dicionário do diabo

46

Upload: vitor-campinho

Post on 29-Mar-2016

247 views

Category:

Documents


10 download

DESCRIPTION

Dicionário do Diabo

TRANSCRIPT

Page 1: Dicionário do Diabo
Page 2: Dicionário do Diabo

© 2011, Edições tinta-da-china, Lda.

Rua João de Freitas Branco, 33, Loja 8

1500-627 Lisboa

Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30

E.mail: [email protected]

Título original: The Devil’s Dictionary

Autor: Ambrose Bierce

Ilustrações: Ordovician Man

Selecção e tradução: Rui Lopes

Prefácio: Pedro Mexia

Revisão: Tinta-da-china

Orientação gráfica: Vítor Campinho

Type: Prestige Elite Std

I.ª edição: Janeiro 2006

ISBN 972-8955-02-2

Depósito Legal n.º 237073/06

Page 3: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

3

Ambrose Bierce, jornalista e escritor americano, nasceu no Ohio, em 1842, e desapareceu numa viagem ao México, em 1914. Filho de agricultores carenciados, combateu na cruenta Guerra Civil, dois factos essenciais na sua mundividência. Bierce escreveu contos umas vezes realistas outras vezes góticos, sempre num estilo seco e económico. Há duas colectâneas com edição portuguesa: Um Acontecimento na Ponte de Owl Creek (Assírio & Alvim) Esopo Emendado & Outras Fábulas Fantásticas (Antígona) e Fábulas Fantásticas (Estampa). Crítico social satírico e implacável (herdeiro de Swift ou Voltaire), foi colunista em vários jornais do magna¬ta Hearst, nomeadamente o San Francisco Examiner. A sua propensão para a veemência e o sarcasmo tornou-o um dos articulistas mais polémicos da sua época e valeu-lhe a alcu¬nha «bitter Bierce» (o amargo Bierce). O seu legado mais ori¬ginal consiste num volume que reúne colunas publicadas nos jornais entre 1881 e 1906, que se chamou primeiro The Cynic’s Wórd Book (1906) e se tornou depois conhecido como The Devil’s Dictionary. O que significa Dicionário do Diabo? É um dicionário escrito do ponto de vista do Diabo? Ou do ponto de vista de um autor tido como diabólico? Ou diabólico é o espírito que anima este Dicionário? Todas estas leituras são possíveis. Bierce é levado do Diabo, e tem todo o interesse em asso¬ciar a maldição ao seu texto. O título é como que um jogada de promoção. Este Dicionário anuncia logo no seu nome que não se pretende informativo, como os dicionários comuns. Nem sequer instrutivo e empenhado, como a Enci¬clopédia iluminista. O que interessa a

Page 4: Dicionário do Diabo

4

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

Bierce não é descrever o mundo tal como é. O mundo tal como é não passa de uma ilusão de óptica, de um engodo social. O mundo não deve ser analisado com frieza científica ou ideológica, deve ser confrontado com os seus vícios numa linguagem viciosa. Bierce joga contra o mundo mas no terreno do mundo: ele não denuncia nem lamenta, apenas usa os artifícios da civi¬lização contra essa mesma civilização. Se vivemos protegi¬dos e enganados por conceitos, convenções, conveniências, então o que importa é aceitar isso como se fosse um jogo. E depois viciar o jogo por dentro. Ao definir as coisas do mundo, Bierce usa as estratégias mundanas: ele mente para chegar à sua verdade. Se a hipocrisia existe como homena¬gem do vício à virtude (segundo Wilde), então a virtude que se faz vício é a mais genial das retóricas. O que critica Bierce? Os fundamentos da sociedade do seu tempo: o patriotismo, o colonialismo, o militarismo, o clericalismo, a demagogia democrática. E os vícios humanos de todos os tempos: o oportunismo, a hipocrisia, a estupi¬dez, a cupidez e a vigarice. No entanto, o seu principal alvo é a manipulação e o abastardamento das palavras e dos sen¬tidos. A retórica das definições deste Dicionário consiste em apresentar todos os nossos mecanismos de inveja, arro¬gância, desculpabilização e demonização do outro. Bierce distorce o sentido das palavras porque as palavras adquiriram sentidos distorcidos. Quando o amargo colunista diz que o realismo é a representação da natureza do ponto de vista de um sapo, não está apenas a satirizar uma determinada esté-tica. Está a contestar toda a ideia de uma visão naturalista da sociedade. Os seus aforismos divertidos e às vezes surrealis¬tas deformam e transformam o mundo do ponto de vista de um individualista. O que se compreende quando uma entra¬da do dicionário sugere que liberdade e imaginação são a mesma coisa. Se situarmos Bierce no contexto oitocentista,

Page 5: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

5

surgem alguns paralelos com Mark Twain, que escrevia vinhetas irónicas e sátiras delirantes, e depois com o polemista H.L. Mencken. Acontece que Mencken era bastante mais conservador e talvez mais agressivo. E Twain cultivava um registo sentimental e uma certa bonomia, enquanto Bierce é quase gélido. O Dictionaire des Idées Reçues de Gustave Flau¬bert tem evidentes afinidades com The Devil’s Dictionary, na sua impaciência com o cliché. No entanto, Flaubert era um misantropo e um elitista, ao passo que Bierce, americano dis-sidente mas ainda assim americano, é essencialmente um populista. A mesquinhez e a mediocridade divertem Gustave e Ambrose, mas o autor de Bouvard e Pécuchet não esconde um certo nojo, ao passo que o colunista californiano denun¬cia um assinalável gozo. Bierce não se fica pelo cinismo: inventa uma espécie de cinismo do cinismo. Diversas entradas do Dicionário são modelarmente cíni-cas: é assim quando define o comércio como «saque», o cate¬cismo como «adivinhas teológicas» ou o amor como «uma demência temporária que se cura com o casamento». Ou quando define «inocência», «Ocidente», «funeral», «justiça» ou «fidelidade». A sua definição de cínico é particularmente interessante: «um malandro cuja visão deficiente lhe apre-senta as coisas como elas são, não como deviam sen>. De muitas destas tiradas percebemos que Bierce é mais um anarquista que um progressista. Ele é tão contra o optimis¬mo que a entrada «pessimismo» critica o optimismo em vez de satirizar o pessimismo. Bierce sabe que o radicalismo de hoje é o conservadorismo de amanhã: segundo ele, um con¬servador «gosta das coisas más que já existem, por oposição ao liberal, que as quer substituir por outras». E não hesita em apresentar a revolução como a troca de um mal por outro mal. No fundo, é da História que ele mais desconfia: a História é «um relato

