a parte do diabo - miche maffesoli
TRANSCRIPT
A P A R Í £ n 0 n l A B O
M i c h e l M a f f e s o l i
A U\lí p O p l A B O
Tradução de CLÓV1S MARQUES
1E D I T O R A R E C O R D
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2 0 0 4
C IP -B rasil. C at3!ogação-na-fonte S in d ica to N acional dos E d ilo res de L ivros, RJ.
M affeso li, M ichel, 1944- M 1 6 2 p A parle do d iabo / M ichel M affesoli; tradução de C lóvis
M arques. - R io de Janeiro : R ccord, 2004.
T rad u ção de: La p ari du diable ISB N 85 -0 1 -0 6 5 9 1 -9
1. B em e m al. 2. P ó s-m o d ern ism o . 3. C iv ilização m oderna. I. T itulo.
C D D - 111.840 3 -2 0 6 6 C D U - 111.84
Títu lo origina! cm francês: L A PART DU DIAEiLE
C opy r ig h t © 2002 by Flam m arion
T odos os direi tos reservados . Proibida a reprodução, a rm azen am en to ou t ransm issão de partes deste livro através de quaisquer m eios , se m previa au tor ização por escrito. Proib ida a venda desta edição em Portugal c resto da Europa.
D ire i tos exclus ivos de publicação cm língua portuguesa para o ü ra s i l adqu ir idos pelaD I S T R IB U ID O R A R E C O R D D E S E R V IÇ O S D E I M P R E N S A S.A. R ua A rgen t ina 1 7 1 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 q u e se reserva a p ropriedade li terária desta tradução
Im presso no Brasil
ISB N 85-01 -0 6 5 9 1 -9
P E D ID O S P E L O R E E M B O L S O P O S T A LC aixa Postal 23.052R io de Janeiro , RJ - 20922-970
-v—E D IT O R A AFILIADA
Para Raphaêle, que sabe muito bem que o que não mata fortalece.
Su m á r i o
P r ó l o g o
C a p í t u l o IPequena epistemologia do Mal
C a p í t u l o IIO conflito estrutural
C a p í t u l o III Variações sobre a sombra
C a p í t u l o IV Inteireza do ser
C a p í t u l o V Transm utação do Mal
P r ó l o g o
"Jc suis tom bé par terre C'est la faute à Voltaire, Le nez dans le ruisseau
C'est la faute à Rousseau. "*
Não existe nada pior que alguém querendo fazer o bem, especialmente o bem aos outros. O mesmo se aplica aos que "pensam bem", com sua irresistível tendência a pensar por
no lugar dos outros. Encouraçados em suas certezas, eles não têm espaço para dúvidas. E é claro que não apreendem
a complexidade da vida. A coisa em si não teria tanta im portância se esses donos da verdade, intitulando-se deíen.- tores legítim os da palavra, não decretassem o que a
sociedade ou o indivíduo "devem ser".}Este m agistério m oral — pois é efetivam ente de
moralismo que se trata — é perigoso. O fato é que, esquecendo o que velhas memórias ensinaram ao senso com um
*"C a í no ch ão / a culpa é de V oltaire, / co m o nariz no riach o / a cu lpa é de R ousseau."
12 A parte do Diabo
— a saber, que \o inferno está^cheio de boas intenções"!— , esquecidos da saudável lucidez de um Heráclito ("brincadeira de criança, as opiniões hum anas"), os moralistas de
todas as tendências transformam em verdade absoluta os valores culturais de um mundo cuja perenidade está longe
de ser urna-certeza., .."£) "bem'Ocom efeito, é a justificação última do messianismo füdáíco-cristão. As teorias da em ancipação e o universalismo modernos, que constituem suas mais recentes manifestações, também se escoram nesse princípio básico.
; Poi em seu nome que as diferentes inquisições fizeram seu
trabalho sujo. Km seu nome é que foram cometidos todos os etnocídios culturais e justificados os im perialism os econôm ico e p o l í t i c o . mais uma vez, em seu nom e que
se decreta o que deve ser vivido e pensado, com o se deve viver e pensar, je que se declara tabu esta maneira de viver ou aquele objeto de análise. Este universalismo foi a justificação de todos os colonialismos, dos etnocídios culturais que constituíram a marca da ocidentalização do m undo a partir do fim do século XIX.
Um (conform ism o'canhestro, pois já fora de propósito . Conform ism o perigoso, porque ,aquiIo cuja existên- cLa_S£_jaega-— com p lexidad e galop an te, relativism o cultural, tribalismo em ocional e outros sentim entos de vinculação, já fora de sintonia com as teorias bem-pen- santes — pode tornar-se-Dervcrso.'Ou seja, tom ar cam inhos desviados, p er via, e por isto m esm o fugindo aocontrole. As inúteis querelas intelectuais, políticas e de
fescolas não passam da expressão do enclausuram ento da
Prólogo 13
intelligentsia em seu m undo que se acaba. Ela não co nhece seu próprio tem po. Este se vinga com todos os tipos de excessos. D isto co n stitu em os in d ício s m ais
m arcantes a volta dos diferentes fanatism os e dos m últiplos terrorism os, assim com o a rebelião, m ais ou m enos violenta, dos jovens dos subúrbios, para não m encionar a deserção de num erosas instituições.
,De fato, silenciosa ou ruidosa, a revolta^germina.fSilenciosa, ela se m anifesta na passividade, no recuo, na inatividade dos jovens. Ruidosa, nos pegas autom obilísticos, nas vaias à Marselhesa no Estádio da França —
exem plos não faltam . Com o num a nova secessio plebis, tal com o na retirada do povo rom an o para o Aventino,
1 já não há adesão aos^princípios de fachadâxjue deixaram de ter qualquer vinculação com a realidade da vida. Esta rebelião, ao m esm o tem po sorrateira e eficaz, significa, com certeza, que está chegando ao fim um ciclo, o que foi inaugurado com a consagração do bem com o valorabsoluto.
L' ■Muito antes desta consagração, em outros mom entos,
em outros lugares do mundo, o que se levava em conta era um politeísmo dos valores, um policulturalismo ou entãoo que podemos chamar delefeito d e com posição', cultura e
p matéria-prima, bem e mal, morte_e yidaoPeriodicamente
verifica-se um "(re)nascim ento" deste m undo com posto. Nascemos novam ente para um real plural. É um período de muda baseado na relativização dos valores. Por sinal, é assim que devemos entender a m udança inaugurada pelo Iluminismo, no alvorecer da modernidade: diante de um
14 A parte do Diabo
mundo estancado, eles enfatizam o dinamismo e a circulação de idéias.
Hoje, frente aos estatutos sociais supostamente im utáveis (classes, categorias socioprofissionais)^ afirm a-se a
, exigência da m obilidadg,]0 mesmo se dá por meio da circulação de livros e jornais, real e virtual, pela proliferação das trocas: comércio de bens, comércio de idéias, comércio am oroso. Já mostrei em outras circunstâncias1 com o esta troca generalizada constituía a marca inconfundível das "revoluções" societárias. As tribos urbanas, cuja im portância ninguém mais nega, e m esm o, não obstante o que se convencionou cham ar de "crise", o hedonismo difuso que opera em nossas sociedades, delimitam muito bem os con tornos dessa profunda m utação.
Revolução que, em seu sentido etimológico, assiste ao retorno daquilo que julgávamos ultrápassado. Com o observa Lévi-Strauss, "o hom em sempre pensou bem assim". Poderíamos acrescentar que tam bém sempre viveu mal. E no entanto, em meio à trágica beleza do m undo, ele vive. Contra o progressismo judaico-cristão, em penhado em explicar tudo (ex-plicare, retirar as pregas), afirma-se um
^pensamento "progressivo", sabedoria que implica todas as maneiras de ser e pensar, a alteridade, a errância. Eis, portanto, a m utação pós-m odem a, aquela que aceita as "pregas" dos arcaísmos pié-moosinos.
Temos, então, algo par? o qual cham o a atenção há algumas décadas, algo que hc je se torna uma realidade in- contornável:jotílb ã Iu õ n Icr f. m also valor essenciali É bem verdade que o desemprego r^uitas vezes é encarado com o
Prólogo 15
uma desgraça. Mas muitos jovens nem por isto chegam a
desejar um em prego estável. Pelo contrário, vão-se adaptando ao vaivém Trabaího: de s e m p r eg o , ] a contratos precários seguidos de períodos de seguro-desem prego. Resumindo: tudo, menos uma carreira de empregado com salário m ínim o ou funcionário dos Correios. £> trabalho, vale lembrar, era o instrum ento privilegiado da ação so- bre si m esm o e sobre o m undo,_e isto para alcançar o
"bem ", a perfeição futura. O trabalho era causa e efeito do ho m o oeconomicus, de um indivíduo reduzido à pro- dução.e que tinha- o-produtivismQ_com o.ideologia po.r
excelência. . r ^Este prometeísmo moderrjo vem sendo sucedido pela
figura mais com plexa de Dioniso. Hedonismo generalizado. Selvageria latente. Animalidade serena. Também aqui,, furiosa ou calm am ente, mas sempre com obstinação, a pessoa plural se afirma.^A pessoa composta ("eu é um outro"), antagônica, contraditória. Esta inteireza dionisíaca implica oj^maí" - Com o acontece freqüentemente, a música, os filmes, a pintura e a coreografia evidenciam claram ente esta implicação. Com efeito, na.idpologia do hom ç oeconomicus, o fato de o indivíduo ter sido analisado com o pi vô ãút(>suficien té da sociedade acabou fazendo com que
fosse eliminada ou pelo menos postulada a superação da
to p e rle iç ã a Em contrapartida, a reafirm ação da pessoa plural num m undo policultural tende a integrar o mal com o
um elemento entre outros. Ele poder ser vivido, tribalmente— e, com isto, "homeopatizar-se", tornar-se mais ou m enos inofensivo. Cabe supor que uma parte dos problemas
16 A parte cio Diabo
dos professores nos colégios considerados problemáticos decorre de sua propensão a ver uma turma com o uma soma
de indivíduos que precisam ser aperfeiçoados, e não com o
um grupo com suas dificuldades, mas tam bém com suas potencialidades coletivas.
É isto, portanto, o que está em jogo na m utação pós- moderna. Reconhecer "o que cabe ao diabo", saber dar-lhe bom uso, para que não sufoque o corpo social. Uma sabedoria cujo perfil foi apontado por M arco Aurélio, entre tantos outros: "Pois irritar-se contra o que é eqüivale a abandonar a natureza universal, numa parte da qual estão contidas as naturezas de cada um dos outros seres2".
Cabe portanto, sem canonizá-la nem tam pouco estig- m atizá-la a priori, reconhecer que,vivem os a hora da anqmia.jSeria o caso de rememorar o lema de Rimbaud: "O poeta torna-se vidente por meio de um longo, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, esgota em si próprio todos os venenos, para guardar deles apenas as quintessências. Inefável tortura3..." O vidente Rimbaud tornou-se uma referência acadêmica, mas
sua "dêV.assidâo" poética*contam inou muitas práticas juvenis, podendo o seu eco ser ouvido nos Lipstick traces deixados pelos Sex Pistols e outros revoltados do rock, da hou see da techno.
Aí estão o excesso, o demonismo e as variadas efer- vescências de diferentes ordens, afirmando q u e Dioniso é efetivamente o "rei clandestino" da época. No limiar do século XXI, a história secreta do século X X transforma-se
Prólogo 17
em destino manifesto. Eu diria que a "criança eterna", rui-;/ dosa, cruel, generosa, não-conform ista e que renasce não é
mais uma questão de idade, mas um a atitude, um estado
de espírito, um "situacionism o" que se generaliza aos poucos no conjunto das gerações.
Teríamos aí uma m ística da violência, tal com o descrita por G. Sorel em outro co n texto ? Talvez. Especialm ente na medida em que une os que com partilham seus mistérios, os que com ungam os mesm os m itos. O que é certo é a revivescência de um a erótica social, de uma orgiástica difusa ou — para empregar term os mais acadêmicos — o retorno da libido sentiendi, a libido do sentir, e isto não pode ser apreendido através das categorias pró- prias à libido sciendi, preocupada apenas com o saber abstrato, ou à libido dom inandi, para ajjual só im porta a^ política, o poder, coisas, enfim, inventadas pelos "m ortos-vivos" que têm a pretensão de pensar ou gerir o m undo. Por isto é que a problem ática da integração por meio de uma "educação cidadã", ou seja, por um saber sobre as instituições e os poderes estabelecidos, é um engodo, só podendo produzir mais frustração.
Impõe-se, assim, um redim ensionam ento teórico. Só ^podemos entender bem um a época sentindo seus odores., j
I Qs humpres soçiais.e insüntivos são mais eloqüentes a seu í respeito do que muitos tratados eruditos. Neles exprimem-i se os afetos, as paixões, as crenças que a permeiam:.É assim
que se manifestam os sonhos mais desvairados com que ela joga ou dos quais vem a ser joguete. É assim que podemos entender que a "parte destruidora", a do excesso ou da
18 A parte do Diabo
»efervescência, é exatam ente o que sempre antecipa uma
nova harm onia.Mas só poderem os com preender bem o im pacto dessa
revivescência se tivermos por ela alguma apetência. Não
adesão, mas com preensão, em seu sentido sociológico. A
análise não precisa necessariamente ser crítica. Também é
possível "sentir-se em sintonia", vale dizer, captar, sentir, justamente, a carga afirmativa que move uma época. Hou
ve quem zombasse da idéia, mas insisto na necessidade de formular um "pensam ento do ventre". Afinal de contas, é lá que está a vida, com tudo ou, às vezes, contra tudo. Tem os de saber com o descrevê-la.
A dissidência dissemina-se. Não podemos limitar-nos a
julgá-la pelos parâm etros políticos. Ela não se reconhece
neles.xNão é possível avaliar, a partir da ideologia econôm ica ,u m desejo.de. "consum ação", o desejo de desperdi- çar ou queimar as coisas e os afetos, que se generaliza cada vez m ais/É aí que a arrogância dos bem-pensantes chega a
seu limite. Eles têm a seu lado a imprensa oficial, aquela mesma que nos primeiros sobressaltos dos anos 60 era qualificada de "órgão de todos os poderes". Órgão de todas as impotências seria mais apropriado no m om ento atual, de
tal maneira os protagonistas de então tornaram -se gestores
de um m undo m orno e sem criação. A imprensa oficial é
cada vez menos lida pelas gerações jovens, que preferem a horizontalidade da Internet, com seus foros de discussão e
outras busca? de encontros, :ajam sexuais, filosóficos ou religiosos.
O saber/poder oficiai, aqu ele que se limita a distribuir
Prólogo 19
certificados de conformidade, que cuida da assepsia da sociedade e do saber, tornou-se abstrato demais. A abstenção
é a única resposta devolvida a todos esses dirigentes. Insis^ timos: a energia juvenil deixou de ter com o objeto a reivindicação, o projeto, a história. Ela se manifesta e se esgota*, no instante — festas, solidariedade na urgência — e não
precisa de uma tradução política abstrata. Daí a abstenção em massa, a não inscrição nas listas eleitorais e outras for
mas de indiferentismo. Foi o que chamei de A transfiguração do político.
Torna-se, então, uma imperiosa exigência intelectual pensar o sensível em todas as suas manifestações. Ignorando os "cães de guarda"; temos de enveredar pelos cam inhos
arriscados escolhidos pela socialidade de base. Não podem os, com efeito, lim itar-nos à via rccta, balizada pelo
racionalismo moderno; o que é preciso, pelo contrário, é
construir uma razão mais rica, aberta ao paradoxo e, portanto, capaz de pensar a polissemia que acabamos de abor- dar. Para com preender os fenômenos jo ciais e m a ç ã o n o s
dias de hoje, é necessário mudar de perspectiva; não mais criticar, explicar, mas _compreender,_admitir. Sem nos de-
termos novam ente no mesmo ponto, além das representações, filosóficas e políticas, cuja saturação é evidente, é
preciso apresentar fenomenologicamente o que acontece. Sugerir a matéria prima* deste enigma que é o mal. Não por
meio de um estetismo barato, mas para capturar a inteireza dos fenôm enos que estão em primeiro plano na cena
* E m la t im n o te x to .
20 A parte do Diabo
social. Ainda que seu nom e seja variável — Estado, Indiví
duo, Deus, Contrato etc. — , nunca faltarão advogados de
Deus. Opportet haereses esse, é preciso que haja alguns
advogados do diabo4.Como veremos, a questão é delicada. Talvez por isto o
pensamento do mal tenha sido por muito tempo afastado ou confinado à arte, à poesia ou a alguns autores malditos. Malditos em sua época. Pois se evocarmos Schopenhauer, Nietzsche, Baudelaire, Rimbaud, Simmel ou M. Weber (todos contestados em sua época), quem se haverá de lembrar do nome de seus detratores? Cabe supor que a arrogância
dos mestres-escolas e outros escribas bem-pensantes de hoje mereça a mesma sorte. Não demorará para que se junte ao
ossário das realidades.Este livro pretende apontar muito precisamente uma
tendência de fundo da vida pós-moderna: a ligação orgânica entre o bem e o mal, entre o trágico e a jubilação. Por um surpreendente paradoxo, é aceitando o mal, em suas diferentes modulações, que podemos alcançar uma certa
alegria de viver. O amor fati nietzschiano transformando- se em um "amor do mundo" pelo que ele é. Amor da ne-
, cessidade empiricamente vivido e que será preciso, por isto mesmo, tratar de pensar.
A vida empírica, que deve ser nossa derradeira referência, "sabe" tudo isto perfeitamente. Nada há de original nas páginas que se seguem: estas idéias estão em todas as m entes. Mas é preciso ter a coragem de formulá-las. Nada de original no que vem das origens. É talvez o que Heidegger pretendia destacar ao observar a proximidade, em grego,
Prólogo 21
entre a dor e a linguagem (Algo, Logos). À m inha m aneira/ eu diria que a doi da "palavra perdida" incita a dar a pala-' vra à dor reen contrada, e, desse m odo, a (re)tornar a um
hum anism o integral. Aquele que sabe reconhecer o que é do diabo.
Notas do Prólogo
1. Sobre o nomadismo, Record, 2001.2. Marco Aurélio, "Pensées" II, 16, in Les Stoicicns, Gallimard, La
Pléiade, p. 1150.3. Rimbaud (A.), Lettie à Demeny. Cf. Lefrcre (J-J-)/ A. Rimbaud,
Fayard, 2001, p. 270 e p. 263. Cf. tambcm Marcus (G.), Lipstick Tiaces. Une histoire secrète du vingtième siècle, ed. Allia, Paris, 1998.
4. Sobre a razão aberta, cf. Maffesoli (M.), Éloge de la raison sensible, Grasset, 1996.
C a p í t u l o I
P e q u e n a e p i s t e m o l o g i a d o m a l
"Nicht'raus, sondem durch."
C. G. J ung
O E s p ír it o a n im a l
Uma reflexão para todos e para ninguém? É no m ínim ode- licado, em nossa tradição cultural, mostrar de que maneiras o mal nos persegue, em suas diversas modulações: agressividade, violência, sofrimento, disfunção, pecado — a lista poderia prosseguir infinitamente. E isto tanto individual quanto coletivamente.^Não há quem não seja afetado, e são poucos os que querem conhecer os efeitos de semelhante
realidade- Pois o que é, é. A sombra faz parte desta banalidade básica. Elemento de base em numerosos mitos, onipresente em nossos contos e lendas, obsedante nos sistemas filosóficos, ela é também uma pedra no cam inho da doutrina religiosa, pelo menos no Ocidente.
É por isto que me dirijo aos espíritos esclarecidos. Aos que não têm medo de uma lucidez revigorante para uso
28 A parte do Diabo
individual e social. De fato, está na hora de superar a pro- , xrblemática do hdmem realizaáo em sua totalidade, da socie-^- dadéperfeiti.SÜinda que com o ideal, com o tensão, com p ' projeto. Pois é esta a melhor maneira de provocar a reali
dade que se tratou de negar, com o um retorno do.que foi recalcado. No fim das contas, reconhecer que a imperfei-
> ção também é um elemento estruturante do dado m undano, talvez um ângulo particularmente pertinente de ataque dos fenômenos sociais. Especialmente se aceitarmos a hipótese do "sentim ento trágico" da vida, o que parece cada vez mais evidente.
Aceitemos o desafio desta visão, ainda que de maneira metodológica. Como alavanca operacional, para melhor entender todas essas atitudes presenteístas e m esm o hedonistas, esta mística corporativista ou ainda este poderoso relativismo, todas tendências que, de maneira difusa, contam inam a vida corrente.
Perspectiva metodológica — caberia talvez dizer epis- temológica — que enfatiza o paroxismo, a caricatura, a forma como capacidade de pôr em palavras o que é vivido. Da
mesma maneira, Julien Freund, analisando o conflito, inerente a toda sociedade humana, falava de uma "situação excepcional”, não no que tinha de factual, mas por servir de revelador. E ele especificava, por sinal, que ciclicamente esta situação retorna com toda a força1. É possível, por algum tempo, mascarar seus efeitos, apagar seus aspectos mais fla-
s: grantes, mas ela estará sempre lá, entrincheirada, pronta a ressurgir, nos atos privados e nas ações públicas. Daí o interesse metodológico da análise do conflito.
Pequena epistemologia do mal 29
Termo algo genérico mas fortem ente evocativo, o_con- flito pode, portanto , "indicar-nos o cam in h o ", orientar o pensam ento para este não-dito h u m ano, esta coisa terrível cu jo cará ter fundador a h istó ria está sem pre relem brando:-a vida e a m orte estão in tn n seçam en te ligadas. \ •- f v ■ -- '
Constata-se uma volta do mai com toda a força. Refiro- me àJface^obscura de n ossa natureza. Aquela m esm aq u ea cultura pode em parte dom esticar, m as que continua a animar nossos desejos, nossos medos, nossos sentimentos, em suma, todos os afetos. Esta volta com toda a força talvez seja aquilo m esm o a que nos referimos há algumas décadas, de maneira bastante incerta, com o "ájcrisè". Fan-
' 1 J . . . j . ■<*4r
tasrna que assombra a consciência dos dirigentes da socie- . dade, e que nada mais faz além de expressar o que eles haviam negado, mas que continuava existindo naquela memória imemorial que é o inconsciente coletivo. A atualidade mais recente não se mostrou propriamente avara em matéria de fenômenos aterrorizantes: da queda das Torres Gêmeas ao terrorismo biotóxico, passando pela exacerba-- ção de ameaças tanto mais angustiantes por serem difusas, ^ a volta do mal está na ordem do dia.
Podemos encarar esta crise de forma pessimista, quer dizer, com desconfiança, ou então empiricamente, como algo que está aí, que precisam os absorver e, portanto, com o possível fator de revivescência. Podemos também nos questionar sobre a espantosa pulsão que leva os Estados, as Igrejas, as regiões, as cidades, as instituições religiosas e filosóficas a com em orar, a celebrar, '^inypjçaLasjar.igens.1
30 A parte do Diabo
Anamnese dos m itos fundadores, celebrações de diferentes naturezas para a jubilação coletiva!
Acontece que a idéia básica dos jubileus — e neste sen- >■' tido a Cabala nos fornece um esclarecimento dos mais ins
trutivos — consiste em restabelecer cada coisa a seu estado
primitivo2. É uma lei social das mais conhecidas: todas as^ ............................- - - V--,. .
" coisas tendem a perder vitalidade. Esvai-se a lembrança da efervescência fundadora. O choque amoroso transforma-
se em tédio conjugal, a energia revolucionária vira partido político institucional, o dinamismo juvenil do início inverte-se em repetitividade monótona. Até m esm o a intuição criadora de um pensamento inovador tende a tornar-se sistema empalhado, com seus dogmas e seus cães de guarda em zelosa vigilância da rigidez doutrinária. As histórias h u
manas fornecem numerosos exemplos neste sentido. Por
isto é que o jubileu lança mão da lembrança das origens.
Portanto podemos interpretar a pulsão jubilar de que tratamos, para além de seu aspecto institucional, como o trabalho do inconsciente coletivo voltado para dar força e
vigor àquilo que cria o ser coletivo original. Cabe rememorar, a este respeito, a descrição que E. Durkheim faz, em
^ Les Formes clém entaires de la vJe religieuse, das festas
"corroborie" das tribos austrálianas. Dispersas pelo territó
rio, envolvidas em suas ocupações habituais, essas tribos são periodicamente movida? por um instinto misterioso e entram em "estado de congregação". Tais festas dão lugar a vários excessos, chocantes para a moral. No entanto, é nesses m om entos de efervescência que a comunidade ratifica o sentim ento que tem d<2 si mesma. Todas as festas de
Pequena epistemologia do mal 31
inversão, as reuniões festivas de que nos falam os historiadores, têm o mesmo espírito: falam-nos da força da anomia. Elas lembram o poder dos afetos, dos sentidos ou de uma cultura que a civilização ainda não domesticou com pletamente.
É nesta perspectiva, aqui indicada alusivamente, que podemos falar de uma pequena epistemologia do mal. Saber esotérico para uso de uns poucos, na medida em que des
creve as forças profundas que animam cada um e a vida da
sociedade em seu con ju nto . Longe estamos da am bição da filosofia do Ilum inism o e de seu desem p enho pro- metéico. Mas perto de um saber "dionisíaco", um saber enraizado. Algo a que me referi, no devido momento, como
um "conhecim ento ordinário" (1985), próximo da "alma
do arbusto" (bush soul de que faia C. G. Jung). Próximo
também dessa "gramática parda" que encontramos no pensamento espanhol. Por mais paradoxal que pareça, trata-se de um espídto natural lembrando que a teoria, no sentido mais etimológico, e essencialmente contemplativa Ela faz o elogio do que é.
Um saber belo ou inútil, indiferente à ação sobre o
mundo, mas empenhado em reconhecer — com o indica o lógico P. Feyerabend — que "tudo é bom ", até m esm o o
mal, m esm o a disfunção, mesmo o que é considerado pecado, m esm o o con trad itório . Da coincidentia oppo-- sitorum que desemboca na "douta ignorância" de Nicolau de Cusa ao "contraditorial" cuja pertinência foi dem onstrada por S. Lupasco, trata-se de uma tensão fundadora, sempre renovada, e qu= não pode resolver-se num a sínte-
32 A parte do Diabo
se ou em outras formas de uniformidade ou universalismo. Tam pouco seria o caso de saber para poder. Seria mais de
um saber incorporado. Quer dizer, um saber que, no coti
diano, localmente, dá ênfase à falta, ao vácuo, à expe- riêricia que apresenta não uma eficiência externa, m as uma eficácia interna. Saber do corpo, individual e coletivo, no qual felicidade e infelicidade, jubilação e desamparo estão intim am ente ligados. Saber do sem-triagem, que não passa necessariamente pela conscientização ou a verbalização, mas garantindo a longo prazo a perduração obstinada da vida. Ainda que a ela integrando seu oposto: a morte e suas diferentes manifestações cotidianas.
E bem verdade que existe aí um paradoxo. Mas não será exatamente assim que podemos resistir a longo prazo ao aspecto totalizante, logo totalitário, da "vontade de saber3"? Vontade unidimensional que tende a transformar um valor específico cm valor absoluto.. Vontade castradora, no indivíduo, dessa zona sombria que também é sua. É efetivamente o que encontramos nesse paradigma que vem a
ser a gíria em suas diferentes modulações, invertendo a
ordem das palavras e empenhado em exprimir um mundo diferente daquele que a ordem estabelecida pretende impor4. A poética da gíria, como a de qualquer língua secreta,
remete a uma espécie de sabedoria demoníaca que enfatiza a inteireza do ser, ainda que em seus aspectos menos atraentes. Afinal, os humores, em suas diversas secreções, também
são necessários ao equilíbrio corporal, garantindo seu bom funcionamento. Não seria possível dizer o mesmo a respeito do corpo social?
Pequena epistemologia do mal 33
É interessante observar que de São Paulo a Santo Agostinho, dos filósofos do Iluminismo às diversas íeorizações
hegeliano-marxistas, o universalismo judaico-cristão próprio da tradição ocidental, tem-se empenhado furiosamente em teorizar, em tentar pôr emprática o bem. Da "Cidade
de Deus" à sociedade perfeita, vamos encontrar a mesma tensão: mobilizar as energias individuais e sociais para concretizar um remate, uma parúsia que eliminasse a parte obscura do humano.\Não menos interessante ê observar que da Inquisição aos diferentes gulags,'passando por todos os etnocídios e colonialismos recentes, semelhante utopia não
se realizou sem danos.1 De tanto querer educar a natureza, chegamos aos estragos econômicos de que com eçam os a nos conscientizar. Çom demasiada freqüência a colonização, o imperialismo, o com unism o e os diversos m ono- teísmos de ambições expansionistas são analisados em seus excessos — o racismo colonialista, o stalinismo, a Inquisição, a destruição das culturas originais, a imposição das religiões ocidentais pelos missionários. No entanto, esses "desvios" constituem a consumação lógica e inelutável de uma visão universalista do mundo., A partir do m om ento em que o Ocidente representa "a civilização”, 6 legítimp que ela seja imposta em detrimento das culturas nativas; se o com unism o representa um Estado melhor, pode e deve ser instaurado por meio da violência. E isto inclui os integris- mos atuais, que de certa forma respondem, exacerbando sua diferença, à tentação sempre hegemônica da democracia. Da mesma forma, a medicina ocidental, encastelada na certeza de que o progresso científico deve ser capaz de ven
34 >4 parte do Diabo
cer todas as doenças e todos os sofrimentos, conduz inevitavelmente às mortes causadas pelos próprios efeitos dos tratamentos: quimioterapia para o câncer, que ataca tanto
o coração quanto as células doentes, infecções hospitalares que afetam um quarto dos doentes internados, para não
falar das dependências medicamentosas.É contra a "violência totalitária" deste universalismo que
vem ressurgindo o que denominei sabedoria demoníaca.;
Sabedoria incorporada,^ mais vivida que pensada, que é essencialmente rclativLsta. Vale dizer: que relaciona todos os elementos constitutivos da natureza, inclusive os mais sel
vagens. Sob o impulso dessas culturas consideradas bárbaras, que julgávamos marginalizadas, são muitas as técnicas do corpo, os sincretismos filosóficos e religiosos que tra
tam de embaralhar os códigos racionalistas: os da teodicéia cristã, de uma vida social programada e sem riscos. E a vol
ta dos orientes míticos! Cabe mencionar, é claro, a onda
crescente — paralelamente às medicinas ocidentais tradicionais mais alternativas (homeopatia, fitoterapia) — das
técnicas de tratamentos orientais — acupuntura, shiatsu —
assim com o das técnicas de meditação, das artes marciais e outras maneiras de organizar a vida, o espaço.
De uma forma paroxística, encontram os uma postura
de resistência com o esta na bruxaria, consistindo — de acordo com urna análise d e ju n g — em alterar a ordem das letras,
para "derrubar a ordem divina, com objetivos diabólicos, e estabelece: em seu lugar uma desordem infernal". Esta "de
formação mágica das p a b ^ a s ” é paradigmática. Pode ser encontrará, com o indiqv-í., na gíria da bandidagem e da
Pequena epistemologia do mal 35
marginalidade, mas também em todas as técnicas do New Age e outros discursos dissociados da ordem econôm ica estabelecida. Da astrologia às medicinas paralelas, consta
tamos a mesma preocupação popular: encontrar uma ordem interna, que tem seu próprio rigor, mas que se baseia na interação permanente do material com o imaterial5.
Correspondências, analogias, metáforas: são muitos os instrum entos que, utilizados neste sentido, insistem na
sinergia, na complexidade dessa estrutura holística que vem
a ser o indivíduo "ligado" ao outro humano, ao outro animal, ao outro natural. Mas assim como o.universalismo
abstrato repousava na' rejeição da morte —■ com o no en cantam ento de São Paulo: "Morte, onde está tua vitória?” — , tambémia aceitação da "parte maldita” remete a uma outra tática frente à finitude, a da integração homeopática
do mal. O reconhecimento da impermanência de todas as coisas é, assim, uma forma de se estar seguro da perduração,
a longo prazo, do todo...,Esta tática é cotidiana, e se a bruxaria, stricto sensu, é
excepcional, são muitas as crenças que, sem se declararem
com o tal, compartilham a mesma lógica.,O psicodelismo só é uma cultura menor para aqueles que ainda se julgam em posição de dirigir a sociedade. Na realidade, ele está em
toda parte. Um indicador disto é a música; que, com o "fato /.
social total", constitui um bom resumo desta seiyagerizj.ção. da vida. Os ídolcs dos jovens, solistas ou grupos musicais,
exprimem, uns mais outros menos, um dem onism o am
biente. Reencenando os transes arcaicos, eles ritualizam a m orte, m ostrando seu aspecto inevitável e, talvez, sua
36 A parte do Diabo
fecundidade. Pouco importa, nesses fenôm enos de excesso, o prometeísmo de um indivíduo e de um a sociedade
"plenos", positivos. Prevalece, em contrapartida, uma en
cenação, às vezes aterrorizante, do que é a m orte que insistem em minimizar. Entende-se melhor, nessas condições,
por que as raves, que no fim das contas certamente não oferecem mais tóxicos que as boates, e, de qualquer maneira, fazem muito menos mortos que as saídas das festas de sábado à noite, tenham parecido tão.perigosas aos políti- cos^Nelas o transe, os "produtos", a violência são integrados à festa e não deixados na porta.
