o deste lu-gar de sublimação que é Das Ding. É nesse pontoque colocamos que a mulher - ou, em todo caso, ofeminino porque quando digo a mulher trata-se do
feminino - t em uma outra relação com esse ilimitado. Seu desejo não é causado por um objeto a,
pois el.a não tem à sua disposição um objeto a quea coloque em mo vimento, que a faça correr por
toda a sua vida atrás desse famoso objeto a. Eventualmente ela tem um filho que pode ter essa função de objeto a, mas jamais um homem, jamaisum parceuo.
Direi portanto que a mulher não está emposição, como o homem, de esquecer o Outro. Aentrada em jogo do objeto a permite fundamental
mente ao homem esquecer a dimensão do Outro no
que ela tem de transcendente. A mulher não pode
esquecer o Outro porque não há, para e1a, lugar-
46
LACAN E A CÚNICA PSICANAlÍTICA
tenente do Outro e por isso ela não é uma militante. Ela permanece em relação com o il imitado
da Coisa que ela encarna para o homem no amorcortês. Para conviver com esse ilimitado, ela nãodará a solução do desejo masculino, ela o abordará, esse ilimitado, pelo viés do que podemos chamar a invocação. Quando ela entra nessa dimensão é algo tão forte que na maioria das vezes elahesita, não ent ra e prefere tagarelar. Diz-se que asmulheres têm a capacidade de falar de coisas fú-t e i s - são os homens que dizem i s so - mas pen
so que a profundidade da futilidade tem sua razão no fato de saber que se ela deixar de ser fútil,ela entrará nessa dimensão romântica da invoca-ção na qual não se entra sem receios, pois, umavez que se entra, acabou a brincadeira, é prá valeL
Nesse ponto, penso que se pode dizer que o
destino do masculino é o jogo do sentido, quer
dizer,''ir na direção do sentido, do sentido no qualcorre a bola, e o destino do feminino, a preocupação com algo de mais subterrâneo: o jogo da existência, o crer no fato de que se possa existir. Paraa mulher, poder acreditar nisso é uma questão, poisa inconsistência que há em seu corpo, essa parte
de real que não é subsumida pelo sexual, lhe t razuma dúvida sobre sua existência, que dá a seu destino um outro delineamento, fazendo-o passar por
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ALAIN DIDIER-WEIU.
caminhos de realização i f e r e n t ~ s dos do homem,este último em busca do sentido, num pensamento que se pode dizer causal Há um sentido noobjeto, é preciso encontrar o objeto, essa é a origem do sentido. Há mais que um sentido e elesabe que há uma a u s ~ . É isso que, na minha opinião, está na origem do fato de que o homem temum pensamento, como se diz, objetivo, apreensívelpelo p e n s a m e ~ t o científico.
Uma das coisas mais difíceis de pensar é aprodução daquilo que uma mulher pode fazerquando entra nessa invocação que é a dança. Umamulher é mais especialmente levada a dançar doque um homem; penso que o feminino, como tal,é chamado a dançar. Eu. pessoalmente, ouvi mui tas mulheres reconhecerem que, no fundo, mas nofundo mesmo, dançar é o que elas teriam deseja
do fazer. Conheço até mesmo mulheres que nãovão a espetáculos de dança. tamanho é o mal queisto lhes faz, e isso lhes faz mal porque manifestaa realização absoluta de uma mulher, realizaçãoque ela não suporta que lhe tenha escapado.
Quando vemos uma mulher dançar, contrariamente à produção de um homem, para a qual
podemos sempre perceber qu e há uma causa,compreendemos que o movimento femin ino
LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA
especifica-se por ser sem causa. Ele não éexplicável por um encadeamento de causa a efeito. Amulher, nesse domínio, s itua-se em um setor queescapa ao pensamento causal do homem, que quercompreender tudo. Exíste ali algo que escapa àexplicação causal. Por quê? Ligo o pensamentocausal do homem ao fato de que ele é causadopelo objeto, sua corrida é guiada pelo fato de queele corre atrás de uma bola, ele é causado porque abola corre à frente dele, e há entre ele e a bola uma
latência. Quando uma mulher dança, quando ofeminino dança, será que podemos dizer que ela écausada pela música, pelo Outro? Eu diria que não,ela não é causada pelo Outro, pois, quando eladança, ela é o Outro. Para ser causado, é precisoum hiato temporal - correr atrás da bola. No
caso, a mulher não corre atrás do Outro, ela é o
Outro, o que significa que há uma sincronia, nãouma diacronia; ela é sincronicamente o Outro e épor isso que não se trata de causa.
Chegamos então ao ponto de tentar repensar a dialética entre gozo fálico e Outro gozo. Paraum homem o gozo fálico é causa do semblanteque ele tem de ser um homem. Se um homem vema gozar sexualmente de uma mulher, o ganhofundamental para esse homem é que ele extrai desse
49
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ALAIN DID IER-WEILL
g o z ~ um semblante de i d e n c i d a d ~ sexu.al. Ele crê
poder pensar q.ue é um homem. E por tsso que o
homem tem necessidade da mulher ê que se podedizer que a mulher é a verdade do homem, coisaque todas as polícias do mundo sabem, pois, quando se procura m criminoso, diz-se: "Procurem a
mulher!". Q uando se encontra a mulher. não seestá muito longe do cara. Isto não é recíproco, o
homem não é a verdade da mulher porque a mu-
lher não extrai urna idéia de sua identidade do gozo
fálico. Desse ponto de vista ela é menos tola, menos "pa to" do semblante. O que ela procura não ésua identidade sexual, é algo mais radical do que
isso: sua existência. O que ela procura é crer em
sua existência, poder crer nisso. Por isso a famosa
insatisfação histérica é algo que, em minha opi
nião, Freud não captou inteiramente.
Lacan fez um chiste, que eu não compreendidurante um certo tempo e que hoje me parece claro: "Qualquer um que ame urna mulher, seja qualfor o seu sexo, é hetero"9 • Ele queria indicar por
9- N . do. T. A c i t a ç ~ o pode ser encontrada em
"I.:Étourdit",Sciliat,n. -4. Paris, Seuil, 1973, P· 23 : "Disons
hétérosexuel par définition, ce qui aime les femmes, qud
que soit son sexe propre".
50
LACAN E A CÚNlCA PSICANALÍTICA
esse dito que a relação com o gozo Outro da mulher é de tal modo Outra que produz o hetero, faz
confrontar com o hetero, quer dizer, com aAlteridade absoluta.
O que faz com que ao masculino seja interdi tado o acesso a este gozo Out ro - chamemo-
lo por seu nome - de ordem mística? Diria que
para o homem, se há alguma coisa que produz ointerdito, interdito de gozo, é que, no sentido literal. o interdito é fundamentalmente um inter-
di.{!r, e este inter é o inter que há entre esses dois
significantes que Lacan escreve S , - S ~ . O homem
é aquele que toma para si o intervalo S,-52., na
medida em que o desejo é articulado pelo movi
mento de sideração que vai no sentido sl s,.enquanto a mulher é interdita pelo movimento .
inverso; indo no sentido I ~ sl. faz desaparecer
o interdizer para aceder ao impossível místico.
A sideração é o que ocorre a um ser humano
quando ele é reduzido a um só significante. Por
força do par significante isso parece impossível,
mas é possível franquear o interdito, o interdizer,po is a sideração nos dá esra experiência clínica em
que o sujeito falante pode se r remetido ao
significante sl do recalque originário enquanto perdido. Lacan faz a esse propósito uma observação
51
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AL\IN DIDIER..WEILL.
bastante interessante no Seminário, livro l r: os qua-
tf'o conuirosJu.ndammtais da psicanálin ( 1964). Quan
do fala desse significante 52
originário, ele diz: o
problema é que quando o sujeito se constitui, bem
na origem, como significante 52
originário - é
no momento em que ele comenta. o Homem dos lo-
bos em sua constituição ao nfvd do récalque origi
nário-, le não mais poderá permanecer num só
significante. Trata-se com efeito de sair do ponto
em que stl, ou seja, sair des ta subjetividade abso
luta que é o ponto originário em que a significânciafaz padecer o real, e em que há ~ m a interseção
primordial reaVsimbólico.
Segundo penso, a sideração é o que ocorre
de modo transitório a um sujeito quando. num
tempo fugidio , ele é reconduzido violentamen te a
este significante originário do não-saber absolu
to, em que, siderado, ele fica boquiaberto, lívido,despojado de tudo aquilo de que estava munido,
desprovido de tudo aquilo que tinha. O interdito
é permanecer na sideração; é igualmente um
interdito de goio, pois podemos dizer que a
sideração é um a experiência de gozo de ordem pos
sivelmente mística. A mística permanece na
sideração, numa relação absoluta com o Outro,enquanto a desideração é o ato pelo qual o sujeito
retira-se deste tipo de gozo em decorrência do
52
L\CAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
achado de um significante em que se articula seudesejo, o significante 5
1•
Eu diria que o homem é votado a encontrar
escansões sucessivas introduzidas pelo significante
51
, que revelam fragmentos de sentido e subtra
em ao gozo, o gozo gerado pelo fato de se estar
exclusivamente ao nível do significante r i g i n ~ r i oúnico. A partir do momento em que falamos, emque destacamos palavras, fonemas, estabelecemos
escansões das quais nasce a inteligibilidade do dis
curso. Será que vocês já se perguntaram o que faz
aparecer esse gozo muito particular que se pode
experimentar ouvindo cantar a voz de uma diva na
ópera? A voz da diva na ópera me parece retomar a
questão da invocação da dançarina, pois ê a invo
cação absoluta Se a voz da cantora nos produz
um efeito tão particular de emoção- vocês po
dem observar o que caracteriza a voz femininaquando ela se eleva no agudo e no superagudo -
é que quanto mais a voz se eleva, mais a descontinuidade ligada aos cortes da fala desaparece, e mais
se produz uma voz que substi tui esta
descontinuidade pela continuidade absoluta. Gos
taria que vocês o sentissem para compreenderem
que é no momento em que a continuidade substitu i a descontinuidade que aparece o gozo, o gozo
•
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ALAII' DIOIER.WE!ll
não fálico, o Outro gozo, o gozo excedente, o gozoque faz com que nesse momento não se saiba mais
se é a diva ou o divino que canta. A palavra divanão foi fabricada por acaso.