Page 6: Dicionário do Diabo

6

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

geralmente falso de acontecimentos geralmente fúteis, contado por governos geralmente velha¬cos e soldados geralmente tolos». Não há aqui espaço para mitologias de nenhuma espécie. É verdade que no Dicionário encontramos indignação. Mas esta indignação não tem ilusões sobre os seus efeitos e cultiva o humor negro. O cínico reconhece subtilmente que o mundo é cínico. Bierce parece às vezes um moralista porque joga com os dois conceitos essenciais do moralista: a verdade e o aforismo. Se algumas coisas são falsas e repug¬nantemente falsas, é porque existe uma possibilidade de serem verdadeiras. Bierce supõe que existe uma verdade e essa verdade é parcialmente desvendada pelo aforismo. A frase concisa e definitiva, dotada de um grau de certeza e de um grau de ambiguidade, permite que se extraia um con¬ceito moral de todas as matérias. Acontece que esse moralismo fracassa porque Bierce gosta demasiado do seu jogo. Ele combate o fogo com o fogo e pelo fogo se apaixona. Quando Bierce define «clube» como «urna associação de homens que tem por objectivos a embriaguez, a gula, o riso alarve, o homi-cídio, o sacrilégio e a difamação de mães, esposas e irmãs» acrescenta que obteve essa informação através das esposas desses homens. Ou seja: Bierce não está a assumir o discurso da virtude, mas a caricaturar a mentalidade dos obcecados com a decência. Um mundo decente seria enfadonho. É a imperfeição do mundo que anima o Diabo. Escritos na imprensa da época, estes textos tinham um significado determinado. A sua junção em volume implica a transformação da sua natureza, uma vez que os textos se desligam dos acontecimentos concretos e se tornam uma colecção de epigramas. Bierce é eminentemente citável, e provavelmente muitas destas definições diabólicas circulam isoladamente, em epígrafes, conversas ou dicionários de citações, pelo que cada uma adquire um valor individual e provavelmente novos sentidos. Se a citação é «o

Page 7: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

7

acto de repetir erradamente as palavras de outra pessoa», então essa inevitabilidade torna-se num trunfo. E num triunfo. O Dicionário do Diabo é um manual de guerrilha contra o conformismo. Uma guerrilha moderadamente convicta dos seus poderes mas ainda assim apostada na inconveniência e na crítica sem tréguas. Um crítico, escreve Ambrose Bierce, é «uma pessoa que se diz difícil de agradar porque ninguém tenta agradar-lhe». Que este Dicionário vos desagrade.

Pedro Mexia

Page 8: Dicionário do Diabo
Page 9: Dicionário do Diabo

A selecção e tradução da presente edição foi feita a partir da obra The Devi!’s Dictionary, Wordsworth Editions Limited, I996. Respeitou-se a utilização de maiúsculas decidida pelo autor, salvo nos casos em que ela decorre de convenções tipográficas especificamente anglófonas.

Page 10: Dicionário do Diabo
Page 11: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

11

nUma afirmação ou convicção manifestamente contrária à nossa própria opinião.

nUma escola antiga onde se ensinava moral e filosofia.

adj. {de academia}Relativo a uma escola moderna onde se ensina futebol.

n.Mulher cujo bom nome é habitualmente manchado por andar tanto nas nossas bocas.

n.Alguém que já foi nosso amigo; particularmente, a pessoa à qual prestámos um serviço amigável.

v.t.Afirmar a culpa ou demérito de outra pessoa; aplica-se , na maioria dos casos, como justificação por lhe termos feito mal.

adj.Que se encontra na surpreendente condição daquele Cruzado que distraidamente ajeitou a franja algumas horas depois de uma cimitarra sarracena ter passado — sem ele disso tivesse tomado consciência — pelo seu pescoço, como relatado por De Joinville.

n. Uma ocorrência inevitável devida à acção de leis imutáveis.

adj.Que está em harmonia.

n.Instrumento que está em harmonia com os sentimentos de um assassino.

n.Um homem que dobra as costas para encher a barriga.

n.Suspensão das hostilidades contra um assassino condenado, com o objectivo de peritir ao Executivo descobrir se o crime pode ter sido perpetrado pelo advogado de acusação. Qualquer pausa no processo de uma expectativa desagradável.

Page 12: Dicionário do Diabo

12

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

n.Quem elege os nossos governantes?

n.Arte de meter o nariz no oculto. Há tantas espécies de adivinhação quanto variedades frutíferas de estúpidos-em-flor e de cretinos-precoces.

v.t.venerar com expectativas.

n.Indivíduo com jeito para contornar a lei.

n.Sabedoria já mastigada.

n.Um preto que vota no nosso partido.

n.Um estadista que abana as árvores de fruto dos seus vizinhos (para desalojar as minhocas).

v.Colocar os alicerces para uma superestrutura de imposição.

v.t.criar um ingrato.

n.Um instrumento de tortura com o qual as nossas amigas nos crucificam entre dois ladrões

n.O raio de acção da mão humana.

n.Em política, uma engenhosa abstracção, concebida para receber os pontapés e as estaladas que o Primeiro-Ministro e o Presidente deviam levar.

n.O nosso reconhecimento cortês da semelhança de outrem connosco próprios.

v.t.Confessar. Admitirmos os erros uns dos outros é o mais alto dever imposto pelo nosso amor à verdade.

adj.A recuperar da infância.

Page 13: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

13

n.(do Àrabe al kohl, uma tinta para os olhos )Princípio essencial de todos os líquidos que fazem o homem ficar com o olho negro.

n.Um livro que os Maometanos acreditam ter sido escrito por inspiração divina, mas os Cristãos sabem que é uma impostura maléfica, que contradiz as Sagradas Escrituras.

n.Uma sensação agradável provocada pela contemplação da miséria dos

n.Om tipo munto orrgulhosa (e munto kontent) porr serr dá Deustschland, korrecta?

n.Em política internacional, consiste na união de dois ladrões com as mãos tão afumadas nos bolsos um do outro que já não conseguem roubar um terceiro separadamente.

n.O crocodilo da América, em tudo superior aos crocodilos das obsoletas monarquias do Velho Mundo.

n.Acordar cedo, numa manhã fria, e descobrir que é domingo.

n.A parte de um navio de guerra que trata de falar, enquanto a figura da proa trata de pensar.

n.Um transtorno público que não conhece a diferença entre gosto e habilidade, e confunde a sua ambição com a sua ambição com a sua capacidade.

adj.Devíamos ficar corados quando murmuramos esta palavra.

n.Pessoa de uma antiga raça que não parecia preocupar-se muito com os direitos das mulheres e a igualdade entre os dois sexos. O seu hábito irreflectido de torcer o pescoço aos machos originou, como infeliz consequência, a extinção da sua espécie.