Uma postura existencial desse tipo é, no fim das contas, tradicional. Em todas as culturas pré-modernas, mas também em todos os mitos humanos, encontramos o ciclo da morte e da vida. Analisando a "morte africana", o antropólogo L.-V. Thomas chega a enxergar nela um fator de equilíbrio estrutural. Exacerbando a morte, representando-a por mímica, o que se faz é desdramatizá-la, torná-la familiar. É certamente um processo idêntico que testemunham os nas histerias musicais contemporâneas.-Os ritmos
. techno, as síncopes do rap, ao mesmo tempo que embaralham os códigos dos discursos racionais, exigem uma vitalidade que mergulha profundamente suas raízes nos "vácuos"
.da inteireza h um ana. A vitalidade desta terra em que "estamos aí". Desta terra de que somos feitos e que faz de nós o que somos. É isto a sabedoria demoníaca, que, no fim
das contas, vale tanto quanto qualquer outra.Como estamos falando de profundidade, trata-se de uma
intuição, ou seja, não de um olhar externo e abstrato, mas
Pequena epistemologia do mal 37
de uma visão do interior. Intuição que podemos aproximar dessa "grandeza negativa" de que falava Kant, e que não é uma negação da grandeza6. Podemos encontrar diversas
expressões dessa idéia: a efervescência, a anom ia de Durk- heim ou Guyau, a "parte maldita" de Bataille ou o " instan
te obscuro" de Bloch são como exemplos afirmando, sempre e mais uma vez, que a vida não pode ser reduzida à utilida-: de. A proximidade do excesso é uma prática recorrente nas histórias humanas. Há momentos em que este fio vermelho fica menos evidente. Em outros, pelo contrário, ele se afirma com força. Seu renascimento em nossos dias já não
dá margem a dúvidas, pelo menos para os que dão atenção aos fatos. É o sinal de uma idéia-força que não podemos
mais ignorar.E importante insistir neste ponto, já que parece tão di
fícil aceitar que possa haver uma forma de grandeza na negatividade. Normalmente, a única perfeição admitida é a das alturas. O céu da divindade. Ora, pode acontecer que esta tensão para o alto não corresponda à prática social. Daí a necessidade de descer às profundezas da vida. De vincular-
se a esse abismo negro, o da_anirnalidade_que dorme em
cadaum ,jJa ,g;uddad§ também, do p.razet &d.o,4esej.P/ coisas que não deixam de fascinar, mas que costum am ser com-
partimentadas, e são toleradas apenas nas obras de ficção.Acontece, para o melhor ou para o pior, que este espíri-
V to animal voltou ao primeiro plano da cena social. Não, como já expliquei, numa simples regressão, mas de acordo com uma atitude de "regrediência", a da implicação que integra o arcaico, o primitivo, o animal no hum ano, e sem
38 A parte cio Diabo
"superar" tudo isto. "Regresso", "ingresso", pouco importa o termo que pode ser empregado; basta insistir no fato de que seja possível penetrar, entrar (ingresso) na inteireza da natureza hum ana sem rejeitar-lhe esta ou aquela parte. Éisto o "espírito das feras" que encontramos no pensamen
to fourierista, é isto a ultima ratio dos sentidos, do sensível que não projeta sua completa realização em hipotéticos
am anhãs7.
^ O medo da animalidade é a base da perspectiva uni- versalista. Ele é o ponto de partida, intangível, de todos os
' moralistas. Basta ouvir ou ler as eternas catilinárias dos cro
nistas, jornalistas, políticos e observadores sociais de todos os tipos para aplicar-lhes o que Marx dizia dos burgueses:
"Eles não têm moral mas se servem da moral." E o que acontece com a análise sobre esses novos monstros que vêm a
ser os "jovens das cidades". Monstros modelados, na reali
dade, especialmente pelos jornalistas e os políticos, aos quais respondem o que desejam ouvir, sobretudo quando
citam Bin Laden com o seu herói. Semelhante utilização da queixa é lancinante, obsessiva. Pode ser comparada, tratan-
: do-se da coisa sexual, à dos diretores de consciência nas
escolas católicas, projetando seus fantasmas sobre seus "d irigidos”, perseguindo o pecado onde existem apenas in o
centes prazeres sexuais. O m esmo tratando-se de um certo ^pan-sexualismo freudiano, para o qual a cura analítica co n siste em ' esvaziar a lixeira ' de todos os resíduos sombrios,
próprios d3s fantasias hui/.anas. Caberia fazer a genealogia
daquilo a que M. Foucauii se refere com o a "vontade de sab er7 característica da tradição ocidental, para perceber que
Pequena epistemologia do mal 39
através de diferentes figuras ela se limita a repetir uma obsessão constante: o medo da sombra.
Esta obsessão inaugura-se no ato fundador bíblico:
"Deus separou a luz das trevas8." É precisamente o que vai servir de base à dualidade estrutural que será encontrada, teoricamente e depois praticamente, na culpabilidade cris
tã, e mais adiante, por sua vez, na "separação" hegeliana ou na cisão (Spaltung) freudiana. Esta recusa da inteireza
do ser permite, na tradição em questão, eliminar o trágico da condição humana. Fuga diante da morte, negação da morte com o fonte da existência9.
Para retomar a distinção que propus entre drama e trágico, esta fuga consiste em "dramatizar" a morte, ou seja,
encontrar-lhe uma solução: o paraíso ou a sociedade perfeita. A partir daí, em suas diversas modulações (pecado, alienação, anarquia), a morte deixa de ser essencial, já que
é possível "superá-la".Nem por isto teria cabimento apressar-se a descartar a
ação que deve ser empreendida sobre o mal. Faz parte da
consciência hum ana negociar com ele. Há uma distinção, que encontram os no pensamento grego, que nos pode ajudar neste sentido10. De um lado o pecado, sobre o qual
( podemos agir, que podemos evitar de diversas maneiras. Do
outro, a "poluição”, que é automática, tão impiedosa quan
to o micróbio desta ou daquela doença, e, com o tal, trãgi- : camente incontornável. Eu diria que "temos de agüentar".
Um é pontual, a outra é "estrutural". O reconhecim ento desse aspecto estrutural pode induzir uma sabedoria cotidiana da necessidade. Esta conduzindo a uma postura exis
40 A parte do Diabo
tencial que integra o desamparo para alcançar um equilíbrio mais completo, mais complexo, o do "contraditorial", de uma lógica que não funciona em relação à superação do
mal: a síntese, a perfeição, mas repousando na tensão, jamais terminada, que faz da imperfeição, da parte sombria,
um elemento essencial de toda vida individual ou coletiva.
A ENERGIA DOS SENTIMENTOS
Nunca se dirá o suficiente a respeito de quanto a separação divina entre trevas e luz marcou profundamente a consciência ocidental. Toda a temática da emancipação moderna repousa nesta separação. O universalismo da filosofia do Iluminísmo e sua mais recente manifestação, a “lengajen- ga^ moralista_cqntenipçirânea, derivam diretamente dela. A dialética matizada característica do pensamento grego, entre o pecado, factual e portanto superável, e a "poluição", estrutural e inelutável, ficou esquecida.
É a partir deste corte radical que se elabora o conflito
metafísico entre o bem e o mal. Para o cristianismo, religioso ou laico, não existe mais equilíbrio entre essas duas
entidades. Na teoria agostiniana, o mal não tem realidade em si, não passando de uma "privação do bem " (privatio boní).É a partir desta negação que são elaboradas as teorias faustianas que levaram à sociedade asséptica que hoje transforma o "risco zero" em ideal absoluto.,
Mas se esta negação é teórica (talvez fosse melhor dizer
intelectual), pouco impacto tem na sabedoria popular, de-
Pequena epistemologia do mal 41
moníaca, que, ela sim, continua reconhecendo com o equivalentes essas duas entidades, bem e mal. Empiricamente, o diabo, em suas diversas manifestações cotidianas, através de suas expressões no trágico corrente, tem uma existência real. Os efeitos de sua ação são inegáveis. Embora eu
só o indique aqui de forma alusiva, os contos e lendas que nutrem ou assombram a infância, e continuam a perseguir
o inconsciente coletivo, encenam fadas e bruxas, bons e maus, bonzinhos e malvados. Assim se explica igualmente ^ o espetacular sucesso de Harry Potter e certos Halloween, formas modernas da antiga veneração dos espíritos.
Em parte, os mitos repousam no que poderíamos chamar de paradigma do Ha d es. É claro que em diferentes culturas este paradigma se expressará sob diferentes nomes. A realidade, sim, é intangível. Há um lugar subterrâneo, uma deidade das profundezas. É um lugar ou um deus que tem a ver com o fim da vida, mas é também um lugar ou uma entidade que se manifesta no próprio decurso da existência.As desgraças e separações, os rom pim entos, desamores, doenças e acidentes — em suma, todo o trágico cotidiano
— têm a ver com este tópico infernal.;A descida ao inferno é, inclusive, um m om ento essen--' •
ciai de qualqueraniciação. Iniciações religiosas ou profanas stricto sensu, ou a longa iniciação que é toda existência humana. O confronto com o mundo subterrâneo é mesm o encarado com o um m om ento necessário para o que é considerado um "ser-mais" em devir. As expressões populares "Há males que vêm para bem", "O m undo tem lugar para tudo" etc. não se enganam ao estabelecerem uma
•sinergia entre todos os componentes do dado m undano. Trata-se então, para retomar uma importante proposição de Gilbert Durand, desse "trajeto antropológico” que repousa precisamente no acordo tensional, numa harmonia co n
flituosa entre o instinto animal e as limitações objetivas11,
sejam naturais, culturais ou sociais.Existe neste saber incorporado, o da sabedoria popular,
uma bela lucidez revigorante. Podemos inclusive nos per
guntar se, a longo prazo, não é precisamente esta lucidez que garante a resistência, a duração, a solidez da vida. Ela "sabe-’' que, além ou aquém das petições de princípio dos
protagonistas do sbitus quo, além ou aquém das boas in tenções reformistas ou revolucionárias, das declarações políticas ou morais determinando os princípios do bem, sempre será necessário compor, negociar, "agüentar" as duras realidades que, de sua parte, têm uma relação apenas distante com o bem. A lógica do "dever ser" (M. Weber), a
das "almas boas" de todas as tendências, é encarada sob muitos aspectos com o perigosa. Pois este mal negado, este
mal dialeticamente superável não pode deixar de ressurgir
de outra forma, descontrolado, sorrateiramente, de maneira
perversa, invertida. O "trajeto antropológico", o dos co n tos e das lendas, da vida de todos os dias, é, por sua vez, mais equilibrado, sábio, humano, na medida em que dá direito de cidadania ao que é, e não ao que "deveria ser".
Este equílíbrio nada tem de u nanim ista : ele é c o n
flituoso, em 'tensão oer^iari -nte, um equilíbrio enraizado. Na verdade ele reconhece — para retomar uma temática
- pascaliana — oue o ?nio e " oes^ estão in tim am ente liga
42 A parte do Diabo
Pequena epístetnologia do mal 43
dos, e que se um desses pólos é demasiadamente acentuado, o outro só pode ressurgir. Seja como for, não deixa de
ser impressionante que esta mitologia contemporânea que
é a publicidade não se tenha enganado encenando a pele,
a epiderme, os humores em todas as suas diferentes m odulações. O m esm o acontece com a produção musical, cinematográfica, fotográfica, que não teme ilustrar, epifanizar a parte obscura da natureza humana. É considerável a de-
fasagcm entre o intelectualismo dos moralistas e a criação multiforme que se limita a traduzir o que é vivido por cada um. De um lado, a abstração das boas intenções, garantin
do, com o se sabe, a pavimentação dos infernos verdadeiros; do outro, o enraizamento no húmus do hum ano. Esta última tendência é mais pertinente, mais congruente com
o espírito da época, logo, mais prospectiva. Seja como for, ela não traduz mais um ideal celeste, uraniano, apolíneo, mas uma preocupação holística que faz do corpo, da sensibilidade, dos afetos uma parte incontornável de cada um e do corpo social em sua totalidade.
Talvez seja esta a verdadeira encarnação do espírito,
aquela que sabe que uma planta precisa de raízes para elevar-se em direção ao céu. Trata-se de uma dessas idéias de tal modo banais que vamos encontrá-las, como toda estru
tura antropológica, ao mesmo tempo nos mitos mais su
blimes e nos lugares-comuns mais corriqueiros. Entre o arquétipo e o estereótipo há apenas um passo, que pode ser
dado com facilidade.São muitos os mitologemas que exprimem esta "cons
tante". Ma obra negra de alquimia, é a fase de dissolução.
44 A parte do Diabo
Na literatura, é a peregrinação proposta por Dante em sua
obra magistral. Sem esquecer o logos spermaticos, a razão seminal de uma certa filosofia grega, ou ainda a fórmula
esotérica "vitriolum": visita interiora terrae rectificando invenies occultum lapidem veram medicinam. É depois de
penetrar no interior da Terra que vam os encontrar a pedra escondida, verdadeiro medicamento. Nem mesmo a tradi
ção cristã ignora esta descida. Temos, assim, a "kenose", ou
seja, o rebaixamento de Deus na encarnação e na paixão do Cristo, que vai ele mesmo ao inferno antes de voltar a subir ao céu.
Poderíamos enumerar aqui muitas formulações que expressam esta dupla polaridade'2. Talvez fosse o caso de di
zer "multipolaridade", tão claro parece que, ao contrário de um monoteísmo transcendente — o do chefe, do cére
bro, do uraniano — , os Infernos propiciam um politeísmo de valores que se relativizam uns aos outros. Temos, assim, o "sacrum", na base da coluna vertebral, em numerosas
práticas orientais. Ou ainda o baixo-ventre, "Hara" entre
os japoneses, que garante a estabilidade do corpo e permi
te urna centração por baixo.;Para todos esses tópicos, a transcendência é difusa, "transcendência im anente". Ao
contrário das religiões monoteístas, nas quais Deus está acima e além do h om em (transcend ente), as religiões politeístas, as filosofias orientais e o que eu cham o de cultura pós-moderna consideram que existe em nós uma par
te de deidade, que não está além do hum ano, mas faz parte da natureza humana — da mesma forma que o mal, por sinal. i ,
Pequena epistetnologia do mal 45
A esses arquétipos fundamentais sempre corresponderam estereótipos bem mais triviais. Pelo menos em suas m a
nifestações cotidianas. A acentuação multiforme do corpo e o hedonism o que lhe está associado são a ilustração mais evidente disto. O corpo que dança ou a dança do ventre são um fenôm eno intemporal e extraterritorial, mais ou m enos admitido. Em Wallis e Eutuna praticam-se as "dan
ças sentadas". Considerando as danças dos indígenas por
demais lascivas, sugestivas demais, os missionários os obri
garam a praticá-las sentados.Tudo.indica que, após o parêntese moderno, essas dan
ças voltam com toda a força nas práticas contemporâneas.. As histerias musicais ou esportivas e as das aglomerações festivas de todos os tipos dão testem unho disso. Elas significam uma centração por baixo. Contração do corpo individual, naturalmente, mas sobretudo do corpo social. É isto o saber incorporado, o do gozo, aquele que diz "sim" à terra
e a seus frutos, que se enraíza profundamente nos.prazeres que estes oferecem, ainda que de modo efêmero.
Neste terreno, a histeria não deve ser entendida de maneira pejorativa, e sim com o a recusa dessa constante ju-
daico-cristã, bem teorizada em sua manifestação freudiana; r j; repressão e sublimação, Reprimir tudo que vem da ani
malidade, para que as energias se finalizem em direção ao
alto, se orientem para um alvo a ser alcançado, projetem- se num ideal a realizar. Pelo contrário, ho je uma histeria difusa no clima da época corporifica este espírito, resultando num corporeísmo m ístico. Os transes pós-modernos (raves e outras manifestações) são a expressão rematada
46 A parte do Diabo
disso: por meio de rituais específicos, e graças a práticas e produtos não m enos específicos — ruídos, ritm os, efer- vescências, psicotrópicos diversos — , elas corroboram a
« fusão, permitem a confusão dos corpos e dos espíritos, induzem uma outra m aneira de estar junto.
Ante a impermanência de todas as coisas e de cada um,
existem diversas estratégias: a que projeta para o futuro e
se volta para o céu, a que se contenta com o presente e se
enraíza na terra. Aquela é "uraniana" (celeste) e favorece
um ideal a ser alcançado; esta é "ctoniana" (terrestre) e se
interessa pelo que está perto, pelo vivido, pelo que está "aqui e agora”.
Se entendermos este termo em seu sentido amplo, o de
um conjunto de energias que animam determinado corpo,
podemos dizer que a estratégia uraniana (celeste), assim com o a dialética repressão-sublimação, induz uma libido dominandi (energia visando a dominar) baseada numa libido sciendi (energia visando a conhecer). Dominar é'sa-
ber. Saber é poder. A modernidade é um bom exemplo disto.
Em contrapartida, a estratégia terrestre é causa e efeito de
uma libido sentiendi (energia visando a sentir). Uma ani
mação pelos sentidos, com o prazer tribal que isto não deixa de proporcionar. Um prazer relativo, ligado ao presente.
Prazer que "sabe" as coisas impermanentes e por isso trata
de extrair-lhes o m áxim o no mom ento. Lucidez revigorante que, à maneira das artes marciais, sabe fazer da fraqueza
uma rorça mais eficaz. Lucidez que sabe que o m elhor é o
inimigo do bom, e 4 ue, para apreciar este último, pode ser n e c e : ; srio dispensar c melhor.
Pequena epistem ologia do m al 4 7x , j: o * • ■ ! \ ' i ■ •>/ ' ' *
A übido sensível não é simplesmente libidinosa. E o
> epicurismo, que vem a ser sua expressão mais simples, repousa num certo equilíbrio que alia a beleza e o amargor
das coisas. A filosofia de Schopenhauer, por exemplo, é
uma forma de coragem que, ao m esm o tem po em que reconhece que a infelicidade é fundamental no universo,
sabe apreciar o que pode sê-lo. Intuição da sombra e do
mal aliando-se à vontade obstinada de viver apesar de
tudo. O que é resumido simbolicamente no nome de Adão:
adamah, argila verm elha, damah, o sangue igualm ente
vermelho. Trata-se apenas de uma metáfora, aqui evocada
alusivamente, que remete às duas faces do humano, a lama
que nos torna pesados e o sangue fluido e vivo. A gravi
dade e a graça. O enraizaznento, ou impedimento, e o di
nam ism o vital.
Libido scntiendi que vamos encontrar, contemporanea- mente, na valorização, real ou fantasmática, da natureza e
seus frutos: os produtos locais. É interessante notar com o a temática do regional e do local é declinada ao infinito, das
mais diferentes maneiras (denominações de origem contro
lada, contratos de v inculação regional e m esm o "terri-
torialização" da ação do Estado). O fato de esta temática
ser recuperada para fins comerciais ou políticos em nada
altera o quadro. A coisa transformou-se, no sentido heideg-
geriano do termo, num "cuidado" {Sorge) popular. De m i
nha parte, eu já enxergaria nela a expressão, ainda inábil e
balbuciante, dessa sensibilidade de que estamos falando. A
sensação de "estar aí" e de que só é possível estar bem aí se nos harmonizarmos tam bém com essas outras coisas.
48 A parte do Diabo
É o caso da busca de a lim en to s de qualidade que n ã o
se jam poluídos, ou m uito poluídos. A m od a, a ela associa
da, das residências rurais, a m oradia em "sítios" , opções que
dão aten ção ao "espaço e seu dup lo". É u m a outra m aneira
de dizer que, nada n em n in g u ém pode ser reduzido à uni-
d im ensionalidade. Que há sempre um "mais", um valor agregado proporcionado pelas raízes, que todos tratam de buscar, recriar e mesmo fabricar artificialmente^.,A literatura local e regional segue o m esm o espírito. Seu desenvol
v im e n to surpreende os editores. É inclusive , ao lado da
espiritualidade, o segm ento que vive uma plena expansão.
Literatura folclórica, m onografia histórica, erudição local,
rom ances regionais — toda uma ten d ên cia que já não re
m ete a um universalismo intelectual, m as a palavras en ra i
zadas, sentim en tos locais.1
E sua c o n ju n ç ã o que afirm a a in te ireza da vida. Cabe
aqui evocar N ietzschc: "H u m an o , d em asiad o h u m a n o " .
Nietzsche sublim e e louco, aéreo e fu lm inad o . Sua expres
são lembra que existe no h u m an o esta atração terrena e esta
"sede de in f in ito ”, dialética em perm anente reversibilidade.
^ E m D urkheim , a sede do in fin ito está ligada à anom ia. É,
pelo m en os p otencia lm ente , vetor do mal.- É efet ivam en te
esta dialética que está em jogo natfibiüõsehtíènd}, libido
da sensibilidade, a liando os contrários — b em e m al — e a
isto se adaptando. -;
Para f icarm os na esfera do e x e m p lo c in em ato g rá f ico ,
p od em os evocar a estranha fasc in ação que n u n c a deixam
de exercer as inú m eras versões de Zorro, l lo b in Hood ou
B atm an, para só falar deles. Sucesso que n ã o se deve pura
Pequena epistemologia do mal 49
e s im p lesm en te a m o d ism os, m as que, tal c o m o a c o n te c e
c o m as narrativas m íticas , é r e d u n d a n te , a p re se n ta n d o
variadas " l içõ es" e "réplicas" . Esses film es são construídos,
p recisam en te , sobre a a m b iv a lê n c ia do b e m e do m al, so
bre o a sp e c to fu n d a d o r de cad a u m a dessas en tid ad es .
Entidades que p od em a lte rn a d a m e n te co m o v e r e p ro vo
car fasc ín io ou repulsa. Dessa fo rm a, os sentid o s é qu e são
so lic itados. - 1 ■' . . V
Para dizê-lo em term os um p o u co m ais acadêm icos, a
am bivalência dos sentidos, vale dizer, o re co n h e c im e n to
do b em e do mal, traduz efet ivam en te o " f lu xo heraclitiano
das v ivências" (Husserl). Há um a pluralidade de m undos,
uma pluralidade de apreciações e sensações.-O m u n d o não
é um e n ão existe uma única m an eira de entend ê-lo ; seu
princípio n ão se e n contra apenas n o celestial. Nossos m u n
dos são "a lto " e "b a ix o " . Sua transcend ência se im anentiza.
Para retom ar a distinção proposta por G ilbert S im o n d o n
entre ontologia e ontogênese, e n q u a n to a primeira é una,
estável, transcendente , a segunda é plural, lábil, p on tual e
enraizada. "D e sd o b ra m e n to de ser p o l i fá s ic o 14", diz ele.
U m a síntese feliz, na medida em que ch a m a a a ten çã o para
essas fases m últiplas que, através da im p e rm a n ê n c ia , da
fluidez, da duplicação do particular, garantem a perduração
do todo, do Si, do coletivo. .. ■ ' ' ' '
A tea tra lid ad e c in e m a to g r á f ic a é causa e e fe i to da
teatralidade cotidiana. Já m e n c io n e i que esta repousava, es
truturalm ente, na duplicidade: ser duplo. J ogo in f in ito de
troca de máscaras, que não pode ser reduzido a u m a sim
ples função, a do indivíduo, m as se exacerba nos m últiplos
50 A parte do Diabo
papéis que a pessoa (persona) é ch am ad a a d e se m p e n h a r15.
Os papéis p o d e m variar. Sucess ivam ente , ou convergente-
m en te , eles d izem o b em e o mal. E dessa form a expressam
u m a d u p lic a ç ã o q u e a d q u ire s e n t id o n o v asto jo g o do
theatrum m undi. Jo g o co m p lex o , polissêm ico , que em di
ferentes fases, por m e io de analogias, correspondências e
sinergias, perm ite um equilíbrio n ão m ecâ n ico , m as efeti
vam ente orgânico. Não esqueçam os: na organicidade " tudo
é b o m " (P. Feyerabend), tudo se sustenta, todo papel tem
, seu lugar. O que seria u m a peça sem "v i lã o "? O que seria
um m u n d o n o qual só as a lm as b o a s m a n d a sse m ? Um
m u n d o totalitário , co m certeza!
Os m itos, os c o n to s e lendas, os filmes, o torrão local, o
trágico da vida c o m u m — tudo isto reitera a o n to g ên ese da
vida individual e coletiva. Tudo isto diz e rediz que ao lado
do bem , ali está o m al, ele é um estilo, de arte e de vida,
todo inteiro, ressurgindo regularm ente nas histórias h u m a
nas. O barroco. Já pu d em os seguir-lhe os passos em n u m e
rosas cu lturas e d ife r e n te s ép o cas . Ao c o n tr á r io de um
espírito clássico , rac io na l e m e c â n ic o , espírito redutor e
fun cion al, o barroco é fe ito de c o n ju n çõ e s , de sinergias, de
polissem ia. Para resumir, le m bro um a observação do h is
toriador Je a n D elum eau, q u e via nele "u m a síntese da be
leza, da água e da m orte, e u m a co n sc iê n c ia aguda da fuga
do tem p o [...] c o m um a m p lo espaço reservado à ilusão, aos
espaços a rt if ic ia lm en te dilatados, aos cenários irrea is" .16 O
f lu id o e a m o r te m is tu ra d o s par? descrever a beleza da
teajtraljdade; Todos os in g re d ien te : que ressaltam o aspec
to jivsó rio da positiv jdade das c o is ;;>. Mas, ao m e sm o tem -
Pequena epistemologia do mal 51
po, esta ilusão, q u a n d o p le n a m e n te vivida, pode ser vetor
de vitalidade am pliada.
, A lem brança da m orte, sua en cen ação barroca, in d icam
que a longo prazo o fracasso é inelutável, a finitude está aí
m esm o ] Mas isto não deixa de dar uma forte intensidade
ao que é vivido, por si m esm o, em dado m o m e n to . Se n ti
m e n to trágico da vida que n ão é necessariam ente, c o m o já
se disse, t íp ico de u m te m p e ra m e n to conservad or , m as
antes de uma sensibilidade tradicional, que vê no m al um
e lem en to do "d ad o " m u n d an o . Sensibilidade que, por isso
m esm o , d esco n fia da tem ática do poder. Poder sobre o
h o m em , poder sobre a natureza. Poder que dom estica um
e outra. E isto o prom eteísm o, o titanism o da modernidade.
A este respeito, a efervescência barroca assinala a saturação
da d icotom ia política esquerda-direita. Ambas participam,
de fato, de um m e sm o "arquétipo con stitu tivo ": o do c o n
trole, da d o m in a ç ã o 17.
^ A m orte, o diabo, o mal, o anim al, passam en tão a ser
parte in tegrante de um c o n ju n to do qual não se pode ar
rancar um pedaço arbitrariamente, in telectualm ente. É este '
holism o fundam ental, arcaico, tradicional, que ressurge em
nossos dias. As práticas cotidianas dão tes tem u n h o disso,
a sensibilidade "eco ló g ica " o afirma a sua m aneira, fazen
do do estrum e a expressão natural do ciclo morte-vida. As
fantasias m usicais tam bém , assim co m o as dram aturgias
cinem atográficas de sucesso. O planeta dos macacos e Guerra nas estrelas são sagas que en cen am um m al que não p o
dem os ignorar, um mal que podem os (devemos) com bater,
mas que é, estruturalm ente, incontornável.
52 A parte do Diabo
Podem os falar, a este respeito, de u m b arroco pós-mo-
derno vivenciado em particular pelas novas gerações, mas
que aos poucos vai co n tam in an d o o c o n ju n to das práticas
sociais e revivendo a exaltação das origens, a fecundação
pelo bárbaro. C o m o escreve Arthur Rim baud, de uma for
ma " in atual" em sua época, m as 'qu e en co n tra em nossos
dias sua pertinência : "C h eg o u o te m p o dos assassinos".
Um a espécie de apocalipse alegre, dos m ais serenos, derru
b and o os valores econôm icos próprios do "burguesism o",
o tem p o da modernidade, socialista ou liberal, que aposta
na confiança na trindade laica do Progresso, da Razão e do
Trabalho, Os bárbaros que rondam co t id ian am en te nossas
selvas de pedra não querem saber das tem áticas da e m a n
cipação que caracteriza o judeu-cristianism o em geral e o
ideal dem ocrático da m odernidade em particular. Mas, de
diferentes maneiras, eles en con tram o sentido da consolação que, segundo Hõlderlin, pertence à "própria tragédia".
Poderíam os inverter os termos e dizer que a tragédia,
aceita, é a "própria con so lação” . É o que vam os encontrar
nas diversas m odulações filosóficas ou religiosas do "d e i
xar rolar”, n o relativismo am bien te e n o espírito de to le
rância que é seu corolário. U m a espécie de d istanciam ento
que, à m argem das opiniões e teorias, ac io na uma simpatia
e m esm o uma empatia, uma outra m an eira de dizer a c o m
paixão que em ana das em oções com partilhadas, dos afetos
com u n alizad o s . São ten d ên cias q u e a atualidade e x e m
plifica fartam ente, e que nada m ais têm a ver com o ideal
da perfeição individual ou societária. E n q u an to os jovens
dos anos 60 e 70 contestavam o poder dos m ais velhos para
Pequena epistemologia do mal 53
to m ar o seu lugar, os jovens bárbaros de nossas cidades não
votam , n ã o se inscrevem nas listas eleitorais. Eles op õ em
às in ju n çõ e s adultas a passividade dos fum antes, desper
tan d o apenas por alguns instantes e m brincadeiras v io len
tas c o m a polícia. O b e m deixou de ser a m eta única. Já não^
passa de um e lem en to entre m uitos ou tros. A parte do d ia- j-
b o tem aí o seu lugar. Sua expressão é o pagan ism o a m j !
biente/
Se m elh a n te relativism o é, an tes de tudo, a relativização^,
do Su je ito absoluto. D estranscendentalização do ego, co n s
titu tivo do m undo, recusa, c o m o b em indicou Heidegger,
: do co n ce ito universal de h o m e m , que n ão é ou tro senão a
"d ef in içã o cristã d esteo logizada".18 De fato, o Deus único
absoluto , transcendente , criador do m un d o, qu e serve de
referência ao H om em d om inad or da natureza, dá lugar a
um p olite ísm o m ultiform e. E m e sm o a um "h e n o te ís m o " :
tudo são deuses, os deuses estão em toda parte e se rela-
tivizam entre eles. Entre eles, os que celebram os aspectos
obscuros da natureza em suas m od u lações hum anas, an i
mais, cósm icas, i
^ Apocalipse não significa necessariam ente catástrofe. Há
u m a e x a l ta ç ã o n o ar. E q u a n d o as techno-parades, as
efervescências m usicais e outras efervescências an ôm icas
e n c e n a m o selvagem, o bárbaro, o d e m o n ía co e outras fan
tasias anim ais , q u an d o a pele, a epiderm e e os hum ores se
ex ibem , tudo é feito n u m a certa in o cê n c ia ben ign a e com
um a inegável vitalidade^ A teatralízação do daimon é uma
b oa m an eira de dom esticá-lo , de proteger-se dele., Velha
sabedoria popular que afirma que m ais vale c o m p o r co m a
54 A parte do Diabo
som bra d o que negá-la. N ão fugir dela, m as passar através
dela, "nicht'raus, sondem durch” (C. G. Ju ng). Posição pou
co confortável, é verdade, mas a inda assim sabedoria, que,
n o dia-a-dia, h o m eo p atiza o m al até fazer co m que propor
cio n e o b em de que ta m b é m é portador.
Notas do Capítulo I
1. Freund (J-), Le Conflit, Paris, PUF, 1 9 8 3 , p. 9 3 - 9 9 . Cf. t a m
bém m eu livro L'Instant êternel, le retour du Iragique dans la socictépostm oderne, Paris, Denoél, 2 0 0 0 , e u m a boa a p re s e n
ta ç ã o a c a d ê m ic a , J a c o b (A.), 1'iiom m e et le Mal, Paris, Cerf,
1 9 9 8 .
2. Cf. G u énon (R.), Le Roí du monde, Paris, Gallimard, 1 9 5 8 , p.
2 4 . Sobre as festas "c o r ro b o r i" , cf. Durkheim (E.) , Les Formes éíémentaires dela viereligieuse, Paris, reed. Livre de Poche, 1 9 9 1 .
N o prefácio eu d esen vo lvo a in terp retação c o n te m p o râ n e a que
pod em os ter dessa "efervescência".
3. Cf. Michel Foucault, La Volontédesavoir, Paris, Gallimard, 1 9 7 6 .
4 . Cf. a e x c e le n te fe r ra m e n ta de trab alh o q ue é o livro de J.-P.
Goudailler.
5. Cf. Jung (C. G.), Synchronocité et Paracelsia, Paris, Albin Michel,
1988 , p. 1 7 1 .S o b r e o o r ie n ta l is m o , cf. L e Q u é a u (P .) , La Tentation bouddhiste, Paris, Desclée de Brouwer, 1 9 9 8 .
6. Kant (E.), Essai pour intreduire en philosophie le concept de grandeurnégative, Vrin, Paris, 1 9 4 9 , p .76 . Cf. ta m b é m T h o m a s
L.-V., La Mort africaine, idéologie funéraire en Afrique noire, Paris, Payot, 1 9 8 2 , p. 2 1 .
56 A parte do Diabo
7. Cf. o prefácio da n o v a ed ição de m e u livro Le Temps des tribus ( 1 9 8 7 ) , Paris, La Table Ronde, 2 0 0 0 . Cf. ta m b é m Tacussel (P.),
Charles Fourier, Le Jeu des passions, Paris, Desclée de Brouwer,
2000.8. Gênesis 1, 3.
9 . Cf. Foucault (M.), La Volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1 9 7 6 ;
cf. ta m b é m Bres (Y.), La Souífrance et le Tragique, Paris, PUF,
1 9 9 2 .10 . Cf. Dodds (E. R.), Les Grecs et 1'hrationnel, Paris, G allim ard ,
p .4 6 . Sobre o c o n tra d ito r ia l , cf. D u ra n d (G.), Les Structures anthiopologíques de 1’imaginaire ( 1 9 6 0 ) , Paris, B ordas , 1 9 6 9 ,
posfácio .
11. Para u m a aplicação desse " tra je to " à in iciação , cf. D urand (G.),
Un comte sous 1'acacia, J. de Maistre, Paris, Edimaf, 1 9 9 9 . Sobre
a "prívatio boni", cf. Franz (M.-L. von), La Voie de 1'lndividuation dansles contes defées, Paris, La Fon tain e de Pierre, 1 9 7 8 , p. 154 .
Cf. ta m b é m C au taerts (M .), Couples des dieux, couples des homines, Dela m ytbologieà lapsychanalyse du quotidien, Lou-
vain, De Boeck, 1 9 9 9 , p. 108.
12. F,m m eio a um a vasta literatura, p o d e m o s citar V a ttim o (G.),
Espérer croire, Paris, Seuil, 1 9 9 9 . Cf. ta m b é m B onnardel (F.),
Philosophie de 1'alchimie, Paris, PUF, 1 9 9 0 , ou ainda Evola (J.),
O rientei Occiüent, Milão, Arché, 1 9 8 2 , p. 157 .
13. Cf. Strohl (H.), in Sansot (P.) et alii, l/Espace et son double, Pa
ris, Le C h a m p urbain, 1 9 7 8 . .
14. Cf. C om b es (M.), S im on d on , lndividu et collectivité, Paris, PUF,
19 9 9 , p. 12.
15. Maffesoli (M.), La Conquête du présent ( 1 9 7 9 ) , Paris, Desclée
de Brouwer, 1999 , e Le Temps des tribus ( 1 9 8 8 ) , Paris, La Table
Ronde, 2 0 0 0 .
16. D elum eau G-). L’Italie, de Botticelli à Bonaparte, Paris, 1 9 8 0 ,
p.2 5 5 . Cf. também D’Ors (E), Du Baroque, Paris, Gallimard, 193 5 .
