dicas para uma análise de conjuntura - emilio gennari

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  • 8/3/2019 Dicas para uma anlise de conjuntura - Emilio Gennari

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    Emilio Gennari

    Dicas para uma

    anlise de conjuntura

    Ao reproduzir... cite a fonte.

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    ndice:

    Introduo 03

    1. Fatos e Acontecimentos 04

    2. Atores 07

    3. Cenrios 10

    4. Correlao de Foras 12

    5. Como organizar a leitura de um jornal 14

    6. O que um corte conjuntural 16

    7. A sociedade no uma nau sem rumo 18

    8. Tendncias, Acidentes, Manifestaes Subordinadas 21

    9. Principais erros de uma anlise de conjuntura 22

    10. A Revoluo Inglesa: um bom exerccio de anlise de conjuntura 24

    Introduo.

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    Quando abrimos um jornal ou ouvimos um noticirio, temos a impresso de que o mundo

    uma verdadeira baguna. Os acontecimentos parecem no estar relacionados entre eles e o seu

    caminhar aparenta ser to incerto quando o navegar de uma nau sem rumo.

    primeira vista, a realidade pode ser comparada com um grande quebra-cabea cujas peas

    amontoadas diante de ns vo compor uma figura que no conhecemos, que muda com o passar dotempo e que, exatamente por isso, torna mais difcil o nosso trabalho de separar e classificar as peas

    para poder comear a mont-las.

    s vezes, as dificuldades desta tarefa nos fazem experimentar um sentimento de resignao e

    de impotncia diante do quotidiano a ponto de acharmos sem sentido o esforo de conhecer e

    desvendar a trama das relaes sociais. Estamos to conformados com tudo o que passa debaixo

    dos nossos olhos que acabamos alimentando a crena de que, um dia, o mesmo acaso que d vida

    aos acontecimentos pode realizar tambm aqueles velhos sonhos que a dura realidade vem seencarregando de destruir.

    As nossas atitudes mudam quando as injustias nos deixam indignados, quando o peso da

    dominao faz crescer em ns o desejo de construir um mundo sem explorados e sem exploradores e

    no qual haja um lugar para todas as pessoas, sem preconceitos e sem discriminao. Para dar os

    passos que comeam a transformar o desejo em realidade, sentimos a necessidade de entender o

    que est acontecendo na vida de todos os dias. S uma anlise profunda desse quotidiano vai nos

    ajudar a avaliar cuidadosamente os erros e os acertos das nossas aes, a ter uma idia do

    desenrolar dos acontecimentos e a levar as pessoas a perceberem que a histria no obra do

    acaso, e sim o resultado de aes que respondem a interesses bem precisos.

    Neste sentido, a anlise de conjuntura apenas um dos instrumentos com os quais podemos

    ajudar os trabalhadores e as trabalhadoras da nossa sociedade a deixarem de ser expectadores que,

    do alto da arquibancada da vida, danam ao som de msicas cujos ritmos e letras no escolheram,

    para serem atores que, com a sua classe, constroem uma nova ordem social.

    Eu sei que no fcil analisar e montar as peas que compem o quebra-cabea, mas este

    o tipo do trabalho do qual no d pra fugir. Por isso, o jeito se armar de pacincia, ficar de olhos

    bem abertos, identificar cada uma dessas peas e aprender a usar as ferramentas que nos ajudam a

    encaix-las. Por isso, vire logo a pgina que as dicas j vo comear.

    1. Fatos e Acontecimentos.

    Para analisar o momento em que estamos vivendo, a nossa conjuntura, o primeiro passo

    coletarmos as notcias que aparecem nos jornais, no rdio, na televiso e nos demais meios de

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    comunicao. Imagine agora que cada notcia uma pea do quebra-cabea e est diante de voc

    espera da sua anlise. Como j disse na pgina anterior, voc e eu no sabemos qual ser a figura

    que vamos conseguir montar, mas a impresso que temos ao mexer com as peas que h notcias

    que mais atrapalham do que ajudam ou que no acrescentam nada ao nosso esforo de entendermos

    a conjuntura.

    Por isso, o primeiro passo o de limpar a rea, ou seja, de separar os fatos dosacontecimentos. Ainda que na linguagem do dia-a-dia as duas palavras sejam usadas com o mesmo

    significado, vamos chamar de acontecimentos aquelas cenas da novela da vida que tm um sentido

    especial para um grande nmero de pessoas ou, at mesmo, para o pas, e de fatos as que so

    importantes apenas para um grupo restrito.

    Vou dar alguns exemplos: uma relao amorosa fora do casamento um fato, mas quando o

    envolvido o Presidente da Repblica, sem dvida, passa a ser um acontecimento. Diariamente, so

    realizadas centenas de cirurgias que procuram corrigir problemas nas articulaes das pernas, e isso

    no passa de um fato corriqueiro. Agora, se o joelho a ser operado de um famoso jogador de

    futebol, j assume o status de acontecimento. A morte de um ente querido um acontecimento para afamlia, mas, provavelmente, deixar a cidade e o pas na mais completa indiferena. Porm, quando

    se trata da morte de uma pessoa ilustre, ser um acontecimento.