Page 14: Dicionário do Diabo
Page 15: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

15

n.Um desejo irresistível de ser vilipendiado por inimigos enquanto se está vivo e ridicularizado por amigos quando se está morto.

n.Uma doença provocada pela exposição à prosperidade de um amigo.

n.Um período de trezentas e sessenta e cinco desilusões.

n.O sacana miserável que não nos deixa em paz.

adj.Não conforme à norma. Em matérias de pensamento e de conduta, ser independente é ser anormal e ser anormal é ser detestado. Daí que o lexicógrafo aconselhe um esforço no sentido de uma semelhança mais estreita (sic) com o Homem Normal do que consigo próprio. Quem o conseguir terá paz, a perspectiva da morte e a esperança do Inferno.

adj. Que é tão hábil a roubar uma carteira com a mão direita como com a mão esquerda.

n.Uma embarcação suficientemente grande para transportar duas pessoas quando o tempo está bom, mas apenas uma durante a tempestade.

n. A magnanimidade do Estado para com aqueles transgressores que seria demasiadamente caro castigar. adj.

O sacana miserável que não nos deixa em paz.

v. Chamar «cãozinho» a um buldogue quando este se encontra firmemente agarrado à nossa retaguarda.

n.Demência temporária que se cura com o casamento, ou afastando o paciente das influências que provocaram a en-fermidade. Esta doença, tal como a cárie e outras, prevalece apenas entre as raças civilizadas que vivem em condições artificiais; as nações bárbaras que respiram ar puro e comem alimentos simples são imunes aos seus ataques. Chega a ser fatal, embora mais para o médico do que para o paciente.

Page 16: Dicionário do Diabo

16

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

v.t.No contexto forense, voltar a pôr os dados no copo para os lançar novamente.

n.Um instinto previdentemente implantado pela Providênciacomo solução para a questão laboral.

adj.Horrivelmente vestido à maneira do tempo e do lugar.

n.Uma substância nutritiva fornecida para a engorda dos pobres por uma Providência caridosa.

n.O eco de um lugar-comum.

n.Uma cerimónia social inventada pelo Diabo para gratificar os seus servos e afligir os seus inimigos. A apresentação atinge o seu grau de desenvolvimento mais malévolo neste país, estando, sem dúvida, intimamente relacionada com o nosso sistema político. Sendo qualquer americano igual aos outros americanos, daqui decorre que todos têm o direito de conhecer toda a gente, o que implica o direito de apresentar pessoas sem pedir licença ou permissão. A Declaração de Independência ter ficado assim:«Consideramos evidentes estas

verdades: que todos os homens foram criados para serem iguais; que o seu criador os dotou de certos direitos inalienáveis; que entre esses direitos se encontra o direito à vida e o direito de tornar a vida dos outros numa miséria ao atirar para cima deles um número incalculável de pessoas conhecidas; à liberdade, e especialmente à liberdade de apresentar as pessoas umas às outras sem verificar primeiro se não se conhecem já na qualidade de inimigos; e à busca da felicidade dos outros com uma matilha de estranhos a farejar.»

Page 17: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

17

n.Um dignitário eclesiástico com um bocadinho mais de santidade que um bispo.

n.Em política, uma ratoeira imaginária na qual o estadista luta contra o seu passado.

n.O discurso de um opositor, a quem chamamos arengotango.

n.Governo pelos melhores homens. (Neste sentido o termo é obsoleto — tal como o é esta forma de governo.) Indivíduos que usam chapéus felpudos e camisas asseadas — são acusados de terem educação e suspeitos de terem contas bancárias.

n.Tipo de roupa usado por um homem cujo alfaiate é um ferreiro.

n.Um homem de negócios sincero.

n.Aquele que faz planos para a nossa casa e para o nosso dinheiro.

n.Um sentimento que raramente incomoda as pessoas antes de começarem a sofrer.

n.Uma das qualidades mais conspícuas de um homem que se encontra em segurança.

n.Pessoa com rendimentos, que atempadamente se retirou da esfera da extorsão.

adj.Indubitavelmente verdadeiro — na opinião de alguém

adj.Uma apreciação errada.

n.Uma ave grande à qual (pelos seus pecados, sem dúvida) a natureza negou esse dedo posterior no qual tantos naturalistas piedosos viram uma prova manifesta do desígnio divino. A ausência de um bom par de asas não é defeito, pois, como tem sido pertinentemente observado, a avestruz não voa.

Page 18: Dicionário do Diabo
Page 19: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

19

n.Uma divindade conveniente, inventada pelos antigos como desculpa para se embriagarem.

n.Um instrumento para rebentar a bolha de vaidade de uma nação.

adj.A qualidade das motivações de um rival.

v.t.Infligir cerimoniosamente um nome a uma criança indefesa.

n.O cabelo que é habitualmente cortado por aqueles que abominam o absurdo costume chinês de rapar a cabeça.

n.(do Latim barbarus, selvagem, a partir de barba, a barba.) Um selvagem que nos faz esquecer a laceração da nossa cara, perante o tormento superior que é ter de ouvir a sua conversa.

n.Um instrumento engenhoso que nos indica o tempo que estamos a ter.

n.Uma forma de desatar com os dentes um nó político que resiste à língua.

n.Um trapo colorido que se usa acima das tropas e nos quarteis e navios. Parece ter a mesma função de certos cartazes que se podem ver nos terrenos baldios de Londres:«Pode atirar-se lixo para aqui».

n.Uma pessoa que, à força, tira a A aquilo que A, com manhas, tirou a B.

n.Um tipo de cerimónia mística que substituiu o culto religioso, desconhecendo-se ainda a sua eficácia espiritual.

n.Um ritual sagrado tão eficaz que torna eternamente infelizes

aqueles que vão para o Céu sem terem sido baptizados. É feito com água, de duas formas — por imersão ou mergulho; por aspersão ou borrifadela.

n.Uma palavra inventada pelos poetas para rimar com «desejo». Supõe-se que significa, de um modo geral, uma

Page 20: Dicionário do Diabo

20

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

n.O tributo literáro que um pequeno homem presta a um grande homem.