17. Cf. a análise de J. de Maistre por S lam a (A. G.), Les Chasseurs d'absolu, Paris, Grasset, 1 9 8 0 , p. 1 9 2 - 2 0 0 . Cf. ta m b é m C h aoy in
Sun e D u ran d (G .), "D u c ô té de la m o n t a g n e de l 'E s t" , in
Pequena epistemologia do mal 57
Montagne imaginaiie, sob a dir. de Siganos (A.) e V ierne (S.),
G renoble , Ellug, 2 0 0 0 , p. 6 9 .1 8 . Heidegger (M.), Êtis et temps, trad . francesa M artin eau H.C.,
A uthetica , 1 9 8 5 , p. 5 8 ; cf. ta m b é m a p osição crítica de Losurdo
(D.), Heidegger et 1'idéologie de Ia gueire, Paris, PUF, 1 9 9 8 , p.
8 1 .
C a p í t u l o II
O CONFLITO ESTRUTURAL
" Todavia, as guerras ocorrem quando são
necessárias; e depois as colheitas voltam a brotar."
flEGEl.
A FORÇA DO VAZIO
Existem diversos tipos de violência. O fantasm a de suas m a
nifestações está m uito d issem inado, e do p o n to de vista
teórico é e x tre m a m e n te delicado privilegiar um de seus
aspectos em relação a outros. Sob m uitos aspectos, a violência totalitária própria do Estado, da ontologia , das in s
t itu ições e de seus diversos rep resen tan tes não pode ser
considerada preferível à v iolência an ô m ica dos "m arginais"
de subúrbio. Mas não é esta a questão. O im p o rtante 6 ob-
servar o aspecto estrutural, antropológico da violência. Mais
um a banalidade que ê im p o rta n te lem brar, pois se ela é
reconhecida da boca para fora, parece m u ito difícil aceitar
suas conseqüências sociais ou individuais.
62 A parte do Diabo
C o m o estrutura an tropológica , a v io lên cia é c e r ta m e n
te um b o m ex em p lo do aspecto indivisível d o dado m u n
dano. Em todas as coisas existe um m isto de atração-repulsa,
am or-ódio, generosidade e egoísm o. Basta o lhar u m p ou co
m ais de perto para co n sta tar que os se n t im en to s m ais ele
vados são p erm eados de seu contrário . T a m b é m aqui há
lucidez em re c o n h e c e r se m e lh a n te realidade, a in d a qu e
apenas para m e lh o r corrigir seus efeitos. O que redunda —
para co locá-lo em term o s algo mais abruptos — em aceitar
o que a biologia m ais co n tem p o râ n ea frisa, a saber, que na
origem do processo de h o m in iz a çã o existe um a c o n tra d i
ção f u n d a m e n ta l e n t r e o c o m p o r ta m e n t o do p r im a ta
frugívoro, om n ívo ro , de um lado, e, do outro, o carniceiro
terrestre1.
Hiato fu n d am en ta l que vam os en co n trar ao long o de
toda a cultura. Os m ito s n ão falam de outra coisa, as h is tó
rias hum anas ressoam c o m as conseqüências dessa contradi
ção. E a grande in tuição n ietzschiana, baseando a civilização
'grega n o a n ta g o n ism o en tre o apolíneo e o d ionisíaco . À
sua m aneira , Lévi-Strauss m ostra bem o aspecto "d ilem á-
t ico " de todo discurso m ítico . Seria possível e n u m e ra r in f i
n i t a m e n te e x p re ssõ e s n e s te se n t id o e n tr e n u m e r o s o s
p en sad o res im p o r ta n te s , u n â n im e s em frisar o a sp e c to
tensional entre as polaridades diversas. Mas q u e m diz p o
laridade, n a tu r a lm e n te , diz c o m p le m e n ta r id a d e , c o i n
cidência, oposição en tre elas.
O p róprio do tr ig ico , q u e b em traduz a presença de u m
m al in con torn áv ei, refere-se essencia lm ente à força da al-
terid?de, ou seja, ao fa to d 2 que em cada coisa, em cada
O conflito estrutural 63
situação, existe seu con trário . Contrário que n ão se pode
negar ou denegar. Pode-se, é bem verdade, estigm atizá-lo,
tratar de m arginalizá-lo e relativizá-lo, mas, a inda que em
forma de som bra, ele está presente. Até m esm o o Deus da
tradição ocidenta l é obrigado a tolerá-lo, na pessoa de Satã.
Aliás, poderia existir sem ele?
O que p o d e m o s c h a m a r de totalitarismo ontológico (Deus, Ser, perfeição) n u n ca pôde afirmar-se por m u ito te m
po. A im perfeição é a expressão de um mal, m as de um m al
d inâm ico . Não d evem os esquecer que Eros, esta grande fi
gura em blem ática , é, an tes de tudo, instigador de in q u ie ta
ção. E o que se lê n o s co n to s e lendas; c o que se vive, de
múltiplas m aneiras , na vida cotid iana. Eros é o arquétipo
da im perfeição, do equilíbrio conflituoso , de um a sede de
alteridade que persegue tudo e todos.
Eros perturbador e in qu ieto ou o Diabo d eixan d o clara,
para sempre, a im perfeição da criação: algo que m ostra per
fe itam ente que u m a entidade, seja qual for, n ão pode satis
fazer-se em si m e s m a ou c o n s ig o m e sm a . Será se m p re
trabalhada por seu con trário . Lúcifer, neste sentido, ilustra
o d e sc o n te n ta m e n to de Deus em relação a si m esm o . P o
dem os considerá-lo a pro jeção de sua própria dúvida. Esta
tem ática foi analisada pela tradição jungiana, que insistiu
na zona das som bras, neste deus obscuro que é Satã, n o
próprio fato de ser "a instabilidade in terna de lavé" a p ró
pria con d ição da c r ia çã o 2.
Existe u m a idéia forte, audaciosa, corajosa, que m ostra
a ligação e x is te n te em Deus entre a b o n d ad e suprem a e a
crueldade n ã o m e n o s real. Esta "idéia-força" pode e n c o n
64 A parte do Diabo
trar múltiplas aplicações na vida cotid iana, na qual esta am
bivalência tem uma realidade gritante. Em suma, n ão exis
te estado ideal. Seja este político, social ou individual, está
sem pre sob am eaça de enantiodrom ia, esta transform ação
n o o p o sto q u e pode explicar as s in ce r id ad es sucessivas
(logo, as traições) no amor, a versatilidade das massas na
ordem política, as múltiplas mutações, m etam orfoses, trans
form ações num a carreira hum ana, u m a série de coisas que
significam , em suma, que se está sem p re em outra parte.
Para dizê-lo em termos rim baudianos, "eu é um ou tro", e
não poderia contentar-se com u m a prisão dom iciliar.
É esta a força da alteridade. É este o aspecto estrutural
da violência e do sentim en to trágico da vida que lhe serve
de expressão. O outro está aí e é necessário co m p o r com
ele. Este acordo não pode ser a priori, ele se realiza sempre
aos poucos, a posteriori. Por isso é q u e todos os sistemas
que pretenderam regulam entar, te o r ic a m e n te , a relação
com a alteridade, e isto em n o m e de boas in tenções , esbar
raram na irredutibilidade do mal. Em contrapartida, o re
c o n h e c im e n to deste, r e c o n h e c im e n to sem p re em pírico ,
perm ite um a postura existencia l ao m e s m o tem p o mais
com p leta e, n o fim das contas, mais serena.
Ao contrário da separação entre as trevas e a luz, a coin- cidentia oppositorum (N. de Cusa) é in tegradora. Existe
nesta palavra extrem am en te simples — integração — uma
estratégia com plexa de efeitos ainda insuspeitados. A sepa
ração, o corte — em suas diversas m odulações , inclusive a
epistem ologia — é uma construção in te lectual, um vislum
bre do espírito. Ela rem ete a uma libido sciendi separada
O conflito estrutural 65
da vida. Já a integração é antes de tud o em pírica . Ela parti
cipa de um a libido sentiendi, e as palavras que a dizem têm
sabor de carne. Estão enraizadas. N este sentido , o em prego
p o l í t ic o da palavra in teg ração d esco n s id era a realidade;
aceitar o estrangeiro n ão é tran sfo rm á-lo em c lo n e de siv
m esm o , mas, ao contrário , adm itir qu e sua diferença ten ha
um efeito sobre a sociedade, que a alteridade perdure. Re
c o n h e c e r o aspecto estrutural do m al é participar, n o senti
do m ístico do term o, da força das coisas e do poder da vida.
Força e poder pluralistas e polissêm icos por essência.
Insistamos nesta nova perspectiva sensitiva. Experim en
tando-a, som os capazes de integrar u m acréscim o de vida,
e isto em todos os seus aspectos, inclusive as formas do mal-
estar que podem os qualificar de desam paro. E um lugar-
c o m u m afirmar que a experiência nos ensina . E aí que os
psicólogos mais inspirados fu n d am o m e lh o r de suas an á
lises. A psicologia abissal, na l in h a g e m de C. G. Ju n g em
particular, buscou aí uma fonte de inspiração das mais pro
missoras. E tam bém os m ísticos, que n ã o deixaram — de
form a paroxística, acen tu an d o o que é v ivenciado in tim a
m en te por qualquer u m — de frisar c o m o o ca m in h o es
treito perm ite chegar ao sublim e: ad augusta per angusta. Da "n o ite escura" de São Jo ã o da Cruz às "purificações pas
sivas" da Sra. G uyon, são m uitas as experiências que valo
rizam o feliz pecado (felix culpa) que p od em os entender
c o m o uma espécie de e n r iq u e c im e n to pela pobreza do es
pírito, pelas vicissitudes do corpo.
N u m a persp ectiva f i lo só fica , te m o s , n a tu ra lm e n te ,
N ietzsche: "O que não mata forta lece ." E, sem demasiado
66 A parte do Diabo
paradoxo, cabe lem brar esta tem ática recorrente em Hegel:
"A vida d o Espírito n ã o é a vida que recua horrorizada an te
a m orte e m a n té m -se pura da destruição, m as a qu e a su
porta e se m a n té m na própria m orte. O Espírito só conquista
sua verdade e n co n tra n d o -se por sua vez n o dilaceramento absoluto .. . O Espírito só é este poder q u an d o o lh a frente a
frente o negativo e m ora nele . Esta estada é o poder m ági
co (Zauberkraft) q u e transform a o nada em ser3." Os ter
m os empregados, de uma forma lancinante, são reveladores,
m o stra n d o e fe t iv a m e n te em que m edida só p od e haver
verdadeiro poder nesse co n fro n to c o m as forças m is terio
sas que co s tu m a m ser contrapostas à vida.
Eorças m isteriosas na m edida cm que ta m b é m c o n s t i
tu e m o se r- ju n to . O m istério é o qu e une os in ic iad os . E
p o d e m o s dizer que o trágico, de form a sorrateira, é estru
tu ra lm e n te ét ico . Se a h istória é a teoria da su p eração do
| " m a l" , o d est in o seria a in teg ração desse m al. E o qu e per-
m ite e n te n d e r o su rg im e n to dessas c o m u n id a d e s de des
t in o c o m u m (tribos) que h o je em dia se a f irm a m cada vez
m ais . P od em os e n tã o encarar de outra m an eira certas prá-
\ fticas agressivas. Pegas, co n fro n to s co m a polícia , q u e b ra
-q u e b r a s etc . c o n s t i tu e m m e n o s u m a co n te s ta ç ã o que um a
j in ic ia ç ã o , m e n o s u m a re iv in d icação q u e u m a espécie de
\prática ritualística. As provas, v ivenciadas em c o m u m , são
u m elo in tan g ív e l e n tre os indiv íduos. Por que n ã o ter em
m e n t e que, a lo n g o prazo, algu;r-a coisa dessa ord em c i
m e n ta os c o n ju n t o s sociais? A . a iu ração dos grupos ou
e tn ia s oprim id as rnilita neste sentid o . Seria d e m o ra d o es
ta b e le c e r u m a lista dos povos g -ie so brev ivem a d iferen-
0 conflito estrutural 67
tes form as de opressão . As carnificinas, os g en ocíd io s , a
Shoa, m o stram o "p o d er m ág ico " de todo e qualquer c o n
fro n to co m o nada.
Tudo isto constitu í um a iigação orgânica, um se n t im e n
to de v inculação, uma experiência coletiva, uma m em ória
im em orial que é tudo m en o s intelectual, participando des
sa libido sentiendi que tem os abordado. Trata-se efetiva
m en te de uma ligação orgânica, pois rem ete à terra que lhe
serve de receptáculo . Esta terra na qual estamos, para re to
m ar uma tem ática heideggeriana, na qual fom os " jo g a d o s ”
juntos. É este se n t im e n to de destinos com u ns que c o n s t i
tui a ética primordial. A terra,'de fato, corrobora a " p le n i
tude do nada absoluto" (F. Pessoa), precisamente na medida
em que nos lem bra o húm us de que está im pregnada a n a
tureza h u m an a. A terra significa o ciclo da m orte e da vida.
É este, em m in h a opin ião , o fund am ento do in co n sc ie n te
coletivo de que a m odernidade pouco se tem ocupado, mas
que já percebem os n ão ser m ais possível ignorar.
A terra é um c o n sta n te lem brete do ciclo da m orte e da
vida. M etam o rfo se co n t ín u a , ela favorece o c re s c im e n to
orgânico de um povo, en carn an d o a idéia que um a c o m u
nidade tem de si m esm a. Ela é o fundo, vale dizer, o subs
trato sobre o qual esta pode crescer. É tam bém o seu fundo, o "cap ita l" que lh e perm ite ser o que é.
Já se disse dos pintores rom ânticos, c o m o Carl Gustav
Carus e Caspar David Friedrich, que inventaram a " tra g é
dia da paisagem ”4. Bela expressão, que insiste, ev id en tem en
te, n o se n t im e n to trágico provocado pelo am bien te natural
que enquadra o a m b ien te social. A paisagem, que já en tão
68 A parte do Diabo
nada tem de superficial, é essência do sagrado, causa e efei
to do m istério societário.
Não podem os esquecer que o m istério é in q u ietan te :
m ystenum tremendum. Ou seja, ele é a n a m n e se da m orte
onipresente. E tam bém da violência. O espetáculo da natu
reza fornece m uitos exem plos neste sentido, das violências
clim áticas — terremotos, inundações, seca e outras catás
trofes do gênero — às violências de que a vida anim al é tão
pródiga. É esta a tragédia da vida organica, da natureza. Mas
nem por isso é m enos verdade que este vazio potencia l tem
sua própria beleza. Beleza de "tirar o fô lego", de uma bela
paisagem, da selvageria de determ inad o lugar, da brutali
dade anim al. O vazio é fonte de sublim e, e nosso espírito
anim al o aprecia com o tal. O "cérebro rep ti l ian o" de deter
m inada com unidade específica fu n cion a segundo este su
blim e. E é esta memória que a constitui c o m o com unidade.
E nos co n fo rm an d o a tais premissas que podem os e n te n
der cm que a violência é fundadora. Ela é um m o m e n to da
dialética sem fim que une o caos ao cosm o.
Tudo isto tende a frisar a am bivalência da m orte com o
da vida. Cada uma contém o seu con trário . M orte e ressur
reição, lugar-com um do se n tim en to e, portanto , das dou
trinas religiosas. Morte e ressurreição estre itam ente ligadas.
Ordem e desordem, funcionam ento e disfunção, cuja fecun
da sinergia co m eça a ser apreciada. C o m o afirma J.-P. I)u-
puy, "pode-se aventar a hipótese de que a condição 'natural'
da ação é desem bocar n o trágico, e que é a 'cultura ' que
im pede que seja sempre assim 5". Tudo bem , exceto que a
d icotom ia m oderna "natureza-cultura” já não é tão intan-
O conflito estrutural 69
gível, e que por um processo de cu lturalização da natureza,
ou de naturalização da cultura, o trágico se capilariza tam
bém n a cultura em geral, e em particular n o s diversos atos
da vida social. Disto dão tes tem u n h o os trabalhos de Ed
gar M orin so b re a com plexidade e de G ilbert D u ra n d so b re
o tra jeto antropológico . Verifica-se am biv a lên c ia , reversi-
bilidade, feed-back, retroação, e x a ta m e n te o n d e se havia
estabelecido uma divisão estrita. É este o c ic lo orgânico da ■
m orte e da vida.
Toda a cultura ocidental — e sua co n su m a çã o m oder
na é um exem p lo rem atado disto — repousava na tensão
para a liberdade. Ou seja, na superação progressiva das li
m itações que vêm a ser as diversas alienações, sendo a morte
o resum o paroxístico destas. Tratava-se, portanto , dc ch e
gar a um m un d o livre de suas violências naturais. O ciclo
orgânico da vida e da morte, da ordem e da desordem , em
suma, a tem ática do trágico está aí para nos lem brar, no
m o m e n to oportuno, que a limitação 6 tam bém uma ma- •t
neira de encarar o aspecto natural da cultura. Para dizê-lo
cm term os lógicos, só existe vida se existe determinação^ A
vida n ão pode ser indefinida nem in fin ita ; ela precisa de
limites. Neste sentido, a etimologia latina do term o determi- natio é instrutiva. É o m arco que os ro m an o s estabeleceram
para delim itar a terra cultivada em relação ao indefinido
da terra inculta. O limite, portanto, perm ite ser. Permite que
o_t_rijgo brote.
É apenas um belo apólogo, m as lem bra o papel fecun-
dante da lim itação. O m arco constitu i um a violência . V io
lê n c ia q u e é fo n te de vida. É o q u e q u a lq u e r u m sabe
70 A parte do Diabo
em p ir icam en te . É ta m b é m este "saber in c o rp o ra d o " que
constitu i a sociedade. P recisam os p o rtan to , dar n o m e s aos
bois: a v io lência é u m e le m e n to essencial da co n s tru çã o
sim bólica do so cia l : p re c isa m en te n a q u ilo em q u e ela nos
liga, ou nos religa, à natureza. É algo q u e q u isem os esque-
ccr, ou que negam os. Em "a n im a l h u m a n o ” há ta m b ém
"a n im a l" . Em "n atu reza h u m a n a ” há ta m b é m "n a tu re z a ”.
E a sabedoria popular, m ais sentida que teorizada, n a tu ra l
m en te integrou esse dado básico. É isto o b om senso, o senso
co m u m , a " s e n s o -co m u n o lo g ia ” (Sch op en hau er) que é e x
traord inariam ente to le ran te , digam o que disserem os diri
gentes sociais que a m a n ip u la m , frente à inseguran ça da
vida. Sem ela, o téd io prevaleceria. N ão p od em os in terp re
tar de outra form a o extraord inário interesse da televisão e
de seus esp ectado res p o r todas as fo rm as de ca tástro fes
naturais. O m esm o n o que diz respeito aos acidentes ro d o
viários, que só são m e n c io n a d o s q u an d o p articu larm en te
m ortíferos ou q u a n d o a c o n te c e m n u m túnel, c o m todas as
co n seq ü ên cias que co n h e c e m o s .
Não fosse este fasc ín io p ela in segurança, c o m o e n te n
der o p erm a n en te sucesso, em todas as culturas, dos b a n d i
dos de h o n ra , os R ob in H ood, M an d rin e Lam p ião ? C o m o
analisar a s ingular jitração pelos crimes sangrentos, e le m e n
tos essenciais da im p ren sa popular, ou as p ican tes fofocas
de sociedade da im p ren sa das classes m édias? C o m o in ter
pretar a audiência n u n c a desm en ida de soap operas, seria
do:- e te le n o v e la s * , s e m p r e c o n s tr u íd o s e m t o r n o da
.x *£m português no texiu.
O conflito estrutural 71
en cen a çã o de diferentes torpezas hum anas? V am os e n c o n
trar a cada vez o m ito lo g em a de u m a v io lência in co n to r-
nável, de um c o n f l i to antropológico , em suma, da m orte
onipresente. E n co n tra m o s o som e a fúria do Panteão gre
go, ou das m ito log ias das outras culturas. Se o m itirm o s es
ses conflitos, se negarm os sua eficácia, esses m ito s perdem
tod o o sentido.
O m esm o n o que diz respeito à vida cotidiana. Ela é per
m eada por c o n fli to s que lhe co n ferem toda a sua in te n
sidade. É m e s m o possível qu e as m ú ltip las v ic iss itu des
expliquem o im p u lso cego que pro jeta em direção à vida.
U m querer-viver obstinado, preferindo a existência tal c o m o
ela é, apesar de tudo. T a m b ém podem os nos perguntar se
n ã o foi a prevalência do cognitivo, a ênfase nu m a in te li
gência racional que im pediu que a tradição judaico-cristã
entendesse a im p o rtân c ia de um tal vitalismo.
Acontece que a energia desse vitalismo repousa, estrutu
ra lm e n te , na a n t in o m ia dos valores, n o p o l i te ísm o do
Panteão, n o qual cada entidade só pode existir em função
de seu contrário. C o m o bom teórico da violência, que e n
contram os na am bivalência amigo-inimigo. Ju l ie n Freund
dem onstrou b e m c o m o o conflito é "da ordem do vivido" e
q u e é graças a este conflito que o vivido vai encontrar, de
forma mais ou m en os consciente, "um a acom odação esp on
taneam en te m aq u in a i" . Pode parecer paradoxal, mas para
além da teoria puram ente unanimista, tributária de uma m e
cân ica d ialética que precisa superar as con trad ições para
chegar à síntese apresentada co m o um ideal, n ã o podem os
constatar, em piricam ente, que a vida deriva antes da tensão6?
72 A parte do Diabo
Para descrever esta tensão, S. Lupasco e G. D urand fala
ram do "contraditoria l" . Plural, vivo e vivido, nada deven
d o ao to ta l i ta r is m o do U m . E x is te d in a m is m o , força ,
qu an d o a im perfeição é constante , ou seja, q u an d o uma
coisa, u m a pessoa, um a entidade, u m a situ ação está em
devir. Sem jogo de palavras, quando n ã o está acabada. Exis
te u m a h o m o lo g ia m uito forte en tre o a n ta g o n ism o e a
própria lógica da energia. Nada escapa a esta " le i" . M esm o
a relação primária que é o am or entre dois seres deve-lhe o
essencial de sua intensidade. A ficção, a poesia, o cinem a,
a canção, a vida cotidiana, sobretudo, narram fartam ente
os problem as e vicissitudes dessa ten sã o . Sem ela, até a
amizade definha. O m esm o se dá, natu ra lm ente , com a pai
xão política ou social. Sem ela as peripécias econ ôm icas e
as lutas sindicais são inexplicáveis. E o que dizer das revol
tas e rebeliões de diversas ordens que perturbam p o n tu a l
m en te a m o n o to n ia da vida coerente?
Podem os lam entar o aspecto im placável de se m e lh a n
te " le i" . T am bém é possível tentar, na teoria ou na prática,
limitar seus estragos. É, aliás, o que faz a grandeza da te
m ática da em ancipação , que se e n co n tra na base de im p o r
tantes sistemas de pensam ento ou de ações políticas não
negligenciáveis. Mas n ão é m enos legítim o, em certos m o
m entos, lem brar o caráter im utável do co n fli to em todas
as m anifestações da vida, naturais e sociais. S e m e lh a n te
lucidez, que encontram os tanto na obra de M aquiavel com o
na de Spengler, por exemplo, mas tam bém na teoria da "c ir
culação das elites" de Pareto, pode representar um c o n tra
peso à unilateralidade dos bons s e n t im e n to s7. É claro que
O conflito estrutural 73
seria m e lh o r que este m u n d o correspond esse a u m ideal de
bondade. Mas som os obrigados a re c o n h e c e r que, para re
to m ar o te rm o de Hegel, este " a b a te d o u rp ” que é a história
é u m a realidade in co n to rn á v e l . O p rin c íp io de realidade!
aqui faz sentido, pois nos lem bra q u e a força do que " é " r
n ã o se dobra, ou só d if ic i lm en te , às bo as in te n ç õ e s que
d eterm in am abstra tam ente o que "deveria ser".
Aliás, é negand o o aspecto inelutável do conflito , ou ju l
gando possível levar a sua resolução, que todas as revolu
ções co n d u ze m a um a ditadura m ais feroz do que aquela
sobre a qual triunfaram . Neste sentid o , a história dos dois
séculos que acabam de passar é instrutiva, m ostran d o que
é possível usar o povo para vencer este obscu rantism o ou
aquela opressão, mas que in fa liv e lm en te se instaura uma
outra doxa, uma outra d o m in a çã o q u e nada fica a dever
àqueles que com bateu. C o m o a co n te ce em outros te r re n o s ,^
o in fern o está ch eio de boas in te n ç õ e s políticas.
Na realidade, da vida co tid iana às revoluções, através
dos exem p los m en cion ad os , a lu c idéz deve m u ito s im p les-1
m e nte lem brar-nos que o típico das instituições é esclerosar- ~
se, o destino das culturas é se b analizarem em civilizações,
que por sua vez am olecem n o c o n fo r to e n o tédio. O retor
n o do co n f li to é, então, inelutável. As efervescências, as
explosões cotid ianas ou políticas lem bram , ou ten ta m le m
brar, o m ito fundador, o élan o r ig inal, o caos a partir do
qual instaurou-se o ser-junto. O re to rn o c íc l ico da violên-//
cia a lim enta-se do vazio em que se tran sform ou o institu í
do. É a partir desse vazio que ela p re ten d e refundar outra
coisa. É isto o querer-viver. In c o n s c ie n te de si m esm o , n em
74 A parte do Diabo
por isso deixa de ser criador. Ele é uma "força que vai", cujo aspecto construtivo só pode impor-se depois de realizada a obra de sua ação destrutiva. É algo que não deixa de ser angustiante, algo meio trágico, mas é efetivamente neste ciclo que se constitui toda criação digna deste nome.
Deste ponto de vista, a angústia é um elemento essencial do mecanismo da violência. Não podemos ignorá-la. E isto porque ela é, stricto sensu, "intuição do vazio". Vazio
rr que não é a mesma coisa que nada, mas, antes, condição
l de possibilidade do que está por nascer. O vazio, neste sen- '^tido, é algo a ser vivido. E é vivendo-o que podemos che
gar a um sobreviver, a um "mais viver". A angústia persegue o criador. Seja profeta, revolucionário, artista ou pensador,
s; ele faz deste conhecimento a base de sua construção ou reconstrução. Eu disse "intuição": visão do interior. Pois só do interior uma força pode impor-se. Daí seu aspecto doloroso. Talvez seja este o "trabalho do negativo" (Hegel) ou a "noite escura" (São João da Cruz), a angústia que mina, obceca, mas, no fim das contas, leva ao gesto criativo.
É para esta conjunção que devemos estar atentos. Ela chama a atenção para o fato de que os diversos elementos do dado mundano participam de seu equilíbrio final. É o que podemos ver, claro, na criação artística, que, deste
jxm to de vista, é um bom paradigma do processo que des- jcrevo aqui. Para o artista, a angústia, a dúvida, o mal-estar, ' são instrumentos privilegiados. É igualmente com eles quei ele modela sua obra. Trata-se, naturalmente, de um lugar- comum da reflexão sobre a arte, mas não deixa de ser interessante, na medida em que demonstra que tudo que limita,
O conflito estrutural 75
que entrava, era suma, o que violenta, pode levar a uma realização sublime.
O barroco, como tenho indicado com freqüência, é uma boa ilustração da complementaridade do bem e do mal, da doçura e da violência, da sombra e da luz. É algo de que dá conta a noção de contrapost em italiano: o que se opõe se corresponde, se reforça. Ela está no coração do barroco. E traduz muito claramente o fato de que a criação não se satisfaz com uma única perspectiva, um só elemento, repousando, ao contrário, na complementaridade. Ela expressa a nostalgia, a angústia de que falamos acima. Aquela que, mesmo pertencendo .à esfera dò sofrimento, não pode deixar de integrar tudo que constitui a natureza humana. Mesmo o que é monstruoso. Esta monstruosidade, este mal, este lado sombrio está aí, onipresente. O que não deixa de redundar no aspecto sublime que freqüentemente se atribui ao barroco.
Seria possível enumerar muitos exemplos neste sentido. Um único, no entanto: Michelangelo. Especialmente as figuras tumulares dos Médici. Figuras da Noite e do Dia, do Entardecer e da Manhã. Percebemos que são permeadas por uma inquietação e uma angústia profundas. Elas efetivamente representam o que Burckhardt denominava "monstruosidade ensurdecida". Monstruosidade sem exagero nem excessos, mas ainda assim monstruosidade, presente e eficaz8. Traduzem a nostalgia de perder-se no infinito da matéria e outras ambivalências da mesma ordem. Existe nessa obra a forte conjunção de coisas opostas. Conjunção que é causa e efeito dessa Weltschmerz de difícil
76 A parte do Diabo
tradução, mas que exprime o fato de sentir-se doente de um mundo que nem por isso^e pode deixar de amar, Doença de amor, doença da paixão, dolorosa mas incontornável. Uma espécie de sentimento trágico da vida derivado de uma tensão entre pólos opostos e perfeitam ente comple- mentares.
Existe um hedonismo real no barroco, mas um hedonismo que, ao contrário do que habitualmente lhe é atribuído, nada tem de leviano. Um hedonismo grave. E isto, poderíamos dizer, a partir da estrutura ambivalente do homem, marcado ao mesmo tempo pela indigência e pela grandeza. Estas duas qualidades respondendo uma à outra, completando-se numa cadeia sem fim. Como bem o demonstra a mística, a falta, a carência, a imperfeição, frisam, na realidade, a capacidade da plenitude, de Deus, da perfeição9. É esta antítese que podemos sublinhar no que diz respeito à violência. Ao mesmo tempo ela assinala o incompleto, o vazio, e participa da realização, ou seja, de uma forma de perfeição que integra seu contrário.
A FORÇA DO MAL
Mergulhemos mais fundo sob este mal que sabemos — aceitemos ou não — ser conatural ao dado humano. Temos, para começar — o que está longe de ser desprezível — a vox populi, que bem sabe, em seu saber incorporado, que, em suas diversas modulações, o conflito (ou a antinomia dos valores) capilariza-se no conjunto do corpo social, ou ain
0 conflito estrutural 77
da que é extremamente complexo e, ao mesmo tempo, extremamente simples. É precisamente esta dupla estrutura que o tom a impermeável aos sistemas filosóficos. Estes, para explicar, precisam reduzir o que abordam à sua expressão mais simples. Ora, apesar desta redução, o mal está aí mesmo, constante, irrefutável. Ele tem uma realidade maciça que não se pode negar. Primeira ambigüidade (à imagem da Carta roubada de Edgar Poe): trata-se de uma realidade presente em forma nebulosa, presente sob diferentes nomes. Mas presença que não se quer ver, nem, a fortiori, entender, pois vê-la e entendê-la seria conferir-lhe uma legitimidade que ela "não deveria" ter.
Recorramos agora a uma leve ironia ou — o que dá no mesmo — a uma implacável lógica. Apliquemos literalmente o adágio bem conhecido: Vox populi, vox dei. O que é conhecido ou reconhecido pelo povo também é conhecido e reconhecido pela deidade. Trata-se, de fato, de um problema com que se deparam constantemente numerosos sistemas filosóficos e doutrinas religiosas, pelo menos no Ocidente: o Deus todo-poderoso é criador do mal, já que é de todas as coisas. Eis então o escândalo essencial, aquilo que explica a denegação ou o recalque da realidade do mal. Reconhecendo-o, estamos fragilizando ou relativizando a todo-poderosa deidade tutelar. Preferimos então atribuir- lhe um papel subalterno, algo que, não tendo realidade em si, pode ser superado, corrigido ou emendado.
A deidade tutelar pode ser Deus, naturalmente, mas também suas formas profanas: o Estado, as instituições sociais, as Igrejas, em suma, tudo que tenha um poder
78 A parte do Diabo
abrangente. Negando ao mal uma realidade estrutural, as v diversas doutrinas nada mais fazem que proteger essas
instituições e sua todo-poderosa benevolência. A contrario, reconhecer que o mal não é o evanescente produto das frágeis imaginações humanas, mas efetivamente uma forte e intangível realidade, é relativizar o poder dessas mesmas instituições.
Na verdade, a idéia e a realidade — a palavra e a coisa— de um deus criador do mal não são, de modo algum, algo chocante no contexto de numerosas culturas. Basta m encionar o substrato politeísta do budismo tibetano, do heno- teísmo hindu, da m ultiplicidade dos orixás dos cultos afro-brasileiros, das diversas divindades das religiões africanas, do panteão das mitologias nórdica ou grega — e a lista poderia prosseguir indefinidamente — para perceber que as divindades ambivalentes, os espíritos perversos ou as entidades simplesmente malévolas podem expressar-se e agir tão legitim am ente quanto seus paredros benevolentes.
Satã foragido no Inferno, a idéia de um.deus criador do ^ mal foi (praticamente) completamente negada. Existem, é
verdade, as diversas formas do catarismo. Mas sabemos com que selvageria foram reprimidas'no sul da França. Houve também certas heresias cristãs, mas também neste caso a Inquisição foi de uma terrível eficácia. E é só periodicamente, nesta tradição ocidental, que podemos ver, com o no retorno de um recalque, uma manifestação desse mal que provém, como diz G. Scholem, do "seio profundo da divindade".
O conflito estrutural 79
Neste sentido, as formas paroxísticas dos místicos exprimem-se regularmente. O mesmo se dá com as possessões, os estigmas, as mortificações sobre-humanas, tudo que representa situações-limite ambivalentes que podem a qualquer momento inverter-se num sentido ou em outro. Entre esses exemplos, podemos evocar — de uma forma que não é simplesmente anedótica — a apostasia do messias no movimento sabaísta judaico. Escândalo dos escândalos este judeu que se pretende o messias e se converte ao islamismo! Apostasia que, para os discípulos de Sabbatai Tsevi, é vivida como um mistério, e um acontecimento positivo na medida em que exprime as tensões entre a "realidade interna e a realidade externa". 10‘É esta tensão o fundamento trágico do mal. Tensão que também encontram os na "Kenose" do Deus sofredor, do Deus que morre na cruz. Tensão que também podemos encontrar em múltiplas situações da vida cotidiana. Coisas, enfim, que fazem do Mal e de seu trágico entidades integrantes da natureza humana.