    Realizada esta primeira distino e descartados os fatos, devemos classificar os

    acontecimentos de acordo com a sua importncia para o momento que o pas est vivendo. bom

    no se deixar enganar pelo tamanho das manchetes, pois elas tm a tarefa de levar o leitor a comprar

    o jornal, mas nem sempre o seu tamanho proporcional ao peso que elas tm no presente e no

    futuro do pas. s vezes, poucas linhas de p-de-pgina anunciando a chegada de uma crise

    econmica num dos pases do continente esto bem mais carregadas de sentido e de conseqncias

    para a conjuntura nacional do que a notcia do Oscar de melhor filme que ocupa um lugar de

    destaque.

    Apesar de todo jornalista jurar que est a servio da verdade, devemos sempre lembrar que

    no existe uma forma neutra de apresentar os acontecimentos. Dois exemplos vo ajudar a refletir

    sobre isso. Imagine que a praa principal da cidade onde voc mora amanhea abarrotada de

    policiais e que por ela passem trs pessoas: uma senhora que est indo trabalhar, um batedor de

    carteiras e um dirigente sindical que vai liderar uma passeata. Ao contar o que viu, provavelmente,

    aquela senhora dir que se sentiu protegida contra a violncia que h tempo est tomando conta da

    cidade e que a praa deveria amanhecer assim todos os dias. J o batedor de carteiras... bom... no

    vai deixar de dizer que hoje a mar no est pra peixe e que vai ser melhor ele ir pra outro canto ou

    tirar um dia de folga. O sindicalista, por sua vez, far a primeira falao da passeata dizendo que as

    foras da represso esto querendo intimidar a manifestao do descontentamento popular. Apesar

    de todos frisarem que a praa est cheia de policiais, cada relato vai incorporar o sentido que nossas

    personagens do ao mesmo acontecimento e que est relacionado com seus interesses especficos.

    O segundo exemplo muito familiar em poca de eleio, quando discursos aparentemente

    iguais escondem posturas, entendimentos e encaminhamentos diferenciados em relao ao mesmo

    problema. No devem ter sido poucas as vezes nas quais voc ouviu um candidato dizer que suas

    idias e propostas so boas para a cidade ou para o pas. Diante de afirmaes como estas, quemanalisa a conjuntura deve se colocar sempre algumas perguntas: vo ser boas... para quem? Que

    setores da sociedade sero realmente beneficiados pelas medidas que sero implementadas? Quem

    ser chamado a pagar a conta?

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    Contrariando as aparncias, o candidato em questo no est mentindo, pois algum

    realmente sair ganhando. Acontece que para alcanar este objetivo ele deve conquistar antes o voto

    popular. Por isso, apesar de todos os discursos sobre a tica na poltica, no agora que ele vai

    reconhecer que est a servio de algum setor das elites e que a implantao de suas propostas vai

    exigir medidas que ferem os interesses e as necessidades do povo simples.

    Passando do exemplo para a realidade, voc deve lembrar o que aconteceu no Brasil quandoo governo federal decidiu intervir para salvar alguns bancos da falncia. Em nome da necessidade de

    garantir o acesso aos seus depsitos bancrios aos pequenos correntistas e poupadores, o governo

    do presidente Fernando Henrique Cardoso gastou bilhes de Reais para cobrir com o dinheiro pblico

    o rombo de instituies financeiras como o Banco Econmico, o Bamerindus e o Banco Nacional entre

    outros.

    Na poca, nos venderam a idia de que isso era bom para todos. Na verdade, nossos

    ministros fizeram com que o Estado pagasse por uma dvida que no havia feito e transferiram para o

    bolso dos banqueiros um grande volume de recursos pblicos que poderiam ser usados para

    melhorar a educao, a sade, o transporte e a previdncia social. Feitas as contas, em nome dobem-estar da nao, quem saiu ganhando foi o capital privado que acabou comprando a baixo preo

    bancos cujas finanas estavam totalmente saneadas e que, portanto, eram lucrativos. Ao mesmo

    tempo em que os capitalistas sorriam felizes por estas novas oportunidades de investimento, o povo

    amargava uma piora nas condies de atendimento s suas necessidades bsicas. O Brasil tinha

    ficado bem melhor... para os banqueiros.

    Como nossas fontes de informao, em geral, so os meios de comunicao controlados pelas

    classes dominantes, fao questo de relembrar a importncia de no se deixar envolver pelo sentido

    que elas do aos acontecimentos. A aparente neutralidade das reportagens e das crticas que so

    veiculadas pela mdia no passa de uma forma pela qual determinados setores da elite procuram

    fazer com que as pessoas interpretem a realidade a partir de seus mesmos valores e critrios de

    anlise. Legitimadas suas posies, o aparente consenso popular ser usado para se fortalecer no

    poder e implementar seus projetos. Da a importncia de fazer com que a anlise de conjuntura seja

    capaz de reconstruir a trama e as causas dos acontecimentos que no aparecem primeira vista,

    mas que necessrio resgatar para desmascarar as interpretaes dominantes.