n.Em Italiano, uma mulher bela; em Português, um veneno mortal. Um exemplo assinalável da semelhança entre dua línguas.

n.Um funcionário da casa do Rei, cuja função era divertir a corte através de acções e palavras grotescas; o absurdo da situação era reforçado pela vestimenta multicolor. Sendo o próprio rei um espelho de dignidade, passaram muitos séculos até que se descobrisse que a sua conduta e os seus decretos eram suficientemente ridículos para divertir a corte — e até mesmo toda a humanidade.

n.Poder com o qual uma mulher encanta o amante e aterroriza o marido.

n.No homem, é a porta da alma; na mulher, é a saída do coração.

n.Oferecer cinco euros para o conforto do nosso avozinho que está no asilo, publicitando-o depois do jornal.

adj.Consciente, cara senhora, do mérito deste seu escriba. Desperto, caro senhor, para as vantagens de não se meter com ele.

n.Indivíduo que compra grandes quantidades de ingratidão, sem, contudo, afectar meterialmente o preço, que continha ao alcance de todos.

n.A ciência dos vegetais — dos que não são bons para comer e dos que são. De um modo geral, ocupa-se das suas flores, que são normalmente mal desenhadas, mas coloridas e mal cheirosas.

n.Mau gosto para o qual a sabedoria do futuro decretará um castigo chamado trigamia.

n.O cúmplice do médico, benfeitor do cangalheiro e fornecedor dos vermes de cemitério.

n.Um membro de dinastia reinante nas letras e na vida. Os Broncos

forma qualquer de rito, ou cerimónia propiciadora de um bom entendimento; mas este lexicógrafo desconhece a forma como ela é realizada.

Page 21: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

21

n.Ver

n.¹ Uma mulher feia e repelente, que fez um pacto demoníaco com o Diabo. ² Uma jovem mulher bela e atraente, muito mais demoníaca que o próprio Diabo.

remontam aos tempos de Adão e, sendo simultaneamente numerosos e robustos, acabaram por dominar o mundo habitável. O segredo do seu poder é o facto de serem insensíveis a ataques; toquem-lhes com um cacete e eles riem-se de forma vulgar.

Page 22: Dicionário do Diabo
Page 23: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

23

v.Celebrar o nascimento de um ovo.

n.Uma forma simples e inolvidável de relembrar que os assuntos desta vida não dependem da nossa vontade. Há dois tipos de calamidades: infortúnio para nós próprios e fortuna para os outros.

n.Vestuário que cobre as partes inferiores do macho adulto civilizado. É uma peça tubular e desprovida de dobradiças nos pontos de flexão. Supõe-se que foi inventada por um humorista.

n.Um gastrónomo da velha escola, que preserva os gostos simples e adere à dieta natural do período pré-porco.

n.Uma espécie de Divindade subsidiária ou adicional, concebida para receber os excedentes da adoração mundial. Este ser Divino, nalgumas das suas encarnações mais pequenas e macias, ocupa no coração da Mulher o lugar no qual nenhum macho pode aspirar.

n.A sede do desgoverno.

n.A Segunda Pessoa da Trindade secular.

adj.Viciado na crueldade de devorar o vegetariano timorato e os seus herdeiros.

n.Um estudante familiarizado com a aflição

v.t.Dizer tudo o que achamos sobre um homem quando não nos consegue achar.

n.Um sítio no qual os mortos repousam, à espera dos estudantes de medicina.

n.Um homem cujas qualidades, arrumadas como as caixas da fruta nos mercados - as melhores do lado de cima - ,

n.Um instrumento utilizado na rectificação das fronteiras nacionais.

foram abertas pelo lado errado.

n.Um funcionário que produz animação

Page 24: Dicionário do Diabo

24

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

n.O carrinho de bebé da Morte.

adj.Relativo a Descartes, um filósofo famoso, autor da célebre máxima Cogito ergo sum, a partir da qual acreditou que ficava demonstrada a realidade da existência humana. No entanto, a máxima pode ser aperfeiçoada da seguinte forma: Cogito cogito ergo cogito sum - Penso que penso, logo penso que existo; o que está mais próximo da verdade do que algum filósofo alguma vez esteve.

n.O cão de guarda do Hades, que tinha por dever proteger a sua entrada - não se percebendo claramente contra quê ou quem a guardava ele, pois toda a gente, mais cedo ou mais tarde, tinha de passar por ela, e também ninguém tinha vontade de forçar a entrada.

n.Dispositivo com o qual pensamos que pensamos. Aquilo que distingue o homem que se contenta com ser alguma coisa do homem que quer fazer alguma coisa.

n.Cerimónia na qual duas pessoas passam a ser uma, uma passa a ser nada e nada a ser sustentável.

n.Um edifício oco, construído para ser habitado pelo homem, pela ratazana, pelo rato, pelo escaravelho, pela barata, pela mosca, pelo mosquito, pela pulga, pelo bacilo e pelo micróbio.

n.Pessoa que fala quando desejaríamos que ouvisse.

n.Um tipo de adivinhas teológicas

n.Um crítico do nosso trabalho.

n.Um sítio isolado e suburbano, onde os chorosos comparam mentiras, os poetas escrevem por encomenda e os pedreiros soletram à jorna.

nas quais as dúvidas universais e eternas são resolvidas com respostas locias e efémeras.

em suspensão.

Page 25: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

25

n.Um sítio onde os cavalos, os póneis e os elefantes podem ver homens, mulheres e crianças a fazerem figura de parvos.

n.Um truque literário através do qual o escritor que não tem nada para dizer faz chegar a mensagem suavemente ao leitor.

n.O acto de repetir erradamente as palavras de outra pessoa. As pessoas repetidas erradamente.

adj.Indevidamente preocupado com a preservação daquilo que só pode ser perdido se não valer a pena ser mantido.

n.Instrumento manejado por uma pessoa com algodão nos ouvidos. Há dois instrumentos piores do que um clarinete: dois clarinetes.

n.Um ladrão rico.

n.Um homem que se encarrega de gerir os nossos assuntos espirituais, como forma de melhorar os seus assuntos temporais.

n.Uma pessoa que fez a escolha mais habitual entre os dois métodos de se ser licitamente roubado.

n.Uma associação de homens que tem por objectivos a embriaguez, a gula, o riso alarve, o homicídio, o sacrilégio e a difamação de mães, esposas e irmãs. Para esta definição contei com o contributo de várias senhoras estimáveis que se revelaram os melhores meios de informação, pois os seus maridos são membros de vários clubes.

n.A eloquência do poder.

n.Indivíduo que, na emergência do perigo, pensa com as pernas

n.A mais importante das invenções

n.Um malandro cuja visão deficiente lhe apresenta as coisas como elas são, não comoe deviam ser. Daí o costume, entre os Cítios, de arrancar um olho ao Cínico para melhorar a sua visão.