É possível que asdiferentes formas do demonismo contemporâneo não passem da volta de uma força recalcada. E estaríamos dessa forma pagando, com juros bem altos, a ação das inquisições que mencionamos. Demonismo cuja expressão mais flagrante encontra-se na música, sob suas formas mais violentas, mas que também podemos observar nos happenings artísticos, ou ainda em tantas criações teatrais. Em cada um desses casos, a barbárie, o paganismo e a animalidade recalcados recobram força e vigor. Cabe lembrar, assim, que o excesso, mesmo em seus aspectos mais obscuros, é também um elemento estruturante da nossa
80 A parte do Diabo
natureza. A temática do deus criador do mal, ou do mal que provém do próprio seio de Deus, é, na realidade, uma ma-
\ neira de legitimar este excesso — "parte maldita" (G. Ba- taille), "sombra" (C. G. Jung), "instante obscuro" (E. Bloch)— e de reconhecer sua importância.
Analisar socioantropologicamente este excesso é sempre algo delicado, e não raro malvisto. Empenhei-me neste
t " ’
sentido1-1 a propósito da orgia;'plenamente consciente dos riscos que corria. Mas mantenho tudo que disseNPois o que
^é esta orgia senão o aspecto fundador de uma paixão comum, de emoções tornadas comuns, de sentimentos que
á saem para a praça pública, em suma, de afetos que não se preocupam com o "vertruísmo" (V. Pareto) das almas boas?
'Nunca será demais repetir como os ajuntamentos techno, as múltiplas oportunidades de fazer festa, o sucesso das boates, dos lugares de trocas sexuais, tudo isto relembra que, ao contrário de uma simples "econom ia" de si, existem culturas que repousam essencialmente na despesa, no consumo, na destruição. Coisas perseguidas pela imperfeição, o mal, a sede do infinito.
Em muitas civilizações, essas despesas suntuárias eram feitas, entre outras oportunidades, em festins funerários nos quais consideráveis rendimentos eram "consumidos",12 ao mesmo tempo para os pobres e para compensar os que ficavam na vida. Tudo pode ser pago. Até mesmo, e sobretudo, a vida. E o excesso, o consumo, lembram este tipo de compensação. Mais uma vez, aqui, vida e morte estão ligadas numa profunda sinergia. O que desperdiçamos em fun-
\ ção da morte de um ente querido é uma maneira de dizer
O conflito estrutural 81
Ique a vida perdura. O mesmo se dá com as despesas sun- tuárias nos casamentos no sul da Europa, por exemplo. Neles, é celebrada a morte num estado particular, mas o renascimento, em um outro: símbolo de que a vida continua sempre. Morrendo para o estado de virgindade, a mulher casada anuncia a progênie vindoura, ou seja, o ciclo vital.
Os excessos juvenis contem porâneos são do mesmo teor. A "Sombra de Dioniso", para retomar esta metáfora, assinala bem a substituição do simples consumo por uma consumação mais "radical", consumação que vai à raiz das coisas, quer dizer, que insiste no aspecto chtoniano, som-, brio, enraizado, do homem e do mundo. O mal é resumi-1 do da seguinte maneira: experimentar os frutos da terra. A maçã, sua metáfora, resume sua ambivalência estrutural. Prazer e dor misturados, excesso antropológico em sua própria ambivalência.
Pode-se dizer isto com as mais diversas expressões, mas todas remetem ao aspecto sombrio dos sentimentos humanos. Eis onde estamos: a partir do momento em que se trata de afetos, de sensibilidade, a partir do momento em que o jogo das paixões retorna à cena pública, retorno da libido sentiendi, então vemos afirmar-se a "parte das trevas" (F. Pessoa) de que está impregnada esta libido.
Já indiquei em LTnstant éternel com o o espírito do tempo é permeado do trágico. Clima geral, não necessariamente consciente de si mesmo, mas obnubilado pela busca das raízes, a preocupação com a natureza, a atenção ao cabelo, aos odores, à pele. Sensibilidade ecológica apro-
82 A parte do Diabo
^ veitan d o os frutos da terra e nisto tributária de Dioniso, divindade terrestre, violenta, não domesticada. Em tudo isto encontramos, com o um fio vermelho, a temática do vazio, da obscuridade, do primitivo, do primordial. O
■ " Urgrund”, todos esses lados inexplorados ou negligenciados de nossa natureza. É nesta profundidade que se abriga o mal. Para resumir, reconhecê-lo é falar do interior de si m esm o e do interior do m undo, e desse m odo reconci- liar-se com a alter idade.
Tudo isto não deixa de ser angustiante. É o que ressalta do aspecto sombrio de tantos mitos, de ficções ou poemas que celebram este "sol negro", que evocam a ambivalência existente entre o amor e a devoração. Mas, idéia obsedante da minha reflexão: o que se exprime é menos perigoso, a parte da sombra aceita é uma terapia homeopática.
' ■ É a animalidade que é angustiante no ser humano, e isto, justamente, por ser ele ambivalente. Entre mil outros exemplos: o urso inquietante e predador e o "objeto transicional" que é a pelúcia; ou ainda o lobo devorador e a expressão "mon petitloup”* dos momentos de liberação emocional. Em páginas esclarecedoras, G. Durand insiste com freqüência nesta ambivalência. Mas mostra que isto remete efetivamente ao aspecto de fervilhar, de formigar próprio da animalidade. Inquietante mas necessário. Aqui, mais uma vez, é o "Urgrund", a profundidade, a parte obscura. Mas são exatamente estas coisas que estão na origem da animação vital13.
*"Meu lobinho".
O conflito estrutural 83
O fervilhar, em lugares escuros, rem ete ju s ta m en te ao
caos que é fu n d am en to do cosm o. Tam bém aqui, ciclo co n s
tante da m o rte e da vida. No caso, sinergia da bestialidade
e da h u m a n id a d e . A "cru e ld ad e" devoradora das figuras
teriom órficas dos c o n to s e lendas, as que e n c o n tra m o s na.
ficção c ientífica con tem p o rân ea e tam bém as que se expres
sam na teatralidade cotid iana (piercings, tatuagens) e nas
efervescências festivas, tudo isto relem bra a dupla face de
nossa natureza, a dup lic idade estrutural que co n s t i tu i o
anim al h u m a n o . A este respeito, m uitas tatuagens são fi
guras de anim ais, às vezes monstruosas, dragões, feras. Cabe
pensar ig u a lm e n te na. in f la çã o de d o c u m e n tá r io s sobre
anim ais e n o a u m e n to da com pra de anim ais d om ésticos e
exóticos.
Feiticeiras ou sereias m esm erizantes , ogros, obsessão
pelo tema do PequenoJ^ríncipe, lo b isom ens em suas diver
sas form as e o n ip resen ça dos anim ais dom ésticos — são
m uitas as form as do " ferv ilhar" , daquilo que, de um a m a
neira selvagem, dá vida, an im a a existência social. Nos a p o
calipses p ós-m od ernos, é interessante observar que a lógica
do "a n jo do a b ism o " , da anim alidade h u m an a , n ão é uma
simples form a poética ou um a figura literária. Ela c o n ta
m in o u a vida cotid iana .
P od em os co n sid erar que a v io lên cia associada a esta
anim alidade é u m a co n sta n te antropológica , Ela é estrutu-
^ ral, co m o já disse. A tática empregada a seu respeito, c o m o
fo rta le c im en to do cris tian ism o, consistiu em expurgá-la.
Pela confissão, a o r ien tação espiritual ou o exorcism o, para
com eçar. M ais adiante, pelas diferentes form as da psicaná-
84 A parte do D iabo 1
lise, especia lm ente de vertente freudiana. Em todos esses
casos, trata-se de " esvaziar a l ix e ira " . M as o principal n ão é
isto. Na verdade, e é isto que precisam os ter em m en te , o
tratamento aplicado é estritamente individual. É preciso que
o h o m e m dotado de razão esteja em co n d içõ e s de re co n h e
cer seu pecado, o m al que o persegue. Ele deve conscientizar
seu in con scien te .
A tática das sociedades tradicionais parece ser bem di
ferente. E, no m esm o espírito, diferente é a tática pós-m o-
derna. Para com eçar, ela se baseia na aceitação do que é.
U m a forma de acom od ação em algum a coisa. Além disso,
dirige-se a cada indivíduo, mas na qualidade de m em b ro
de uma com unidade. Já não se trata de confessar ou dizer
sua própria parte de sombra e, assim, extirpá-la, e sim, gra
ças a ela, de com partilhar, de to m ar parte nos m ales do
co n ju n to n o qual cada um se situa.
C om p aixão que é, precisam ente, causa e efeito do des
t in o com u nitár io . Esta com p aixão foi forjada, a long o pra
zo, pelas vicissitudes, guerras, fom es, desgraças diversas
provenientes do exterior, mas tam bém pelos golpes do des
t in o , os ódios, as más ações ocultas, os h o m ic íd io s que
surgem n o próprio seio da com unidade. C o m p a ix ã o "lo-
calista", particular, enraizada. Já se observou que a resistên
c i a da alm a é construída na depressão, n o desam paro e na
; provação. O m esm o acon tece co m a "a lm a coletiva". É por
-■ m eio de m ecanism os com provados — iniciações, rituais, lei
' do segredo — que se ratifica a resistência social. Nesta pers
pectiva, n ão se trata de chegar à erradicação da v iolência
estrutural ou do pecado original, m as de torná-los com u ns,
O conflito estrutural 85
ritualizá-los e assim canalizá-los, torná-los suportáveis de algum m odo.14
Perspectiva trágica que reitera a força do mal, muito precisamente na medida em que fortalece a comunidade, constituindo-a como tal. O mal é um limite, é verdade, mas\ devemos lembrar que o limite permite ser. Em seu sentido!; lógico, ele determina alguma coisa ou alguém. Para fundar uma cidade, como bem mostrou F. Braudel, traça-se uma linha que demarca e, portanto, funda. Força da limitação. A metáfora da "ponte e da porta" proposta por G. Simmel também é instrutiva: para que a ponte possa unir, é preciso que haja uma porta, símbolo do fechamento15. Talvez seja esta determinação lógica que funda a determinação psicológica dos habitantes da cidade. Eles são capazes d e1 resistir na exata medida em que são protegidos pelo limite. E não podemos nos impedir de observar que a maioria dos conflitos entre bandos de jovens tem como objeto a defesa do território.
Tática específica que não pretende dominar as coisas e as pessoas, mas se situa na dependência das coisas e na interdependência das pessoas. Efeito trágico baseado no conhecimento dessa "força do mal" (C. G. Jung) que trazemos em nós16, que cada grupo tem dentro de si. Trágico que consiste em não perder de vista esta "sombra" que sob muitos aspectos pode ser tutelar, a partir do momento em que sabemos conviver com ela.
Notas do Capítulo II
1. Cf. Durand (G.), Figures mythiques et visages de 1'oeuvre (1979), Paris, Albin M ichel, 1 9 9 2 , p. 3 0 -3 4 . Cf. ta m b é m Maffesoli (M.), L'Ombre de Dionysos, contribution à une sociologie de 1'orgie (1 9 8 2 ) , Le Livre de Poche, 1 9 9 1 .
2 . Cf. n a tu r a lm e n te Ju n g (C. G.), Réponse á Job, Paris, B u ch e t- Chastel, 1 9 9 6 , p. 1 5 1 . Cf. ta m b é m Franz (M. L. v o n ) , C. G.Jung, Paris, B u ch et-C h astel , 1 9 9 4 , p. 1 8 6 e Adler (G.), Étude de psy- cbologie jungienne, Genebra, Georg, 1 9 9 2 , p. 2 1 9 .
Í 3 ) Hegel, Phénomônologie de 1'esprit, Paris, A ub ier-M o n taig n e ,
1 9 3 6 , T. I, p. 2 9 . Os itálicos são do autor.4 . Carus (C. G.), Friedrich (C. D.), De la peintuie depaysage dans
1'AUemagne romantique, Paris, Klincksieck, 1 9 8 3 , p. 1 6 -1 7 .5. Dupuy G--P-)< Ordres et désordres, Paris, Le Seuil, 1 9 8 2 , p. 76 .
6 . Cf. Freu n d 0 0 . Le Conílit, Paris. Sobre o c o n tra d i to r ia l , cf. L u p a sco (S.) , Le Príncipe de 1'antagonisme et la logique de 1'énergie, Paris, H e rm a n n , 1 9 5 1 , e Durand (G.), Les Structures anthropologiques de 1’imaginaire ( 1 9 6 0 ) , 1 1 a e d içã o , Paris, D unod, 1 9 9 2 , p . 5 0 3 . Sobre o co n fli to n o viv ido , cf. P e n n a -
ch io n n i (I.), De la guerre conjugale, Paris, M azarine, 1 9 8 6 .7. Cf. p or e x e m p lo A d o rn o (T.), Prísmes, Paris, Payot, 1 9 8 6 , p. 4 6 .
Sobre Pareto, cf. V alade (B.), Pareto, naissance d'une autre sociologie, Paris, PUF, 1 9 9 0 .
88 A parte do Diabo
8 . Cf. a b oa análise de W õlfflin (H.), Rennaissance et baroque, M onfort , 1 9 8 5 , p. 101 e seguintes.
9 . Cf. por ex e m p lo Lubac (H. de), Pic de la Mirandole, Paris, Aubier-
M on taign e, 197 4 , p. 3 8 . Cf. ta m b é m K ru m en nack er (Y.), 1 ’École française de spiritualité, Paris, Cerf, 1 9 9 8 .
10 . Cf. S ch olem (G.), Sabbatai Tsevj, Paris, Verdier, 1 9 8 3 , p. 5 9 e
7 7 0 . Sobre Deus criador do mal, cf. Pessoa (F.), L’Éducation du stoicien, Paris, Christian Bourgeois, 2 0 0 0 , p. 4 0 . Sobre a "kenose",
cf. V a tt im o (G.), Espérer croire, Paris, Le Seuil, 1 9 9 9 .
11 . L'Ombre de Dionysos, 1 9 8 2 .
12 . Cf. o exem p lo dos altos vales alpinos, n u m a Suíça con hecida por
seu senso da econ om ia, in Berth ou d (G.), Plaidoyerpour 1'autre, Genebra, Droz, 1 9 9 0 , p. 2 1 1 . R em eto t a m b é m aos exem p los que
dou e m L'Ombre de Dionysos ( 1 9 8 2 ) , Le Livre de Poche, 1 9 9 1 .
Cf. as pesquisas de Hugon (S.) sobre os bares n otu rn os , CFAQ,
Paris-Vartan, 1 9 9 9 . Cf. ta m b é m H oudayer (H.), LcDéfi toxique, Paris, L 'H arm attan , 2 0 0 0 .
13. Cf. Durand (G.), Les Structures anthropologiques de 1'imaginaire ( 1 9 6 9 ) , Paris, D unod, 1 9 9 2 , p. 7 6 e seguintes , e 9 6 . Sobre a
"duplicidade", cf. Maffesoli (M.), La Conquêteduprésent (1979) ,
Paris, Desclée de Brouwcr, reed. 1 9 9 9 .
14 Sobre a utilidade da depressão, cf. H ilm an (].),_La Beauté de psyché, Montreal, Le Jour, 1 9 9 3 , p. 2 0 0 0 . Sobre a com p a ix ã o ,
cf. Le Quéau (P.), La Tentation bouddhiste, Paris, Desclée de
Brouwer, 199 8 .
15. Cf. Braudel (F.), La Méditerranée, Paris, 1 9 8 5 , p. 1 4 1 . Cf. t a m
b é m W a tie r (P.), G. Simmel et les sciences humaines, Paris,
Klincksieck, 1 9 9 2 .16. C f .Ju n g (C. G.), Aspect du drame contemporain, Genebra, Georg,
1 9 9 0 , p. 1 6 6 e p. 1 6 9 .
C a p í t u l o III
V a r ia ç õ e s s o b r e a s o m b r a
"Quand après une journée d ’attente et de soif, vient
; 1'heuie sainte de Jacob, la lutte avec l ’Id éal. ” *
M a j l l a r m ê
O reconhecimento desse limite que é o vazio pode, portanto, ser um bom método para adquirir uma espécie de serenidade. Sabedoria demoníaca, a mesma que é proposta a cada um por seu próprio daimon, este duplo que nos fazo que somos. O divino, outra maneira de dizer o vazio fundador, é, em sua essência, sempre duplo, e com isto frisa sua infinitude. Mesmo os monoteístas mais intransigentes são permeados por esta pluralidade, da qual é um bom exemplo a Trindade do Deus cristão.
No seio desta Trindade, a figura do Cristo, "inteiramente homem e inteiramente Deus", é ela mesma clivada. Mas o
* " Q u a n d o a p ó s u m dia d e e sp era e sed e v e m a h o r a s a n t a de J a c ó , a lu ta c o m
o Id e a l . "
92 A parte do Diabo
fato de ser duplo é uma forma de duplicidade. Feliz pecado que permite a salvação. Assumindo o pecado, o Salvador exalta a humanidade. Bela história, neste sentido, é o "escândalo da cruz", bem delineado num sermão de Santo Agostinho, mostrando como a morte do Cristo é uma maneira de vencer o diabo. Este pode exultar, mas esta morte é comparada a uma ratoeira em que é apanhada a presa. De fato, numa comparação audaciosa, ele faz da cruz uma armadilha na qual ele é apanhado em seu próprio jogo: muscipula diaboli, cruz doniini, a cruz do Cristo foi a ratoeira do diabo1. A morte do Salvador é uma autêntica isca. Expressão sublime do aspecto duplo de Deus!
"Onde cresce o perigo, cresce o que salva", escreveu R. M.{, Rilke. Esta temática da perda como meio de salvação en- '' contra múltiplas modulações, literárias, poéticas, mitoló
gicas e, naturalmente, cotidianas. Numa certa tradição judaica, a transgressão da lei é uma forma de caminhar para a salvação. A apostasia de Sabbatai Tsevi convertendo-se ao islamismo em 1666, a restrição mental face ao catolicismo dos marranos hispânicos ou a conversão aparente do judeu Jacob Franck ao protestantismo em 1759 bem traduzem esta descida ao Inferno em busca das centelhas da salvação: "Para subir é necessário descer". Cair no abismo, beber até a última gota o cálice amargo da desolação é uma forma de perda que permite o reencontro consigo mesmo.
„.Como indica M. A. Ouaknin comentando esses episódios, "a violação da Torá é agora seu verdadeiro cumprimento".2
A transgressão pela duplicidade é assim uma forma de força mística que permite resistir a longo prazo. Eu diria
Variações sobre a sombra 93
inclusive que existe um constante vaivém entre a duplicidade individual, "avançar mascarado" (Descartes), e a resistência coletiva. O "ventre mole do social" (Baudrillard), a abstenção, as secessões populares, são como resistências^ às morais implacáveis, às imposições burocráticas, aos prin- • cípios de realidade política e outras leis de ferro da economia '' empenhadas em unificar, uniformizar, globalizar as disparidades, as políssemias, os ardis que constituem o poli- teísmo do fervilhar existencial.
O escândalo e a armadilha que vem a ser a cruz, a apostasia e a transgressão não passam, no fim das contas, das formas paroxísticas do que eu denominaria duplicidade antropológica, ou seja, um modo operatório de sobrevivência. Vamos dar a esta última palavra um sentido pleno, o de uma vida explorando suas múltiplas possibilidades. De uma vida que não se contente em ser unidimensional, positiva, econômica, moral, feliz, sadia etc. De uma vida, tanto individual quanto social, encarando seu contrário e enriquecendo-se daquilo mesmo que parece negá-la. Como nesta observação de Jiinger: "Integrar a morte em sua estratégia: adquirir algo de invulnerável".
Um aforismo forte, dizendo em poucas palavras o saber incorporado que constitui toda a sabedoria popular.
^Pois, empiricamente, é bem sabido que o imaterial, a fan-1 tasia e o fantasma, o amor e a amizade, em suma, todos os ^afetos sociais são cimentados por uma ética imoral. Vale
dizer, pelo fato de que o pluralismo, o relativismo, a harmonização com a alteridade é uma lei vital muito mais forte que aquela que os racionalismos abstratos tentaram impor
94 A parte do Diabo
às massas, em função do que supostamente seria o seu bem- estar. Não faltam exemplos históricos ilustrando que a redução ao Uno — religioso, ideológico, moral — conduz infalivelmente aos piores totalitarismos.
Existe na duplicidade estrutural, na falta,jia diferença, uma espécie de abertura, uma disposição para o outro. O prefixo "dis", traduzindo o aspecto clivado, duplo de todo ser e de toda situação, é o indício de uma abertura, de um receptáculo, sinal de que a vida é apenas interação. "Acima da realidade permanece a possibilidade": ao afirmá-lo,
jj Heidegger acentua efetivamente a incompletude3. Incom- pletude que, na realidade, induz à partilha, à criação contínua. Ser permeado pela falta só pode favorecer a procura,
' em mim mesmo, no social, na natureza, na deidade, do Outro que, por um momento e de modo imperfeito, me completa. Até que um outro impulso de incompletude me leve novamente para outros horizontes da mesma ordem.
Possibilidade. Esta é, de fato, a palavra-chave da vitalidade empírica e do vitalismo filosófico que a exprime. Em seu sentido mais estrito, existe animação social quando estamos dispostos ao Outro. Talvez seja assim que devamos pensar as "viscosidades" que não faltam em nossa atualidade. Aquilo que, nos fenômenos esportivos, musicais, religiosos, turísticos, leva a grudar no outro, a imitá-lo, a procurar sua presença, inclusive naquilo que em dado m om ento tende a negar o indivíduo. Este reencontra nesses ajuntamentos uma parte de si mesmo, uma ou outra de Su íS próprias possibilidades que não podem ser expressas
sua ideníí c - Je profissional, sexual ou ideológica. Des
Variações sobre a sombra 95
se modo, o daimon socrático está presente no que é considerado sem sentido. O indivíduo perde, se perde, mas, comungando com o pré-individual, ou o supra-individual, ganha outra coisa: aquilo a que me refiro como uma espécie de "sobre-vida".
Em todos os tempos, os êxtases, as saídas de si próprio, têm sido uma forma de relembrar a força dessa sobre-vida. O mesmo ocorre atualmente. É sempre o outro de si mesmo que se exprime nos ruidosos transes de todos os tipos. Demoremo-nos um pouco nesse desdobramento fundamental. Só compreendendo sua estrutura poderemos entender os fenômenos extáticos (religiosos, esportivos, musicais) de que tratamos. Existe aí um ponto nodal absolutamente essencial e raramente analisado.
Como num leitmotiv, tenho insistido freqüentemente na saturação do indivíduo e do individualismo modernos. Empiricamente, a coisa é evidente. Cada um de nós desfruta menos de uma identidade estável do que de uma série dejdentificações por meio das quais expressa as diferentes possibilidades que o caracterizam. Entretanto, obnubilados pela lógica da identidade, do sujeito racional ou do cidadão responsável, conformamo-nos em pensar a pluralidade no seio de um mesmo indivíduo. Aliás, talvez por isso seja conveniente retomar a distinção entre indivíduo e pessoa.
O indivíduo é causa e efeito da lógica da identidade. Senhor de sua história, capaz, com outros indivíduos autônomos, de fazer a história do mundo, ele é educado para exercer uma função nas instituições programadas pela sociedade. A pessoa, em contrapartida, tem identificações
96 A parte do Diabo
múltiplas, suas máscaras (personà). Estruturalmente depen
dente dos outros (heteronomia), ela se lim ita a desempe
nhar papéis nesses conjuntos de afetos que são as tribos4.
Assim se resume, em algumas palavras, o resvalar que po
demos observar de diversas maneiras na vida corrente. A
moda, as modas, melhor dizendo, os mimetismos diversos,
fazendo com que usemos os adereços de nossos heróis (es
portivos, musicais, políticos), as múltiplas contaminações
ideológicas, religiosas, publicitárias, tornam empiricamente
caduco o antigo princípio de individualização, pedra de
toque do pensamento ocidental. Para retomar uma expres-
são de Gilbert Simondon, é o "mais que um" que caracteri
za cada pessoa.
Precisamente porque cie age de maneira paroxística nas
múltiplas histerias coletivas, ou mais moderadamente nos
rituais cotidianos, é que se torna importante pensar teorica
mente esse "mais que um" que caracteriza cada pessoa. O
que ultrapassa nossa identidade, sexual, ideológica, profis
sional. O que — para recorrermos a uma expressão trivial —
leva cada um a "se explodir", fazendo-o viver — fantástica
u ou realmente, pouco importa — os papéis mais diversos, ose
i sonhos mais loucos. As conversas pela Internet, os chats, são
um exemplo disso, cada qual falando através de seu pseudo.
O que, sob muitos aspectos, o faz comungar com essas enti
dades imemoriais que a psicologia abissal denomina arqué
tipos. Existe, com efeito — é importante frisá-lo — , um
vaivém constante entre os estereótipos da vida de todos os
dias e os arquétipos, enraizados na memória coletiva, e muito
bem ilustrados pelos mitos, contos e lendas.
Variações sobre a sombra 97
A este respeito, caberia perguntar se o sucesso da
publicidade, dos Game Boys, dos jogos de papéis não re
pousa precisamente nessa dialética arquétipo-estereótipo.
Projetamo-nos em situações extraordinárias, participamos
magicamente desse herói, daquela figura emblemática, re-
conhecemo-nos neste ou naquele animal, realimentamo-
nos nos elementos primordiais da natureza: água, céu,
terra, fogo, judiciosamente apresentados em forma de es
petáculo.
O mesmo acontece com as grandes teatralidades coletivas.
Roupas extravagantes, adereços postiços, tatuagens, cores, odo
res, favorecem um travestimento generalizado que, no mo
mento de rituais específicos, permite a cada um encenar-se,
logo, viver ao sabor de sua fantasia. Todas as culturas conhe
cem esses rituais de inversão. Mas em determinadas épocas
eles adquirem maior importância. É o que acontece na pós-
modernidade, em que as bacanais contaminam o conjunto
do corpo social. Ainda que seja banal e um tanto cansativo,
cabe reiterar: vale tudo para "fazer a festa". Estamos pensan
do na disseminação do Halloween, no sucesso cada vez maior
das refeições noturnas durante o Ramadã, no sucesso crescente
das festas de bairro, do bistrô, sem esquecer as festas musicais,
científicas, do patrimônio etc. Ora, nesses fenômenos festi
vos, por um lado o ajuntamento (enlouquecimento) é obri
gatório, e por outro cada um é plural. O imaginário está na t '
ordem do dia, e com ele a multiplicidade de sentidos que cada
pessoa confere à sua existência.
São raros os pensadores que souberam estar atentos a esta
polissemia. Como disse, Gilbert Simondon está entre eles5.
98 A parte do Diabo
Pretendo voltar mais adiante a esta obra. Apenas uma pala
vra, aqui, para frisar a fundamental mudança de paradigma
/que é provocada pelo resvalar da ontologia para a onto-
■i gênese. Termos talvez algo pedantes, mas que designam bem
a primazia, no primeiro caso, de um Ser intangível: seja ele
Deus ou o Indivíduo, aos quais poderíamos acrescentar a
nação-Estado, as instituições valorizadas pela modernidade,
em suma, toda entidade que tenha uma identidade estável e
bem definida. É no contexto dessa lógica da identidade que
o indivíduo, racional, senhor de si e possuidor da natureza
veio a ser hipostasiado. O sujeito pensante e atuante, pivô
de uma "lógica da dominação" que, do jardim do Éden, com
partilhado com o homem, ao produtivismo contemporâneo,
orientou todo o pensamento ocidental.
A ontogênese, por sua vez, é mais flexível, mais fluida.
Ela insiste em estados sucessivos — eu diria, em identifica
ções múltiplas. Cada uma delas sendo real em um tempo
T, mas tornando-se mais porosa e mesmo evanescente em
um tempo T l, T2. Como se vê, a ênfase no devir, na dinâ-
^ mica do Ser, dá conta da impermanência das situações, das
! entidades pessoais,'e, ao mesmo tempo, da perduração da
vida como tal. Neste sentido, a dinâmica ontogênica é um
instrumento analítico dos mais pertinentes para descrever
as sinceridades sucessivas em ação nas paixões individuais
e sociais, e compreender os processos de fortes adesões aos
quais sucedem desafeições não menos intensas, indiferen-
tismos e outras formas de sincretismos religiosos, filosófi-
\i cos ou políticos cujas conseqüências ainda não podem ser
plenamente avaliadas.
Variações sobre a sombra 99
Em suma, a perspectiva ontogenética pode ser uma for
ma de compreender o relativismo da "pessoa" pós-moder-
na. Qualquer um é pessoa: ator de uma teatralidade global.
Nela, desempenha papéis diversos que só têm valor por
sua multiplicidade e sua interação. Ao mesmo tempo, qual
quer um não é ninguém: só vale em referência à com uni
dade em que se insere, em função do contexto no qual está
inscrito. A palavra "inteireza", que propus ao debate teó
rico, traduz bem esta dupla perspectiva. O ser em devir é
a_resultante de todas as possibilidades (ou po tencia li
dades). Ele participa, stricto sensu, ou seja, magicamente,
das situações, das outras pessoas, da natureza, da an i
malidade que o permeiam, que o fazem ser o que ele se
torna no contexto desses "instantes eternos" que vive in
tensamente. A evolução dos sentimentos amorosos e fa
miliares deve ser analisada neste sentido: sucessão rápida
de casamentos, diversificação dos agrupamentos fam ilia
res, o que certos especialistas chamam, com algum atra
so, de família tribal.
O princípio de individuação jungiano, que é muito d i
ferente da individualização ocidental, exprime bem essa
dinâmica do devir, desse processo de gasto no qual nos
perdemos num conjunto mais amplo, natural e social, para
nos reencontrarmos de maneira mais inteira, logo, mais
harmoniosa.
As aplicações sociais e sociológicas dessa perspectiva são
evidentes e promissoras. As "danças do ventre” musicais,
nas diversas formas da techno, as histerias esportivas que
ocupam lugar privilegiado na atualidade, as religiosidades
100 A parte do Diabo
invasivas e mesmo as múltiplas revoltas juvenis, marcadas
pelo radicalismo, seriam então como sinais precursores da
mudança de paradigma de que falei. Exatamente como
ocorreu nas sociedades tradicionais, pré-modernas, a pós-
modernidade fratura a individualização identitária e re
pousa no "mais que um" comunitário, numa ecologia do
espírito feita de analogias, correspondências e interação. O
corpo se espiritualiza e a alma se corporifica. É a isto que se
mostra atenta uma sociologia da alma, a da anima mundi.
Num saboroso livro que assina com o antropólogo
Kerenyi, Jung insistia na figura do "divino patife". A inte
gração da sombra que resulta em reconhecer a sombra em
si mesma permite ao mesmo tempo reconhecê-la no con
junto social. Os exemplos que ele fornece e analisa sem
preocupação judicativa ou normativa mostram em que
medida a pluralidade pessoa se enraíza profundamente
numa estrutura arquetípica de todo conjunto social. Não
se trata aqui de estabelecer uma lista, entre os mitos que
nos são próximos e distantes, de todos esses desrespei-
tadorcs da ordem, mas a palavra "patife" enfatiza bem um
aspecto que poderíamos qualificar de familiar, logo, neces
sário. Com efeito, esta figura da alteridade é uma espécie
de compensação.
f Sem ela, o poder político rapidamente tornar-se-ia tota-
, litário; o saber, dogmático; a doutrina religiosa, inquisito-
rial; a arte, acadêmica; os costumes, intolerantes; as
^instituições, esclerosadas. É isto o arquétipo do "patife": ele
favorece a rebelião pontual, suscita a heresia libertadora,
dinamiza a criação artística, permite a marginalidade fun-
Variações sobre a sombra 101
dadora. Em suma, sacode o instituído, reanima o peso mor
tífero das instituições. O "patife" cristaliza a força da
anomia, sem esquecer que este anômico ou alguns de seus
elementos tornar-se-ão "cânone" das sociedades em gesta
ção. Pois é sabido que o marginal, o poeta maldito, o teóri-j
co rejeitado e o rebelde de todos os tipos tendem a tornar-se j
a referência incontornável.
Assim, no que diz respeito às sociedades pós-moder-
nas em gestação, bem se vê como a "sombra de Dioniso"
dissemina-se rapidamente sobre todas as formas de pen
sar e viver. O relativismo moral, o sincretismo religioso
ou filosófico, o cuidado com o corpo, o hedonismo tribal,
a indiferença- política, em suma, a saturação dos valores
universais, tudo isto pode ser entendido como a afirma
ção de uma alteridade fecundante que o racionalismo mo
derno julgara poder eliminar definitivamente. É em função
do relativismo moral que a heterossexualidade e a homos
sexualidade, a monogam ia e a sucessão de casamentos
constituem referências aceitas; o sincretismo religioso, por
sua vez, não reflete uma exacerbação do individualismo,
cada qual criando sua religião, mas a vivacidade dos gru-
pinhos de vinculação. A reafirmação do selvagem, a exa
cerbação da animalidade e da crueldade, a volta do étnico,
refletem, com força e serenidade, a vivacidade da sombra
negada pela cultura ocidental. A volta do arcaico, no sen
tido do que é primordial, fundamental, nativo, expressa-
se prioritariamente e com força, como se sabe, na criação
teatral, musical ou ainda na moda, mas há uma contami
nação no ar, e são muitos os indícios de que em pouco
102 A parte do Diabo
tempo o conjunto da vida cotidiana estará envolvido neste
processo.
O vaivém estabelecido por Jung entre a personalidade
particular e a mitologia social é particularmente sugestivo.
De m inha parte, eu diria que se trata de uma verdadeira
reversibilidade6. A sombra que cada um tem em si, os as
pectos que podemos classificar de "inferiores", a fraqueza
necessária à força, a noite que compensa o dia, tudo isto
inscreve-se num ciclo civilizatório. Bem e mal funcionam
em perfeita sinergia.
É o que a criança, toda entregue a suas ocupações lú
dicas, sabe perfeitamente, qualificando os companheiros de
brincadeira, segundo o momento, de malvados ou bonzi-
nhos, sem maiores conseqüências para suas relações com
eles. Extrapolando, podemos lembrar que esta prática in
fantil torna-se uma característica da vida social em sua
integridade. A "criança eterna” que se transforma em figu
ra emblemática do momento. O m ito de Dioniso, adoles
cente perpétuo, repousa na aceitação da sombra interior que
progressivamente tende a se exteriorizar.