Vou lhes contar um pequeno escândalo queocorreu em I 774 na Cone do Rei Lufs XV. quando Gluà apresentou sua ópera Oiftu t Euddia 10
,
quinz e ano s antes da Revolução Francesa.
Quando esta ópera foi apresentada d iante dos
1O. N . do E. Ch ris toph Williba(d R itter von
GLUCK (171 4-1787) apresenta a primeira versão de
Orft14 t Eurúlict em Vieru , em 1762 , antes de sua declara
da intenção de reformar a 6pera. Em sua "reforma da
6pera" Gluck, a partir dos c5non es da tragédia grega,
busca fazer co m que a música sirva à poesia, tornando a
. Abtrtunt r c l e v ~ n t c para o drama e a orquestração adequach
às palilvru. Assim, "' flm de se ter uma .s6 dimensão mu - ·sical com textura mais contínua, constant emente expres
siva e cond ic ionada pelo texto, a fronte ira entre o
reciutivo e a ~ r i a tende a desaparecer. e o coro ganha
valor de personagem. A ve rsão de 177-+. citada pelo au
tor, amplia consideravelmente a anterior e o protagonis
ta masculino, anterionncnre dedicado ao 4S ra lo contralto
Guadagni, é destinado ao tenor Legros. A escr ita do canto
do protagonista, já modificada do contralto para o so-prano po r ocasião de uma versão em Pacm.a em 1769,altera sua tessirura uma outra vez .
LACAN E A ClÍNICA PSICANALÍTICA
convidados do rei11, houve um escândalo de que
não se faz idéia, escândalo que fez aparecer um conflito muito violento entre homens e mulheres, expresso nos termos ''o canto do Rei" e o "canto da
Rainha". Eu lhes trarei também algumas linhas deuma carta de M.lria Antonieta a sua irmã MariaCristina, quando o escândalo edodiu ap6s a ópera:"Não se fala em outra coisa. Reina em todas as mentes uma fermentação tão extraordinária quanto vocêpuder imaginar sobre este evento, é incrível, as pes
soas se dividem, se atacam, se odeiam, se embacem,como se se tratasse de uma questão de religião". Eela não estava errada, porque provavelmente erade uma questão de religião que se tratava. Na
mesma época,J lie de Lespinasse1 escrevia do lado
l i . N. do T. No original, parttms fOJffiU, expressão
que se refere ao espaço, na sala de espetáculo, que se
s i t u ~ imediatamente atds da orquest ra, no qual se podia
assitir de pé. ou no qual eram colocadas poltronas espe
ciais, Optamos po r traduzir a expressão pelo seu senti
do- é do s convidados d o rei qu e se trata - assinalan
do, por est a nota, o sentido literal da expressão utilizada
pelo autor em sua exposição.
12. N. do E. Julie-Jcanne-Eléonore de LESPINASSE
(17 }2-1776) exerceu um grande encanto sobre os fre
qüentadores dos "salões liredrios" por sua rara curiosidadeintelectual e sua abertura de CSP,irito que a permitiam escutar e• inclusive dividir as mais diveru s e audaciosas propostas.
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A.I.AIN DlDfER-WEILt
do "canto das mulheres", após a audição dessa ópe·
ra, na qual ela estava: "Gostaria de ouvir dez vezes
por dia esta audição de Orftu. Esta perda que me
dilacera e que me faz gozar daquilo de que lamen
to [ela acabara de perder seu amante] . Perdi meu
Eurídice, este gozo me deixa louca. Ele me arras
ta, minha alma está ávida desta espécie .de dor".
Eis o que é introduzido. Até então, a ópera,
criada no Renascimento - podemos dar-lhe os
títulos de nobreza com Monteverdi- obedecia à
lei do parlar cantando. Parlar cantando significa que
aquele que canta fala ao cantar, ou seja, quando
ele canta, imita a fala, faz ouvir todas as leis da
sintaxe, dos cortes sintáticos, a descontinuidade
da fala. E o que aparece com esta ópera de Glück
é que, pela primeira vez, alguma coisa contraria o
p a r l t ~ r cantando: é a r i m t ~ la voa, o que significa que
a voz, nesta ópera, se emancipa à palavra. A vozbruscamente se destaca, abandona as escansões li
gadas à palavra. Abandonando as escansões, ela se
dirige para um lugar de continuidade no qual a
inceligibilidade cai, e aparece para os auditores um
tipo de gozo que apavora os homens - · o canto
do Rei - e que, no conjunto, arrebata as mulhe
res. Pessoas corno Jean-Jacques Rousseau estive
ram do lado do canto das mulheres. As mulheres
reconheceram imediatamente que este gozo, que
56
I.ACAN E A CLlNICA PSICANALITICA.
aparecia com a substituição da inteligibilidade das
escansões vocais pela continuidade da voz, ou seja,
pela emancipação da voz que se livra do poder das
escansões, lhes concernia: "que me faz gozar da
quilo de que lamento, que me deixa louca, que me
torna ávida desta espécie de dor".
Isto nos coloca questões: o fa2; com que
os homens recusem com tamanha violência este
gozo que pode apoderar-se deles mas que os ater
roriza? Em <]Ue o fato de ser capturado por este
gozo, que fcrniniza, põe em risco o masculino?
Diria que quando este gozo se apodera de nós, o
que se passa é um abandono do pensamento cau
sal, posto que, nesse momento. somos colocados
por esse tipo de voz numa relação em que não há
mais interdito com o Outro, porque a escansão é
o interdito de uma relação de proximidade com o
Outro ao passo que esta voz é em suma umdium que cria a possibilidade de umnelação ime
diata com o Outro, deixando cair o lugar-tenente
do Outro, o objeto a, que só aparece, como o car·
retel no Fort-Da, com a escansão.
Com esta voz, introduz-se o que não tem
causa, o que a mística Hadewijch de AntuérpiaiJ
13. N. do E. HADEWlJCH de A m u é r p i ~ . mfstica
e devota que viveu no século Xlll. Es creveu quatorze
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AJ...\IN DIDIER-WE.ILL
chamava o s e m ~ p o r q , t ê . Eis a invocação de
Hadewijch: "Senhor. dirijo-me a ci. Por que cantoamor. tu que nada me pediste? ( .. ) É sem-porquê'' . A expressão vem dela: é sem-porquê. E eudir ia que esta voz da diva é sem-porquê, pois não
é o Outro que é sua c;ausa; nesse momento, o hu
mano se torna Outro. Por que é sem-porquê? Senos perguntamos por que o Outro não vem a nós,há um porquê, é porque há um recalque. Por querecalcamos o Outro? A isso podemos responder, e
é Freud quem responde. Ele descobre que há umrecalque do significante da Alceridade. Podemosresponder por que dizemos não ao Outro, masserá que podemos responder·a esta outra questão:"Por que há Outro?". A esta questão não podemos responder. Se não há Outro uma vez que osujeito o recusou, por que há Outro? Não pode
mos responder. É sem-porquê.Fechando esses parênteses, retornemos à
questão: por que é a mulher que pode encarnar demodo tão particular esse sem-porquê? Eu lhes fizobservar, desde o início de m.inha exposição, que amulher é a depositária de um real que não é simbolizado pelo sexual, de tal modo que seu corpo
Visões, trinta e un u C11ms tm r o s t ~ , dezesseis CartAs rim11Jas e
quarenta e cinco Pomuu eJtró.ficos.
58
LACAN E A CLÍNICA PSICANAÚTICA
não é encarnado como o do homem. Estra11jamtnte 14
ou não, o fato da mulher não ser encarnada fazdela aquela a quem o homem diz "meu anjo'' - oanjo é verdadeiramente uma criatura que não éencarnada, que não cem corpo. e que não tem sexo.O fato de que na imaginação do homem haja estaidéia de que a mulher é um anjo explica o que sepassa na cena da ópera: não podemos compreender a menos que tomemos em consideração o fatode que a ópera é a operação pela qual fez-se subir
à cena profana uma mulher que toma o lugar davoz do anjo que era cantada pelo castrato, com oacordo da Igreja, nos três séculos que precederama 6per.3. e o Renascimento. Desde a origem, ospadres de Igreja inclinaram-se sobre o modo peloqual se poderia tornar os fiéis sensíveis à louvação de Deus.
Como louvar a Deus? A tradição estabeleceuque o louvar a Deus é feito fundamentalmente
14. N. do T. No original itr11n_gtmmt . palavra que
combina du.as outras: êtrt (ser) e tmgc (anjo), termo pn:
sente n.a seqüência do pensamento do autor na frase,
produzindo o efeito semântico str-anjo (êtn-ange), intei
ramente homônimo de étrtmge (estranho), jogo que qui
semos recuperar em português co m o neologismo
estrtmjamentc no lugar da tradução liiteral t s t r a n h t ~ m c n t e .
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AUJN DIDIER-WElll
pelos anjos, por toda uma hierarquia celeste de
anjos que é desenvolvida no livro' de Denis o
Areopagita1s.
O extraordinário é que esses anjoslouvam a Deus de um modo totalmente inaudível,em silêncio, sem que se possa ouvir a lõuvação, A
Igreja considerou inclusive que o gênio dos gran
des músicos como Mozart vinha do fato de que
eles ouviam um eco, vagamente ensurdecido, do
canto dos anjos. A Igreja assim colocou em cena ocanto do anjo a partir do século XII ou XIII e,
para fazer os anjos cantarem, a primeira idéia foia de fazer cantarem jovens garotos, pois as rapari
gas, não se podia colocá-las em cena. Os jovens
pré-púberes tinham vozes que subiam ao agudo
permitindo fazer ouvir a voz angélica, pois o anjo
só pode cantar no agudo, em nenhum caso no grave.Um anjo que canta no grave eventualmente pode
ser um anjo maldito, pode ser Lúcifer. Um anjodesencarnado, um verdadeiro anjo, só pode subir
aos agudos.
Depois disso passou-se toda uma história:as crianças foram substituídas pelos tastrati, o que
durou dois ou três séculos, com o consentimento
15. N. do E. Ver Pseudo-Denys L : A R É O ~ G I T EOutvrrs cqmpJltts Ju pscuJo-Dmys L : A r f o p t ~ l i t t . Tradução do
grego de Maurice de Gandillac. Paris, Aubier,l990.
60
LACAN E A CÚNICA PSICANAÚTICA
da Igreja. Como tastrati adultos, eles tinham vozesfemininas extraordinárias que faziam com que a
mulher não precisasse subir à cena para que se
fizesse ouvir a acuidade das vozes angélicas.