Page 26: Dicionário do Diabo

26

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

n.Uma forma de transacção na qual A saqueia a B e os bens de C e, em compensação, B rouba a carteira de D com o dinheiro que pertence a E.

adj.Bom para comer e salutar para digerir; como um verme come um sapo, um sapo para uma cobra, uma cobra para um porco, um porco para um homem, e um homem para um verme.

n.Indivíduo que tem na mão no nosso bolso, a língua no nosso ouvido e a fé na nossa paciência.

n.Indivíduo que ouve de A os segredos de B, confidenciando-os a C.

n.Uma desculpa para andar na rua até as tantas da noite e chegar a casa de manhã embriagado.

n.Estado de espírito originado pela contemplação das inquietações de um vizinho.

adj.Equipado com uma argola para receber a corrente e a bola de ferro.

n.pl.Servem para mostrar que o luto é um mal menor, quando comparado com a simpatia.

n.União de dois ou mais partidos, facções ou associações, para promover qualquer objectivo, normalmente nefasto.

n.A cortesia da inveja.

v.i.Desempenhar, de forma sucessiva( e com sucesso), as funções de mastigação, humificação e deglutição.

n.Um sítio isolado e suburbano, onde os chorosos comparam mentiras, os poetas escrevem por encomenda e os pedreiros soletram à jorna.

que nos permitem sair do sítio onde estamos e ir para um sítio onde estamos e ir para um sítio onde estaremos melhor. Por esta razão, o comboio é muito apreciado pelo optimista, pois permite-lhe fazer a viagem com maior rapidez.

Page 27: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

27

n.Um estadista que gosta das coisas más que já existem; por oposição ao Liberal, que as quer substituir por outras.

n.Saber que uma pessoa melhor é mais infeliz que nós.

n.Uma narrativa, normalmente falsa. A verdade das histórias que a seguir se transcrevem, no entanto, não foi

n.As cobaias de uma experiência de hipnotismo.

n.Um conjunto de homens que se reúnem para anular leis.

n.Pessoa que conhecemos suficientemente bem para lhe pedir emprestado, mas não o suficiente para lhe emprestarmos. Grau de amizade que consideramos afastado quando o seu objecto é pobre ou obscuro, e intimo quando é rico ou famoso.

n.A mais pequena moeda de troca.

ainda desmentida:Uma noite, o sr. Rudolph Block, de Nova Iorque, deu por si sentado o lado do sr.Percival Pollard, o famoso crítico.«Sr. Pollard», disse ele, «o meu livro, Biografia de uma Vaca Morta, foi publicado anonimamente, mas não acredito que desconheça a sua autoria. E, no entanto, na sua crítica fala dele como a obra do Idiota do Século. Acha mesmo que é assim que se faz crítica?»«Peço desculpa, caro senhor,» disse o crítico num tom amistoso, «mas não me ocorreu que podia não querer que o público soubesse quem o escreveu.»O sr. W.C.Morrow, que vivia em San Jose, na Califórnia, dedicava-se a escrever histórias de fantasmas que faziam o leitor sentir-se como se uma fila de lagartos, acabados de sair do gelo, passasse a correr pelas suas costas para logo se esconder no seu cabelo. Nessa altura, acreditava-se que San Jose era assombrada pelo espírito visível de um conhecido bandido chamado Vasquez, que tinha sido lá enforcado. A cidade era mal iluminada, e não exagero se disser que os seus habitantes não saíam à noite sem alguma relutância. Numa noite particularmente escura, iam dois cavalheiros a conversar na rua, em voz muito alta — para não perderem a coragem — e,num dos sítios mais isolados da cidade, encontraram o sr. J.J. Owen, um reputado jornalista.«Ora, sr. Owen», disse um deles,

Page 28: Dicionário do Diabo

28

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

«O que o traz aqui numa noite como esta? Foi você que me disse que este é um dos sítios que o Vasquez mais gosta de assombrar! E você é dos que acreditam nessas coisas. Não tem medo de andar aqui na rua?»«Meu caro amigo», respondeu-lhe o jornalista, com uma lúgubre cadência outonal na voz, como o som do vento que arrasta as folhas, «eu tenho medo é de estar dentro de casa. Tenho um dos contos do Will Morrow no meu bolso e não me arrisco a entrar num sítio onde haja luz suficiente para o ler.»O General H.H. Wotherspoon, presidente do Colégio de Armas Militares, tem um babuíno como animal doméstico, com uma inteligência pouco comum, embora não deva muito à beleza. Uma noite, regressando ao seu apartamento, o General ficou surpeendido e aborrecido por encontrar Adam (pois, sendo o general um Darwinista, era este o nome do animal) sentado à sua espera e envergando o melhor casaco do uniforme do dono, com insígnias e tudo.«Oh meu antepassado remoto perturbado!», gritou o grande estratega, «o que é que andas a fazer fora da cama a estas horas? — e com o meu casaco vestido!»Adam levantou-se e, com um olhar de reprovação, pôs-se de quatro patas, como é próprio da sua espécie, e foi buscar um cartão de visita: o General Barry tinha aparecido e, a julgar pela garrafa de champanhe vazia e pelos restos de charutos,

deve ter sido recebido com toda a hospitalidade enquanto ali esperava. O general pediu desculpa ao seu fiel antepassado e retirou-se. No dia seguinte, encontrou o General Barry, que lhe disse:«Spoon, velho amigo, quando saí de tua casa, ontem à noite, esqueci-me de te fazr uma pergunta acerca daqueles charutos maravilhosos. Onde é que os arranjaste?»O general Wotherspoon nem se dignou a responder, afastando-se imediatamente.«Desculpa, por favor», disse Barry, seguindo atrás dele, «eu estava a brincar, é claro. Olha, eu percebi logo que não eras tu quando ainda nem tinham passado quinze minutos.»

n.Uma batalha na qual o cuspo e a tinta substituem a perigosa bala de canhão e a imprudente baioneta.

n.Local para onde se retiram as mulheres que precisam de tempo para meditar sobre o vício da ociosidade.

n.Feira na qual se expõem os dotes mentais mais despiciendos, estando cada expositor tão ocupado com a arrumação dos seus bens que nem consegue dar atenção aos do colega do lado.