Assim também os conflitos de todos os tipos, as múlti-
\ pias rebeliões, as agressividades amigáveis, amorosas e pro
fissionais não passam da expressão social de um conflito
interior inconsciente. Reconhecendo-o como tal, modera
mos seus efeitos. O inim igo exterior relativiza-se a partir
do momento em que cada um está consciente de ter seu
próprio inim igo interno, com o qual é preciso conviver. O
aspecto lúdico que os conflitos sociais às vezes assumem
poderia ser aproximado das brincadeiras infantis. Músicas,
Variações sobre a sombra 103
cantos, travestimentos, achados lingüísticos e diversas for
mas de ironia acompanham o mais das vezes as manifesta
ções políticas e sindicais. Os refrãos substituíram os slogans,
a dança, a marcha em passo cadenciado. Vejo nisto uma
expressão da parte de sombra individual que, comunali-
zando-se, modera, relativiza a antinomia dos valores que
essas manifestações pretendem combater. Não nos levamds
a sério demais, pois sabemos que o mal político ou econô
mico que estigmatizamos também permeia cada um de nós.
Insisto nessa reversibilidade, pois se aceitávamos ou pelo
menos reconhecíamos anteriormente a lei de ação da vio
lência, a antinom ia dos valores, já tínhamos mais dificul
dade em reconhecer sua inclusão na ontogênese individual.
Na medida em que só o bem estava no princípio de todas
as coisas. Só o bem era imposto e exigido para corroborar a
moral pública e privada. Só o bem era colocado como ab
soluto. A sombra, o sol negro, só era tolerada na marginali
dade artística, no segredo do paroxismo místico e esotérico
ou na ilum inação poética. Era o caso em A. Rimbaud, o so
nho levando à "quebra da graça avivada da violência nova”.
E conhecemos o papel desempenhado pela alteridade, o
outro no eu, na criação rimbaudiana!
É esta duplicação que a obra de Jung acentua. Ele a vive,
antes de mais nada, em si mesmo, e tenta continuamente
estabelecer sua cartografia e avaliar seus efeitos. É o que
denomina sua "personalidade nQ 2". Graças a ela, ele parti
cipa da "obscuridade do m undo7". Não seria possível ex
pressar melhor a reversibilidade, a correspondência mágica
entre a sombra individual e coletiva. Existe de fato uma
104 A parte do Diabo
opacidade maciça, objetiva, da qual o indivíduo e a comu
nidade participam. Opacidade que devemos viver de uma
forma destinai. O que não quer dizer que devamos simples
mente agüentá-la, mas que convém compor com ela.
Tomemos esta palavra em seus sentidos etimológico e
musical. Juntamos coisas que já estão aí (Dasein); coloca
mos, num ritmo que precisa ser encontrado, notas musi
cais de modo a elaborar uma partitura, a de toda existência
harmoniosa. É isto a aceitação do destino individual ou a
comunidade de destino no contexto coletivo. É isto a força
pagã do destino.
O pensamento ocidental privilegiara a história, pois esta
pode ser controlada. É possível escamotear, real ou ideal
mente, seu aspecto obscuro. É o objetivo do cristianismo,
repousando no postulado de um pecado original que de
vemos tratar de superar, participando da economia do res
gate inaugurada pelo Salvador. É também o da teoria da
emancipação, própria da filosofia do Ilum inismo no sécu-
\ lo XVIII. É igualmente o objetivo do freudismo, que pre
tende trazer de volta à consciência o resíduo inconsciente
que devemos superar. Todas perspectivas progressistas que
conduzem ao moralismo das instituições sociais. A histó
ria individual ou a história do m undo podem ser dirigidas
no bom sentido. A História é teleológica. Ela só pode ser
sensata.
Bem diferente é a "composição” que mencionamos. Não
se trata de "esvaziar a lixeira" do inconsciente, da mesma
forma como não se pode evacuar o aspecto sombrio do
inconsciente coletivo. Eis portanto a força objetiva da psi-
Variações sobre a sombra 105
que, tal como é abordada por Jung. É preciso engalfinhar-
se com ela. Luta sem fim nem finalidade. Combate perpé
tuo de Jacó com o anjo, mas um anjo negro simbolizando
a dualidade, a duplicidade, a duplicação de todo ser em
devir. Também aqui, não mais uma ontologia plena e se
gura de si, mas uma ontogênese a confirmar-se em suas
incertezas, extraindo sua força de suas arcaicas e simples
possibilidades. A História é uma completude a rematar ou
a recuperar; numa palavra, é o jardim do Éden a cultivar.
O destino é este "vácuo" no qual somos atirados, o m undo
como mundus: buraco de lixo no qual temos de nos virar.
O monoteísmo da História é eficaz e mecânico. A "ma-'
quinação" dos tempos modernos testemunha isto. Esta efi
cácia é devida ao processo de mediação que, ao cabo de uma
lógica dialética, levará à perfeição sintética. Os mediadores
podem ter diferentes nomes, a essência de sua ação é idên
tica: uma instrumentalização do mal em vista de sua su
posta superação. O que tem como conseqüência (acessória?)
a imposição de seus poderes. O Cristo-Salvador, natural
mente, mediador por excelência, mas também a Razão, o
Proletariado e outras entidades hipostasiadas, sem esque
cer essas outras manifestações da mediação que podem ser
o confessor, o psicanalista ou o intelectual útil em sua for
ma mais recente: o especialista. Sua função? Saber tudo
sobre tudo, retalhar a realidade em pedaços, esclarecer o
obscuro, explicar o inexplicável. Explicar, palavra-chave do
monoteísmo, retirar as dobras ou pregas (ex-plicare) da opa
cidade humana. Desencantar o mundo. Dizer o porquê das
coisas. De uma forma sentenciosa, educar. Donde a maré
106 A parte do Diabo
de livros de edificação que se apresentam como obras de
pensamento.
Ébem diferente a implicação do politeísmo. As "dobras"
são preservadas pelo que são, nichos nos quais a parte da
sombra, individual ou coletiva, pode encontrar refúgio.
Reencantamento do mundo. O politeísmo dos valores é
então o meio mais seguro de se proteger do totalitarismo
do pensamento totalizante. Relativismo sob todas as suas
formas, ao mesmo tempo relativizando e pondo em rela
ção. Relativiza o que poderia ambicionar o absoluto, põe
em relação as diversas facetas da inteireza pessoal e social.
É exatamente o que, indo de encontro à mediação dia
lética baseada no absoluto do bem, (re)instaura a polissemia,
a sinergia do bem e do mal, da luz e da sombra. Não mais o
. poder implacável do mediador, mas uma compaixão fra
terna, a horizontalidade do desamparo. Também aqui o
tesouro m itológico é instrutivo, frisando a complemen
taridade dos paredros. Aquiles e Heitor, Perceval e Gauvain,
Gilgamesh e Enkidu. A epopéia babilônica e a lenda do
Graal mostram bem em que a sombra fraterna pode ser uma
forma de dizer e viver a face oculta das coisas e pessoas. "A
busca unilateral do bem expõe [...] ao risco de um orgulho
arrogante."8 O que M. L. von Franz diz do indivíduo pode
ser extrapolado para sua projeção social. O prometeísmo
ocidental repousa num mecanismo como este. Já a aceita
ção da parte obscura, o que aparece em nossos contos e
lendas, no interior de si mesmo ou na duplicação fraterna,
torna o herói humano, quer dizer, capaz de dúvidas, m ina
do pela incerteza, num a palavra, impregnado de "húmus".
Variações sobre a sombra 107
Personalidades múltiplas, daimon socrático, gênios do
bem e do mal, anjos guardiões, espíritos diversos — seria
infindável a lista desses duplos indícios da complicação
humana. Animismo renascente, deep ecology, intromissão
dos "orientes míticos" (G. Durand) põem novamente em
cena as estruturas arcaicas do dado mundano. Tudo isto,
por sinal, é mais vivido que pensado. Suas conseqüências
sociais ainda são imprevisíveis. Mas o que esta tendência
deixa claro é a fragmentação de um indivíduo unificado,'
tal como vinha prevalecendo na tradição judaico-cristã, e
em sua consumação moderna: Indivíduo senhor de si, se-i
nhor e possuidor da natureza.
À imagem do henoteísmo.(miríade de deuses) caracte
rístico, por exemplo, da tradição hindu, a fragmentação do
indivíduo induz o reconhecimento e logo, em conseqüên
cia, a aceitação do instante obscuro constitutivo de cada
um e do conjunto social. Reconhecimento, aceitação, pre
lúdios da integração. Sinais precursores desta integração, a
selvageria da música techno, a crueldade encenada pelo
teatro e o cinema contemporâneos, a ambigüidade sexual
que a moda e as posturas corporais exacerbam, as sinceri-
dades sucessivas típicas de tantos fenômenos sociais. Até
mesmo no m undo político, no qual já não têm conta as
reviravoltas de alianças, as mudanças de etiquetas, as trai
ções e conversões.
Para pensar um tal processo, talvez seja necessário re
tornar ao que Jung denominava "princípio polidemonís-
tico",9 exprim indo a religiosidade de cada grupo social.
Princípio tribal, longe do universalismo ocidental, repou-
108 A parte do Diabo
sando ao mesmo tempo na m ultip lic idade do m undo
societal e na pluralidade individual. Confrontamo-nos aí
com uma outra força de coerência'antropológica, não mais
a da Unidade excludente e sintética, de uma lógica do "ter
ceiro excluído", mas a da unicidade, do "terceiro dado", o
tertium datum, repousando na tensão de elementos hete
rogêneos. Unicidade na qual a sombra e o mal ocupam, de
maneira insuperável, um lugar privilegiado. Unicidade que
privilegia a dinâmica e a força de todas as possibilidades da
inteireza humana.
Notas do Capítulo III
1. Sermão CCLXIII.
2. O uakn in (M. A.), Tsintsoun, Introduction à hi móditation
hébraique, Paris, Albin Michel, 1992, p. 56. Sobre o aspecto so
cial dessa duplicidade, remeto ao capítulo dedicado ao tema em
Maffesoli (M.), La Conquête du prcsent, pour une sociologia da
la vie quotidienne (1979), Desclée de Brouwer, reed. 1999.
3. Heidegger (M.), L'Êtrc et íeTemps, Paris, Gallimard, 1964, p. 37.
Cf. também Junger (E.), Prcmier journal parisien, Paris, LGF,
1984, p. 55.
4. Cf. meu livro Le Teinps des tribus, le déclin de I'individualisme
dans les sodétós de masse (1988), reed. ampliada com um prefá
cio, Paris, LaTable Ronde, 2000, e Combes (M.), Sim ondon (G.),
Individu et collectivité, Paris, PUF, 1990.
5. S im ondon (G.), L'Individualisation psychique, Paris, Aubier,
1989.
6. C f.Jung (C. G.) e Kerenyi (C.), LeFripon divin, Genebra, Georg,
1958. Cf. também Jung (C. G.), La Psychologie des transíerts,
Paris, A lbin Michel, 1980, p. 78, e Synchronidté et Paracelsia,
Paris, A lbin Michel, 1988, p. 169. Sobre a anomia, cf. Duvignaud
G-), L’Anomie, Paris, Anthropos, 1970.
110 A parte do Diabo
7. Franz (M. L. von), Rêve d'hier et d'aujourd'hui, Paris, A lb in
Michel, col. "Espaces libres'', 1992, p. 12.
8. Jung (E.) e Franz (M. L. von), La Légende du Graal, Paris, A lbin
Michel, 1988, p. 170-172.
9. Jung (C. G.), Types psychologiques, Genebra, Georg, 1993, p.
214. Cf. também Durand (G.), Introduction à la mythodologie,
Paris, A lbin Michel, 1998.
C a p í t u l o IV
In t e ir e z a d o
"Para ser grande, sê inteiro:
nada em ti exagere ou
exclua. ”
F. P esso a
D u p l ic id a d e
O que é considerado indivisível, o indivíduo, é antes de tudo
fragmentado. Também aqui, a experiência é boa conselhei
ra, mostrando constantemente que a fragmentação é coisa
cotidiana. A dupla vida, a vida do êxtase místico, do transe
techno ou a do donjuanismo pequeno-burguês é um lugar-
com um da literatura de alto coturno ou do teatro de
bulevar. Os poetas a celebram, os romances populares en
contram nela o essencial de sua inspiração.
Aliás, não teria sentido fazer a separação. A dimensão
cotidiana da duplicidade é, de fato, o indício flagrante de
seu aspecto antropológico. Existe uma intranqüilidade do
ser que merece atenção. É sobre ela que repousa o jogo das
114 A parte do Diabo
paixões, individuais ou coletivas. Santo Agostinho dizia
• inquietum est cor nostium. Nosso coração é inquieto. Dis
to dá testemunho sua própria vida, atormentada, dilacera
da, jamais satisfeita. Esta inquietude é o fundamento do
estado de guerra permanente próprio desta perpétua ten
são entre o que cada um é e o que gostaria ou sonharia ser.
Talvez devamos enxergar nisto a fonte desse conflito es
trutural de que está impregnada a vida social. Conflito no
interior de si mesmo, conflito contra si mesmo. Crisol da
luta que, no fim das contas, nos une ao outro. Philia e
neikos. Amizades e inimizades, intimamente ligadas, são
forjadas numa forma comum. É um estado natural da hu-
.•■imanidade, este bcllum omnium contra omnes, a guerra de
todos contra todos. Não tem sentido negar sua importân
cia. São muitas as análises que o constatam. Raras são as
que, lucidamente, mostram-se capazes de estabelecer sua
genealogia, e de afirmar suas conseqüências.
Nietzsche, naturalmente, que, comentando Hobbes a
este respeito, mostra como esta tensão é indispensável para
a cultura, quer dizer, em seu sentido forte, para a formação
do eu. Lento processo iniciático, que faz com que este con
flito que nasce e renasce no interior do indivíduo seja capaz/*
de fazer "brotar as flores luminosas do gênio1". Perspectiva
dionisíaco-heraclitiana que, consciente ou não, trabalha em
profundidade qualquer conjunto social.
Existe aí uma ambivalênci' muito distante do "fantasma
xlourn" próprio da tradição ocidental. A razão dogmática
pode, quer piomulgar, impor a unidade. Os sentimentos,
1 os afetos, de sua parte, conduzem-nos à turbulência, ao
Inteireza do ser 115
desconforto da multiplicidade. E também à sua riqueza. Ou,]
pelo menos, à sua realidade.
É esta multiplicidade, no interior de si, que opera nas
teatralidades cotidianas. É ela que permite entender as
duplicidades vividas contra todos os poderes, os ardis de
todos os dias contra as imposições pedagógicas, os subter
fúgios em relação às certezas ideológicas, a abstenção nas
grandes celebrações democráticas, a recusa de todo mora-
lismo constrangedor. Em suma, as trapaças que o povo opõe
aos que pretendem determinar o que o mundo deve ser.
A genealogia do espírito rebelde remete-nos, antes cie
mais nada, a uma revolta contra uma concepção estática
do indivíduo. É por ser múltiplo em si mesmo que o ind i
víduo não se reconhece na rigidez social. A dificuldade em
captar esta tensão está no fato de que ela não se diz, mas se
vive. É no ato que a versatilidade se coloca. Com insolên
cia e desenvoltura, como toda rebelião, ela acredita nos
fantasmas e com isto toma os dirigentes sociais pelo que
são: simulacros.
Para além de nossas certezas excessivamente racionais,
devemos reconhecer nessas pregnâncias de imagens o tema
recorrente da "sombra" que acompanha todo indivíduo. A
título de ilustração, podemos evocar aqui a narrativa de Er
em Platão2, indicando que cada homem é tributário de seu
demônio familiar. É ele que harmoniza, stricto sensu, os
"humores" que nos afetam. É ele que predispõe para o gê
nio e engendra a alegria ou a melancolia sem causa.
O daimon platônico é instrutivo na medida em que frisa
a importância do "laivo de loucura" que readquire impor-
116 A parte do Diabo
tância na publicidade, no cinema ou na canção. Encontra
mos esse "efeito impulso" próprio das paixões fu lm inan
tes, dos apegos repentinos, das compras sem motivo e outras
aventuras imotivadas. Esta faculdade de atração nada tem
de anedótica ou marginal. Pelo contrário, ela permite en
tender, de um ponto de vista sociológico, as adesões e os
desamores, políticos, musicais, indumentários ou ideoló
gicos tão fortes quanto imprevistos, e, sobretudo, muito
efêmeros.
Nessas versatilidades, é o "duplo" de m im que entra em
jogo. As loucuras coletivas, que não faltam nos dias de hoje,
remetem-nos simplesmente aos "laivosde. loucura" dos
demônios pessoais que entram em conexão numa espécie
de interatividade generalizada. Este tipo de loucura coleti
va pode levar a suicídios coletivos, de determinadas seitas,
por exemplo, mas também às conflagrações de violência em
certas cidades, tão imprevisíveis quanto efêmeras. Podemos
encontrar esta interatividade, entretanto, sob forma menos
violenta. Podemos pensar o que quisermos a respeito, mas
a "rede", o "ciberespaço" que ela promove são certamente
uma boa ilustração, em todos os terrenos, de um simbolis
mo generalizado no qual a fantasia, ou seja, a partilha das
imagens, desempenha um papel que não pode ser subesti
mado.
No entanto, o daimon continua inquietante. Pelo me
nos na perspectiva do ideal racional ocidental. Mas se o
pusermos numa perspectiva mitológica, ele traduz o ex-
travasamento do eu por outra coisa que não o eu. Desejo
de infinitude tentando encontrar, viver outra coisa além
Inteireza do ser 117
do simples enquadramento identitário. As manifestações
contemporâneas a que nos referimos podem fazer eco à
visão poética transmitida por F. Pessoa:
Quem tem em m im demasiado daquilo que é
maior que eu,
Demasiado do que não posso chamar
Eu...
O paroxismo poético diz, belamente e em tom maior, o
que constitui cada vez mais os aspectos mais comuns da
vida cotidiana. Este "extravasamento" é com certeza o as
pecto mais importante com que se defronta o observador
social, e podemos supor que estamos no início de um pro
cesso destinado a desenvolver-se exponencialmente.
Ser extravasado por outra coisa que não o eu é, portan
to, algo absolutamente atual. O que chamamos de reality
show ou "telerrealidade" — Loft Story na França foi disso
uma boa ilustração — encena a "perda" do indivíduo racio
nal numa entidade que o ultrapassa. Espécie de familialismo
exacerbado, no qual se liberam as diversas facetas do que
podemos considerar estranho ou estranho em si. A cruel
dade, excessos afetivos não se encontram mais confina
dos e protegidos pela solidez do muro da vida privada, mas
teatralizados, jogados no "pote comum". O interesse des
pertado por essa partilha dos afetos e a obscenidade que isto
induz são instrutivos. Lembram m uito simplesmente que
o "plural" na natureza humana é uma realidade empírica
de antiga memória.
118 A parte do Diabo
Trata-se, com efeito de uma teatralidade que vamos en
contrar em muitos mitos. Para citar apenas alguns exem
plos, na lenda do Graal, Gauvain é a sombra fraterna de
Percival. Quando este luta contra Gauvain, reconhece que
lutou consigo mesmo. Combate no interior de si mesmo
que vamos encontrar igualmente na epopéia babilônica de
Gilgamesh, na qual o herói está em luta constante contra
seu irmão, o obscuro Enkidu. Esta dualidade é um elemen
to básico de muitos contos, que reconhecem e encenam a
parte obscura do humano e não se lim itam ao unilatera-
lismo do ideal solar (o racional).
Este último — e isto começa a ser bem analisado — pôde
levar a modernidade ocidental ao orgulho arrogante do con
trole, de si e do mundo, com as conseqüências que conhe
cemos: as explorações sociais e naturais. Ao passo que o
reconhecimento do obscuro, em si e no mundo, é uma es
pécie de humildade que se baseia na aceitação da sensação,
ou seja, como observava Jung, no "senso do real".3 Ence
nando este real, protegemo-nos, domesticamo-lo. Catarse
cuja necessidade é evocada pelo teatro ao longo dos tem
pos. Purgação cuja pertinência social é frisada pelo sucesso
dos programas de TV contemporâneos.
Os casais antitéticos das rpitologias, as gemelidades mís
ticas, o familialismo ambíguo da telerrealidade — está aí
toda uma série de indícios que enfatizam o aspecto estrutu
ral e estruturante da ambivalência. Podemos tentar mascará-
■ la, erradicá-la, que ela não deixa de afirmar sua irrefragável
^.continuidade. Para dizê-lo em termos metafísicos, Deus
_ precisa sempre de seu pared~o: Satã.
Inteireza do ser 119
Vaivém entre os fatores angélicos e satânicos, cuja fe-
cundidade é relatada por todas as histórias humanas. O ho
mem médio, moderno, que só "funciona" numa dessas
polaridades, é um ideal recente. E, aliás, parece que este ideal
já está em vias de saturação, e que está voltando à ordem
do dia o dialógico, que a sabedoria popular nunca esque- ,
ceu, entre o "cheiro de santidade" e o de "enxofre". Esta
bipolaridade manteve-se na memória coletiva na pessoa dos
heróis, grandes chefes guerreiros, conquistadores diversos
e outros personagens de romance. Mas estes só puderam
ser assim porque se enraizavam num substrato coletivo,
verdadeiro conservatório de uma sabedoria concreta, na
qual a homologia entre "o que está embaixo" e "o que está
no alto" era uma realidade vivida.
Traçando o retrato de um desses heróis, Cristóvão
Colombo, o historiador das idéias Eugênio d'Ors frisa o tra
ço marcante do que chama de sua insinceridade. Transcen
dendo a simples estigmatização moral que poderia ser
pespegada a esta característica, ele vê nela essa espécie de
oscilação "entre o que é verdadeiro e o que é fingido", som
bra de ironia "tão específica do pensamento mediterrâneo,
de seus exercícios de equilíbrio baseados no princípio de
contradição".4
Se o herói é reconhecido como tal, é porque está sinto
nizado com as características comuns. Ele participa do
húmus coletivo. Mais que produtor, ele é o "produto" de
sua época, em relação de amor com ela. É próprio de uma
relação como esta ser ambígua. Disto o princípio de con
tradição, que devemos entender em sua acepção lógica, vem
120 A parte do JDiabo
a ser uma expressão privilegiada. A oscilação entre o bem e
o mal, o escuro e o claro, o céu e a terra, acentua, em sua
dinâmica própria, aquilo que caracteriza o que é vivo. As
; qualidades morais do santo, do herói, do gênio são, claro,
importantes, mas seus defeitos não o são menos. E com as
duas coisas que o homem sem qualidades comungará.
É nesta "oscilação" que repousa o mecanismo de parti
cipação mágica nos pequenos deuses celebrados pelos faits
divers, as revistas do tipo people e outras máquinas de so
nhos coletivos. O jogador de futebol de origem argelina com
salário faraônico, a princesa inglesa e sua morte trágica, o
cantor americano dado a provocações escandalosas, o po
lítico e suas pequenas corrupções, o guru religioso com suas
travessuras sexuais — não faltam figuras cotidianas da
ambivalência vivençiada.. E se essas figuras continuam a ser
emblemáticas, verdadeiros ícones, não é apesar, mas por
causa de seus defeitos, que só serão considerados "taras"
de um ponto de vista moral, o da separação radical entre o
branco e o preto. É preciso, pelo contrário, reconhecer
empiricamente que isto lhes "confere peso". A tara não pesa,
ela torna leve. Podemos compreender assim como certos
políticos que foram julgados e condenados por fraudes
chegam a ser reeleitos, sem problemas, para escândalo de
muitos de seus antigos comparsas.
Em suma, a "coincidência dos opostos" é a expressão
de uma simbiose misteriosa. Aquela na qual bem e mal
misturam-se intimamente para o crescimento de qual
quer planta. Por que a planta humana seria uma exce
ção na ordem natural das coisas? O estrume também
Inteireza do ser 121
serve para fazê-la crescer. A expressão popular que re
conhece em alguém "o inverso de suas qualidades" está ape
nas exprim indo, e poderíamos mesmo dizer que está
apenas teorizando uma tal realidade. "Cenestesia" antro
pológica que, em seu sentido etimológico, evoca a sen
sação de um todo (koinos) elaborado a partir de elementos
diversos, disparatados, contraditórios. E também sensa
ção de um todo que alia a d inâm ica (cinética) dos flu i
dos e a estática dos sólidos.
Esta "cenestesia" observada pela medicina no corpo fí
sico e identificada pela psicologia abissal na alma indivi
dual também atua no corpo social. O reconhecimento desta
ambivalência limita-se a frisar que, contrariando uma mo
ral prenhe de boas intenções mas algo abstrata, existe uma
"ética" mais real, baseada nos costumes (ethos), logo, mais
\ próxima da realidade. Realidade entendida em seu sentido
pleno, ou seja, integrando os fantasmas e as fantasias, os
sonhos e os pesadelos, as alegrias e as desgraças. Ética da
vida de todos os dias, que sabe, com base num saber incor
porado, que esta não pode ser partilhada, tendo sempre
necessidade de seu contrário para alcançar a plenitude. A
morte co-naturalmente ligada à vida, o defeito à qualida
de, a ordem à desordem.
Muito antes de formalizá-lo, de um ponto de vista epis-
temológico, Edgar Morin observara, a propósito do cine
ma, o aspecto "complexo" dessa ética. Numa formulação
condensada, ele identificava no hom em imaginário "oy
universo arcaico de duplos e fantasmas" e "seu aspecto
envolvente que vive em nós".5 O que era dito a propósito
122 A parte do Diabo
da produção cinematográfica — o renascimento do arcaís
m o — é ainda mais verdadeiro no que diz respeito a m u i
tos elementos do imaginário pós-moderno. Os jogos de
papéis e outros video games, as love parades e diversas reu
niões techno, e inclusive a multiplicação dos festivais fol
clóricos e reconstituições históricas, tudo isto deixa clara a
revivescência do estranho envolvimento que o arcaico
universo fantasmático continua a exercer.
Como os mistérios teatrais da Idade Média, eles favore
cem a comunhão comunitária. E isto sem deixar de lem
brar, em particular, que para além da positividade racional
existe este fundamento antropológico que persegue cada
um e o corpo social em sua integridade. Rememorando o
aspecto duplo, complexo, de toda existência humanai En
volvimento que foi possível mascarar, apagar ou margina
lizar na arte, mas que tende novamente a se capilarizar no
conjunto dos fenômenos sociais.
O cinema do homem imaginário contemporâneo não
está mais confinado às salas escuras. A "escuridão" disse-
minou-se, e qualquer um é capaz de "fazer seu cinema" na
vida cotidiana. Sonho acordado que ratifica um incons
ciente e mesmo um consciente coletivo, fazendo com que,
com a ajuda de figuras arquetípicas, criemos uma verdadeira
"sobrevida" no próprio seio do prosaísmo cotidiano. Se in
sistimos no aspecto coletivo desse arcaísmo que vem a ser
a duplicidade é para evacuar a conotação moral que ela não
deixa de ter no contexto de uma psicologia individual. Ao
ser assumida pela comunidade, esta contradição torna-se
de certa maneira "deglutív^l". ; la é, stricto sensu, relativi-
Inteireza do ser 123
zada por outras características do conjunto social. É a
cenestesia de que falei acima.
No contexto de uma personalidade coletiva, cada um pode
desempenhar seu papel, inclusive aquele que, de um ponto
de vista estritamente individual, pode parecer condenável.
Assim, o fanfarrão, o "cascateiro", ou, para retomar uma
figura romanesca célebre, o "Tartarin deTarascon" local, é
aquele que é incumbido de dizer ou viver, em tom maior, a
pregnância do fantasma ou da fantasia. Pouco importa que
acreditemos ou não. Diante da simples clareza da verdade,
ele assume a parte de sombra cuja necessidade é inegável.
Um tecido, para ser o que é, é constituído do entrecru-
zarnento de inúmeros fios. O mesmo se dá com o tecido so
cial, que, para não ser multicolorido, integra cada coisa e seu
contrário. Parece uma banalidade, mas convém aceitar todas
as suas conseqüências, inclusive as que poderiam ser moral
mente reprovadas. Falando da textura do tapete oriental, Louis
Massignon observa que ela se caracteriza pela "justaposição
de luz e trevas, de claro e escuro", ou ainda que os animais
específicos do tapete persa parecem "torturados”.6
A alusão é das mais instigantes, pois chama a atenção
para a organicidade do corpo social, causa e efeito deste
tecido. A ambivalência estrutural precisa teatralizar-se. Edo
"cascateiro" ao tapete persa existe efetivamente um fio de
ligação, o da complexidade da vida feita de uma m ultip li
cidade de elementos, mas na qual "todo conjunto está in
tegrado". Em suma, a escuridão é um momento do holismo
tribal. Ela frisa seu aspecto simbólico, ou seja, permite a
"religação", favorece o vínculo.
124 A parte do Diabo
Para ficar nessa ambivalência do espírito mediterrâneo,
cujas oscilações e cujo princípio fundamental de contra
dição indiquei, podemos lembrar que mesmo o espírito
de vingança — como a "vendetta”, no caso extremo — po
de ser entendido como uma experiência dessa "religação",
uma forma de solidariedade, de participação na com uni
dade. Alguma coisa foi perturbada na ordem social, é pre
ciso consertar. A vingança como "ato reparador e salvador7"
é algo que pode parecer paradoxal, mas, sem justificar seus
aspectos criminais, é preciso reconhecer sua dimensão
ética. Ela cimentou um corpo social. E de uma forma mais
sorrateira, e se escorando em justificações ou legitimações
de todos os tipos, não estaria operando igualmente nos
"acertos de contas", estigmatização, marginalização, que
vamos encontrar em nossas sociedades policiadas em to
dos os níveis, e em todos os setores da vida social? Assim
é que a palavra vingança foi empregada no primeiro dis
curso do presidente dos EUA após os atentados de 11 de
setembro de 2001.
A caricatura é um bom método analítico. No caso, ela é
capaz de nos fazer entender que se o indivíduo pode ser re
duzido à unidade, a pessoa não o pode. Da mesma forma,
a pessoa coletiva que vem a ser o grupo social não pode ser-
unidimensional. A assepsia que é o ideal das grandes teorias
ocidentais, a emancipação do mal ou da desordem que é o
das teorias modernas não resistem ao retorno obstinado dos
arcaísmos que nos lembram, queiramos ou não, o aspecto
plural dessas "coisas" opostas e complementares que cons
tituem qualquer realidade mundana.
Inteireza do ser 125
A redução à unidade, monoteísmo, indivíduo, Estado,
redução que conduz ao surgimento de um homem médio
moderno e à sua contabilidade estatística, é o resultado de
um pensamento do "não" e da crítica teórica que lhe serve
de legitimação. Em nome,de um valor tornado absoluto,
recusam-se outros, não menos pregnantes, que vêm a ser
negados ou estigmatizados. Bem diferentes são a duplici
dade, a ambivalência, a ambigüidade, que podem ser en
tendidas como formas de dizer o politeísmo ou a polissemia
da pessoa plural e do conjunto comunitário. Neste último
caso, é o "sim” que prevalece.
O reencantamento do mundo, o apelo do fantasmático,
os envolvimentos coletivos que são sua expressão, tudo isto
traduz o ressurgimento do "sentimento do sim”. O mara
vilhoso, o "surrealismo” já não constituem mais, então,
simples divertimentos literários, enraizando-se nas emoções
afirmativas. Emoções compartilhadas que já não se reco
nhecem nas diversas formas de ressentimento em relação
ao que é, mas o aceitam, teatralizando-o. A emoção poética
da surrealidade torna-se uma realidade comum, um sagra
do cotidiano. Qualitativo da vida que integra o tremendum,
o excesso e o risco aos atos e fenômenos da banalidade.
Assim, de uma forma inconsciente, a transcendência se
imanentiza, o divino encarna-se no corpo social, justamen
te por isto aceitando, de uma forma ou de outra, a finitude
como componente essencial da vida.
Talvez fosse conveniente, na esteira desse "surrealismo",
elaborar uma poética da existência social que dê lugar ao
fascinante, ao tremor, à sedução. É próprio do duplo, da
126 A parte do Diabo
sombra, reconhecer como evidente a íntim a ligação entre
a morte e a vida. Viver sua morte de todos os dias. Em La
\ Tragédiedela culture, GeorgSimmel observa que "a morte
pode habitar a vida, assim de repente, sem que por isto ela
se torne imediatamente contabilizável, ela abre uma m inús
cula partícula dela, enquanto realidade8". A morte está pre
sente, pronta para o bote, como tensão. Ela não se di.z,
verbalmente, mas impregna todos os atos da vida cotidia
na. E quando o senso comum, num lapso esclarecedor,
exprime isto — "a vida é tão curta" ou outras sentenças do
tipo — é para lembrar que convém desfrutar da melhor
maneira possível o que se vive, com intensidade, já que a
impermanência está aí e que somos "permeados" por ela.
O que quer dizer isto, senão o reconhecimento da
organicidade do holismo natural e social? A matéria e o es
pírito são ao mesmo tempo reais e irreais. A maior verdade
de alguma coisa é e não é, ao mesmo tempo. A essência do
universo é a contradição. A matéria é espiritual, assim como
o espírito é material. É o "trajeto antropológico" do qual
G. Durand traçou uma espantosa cartografia, é também o
"transcendentalismo panteísta" caro a F. Pessoa. Coisas que
reconhecem ao mesmo tempo a necessidade dos limites
objetivos e a não menos imperiosa necessidade de vivê-los.
Finitude, dor, presentes, como sombras inelutáveis. Mas
sombras que, ao mesmo tempo, dão sentido à vida, fazem
sua qualidade específica, conferem-lhe seu sabor doce-
amargo.
É curioso observar que as anes plásticas, a produção ci-
r vmatográfica ou ainda, com maior clareza, a coreografia
Inteireza do ser 127
contemporânea — S. Buirge, por exemplo — teatralizam os
elementos naturais, chtonianos, próximos da terra, da pri-
mitividade, das raízes. Também Jan Fabre, num registro ex
cessivo, recorre ao sangue e ao animal pronto para o bote
em cada um de nós. Este não-racional espetacularizado não
passa de uma cristalização de outros excessos ou eferves-
cências que caracterizam o espírito do tempo.
A arte, aqui, reitera a "loucura dos selvagens" que im
pregnava constantemente os contos medievais e suas me
táforas tomadas de empréstimo aos bestiários9. Selvagens,
sangue, terra, animais, conotam um saber mítico: o do
duplo. Saber do corpo ao mesmo tempo vitalista e forte
mente marcado pela morte necessária e inelutável. Saber
iniciático que, longe da unidade, lembra que as provações,
a dor, a impermanência, são "momentos" do surreal dos
quais a comunidade em seu conjunto participa e que é a
verdadeira eternidade.