Assim a ópera é a operação pela qual o anjosobe à cena. Para nós isso é interessante porque é
a operação que confirma um pouco o ponto em
torno do qual giramos: o fato de que a mulher sepresta a encarnar o anjo nos remete a esta questãotão difícil, a de que, em alguma parte de seu cor
po. uma disposição a impele a ser um anjo, a cantarcomo um anjo, pois há uma certa não-encarnação doreal de seu corpo. Isto ocorre porque ela é não
toda, porque o falo não reina como senhor e porque
há uma parte que permanece à parte do sexual: o
anjo, fora do sexo.
Se este gozo feminino deve se manter de tal
modo afastado do canto do Rei, como compreender então que tenham sido sempre os homens queescreveram óperas, que colocaram em cena vozesangélicas, arrebatadoras, que os perturbam tanto?O que pretendo fazer observar é que todas essasmulheres que cantam, creio não haver nenhuma ex
~ ç ã o todas foram lançadas à morte, todas morre
ram. e, quando elas morrem, há um a derrapagemdo grito arrebatador que se situa no superagudo
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AL\lN OIDIER-WEILL
tendendo ao grito. Por que esse grito foi tão
freqüentemente colocado em cena na ópera? A hi
pótese que me propus é a de que esse grito possi-
velmente testemunhava o momento em que a
mulher abandonava o corpo do anjo pelo viés damorte, e que era este o testemunho do sofrimen-
to pelo qual - em todo caso, no imaginário do
ho·mem - o anjo morre, ou seja, o que é
desencarnado morre. Na medida em que o anjo
não grita, é talvez o que faz ouvir a do r que pode
representar para uma mulher a encarnação em sua
carne porque, quando ela é lançada à morte, é sua
carne que é mortificada, e é nesse momento que aencarnação com esta dor terrível do grito se fazouvtr.
Dei-lhes elementos para pensar, em sua opo
sição, os discursos masculino e feminino, propon-
do compreender que 0: que guia o homem é umtipo de desejo causado por este objeto destacável
do qual ele passa sua vida a se separar para corre ratrás dele, ·e o que guia a mulher seria um cami
nh o inteiramente diferente, que, através da dança,através do canto, é o caminho da pulsão invocante.La can diz em algum lugar que a pulsão invocante
é o que há de mais próximo da experiência do inconsciente. Ele diz também que um fim de análiseque vai mais longe do que aquele pro·posto po r
62
L\CAN E A ClfNICA PSICANALÍTICA
Freud é um fim de análise que ultrapassaria o fantasma sexual e que daria acesso à pulsão. A ques-
tão que me coloco, e ao colocar-me eu a coloco
para vocês, é a seguinte: será que o fim de análisenão teria por função, entre outras. a de dar a um
Sujeito acesso à pulsão invocante, da qual comecei a falar hoje? Se esta pulsão tem relação com asublimação, ela não remeteria à dessexualização
de Freud mas sim a esta parte indeterminada, ili
mitada, que precisamente escapa a toda e qual
quer determinação sexual.
Muito obrigado.
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o PASSE
J d e ~ d e l 9 9 J
Bom dia. Hoje trabalharemos sobre a ques
tão do passe. uma questão verdadeiramente densa
e complexa.
Parto de uma constatação que fiz, e que ou-
tros além de mim devem ter feito: há alguns anos
eu tinha um analisante que concluiu sua. análise
tornando-se analista. Durante esta análise, eu fi-cava freqüentemente como que maravilhado pela
capacidade de invenção deste analisante, pelo modo
como ele metaforizava as questões do real, pelamaneira como ele respondia a elas, e pela forma
como ele pôde concluir sua análise. Alguns anos
depois do fim de sua análise. ele veio a' inscrever
se em uma das numerosas institu ições de psicana
listas que existem em Paris, e enviou-me uma car
ta dizendo que. pela primeira vez, testemunharia
publicamente de sua experiência de jovem analista.
Fuí, então. ouvi-lo. O que mais me impressionou
quando o .ouvi falar foi que eu, que durante anos
ALAIN DlOl'ER-WEILL LACAN E A CÚNICA PSlCANAÚTICA
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fôra a testemunha de sua invent ividade, pude compreender o preço que lhe custou o fato de falarem uma associação guiada por uma certa ortodo
xia: sua palavra, rica em invenção, havia-se profundamente empobrecido. No discurso extremamente tradicional que ele sustentava, eu não po
dia mais reconhecer nenhum traço do sujeito
metaforizante que eu havia escutado durante tan
tos anos.
A questão que se coloca é a s e g u i ~ e : como
podemos dar conta de um dualismo segundo oqual haveria um lugar privado, o lugar da análise,do divã, que se prestaria àpossível criação do sujeito, e um outro lugar, o lugar público, no qual oanalista deve dar conta de sua experiência diantede seus colegas, lugar no qual só se ouve um dis
curso que, para não destoar da ortodoxia, não mais
daria lugar à sua a c i d : ~ d e de invençã.o? Con:to.portanto, devemos compreender um tal dualismo?
Caberia dizer que as sociedades psicanalíticas tradicionais orientaram-se no sentido destaclivagem, apoiando-se na idéia de que s6 um sujeito de exceção, Freud, ou La can, seria capaz deultrapassar esse dualismo, sustentando um dis
curso capaz de estabelecer uma continuidade entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em
66
extensão. Lacan, insurgindo-se contra esse
dualismo, teve uma idéia genial, que eu formularia através da seguinte questão: será que o ato de
objetivar um sujeito de exceção num homem decarne e osso não seria uma defesa contra o fato de
reconhecer que existe um outro sujeito de exceçãoque é o sujeito do inconsciente, sujeito que podefalar não no dualismo, mas a partir de um ponto
de vista terceiro, o ponto de vista da divisão?
Freud já havia observado coisas dessa ordem.
Por exemplo, num texto em que ele evoca sua relação com seus alunos, ou com alguns de seus alunos, sem nomeá-los, ele diz algo assim: "Temos aimpressão de que aquilo que eu elaboro na psicanálise, um aluno só anseia por aceitar, em dar seuassentimento, mas de fato eu, Freud, sinto nissouma espécie de frieza, de inafetividade, de tal ma
neira q ue o sim que é dado desse modo à teoriado inconsciente é um sim que parece não se presta r a nenhuma conseqüência". Implicitamente,Freud coloca a seguinte questão: "Será que o fato
.de que conscientemente o eu diz sim significa queo inconsciente também diz sim?".
Para ilustrar essa questão, lembro-lhes o que
sucedeu a alguns discípulos de Freud, comoHartmann, Kris e Loewenstein, que promoveram,
67
ALAIN DIDIER-WEill LACAN E A CÚ N ICA PSICANAÚTICA
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nos Estados Unidos, a teoria do eu autônomo.
Como devemos compreender o faro de que, u a n ~do em algum momento Hartmann trabalha coinFreud, ele está em posição de dizer sim ao inconsciente freudiano e que, vinte anos depois, sua teo
ria manifesta que ele diz não a esse mesmo in
consciente? Deveríamos supor que ele evoluiu, ou
devemos compreender que, quando ele dissera sim,
vinte anos antes, ele, sem o saber, já havia dito
não, e que o tempo transcorrido não fez mais que
revelar o fato de que o seu sim, de ordem euóica,era de fato um sim que velava a ausência de um
sim inconsciente. Isso me evoca a leitura que f12
de um texto de Platão, o Teeteto16, no qual há um
diálogo, absolutamente apaixonante com relaçãoa isso, entre o estrangeiro e Teeteto. Quando este
combate a posição dos sofistas, o aluno respondeao mestre: "Sim , sim, estou de acordo com a sua
demonstração, o senhor tem toda a razão". Em
resposta, o mestre diz algo assim: "Como posso
saber se este sim que você me dá, você não o teria
dado aos sofistas, se você tivesse tido um mestre
sofista? O que garante que você próprio está inti
mamente convencido desce sim? Será que posso
sabê-lo?".
16. N. do E. Ver PLATÃO. Thlítrte . Trad. de MichelNarcy. Paris, Flammarion. 1995.
68
Podemos supor a estupefação do aluno, que
imaginava que bastaria dizer sim para que este sim
fosse em si mesmo uma prova. Chegamos assim àidéia, analiticamente formulada, de que o enunciado do sim não prova que haja uma enunciação do
sun.
Farei uma sumária comparação entre essaaptidão a dizer sim e aquela que chamamos em
francês o b l n í ~ o u i ~ o u i [bendito-sim-sim] 17• O interessante da fórmula francesa é que ela faz ouviruma repetição do sim, o estar de acordo na di
mensão da repetição , que se opõe àquilo que denominamos a insistência. A insistência do sim écoisa inteiramente diversa da repetição do sim. Ainsistência do sim é aquela que o inquisidor si tu aria no princípio do perseverare Jiabolicum do herege.Se o herege é um sujeito, um mau sujeito, é que a
relação que ele cem com o significante não é a deum si m qu e se repete, é a. de um sim que insiste,
ou seja, de um sim que encontrou o consentimento do inconsciente.
17. N. do T. Em português a expressão que
co rresp onde em sentido a esta expressão francesa é VQCa
de presépio. Mantivemos, no texto, a expressão original e
sua tradução literal em função do valor ck aliteração do
sim, presente na expressão francesa, e que é retomada pelo
autor na seqüência de sua exposição.
69
AlAIN DIOIER-WEJLL lACAN E A CÚNJCA PSICANAÚTlCA
7/28/2019 Didier Weill Alain Lacan e a Clinica Psicanalitica
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O sim consciente é, então, um sim no qual o
eu proclama que é fiel, fiel porque o fato de queele diz sim garante que de é o bom moço, que ele
é gent il. enquanto o sim do inconsciente é um
sim que só pode ser proferido em absol uta soli
dão: quando proferido, nada garante ao sujeito que
ele terá o acordo da autoridade, sej:1 ela qual for, e, é a. partir daí que a significação do autorizar-se, au-
torizar-se por si mtsmo encontra seu princípio. Vejamque há .dois "s", há o autorizar-se e ha o si mesmo.