    Para dar conta deste desafio, devemos sempre lembrar que cada acontecimento o resultado

    de uma srie de causas que foram se desenvolvendo ao longo da histria. Ou seja, ele tem um

    passado que o produziu e o moldou para que ficasse desse jeito. Agora, uma vez feito isso, no

    podemos esquecer que o que acaba de acontecer se transforma numa das causas que vo dar

    origem a novos acontecimentos. Ficou difcil? No se preocupe, j vou explicar com um exemplo.

    Com certeza, voc deve ter ouvido falar das ocupaes realizadas pelo Movimento dos Sem

    Terra em sua luta pela Reforma Agrria. Como parte importante da conjuntura, elas so a resposta de

    um nmero considervel de trabalhadores e trabalhadoras diante do processo de constante

    empobrecimento ao qual foram submetidos ao longo destes anos, ora pelo aumento do desemprego

    nas grandes cidades, ora pela expulso do homem do campo atravs de um violento processo de

    concentrao de terra nas mos de um punhado de fazendeiros. Neste sentido, os integrantes do

    MST no so invasores, e sim pessoas que escolheram determinadas formas de luta parareconquistar direitos que um dia foram arrancados de suas mos por patres e latifundirios. A

    ocupao de uma fazenda, portanto, o resultado da soma desses elementos que foram aparecendo

    e tecendo relaes ao logo do tempo.

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    Cortado o arame farpado da cerca, levantados os barracos de lona preta, organizada a

    resistncia e a vida dos acampados, a prpria ocupao da fazenda vai se tornar agora uma das

    causas que vo dar origem a novos acontecimentos. A depender de sua fora, extenso e do apoio

    popular recebido, ela poder acelerar o processo de assentamento, levar a uma represso violenta

    por parte da polcia ou at mesmo fazer com que os fazendeiros da regio aumentem o nmero de

    jagunos que obedecem s suas ordens.Como voc pode ver, a realidade no pra. Como dizia Gramsci, o presente , ao mesmo

    tempo, o tmulo do passado e o bero do futuro, resultado final de uma srie de acontecimentos e

    relaes e nova causa do que est por vir.

    Diante destas consideraes, no faz sentido fazer com que a anlise de conjuntura se

    preocupe em dizer se o que aconteceu bom ou ruim. Seja qual for a pea do quebra-cabea que

    est sendo analisada, ela apenas uma parte necessria do todo. Ou seja, ela nada mais a no

    ser a resposta que foi sendo construda por determinados atores sociais cuja histria levou a esta

    forma particular de responder aos seus sofrimentos, anseios e sonhos. Portanto, no possvel ler os

    acontecimentos a partir do se isso no tivesse acontecido... ou do se tivessem feito isso e aquilo...o resultado seria bem diferente. O objetivo da anlise no o de chegar a um julgamento moral, e sim

    de compreenderpor que as coisas deram no que deram e como elas se relacionaram entre si.

    Como toda ao que se desenvolve em nossa sociedade, a ocupao da fazenda, da qual

    falvamos antes, vai resolver algumas questes e abrir outras que alimentaro o movimento da

    conjuntura. , por isso, que devemos analisar profundamente este acontecimento apontando os seus

    elementos, o sentido que ganham, as perspectivas de desenvolvimento e suas possveis

    conseqncias. Afinal de contas, o que bom para a luta dos trabalhadores pode ser ruim para os

    fazendeiros, ou vir a ganhar apoios tcitos e inesperados de outros setores da sociedade cujos

    interesses tambm esto em jogo.

    importante sublinhar que, raramente, a realidade nos apresenta uma relao direta e

    imediata entre o acontecimento e as suas causas. s vezes, ela o resultado de um lento processo

    de amadurecimento de diferentes situaes que se avolumam ao longo do tempo e, em seguida, se

    manifestam em aes cuja qualidade e impacto superam os elementos que as prepararam. Vou usar

    como exemplo a greve de ocupao da Companhia Siderrgica Nacional, em Volta Redonda (RJ),

    ocorrida no segundo semestre de 1988.

    Ao conversar com os operrios alguns dias antes da sua ecloso, dificilmente um observador

    externo quele ambiente poderia ter uma noo exata do que estava por ocorrer. De fato, a ocupao

    da CSN foi o resultado de um intenso trabalho de organizao que envolveu milhares de contatos e

    conversas com os operrios e suas famlias, centenas de aes levadas adiante no interior da usina

    tanto pela diretoria do sindicato dos metalrgicos, como por grupos de trabalhadores que se reuniam

    para planejar formas de manifestar seu descontentamento. Sem dvida, cada um desses

    instrumentos era qualitativamente inferior forma de luta que acabou se concretizando. Mas, no dia-

    a-dia do trabalho, todos eles foram transformando a revolta individual na necessidade de dar uma

    resposta coletiva ao peso da explorao. O que parecia ser um raio num cu azul, na verdade, era o

    resultado de um longo entrelaar-se de contatos, experincias, culturas e organizaes que levaram

    anos para desembocar na greve de ocupao. Sem perceber esse contexto, seria impossvelentender a importncia desta greve e os desdobramentos que ele teve no interior da CSN, na Cidade

    de Volta Redonda, nas relaes dos empresrios com o movimento sindical e no resultado das

    prprias eleies municipais daquele ano.