A MORTE COM O DUPLO
Parece certo que, sob nomes diversos, as práticas dionisíacas
e o saber dionisíaco que lhes serve de legitimação estão
próximos do elemento natural. Sua selvageria, desde
Nietzsche, tem sido enfatizada muitas vezes. Por isso mes
mo elas chamam a atenção para o aspecto torrencial e im
petuoso da vida. Ora, a vida dionisíaca também é um flerte
com a morte. Ambivalência que assinala a organicidade de
todas as coisas. Em certos momentos, semelhante ambi
128 A parte do Diabo
valência se ostenta. É o caso desse laboratório da pós-mo-
dernidade que foi Vienne fin de siècle, a peça de Schnitzler:
L'Appcl á la vie ressoa, igualmente, como um chamado à
morte. O mesmo sentimento é encontrado na obra de
Klimt, e mais ainda na de Egon Schiele10.
Este reconhecimento do "duplo" que é a morte não
deixa de impulsionar uma criatividade real. UAppel à la
vie (1905) e o quadro de Klimt La Vie et la Mort (1916)
encenam de forma pungente a mistura de instinto e cruel
dade, espírito e sangue, sofrimento e ódio que age na ex
pressão do desejo. Mas, ao mesmo tempo, e com uma
lucidez estimulante, mostram que não existe um muro
intangível entre a arte e'a vida, ambas impregnadas da
mesma matéria e do mesmo espírito. A expressão aparen
temente paradoxal " Gefiihlkultur” (cultura dos sentimen
tos) reflete bem isso. A cultura não é apenas um horizonte
racional, ela envolve afetos,-é encarnada e, portanto, in
tegra todos os elementos dessa encarnação. Inclusive o
aspecto perecível da carne!
Entende-se melhor, assim, a espantosa ligação entre "o
apelo da vida" e "o apelo da morte", na medida em que
constituem, a longo prazo, um equilíbrio dos mais sólidos.
Quando uma sociedade não consegue encontrar este equi
líbrio, sucumbe rapidamente à violência desenfreada ou ao
tédio generalizado. A modernidade é um exemplo flagran
te de civilizações que, tendo pretendido esquivar-se à dor,
expulsaram a sombra e por isso mesmo viram proliferar
carnificinas e genocídios, enquanto eram ao mesmo tem
po tomadas por uma falta de intensidade existencial. Des-
Inteireza do ser 129
se modo, o tédio pode ser entendido, segundo a expressão
de E. Jünger, como a "dissolução da dor no tempo". Ele fala,
a este respeito, à imagem de uma formulação célebre, de
um "ardil da dor" que assim consegue se exprimir11.
É contra este tédio deletério que a criatividade, em sua^
ambivalência e sua crueldade, pretende reagir. Ela lembra j
que ao lado da lei de ferro da economiazinha moderna^
existe uma lei não menos impositiva da "econom ia.geral",
que integra, como bem viu G. Bataille, o gasto, a perda e a f^
morte. A intensidade erótica, que não se deixa enganar, tem'
esta condição, na medida em que liga eros e thanatos. Pe
quena morte do gozo, que, no auge do desejo, lembra-se.
de tudo que o une à morte.
É difícil pensar esta união no contexto de um pensamen
to ocidental para o qual a morte não deve existir, pois o
importante, o "real" é a vida eterna, após esta "vida aqui"
provisória. Foi esta tensão voltada para o futuro que efeti
vamente constituiu toda a cultura judaico-cristã. A laiciza-
ção desse desejo de vida eterná, no século XIX, em nada
altera o problema, estruturalmente. Quando Marx declara,
em A questão judaica, que "a política é a forma profana da
religião", pretende fundamentar teoricamente a busca de
uma eternidade terrestre no contexto da sociedade perfei
ta "por vir". Em ambos os casos, a morte, em suas diversas
formas — mal, pecado, desordem, anarquia — é desprovi
da de realidade lógica. Deve, portanto, ser superada. É a
partir dessa perspectiva que podemos entender a temática
moderna da emancipação de essência evangélica: "Morte,
onde está tua vitória?"
130 A parte do Diabo
Semelhante negação da morte gera um clima mortífe
ro. A morte recusada vinga-se impregnando o conjunto da
vida.
Como demonstram tantos etnólogos e antropólogos
contemporâneos — algo que encontramos em numerosas
culturas em todo o m undo — , bem diferente é o "sentimen
to trágico" da vida no qual a morte é o verdadeiro preço a
- pagar para desfrutar a vida. Louis-VincentThomas chega a
falar inclusive do m ito da "morte comprada12”. Neste sen
tido, os exemplos que dá frisam que existe sempre reversi-
bilidade, vaivém constante entre a morte e a vida. Uma certa
osmose, que fundamenta uma eternidade essencialmente
comunitária.
Em outras palavras, a morte cotidiana, que devemos
compreender stricto sensu: morte vivida e presente no dia-
a-dia e que nada tem de temível, pois é um elemento da
vida. Aceitando-a, pagamos à vida seu tributo. Daí a inten
sidade que ela adquire. Também aqui, trata-se efetivamen
te de uma "economia geral" que permite viver o excesso, o
mal, a desordem, e, portanto, homeopatizá-los. Tática de
integração que leva a um mais-ser, a um surreal dos mais
banais. O tédio já não tem razão de ser. O qualitativo exis
tencial se satisfaz. O gozo do instante presente leva a um
gozo puro e simples. A morte como preço a pagar já não
gera nada de mortífero, e o equiKbrio natural é restabeleci
do a todo momento.
Não me interpretem mal: trata-se de um "sentimento
trágico" da vida. O que não significa que esteja isento de
asperezas e dores. Mas as expressões da dor, vivida em
131
simbiose com o ambiente natural e social, tornam-se "deglu-
tíveis". Não sendo paroxística, ela contribui para o fluxo
vital e chega a corroborá-lo.
É o fruto de um longo processo iniciático, sempre reno
vado. Algo que pertence à ordem do onírico coletivo. Sa
bemos novamente que temos de estar atentos aos sonhos.
Também a vida social é habitada por seus fantasmas fam i
liares. É assim que as pesquisas sobre os fantasmas transge-'-'
racionais, os segredos de família, mas também a encenação
das carnificinas e crimes passados (genocídio armênio, pri
são em massa de judeus franceses no Vélodrome d'Hiver)
participam dessa exploração das criptas oníricas. Explorar
as criptas torna-se, mais do que nunca, necessário. E não
se pode fazer uma arqueologia da socialidade sem apegar-
se a esses sonhos que rondam o corpo social. É esta ligação
entre a arqueologia e os sonhos que pode levar-nos à que
existe entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. Também
aqui a pintura, Caravaggio ou Delacroix, esclarece-nos so
bre essa estranha iniciação na medida em que mostra,
"monstro”, a força do mal. Sua utilidade também. Ela per
mite pensar que podemos encontrar na infelicidade opor
tunidades de prazer.
Talvez seja este o segredo da criatividade de que estamos
tratando. Não o simples trabalho, terrivelmente m onóto
no e redutor, mas a criação de uma obra, da vida, que inva
riavelmente une os contrários numa sólida organicidade.
Para dizê-lo em outros termos, em seu sentido pleno a vida
se nutre da morte. Difícil dizê-lo em nossas sociedades algo
beatas. Tão cheias de suscetibilidades, por outro lado, que
132 A parte do Diabo
só se contentam com as opiniões adequadas e moralmente
aceitas. No entanto, a lucidez nos obriga a enfatizar esta
banalidade tão evidente na experiência cotidiana.
Elias Canetti observa, justamente, como a morte de um
ente querido pode dar o "sentimento de ter crescido". Para
ele, isto está no próprio centro da sobrevivência, "situação
central da força".13 Talvez devamos entendera sobrevivên
cia como esse "mais-ser", este surreal que tendemos a esque
cer, mas que serve de ossatura ao ser individual e coletivo.
t Só podemos "estar aí" se enraizados nesse substrato cons
tituído pela morte. Húmus fecundante do qual dão teste
m unho os ritos fúnebres, as necrópoles e os diferentes
lugares de memória. A morte dos ascendentes é exatamen
te o que introduz na plenitude da vida.
Esta observação corrente e propriamente trágica encon
tra-se de forma paroxística nas tribos polinésias, nas quais
o "mana" de um guerreiro ou de suas armas era acrescido
do do inimigo abatido. Trata-se de uma temática bem co
nhecida, da qual nos falam, sob nomes diversos, muitos
trabalhos etnológicos. Fixemos sua idéia central: a da força
vital que só pode sê-lo em função da morte que a corrobora
e a faz crescer. É aceitando e defrontando a morte que nos
tornamos mais vivos.
Ampliando a discussão, podemos nos perguntar se a
força societária também não procede dessa forma. Falou-se
do "mana cotidiano", o dos faits divers, os favoritos dos
boatos, das conversas de esquina e da imprensa popular.14
Acontece que o sangue e a morte, as desgraças e as dores,
em suma, o desamparo é efetivamente o essencial neste
Inteireza do ser 133
terreno. Para retomar a conhecida canção, "não é só em
Paris que o crime campeia, nós do interior também temos
belos assassinatos" (G. Brassens). Caberia perguntar se es
ses "belos assassinatos" não têm uma real função ética: eles
cimentam o estar junto. Durkheim insistiu na importân
cia dos "ritos piaculares"; chorar coletivamente também é
um modo de formar o vínculo social. Ambivalência da 5
morte. Ambivalência fundadora!
Os faits divers seriam, assim, a maneira contemporânea
de integrar os fantasmas na socialidade. O "mana cotidia
no" seria a expressão mais evidente da mitologia pós-moder-
na. Vale notar, por sinal, que o "ciberespaço", especialmente
a Internet, dá a esta tendência uma força ampliada, permi
tindo-lhe potencializar seus efeitos. O demonismo, sob to
das as suas formas, a magia, a astrologia, a vidência, ocupam
nele um espaço privilegiado. A não-racionalidade de todos
esses fenômenos confere-lhes uma espécie de "hiper-í^
racionalidade", no sentido que Ch. Fourier e A. Breton
atribuíam a este termo. A hiper-racionalidade de uma parti
cipação mágica e misteriosa em entidades ao mesmo tempo
estranhas e estrangeiras, e ainda surpreendentemente pró
ximas, pois sustentam a vida cotidiana.
Além ou aquém do político, da economia e das diver
sas instituições, a "Sombra", em seu sentido mais forte,
plana sobre as situações e os espaços sociais. Realidade in-
frangível do nebuloso/do "irreal", que volta a ocupar um
lugar privilegiado na análise dos fatos sociais, a temática
do imaginário está aí para prová-lo, dando ao "virtual" um
lugar central na estruturação social.
134 A parte do Diabo
O que nos ensinam as hordas de fantasmas que animam
o "mana cotidiano", senão a importância do vácuo e de seu
necessário aprisionamento? Reconhecimento da brevida
de da vida. Como indicam tantos desses quadrantes solares
nas cidades de montanha: omnes vulnerant, ultima necat,
^ todas as horas ferem, a ú ltim a mata. Mas esta imper-
manência é uma forma de celebrar a vida "apesar de tudo".
Nunca será demais repetir: organicidade da felicidade e da
infelicidade. Gozo em pleno horror indizível: "Cheguei à
saciedade do vazio, à p lehitude do nada absoluto" (F.
Pessoa).
Plenitude, saciedade. O poeta sabe pôr em palavras o
"conhecimento ordinário" do desamparo, Ele lembra como
a infelicidade pode valorizar a qualidade dos bons momen
tos. As errâncias oníricas noturnas, as errâncias existenciais
diurnas, com seu cortejo de vicissitudes, lembram que existe
um repouso. Comentando os segundos que antecedem a
felicidade do sono num poema de Goethe, Th. Adorno fri
sa seu aspecto metafórico: a coisa assemelha-se ao tempo
trágico que separa e une a vida breve e a morte15.
Ironia sublime que não deixa de lembrar a lucidez po
pular que enxerga no repouso essencial o objetivo de toda
vida. É claro que, como todo sublime, o sorriso da morte é
enigmático, enigma de que a arte e o cotidiano estão per
meados, mas ainda assim sorriso, na medida em que acei
ta, com uma indiferença estóica, um inelutável que não
podemos evitar. Neste sentido, os fantasmas vividos no dia-
a-dia, os da literatura, da ficção científica, dos boatos e dos
faits divers, são como pontuações de uma vida que sabe-
Inteireza do ser 135
mos dupla, de uma vida vivida, coletivamente, como co
munidade de destino com aqueles — e aquilo — que cons
tituem seu húmus.
Se parece cada vez mais unanimemente aceito o impacto
do emocional na vida social, freqüentemente esquecemos
que o emocional é o próprio da comunidade. Max Weber,
precisamente, analisou muito bem esta característica. É, de
certa forma, uma matriz, na qual, para além do aspecto
individual, estamos em comunhão com a alteridade. O
muito diferente exprimindo-se na numinosidade do divi
no, ou no outro da linhagem, ou simplesmente nos "ou
tros". É tudo isto que faz de cada um aquilo que é, num
contexto coletivo.
Mas este emocional, através das paixões e afetos de to
dos os tipos, é também a partilha da dor. Partilha da dor
quer dizer participação na dor universal. Talvez seja assim
que devemos entender as referências contemporâneas à1
ordem do "compassional". Alusões às filosofias orientais
que não negam ojispeçto noturno e inquietante da vida,
mas, ao contrário, integram-no à estruturação coletiva.
Talvez seja assim também que devemos entender õ que Max
Scheler chamava de “ethos da simpatia". Simpatia não apli
cável somente ao homem, no que tem de individual e,
portanto, semelhante a m im, mas simpatia estendida à rea
lidade como um todo: social, fauna, flora. Em suma, é por
que há fusão, confusão com a natureza, que a simpatia tem
uma função ética.
Esta simpatia repousa no reconhecimento do sofrimen
to, dor universal que temos de compartilhar. Mas ao mes
136 A parte do Diabo
mo tempo, este reconhecimento é uma espécie de "pan-
vitalismo". Ju do que vive sofre por viver. Trata-se de uma
ética cósmica, poder-se-ia dizer holística, que não separa
nem distingue, nem tampouco hierarquiza, mas incita a
uma fusão afetiva com a vida e a morte universal16. A par
tir de então, a simpatia — e indo um pouco mais longe
poderíamos dizer a empatia — não permite a dominação,
logo, o poder, sobre o que seria inferior — o animal, o ve
getal —, instaurando, ao contrário, uma relação fraterna
para toda forma de vida.
Cabe aqui estar atento às conseqüências de semelhante
atitude. A temática da dominação resulta da negação da
morte. Esta morte que não integramos é remetida aos bo
des expiatórios que vêm a ser as criaturas "de baixo". E a
história ocidental mostrou fartamente como era fácil qua
lificar de "inferiores” raças, sexos, grupos diversos. Nessa
perspectiva, a estigmatização pode ser variável, mas não
deixa de ser constante.
É muito diferente quando o mal, a sombra, a morte, em
suma, a dor ligada intrinsecamente à vida, são reconheci
das como características essenciais. As criaturas, quaisquer
que sejam, são manifestações da vida e por isso mesmo
merecem uma atitude "compassional", fraterna, pois jun
tas constituem o fluxo vital. É assim que devemos enten
der a utilidade social dos diversos "mundos intermediários"
que vêm a ser as crenças, religiosas ou filosóficas, no "du
plo”, espíritos, daimon e outras figuras tutelares ou assus
tadoras. Elas ajudam a viver o sofrimento no dia-a-dia,
comunalizando-o.
Inteireza do ser 137
A psicologia abissal, em particular toda a corrente jun-
giana, chamou a atençãc para algo que poderíamos cha
mar de aspecto "funcional" do sofrimento. Verdadeiro
"o lho da alma" que permite ver por meio das aflições.
Temática bem conhecida da provação iniciática que gera
um saber mais verdadeiro. Mais concreto também, na me
dida em que permite crescer com as coisas que nos cercam.
Assim, a depressão não teria de ser superada ou tratada, mas
vivida. No "vácuo" que ela cria pode vir aninhar-se a lição
da experiência. Verdadeira "lição de coisas" para a qual o
limite, a limitação, o desamparo e a morte fazem parte da
vida em sua ambivalência.
Podemos extrapolar essa perspectiva de um ponto de ‘
vista social e frisar que, para além do projeto "higienista"
próprio da modernidade ocidental, o "risco zero”, a assepsia
generalizada da vida, o desejo do mal está sempre recobran
do força e vigor. Terrorismos, consumo de produtos tóxi
cos, alucinógenos, álcool, psicotrópicos diversos, a estranha
hecatombe induzida pela maneira de dirigir automóveis,
desordem festiva, incêndio desse objeto venerado por to
dos, o carro: são muitos os indícios de transgressão, de ul-
trapassagem dos limites17.
Não quero aqui fazer uma lista exaustiva das formas de
risco no ato de dirigir. Mas sem voltar para elas um olhar
normativo, e em nome da "neutralidade axiológica" que
devemos preservar, temos de reconhecer que cada uma
dessas formas é objeto de uma estranha ambivalência18. De
atração e repulsa. Temos medo e vontade ao mesmo tem
po. Para convencer-se, basta ver a curiosidade (doentia?)
138 A parte do Diabo
> despertada por acidentes, mortes e ferimentos no trânsito.
O lho da alma, eu disse acima. Não haveria no "voyeurismo"
i contemporâneo algo como o olho da "alma social"? O de
sejo de ver a desgraça pode ser considerado, assim, a sua
canonização. Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001
ilustraram este pon to de vista através da fascinãção
provocada pela imagem da queda das Torres Gêmeas, e logo
a psicose do antraz. A riqueza e o poderio da América ata
cados em seu ponto central, a bioguerra é de certa forma a
guerra do animal, pior, do bicho imundo, a bactéria, con
tra o progresso da higiene.
Não é então simples provocação gratuita ver nas expres
sões ambivalentes do sofrimento uma espécie de despertar
da sociedade para si mesma. Este "procedimento do des
pertar" era a função capital atribuída por Jung ao sofrimento
em Resposta a Jó )9. As guerras, os atos terroristas, as catás
trofes naturais, os acidentes espetaculares e outras expres
sões do trágico hum ano induzem também um "despertar"
societário. Tudo isto serve periodicamente de anamnese da
impermanência estrutural das coisas e das pessoas. Lem
brança de que a realidade inclui o negativo, de que sua
natureza é contraditória. Numa tal démarche, a comple-
tude, a do homem para o psicólogo, do social para o ob
servador, induz sempre uma coisa e seu contrário. É a
revivescência dopueraetemus... albusetater, a criança eter
na... branca e negia, que dorme em cada um e que não deixa
de ressurgir no corpo social em seu todo.
A criança que brinca e destróí talvez seja a figura paradig-
tú ítica de nossas sociedades. Figura que, à margem de qual-
Inteireza do ser 139
quer moralismo, frisa que não podemos expulsar, mas, no
máximo, jogar com o mal. É precisamente isto que nos lem
bram os comportamentos de risco ao volante, as eferves-
cências techno, os excessos festivos. A verdade do homem
está na contradição. Suas práticas são sempre ambivalentes.
A duplicidade é a estrutura antropológica mais constan
te. A "função" do sofrimento é lembrar que existe uma "pre
ga" em cada um, como existem múltiplas "dobras" no corpo
social como um todo. Estas nunca conseguiremos "aplai
nar", livrarmo-nos dessas "pregas", explicar (explicare)
tudo. Basta vivê-lo. O espetáculo da infelicidade, os "ritos
piaculares", esses choros coletivos que julgávamos supera
dos e que voltam com força na mídia, podem assim ser
entendidos como o retorno do recalque de um mal irrefreá
vel, de uma violência fundadora, de fantasmas sempre pre
sentes. É preciso chorar junto: por Lady Di ou por este ou
aquele acidente (Concorde, túnel de Mont-Blanc...). Para ií
agradar, também é preciso saber fazer chorar. É assim que
podemos entender o sucesso dos programas da telerrea-
lidade!
Vaivém entre o anjo e o demônio, partilha entre céu e
terra, são muitas as expressões que frisam no terreno artís
tico a ambigüidade da criança que brinca. You walk, cria
ção do coreógrafo nova-iorquino Bill Jones, traduz bem esta
divisão. O mesmo acontece com Rituales en Haiti, da fotó
grafa espanhola Cristina Garcia Rodero, que mostra corpos
chafurdando na lama em peregrinações vodus em home
nagem ao espírito guerreiro Ogu-SaintJacques. Corpos em
êxtase, corpos que copulam , corpos de materialidade
140 A parte do Diabo
espiritualizada, mostrando efetivamente o que pode haver
de sublime na comunhão com essa quintessência do espí
rito terreno que é a lama.
O que ressalta desta participação no oculto chtoniano
é uma grande fraternidade20. A participação neste símbolo
obscuro do sofrimento humano tem uma função ética.
Religação societária! Convém estar atento às numerosas
manifestações dos "arcaísmos" (no sentido etimológico da
palavra, fundamental, primeiro) que insistem na força do
mal, do sombrio, do animal. Em suma, a força do diabo
como fator agregador.
Mergulhar ritualisticamente na lama para um culto vo-
du ou remexer o lodo numa festa techno são os sintomas
reveladores de uma espécie de intensidade existencial que
repousa numa fundamental "harmonização" com as coi
sas, como elas são, e com os outros, como eles são. Além de
uma concepção moral do mundo, a própria "exceção" oci
dental, a aceitação da sombra, vale dizer, da vida em sua
duplicidade estrutural, é uma maneira de ressaltar o aspec
to insubstituível da vida, seu aspecto diamantino. Assim
como as pedras preciosas derivam da cristalização de uma
matéria vulgar, cada fenômeno individual e social provém
da "essencificação" de atos, representações ou sonhos, nos
quais o claro e o escuro misturam-se inextricavelmente.
A ênfase no vitalismo bem demonstra que a vida é uma
c contínua "transubstanciação" na qual, e graças à qual, vida
e morte não são fundamentalmente heterogêneas, mas par
ticipam de uma mesma realidade. A inteireza do ser inscre
ve-se nesse dinamismo. Toda transformação — talvez
Inteireza do ser 141
devêssemos dizer toda transfiguração — exige sangue, lama,
sofrimento; é o sentido do sacrifício em sua dimensão an
tropológica: o "fazer sagrado" que funda o divino social.
Diante do tédio que é uma morte recusada ou negada,
tédio que foi a marca da modemidade em seu apogeu, té
dio conseqüência da ideologia do "risco zero", e cujas fon
tes serão encontradas nas teorias da emancipação, diante
dessa tendência própria da sus.cetibilidade do m undo bur
guês, o vitalismo pré-moderno que parece ser uma caracte
rística da pós-modernidade vive o equilíbrio conflituoso dos
elementos opostos. Temática algo mística da "vida indis
solúvel" (Zoe Akatalytos21), ou a coincidência dos contrários
que encontramos em tantos pensadores. Nicolau de Cusa,
naturalmente, mas também Schelling, e mais recentemen
te Corbin, Durand ou Morin.
Mas perspectiva que também opera no holismo do New
Age contemporâneo e em muitas práticas juvenis que ins
tintivamente, sem fraseados, vivem um materialismo espiri
tual, uma espécie de Geistleiblichkeit (carne espiritualizada)
serena que pouco se importa com as dicotomias próprias
do pensamento ocidental em geral, da modernidade em
particular. Podemos citar, assim, todas as práticas que vi
sam espiritualizar o corpo: piercing, tatuagem. Mas também
o sucesso dos óleos de essências, das essências de plantas
ou ainda a moda das técnicas corporais orientais: artes mar
ciais, ioga etc.
É este politeísmo dos valores, dos deuses, dos fantasmas,
dos múltiplos ícones, que curiosamente se encontra na base
da "surrealidade” cotidiana. Daí a intensificação da vida,
142 A parte do Diabo
com a busca do qualitativo que a acompanha. Só o dina
mismo ê estável. Eis efetivamente o que parece animar o
inconsciente coletivo. Ora, o que é o dinamismo senão a
força da impermanência na perduração do ser? Em sua in
teireza, também.
Não será assim que devemos entender estes versos de
Oscar Wilde?:
For he who lives more life than one
More death than one must die.
L|v Viver mais de uma vida leva a morrer mais de uma mor
te. Éeste, certamente, o trágico da intensa condição hum a
na. Mas é também o que lhe confere toda a sua qualidade.
Notas do Capítulo IV
ÍJL Nietzsche (F.), Fraginents posthumes, Paris, Gallimard, vol. 1,
p. 418.
2. República, X, 614.
3. Cf. Jung (C. G.), Syncronicité et Paracelsica, Paris, A lbin Michel,
1988, p. 52. Cf. também Franz (M. L. von) e jung (E.), La Légcnde
du Graal, Paris, A lbin Michel, 1958, p. 127 e seguintes.
4. Ors(E. d ’), La Vie de Ferdinand et Isabelle, Paris, Gallimard, 1932,
p. 232. Cf. também p. 14 e seguintes.
5. Morin (E.), Le Cinéma ou 1'homme imaginaire, Paris, M inuit,
1956, p. 11-12.
6. Massignon (L.), Les Allusions instigatrices, Paris, Fata Morgana,
2000, p. 41.
7. Cf. sobre este tema Franz (M. L. von) e jung (E.), La Légende du
Graal, op. cit., p. 195. Cf. também Jeffrey (D.).
8. Simmel (G.), Tragédie de la culture, Paris, 1900, p. 167. Cf. tam
bém Sansot (P.), Poêtique de la ville, Paris, Klincsieck, 1972, ou
Baudrillard CJ-). De la Séduction, Paris, Galilée, 1979.
9. Cf. a este respeito Walter (P.), Merlin ou le savoir du monde,
Imago, 2000, p. 27.
10. Cf. os exemplos citados por Schorske (C.), Vienne fin de siède,
Paris, Le Seui!, 1983, p‘. 28-32. Remeto também a meu livro
144 A parte do Diabo
UO mbre de Dionysos, contribution à u n e sodologie de l'orgie ( 1 9 8 2 ) , Paris, Le Livre de Poche, 1 9 9 1 .
11. J u n g (E.), Sur la douleur, Nantes, 1 9 9 4 , p. 3 1 .
12. Cf. T h o m a s (L. V.), La Mort africaine, Paris, 1 9 0 0 , p. 2 6 . Cf. a
c ita ç ã o que ele faz de Héritier-Izard (F.): "U n ivers fém inins et
destin individuel chez les sam o" , in La notion de personne en Afrique, Paris, CNRS, 19 7 3 .
13. C an etti (E.), La Conscience des mots, Paris, Albin M ichel, 198 4 ,
p. 3 3 - 3 4 .
14 . Cf. Auclair (G.),_Le Mana quotidien, Paris, A nthropos, 1 9 7 2 . Cf. t a m b é m Renard (J.-B.).
15. A dorn o (T.), Notes sur Ia littérature, Paris, F lam m ario n , 19 8 4 , p. 50 .
16. Cf. Schelcr (M.), Nature et formes de la sympathie, Paris, Payot, 1 9 2 8 , p. 1 2 3 -1 2 6 .
17. Cf. sobre a drogá Xiberras (M.), La Société intoxiquée, Paris,
Klincsieck, 1 9 8 4 , e Houdayer (II.), LeD éíi toxique, Paris, LTlar-
m attan , 2 0 0 0 .
18 . Cf. sob re u m a te m á t ic a p r ó x i m a , M o n n e r o t (].), La Poésie m oderne et le sacré, Paris, Gallimard, 1 9 4 1 , p. 1 5 7 . N ota sem
n ú m e ro n o m anuscrito , C ad ern o 4, entre as n o ta s 64 e 65 .
19. Cf. A urigemm a (L.), Perspectives jungiennes, Paris, Albin Michel,
1 9 9 2 , p. 1 3 8 e 1 4 6 -1 4 8 . Cf. ta m b é m Franz (M. L. von), L '0m bre et le mal dans les contes de íêes, Paris, La Fontain e de Pierre,
19 8 0 , e Hilman ()•), La beautédepsyché, M ontreal, Lejour, 199 3 , p. 1 9 3 e 197 .
2 0 . Cf. o ca tá lo go Rituales en Haiti, de C. G arcia Rodero, TF Editores, e a coreografia de Bill T. Jo n es You walk, m o n ta d a em Bolon ha, 2 0 0 0 , e Avignon, 2 0 0 1 .
2 1 . Cf. por exem plo, sobre Schelling, Benz(E.) , Les Sources mystiques de la philosophie romantique allemande, Paris, Vrin, 1 9 8 7 , p.
6 0 - 6 4 . Cf. ta m b é m Durand (G.), Introduction à la mythologie, Paris, Albin M ichel, 1 9 9 8 , e M orin (E.) , L'H um anité de rtlum anité, Paris, Le Seuil, 2 0 0 1 .
C a p í t u l o V
T r a n s m u t a ç ã o d o m a l
"Temporada balsâmica c acolhedora, um oásis de
tepidez. Onde?"
H i j y s m a n s
ÊXTASE EUSIONAL
Viver mais de uma vida, integrando os desafios do risco,
do mal e mesmo da morte assumida — é o que pode estar
em jogo numa vida ardente, que é bem menos excepcional
do que se pode pensar. É bem verdade que podemos ver aí
a essência "dionisíaco-heraclitiana” da vida. Essência cruel,
perigosa, monstruosa, mas essência também vitalista. Mas
além ou aquém desta qualificação filosófico-poética, esta
energia vital é das mais comuns.
O cotidiano está impregnado dos fenômenos de "du
pla vida", cheio de práticas de transgressões, fundando-se
essencialmente em táticas de ardil que lhe asseguram uma
espécie de eternidade. Coisas que são uma forma de "m oer
148 A parte do Diabo
bem fino" o excesso, tornando-o vivível ao conferir-lhe sua função fecundante.
"Sede de infinito", diz Durkheim, de uma forma um tanto depreciativa, ao evocar o donjuanism o, propensão ousada na ótica deSimmel, em suma, sabedoria demonía
ca impossível de estrangular, e que tende a exprimir-se, com um novo vigor, com a saturação dos valores modernos.
Aquilo que estes, de essência racionalista e ascética, empenhavam-se em apagar, ou, na m elhor das hipóteses, em marginalizar, afirma-se agora com força: a animalidade, a naturalidade.
Os excessos das práticas juvenis, suas efervescências festivas, sua desenvoltura em relação à seriedade da política
são os sinais paroxísticos dessa sabedoria. A própria economia está contaminada por um ludismo galopante. Isto é demonstrado pelo fenôm eno das start-up, cuja essência consiste em "arriscar m uito", funcionando na esfera do
virtual. Esta nova economia gasta e consom e o que não se ■possui de uma forma tangível e verdadeiramente racional. A aceleração dos ciclos econômicos, depressão e crescimen
to sucedendo-se em intervalos de dois ou três anos, os fa
mosos índices de otimismo ou pessimism o do mercado tendo, por sinal, um efeito acelerador das tendências materiais, participam dessa mesma tendência. "Juventudis- m o", "ep ifen ô m en o s" passageiros, exclam am em coro observadores sociais de todas as tendências, já incapazes de
dialogar com esses "pequenos trapaceiros" que já nem se ' dão ao trabalho de contestar as grandes categorias filosófi
cas dos mais velhos, limitando-se a ignorá-las.
Transmutação do Mal 149
Semelhante viço, específico dos períodos de criatividade cultural, supera e muito, uma faixa etária específica. O mito
da "criança eterna" contam ina de muitas formas todas as maneiras de ser e pensar. O culto do corpo, os cuidados dietéticos, a deificação da natureza, o sincretismo filosófi
co ou religioso e a ecologia do espírito expressam-se em
todas as idades e classes sociais. Operando na base daquilo a que m e referi com o uma "razão sensível", esses fenôm e
nos, ao não abdicarem em nada do espírito, privilegiam a experiência, a interatividade, os sentidos humanos, enfim, as coisas constitutivas da "socialidade". A "socialidade" não pode mais ser reduzida ao "social" moderno, dominado pela razão, a utilidade e o trabalho. Muito pelo contrário, ela integra os parâmetros essenciais (e norm alm ente desprezados) que são o lúdico, o onírico e o imaginário.
É esta a "sabedoria dionisíaca". Trata-se de uma outra sabedoria, vale dizer, uma sabedoria integradora da alteri-
dade, qualquer que seja ela. M esmo a do excesso, da vio
lência, do "gasto" e da vertigem. Não devemos esquecer que o "filho do mundo" de Heráclito "am ontoa os mundos para brincar e destruí-los". A crueldade, portanto, tem seu lugar na socialidade pós-moderna. Esta sensibilidade em relação
ao outro (em si, na natureza, na vida social) leva a uma
concepção ampliada da realidade. Realidade plural, polis- sêmica. Realidade absoluta. A da experiência e dó vivido coletivo.
Experiência e vivido que não se limitam a um ideal distante, à realização de uma sociedade perfeita por vir, mas que tecem, pelo contrário, num entrecruzamento sem fim,
150 A parte do Diabo
todos os afetos, as emoções, as paixões constitutivas da vida de todos os dias, para formar o "tecido" social e natural
^compartilhado. Nietzsche via no dionisíaco o "u m origi
nal" , a quintessência do real1. De fato, é possível que esta
realidade complexa, que alia os contrários, seja uma espé
cie de "centro da união", n o qual as ideologias mais diver
sas, os m odos de vida heterogêneos, os costum es mais
estranhos, acom odam-se uns com os outros, adicionam-se
uns aos outros num a organícidade das mais sólidas. Eis com
efeito o relativismo dos valores, caro a G. Simmel, repou
sando na aceitação de tudo e de todos, e no estabelecimen
to de relações recíprocas.Semelhante relativismo está muito distante do indivi
dualismo característico da tradição ocidental e do univer
salism o abstrato que é sua expressão teórica. Não nos
cansaremos de lembrar: o típico da vida ardente, a do dio
nisíaco, é seu aspecto coletivo. Este pode ser de várias ordens. As "tribos" pós-modernas são legiões. Seu denominador com um é a participação mágica num "gosto" específico. De culto: seitas, sincretismos religiosos, agrupamentos filosófi
cos. Cultural: arte, música, diferentes hobbies. Esportivo: o
número de associações registradas dá o que pensar. Sexual:
reafirmação e m esm o institucionalização das preferências e
perversões sexuais. Tribalismo não écom u n itarism o .D e fato,
a adesão a esta ou àquela tribo não é exclusiva, podendo a
mesma pessoa pertencer a várias delas. Sua característica é
um fortíssimo "sentim ento de vinçulação" que faz com que,
num dado mom ento, qualquer um comungue com um "fun- c.o" coletivo. Será talvez nessa rspecí iva que devamos en-
Transm utação do Mal 151
tender a ação terrorista que escapa à lógica política e remete a uma emoção compartilhada.