Tudo o que a instituição quer é reconhecer seusmembros, autentificá-los, autorizando-os a serem
membros. Ora, o que especifica o sujeito do incons-• ciente é não ser aucorizável. Portanto o autorizar-se
cria imediatamente um perigo para a instituição,pois se o sujeito autoriza-se por si mesmo, o que
será da autoridade da instituição que sustenta sua
legitimidade, e sua força, no fato de que ela aútoriza.analistas a serem analistas? Isso foi, em todo caso,
o que se passou no infcio entre a IPA e L.acan. AIPA tirava seu poder de autorizar, pois, autorizao- .
do sujeitos que aceitavam esta autoridade, da fun-
damentava sua própria autoridade. Compreendemoso horror desta instituição venerável quando Lacancolocou no frontispkio de sua Escola: "O analistanão poderia autorizar-se senão por si mesmo". Ainstituição, a partir daf, não teria caducad'o?
70
É neste ponto que Lacan responde com o
passe. A hipótese que ele faz é que o fato de que o
sujeito se autorize po r si mesmo não o lança numa
so lidão absoluta de ordem mística em que ele só
teria que prestar contas a si mesmo. La can supõe
que o ato de se autorizar não é somente o ato pelo
qual o sujeito faz o ato de se tornar analista; étambém um ato dotado de tra.nsmissibilidade, ou
seja. um ato que pode ser retirado do campo do
inefável para ser transmitido a terce iros.
Esse aspecto nos aproxima muito do problema da sublimação, na medida em que, ta l como
Freud a situou, a sublimação é a produção de algo
qu e se transmite sozinho. Não é necessário fazer
militância em torno de Louis Armstrong ou Sidney
Bechet u ~ d o eles fazem música, porque há algoque faz com que o que já se constitui como um
produto se transmi ta sozinho. Em contrapartida,
para que algo se transmita é preciso que haja ou
vintes que falem desse algo. Esses ouvintes cons
tit uem o que Lacan chamou de passadores , os re
ceptores da palavra do pa.sse 18• Formulo assim (mot
18. N. do T. A expressão utiliz.ada pelo autor no
original é mot J, passe, literalmentet ~ l s r v n ~
Je ptmt, formapda qual optamos na t r<1dução. Cabe esclarecer que, em
francês, moi tiL fH'SSl e mot à'tSprit (chiste, às vezes t u.duzido
71
•
ALAIN DIDlER.WEILL LACAN E A CLiNIQ< PSlCANAÚTICA
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de passt ] porque o modelo que Lacan utilizou para
justificar o mecanismo do passe foi o modelo do
chiste [mot J)esprítJ. O chiste tem a particularida
de de que, uma vez produzido, ele se transmite
sozinho, não é necessária uma instituição para
transmiti-lo.Ele se transmite sozinho. boca aboca,tanto mais quanto o próprio autor do chiste éesquecido. Quando contamos uns aos outros to-
das as histórias engraçadas de que lembramos num
bar, esquecemos que estamos em dívida para com
o produtor dessas histórias. Quanto mais essaspalavras são proferidas, mais guardam seu sabor.Quanto mais se transmitem, mais atestam a força
de transmissão que lhes é própria. E não se sabemais qual é o patron(mico do autor, tornado anô-
namo.
Essa palavra de passe será ou não ouvida pelo
passador? O p a ~ s a d o r é alguém a quem é deman-dado dizer sim, caso ele a ouça, mas não de dizer
o sim da vaca de presépio19, o sim de um funcio-
nário. Este é um termo que Lacan empregou, ele
como Jiro tspirituoso) têm, ambas, a mesma estrutu ra mot dt ..
Cabe observu que em seu emprego usual a expressão mot .
Je pust significa stnhtt, sentido também pttsence no p-.sse
p o r q u < ~ n t o trata-se para o pusante de pronunciar a palavra que o faz passar.
19. N . do T. No origina(. n i - - o t ~ i - a ~ ~ i Cf. nota 17, p. 69.
72
disse que esperava que os passadores não fossemfuncionários do inconsciente. O passador, assim.
é alguém que é suposto poder ouvir. isto é, supos-
to poder dizer sim inconscientemente.
Observarei, contudo, o seguinte: um amante
da música é perfeitamente capaz de ouvir uma música, de ouvi-la perfeitamente bem, sem que por
isso lhe seja exigido produzir mús ica. Quanto ao
passador. é a mesma coisa: não é porque ele é capaz de ouvir que lhe será exigido poder falar no
mesmo nível em que ele ouve. É por isso que opassador não é o passance, sendo este último al-
guém que está, em princípio. em posição de se
fazer ouvir. Assim, o passador, e isso faz parte das
co isas que escandalizaram os \•eteranos. é alguémque, estando no posto de comando do dispositivodo passe, é um jovem; para os veteranos, o fato de
que seja um jovem quem está na porta de entrada,po r assim dizer, da instituição, na qual até mesmo
um "velho" pode demandar entrar, fazendo o passe,
equivale a colocar o mundo de cabeça para baixo.
Lacan visava significa r com isso que o analista; no fundo, ·não é como o vinho que se aprimora envelhecendo, pois o analista, com a idade,
tende a esquecer aquilo mesmo que fez dele umanalista, podendo instalar-se na hierarquia, na
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honorabilidade, para esquecer o ato fundador, casoeste tenha ocorrido, pois às vezes ele nunca ocor·
reca. A mantermos nossa analogia com o chiste, o
passador será assim aquele que ri do chiste, ouseja, aquele por quem a mensagem é bem entendi
da, aquele que diz: "Captei cem por cento".
O problema é que em seguida o passador teráque falar, deverá encontrar palavras para traduzir oque ouviu. E eledeve fazê-lo a um júri - pois é assim
que é denominada a instância àqual ele- fala -. úri
que eu compararia ao público que recebe a mensagem do chiste, júri dividido por aquilo que ouviu
do passador: pois bem, houve um passante. No a
posteriori, após esses dois a posteriori, podemos dizerque algo passou a este t erceiro que é o público.
Isso coloca duas formas absolutamente opos
tas de encarar a transmissão da psicanálise: trata
se de uma transmissão que em suma faz fé nopoder da transmissão própria do significante quando articulado, e veremos mais adiante qu e esse famoso significante é aqúele que Lacan denomina
S (t ). Ele escreve na primeira versão da Proposiíio
(1967)2.0
que to do aquele que a r t i c u l e S ( ~ ) sem
20 . N. do T. Cf. "Proposição de 9 de outubro de1967: primeira versio", Opf6o ÚC4nÍIInll n. 16, agosto de1996. p. 5-12. Trad . Paulo Siqueira.
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passar pelos protocolos tradicionais de reconhecimento é um passante da psicanálise, o que ele
chama de AE (analista de Escola).
Podemos num primeiro momento opor dois
tipos de transmissão: aquela que é própria ao
significante S (/f.) quando ele é articulado, transmissão que faz com qu e ele se transmita sozinho,
e aquela que depende da militância. Dizer que S (1/Jtransmite-se sozinho é perigoso para quem? Para
todos aqueles que pensam que Freud e Lacan nãopodem transmitir-se sem aparelhos de militância,e que se não houver militância, Freud e Lacan es
tarão em perigo. O ato de militância baseia-se na
id éia de que o pai está fundamentalmente em pe
rigo: se não se milita por ele, ele decairá, definhará.
A esse respeito, aquele qu e nada nas raias da
militância considera qu e a transmissão da psica
nálise passa pelo ato de tomar esta ou aquela cidade, este ou aquele hospital, dispensário ou ins
tituiçãc;>. e que a transmissão da psicanálise é como
jogar Banco Im obiliário: adquirir um palácio aqui,
duas casas bem situadas acolá , e assim por diante.Em suma, o militante não crê no poder de t r a n s ~missão de S (f..).
Gostaria de lembrar-lhes de que a psicanálise começou a ser transmitida sem instituições.
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ALAIN DlOlEk-WEILL LACAN E A CLÍNICA PSlCANALÍTIC"
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Quando Freud escreveu seus primeiros grandeslivros, como a Interprttllfão de S<>nbos ( I900), não
havia analist as para ouvi-lo, nem instituições. No
início, na au sência de instituições e de analistas,houve um poder próprio ao que existia na palavrade Freud que fazia com que ela se tenha transmi
tido e chegado a nós, hoje. Podemos inclusive su
po r qu e a força com a qual Freud articulava o que
Lacan chamou de S(-i) levou-o , por sua vez, a
supor que muito antes que nós, qu e estamos hoje
aí, existíssemos, um dia esta ríamos aí para ouvirsua mensagem. D iria mesmo qu e se hoje estamos
af para falar sobre isso, é porque houve na cabeçadesse cara que se chamava Freud a possibilidade
de supor uma transmi ssão que requeria uma ore
lha de analista que é a nossa, hoje. Vocês vêem,
portanto, dois t ipo s absolutamente dissimétr icos
de t ransmissão.
Para levar mais longe esta ;malogia feita po rLacan entre pal.wra de passe e ch is te, eu lhes con
tarei, sem dúvida relembrando -a a vocês, urna das
muitas pequenas his tórias juda icas que Freud no s
con ta em Cbistts t sua r e ~ i o com o ínconsâtntt ( I 905).
Uma dessas histórias põe em cena um casamenteiroe um pretendente, ou seja, um homem que vem
demandar uma mulher a um outro. Há nisso um
dispositivo muito simples, que para nós é bastante
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interessante porque o casamenteiro está verdadeiramente na posição do analista que ouve a demanda
desse analisánte que é o pretendente, e que de
manda a um sujeito suposto saber o que ele deseja,is to é, a mulher de seus sonhos. Nesse di álogo
entre o pretendente e o casamenteiro , entre o
analisante-pretendente e o casamenteiro, o que se
passa é sempre a mesma história, mas escolhi esta
porque é preciso escolher alguma. O pretendentechega com o casamenteiro no endereço combiruldo e
o casamenteiro diz: "Você vai ver, ela é o máximo".Batem na porta, a porta se abre, e aparece a prometida. O pretendente desesperado volta-se para
o casamenteir o e lhe diz: "Mas afinal de contas,
ela é corcunda". O casamenteiro lhe responde:"C la ro, mas isso não tem problema, os homens
não olharão para ela, você poderá ficar tranqüilo" .O pretendente retruca: "Mas, faça-me o favor, elaé assustadora, ela é caqlha". O casamenteiro r e s ~ponde: "Escute, isso é na verdade muito bo m, elanão olhará os homens, só pensará em você".-"Mas , além de tu d o, ela parece muda" . Ocasamenteir o diz: · ~ s s i m ela não te encherá os
ouvidos o dia inteiro". E aí, o pretendente, furio
so , compreende que está diante de um vigarista
absoluto. E então o casamenteiro lhe diz: "Sabe,você pode faLar alto, ela também é surda".