Page 29: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

29

n.Uma rapariga fútil, tola e estúpida, que preferiu andar com outro depois de ter andado algum tempo a experimentar-nos.

n.Um utensílio obsolescente que serve para relembrar aos assassinos que eles também são mortais. É colocada à volta do pescoço e lá permanece até ao fim da vida.

n.Um vegetal muito caseiro, com o tamanho e a sabedoria de um homem.

n.Indivíduo que pertence a uma tribo de selvagens que vive para lá dos Estreitos da Finança e é temida pelas suas incursões devastadoras.

n.Aquele que acredita que o Novo Testamento é um livro de inspiração divina, admiravelmente adequado às necessidades espirituais do seu vizinho. Aquele que segue os ensinamentos de Cristo, na exacta medida em que não sejam incompatíveis com uma vida de pecado.

n.pl.A parte do teu amigo que tens o privilégio de contemplar nos teus momentos de adversidade.

n.Admitir que se é um cobarde.

n.Na ópera, um bando de dervixes ululantes que aterrorizam o público enquanto os cantores recuperam o fôlego.

n.A cerimónia através da qual um soberano é investido com os sinais exteriores e visíveis do seu direito divino de ser enviado para os anjinhos cim uma bomba de dinamite.

n.Um político dos mares.

n.Uma pessoa que se diz difícil de agradar porque ninguém tenta agradar-lhe.

n.Pedir desculpa a um indivíduo por estar no meio do caminho e ter

sido alvejado por uma bala que ele disparou para acertar noutra pessoa. A forma mais aceitável de hipocrisia.

Page 30: Dicionário do Diabo

30

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

n.O outro indivíduo.

n.Uma qualidade repreensível do espírito feminino. O desejo de saber

n.Pessoa associada a outra num crime, sendo culpada de conhecimento dos factos e de cumplicidade; como um advogado que defende um criminoso, sabendo-o culpado.Esta perspectiva da posição do advogado nesta matéria não granjeou, até agora, a concordância dos advogados, pois ninguém lhes pagou para que concordassem.

n.Aquele a quem chamam o deus do amor. Esta criação abastardada de um capricho bárbaro foi, sem dúvida, infligida à mitologia por causa dos pecados dos seus deuses. De todos os conceitos desagradáveis e impróprios, este é o mais injustificado e ofensivo. A ideia de simbolizar o amor a partir de um bebé sexualmente ambíguo, de comparar as agruras da paixão com as feridas de uma seta, de introduzir este homúnculo gorducho na arte para materializar de forma grosseira o espírito subtil e a sugestão da obra — tudo isto é claramente merecedor da época que, tendo-o feito nascer, o deixou às portas da posteridade.

se uma mulher sofre da maldição da curiosidade constitui uma das paixões mais insaciáveis da alma masculina.

Page 31: Dicionário do Diabo
Page 32: Dicionário do Diabo
Page 33: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

33

v.i.Saltar ao som da música galhofeira, especialmente com os braços à volta da mulher ou da filha do nosso vizinho.

n.Indivíduo que correu atrás do prazer tão diligentemente que teve a infelicidade de o ultrapassar.

v.i.Sucumbir à preponderância de um determinado conjunto de influências sobre um outro conjunto de influências.

Uma folha que da árvore se soltou,Disse assim: “Para o chão eu vou”.

O vento Oeste logo a fez desviar.“Para Este”, disse ela, “vou-me virar”.

Quando o vento Este, soprando, crescia,

n.Uma série de mandamentos, dez ao todo - o suficiente para permitir escolher bem aqueles que queremos cumprir, e mesmo à conta para não dificultar a escolha. Segue-se a versão revista do Decálogo, pensada para este meridiano:

Não terás outro Deus além de mim;Seria muito mais caro se não fosse assim.Nem imagens nem Ídolos deves construirPois logo um ateu os irá destruís.

Não invocarás o nome de Deus em vão;Só quando der jeito - escolhe bem a ocasião. No dia do Senhor, não deves trabalhar;Vai mas é ver o teu clube a jogar.

Honra os teus pais, pois assim é um factoQue o seguro de vida ficará mais barato.

Não matarás - nem ajudarás outro a matar;Logo, a conta do talho não deves pagar.

Não beijarás a mulher do teu vizinho,A não ser que ele à tua deite o olhinho.

Não roubarás; isso é mau para os negócios;Ganhas mais se enganares s teus sócios.

Não levantarás falso testemunho - isso não deves fazer.Mas há sempre “alguém que disse” ou que “ouviu dizer”.

Não cobiçarás o que não conseguiste obter.Por manha ou fraude, ou de outra forma qualquer.

Page 34: Dicionário do Diabo

34

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

Ela disse: “Mudei de rumo, tal como queria”

Eis que sopram os ventos com igual poder.Diz ela: “Agora espero e nada vou fazer”.

Cessam os ventos; diz a folha, satisfeita:“Sempre a descer, ao chão vou direita”.

“As primeiras ideias são melhores?” Não é esta a moral;Escolham, pois, a vossa e não nos daremos mal.

Escolham bem ou mal, entre o sim e o não,Pois nada, afinal, depende da vossa decsião.

G.F.

pron.Dele.

n.O acto de examinar a fatia de pão para ver de que lado é que está a manteiga.

n.Um opositor político.

adj.A lamentável condição mental de um indivíduo a cujos argumentos não conseguimos responder.

adv.Renunciar a uma honra por uma situação vantajosa. Renunciar a uma situação vantajosa por outra ainda mais vantajosa.

n.Um homem cujas crueldades são descritas nos jornais.

n.Um prestidigitador que, pondo metal nas nossas bocas, consegue tirar moedas das nossas carteiras.

adj.A condição moral de um cavalheiro que te uma opinião contrária.

adj.Indivíduo que pagou todos os impostos sobre bens domésticos.

n.Uma infracção à lei com menos dignidade do que um assalto; em nada contribui para se ser admitido na

alta sociedade do crime.