Trata-se, stricto sensu, de um "capital" que temos de ge
rir conjuntam ente. Estamos longe da reivindicação de iden
tidade fechada, do indivíduo indivisível, de um espírito
isolado. Identidade primária do ideal moderno, da autono
mia. A gestão de um "fundo" comum desencadeia um meca
nismo de "identificação" primordial. A de uma participação
no pré-individual.É este o pedestal da nova relação com a alteridade, exa
tam ente isto que funda uma surpreendente "h a r m o
n ização" co m o m u n d o e os outros, que en co ntram o s também na sensibilidade ecológica. O meio ambiente m un
dano: social e natural, aceito pelo que é. Canonização do
que é. Donde uma espécie de pathos da ressonância, que
não devemos encarar de um ponto de vista pejorativo, hsj^ pessoas vibram, têm um feeling, "se entregam" com outros,
e isto em função dos "gostos" de que falamos.Eis então a tem ática do orgiástico, da partilha das pai
xões, que pode ser considerada, para retomar uma intui
ção nietzschiana, a escuta da voz "que surge do abismo mais ,
profundo das coisas". Fusão, confusão que é uma espécie
de eco do "mais que um " (G. Simondon) que a psicologia
mais lúcida é obrigada a reconhecer em sua prática clínica.
Este "mais que u m " é igualmente moeda corrente no m undo social. E se a sociologia ou a filosofia dom inante têm dificuldade para analisá-lo e até mesmo simplesmente para observá-lo, é porque estão enclausuradas nesse postulado
moderno que é a lógica da identidade.
152 A parte do Diabo
Na realidade, as identificações múltiplas, as com unhões musicais, esportivas, religiosas, de "fundo" primordial re
põem — sem ter necessariamente consciência disso — as pluralidades de ser, marcas do "filho do m undo" em devir. Há uma bela formulação de F. Pessoa que resume bem esta
idéia: king of gaps, o rei das falhas. Aquele que chama a
atenção para os interstícios, os intervalos, numa palavra, o vazio. "Ele não passa, inteirinho, de um abismo em seu ser".2
Então não é mais a liberdade, unívoca e abstrata, que é buscada, mas a prática das liberdades intersticiais. O mesmo ocorre com a Utopia, que dá lugar às pequenas utopias vividas. É o caso dos "squats", das manifestações de solidariedade, dos repentinos agrupamentos contra uma ação policial, práticas muito distantes do engajam ento político. E logo se vê o que este plural induz em matéria de perigo,
ambíguo com o é em sua própria essência. Nada é certo, estabelecido, sem riscos. Tudo está em devir. Donde as ex
pressões múltiplas, as tentativas e os erros inerentes a toda aventura existencial. O bem e o mal tornam-se vagos, ou
melhor, se interpenetram. No vazio do ser em devir tudo é possível, a partir do momento em que justifica uma vivência coletiva.
Além da fortaleza, do espírito, do indivíduo autônomo, .-a falha,permite à pessoa heteronômica exprimir as múltiplas facetas do seu desejo. Mesmo as mais sombrias, as mais
imorais, as menos de acordo com sua identidade. É coisa de enlouquecer as análises sociológicas estabelecidas. Mas se chegarmos, de forma não judicativa, a identificar esses
Transmutação do Mal 153
desdobramentos pelo que são — o indício de u m poderoso vitalismo inconsciente — , poderemos ver neles a expressão de uma criatividade cultural que nada pode deter. Desse modo, o "vazio" da com unicação verbal, a abstenção política, a violência transgressora, o ato terrorista, a recusa
da ação cidadã, em suma, a furiosa indiferença pelo social, podem ser considerados uma espécie de soberania que extrai sua força da perda, do fato de nada ser e, portanto, da certeza de estar em com unhão com o todo, dos outros e do mundo.
Experiência mística entre todas, e que devemos levar a sério. Cabe lembrar a frase de Charles Péguy: "Tudo come- ; ça n o místico e acaba no político." Se levarmos até o fim a lógica desse pensamento, quando o próprio político está saturado, podemos esperar que o m ístico volte a mostrar v a cara. E embora não seja esta a única pista para entender a pós-modernidade, não deixa de ser uma, e conseqüente.
Mística entendida como metáfora para compreender,
por um lado, a fuga das instituições, a indiferença que suscitam, e apreender, por outro, as características da fusão em
que todos se perdem na alteridade. Embora não seja o ob
jeto central de minha argumentação, é preciso lembrar que") as práticas místicas e seus protagonistas sempre estiverany sob suspeita daqueles que tinham a seu cargo a gestão " le
gítim a" do sagrado. Precisamente porque o ponto de vista^' místico não se preocupa com a partilha entre o bem e o mal. -
Ou antes, porque o mal é considerado um elem ento estrutural do dado mundano. De certa forma ele é "neutro". O im portante é o uso, o bom uso (c/e usu) que dele deve ser
154 A parte do Diabo
feito. Podemos assim entender a caça às seitas empreendidas pelos políticos mais sectários, racionalistas intoleran
tes, com unistas n ã o arrependidos, que id entificam em qualquer agrupam ento não-institucional a m anipulação
mental a que eles próprios se habituaram.
São muitos os exemplos poéticos, romanescos ou teóri
cos que insistem n o que Marguerite Yourcenar denom ihou
"A obra em negro". Irmãos do espírito livre, fraticelli da
onda franciscana, místicos renanos, "beguinaria" — é lo n ga a lista das heresias, ou assim consideradas, que volta e meia geram m anchetes da instituição eclesiástica3. Seria
instrutivo comparar as revoltas e rebeliões contemporâneas com esta recusa dos especialistas, com a desconfiança em
relação a seus saberes abstratos e implacáveis. E isto, quero lembrar, a partir de uma perspectiva holística: everything goes, "vale tudo" (P. Feyerabend), cada coisa tem sua utili
dade numa organicidade global.A perspectiva que m e interessa aqui é a da "perda" do
sujeito que pensa, diz e age num con junto mais amplo. Este sujeito é com efeito o pivô da tradição ocidental. Ele en
contra seu apogeu n o individualismo moderno. E é efeti
vam ente este su jeito "p len o " , seguro de si, que tende a
saturar-se. Donde a importância do vazio, da vacuidade nos
a juntam entos pós-modernos. É n o vácuo que existe com u
nhão, mergulho, anulação. Categorias que não poderiam ser mais místicas!
A tendência, n o ruído techno, nas fusões esportivas, nas mitologias publicitárias, nas irruações próprias da moda, consiste, essencialmente, em deísnraizar o egor.em provar
Transmutação do Mal 155
empiricamente sua inanidade. Existe apenas, em certos m o
mentos paroxísticos, o desejo do "grupo em fusão". Fazer,
pensar, sentir com o o outro. Sem querer jogar simplesmente com o paradoxo, mas para nos ajudar a pensar essas obser
vações correntes, podemos aproximar esta pulsão para o
outro do que já foi denominado o princípio da "kenose'1"
característica do monasticismo nas diversas tradições reli
giosas: criar o vazio total, encaixar-se nesse vazio para al
cançar, além do pequeno si individual, um Si mais global,
o da comunidade, da união cósmica com o Todo natural.
O vazio da com unicação verbal, a comunicação da ra
zão dominante, permite uma outra comunicação, horizon
tal e silenciosa ou, o que dá no mesmo, mais ruidosa, porém
mais global, na medida em que os sentidos têm sua parte a
desempenhar, ou seja, todos os elementos constitutivos do
dado hum ano e natural. As grandes experiências místicas
intervém, de fato, no silêncio absoluto ou no fragor do trovão. Mas todas, dos diversos budismos ao hassidismo ju
daico, passando pelo cristianismo, insistem no vazio do mental e nas técnicas do corpo que o permitem.
Sem exagerar na exploração da metáfora, podemos com
preender este "vazio" e suas técnicas com o um apelo à in-
te]reza_dp_se_r. Uma espécie de união cósmica unindo ao
"todo". Existe "subida", ascensão a partir deste mundo, e
desses elementos que são, desse modo, deificados. A propó
sito da Carta aohassidiano do rabino Dov Baer, G. Scholem mostra o que o êxtase deve a este vácuo do mental. Êxtase que, embora seja vivenciado por indivíduos, tem essencialmente uma dimensão coletiva. Experiência do ser in te
156 A parte do Diabo
grando ou ultrapassando os limites do corpo próprio para chegar à epifanização do corpo comunitário.
Esta subjetividade de massa volta a ser encontrada na
prática dos peregrinos do absoluto que, no gozo propor
cionado pelo exercício do corpo, alcançam — com o observa o historiador A. Dupront — os "confins misteriosos onde transcendência e imanência se en co ntram 5". Há aí uma iniciação, uma passagem que os protagonistas contem po
râneos do cam inho de Santiago de Compostella ilustram perfeitamente. E, por sinal, o mesmo ocorre com todos que participam da revivescência das múltiplas peregrinações.
Assim com o os que se encontram nas grandes assembléias religiosas. Em cada um desses casos, pouco importa o pretexto doutrinário. Às vezes, inclusive, ele está totalmente ausente. Em contrapartida, a atividade corporal, o gozo da partilha, é essencial. Em suma, a beleza do mundo suscitando um clima erótico que permite esta saída de si que é o
êxtase.
Tenho insistido com freqüência nessa transcendência imancnteespecífica da religiosidade pós-moderna. Podemos
lembrar aqui que ela emana desses "confins misteriosos", ou seja, das situações-limite provocadas pela união dos corpos e das almas. Isto gera uma exaltação específica, que não distin
gue o bem do mal e se mostra inclusive indiferente a semelhante divisão, exaltação que a partir desse momento enfatiza
o surreal no próprio interior da vida de cada um. Entende-se
melhor, assim, como o êxtase místico, em suas diversas mo
dulações, sempre preocupou os poderes estabelecidos, as teorias racionalistas e os gestores de carteirinha do sagrado.
Transmutação do Mal 157
É este êxtase inquietante que vamos encontrar nos diferentes transes coletivos que não faltam em nossa épõca. Em particular, naturalmente, nos a juntam entos musicais que envolvem o desvario. Há m uito a dizer sobre esses fen ôm enos. Para começar, que são tudo, m enos insignificantes. A tendência tam pouco é efêmera, indicando um m ovim ento de fundo. Cabe notar igualmente que a desconfiança que provocam é das mais instrutivas, bem dem onstrando, a contrario, que não podem mais ser considerados irrelevantes ou marginais. De m inha parte, eu veria neles, à maneira de M. Mauss, um "fato social total" que permite ler a sociedade em sua integridade, à maneira de um corte histológico.
Muito precisamente, na medida em que podem ser considerados laboratórios onde são elaborados valores alternativos aos que constituíram o ideal moderno do controle de si e do m undo a partir de um sujeito racional. E verdade que o estridor da música techno c inquietante. Mas os lu
gares onde se exprime são significativos. São efetivamente
"confins": terrenos baldios industriais, prédios abandonados, clareiras num bosque, campos distantes de toda vida civilizada. Razões objetivas perfeitamente reais podem ser encontradas para isto. Mas não m enos real é a errância iniciática para alcançá-los, o desejo de com unhão cósmica ou m esm o a reapropriação, desviada, de espaços edificados"; na ótica prometéica da valorização do trabalho®.
Confins de vacuidade. Crisol no qual o mistério da co n junção com a alteridade pode operar-se alquimicamente. Nesses "vácuos", a ratio cognoscendi, ideal da tradição
158 A parte do Diabo
cultural ocidental, dá lugar a uma ratio existendi que tam bém tem sua legitimidade, e que, por muito tem po recal
cada, torna-se por isto m esmo mais intensa. Trata-se de uma "experiência imediata" que lembra a importância do esta
do selvagem do hum ano. O êxtase provocado pela música,
o transe dos corpos, o utilitarismo de certos "produtos" ilí
citos, tudo contribui para a formação de um corpo coletivo,
o de um Si global, integrando os aspectos que a civilidade
com um tenta mascarar. Para retomar uma expressão conhe
cida, todo m undo "se entrega", e é nas falhas geradas por
esta entrega que podem exprimir-se os maus humores que
tam bém nos constituem.Semelhante catarse tem tanto valor quanto muitas ou
tras. Ela reafirma obstinadam ente que a força criadora não
pode, a longo prazo, ser reduzida à simples utilidade. Na
perda de si no outro, na entrega do si individual num Si mais global, existe uma criatividade real que pode chocar
nossos espíritos, formados e obcecados por uma visão econôm ica do mundo e do indivíduo, mas que nem por isso é m enos real. Precisam ente na m edida em que lem bra o
m ecanism o de troca generalizado, essa Wcchselwirkung (G. Simmel), essa interatividade com o outro e a natureza,
essa reversibilidade que une os contrários no seio de cada
pessoa. Elã vital cujas características e conseqüências sociais
precisam ser sopesadas, e que lembra, ao integrar o mal, que
as situações-limite, esses "confins n isteriosos" da mística, são, n o mais alto grau, geradores de sentido.
0 5 excessos das crianças brincalhonas e cruéis, em seus aspectos anômicos, não deixam de ser prospectivos. Ver-
Transm utação do Mal 159
laine qualificava Rimbaud de "Satã adolescente". Podemos (
perguntar-nosse a criatividade demoníaca do poeta, um
tanto marginal no m undo burguês do século XIX, não se disseminou pelo co n ju n to do corpo social. As "tem pora
das no inferno" banalizam-se e deixam claro que o desejo
do risco, o gozo do gasto, o prazer de vibrar em con ju nto
nã(D podem ser sufocados por muito tempo.
Muitos pensadores e poetas malditos foram canoniza
dos. D esm ancha-prazeres que, de forma prem onitória ,
mostraram a fragilidade da fortaleza individual e a inani-
dade das certezas dogmáticas. Nietzsche, Baudelaire, De
Quinceyi' Artaud ou Michaux, que, a respeito da tu rb u lên -, cia provocada pelo uso da mescalina, falam de uma explo
ração do "estelar in terior" . Eles tornaram-se referências
.cujas.provocações e exageros é de bom -tom citar nos debates acadêmicos e nos salões da intelligentsia. Aliás, com
razão. Pois eles prefiguram esses exploradores pós-moder-
nos que fazem do êxtase, da loucura e do transe erótico seu pão semanal.
A "busca do Graal" é uma constante antropológica. Va
ria apenas a forma que pode assumir, de acordo com a épo
ca. Em todos os casos, ela mostra que ao lado ou sob o
hom em que pensa existe o que é movido pelas paixões, existe
um corpo que se mexe, um corpo que se manipula. Um cor
po que exprime seus sonhos mais loucos e lhes dá forma. A
figura do dragão, de antiga memória, a dos contos infantis,
readquire força e vigor, e nos divertimos brincando com ele.O monstro é a metáfora do com pletam ente outro que
existe à espreita em cada um. É o indício, a "sede de infini-
160 A parte do Diabo
to " ou aquilo que Michaux, mais um a vez, denominava "fervilhar do possível”. É a busca utópica por excelência.
Mas utopia que não se projeta mais na distância, utopia que
foge ao controle do político, utopia vivida aqui e agora. Jm ita r o monstro desperta o animal n o hum ano; é, além e
aquém da História, retornar ao mito, in illud tempus, lem
brança encantatória do "naquele tem po".Presente eterno que detém o tem po. A música techno,
por sua própria velocidade, proporciona uma sensação de parada. Dá uma impressão de estabilidade dentro do m ovimento. E não é um dado sem importância, a este respei
to, que um dos prazeres consista em rem exer na lama. Símbolo dos mais claros do desejo de se estabelecer na terra. Deter o tempo que passa, portador de nossas angústias,
ao mesmo tempo encenando as figuras monstruosas dos sonhos infinitos, é efetivamente um paradoxo significativo, o de um enraizamento dinâmico. É este paradoxo que se encontra na base da obra criadora dos poetas malditos
já mencionados. É igualmente este paradoxo que permite
entender a criatividade dos "ravers" em transe que en con
tram no descontrole animal um acréscimo de energia para suas vidas cotidianas.
Convocar o monstro chtoniano, expressar o mal, exaltar o excesso são, com efeito maneiras de encontrar ener
gia. Energia terrena. Tam bém aqui há o paradoxo do gasto: quem perde ganha. Energia de grupo. Do m ito dionisíaco
às festas "corrobori" analisadas por Durkheim, todos os historiadores das religiões ou antropólogos mostraram em
que medida a efervescência festiva, anôm ica por essência,
Transmutação do Mal 161
permitia a qualquer grupo social "recarregar as baterias". A
vivência coletiva do vácuo, a integração da morte a si próprio — pois é isto a festa — proporcionavam a sobrevivência do grupo, ratificavam o se n t im e n to de vinculação comunitária.
Assim, o orgiasmo musical e as drogas que lhe servem
de coadjuvantes são um "m étodo" trágico de gritar e viver a eternidade. Uma eternidade imanente, enraizada no h ú
mus. Numa palavra, uma eternidade hum ana. É um m étodo de criação com o outro qualquer, por exem plo, o do trabalho moderno. Neste sentido, o êxtase dionisíaco, que
segundo Nietzsche "destrói os limites e as fronteiras da existência7", exacerba o corpo individual, exibe-o em espe
táculo, para corroborar o corpo coletivo, o corpo da tribo.
É d e uma profunda inversão de polaridade que estamos falando: a mobilização da energia social para exaltar e desfrutar o presente. E isto a partir da matriz onde nos ani
nham os todos juntos, este mundo, esta terra e seus frutos,
este "dado" social no qual vivemos e ao qual devemos de alguma forma nos ajustar. À imagem da música techno, que
nada tem de melódica, que não repousa num continuum garantido, construindo-se a partir do sample, de fragmentos organicamente ligados, é o instante que passa a preva
lecer.
Na filosofia antiga, este instante é o kairos, a o p o rtu n i- ; dade, aquilo que devemos aproveitar agora. Ao mesmo t e m - .
po, é interessante notar que esse kairos é um m om ento de ruptura, de abertura na temporalidade linear. Ela se abre a
partir do vazio, ela abre para o vazio. O que é impossível
162 A parte do Diabo
í decidir ou prever. A este respeito, Antonio Negri observa
N' que a valorização do instante é uma espécie de equilíbrio
no fio da navalha8. Metáfora que frisa a im portância da
experiência, o teste do tempo arriscado. Longe das garantias de todos os tipos, médicas, legislativas, da salubridade pú
blica, é dada ênfase aos perigos típicos da experiência. É talvez o que confere intensidade ao m om en to vivido, e
tam bém seu ar profético. C om o observa a cabala judaica, o
Messias pode chegar de um m om ento para outro. A vacui-
dade do espírito, o vazio provocado pelo transe permite
acolhê-lo.Trata-se de uma modalidade da existência, uma m anei
ra de ser que seria fácil demais taxar de irracional. Ela tem sua racionalidade própria. A "hiper-racionalidade" a que se
referiam Charles Fourier e, posteriormente, André Breton,
integrando o lúdico imaginário e a razão. O foco no presente vivenciado, por m eio de ritos e ritmos específicos, proporciona uma espécie de iluminação. É causa e efeito
de uma autêntica força sagrada. Um divino não mais trans
cendente, mas que em ana do grupo em fusão. Esses m o mentos de efervescência seriam parênteses na vida normal?
Não se pode afirmar. O processo festivo insere-se, estrutu
ralmente, no co n ju n to orgânico da vida. Não pode, assim,
ser entendido com o um m om ento separado. Ele suscita uma
energia psíquica,, propriamente coletiva, que posteriormen
te se dilui ou irriga o cotidiano. A exaltação proporcionada peio transe induz a experiência do Si, ou seja, enquadra a
pessoa num co n ju n to mais vastc, o da interação natural e social.
Transmutação do Mal 163
Esta energia psíquica, que só pode ser coletiva, asseme-
lha-se ao que os alquimistas denominavam ignis nostcr, algo que podemos entender com o fonte de dinamismo, participação mágica no elã vital. Uma vida que não se re
duz mais à simples consciência individual, mas repousa
num saber mais global no qual o corpo tem seu lugar9. A
incandescência festiva é uma metáfora reveladora. De f a t o ,^ o fogo já não é simplesmente o que foi roubado dos deuses
por Prometeu com uma finalidade utilitária, aquele que
conduz à dom inação da natureza no produtivismo moder
no, por exemplo. É u m fogo lúdico, o da algazarra, dos spots elétricos e outros equipamentos do gênero. Fogo que se basta, ao redor do qual as pessoas se reúnem e que serve de
cimento às tribos desenfreadas.
Exploremos a metáfora, que, numa perspectiva abrangente, não deixa de ser esclarecedora. A com unhão ao redor do fogo não deixa de lembrar a atração arquetípica pela
chama lançada pelo dragão, a dos estrondos chtonianos, o fascínio pelas erupções vulcânicas. Em todos estes casos, a
ênfase está numa espécie de respiração cósmica, a da natu
reza, da animalidade pura. Sonoridade profunda da vida em
sua experiência imediata. Estamos cercados pelo ruído do mundo, ao m esm o tempo que dele participamos. Trata-se
de um simbolismo primordial, o da prima matéria que não
quer saber da com unicação verbal, razão última da cultura ocidental.
Ao suscitar uma com unhão com as forças da natureza, os estrondos da música techno favorecem uma espécie de envolvimento primordial. Retorno à matriz terrestre. Como
164 A parte do Diabo
os mantra budistas, os encantam entos sufis ou mesmo a melopéia gregoriana, o ritmo techno marcado proporcio
na um transe que envolve o corpo em sua integridade. O vazio das letras é impressionante. Em com pensação, as
onomatopéias são significativas. Reiterações, falta de sen
tido, repetições à maneira de ladainhas não precisam ser
explicadas, pois remetem a um sentido distante. Limitam- se a participar de uma experiência que permite "sair de si". Reencontramos aqui a própria essência do êxtase: o indiví
duo que sai de si mesmo para participar do "completamente diferente10".
As repetições encantatórias religiosas stricto sensu, sufis, budistas, salmodias cristãs, recitações de rosários, recobram interesse e são consideradas com benevolência. Por que ha
veriam de ofuscar nas efervescências techno! Em todos estes casos, a vacuidade do sentido é anjimnese do vazio. Ela evoca a finitude da natureza humana, o vazio de que saiu.
Mas, ao mesmo tempo, com o a pequena morte do orgas- mo, isto ratifica uma espécie de erotismo de grupo. Existe
uma proximidade evidente entre o orgasmo encantatório
e o orgiasmo social.À imagem das "lições" propostas pelos monstros dos
contos e lendas ou das monstruosidades míticas, a lição dos
fenômenos contemporâneos de efervescência, especialmente a da música techno, consiste em lembrar que somos pedaços de natureza e que nossas obscuridades assemelham-se,
estranhamente, às suas. Lembrete, também, de que não po
demos livrar-nos do mal recorrendo simplesmente à razão e aos conceitos que com esta finalidade ela elaborou. É pre-
Transmutação do Mal 165
ciso encontrar um meio, um "m éto d o " para compor com ele, integrá-lo, domesticá-lo. A encantação rítmica é um deles.
Ninguém se m antém distante do negrume, observava' Ju n g 11. E é uma ilusão pensar que o espírito esclarecido pelai
razão pode livrar-se dele facilmente. A modernidade pagou ’
um pesado tributo a semelhante ilusão. Os genocídios, as j
carnificinas, as guerras de todos os tipos e o terrorismo es- tão aí para demonstrá-lo. A pilhagem da natureza, que é atualm ente o principal desafio a ser enfrentado, vem a ser o resultado lógico desse racionalismo mórbido.
Em compensação, podemos pensar que o fato de levar em conta esse negrume, sua apresentação em espetáculo, pontual e ritual, é uma boa maneira de vivê-lo com menos
desgaste. A sombra individual e a sombra coletiva merecem mais que a denegação. A compreensão das efervescências festivas tam bém é uma forma de sabedoria pertinente, na medida em que ensina a se adaptar, no sentido mais forte,
a esse instinto turbulento que faz do indivíduo uma realidade enraizada na vida social, mas também na natureza que
a enquadra.
A CRIPTA SOCIAL
Existe nas efusões coletivas e na epifanização dos corpos que é seu corolário uma espécie de celebração religiosa, na qual se exprime o fato de estar juntos, aqui e agora, nesse "vazio" que é o mundo. Isto é o fundam ento de um novo
166 A parte do Diabo
vínculo social. Isto suscita processos originais de interação
e formas específicas de ajuda mútua.Esta matriz m undana, aceita pelo que é, constitui um
crisol n o qual se fundem os afetos, os sentim en tos , as
emoções. É neste laboratório que se forma um corpo social
indiferente às grandes maquinarias institucionais com pletam ente voltadas para o futuro, mas atento ao "interesse
do presente" em todas as suas modulações.
Existe uma ligação estreita, na qual é preciso insistir,
entre a aceitação do m undo tal com o 6 e o presenteísmo
desenfreado de que as jovens gerações, em particular, são
as representantes mais reveladoras. De fato, e com o que .fazendo eco à tem ática heideggeriana do "ser jogado aí" ( Geworfenheit), é o sen tim en to trágico in eren te a este
"situacionism o" que gera uma co-responsabilidade, uma com paixão mútua, em suma, uma fraternidade horizontal
ligada à importância do m om en to presente.
O que importa não é mais o progresso nem o desenvol
vimento, no que tem de linear, garantido e orientado, mas um crescimento a partir do que é, enraizado no que é. O
sentim ento trágico da vida presenteísta nada tem de está
tico. Tam pouco se trata, com o queriam crer certos espíritos apressados, de uma canonização do statu quo, mas de
um processo ascendente a partir do vácuo. Este sendo en
tendido com o a metáfora da vacuidade, da inteireza, do húmus, em suma, do mal que tam bém nos constitui. A
irrperfeição, vivendo no presente todas as potencialidades
hvm anas, ainda que fossem as mais arriscadas, as menos m cr ais, seria uma g a ra n ja de , mais-ser".
Transmutação cio Mal 167
Assim vem a ser rompida a ontologia do ser, o substan-
cialismo que continua sendo a ossatura essencial da m aio
ria das análises sociais con tem p orân eas . Em seu lugar
estabelece-se uma ontogcnese: um devir plural a partir do
aqui e agora. O que pode ser aproximado da imaginação
criadora observada por H. Corbin no sufismo: "Todo ser está
em ascensão com 'o instante '!2". Podemos acrescentar: o instante no que ele tem de ousado, de arriscado. O instan
te naquilo que é efêmero e intenso. O bafo do presente.
Quem quer que se interesse com lucidez pelo cotidiano não
pode ignorar o aspecto enraizado do senso comum. O que,
por sinal, permite entender m elhor o desprezo cada vez maior com que é encarada a abstração, em seu sentido mais
estrito, das diversas teorias filosófico-políticas próprias à modernidade. O presente como fundamento da vida co n siste em pôr o espírito em contato com a terra escura.
Notemos que, se este "instante eterno" é vivido paroxis- ticamente pelas gerações jovens, não devemos nos enganar
quanto à palavra " jo vem ". Já é, na verdade, um lugar-co-
mum dizer que a idade do corpo nada tem a ver com a da
alma. Existem jovens velhos e vice-versa. O mesmo se dá
no que diz respeito à alma social. Em seu Desobrietate, Fílon
lembra que Moisés cham a de "antigos” homens que ainda
não envelheceram. Existe uma maturidade do espírito que
ultrapassa a simples cronologia.O m ito da "cr ian ça e tern a ”, que atualm ente recobra 1
força e vigor, co n ta m in a o co n ju n to das faixas etárias. E a maturidade pode fazer par com uma primavera interior. Neste sentido, só im porta a maturidade juvenil que dá
168 A parte do Diabo
ênfase à intensidade do vivenciado, ao qualitativo da existência. Coisas que vão aos poucos se dissem inando no c o n ju n to do corpo social. Desse m od o, serão crian
ças eternas os "antigos", no sentido conferido mais acima, que se m antêm atentos às forças obscuras e arcaicas do corpo, da terra, da natureza em perpétuo devir. Os que
valorizam o sentido e o sensível, os que se dedicam com certa assiduidade, a aproveitar, no instante , os frutos da
dos por este mundo. Ainda que se jam frutos cruéis e de sabor amargo.
A este respeito, é interessante notar todas as ocorrências contemporâneas, nos mais diversos terrenos, que remetem à prima màteria. Publicidade, coreografia, pintura e até mesmo a alta costura são fenômenos sociais que valorizam,
desordenadamente e de forma não limitativa, o cabelo, a lama, a pele, a peliça, o sombrio e a crueldade. O inconsciente coletivo — e é assim que podemos entender uma sensibilidade ecológica difusa — é perseguido pelo arcaísmo. Também aqui desejo do "buraco", preocupação com a fos
sa que é, não devemos esquecer, o significado do mundus dos antigos romanos. Mundus no qual eram depositados tufos de terra provenientes do país de origem.
. Trata-se de um simbolismo forte, o da terra escura de que o hom em está impregnado e/ou da qual provém. Cabe
notar a duração dessa memória imemorial e suas manifestações contemporâneas que o conformismo intelectual não
integra ou simplesmente não vê. À exceção, naturalmente, da psicologia abissal jungiana, ou ainda de certas corren
tes psicanalíticas que, na esteira de Maria Torok ou Nicolas
Transmutação do Mal 169
Abraham, interessam-se pelas "criptas" e, portanto, pelos fantasmas que as povoam.
Para levar em conta esta temática, que se exprime muito bem na metáfora da "casca e do núcleo", é necessário, na verdade, uma autêntica conversão m ental. Precisamente na medida em que, de acordo com N. Abraham, "nosso
corpo funciona antes de tudo com o linguagem ®'. O que leva a reconhecer a importância da inscrição simbólica não-
verbal. Inscrição que devemos entender em seu sentido mais forte: as marcas corporais, por exemplo, com o a tatuagem ou outras formas de maquiagem, que lembram a dimensão animal do humano.
Inscrições que vamos encontrar tam bém nas profundas sonoridades techno, nas viscosidades das reuniões de to
dos os tipos, em suma, na busca de sensações terrenas significando que o enraizamento pode ser dinâmico. Que pode haver uma dunamis, uma força específica derivada da origem, da comunidade e do território que lhe serve de alicerce.
É em função desta memória antropológica que pode
mos entender a apetência pelos produtos naturais, a moda "bio", a preocupação com o uso de roupas de fibras naturais e outras buscas de energias alternativas. Não é mera especulação inútil identificar nessa preocupação com a
"cripta" uma concepção ampliada da libido que já não é simplesmente genital, mas geral. Algo que eu chamaria de uma erótica societal funcionando na base de uma reversi- bilidade universal, entre os ascendentes e os descendentes, entre os elementos naturais e sociais, o bem e o mal, a som bra e a luz. O holism o das técn icas do New Age ou as
170 A parte do Diabo
efervescências festivas são as expressões paroxísticas, o
corporeismo e o h edonism o difuso das formas mais banais.
Em cada um desses casos verifica-se, de maneira mais
ou m enos consciente, anam nese da "fossa" terrena, desejo
de gozo, moderado ou desenfreado, do que se dá a ver e do
que se dá a viver num presente um tanto ousado. E cabe perguntar se n ão estamos diante de uma espécie de rema- nência, e m esm o da revivescência de um sentim ento pa
gão mais fortem ente enraizado na mentalidade popular do
que em geral se acredita. Paganismo arcaico que se m ani
festa no apego a esses primordiais "elem entos" naturais de
que tratamos, e que nos liga à pluralidade dos mundos sen
síveis.Disse-se a respeito do mitriacismo, concorrente derro
tado do cristianismo, que era uma "religião da cripta". Seu culto era celebrado no que Tertuliano cham ava de castra tencbrarum, opostas, naturalmente, às castra Iucis dos cris
tãos. Reencontramos aqui o símbolo da fossa matriz em que se baseiam os sólidos vínculos da comunidade. O mitriacismo era tam bém uma religião da amizade14. Fidelidade
ao cosmo em sua intégralidade. Até em seus aspectos tene
brosos. Fidelidade à terra que gera e ratifica a horizontal
fraternidade hum ana.
É possível que o tribalismo pós-moderno, em suas m últiplas m anifestações, seja uma maneira profana de viver uma espécie de franco-maçonaria pagã baseada na ética da
solidariedade, que devemos entender em seu sentido pleno; aquela que une, stricto sensi:: às pessoas e às coisas. Hu- r~. -nismo integiai que leva em :n ta o húmus da condição
Transmutação do Mal 171
humana, em vez de negá-lo. Da lama das reuniões techno às "adegas úmidas" e outros "ambientes fechados" da tra
dição m açônica, sem esquecer o sentido que a expressão
"boites dc n uit” não deixa de ter no imaginário de cada um,
defrontamo-nos efetivamente com o retorno do "regime
noturno" da cultura. Regime do fervilhar, do formigamen-
to que reencontramos sempre que se manifesta uma ressur-
gência do vitalismo social e natural.
O que prevalece nesse "encaixe" é o arquétipo do co n
tinente15. Retorno do trágico, o do "estar aí" ou do "ser jo
gado aí" que, pela força das çoisas, gera uma necessária
solidariedade. Com os outros neste "vazio" que é o mundo,
é preciso "cerrar fileiras”, sabér concretamente, de forma
incorporada, no dia-a-dia, enfrentar o mal, a imperma-
nência e a morte. Talvez seja esta a principal característica
do paganismo tribal: fortalecer os vínculos de solidariedade e fidelidade, em suma, corroborar uma comunidade de
destino.O que a temática da "cripta" nos ensina é que os fan
tasmas estão sempre presentes. Tudo passa, e no entanto a
vida perdura. Nada desaparece da memória coletiva. Veri
fica-se um enterram ento profundo. É uma das interpreta
ções do conceito de "resíduo" em Pareto. É tam bém o que
designa a sombria expressão de Hegel quando fala desse
"ossário das realidades" que é o mundo. Em suma, é preci-*
so sempre um substrato de podridão para que a vida cresça.
É este substrato, algo cruel, que apóia as exaltações festivas dos diversos carnavais e outras rememorações folclóricas. E tam bém aquelas, cada vez mais pregnantes, que
172 A parte do Diabo
celebram o culto das relíquias. Seu pretexto pode ser religioso, histórico e até mesmo mitológico. Em cada um desses
'-‘casos, trata-se de comunicar-se com a origem, o arcaico, as raízes fundadoras. Esteias, m onumentos, placas com em o
rativas, pontos turísticos podem ser considerados "estações" da peregrinação humana. Pontos de referência num cami-
j nho coletivo que não tem precisamente uma meta, mas só
pode ser o que é a partir dessas inscrições, dessas sedimen
tações que vão sendo deixadas, através das eras, pelas gera
ções anteriores.É isto que gera uma vibração específica. É a partir disto
que podemos entender que o lugar cria vínculos. A este respeito, devemos reportar-nos ao que o artista contem porâneo Michelangelo Pistoletto chama de pedra "miliar.16"
Um marco delimitando um espaço. Uma espécie de curto-
circuito entre o tempo e o espaço. Pontuação da tempo- ralidade que privilegia u m presente eterno. Tam bém aqui
enraizamento dinâmico: o objeto banal, testem unha de uma longa experiência, dá um sinal. Ele é o marcador da vida, sinal, sobretudo, de uma harmonização com o m undo. O interesse da arte povera, da qual Pistoletto é um dos
iniciadores, consiste em lembrar, justamente, que a textura da vida é feita da sólida organicidade de todos os seus
elementos, mesmo os mais humildes.