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AlAJN DJOICR-WEJLL lACAN E A CLINICA PSICANAÚTICA
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•
A história acaba aí. Mas, para mim - já que
não conhecemos sua continuação - o verdadeiro enigma desta história é que o pretendente, após
um tempo de sideração, faz como nós, cai na gargalhada. E se ele cai na gargalhada; é porque compreendeu algo de fundamental. Talvez ele não possadizer o quê, mas o simples fato de que ri indica
que compreendeu que o casamenteiro efetivamente
não está mais para ele na posição em que estava
instalado, numa relação paranóica, de desconfian
ça e de traição absoluta. Se de ri, o que se passa éque ele compreendeu seu verdadeiro desejo, que
não é o objeto sexual. Ele compreendeu que, paraalém do objeto sexual, há um outro desejo, o dersejo de fazer reconhecer que ele pode existir sem
o suporte do objeto enquanto objeto colado ao
sujeito - . cola que Lacan denomina princípio deprazer, a coalescênda do objeto a com o signi
ficanteS(/..) . E podemos dizer que, além do princípio de prazer, trata-se do descolamento entre o
objeto e o significante. Minha hipótese é a de que
o rir, que neste momento eclode do pretendente,
no qual ele aba ndona sua demanda e passa ao
desejo, revela que ele entra em relação com o
significante fundador da palavra; ele passa da
desconfiança à confiança na palavra. e poderf.amosdizer que isso é o surgimento deste além do
78
princípio de prazer que é a pulsão de morte, que
não deixa de te r relação com o que dizíamos on
tem a respeito da pulsão invocante.
Esta pequena história nos testemunha de que
o desejo que Lacan chama desejo de um outro
bem, de um bem em segundo grau, para além do
objeto, é t r a n ~ m i s s í v e l ou seja, não é imposs!veltransmiti-lo.
Eu colocava os princípios teóricos da exigên
cia, da necessidade do passe para sair do dual ismoque invoquei; falei-lhes então rapidamente deste
dispositivo imaginado por Lacan para deter essepossível empobrecimento da transmissão, dispo
sitivo do qual. lembro-lhes, Lacan esperava um
ensino rival ao se u. Ele esperava com efeito que
do passe adviesse a produção de significantes novos que rivalizassem com seu próprio ensino, poisLacan, contrariamente ao que muitos pensam, nãotemia absolutamente um ensino rival, mas, ao con
trário, ele o ~ u s c a v a e o pedia. Para Lacan, a únicajustifi ca t iva da Escola Freudiana em relação à IPA
era o passe, visto que este representava, na Escola,um lugar não subordinado ao poder, um lugar onde
o recalque podia ser posto em cheque, onde a trans
missão universitári a da psicanálise se interrompesse, batesse em retirada.
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ALAIN DlDIER.WEJLL
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Posto que a idéia de Lacan era a de que, na
IPA, só havia o discurso universitário. a justifica
tiva que ele poderia dar para a Escol 'l Freudiana
era dizer que em sua Escola havia discurso analí
tico. Quando Lacan deu lugar ao ensino universi
tário, ele nomeou um responsável -Jacques-Alain
Miller, a quem ele havia confiado responsabilida
des em Vincennes - por este ensino, ou seja, ele
o situou fora da Escola porque era predso este
fora para que fosse sustentado o discurso univer
sitário.É
marcante observar que,h i s t o r i c a m e n ~ ,
foi o reconhecimento do fracasso do passe que
fez com que Lacan deixasse de sustentar o univer
sitário fora da Escola e o tenha feito passar _a seu
tntenor.
80
INSISTUIÇÃO
PROPOSTA DE UM PROCEDIMENTO
DE PASSE TRANSINSTITUCIONAL
Conferência proferida na sede
do Corpo Freudiano
Pesquisa e Transmissão da Psicanálise,
em 15 de abril de 1997.
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,
INSISfUIÇÃ01
proposta de um procedimento de
passe transinstitucional
Falarei esta noite acerca de um projeto que
estou propondo a alguns amigos com quem tra
balho. Como tenho amizade por vocês, vou compartilhar isso esta noice.
Trata-se de pensar um tipo de procedimento, de laço social encre analistas, que concerne
àquilo de que nos ressentimos com muita freqüência em nossas associações.
J. N. do T. Cabe assinalar que a palavra-chave do
título - lnsistuição (Insistuition) - é um neologismo
metafórico, que como tal condensa duas outras palavras
- insistência (in.risttmct) e instituisão (irutitutíon) -criando
um sentido novo que afeta a estabilidade repetitiva e
monótona da instituição, inoculando-lhe a dimensão da
insistência própria ao inconsciente, que obriga ao não
esquecimento do desejo, já que o princípio do prazer
tende a produzir sistematicamenre este esquecimento.Agradeço a gentil colaboração de María de Lourdes
Fernandes e Teresinha Costa na transcrição, e de Miriam
Aparecida Nogueira Linu na revide.
Al.AIN 0101ER-WEILL V.CAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
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Isso ocorre porque, nas associações definidas por um dentro e um fora. a própria existênciade um tal limite entre um interior e um exterior
freqüentemente nos faz sentir de forma cruel queno interior da associação falamos Jo inconsciente,mas não obrígatoriamente com o inconsciente.
A idéia, pois, é a de ver como poderíamos fazerpara falar do inconsciente com o inconsciente,: mnosso inconsciente, quer i z e ~ de modo tal que nãoseja apenas através do divã e da poltrona que se faça
o enunciado dessa relação. Isso não deixa de estarrelacionado com o passe, mas não é o passe.
Parcirei de uma reflexão sobre o passe antesde chegar a esta proposição.
Primeiramente, qual foi a exigência que fezcom que Lacan inventasse o dispositivo do passe?
A partir do que está na proposta do passe, Lacanfaz a seguinte observação: se Freud confiou a transmissão da psicanálise à lPA, conhecendo suficientemente a estrutura do grupo. que ele hav ia analisado nos textos que escreveu sobre o Exército e aIgreja, para saber que esta instituição recalcaria asua mensagem, é porque apostou no recalque comomeio de transmissão da psicanálise.
Sobre isso, Lacan fez sua hip6tese extraordinária: Freud tecia considerado que o recalque seria
um meio eficaz de transmissão da psicanálise, namedida em que o recalque, contrariamente àforadusão, conserva, e o que ele conserva escondido
pode com o tempo sair do recalque. Tendo formulado isso. Lacan se opôs a este tipo de transmissão inventando o passe porque a idé ia do passe é aidéia de uma transmissão sem recalque.
Mas se o passe era a única justificação daEscola Freudiana1 em relação à IPA, no momentoem que Lacan constatou que o passe, por razões
que analisaremos juntos , resultou num fracasso,ele dissolveu a Escola.
Podemos c;onsiderar que naquele momentoele volcou atrás, voltou ao. modelo freudiano etalvez tenha dito para si mesmo que não podiafazer melhor que Freud. Naquele momento confiou a transmissão da psicanálise a uma institui
ção que não eraa IPA. mas uma instituição dirigidapor antigos un iversitários, a Escola da CausaJ.
2. O autor refere-se à Escola Freudiana de Paris(Écou Frtwrlimnt J, Paris), fundada em I 96 4 por Lacan.
3. Aqu i a referência é à Escola da Causa Analítica(Érolt Jt Ia C11usc An11lyti91U), fundada após a dissolução,
feita por i....lcan em 1981, da Escola Freudiana de Paris(Éeou Fmulimnt Je PRris) , a que S t refere a nota anterior.
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AU.IN DIOIER..WEILL U.CAN E A CLÍN ICA "PSICANALÍTICA
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Podemos supor que ele apostou no que, segundoele, Freud havia feito no seu ensino: que, norecalcamento desse ensino, repetia-se o penhor de
sua conservação. na medida em que a suspensãodo recalque sempre é possível. Talvez de. que sempre disse que a psicanálise só poderia sobreviverna dimensão do conflito, tenha especulado sobreesse conflito entre aquilo que recalca e quecontesta o recalque. O mesmo sempre fez com aIPA e também com seus próprios alunos.
Parco de fenômenos concretos que são pontos de justificação da invenção do passe. Que analista não ceve a ocasião de observar algo que eupude observar, mas sei que não fui o único a fazêlo? Há alguns anos um dos meus analisantes. quehavia terminado sua análise vários anos antes, convidou-me a escutar sua primeira conferência na
insti tu ição na qual ele havia situado seu trabalho•.Este analisante tinha a particularidade de te r
4. N. do E. Ainda que o autor retome este fato e,nuis adiante, a história do pretendente e do casamenteiro,que são trabalhados na lição sobre o passe (p. 65-80),
decidimos manter integralmente o conteúdo de suas exposições unu vez que as mesmas não só se deram em
diferentes momentos de seu trabalho no Brasil como.servem a diferentes desdobramentos clínicos e teóricos.
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sustentado no divã um discurso panicularmentecriativo e inventiva. muito metaforizante, quepessoalmente me ensinou muita coisa. Às vezes eu
tinha o sentimento de o estar ouvindo em um seminário de psicanálise muito inspirado. Contu
do, fiquei muito espancado na primeira vez queeu o vi falar em público , porque toda aquelainvencividade de que eu havia sido testemunhahavia-se tornado um discurso perfeitamente ortodoxo que respondia àquilo que a instituição es
perava dele, um discurso conforme a instituição.O paradoxo era pois o seguinte: dualidade dediscurso pondo em evidência que um discurso
criativo pode acontecer na intimidade do lugarprivado analítico e em oposição a um discursoconforme. t radicional, no lugar público, como seeste implicasse que a invenção meta fórica fosseempobrecida. Como se a palavra metafórica não
pudesse passar em público e, inversamente, comose a palavra pública não pudesse mais se dirigir aoinconsciente.
Pode-se dizer que ·este dualismo obedece à
ideologia burguesa da vida privada e da vida pública. Será que isso é inexorável? Este caso queacabo de citar não obedecia a uma organização. a
coisa se fez sozinha, mas a IPA tinha a particularidade de organizar um tal dualismo. ela o desejava
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AL\JN DJDlER-WEJLL LACAN E A CUNICA PSICA.NAUTICA
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inteiramente e tendia a instaurá-lo. Na época da
crítica de Lacan à IPA , os candidatos a análise
acompanhavam o ensino público na dimensão da
extensão que era completamente cortada da dimensão da intensão que é o lugar do divã analftico.