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    Os acontecimentos s no vo nos surpreender se os nossos olhos forem capazes de ler o

    movimento da histria com seu entrelaar-se de interesses e contradies. Apesar das aparncias, o

    momento presente no uma mera repetio do passado e, uma vez superado, nada voltar pura e

    simplesmente ao que era antes. Todo acontecimento deixa novas pegadas que apontam novas

    necessidades, novas relaes, novos problemas e novos desafios. Novosno por serem melhores do

    que eram antes, mas to somente por apresentarem caractersticas prprias, diferentes das que semanifestaram em pocas anteriores. O quotidiano no uma fotografia na qual a expresso das

    pessoas permanece inalterada apesar do passar do tempo, e sim um filme em constante movimento.

    Ao apresentar determinados acontecimentos, a fita vai moldando e preparando novas peas do

    quebra-cabea que caber a ns descobrir e encaixar.

    2. Atores.

    Classificados os acontecimentos, nossas atenes devem ser dirigidas para a anlise dos

    atores. Apesar de no agirem de acordo com um roteiro pr-determinado, vou usar a palavra atorespara identificar os indivduos, os grupos, as categorias, as instituies e as classes sociais que atuam

    no quotidiano desenrolar da histria.

    A hiptese mais provvel de que as notcias nos trazem a presena de todos eles. Por isso,

    o nosso esforo no pode se limitar a list-los, mas ter de definir que atores esto predominando na

    conjuntura e porque eles ocupam uma posio de destaque. Esta tarefa essencial para poder

    delinear melhor o momento presente e seus possveis desdobramentos.

    A histria mostra que, em geral, as lideranas individuais emergem quando as instituies

    esto em crise. No final da dcada de 80, por exemplo, na crise do Congresso Nacional, que se

    aprofundava em funo das denncias e dos escndalos que iam aparecendo, assistamos

    afirmao de um ator chamado Fernando Collor de Mello. O intenso trabalho da mdia fazia com que

    suas idias, seu estilo de vida e o suposto compromisso de ser um verdadeiro caador de marajs

    ganhassem apoio popular suficiente para eleg-lo Presidente da Repblica no segundo turno das

    eleies disputado com Luiz Igncio Lula da Silva. Collor no era bem o que as elites queriam, mas,

    na falta de algo melhor e diante da perspectiva ameaadora de um possvel governo de esquerda, foi

    o quebra-galho que, momentaneamente, parecia garantir a sua reciclagem no poder. Ou seja, na

    instabilidade gerada pela crise das instituies, caberia ao presidente eleito a rdua tarefa de construir

    um novo equilbrio de foras e de fortalecer a confiana popular nos mecanismos e nas regras do

    sistema.

    A utilizao de expresses aparentemente neutras (modernidade, cidadania, combate

    corrupo, levar o Brasil para o 1 mundo, etc.), aliada a apelos populistas que alardeavam aos

    descamisados e aos ps descalos a possibilidade de um futuro melhor, pretendia mostrar que Collor

    estava em sintonia com os anseios populares. Na verdade, estas mesmas expresses ajudavam a

    criar um ambiente de consenso social no qual o povo simples no conseguia distinguir os interesses

    que estavam sendo defendidos em cada uma das propostas que concretizariam as metas

    anunciadas.

    Como todo presidente, Collor no passava de um funcionrio chamado a administrar osinteresses das classes dominantes e a garantir a consolidao da ordem por elas exigidas. Mas

    exatamente aqui que comeavam os problemas: sobre suas magras realizaes pesavam graves

    acusaes de corrupo que, alm de corroer sua base de sustentao, agravavam o

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    descontentamento popular que vinha se avolumando em funo do aumento do desemprego e do

    arrocho salarial. Diante da crescente possibilidade de convulso social, havia chegado o momento de

    trocar de funcionrio como forma de restabelecer a confiana nas instituies.

    Na crise do indivduo, a pronta interveno do Congresso canalizava a revolta popular para o

    processo de impeachment. Empossado Itamar Franco, o trabalho institucional garantia um perodo de

    estabilidade econmica e poltica, controlada de perto pelas elites, e renovava as esperanaspopulares em dias melhores para o futuro.

    Resumindo, podemos dizer que os indivduos emergem como atores principais da conjuntura

    quando as instituies esto em crise, mas seu papel tende a ser de menor importncia quando estas

    recuperam a confiana do povo no sistema. Por sua vez, na crise dos indivduos que seguravam as

    rdeas no perodo anterior, as instituies tendem a assumir o papel que era por eles desempenhado.

    A interveno de grupos ou de categorias sinaliza que setores da sociedade esto

    evidenciando a necessidade de fazer evoluir os acontecimentos em direes opostas, ou apenas

    complementares, quelas que so impressas pela ordem vigente. Frente a estas presses, a anlise

    da realidade deve levar em considerao a extenso do movimento, sua capacidade de envolveroutros grupos ou setores da sociedade, at a que ponto ela expressa uma ruptura ou uma correo

    de rota diante da poltica econmica conduzida pelas classes dominantes.