A harmonização com o mundo, o fato de aceitá-lo pelo que é, repousa essencialmente na superação desse grande
conceito moderno que é a separação. É esta superação que tende a privilegiar a reversibilidade com o substrato arque-
típico da tradição. O mesmo no que diz respeito à dicotomia
Transmutação do Mal 173
entre o sujeito e o objeto, sendo o primeiro mestre e possuidor do segundo — e sendo o "o b je to ”, no caso, o símb o lo do m un d o inerte, m anip ulável e explorável ao bel-prazer. O objeto, que classificamos na categoria "ter", tam bém é sempre potencialm ente perigoso. É ele, por es
sência, diabólico, tenebroso, ligando à terra. Tem o peso do corpo. Bem diferente é o sujeito, cuja figura é o espírito e que será classificado, de sua parte, e pelo m enos em ter
mos ideais, na categoria do ''ser''. Em suma, o objeto acorrenta, o espírito liberta.
Na verdade, é esta classificação que parece saturada. Não
existe mais oposição entre objetividade e subjetividade, e sim — para retomar uma expressão cara a Gilbert Durand
— um "trajeto antropológico". Esta "trajetividade” é encontrada, profeticamente, na sensibilidade poética — "O bje
tos inanimados, tendes então uma alm a” (Lamartine) —
que pressente uma participação com um no "dado” m u n dano. Sentimento que já então deixa de hierarquizar os elem entos desse dado. Assim, mais uma vez, E. Pessoa:
\
As coisas são, eu o afirmo,Mais que o tempo no qual parecem mudar
Mais que o espaço que parece contê-las.
Panteísmo objetai que chama a atenção para aquilo que identifiquei com o a função "co m u n ia l" desses artifícios que são os objetos.
Estes não são apenas o sinal da alienação. Concepção cuja origem vamos encontrar no objeto-maçãdo judeu-cris-
174 A parte do Diabo
tianismo, e que culm ina nas teorias da em ancipação m o derna. Entretanto, com o no fetichismo pré-moderno, so-
1 mos possuídos exatamente por aquilo que julgamos possuir17.
E, por sinal, a tendência acelerou-se consideravelm ente.
M icrocom putador pessoal, telefone celular, agenda eletrô
nica — é grande a lista desses objetos mágicos que — ainda
que de maneira superficial, não é esta a questão — tratam
jjde ligar-nos aos outros e ao mundo. O trajetivo está na or
dem do dia.Até m esmo esses templos do objeto que são os imensos
shopping centers corroboram sua utilidade com uma per
m anente anim ação: música, imagens, atrações, vídeo. Animação que devemos entender aqui stricto scnsu, o que
confere uma alma, um "suplemento de alma" às massas em
m ovim ento ao redor dos objetos expostos. Esses centros comerciais resumem bem a reversibilidade (o trajeto) entre
o microcosmo, o indivíduo, o macrocosmo, simbolizado pelos objetos, e o mesocosmo, as imagens que servem de mediação a tudo isto.
Arquétipo do continente, "encaixe", com o o analisa:G.
Durand, existe nesses lugares em que o objeto é rei algo que
favorece a "religação", algo que ilustra a religiosidade pós- m od em a: a religiosidade de umá com unhão com as coisas
e as pessoas, da sinergia entre o ambiente social e o am bien
te natural. A natureza e o "artifí :io" respondendo-se numa com unicação sem fim.
É verdade que esta pode parecer bem pobre pelos padrões do intelecto, ou pelo menos de uma razão poderosa e sobe
rana. Afinal de contas, esta comunicação/comunhão silen
Transmutação do Mal 175
ciosa com as "coisas" do mundo pode ser considerada uma
tática específica: libertamo-nos da necessidade aceitando-a.
A ênfase no "continente", em sua dimensão "vazia", é na verdade uma tática que vamos encontrar, por exemplo, nas
diversas formas do pensamento oriental. Este, em geral, é
menos ofensivo, ou pelo menos menos frontal, na medida
em que vai seguir a "propensão" de vida com que somos
confrontados. Insistindo menos no controle ou na dom ina
ção da natureza do que na soberania que cada um pode al
cançar com e através desta. Podemos dizer que a deidade não
é transcendente, pairando implacável, e está, isto sim, en
terrada no mais profundo das coisas e das pessoas.
Deparamo-nos aqui, com o num eco, com um tema caro
à mística, o da vacuidade. O nada gerando o tudo. Há nes
ta perspectiva uma forma de comunicação. Não é a pleni
tude do logos ag in d o que im porta, mas a aspiração, silenciosa, ao vazio da "palavra perdida". Basicamente, o
zen repousa sua prática numa tensão com o esta.
C o m e n ta n d o a respeito dos jardins de Tokaian no Myoschin-ji de Kioto e seus três graus de expressão — um
pátio de areia, uma composição de rochas e uma floral — ,
Augustin Berque vê neles a expressão do que provém da
"vacância" (Mu). "Vacância" que permite que o ser se consti
tua, apareça, a ja18. Existe um "vínculo prévio", primordial,
talvez mítico, no qual tudo se enraíza. Grau zero na expressão humana, mas que nem por isto deixa de ser a condição de possibilidade de todas as maneiras de existir.
Em sua descrição de Tóquio, Roland Barthes propõe também um esclarecimento instrutivo desse centro vazio
176 A parte do Diabo
que é o palácio imperial, dando sim bolicam ente sentido à cidade. Vamos encontrar a importância de um pivô com o
este em muitas cidades do Extremo Oriente: Pequim, Seul, por exemplo, onde a vida social se articula a partir de um
lugar vazio e proibido ou não dito. Aliás, é interessante observar que a língua falada nesses lugares, como ainda hoje
a da cidade imperial em Tóquio, é incompreensível para o com um dos mortais. Incompreensível mas não menos ne
cessária à estruturação social. A plenitude do logos, do verbo agente, dá lugar ao vazio do loco, o lugar que permite ser e favorece o seu crescimento.
Existir a partir do "vácuo" é uma temática que vamos encontrar, de forma mais ou menos marginal, em culturas bem diferentes. Localizar o centro espiritual supremo no
mundo subterrâneo é — sem ironia — um lugar-comum. Disto dá fé a busca da interioridade poética. O m esm o
quanto à démarche iniciática resumida na célebre fórmula maçônica: "VITRIOL", visita interiora terrae, rectifícando invenics occuitum lapidem. Chegou-se até a fazer uma aproximação etimológica entre o céu, coelum, e o vácuo, a ca
verna, em grego koilon19. Semelhante aproximação entre o m undo celeste e o mundo subterrâneo é instrutiva na medida em que une aquilo que, de maneira por demais simplista, teria sido separado. A busca do "centro da união"
pode ser considerada um dado arquetípico (C. G. Jung) ou uma estrutura antropológica (G. Durand), um arcaísmo que,
sob muitos aspectos, não deixa de ser atual.A relação entre a interioridade e a inteireza é talvez o
que se constata na m ultiplicação desses " jardins secre-
Transmutação do Mal 177
to s" , com o os hobbies artísticos, as buscas espirituais, as m últiplas teorias alternativas, o desenvolvim ento de diversas associações que enfatizam a auto-realização, sem esquecer o ressurgimento do diário ín tim o . Porém não
m en o s im pressionante é observar que esta inferioridade se exibe. Ela se mostra na "net" . Multiplicam-se as web cam domésticas, hom epages e outros sites pessoais ou fóruns de discussão. Eles se ligam em rede e ilustram bem a in
tu ição de G. Simmel, que previa que, em determinadas épocas, a "profundidade se escondia na superfície das coi-^* sas". Que quer dizer isto, senão que nada deve ser ocu l
tado, ou negado, naquilo que constitu i o ser individual e social?
Nesta perspectiva, o que poderíamos considerar "obsceno" de um ponto de vista moral (re)passa à boca de cena social. Os reality shows não são apenas uma "telelixeira", uma lixeira para encher ou esvaziar. São tam bém um elem ento da realidade que, com certa insolência, e talvez com
desenvoltura em relação aos conformismos do pensamento, oferece-se cruamente em espetáculo. Ao se exprimir, esta
parte obscura relativiza nossa pretensão de dominar a na
tureza. Mas, antes, incita a se adaptar a ela. A separação entreo privado e o público perde força. Aquilo que no burgue- sismo moderno poderia ser vivido por trás do "muro da vida
privada" torna-se assim um elem ento do vínculo social. Constitui as múltiplas tribos que, virtualmente e às vezes concretamente, se encontram por meio da "rede". É claro
que este procedimento é às vezes "perverso", quase sempre tom ando caminhos desviados (per via), mas nos chama a
178 A parte do Diabo
uma certa humildade: saber levarem conta a "cripta" quan-
1 do se pretende pensar a vida social.
S a b e d o r i a d a n o i t e
Não podemos pensar todas as coisas a partir da via recta da
k simples razão, naquilo que ela tem de claro e discriminador.
O "labirinto do vivido", para usar uma bela expressão do
saudoso Abraham Moles, exige o estabelecimento de um c o n h e cim ento p l u r a l , do qual participem o seiisível e a
incerteza. E tam bém a intuição e a imaginação, que permi
tem apreender a importância dos afetos e paixões. Coisas
cuja importância vem sendo cada vez mais reconhecida na socialidade pós-moderna. Assim, certas categorias, com o a
metáfora ou a analogia, são ferramentas pertinentes e no
m ín im o operacionais, desde que nos esforcemos para en tender concretam ente o com um da vida social20. Elas cha
m am a atenção para o fato de que existe um "claro-escuro"
fundador, o próprio fundam ento de todo vínculo simbólico. Enriquecer o espírito não é abdicar dele. "Abrir a razão"
continua sendo um terreno epistem ológico que merece
atenção.
Este enriquecim ento pelo sensível deve ser relacionado
a uma forma de "fem inização" do mundo. Quero dizer com
isto o retorno de características comuns que encontram os ao m esm o tempo no h om em e na mulher, características que o patriarcado d o m inan te da tradição judaico-cristã
cor ;eguiu marginalizar por muito tempo. Na verdade, para
Transmutação do Mal 179
retomar uma temática cara a Gilbert Durand, o " r e g im e ^
diurn o ” do imaginário ocidental repousa essencialmente numa função "diarética", discriminadora, analítica. O glá- dio que corta ou o falo que penetra são suas figurações mais
expressivas. O espírito da época estará então na explicação
das coisas, no esforço para "zerá-las”.
É bem diferente a atitude do "regime noturno", c u jo 1
símbolo é a taça, e que trata de congregar, estabelecer rela
ções, favorecer a interação. A palavra-chave é então impli
cação. Levar a sério as "pregas" da natureza hum ana. Daí a
"compreensão" de tudo que constitui este conceito. É as-.y
sim que devemos encarar a "feminização" de que tratamos.A "taça" recebe e favorece, sem distinção, um ser con junto fundamental. Todos os elementos da natureza e da cultura
nele encontram lugar e fecundam-se reciprocamente.
Para usar uma expressão um tanto sugestiva de um tex
to licencioso do século XVII, devemos reconhecer a "infinita capacidade da boceta". Nesse texto, a palavra tem conotação
pejorativa.21 Mas sem querer ela frisa bem o aspecto m ate
rial do abismo sem fundo, e indica a dimensão labiríntica
da vida individual e social. Também aqui, metáfora que abre para o vazio e suas diversas modulações, sua dimensão es
sencial, a de ressaltar a "capacidade". Expressão de uma
força básica de que o poder patriarcal é apenas, no fim das
contas, uma simples redução.Em relação a um paganismo difuso, o do localismo, da
valorização da terra e de seus produtos, da epifanização do corpo e do hedonism o que é seu corolário, podemos falar de um retorno do culto à magma mater. Esta Grande Mãe
180 A parte do Diabo
representada pela terra e pela vida. É a proeminência da deusa mãe cujos cultos tribais precederam e foram afastados
pelo universalismo do culto de um Deus único e sua m anifestação profana: o intelecto.
O típico dos cultos à Deusa mãe, aquilo contra o qual o
Ocidente vem lutando desde os profetas do Antigo Testamento, é esta "hierogamia", o casamento sagrado entre o
céu e a terra, o orgiasmo, em suma, as celebrações fusionais.
As "ondulações lascivas" próprias da vida exuberante rom peram o "pedestal fálico" produtivo e reprodutivo, o "pedestal" da genitalidade, da agricultura e da violação da natureza, de que o produtivismo contemporâneo é o resultado lógico.22
E tendo isto em mente que, encerrando-se um ciclo, podemos compreender como as fusões e confusões contem
porâneas rcinstauram o arcaísmo terreno da Grande Mãe. O que nos forçaria a admitir que existe nas diversas eferves-
cências com que nos defrontamos uma inegável sabedoria,
uma verdadeira "ecologia do espírito" que reinstaura a
feminidade da Shekhina de Zohar, da Sofia grega, da Miriam
ou Maria cristã. Todas figuras da sabedoria, mas de uma
sabedoria que, longe da abstração unívoca, a da verticalidade transcendente, quer estar encarnada na pluralidade
das capacidades humanas, a da horizontalidade imanente.Existe de fato na feminidade da sabedoria encarnada um
forte "relativismo", o relativismo do estabelecimento de re
lações entre coisas disparatadas. Relativismo próprio da imaginação, ou ainda, o que fica muito perto, relativismo
da experiência. Do senso comum. "N oção com um " em
Transmutação do M al 181
Spinoza, "verdade de fato" para Leibniz. Poderíamos multiplicar à vontade as expressões, familiares ou eruditas, que dão conta desta realidade que integra o híper ou a surrea- lidade. Coisas que traduzem a memória do antigo. Aliás é esta memória que se exprime contem poraneam ente de diferentes maneiras. Para criar imagens, memória do cérebro réptil contra a hegemonia do neocórtex. Memória da era
de ouro do paganismo, sempre presente, a do destino, do
ventre, do matriarcado, contra o messianismo do judeu-cris- tianismo voltado para o futuro, o do patriarcado.
Este relativismo, uma outra forma de dar ênfase à experiência concreta, e nisto opondo-se ao universalismo, é en contrad o com o estrutura an trop ológ ica n o Oriente. Com o simples amador, registro esta observação do especialista zen Suzuki, afirmando que "assim co m o en contrávam os o pai na base da m aneira de pensar e sentir do ocidental, no Oriente era a m ãe" que constituía a base da
natureza do oriental. A mãe, diz ele, "envolve tudo num
amor incondicional. Para ela) a questão do bem ou do maP não se impõe".
O envolvimento, a sombra, o vácuo, o ventre, a não- distinção entre bem e mal, todos estes elem entos estão reunidos no que os japoneses cham am de Amae: calor m atricial, proteção não-racional, instintiva, com preensão
não-judicativa, coisas que favorecem a fusão, a confusão pré-individual, e que en co n tra m o s n o fu nd am en to do ideal comunitário. Por sinal, é in teressan te n otar que quando Doi Takeo propõe sua análise de Amae, recorre a um título alusivo: " jogo da indulgência".23 É o que eviden-
182 A parte do Diabo
cia o texto. Trata-se, é verdade, da indulgência da m ãe com
o filho, mas isto serve de fu nd am en to a uma indulgência generalizada. Em relação ao outro, origem da com u n id ade, em relação à natureza, à sensibilidade ecológica, em
suma, à com paixão, a saber, esta capacidade de vibrar com
a alteridade, de viver ju n to as paixões com uns.
Dos cultos à Grande Mãe da parte oriental do Mediter
râneo à indulgência do Amae japonês, são muitas as atitu
des, táticas ou métodos específicos que têm com a natureza
íu m a relação m en o s brutal, m e n o s e co n ô m ica , m en o s normativa. Para usar uma expressão de Gilbert Durand,j'
trata-se de uma sensibilidade que remete a "orientes m íticos", que devemos entender com o tudo que é alternativa à hegemonia do patriarcado ocidental. Sensibilidade que
j remete à noite originária, a um caos fundador, ao que ser
ve de condição de possibilidade para todas as formas pes
soais ou sociais. De fato, por mais paradoxal que pareça,
existe uma funcionalidade do fervilhar, na medida em que
funda e inaugura a vida.
A Grande Mãe e a orgia. Mãe e amante. Iniciadora na vida e devoradora. C on h ecem os bem a ladainha dessas
dicotomias, ou melhor, dessas complementaridades antropológicas. Uma excelente síntese, a d a Alma Venus, traduz
bem esta ambivalência e mostra que à unidimensionalidade
de um bem transform ado em m cd elo abstrato opõe-se, arquetípica e em piricam ente (o que é uma única coisa), o
paradigma da complexidade24. Aquele no qual o corpo e a
alma se vivem numa harmonia certamente conflituosa, mas não menos sólida. O senso com um não se engana ao en
Transm utação do Mal 183
xergar a vida cotidiana com o eterna cena teatral dessa anti
nomia fundadora.
Sabedoria deste senso comum que sabe, com o um saber incorporado, juntar o que está disperso. Etimologicamente,
o comum, Xunos, é a concatenação. "Religação" fundamen
tal do corpo e do espírito. Corporeísmo místico que obser
vamos facilm ente em muitas práticas juvenis, como, por
exemplo, as efervescências musicais, mas também os enre
dos dos video games nos quais a integridade do ser se ex
prime numa espécie de iluminação em que o dem onism o cam in h a a par co m uma ingenuidade ad equ ad am ente
angelical.O anjo negro dos jogos de papéis, assim com o aquele
que o cinema ou a canção exaltam sem vergonha nem cul
pabilidade, é certam ente a figura emblemática mais expres
siva da pós-modernidade. E não é à toa que — para citar
apenas alguns exemplos — Madonna, Djõrk, Eminem, no
rastro dos Sex Pistols, são considerados totens em volta dos quais ocorre regularmente a agregação. Por sinal, o nom e
desses totens pouco importa. Eles passarão e mudarão. Mas
o que ficará, a longo prazo, será a tendência a valorizar a
"sombra". Trata-se de um efeito estrutural que, de um m odo
inconsciente, une organicamente, aquilo que o pensamento
ocidental e m oderno m ecanicam ente separara.
A este respeito, é interessante lembrar a estranha co n
junção que encontram os numa expressão desta sombra, a ;
de Mefistófeles. Nela encontram os ao mesmo tempo o latim mephistis, significando exalação infecta (no Larousse, por exemplo, o adjetivo mefítico: "que tem um odor repug-
184 A parte do Diabo
nante ou tóxico"), e o grego ophelos, que remete a fedor útil, o que não deixa de lançar novas luzes sobre as diver
sas manifestações do demonismo contem porâneo.Isto permite, em todo caso, colocá-las em perspectiva.
E também considerá-las com o formas paroxísticas, portanto um pouco à parte, caricaturais, do sentim ento de " in
dulgência" que o senso com um experim enta diante da anomia. E isto não pelo simples prazer estético do mal, mas porque, de forma quase consciente, sabe-se que é necessário adaptar-se a ele. "Agüentar". Talvez fosse necessário,
além do moralismo bem pensante e algo abstrato, estabelecer um paralelo entre a sabedoria popular e a sabedoria demoníaca.
Senso trágico da vida. Sentim ento iniciático da vida, que, com o os alquimistas medievais, vê na volta ao caos "uma parte do grande todo”. Estágio da nigredo, com o m om ento necessário da completude h u m ana.25 Mistério da
conjunção, e isto em seu sentido estrito: o mistério é exatamente que une aqueles que o com partilham .
Os mitos exprimem permanentemente este mistério. As
tribos pós-modernas, a seu modo, tam bém o vivem. Com isto, por meio de fenômenos reprovados pela moral, dos excessos e efervescências, exprime-se uma eterna busca, a
da con junção da força do corpo com a do espírito. O corpo tatuado, com piercings, enfeitado de maneira chamativa, em suma, o corpo exacerbado seria apenas um m om ento
na busca de um espírito comum: o que me liga ao outro.
Neste sentido, os frêmitos da moda, as histerias esportivas e musicais poderiam ser considerados provas iniciáticas
Transmutação do Mal 185
próprias a todos os caminhos para um "mais-ser". Eco da visão dantesca:
"Poi s'ascose nel foco che li affina. ”Retornar ao fogo que afina26.
Há neste "afínam ento" uma tática, individual ou social, totalm ente alternativa à que prevaleceu no m ito progres
sista, seja n o do messianismo judaico-cristão ou no das teorias modernas da emancipação. M ito para o qual a "supe
ração" dialética do mal era a condição de possibilidade da realização individual ou, o que era a sua conseqüência lógica, da construção de uma sociedade perfeita. Esboça-se então uma nova postura, pessoal e "tribal", a da aceitação deste mal pelo que ele é: um elem ento estrutural do dado mundano em suas diferentes modulações.
Postura que exige um outro "discurso do método". Novo em relação aos modernos conformismos de pensamento,
mas também "arcaico", na medida em que se baseia num
saber tradicional, num conhecim ento simbólico que leva a sério a anamnese arquetipológica. Tudo isto, em referên
cia às contribuições da etologia contemporânea, mostra a importância do instinto e de suas imagens primordiais para
a compreensão do animal hum ano.Nesta perspectiva, as efervescências, as histerias, os cli
mas emocionais, os mimetismos corporais ou intelectuais
próprios das sociedades pós-modernas ganham particular relevo. De fato, o observador social não pode mais limitar- se a negar o que Gabriel Tardeschamava, muito justifica-
186 A parte do Diabo
damente, de "leis da im itação". Tam bém não basta mais
avaliá-las à luz de um individualismo teórico totalm ente
superado ou de um moralismo — mais ou menos consciente
— um pouco acanhado.Na verdade, seja anôm ica em relação aos valores esta
belecidos ou ruidosa, ou ainda, o que é pior, estranhamente
silenciosa, a força societária afirma-se e se exibe com vigor.
Pode ser uma rebelião latente, revoltas pontuais, os atos
terroristas, uma abstenção social e política ou ainda um indiferentismo galopante ou uma ironia cqrrosrya., pouco im porta a forma que assume, mas nada pode deter a ex
pressão dessa força que age essencialmente por con tam inação. Por ironia do destino, acontece que o desenvolvimento
tecnológico — especialmente as redes da Internet — favorece essas imitações arcaicas e as revivescências da m em ó
ria imemorial do instinto que são seus corolários.
Para o m elhor ou para o pior, essas leis da imitação reinvestem a parte de sombra que cada um leva em si, e, portanto, o lado bárbaro que age na vida social. Mas agindo
assim, numa perspectiva holística, semelhante selvageria
faz sentido. Tema recorrente do pensamento gnóstico, para o qual "todo mal é portador de uma flor", ou ainda a figu
ra de Satã podendo engendrar o bem ou a liberdade. Tema
que vamos encontrar num certo esoterismo m açônico que
considera que, s im bolicam ente, a morte é a própria condição da vida: perit ut vivat. Em seus Entretlens, Joseph de
Maistre insiste nesta idéia. É possível que Hegel, ao teorizar a ' força do negativo", tam bém seja influenciado por esta m £ ;m a corrente de p en sam en to . Em resumo, a atitude
Transmutação do Mal 187
criadora baseia-se na integração constante do bem e do mal, da vida e da morte, da felicidade e da infelicidade.
Perspectiva oxim orônica que a redução racionalista julgou-se capaz de descartar sem dificuldade e que hoje res
surge com força redobrada. A im agem romântica da noite,
dos sonhos e da imaginação, invade muitos terrenos da vida
diurna. Ora, a noite é exatamente aquilo que permite uma
"transmutação benéfica das trevas".27 O claro-escuro dos
sonhos despertos coletivos, o desenvolvimento do lúdico e do festivo que dele decorre, tudo isto m antém a antítese no próprio seio de uma realidade que a partir daí não pode
mais ser sintética. A noite não é mais erradicada, 0 1 1 totalmente separada do dia, a flor se reconhece no mal de que
saiu. Na constante valsa dos deuses, Prometeu está dando
lugar ao efervescente Dioniso!
Transmutação das trevas. É este o esoterismo difuso que se exprime no in con sciente coletivo pós-m oderno. É o que serve de substrato aos vários excessos da sociedade de consumo, a seus ajuntamentos, a suas histerias. É também
o que permite entender os jogos ao mesmo tempo cruéis e inocentes a que se entregam, na Internet ou em programas
de televisão, essas "crianças eternas" que são nossos co n
temporâneos. É isto tam bém o que encontramos na ence
nação da "m atéria-prim a" característica dos espetáculos1
teatrais e coreográficos, nos quais a natureza e seus "h u m o res" ocupam lugar privilegiado. O mesmo acontece com todas as "instalações" artísticas ou exposições fotográficas que valorizam a banalidade do objeto cotidiano, símbolo do húmus constitutivo do dado mundano. Em todos estes
188 A parte do Diabo
casos, o ato criativo parece responder ao cham ado do poeta: "Vem, ó Noite muito antiga e idêntica" (F. Pessoa).
Eis aí o surpreendente ou destoante paradoxo. Ao cele
brar e reabilitar o Mal, a criação, que não é mais excepcional ou reservada a alguns, é expressão de vitalidade, forma
banal do vitalismo, afirmação da vida. É verdade que esta estética, vivida no dia-a-dia, continua invisível para os que
se sentem investidos do direito de gerir ou pensar as insti
tuições sociais. Mas nem por isso deixa de constituir a verdadeira centralidade subterrânea, aquela sobre a qual reina,
para usar a expressão simmeliana, o "rei clandestino" da época. Ela gera intranqüilidade, e até m esmo "espanto".
'Mas quase sempre o trovão é necessário para arrancar o/ torpor degradante de unia vida sem sabor.
Les C h alp s-P aris -G raissessac ,
1999-2001
Notas do Capítulo V
1. Cf. N ie tz sch e (F.), Naissance de Ja tragédie, Paris, G allimard
(O.C.) , T. 1, p. 53 . Cf. tam b ém Maffesoli (M.), L'Ombre deDiony- sos, contribution à une sociologia de 1'orgie, op. cit. Sobre o
"relativism o", cf. M oscovici (S.), La M achine à faire les dieux, Paris, Fayard, 1 9 8 8 , e M orin (E.), L'Humanité de 1'humanité, Le
Senil, 2 0 0 1 .
2. Cf. B ré ch o n (R), Etrange, étrahger, une biographie de F. Pessoa, Paris, Christian Bourgois, 1 9 9 6 , p. 1 9 3 .
3 . Cf. p or e x e m p lo Vaneigen (R.), La Résistance au christianisme, les hérésics des origines au XVII1Csiècle, Paris, Fayard, 1 9 9 3 , ou
Beyer de Ryke (B.), Maítre Eckhart, u ne m ystique du détachem ent, Ousia, Bruxelas, 2 0 0 0 .
4 . Cf. Punikkar (R.), Éloge du simple, le m oine com m e archétype universel, Paris, Albin Michel, 1 9 9 5 .
5 . D u p r o n t (A.), Du sacré, croisades et pélerinages, images et langage, Paris, G a llim a rd , 1 9 8 7 , p. 3 3 9 . S ob re D ov Baer de
Loubavitch, cf. Scholem (G.), Les Grands Courants de la mystique juive, Paris, Payot, 1 9 6 0 , p. 17.
6. Cf. as pesquisas em a n d a m e n to de H a m p a rtz o u m ia n (S.), Petiau
(A.), Pourtau (L.), n o CEAQ (www.univ-paris5 .fr/ceaq) e Sociétés,
190 A parte do Diabo
De Boeck, n e 2 , 2 0 0 1 . Cf. ta m b é m M . Gaillot, La Techno, un laboratoire esthétique et politique du prêsent, ed . Dis-voir, Pa
ris, 1 9 9 8 .7. N ietzsch e (F.), Naissance de la tragédie, op. cit., p . 6 9 .
8 . Negri (A.), Kairos, Alm aVenus, Multitude, Paris, C a lm a n n -L é v y ,
2 0 0 0 , p. 1 9 -2 0 . Sobre o messias, cf. B en jam in (W .) , "T h èse sur
la p h i lo s o p h ie de l 'h is to ir e " , in Poésie et Révolution, Paris,
D enoél, 1 9 7 1 .9. Cf. as referências de Aristóteles e A vicena forn ecid as p or Franz
(M . L. v o n ) , C o n su rg e n s (A.), La Fontaine depierre, Paris, 1 9 8 2 ,
p. 1 7 0 - 1 7 6 . Cf. t a m b é m Ju n g (C. G.), Alcbim ie et psychologie, Paris, 1 9 7 0 , p. 3 3 6 .
10. Cf. a este respeito N e h e r (A.), L'Essence du prophétisrne, Paris,
C a lm a n n -L é v y , 1 9 8 3 , p. 78 .
11. Ju n g (C. G.), Présent et avenir, Paris, B u ch et-C h aste l , 1 9 9 6 , p.
1 3 5 e seguintes. Cf. ta m b é m Franz (M. L. v o n ) , C. G .Jung, Pa
ris, B u ch et-C h aste l , 1 9 9 4 , p. 190 .
12. Corbin (H.), L'Imagination créatricedanslesoufism e d'Ibn Arabi, Paris, F la m m a rio n , 1 9 9 4 , p. 1 5 9 . Sobre o p resente , cf. m e u livro
La Conquête du présent ( 1 9 7 9 ) , Paris, Desclée de Brouw er, 1 9 9 9 ,
e L'ínstant éternel, Paris, Denoél, 2 0 0 0 .
13. A b ra h a m (N.), L'Écorce et le Noyau, Paris, F la m m a rio n , 1 9 8 7 ,
p. 2 0 . Cf. ta m b é m R o u ch y Q.-C.), La Psychanalyse avec Nicolas Abraham et Maria Torok, Éres, 2 0 0 1 . Sobre a "v iscos id a d e " m u
sica l , cf . C a t h u s (O .) , L'Á m e soeur, le fu n k et les m usiques populaires du XX'siècle, D. D. B., 1 9 9 9 .
14. Cf. Gérard (C.), Parcourspaien, 1'âge d 'hom m e, L ausann e, 2 0 0 0 ,
p. 1 1 8 - 1 1 9 . Cf. t a m b é m a revista Antaios, Bruxelas, XV I, 2 0 0 1 .
Sobre o tribalism o, cf. M . Maffesoli. Le Temps des tribus ( 1 9 8 8 ) ,
c artis, La Table Ronde, 2 0 0 0 .
15 . D u ra n d (G.), Les Structures anthropologiques de rimaginaire, Paris, D u n o d ( 1 9 6 0 ) , 1 9 6 9 , p. 2 4 3 e seguintes.
16 . P is to le tto (M.), R. M . N. Lyon, 2 0 0 1 .
17 . M affesoli (M.), La Contemplation du m o n d e ( 1 9 9 3 ) , Le Livre de
P o c h e , cf. o "o b je to im a g e m ", p. 1 0 7 e seguintes. Sobre os su-
Transmutação do Mal 191
p e rm e r c a d o s , cf. Freitas (R.), Les Centres com m erciaux: Hes urbaines de la postmodernité, Paris, L 'H arm attan , 1 9 9 6 .
18 . Cf. Berque (A.), Le Sauvage et 1'artifice, les Japonais devant la nature, Paris, G allim ard, 1 9 8 6 , p. 8 5 . Cf. ta m b é m Jullien (F.), La •
Propension des choses, pour une histoire de 1'effícacité en Chine, Paris, Le Seuil, 1 9 9 2 .
19. Cf. G u é n o n (R.), Le Roi du monde, Paris, Gallimard, 1 9 5 8 , p. 61.
2 0 . R e m e to a q u i à m e u s livros La Connaissance ordinaire, Klincksieck, 1 9 8 5 , e Éloge de la raison sensible, Paris, Grassct,
1 9 9 6 . Cf. ta m b é m M oles (A.) e R ohm es (E.), Le Labyrinthe du vécu, M. K., 1 9 8 4 . Cf. ta m b é m Berthelot 0--M .) , L'Intelligence du social, Paris, PUF, 1 9 9 0 , e YVatier (P.), Une introduction à la sociologie com préhensive, Belfort, Circé, 2 0 0 2 .
2 1 . Rocco (A.), Pour convaincre Álcibiade, Paris, Nil, 1 9 9 9 .2 2 . Cf. V aneigcn (R.), La Résistance au christianisme, Paris, Fayard,
1 9 9 3 , p. 7 8 - 8 2 . Cf. Cor,bin (H.), UAnge etThom m e, Paris, 1 9 7 8 ,
p. 3 9 .
2 3 . DoTTakeo, L eJeu de 1'indulgence, Paris, L 'Asiathèque, 1 9 8 8 , p.
59 . Cf. t a m b é m Bolle de Bal (M.), que é o prim eiro a utilizar a ', palavra " r e l i g a ç ã o " , La Tentation com munautaire, B ru xelas , .
1 9 8 0 . S ob re o ideal com unitário, r e m e t o a m e u l ivro La Contem plation du m onde, figures du style communautaire, Paris, Livre de P oche , 1 9 9 3 , p. 1 2 7 e seguintes.
2 4 . Cf. Negri (A.), Kairos, Alma Venus, Multitude, Paris, C a lm a n n -
Lévy, 2 0 0 0 , p. 7 4 . C f . t a m b é m Jvlorin (E .) , L'H um anité de 1'humanité, Le Seuil, 2 0 0 1 , e Amour, sagesse, Le Seuil, 2 0 0 0 .
2 5 . Cf. Ju n g (C. G.), Mysterium conjunctionis, Paris, 1 9 8 0 , p. 2 4 8 .
2 6 . Dante, Purgatorio X X V I, 148 .
2 7 . Sigo aqui a bela análise de J. de Maistre proposta por Durand
(G.) in Revue des études maistriennes, Paris, Les Belles Lettres,
1 9 8 0 , n 9 5 -6 , p. 1 9 6 - 2 0 3 . Cf. ta m b é m Durand (S.), Un com tesous Tacada, Paris, Edim af, 1 9 5 9 . Sobre a influência m a ç ô n ic a em
Hegel, cf. H o n d t (J. d ’), Hegel, Paris, C alm ann -Lévy, 1 9 9 8 . p. 2 0 .