A questão é: como pensar, se é que isso é pensável,
todo o problema da articulação da extensão com a
intensão?
É preciso reconhecer que no meio psicanalí
tico há uma tendência geral de considerar que é
preciso ser um sujeito excepcional, um Freud, umLacan, para sustent.ar um discurso de analisando
que escape ao privado para passar ao público. Freud
fal a a partir de seus sonhos e Lacan fala como
analisando em seus seminirios. No fundo, o pas
se coloca a seguinte questão: se o sujeito do in-consciente é um lugar terceiro que substitui o
dualismo discurso privado/ discurso público por
um só discurso porém dividido, isto é, se o sujei
to do inconsciente produz a divisão no lugar do
dualismo, não ~ e r i a uma defesa dos analistas
objetivar o sujeito de exceção em um homem ex
cepcional. o que impede de reconhecer o verda
deiro sujeito de exceção que o sujeito do in-consciente, próprio de cada um? O que seria pre
ciso a uma palavra privada para que pela voz pú-
blica ela se dirija ao íntimo de cada um?
88
Lacan tomou o chiste5 como modelo do que
pode ser a palavra de passe. Ninguém sabe quem in
ventou o chiste. Observaremos, no entanto, que a
particularidade de um chiste, quando espirituoso, ésua capacidade de encontrar auditores, ouvintes, é o
fato de que o chiste se transmite no público de boca
em boca segundo uma transmissibilidade que não
demanda militância. Isso é muito importante. Diria
que, no chiste, o que vem no lugar da militância é o
poder despertado por aquilo que podemos chamar
depulsão invocante, quer dizer, o movimento que
leva a uma palavra que adquiriu as caracter!sticas da
cransmíssibilidade do desejo inconsciente. E por isso
que a palavra de passe buscada daria a possibilidade
de falar do desejo inconsciente com o desejo incons
ciente e não descrevendo-o no quadro negro.
Uma das histórias de chiste de Freud com a
qual significamos o que deve se passar, o que deveacontecer para que uma palavra tenha acesso ao
5. N. do T Em francês, a expressão que designa o
tbistt é mot J'csprit (literalmente a l i l v n ~ tspirituosa, ou dito s p i ~rituoso, como o Wrtzdo alemão de Freud é às vezes tradu-
zido em português) o que permite ao autor jogar com o
emprego de outras txpr.essóes contendo o termo pa l#V I'II ,
como no caso frase em foco. em que aparecem moi
J'cspr it e àe pasu, que traduzimos como a i A 1 1 r ~ ~ Je passe.
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AI.AlN OIOIER-WEILL lACAN E A CU NICA PSICANAÚTICA
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espírito e à transmissão, é a história do casamenteiro
e do pretendente. Éuma situação que nos interessa
muito porque podemo's dizer que o pretendente é
o analisando que pede ao casamenteiro , que é oanalista, que este lhe dê o objeto dos seus sonhos.
O pretendente pede ao casamenteiro a mulher de
seus sonhos e este diz:: "Eu achei!" e o levá, batem
à porta, a porta se abre, o pretendente fica aterro
rizado, vai ao casamenteiro e diz: - "Ela é corcun
da!?"- "Émelhor s s i ~ porque assim ninguém vai
alhar para ela, pode ficar tranqüilo!"- ·:Mas ela é
anã!?"- "Sai muito menos caro para vestir .."- "E
ela é cao lha! ?" - "Ela não vai olhar para os outrosh " "M .mens... - as, casamentetro .. eu não quero
mais me casar ..!?" - " Pode falar mais alto, ela é
surda também!".
O interessante é que podemos aventar a se
guinte hipótese: da mesma maneira que nós ri
mo s, podemos supor que também o pretendente
riu. Pode-se supor que , como o analisando, ele fi
co u siderado pela intc: .pretação genial, que com
preendeu e ao mesmo tempo não compreendeu
inconscientemente no que consiste a interpreta
ção, sem entrar em detalhes. Segundo me parece,
a significação fundame·ntal. o sentido da interpre
tação é que durante todo momento do diálogoem que o pretendente descobre que o casamen te iro
90
é um enganador, é que de está na demanda abso
luta, ele se sen te e se situa como inteiramente de
finido pelo objeto sexual, sua identificação está
ligada ao objeto. E pode-se dizer que a interpretação do casamenteiro faz cair a dimensão do ob
jeto, faz com que des apareça uma questão para que
uma outra surja: ao desaparecer a questão "Quem
sou eu em relação ao objeto?", surge uma questão
mais profunda em que apaw:e não mais um objeto
que determina a identidade, não ''Quem sou eu?",
mas "Sou eu?", "Sou eu quando não objeto?".
Essa questão do "sou remet e à pulsão na
medida em que a pulsão se enraíza no significante e
não no objeto. A questão mais radical. aquela do
"sou eu?", aquela do sujei to , é mais profunda do
que aquela do eu estar em relação com o objeto.
Eu diria que é ne ste momento que nasce a invoca
ção, quando o sujeito não é mais de terminado pelo
objeto mas pelo significante, is to o coloca em
outro movimento em que ele descob .e que a ques-
. tã o f u n d a m é a da e"iscência. E quando ri
mos desse chiste é porque inconscientemente ri
mos da alegria de existir como sujeit os da palavra,
e não su jeitados a um objeto.
Lacan , em sua proposição sobre o passe, diz
que a maneira (e s6 há uma) de atestar que houve
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Al.AIN DIDIEit-WEILL L.ACAN E A CUNICA PSICANALÍTICA
7/28/2019 Didier Weill Alain Lacan e a Clinica Psicanalitica
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pass e é ouvir que o passance ar t iculou umsignificante que é o famoso significanteS (/ .). Eacrescenta que isso nada cem a ver com os procedimentos de habilitação da IPA , de ser aprovadopor cal ou tal instância hierárquica: quem querque venha a articular esse significante, terá substituído o fato de ser reconhecido por uma hierarquia pelo fato de que o sujeito não tem que serautorizado mas autorizar-se por si mesmo. Há aíum enigma que é este "se". O que é este autorizar-se por si mesmo?
Quando Lacan fundou a Escola Freudiana em1964, ele o fez sob esta frase: "o analista só poderia autorizar-se por si mesmo". Imediatamentehouve uma grande reação de uma boa parte dacomunidade analftica, particularmente da IPA,naturalmente, cuja primeira acusação foi a seguinte: "Qualquer canalha vai se instalàr como analis
ta, pois, não havendo nenhum controle, fica-se·s implesmente em função da subjet ividade daquele que diria: 'Eu sou analista' ".
Isto aliás não é completamente falso, po rquehouve canalhas. Trata-se de um problema que é,
todavia, mais profundo. O analista só poder autorizar-se por si mesmo coloca um perigo. pela
razão seguinte: quando na IPA um candidato pede
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para autorizar-se, pede para ser autorizado, paraser nomeado analista, é preciso reconhecer que é aIPA que é nomeada, autorizada. A identidade daIPA vem do fato de que, nomeando um analista, éela que, na verdade, é nomeada. Uma tal estruturaé necessariamente contestada de maneira radicalse o analista só se autoriza por si mesmo. Então, aquestão que se colocou a Lacan e que continua aser colocada a nós é a seguinte: se verdadeiramente nós nos autorizamos por nós mesmos, e se damos à nossa instituição uma significação diferen
te d a q u e l ~ ·que os membros da IPA dão à sua pró
pria inst ituição, que significação damos nós a
nossa instituição?. - ,.. ,
Para assumtr es ta questao, tres anos apos aproposição do passe, Lacan acrescentou à sua fórmula inicial - o analista só poJeria autorizyr-sepM si
mesmo - crês palavrinhas que introduzem o passe: o
analista só poderia autorizar-se por si mesmo epor alguns outros. Visto que a palavra de passe é ofamoso s i g n i f i c a n t e S ~ antes de lhes falar do
procedimento que tenho em mente, quero falardo paradoxo que há nest e significante. Um talsignificante implica que o falante, quer di:zer, aquele que articula o S ( transmite sua divisão. Não
se trata portanto do dualismo do qual anterior-
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ALAIN OIOIER-WEILL LACAN E A CÚNlCA PSICANALÍTICA
7/28/2019 Didier Weill Alain Lacan e a Clinica Psicanalitica
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mente falamos. Quando ouvimos um sujeito dividido, que fala, qua1 é a posição do receptor? Examinaremos depois a posição do emissor.
No dispositivo de Lacan havia. dois tipos de
receptores, o passador e os membros do júri. Como
definir o que acontece com aquele que ouve esse
significante que tem a estrutura de um chiste? oouvinte é remetido à sua própria divisão. Este fatofaz com que ele diga sim a alguma coisa mas sem
saber a quê . Em outras palavras, para se ouvir aqui
lo que introduz imediatamente a dimensão e s p ~ -rituosa, como diz Freud, não é necessário um sa
ber teórico mas o desaparecimento da censura do.
ouvinte. Em outras palavras, a relação do passador e dos membros do júri com seu próprio
supereu desaparece e a estrutura do eu é também
dissipada.
Sustentamo-nos em nosso supereu. O supereué em nós aquilo que quer que ouçamos o já sabido
e que nada nos surpreenda. pois se h.á surpresa. osupereu desaparece, sua sobrevivência depende de
que não haja surprésa. O perigo é que temos, pro-
vavelmente, uma rdação su pereuóica com a pró-
pria teoria psicanalítica. Cada um de nós adquiriu
um saber que lhe é caro, o saber já sabido, e quandonos agarramos a esse saber já sabido, não estamos
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ainda prontos para ir em direção ao ainda não sabido. O supereu admite que um não saber possa
su rgir, desde que seu aparecimento não faça o sa
ber já sabido desaparecer. Por exemplo, não háproblema, para o supereu, que possamos adquirir
um suplemento de saber numa aula de geogra fiana universidade, mas o que ele não quer é que o
saber já sabido desapareça. Será que somos capazes de escutar um analista. que, produzindo o
"significante de espírito"6, leva-nos a renunciar
àqui lo qu e já sabíamos, de maneira ta l qu ereexaminemos nossa relação com o saber de uma
maneira completamente diferente para dar lugar aum novo significante que aparece?