    Dois exemplos vo ajudar a entender quando acabo de afirmar. O primeiro deles tem como

    base a Campanha contra a fome e pela cidadania liderada pelo socilogo Herbert de Souza (o

    Betinho) no incio da dcada de 90. Este movimento nasceu entre a classe mdia e, rapidamente, foi

    envolvendo meios de comunicao, sindicatos, partidos, igrejas, movimentos populares, empresrios,

    artistas, escolas, etc. A afirmao desta campanha no cenrio daquela poca no deve ser buscada

    na novidade do problema, pois a fome e a misria h sculos estabeleceram suas moradas em nosso

    pas, e sim no agravamento das possibilidades de ocorrncia de saques, quebra-quebra e outras

    formas de revolta popular.

    De acordo com as afirmaes de Jos Eduardo Andrade Vieira, ex-presidente do Bamerindus,

    o Brasil estava deixando de ser um pas de pobres para se transformar numa praa de guerra de

    miserveis. Neste contexto, ao incorporar formas de solidariedade que so corriqueiras no quotidiano

    das grandes cidades, as classes dominantes fortaleciam no senso comum a idia de que a soluo

    dos problemas sociais, gerados pela explorao capitalista, no estava na necessidade de mudar o

    sistema, e sim na disponibilidade de cada um doar um pouco do que tinha para o bem de todos. Na

    verdade, havia chegado a hora das elites perderem, momentaneamente, alguns dos muitos anis

    para no correrem o risco de perder os dedos. Neste caso, a interveno de um grupo ganhava

    ressonncia e apoio oficial por representar um instrumento eficaz na manuteno da ordem e ajudar a

    superar um grave momento de tenso social.

    O mesmo no aconteceu, em 1996, com a greve dos petroleiros assumida pela maior parte

    dos sindicatos da categoria. A paralisao das refinarias era a resposta operria a um acordo

    trabalhista no cumprido pela Petrobrs e, de quebra, s investidas da poltica econmica do governo

    contra as classes trabalhadoras. Ainda que no chegasse a representar o incio de uma ruptura em

    relao ordem dominante, o movimento dos petroleiros vinha questionar profundamente o ambiente

    de aparente consenso social em torno das medidas adotadas pelo governo.Para as elites, era fundamental arrancar o mal pela raiz, impedindo que este tipo de ao

    influenciasse outras categorias. Para alcanar este objetivo, a estratgia era simples: prolongar as

    negociaes com os sindicatos enquanto se criava uma falta artificial de gs de cozinha que, ao

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    atingir as camadas mais pobres da populao, alimentaria os atritos no seio das classes

    trabalhadoras cuja revolta contra os petroleiros poderia at legitimar uma eventual ao repressiva.

    Ao levar a greve para o isolamento, as elites conseguiam reabsorver o impacto dos protestos desta

    categoria.

    Este breve painel ajuda a evidenciar que, ao descrever a interveno dos grupos ou das

    categorias, devemos estar atentos s razes que geraram suas manifestaes, perceber at a queponto suas propostas e aes questionam a ordem vigente, levantar as chances de conquistar

    possveis aliados, as respostas das elites e as reais possibilidades destas incorporarem a interveno

    dos grupos ou de lev-los a uma situao de isolamento. Traado este quadro, ser mais fcil analisar

    as potencialidades dos acontecimentos gerados pela ao destes atores, pois ele nos permite dizer

    se representam um processo de luta que tende a se ampliar, um momento isolado da conjuntura ou

    um simples sinal de alerta que pode ser assimilado pelo sistema.

    A presena das classes como ator dominante denota o agravamento da situao de tenso e

    de crise social. diferena dos saques e dos quebra-quebras que, em geral, so expresses

    espontneas de descontentamento cuja conteno no exige mudanas profundas na poltica e naeconomia, a interveno organizada das classes revela uma ttica e uma estratgia que apontam

    para a necessidade de alteraes mais consistentes.

    A histria do Brasil j registrou vrias ocasies deste tipo. Entre elas, vou lembrar aqui a onda

    de greves que varreu o pas entre 1978 e 1979. Encurralada pelo evidente fracasso do milagre

    econmico e pelo ascenso das lutas operrias, a ditadura militar mergulhava numa crise cuja

    superao exigia mudanas profundas. Preste ateno, quando falo em mudanas profundas no

    significa que o sistema capitalista estava prximo do seu fim e sim que as instituies da poca no

    conseguiam se legitimar perante a populao, o que vinha dificultar a manuteno da ordem. Era

    necessrio mudar tudo... para que tudo continuasse do jeito que estava.

    Parece contraditrio, mas no . As palavras do Coronel Geraldo Cavanhari publicadas na

    revista Senhor, em dezembro de 1987, ajudam a entender a lgica com a qual as elites dirigiram o

    processo de mudana. Ao falar sobre o ltimo perodo da ditadura militar, ele diz que a abertura

    democrtica no foi desencadeada com o propsito de construir a democracia. O processo foi

    concebido para operar com segurana a institucionalizao do autoritarismo, mas de natureza civil. A

    soluo encontrada foi ampliar o espao de competio pelo poder do Estado, renovando

    periodicamente a insero da sociedade civil neste jogo. Ou seja, a abertura democrtica no

    implicava no incio de um processo graas ao qual as pessoas iriam ter espao para debater e

    participar diretamente das decises que constroem o futuro do pas, mas seria apenas o momento a

    partir do qual os cidados poderiam eleger os governantes que, usando formas autoritrias, se

    encarregariam de aprofundar a explorao. A diferena que, agora, o povo seria livre de escolher os

    seus algozes.