Page 35: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

35

n.Linguagem utilizada por outra pessoa para nos criticar.

n.Uma das qualidades mais destacadas e características da humanidade.

n.A condição de um filósofo. A condição de um tolo. A condição de um candidato.

n.Aquilo que nos impele firmemente na direcção do curo, seguindo a linha do desejo.

v.Lançar as bases para uma futura ofensa.

n.Um período de vinte e quatro horas, geralmente mal gastas.

n.Uma aversão ao conflito, como pode ser observada num indivíduo que abandona o exército ou a mulher.

n.O autor de todos os nossos infortúnios e proprietário de todas as coisas boas deste mundo.

n.O tipo de graça que nunca vem só.

n.Uma previsão de doenças que o médico consegue fazer agarrando o pulso e a carteira do paciente.

v.Celebrar, com uma cerimónia apropriada, a maturidade de uma ordem.

n.Registo quotidiano daquela parta da nossa vida que conseguimos contar a nós próprios sem corar.

n.O que um homem prudente sente por um inimigo demasiado temível para que se lhe faça frente.

n.Um dispositivo literário malévolo para impedir o crescimento da língua e para a tornar rígida e pouco flexível. Este dicionário, no entanto, é uma abril muito útil.

n.Aquilo que autoriza os crimes do tirano e serve de desculpa para os fracassos do idiota.

Page 36: Dicionário do Diabo

36

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

v.t.Mentir acerca de outra pessoa. Dizer a verdade acerca de outra pessoa.

v.i.Chamar a atenção para os aspectos particulares que tornam, se possível, uma pessoa ou coisa mais censuráveis do que outras.

adv.Igualmente mau.

n.Um método para demonstrar os erros dos outros.

n.Conversão de vitualhas em virtudes.

adv.Pensar que o homicídio é crime.

n.Uma primeira experiência de baptismo notável, que lavou os pecados (e os pecadores) deste mundo.

n.pl.As objectes a este excelente dicionário.

n.Uma benção que só se torna vantajosa quando a damos a outra pessoa. Um sinal exterior de cultura e um passaporte para a sociedade elegante. Bem suportável.

v.i.Vestir uma camisa lavada por cima do carácter.

n.A arte patriótica de mentir pelo nosso país.

n.A única coisa que os ricos deixam que os pobres tenham e mantenham.

n.Um dito popular corriqueiro, ou provérbio. (Figurativo e coloquial.) É assim chamado porque obriga a não pensar muito. Seguem-se alguns exemplos de velhor ditados agora renovados:

Um tostão poupado é um tostão para desperdiçar.

n.Autoridade legítima para ser, fazer, ou ter; como o direito a ser rei, o direito a fazer mal ao próximo, o direito a ter sarampo, entre outros.

Page 37: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

37

n.O líder de uma nação que prefere a pestilência do despotismo à praga da anarquia.

n.Uma cerimónia formal preliminar à reconciliação de dois grandes inimigos. É necessária uma grande perícia para que a sua execução seja satisfatória; se for feita de forma desastrada, por vezes ocorrem as consequências mais inesperadas e deploráveis. Há muito tempo, um homem perdeu a vida num duelo.

n.pl.(Devido à consideração que temos pelos sentimentos de um grande e respeitável número dos nossos subscritores e anunciantes, a definição desta palavra fica suspensa.)

n.Um toque de corneta que separa os combatentes, fazendo-os lutar à distância.

n.Um estado de espírito desconfortável que pode ter uma base física,

Mais vale tarde do que antes de ter sido convidado.Ri melhor o que ri menos.Fala-se no Diabo e ele acaba por saber.Metade de um pão é melhor do que um pão inteiro, se houver outras coisas para comer.Entre dois males devemos escolher ser o menor.Malha-se no patrão enquanto o negócio lhe corre bem.Tudo vale a pena quando alguém o pode fazer por nós.

resultado de qualquer coisa que está a ser feita ao corpo, ou pode ser puramente mental, provocada pela boa sorte de outra pessoa.

Page 38: Dicionário do Diabo
Page 39: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

39

adj.Embriagado, bêbedo, tocado, borracho, toldado, com os copos, perdido, de rastos com uma carraspana, exaltado, encharcado, zonzo, atestado, langoroso, grogue, roscado, rubro, espumejante, bambo, mole, acabado, piegas, meloso, piedoso, alegre, etc.

n.Adquirir o barril de uísque que não é necessário pelo preço da vaca que não se tem dinheiro para comprar.

adj.Desprovido de consideração pelo egoísmo dos outros.

n.Uma pessoa que combina as funções judiciais de Mino, Radamante e Aecus, mas que é aplicável com um óbolo; um censor severo e virtuoso, mas tão caridoso que tolera as virtudes que encontra nos outros e os defeitos que encontra em si próprio.

n.Uma pessoa com mau gosto, mais interessada em si própria do que em mim.

n.A força que causa todos os fenómenos naturais cujas outras causas desconhecemos.

n.O brincalhão do reino animal, com o seu nariz flexível e com pouco espaço para acomodar os dentes.

n.Indivíduo que goza do privilégio sagrado de votar numa pessoa que foi escolhida por outra pessoa.

n.País imaginário e encantador que os antigos acreditam, disparatadamente, ser a morada dos

n.Aquilo que revela aos sábios e esconde aos tolos a sua falta de inteligência.

adv.Talvez; possivelmente.

n.O segundo de dois fenómenos que ocorrem sempre juntos e na mesma

ordem. Do primeiro, ao qual se chama Causa, diz-se que gera o segundo – o que é tão sensato como dizer-se que, por se ter visto um cão a perseguir um coelho, o coelho é a causa do cão.

Page 40: Dicionário do Diabo

40

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

espíritos das pessoas boas. Esta fábula ridícula e perniciosa foi varrida da superfície da Terra pelos Cristãos primitivos – que as suas almas sejam felizes no paraíso!

n.Um empréstimo que rende juros.

n.A arte de persuadir oralmente os tolos de que o branco é a cor que aparenta ser. Inclui o dom de fazer qualquer cor parecer branca.

n.Mudança que ocorre quando um servo passa da tirania exercida por outra pessoa para o despotismo exercido por si próprio.

n.Uma secreção cerebral que permite, a quem a tem, distinguir um cavalo de uma casa a partir do telhado da casa. A sua natureza e as suas leis foram exaustivamente expostas por Locke, que cavalgava uma casa, e por Kant, que morava num cavalo.

v.Umas das duas coisas que melhor conduzem ao sucesso, especialmente na política. A outra é Puxar.

adj.Um tipo especial (mas não peculiar) de mentiroso.

v.Dizer ao povo soberano que não vamos roubar se formos eleitos.

v.Beberricar, embebedar-se, beber como uma esponja, apanhar uma bebedeira, beber até cair, beber uma golada ou um trago. Numa perspectiva individual, o emborcando é olhado com algum desagrado, mas as nações que emborcam estão na vanguarda da civilização e do poderio. Quando comparados com os cristãos beberrões, os muçulmanos abstémios vão-se abaixo como a erva perante a gadanha. Na Índia, cem mil britânicos, alimentados a bife e a brande, mantiveram o domínio sobre duzentos e cinquenta milhões de

abstémios vegetarianos da mesma raça ariana.Com que facilidade os Americanos, entre duas goladas de uísque, empurraram os Espanhóis para fora das suas terras! Desde o tempo em que os Brutamontes atacavam a costa ocidental da Europa e adormeciam embriagados em todos os portos conquistados, tem sido sempre igual: por todo o lado se vê que as nações que bebem demais lutam muito bem e sem grandes problemas éticos.