Assim, o passador, para Lacan, é aquele que écapaz de se r um bom ouvinte, mas nem por isso
lhe é exigível ser um passante. Espera-se dele que. . .
possau v ~ r
um outro que se autortza por st mes-mo, que seja capaz de ouvir perfeitamente sem
estar necessariamente no ponto de se autorizar.Não é a mesma. coisa mas podemos compará-lo,
por exemplo, com um amante de poesia, que gosta
6. N . do T. Ver nota 5, página 89. Aqui, a expres
são significtJntt dt tsp frito é uma variante de "palavra de es
pírito", o que seria a tradução literal de mot d'esprit, que
signifaca chiste, em francês.
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AIJ.IN DIDIER..WEILL LACAN E A CLfNICA PSICANALITICA
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de poesia, que ouve a poesia, mas nem por isso vai
escrever poesia. Isso não 9uer dizer que ele não
esteja movido na direção de um dia tornar-se um
poeta. Se este movimento continuar, tende a trans
formar o sujeito, de ouvinte, em alguém que se
faz ouvir.
Gostaria de mostrar-lhes o quanto' a posição
do júri, particularmente a tarefa dos membros do
júri, é importante, a tal ponto que a não realiza
dessa tarefa levou ao fracasso do passe. O júri
unha duas funções: nomear ou não [o passantecomo analista], mas acima e antes de tudo, sim-
. balizar a experiência. produzir novas produções.
~ ~ r a c a s s o do passe consistiu no fato de que 0
JUrt nomeava, mas nada simbolizou. No que
c ~ n c e r n e a isso o júri ficou completamente silen
ctoso, não produziu um pensamento teórico novo.
Lacan chegou a dizer que esperava do júri um en
sino rival ao seu, ao nível de sua elaboração
significante.
Será que cada um de nós não teria que ser
membro do júri em relação a Freud? Reflitamos
um pouco sobre o fato de que, em geral, pensa
~ ~ s . ~ u e d i z ~ m o s síin a Freud. Mas será que esse
stm enunc1ado que damos a Freud é suficiente
para provar que dizemos inconscientemente sim a
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Freud? Não deixa de ser uma posição per igosa
considerar que Freud é nosso passante. Enquanto
analistas, temos 9ue ser o seu passador e, mais
que passador, alguém que diz em que lhe diz sim.
Quando se diz este "sim", mais que um enu·ncia
do , isto é uma enunciação. Um exemplo: no co
meço do século,.Freud estava rodeado de discípu
los, entre os quais Hartmann e Loewenstein, que
lhe disseram sim. Vinte anos depois, eles elaboram
uma nova teor ia analítica, que se transportou para
os Estados Unidos, a teoria do eu autônomo, quesignifica pura e simplesmente dizer não a teoria
de Freud, Então, o que isso quer dizer? Será que
em vinte anos eles mudaram de opinião? Ou será
que quando eles acreditavam dizer sim, eles não
sabiam que já estavam dizendo não? Não se trata
aqui de criticá-los. Coloco esta pergunta para cada
um de nós: como podemos saber se inconsciente
mente dizemos sim ao inconsciente de que fala
Freud?,E isso autorizar·se por si mesmo: não é trans-
mitir o que já se sabe, é torná-lo transmissível,
pois autoriza r-se analista não é um ato místico,
inefável, que nenhuma palavra poderia comentar.
Mas se este ato não é mfstico, é porque é preciso
tornar transmissível em que, naquilo <JUê dizemos
pensar, pensamos segundo a dupla inscrição, ou
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AL\IN DIDIER-WEILL -LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA
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seja, com nosso inconsciente, e que um ouvinte
possa ouvir isso. Se ele ouve, o fato de que sejadividido ao ouvir é um sinal da articulação desta
divisão.
Agora vou falar um pouco daquilo que acontece do lado do ouvinte, aquele que é capaz de
ouvir S (/.). O que garante que, em sua palavra,ela possa fazer-se ouvir?A grande dificuldade que
de imediato se coloéa é a seguinte: a partir do
momento em qu e falamos , não podemos não
esquecer o Outro de onde recebemos a palavra,porque se o ouvíssemos ao mesmo tempo em
que falamos, não poderíamos falar. É preciso
que haja um silêncio do Outro comparável ao
branco da folha branca que é necessário paraescrever.
Assim eu definiria o paradoxo de S en
quanto receptor, ouço o Outro sem poder aindame fazer ouvir, e, enquanto emissor falante, falo,
mas sem poder se r receptor ouvindo o Outro. E
quanto a isso eu diria que S(/.) é um significante
qu e nos retira desta dualidade para introduzir-
no s nesta célebre divisão , na qual sou ao mes-
mo tempo aquele que ouve o Outro e aqueleque se ouve enquanto receptor sem por isso ficaralucinado.
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O próprio deste significante, quando vem àpalavra, é que ele coloca o sujeito em relação com
o esquecimento original. mas com aquela parte de
inesquecível que há no esquecimento. E se o su-
jeito consegue fazer ouvir este inesquecível, esta
parte do inesquecível que se estabeleceu em sua
relação com o Outro, o sujeito faz ouvir quenão é estrangeiro ao estrangeiro. Emprego esta
dupla negação para dizer que é muito diferente
de ser idêntico ao idêntico. Por exemplo: quan-
do viajo e vou ao estrangeiro , o fato de que
posso não ser um estrangeiro ao estrangeiro define o tipo de identidade que recebo. e esta é a
paixão de viajar. Isso é muito diferente da identÍ·dade que resulta de ser idêntico ao idêntico. Mas
quando a identidade vem apenas do fato de ser
idêntico ao idêntico, estamos no princípio do pensamento fascista.
Ser não estrangeiro ao estrangeiro não estánas três identificações que Freud isolou. Éo prin
cípio da identificação metafórica da qual falaLacan, quer diz.er a identidade metafóriça com o
Outro. Quando o sujeito advém no lugar do Ou-
tro, ele não pode se identificar com o Outro, maspode não ser estrangeiro a este estrangeiro. É esu
o caminho da metáfora.
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Al..AJN DIOIER.-WEJl.LLACAN E A CLfNICA PSJCANALfTICA
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_ Agora, como definir o fracasso do passe, ou
SeJa. a não r a n s m i ~ s i b i ü d a d e do significanteS(IJ?
Considerando que houve casos de passe em que a
transmissão de S (/ .) teve lugar, podemos pergunta r o que terá reduz ido o júri à condição de não
produtividade.
Primeira observação: será que alguém que
ouve um testemunho sabendo que tem duas tare
fas a realizar- nomear e simbolizar- não en
contra dificuldades? Será que o simples fato de
saber que tem que nomear não cria condições desfavoráveis à simbolização? Para simbolizar, talvez
~ e j a _ r e ~ i s o estar livre de qualquer preocupação
tnstttuCJonal de n omeação.
Segunda b s e r v a ç ã o : se a palavra de passe tem
a_ e s t r u t u ~ a do chiste, será que não basta um que
na para dizer que houve chiste? Se concordamos
com isso, admitimos que o inconsciente não éd e m o c r ~ t i c o , nã:o se preocupa com o fato de que~ júri, seja ele qual for, seja ele um corpo de
JUrados do vestibul.ar, da universidade, da banca
examinadora, tenha que ser composto por um nú
mero ímpar de membros porque se for preciso
votar é preciso que se configure uma maioria. Isto
significa que a lei do grupo não leva em conta essa
especificidade do inconsciente. O inconsciente não
pensa e não procede senão por um a 1-1m .
100
Terceira observação: permanecemos na me
ditação acerca da articulação entre a intcnsão e a
txlcnsão. M as como pensar a extensão? Será que
esta exterioridade à qwl deve dirigir-se o incons
ciente existe em si mesma ou deve ser criada? Se a
extensão é definida pelo dentro institucional. será
que corresponde à extensão que aquele que faz
um chiste visa inconscientemen te? A transferên
cia inconsciente daquele que faz um chiste
concerne ao simbólico, e o simbólico não é deli
mitado por uma fronteira, como a que circunscreve o interior da instituição.
Portanto, quando o significante do chiste
passa, ele cria uma significação que não existe de
maneira institucionaL Aliás, é preciso observar que
na Escola Freudiana havia dois passes: havia o passe
dos candidatos que se dirigiam a uma extensão
institucional e havia o passe do chamado La canque definia o seu seminário como o lugar onde
ele não cessava de passar o passe. E Lacan nunca
quis fazer o seu seminário na Escola Freudiana.
Ele sentiu claramente que isso não funcionaria
bem. Ele falava num lugar aberto a qualquer pes
soa e tinha um público totalmente heterogêneo
que ele mesmo não conhecia, o que lhe r o p o r c i o ~nava uma alteridade com a qual ele podia transfe
ri r como alteridade.
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AWN DIDIER.-WEILL LACAN E A CLIN JCA PSICANAÚTICA
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Feitas essas observações preliminares, transmito-lhes o conteúdo destas dificuldades e o ensino que podemos tirar do fracasso histórico do
passe, que consiste no disposi tivo de trabalho quecomeço a propor a alguns colegas.
O primeiro dos diversos aspectos que há aconsiderar nes te dispositivo é o fato de não situara atividade de simbolização no interior de umaassociação. Ela permanece fora de toda e qualquerassociação, no vazio, entre analistas que trabalham
um por um. Em segundo lugar, o que deve ser. produzido não são nomeações, mas un icamente
um trabalho de simbolização e numa estrutura que
não·seja de grupo . que se enderece e que solicite oum por um.
O disposi tivo que imagino na situação atualseria primeiramente destinado àqueles que se tornam
analistas e àqueles que se t o r n a m analistas, namedida em que se pode pensar que cada um denós tem sempre que rMornaNt analista. Não é
como quando somos cabeleireiros, por exemplo:nossa identidade de analistas não existe fora do
nosso ato. Não há str analis.ta. Há em algumastituições pessoas que pensam serem analistas. Seconsideramos que a palavra analista não é um substantivo, mas um verbo, quer dizer, um ato, isso exige
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a renúncia à idéia de ser, e à identificação do nome"analista" ao ser, ou àquilo que a Filosofia chamade ser. Todos nós conhecemos instituições totali
tárias e eu diria que sua mais simples definição éacreditar no Ser. No "ser analista", coisa que se éde uma vez por todas, porque o Ser é permanente.
É por isso que o dispositivo concerniria acada analista que considera que não pode cessarde se tornar analista, o que, por si só, já faz balançar a idéia de uma hierarquia entre analistas.