    Se voc quiser uma prova da veracidade das afirmaes do Coronel Cavanhari pense nas

    perdas salariais que se acumularam do governo Sarney at os nossos dias ou no nmero de medidas

    provisrias que foram promulgadas por nossos presidentes. Por falar nelas, os jornais dizem que,

    durante o mandato de Jos Sarney, as medidas provisrias foram 147, subiram para 160 nos anos do

    governo Collor, chegaram a 505 no perodo em que ele foi substitudo por Itamar Franco ealcanaram o patamar de 3.532 nos primeiros cinco anos de Fernando Henrique Cardoso.1 Somando

    a estes dados o fato de que o Congresso da Unio trabalhou muito pouco em termos de discusso do1Dados publicados em Adriana Vilella, Senadores aprovam restrio s MPs, em Gazeta Mercantil 04/01/99.

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    contedo destas medidas, d pra dizer que a poltica continuou sendo seqestrada da vida das

    pessoas e que ela foi limitada eleio deste ou daquele candidato. Isso faz com que a tal da

    democracia se parea mais com a postura imperial de um Presidente da Repblica ou, no mximo,

    com um cheque em branco entregue a um grupo que se define como legtimo representante da

    vontade do povo.

    A leitura destas linhas j deve ter feito voc entender que s um estudo atento dosacontecimentos e dos atores neles envolvidos capaz de fornecer um nmero maior de elementos

    que ajudam a delinear os rumos da conjuntura. Por isso, guarde com carinho todas as ferramentas

    que j foram apresentadas, d uma boa espreguiada e se prepare porque vem a a anlise dos...

    3. Cenrios.

    Os acontecimentos do dia-a-dia se desenvolvem em determinados espaos que podem ser

    considerados como cenrios. Estou falando, por exemplo, do Congresso Nacional, das Assemblias

    Legislativas, das Cmaras de Vereadores, dos gabinetes e dos corredores destas instituies, dasruas, das praas, das avenidas, dos ptios das empresas, dos tribunais e assim por diante. Mais uma

    vez, a anlise no deve limitar-se a dizer em que cenrios se desenvolve a conjuntura, mas deve

    identificar com a maior preciso possvel se as aes esto acontecendo prioritariamente em campo

    aberto, nas instituies ou nos crculos restritos do poder. Um exemplo vai ajudar a entender melhor

    esta questo.

    Em geral, quando as manifestaes de descontentamento popular tomam conta das ruas, das

    praas, dos ptios das empresas ou dos prdios pblicos, elas tendem a ganhar contornos

    imprevisveis. Este fato preocupa as classes dominantes que se vem obrigadas a responder aos

    conflitos sociais em campo aberto, onde o menor erro pode ampliar os enfrentamentos e desmascarar

    atitudes que vinham sendo negadas pelos senhores do poder.

    Sabendo disso, no deve nos surpreender que a primeira tentativa das elites justamente a de

    criar as condies que permitem deslocar o cenrio do conflito para ambientes onde vai ser mais fcil

    control-lo: o parlamento, os gabinetes, os bastidores, os tribunais e os demais fruns de

    representao que excluem ou, ao menos, inibem a ao direta.

    Como? Deixa ver se entendi direito. Voc est dizendo que esta no uma exclusividade da

    elite e que as prprias lutas nos locais de trabalho tm caminhado no sentido de fazer com que a lei

    transforme em direitos os objetivos dos movimentos reivindicatrios? Ser que esta uma

    demonstrao de que todos os sindicatos esto a servio da ordem? Quer dizer que uma lei que vem

    reconhecer as conquistas obtidas, s vezes, em anos de enfrentamento pode ser algo to ruim

    assim?

    Perguntas como estas revelam que ainda est difcil perceber a realidade como um filme em

    movimento e que, ao v-la como uma fotografia, enxergamos o bem s de um lado e o mal de

    outro. O maior problema desta maneira de interpretar a histria que ela nos impede de perceber o

    conjunto de contradies que produzem o desenrolar dos acontecimentos e a forma pela qual elas

    so constantemente atualizadas pelos prprios acontecimentos e pelos atores que agem no dia-a-dia

    da vida em sociedade. Em outras palavras, no conseguimos perceber que os elementos que, deincio, deram origem e alimentaram um determinado momento histrico, proporcionando o seu

    desenvolvimento, em seguida podem se transformar em obstculos do mesmo. Sim, eu sei que no

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    fcil ver as coisas desse jeito, mas vamos voltar questo que colocvamos algumas linhas atrs

    para que eu possa explicar isso melhor.