Page 41: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

41

n.No jornalismo, um confessionário no qual a impudência ouve os disparates da vaidade e da ambição.

n.Umas das minhas ofensas, que se distingue de uma das vossas por estas últimas serem consideradas crimes.

n.Coisas sem importância, tais como as religiões, as filosofias, as literaturas, as artes e as ciências das tribos que infestam as regiões situadas a sul do Pólo Norte.

n.Pó soprado de cima de um livro para dentro de um crânio vazio.

n.Um escritor profissional com opiniões contrárias às nossas.

n.Uma palavra caída em desuso por expressar uma ideia que já não existe.

n.Aquela parte do canal alimentar que se situa entre o prazer e o negócio.

n.Uma doença de juventude que se cura com pequenas doses de arrependimento e umas aplicações exteriores de experiência.

v.Mover-se «de forma misteriosa», geralmente com os bens de outra pessoa.

n.pl.Os livros sagrados da nossa santa religião, que se distinguem dos escritos falsos e profanos em que se baseiam todos os outros credos.

n.Opositor de Epicuro, um filósofo abstémio que, ao mesmo tempo que defendia que o prazer deveria ser o principal objectivo do homem, não perdia muito tempo a gratificar os sentidos.

n.Uma inscrição num túmulo que demonstra que as virtudes adquiridas com a morte têm um efeito retroactivo.

n.Uma pessoa com vícios e manias que são sociáveis.

Page 42: Dicionário do Diabo

42

Dicionário do Diabo Ambrose Bierce

adj.Particularmente abstruso e consumadamente oculto. As filosofias antigas dividiam-se em dois ramos: exotéricas, que eram aquelas que os próprios filósofos conseguiam entenderem parcialmente; e esotéricas, que eram as que ninguém percebia. Foram estas últimas que afectaram mais profundamente o pensamento moderno, tendo encontrado grande aceitação nos nossos dias.

adj.O Hades.

n.Uma superfície plana de vidro, na qual é encenado um espectáculo efémero para deleite das desilusões do homem.

n.Um dom concebido por Deus aos devedores, para compensar o facto de serem destituídos de consciência.

n.Uma faixa de terreno através da qual podemos ir de um sítio cansativo para um sítio inútil.

n.Um soberano americano no seu período probatório.

n.A ciência que trata das várias tribos do Homem, como a dos gatunos, a dos ladrões, a dos aldrabões, a dos burros, a dos lunáticos, a dos idiotas e a dos etnólogos.

n.Desejo e expectativa combinados num só.

v.Ouvir secretamente um catálogo dos criminosos e vícios de outra pessoa – ou de nós próprios.Pelo buraco da fechadura, uma senhora ouviaO que, à vontade, uma amiga à outra dizia. E, por querer saber do que elas conversavam,

Descobri que era mesmo sobre si que falavam.«Eu cá acho», disse uma, «tal como o meu marido,Que ela é das tais que encostam o ouvido.»Quando já não suportava mais, então, a senhoraDesencostou-se da porta, pois só queria ir-se embora.«Não fico mais aqui», disse, amuando, por fim,«A ouvir estas mentiras que dizem sobre mim!»

Page 43: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

43

pron.A pessoa mais importante do universo.

n.Uma festa sagrada da seita religiosa dos Teófagos.Em tempos, teve início uma infeliz discussão entre os membros desta seita, afinal, aquilo que comiam. Por causa desta controvérsia, foram já chacinadas quinhentas mil pessoas, estando a questão ainda por resolver.

n.Aquele que traz as boas-novas, sobretudo (no sentido religioso) as que asseguram a nossa própria salvação e a maldição dos nossos semelhantes.

n.Uma classe de pessoas improdutivas que, para defenderem a sua nação de uma invasão, devoram tudo aquilo que o inimigo possa querer.

n.Evidente para o próprio e para mais ninguém.

n.Indivíduo que serve o seu país por viver fora dele, sem que, no entanto, seja um embaixador.

n.Um dos muitos métodos pelos quais os tolos preferem perder os seus amigos.

n.Um método de distinção tão barato que os parvos o usam para acentuar a sua incapacidade.

n.Estado ou condição mental que, no cortejo das emoções humanas, é precedido pela esperança e seguido pelo desespero.

n.Matéria-prima com a qual a teologia criou o estado futuro.

adj.A forma como aquele idiota do Silva se vai safando; enquanto nós, que temos muito mais talento do que ele, não saímos da cepa torta.

n.Uma maleita perigosa, que atinge os altos funcionários do Estado quando querem ir pescar.

Page 44: Dicionário do Diabo
Page 45: Dicionário do Diabo

Dicionário do DiaboAmbrose Bierce

45

Na primeira tradução portuguesa deste Dicionário do Diabo, ainda que abreviada, não poderia faltar a entrada que supostamente define este nosso povo, sempre ansioso por saber o que os outros pensam dele lá fora:

Portuguses, n.pl. Uma espécie de gansos nativos de Portugal. Quase não têm penas e não são muito bons para comer, mesmo quando recheados com alho.

A dificuldade desta entrada, tal como ocorre com algumas entradas que integram esta edição e com outras que foram excluídas, reside no facto de a ironia estar centrada numa questão meramente fonética: Portuguese (Portugueses) / Geese (Gansos) – com a terminação da primeira palavra a soar igual à segunda palavra, na pronúncia inglesa. Nalguns casos, torna-se possível resolver a situação com outro jogo de palavras que mantenham o sentido lúdico – por assim dizer – do jogo original; no presente caso, o tradutor assina a rendição neste posfácio; evitando a mácula explicativa ao fim da página e deixando ao leitor a restante exegese desta entrada tão edificante.

Rui Lopes

Page 46: Dicionário do Diabo