Tornando-nos ou retornando-nos analistas,ou encontrando-nos na situação de sermos fortemente questionados pela existência do inconsci.ente, seja pela prática analítica, seja pela leitura dêum texto que pode nos perturbar, confrontamo-
nos sempre com a idéia de que, com efeito, paranosso inconsciente, o inconsciente permanece sem
pre uma hipótese, no fundo de nós mesmos. Nãoé porque sabemos que há inconsciente que forçosamente acreditamos nisso. O reconhecimento de que não acreditarpos nisso forçosamenteexige que passemos por circuitos para que possamos reencontrar o caminho da existência dessahipótese.
Suponho assim que aquilo de que falaria alguém, veterano ou iniciante, que estivesse nessa
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AWN DIDIER-WEILL LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
7/28/2019 Didier Weill Alain Lacan e a Clinica Psicanalitica
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disposição, seria algo de que não poderia não falar, falaria de uma questão que o teria arrebatado,
não poderia dar uma aula, fazer uma exposição.
do tipo: "Daqui a dois meses vou falar do recalque,·daqui a três meses, daquele outro tema". Um
sujeito assim dispos to não teria escolha: não po -
deria falar de outra coisa senão daquilo que o
fisgou.
O dispositivo que pcoponho não é exatamente o do passe. É um dispositivo que tenta reen
contrar o espírito do passe, mas não é o passe. Há
dois tipos diferentes de ouvintes cujo trabalho develevar em conta a questão fundamental da lei do
tempo. Um primeiro tipo de ouvinte é aquele que,colocado a trabalhar inconscientemente a partir
do que ouve, unicamente responda., sem ter que
proferir nenhum julgamento sobre aquilo que
ouviu, e que responda unicamente produzindo otrabalho inconsciente, o saber que resulta da ela
boração inconsciente nele suscitada pelo que ou -
viu, sem preoc upação com a relação que e.ssa ela
boração inconsciente pode ter com aquilo que já
sabe da teoria.
Se quisermos fazer uma relação com o chíste,
este ouvinte corresponderia àquele que ri no chiste.Quando se ri é porque inconscientemente com-
preendeu-se alguma coisa. A idéia é que se consiga
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dizer o que se compreendeu inconscientemente,sem nenhum julgamento quanto à pertinência
teórica. A idé ia subjacente a esta proposta é a de
que. se houve uma simbolização autêntica, issoproduz também, implicitamente, uma nomeaçãodaquele que fala. Se o primeiro t rabalho induz aum verdadeiro trabalho inconsciente - e não éne cessário nomear o passante com esse nome pom-
poso, inst itu cional, de passante - isso signifi caque, de faco, houve passagem.
A passagem de S (,..) implica, como no caso
do chiste, um tempo de sideração antes da com
preensão. E se pensarmos que o tempo da
sideração, conforme observa Freud, é um fa co deestrutura, est e fato implica ·que o ouvinte, pararespeitar esse tempo, não responda imediatamente.
Observamos. mesmo nas reuniões de psicanalistas, que', quando se responde a alguém que acaba
de falar não levando em conta o tempo de
sideração, a intervenção é feira freqüentemente demaneira supereuóica, isto é. o ato de dizer é sóuma ocasião para se dizer aquilo que já se sabe.
N ão se trata, assim, neste dispositivo. de favorecer isso. E esta é a razão pela qual, levando
em conta o fato de est rutura que é esse tempo desideração. eu proporia um tempo, um tempo dede-sideração que implica que, depois que alguém
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AI.AIN DIDlER-WEIU I.ACA.N E A Cl..lNICA P5 lCANAÚTlCA
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tenha falado, não se fale imediatamente, e que se
faça um novo encontro em ocasião posterior. Na nova
reunião, então, se houver ouvintes que tenham en
trado nesse trabalho, eles transmitirão a sua elaboração. Poderíamos dizer que aquele que in icialmente
falou é um "eu" que falou a um ' 'tu", o qual, no
momento desta segunda reunião, lhe responde.
Mas suponh o um terceiro tempo. que seria
o tempo do "ele", ou se ja. um out ro t ipo de ou
vinte que não na mesma noite, mas no só-depois.
te ria um tempo para estudar cuidadosamente,numa outra perspectiva, aquele primeiro discurso
e os di scursos que foram induzidos por pri
meiro. A estes segundos auditores caberia a tarefa
de refletir sobre as duas produções: do emissor e
do receptor, numa posição, portanto , de testemu
nho, de terceiro, entre o emissor·e o receptor e aí,
mas só aí, nesse momento, eventualme nte, fazer
um trabalho teórico, fruto do tempo de reflexão
sobre os dois discursos e de avaliar, nesses dois
discursos e em sua confrontação, se apareceu algo
de novo.
Mantendo a comparação com o chiste. po
deríamos dize r que esta é a função daquele que
relatou o chiste porque no chiste há pelo menos
três pessoas: há o locutor, o receptor que
autentifica o chiste, que diz "Tu passastes alguma
106
coisa", pois é o seu riso e só ele que diz: "Eu te
reconheço como aquele que passou a coisa espiri
tuosa", e fmalmente uma terceira presença que faz
com que aquilo que aconteceu entre os do is setransmita a nós. seja relatado e levado em conta.
Esse disposit ivo na verdade é muito simples
e, no ent.anto, apóia-se em considerações um pou
co complicadas. Tais considerações levam em conta
a idéia de Lacan. que me parece muito forte, se
gundo a qual poderia haver uma t ransmissão sem
recalque ent re os analistas sem, por outro lado.cair no pessimismo de Lacan no final de seu ensi
no. quando a questão do passe parecia-lhe uma
questão perdida, o que o fazia pensar que não era
possCvel fazer de outra forma. Trata-se, assim, de
permanecer fi el a Lacan, que pensava que era pos
sível uma ou tra transmissibilídade que não aquela
da IPA , levando em conta, ao mesmo tempo, os
fracassos ma.nifestos que aconteceram na Escola
Freudiana em torno da questão do passe.
Para que haja uma chance de transmissibilidade
do inconsciente entre a n a l s c ~ s . é necessário que
possa encontrar a alteridade. É preciso reconhe
cer que não mais encontramos essa alceridade
nas pessoas que são muito próximas de nós em
nossas inst ituições. Nossas próprias associações
são absolutamente necessárias, mas por que não
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ALAIN DIDIER-WEILL LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA
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utilizar a chance da existência da alceridade e fazêla trabalhar quando isso for possível?
Na França, nossa primeira tentativa de fazertrabalhar a alteridade se deu no laço que foi criado há alguns anos, denominado lnterassocíativo) e quereúne atualmente vinte associações - francesas,italianas, dinamarquesas, belgas. Não é fácil teruma vizinhança de vinte associações: inevitavel
mente há conflitos, dificuldades, mas o grandeinteresse disso é criar as condições de possibili
dade de encontrar a alteridade.'retendo propor esse dispositivo a meus co-
legas. o que ainda não fiz. Essa proposta não se
dirige a associações mas a sujeitos individualmentefalando, e concerne a apenas um por. um, sujeitosque estariam prontos a fazer funcionar a suaaheridade, a função da alteridade, p o r q ~ e no caso
do Interassoâativo, reconhecemo-nos sem nos conhecermos. Sei que, a faze.r esta experiênéia, meinteressaria muito que os ouvintes que poderiamacolher o que eu teria a dizer não fossem meuscolegas da associação. Com eles, aliás, sei, a pritwí,
que não iria funcionar porque somos colegas demasiado próximos. Seria para mim interessanteque não fossem meus colegas e sim dinamarqueses, belgas ou brasileiros.
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Por que não imaginar um dispositivo que fi-zesse trabalhar a alteridade? Penso que temos asorte de inventar progressivamente uma comuni
dade espalhada, explodida, que não é como duascomunidades monolíticas que conhecemos, quefalam em uníssono- a Escola da Causa e a IPA.
Penso que criamos uma comunidade, constituí
mos uma comunidade mais heterogênea. Essaheterogeneidade existe de fato e considero isso
muito bom! E po r que não usar a sorte de a termos criado para fazer algo mais do que nossa po
lítica de boa vizinhança, fazer funcionar aquiloque o heterogêneo pode trazer na própria trans
missão do inconsciente?
Além desse dispositivo, poderíamos imaginar também outros e fazer funcionar um laço social, particular, algo que na minha opinião é buscado pelos analistas desta comunidade explodida,cujos membros escolheram não falar em uníssono.Acho que vale a pena assumir, o mais longe possível, a razão pela qual não estamos numa dessascomunidades em que se fala em uníssono, em quenão há nenhuma alteridade.
Este é o grão para moer que eu tinha a pro
po r a vocês.
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7/28/2019 Didier Weill Alain Lacan e a Clinica Psicanalitica
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Alain Oidier-Weill
1 Psiquiatra, psicanalista e dramaturgo, foi
membro da École Frntdimnc de Paris e é um dos fun
dadores do Mouvement du Coftt Freuditn e do
lnttrassoâatifdt PsychllnRlyst .
Autor de Inconsciente freudiano t transmiwio Japsicanálise Gorge Zahar, I 988). Fim de umR análise,
finalidAde da psicanálise (org.) Oorge Zahar, 199 3),
Nota Freud, Lacan ea arte (Contra Capa Livraria,
1997), Os três tempo.._s da -lti Gorge Zahar; I998) e
lnvocarions: Dionysos, Morse , S11int Paul et Freud
(Calrnann-Lévy, I 998). Dentre suas peças de tea
tro, destacam-se Pol,L'
Heurt Ju thé chczl
es Penàleburyefímmy.
LucianoElia
Psicanalista, membro doLilroAnalítico do Rio
de Janeiro.
Autor de Corpo t sexualidade tm F m ~ á t Lacan
(Uapê. 1995).
SUMÁRIO
· Parte I
Alain Didiei'-Weill
Preliminar a uma revis.io da concepção de
sublimaçio Freud
l ~ pAlam Didier-Weill
O artista e o pslcana!i.ta questionados umpelo outro
Chawlá Azouri
Testemunhos de um encontro com o vaz:io
Oaude .Rabant
O vazio, o enigma
rartenAJain Didler-Wàll
A Nota Az:ul: de quatro tempos subjdi.vanteJ
na rruíska
O circuito pufsional
Marco AJ\tonio Coutinho Jof!e
Clarice I..ispector e o podu da p1lavr.o
7
19
37
47
57
85
105