    A histria nos diz que, muitas vezes, a luta para inscrever na lei a reduo da jornada de

    trabalho, ou o reajuste dos salrios de acordo com o aumento do custo de vida, deu origem a um

    processo que congregou pessoas e levou criao e ao fortalecimento de organizaes de base. Em

    outras palavras, ela foi a bandeira em torno da qual se realizaram greves, passeatas, manifestaes eprotestos que obrigaram as classes dominantes a reconhecerem direitos at ento negados. Repare

    que nestes casos a fora da ao direta exerceu uma presso to grande sobre as elites que estas

    viram no reconhecimento legal de um direito o nico caminho possvel para fazer refluir os

    movimentos e para no se desmascararem totalmente perante a populao trabalhadora.

    Mas, como dissemos antes, tudo aquilo que, de incio, ajuda... depois pode atrapalhar. De fato,

    aprovada a norma que reconhece um determinado direito, o tribunal passa a ser o ambiente para o

    qual as classes dominantes tentam fazer refluir todas as discusses sobre os casos de no

    cumprimento das normas vigentes. Neste cenrio, a revolta e o descontentamento de trabalhadores e

    trabalhadoras podem ser administrados formalmente sem sobressaltos e sem imprevistos.A lei que, de incio, tinha sido um plo aglutinador para um setor da sociedade, agora se

    transforma no seu contrrio, ou seja, num empecilho que impede o avano das lutas. Em funo

    disso, no podemos dizer que ela foi boa e agora m. Ela apenas constituiu um momento

    necessrio de um determinado desenvolvimento histrico que agora deve ser superado. Isso exige,

    por exemplo, que as lideranas do movimento operrio sindical no se submetam aos limites da

    legislao vigente, mas, ao relacion-la com os mecanismos de explorao, abram os olhos dos

    trabalhadores para a necessidade de destruir a dominao cujo peso havia sido momentaneamente

    aliviado pelo reconhecimento legal de um direito.

    No sei se voc percebeu, mas o primeiro momento da luta j trazia em si vrios elementos

    complicadores. De fato, o reconhecimento legal de um direito quase sempre acaba fortalecendo nos

    trabalhadores a idia de que o horizonte mximo de suas reivindicaes pode se limitar a uma

    negociao mais favorvel do salrio e dos benefcios e que agora os tribunais, por si s, vo se

    encarregar de fazer justia. Por incrvel que parea, a vitria ajuda a consolidar a percepo de que o

    sistema capitalista, em si, bom e que o nico problema justamente o de ir ajustando os

    mecanismos de retribuio do trabalho. Mas, num segundo momento, as novas investidas dos

    capitalistas se encarregam de recolocar na ordem do dia uma velha questo que deve ser novamente

    respondida pelas organizaes dos trabalhadores: vamos nos limitar a controlar as conseqncias

    negativas do sistema ou a nossa ao deve destruir as causas que produzem ricos cada vez mais

    ricos e pobres cada vez mais pobres?

    Voc j deve ter percebido que cada nova ferramenta, acompanhada pelas dicas que

    possibilitam a sua melhor utilizao, nos ajuda a perceber os limites, as possibilidades, os empecilhos

    e a teia de relaes que esto presentes em cada acontecimento, mas que no so visveis a olho nu.

    Por isso, para aprimorar a anlise dos cenrios, bom no esquecer de fazer tambm uma avaliao

    do clima que permeia o ambiente onde se desenvolve o quotidiano da histria. Por exemplo, uma

    passeata que vai ocupando as ruas da cidade num clima tenso, cheio de provocaes e presses por

    parte das foras policiais, aponta para respostas, projetos e preocupaes da elite que se distanciamdas atitudes por ela demonstradas durante as manifestaes populares pela cassao do ex-

    presidente Collor ou at mesmo na campanha das Diretas J!. Naquelas situaes, a presena da

    polcia no tinha um carter de ameaa, mas somente o de garantir que tudo acontecesse sem

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    sobressaltos. Apesar do povo estar ocupando um cenrio aberto e imprevisvel, a sua ao respondia

    necessidade que as classes dominantes tinham de legitimar nas ruas o poder de barganha a ser

    usado para ampliar suas fatias de poder. Nesse caso, o descontentamento popular fazia com que o

    povo se tornasse bucha de canho nas mos de seus dominadores.

    Sim, eu sei que esse negcio de uma coisa poder se transformar no seu contrrio chega a dar

    at dor de cabea e que o fato de cada acontecimento trazer em si os elementos que podememperrar o seu desenvolvimento posterior pode parecer complicado demais, mas a vida movimento

    e deve ser analisada como tal. No d pra parar o mundo, mas imprescindvel conhecer o que,

    como, porque, quando e de que lado o faz girar para poder mudar e reorientar o sentido das coisas.

    Por isso, no desanime, tome um caf que o prximo captulo promete... mais trabalho para todos

    ns.

    4. Correlao de foras.

    Ao agirem no quotidiano da histria, os atores vo tecendo determinadas relaes. s vezes,se trata de algo estvel, duradouro. s vezes, isso no passa de uma convenincia que, apesar de

    aplaudida naquele momento, pode ser rechaada logo em seguida. Mas h tambm os casos em que

    encontramos as foras que agem na sociedade numa situao de co-existncia pacfica, de

    dominao ou at mesmo de subservincia. Conhecer a cada momento a postura e as aes de cada

    um dos atores perante os demais algo decisivo para poder desenhar os desdobramentos que os

    acontecimentos esto preparando.

    Como j fiz em ocasies anteriores, vou dar o pontap inicial com um exemplo. Olhe para uma

    cadeira que est parada sua frente e me diga: quantas foras esto agindo sobre elas? Como

    ningum est mexendo com ela, a resposta parece lgica: nenhuma. primeira vista, a ausncia de

    movimento no permite ver que a cadeira est sendo submetida a duas foras opostas: a da

    gravidade, que a mantm grudada ao solo, e a resistncia do piso que a ela se ope impedindo que a

    cadeira afunde. O fato de ela estar parada indica que ambas as foras esto numa situao de

    equilbrio, e isso d a falsa impresso de que no h nada agindo sobre a cadeira. Mas o que os

    nossos olhos no conseguem ver de imediato, revelado pela anlise atenta do que est por trs

    desta ausncia de movimento.

    Feitas as devidas propores, podemos dizer que na nossa sociedade acontece algo parecido

    quando temos a impresso de que a conjuntura est parada e que, de conseqncia, os atores esto

    deixando de agir. Na realidade, no assim. Para ver isso mais de perto, observe agora uma fbrica

    num dia normal de trabalho. Tudo est funcionando de acordo com as regras: o patro manda, os

    operrios obedecem, a chefia cumpre com o seu papel de controlar a execuo do servio e assim

    por diante.

    primeira vista, ningum pode dizer que neste ambiente esto agindo duas foras com

    interesses opostos: o capital e o trabalho. Como, no momento, ambas esto em equilbrio, temos a

    falsa impresso de que a sua unio e convivncia pacfica no ambiente fabril se deve ao fim da

    explorao que as tornava antagnicas. Uma anlise mais atenta nos ajuda a perceber que a

    situao de equilbrio pode ter sido alcanada graas a movimentos que, sem eliminar osfundamentos do sistema, anestesiam os elementos que poderiam detonar o conflito. Estou falando,

    por exemplo, de uma aliana temporria entre o patro e os trabalhadores para alcanar uma

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    determinada meta de produo em troca de uma participao nos resultados da empresa. Ou, ainda,

    de uma total submisso dos operrios em funo da ameaa de cortes no quadro de funcionrios.

    Este equilbrio tende a ser mais duradouro quando os trabalhadores esto convencidos de que

    a aliana com o patro o nico caminho que pode lev-los a um futuro melhor. Mas ele ser mais

    breve, frgil e facilmente desgastado pelas prprias aes de resistncia dos empregados se tiver

    sido alcanado atravs da represso ou da ameaa de demisso.Olhando agora para os acontecimentos da conjuntura, nossos esforos devem ser dirigidos

    para identificar:

    1. As foras que estabeleceram uma aliana temporria ou permanente e as razes desta

    aliana.

    2. As que se mantm em aberta oposio, as formas pelas quais vm manifestando este

    antagonismo e as reais possibilidades delas realizarem uma crtica contundente s aes da

    elite.

    3. As foras que esto numa situao de equilbrio e a forma como este foi alcanado, por

    aliana ou por total submisso dos opositores.Para cumprir esta tarefa, s temos um caminho: avaliar a cada momento os interesses

    imediatos e de longo prazo dos atores que agem na conjuntura e a maneira pela qual se materializam

    nos acontecimentos do dia-a-dia. S assim, podemos entender, por exemplo, porque os diferentes

    setores das classes dominantes, volta e meia, brigam entre si no interior de um governo que est

    sendo dirigido por eles.

    Ao contrrio do que pensamos, a elite no um bloco homogneo e sim uma composio de

    foras cujo equilbrio depende de sua importncia e de sua expresso na sociedade, da capacidade

    de organizar sua base de sustentao e de desarrumar a casa de seus opositores. Nesta disputa,

    onde est em jogo uma fatia maior de poder e, portanto, de acesso riqueza nacional, uma briga

    interna pode estar sinalizando que o velho equilbrio vai passar por um perodo de transformao ou,

    mais simplesmente, que aquele determinado grupo est tentando aumentar o seu poder de barganha

    obrigando outro a concesses que, no momento, no estavam previstas.

    Outro elemento que no pode passar desapercebido na nossa avaliao da correlao de

    foras, dado pelas fontes que sustentam a legitimidade do grupo que se encontra no poder. Entre

    elas, as principais so: o apoio popular, a maioria dos votos no parlamento e o uso da coero pela

    interveno direta das foras armadas.

    Cada um destas fontes aponta para uma diferente estratgia de conduo da poltica por parte

    das elites. Por exemplo, enquanto Fernando Collor de Mello, sem maioria estvel no Parlamento,

    buscava alicerar os seus desmandos no apoio popular, Fernando Henrique Cardoso optou pelo

    caminho oposto. Consciente da queda de seu prestgio junto ao povo em funo dos efeitos de sua

    poltica econmica, das reformas constitucionais e das denncias de corrupo, suas preocupaes

    se dirigiram no sentido de manter aberto, a qualquer custo, um canal de comunicao e negociao

    com sua base de sustentao no Congresso Nacional. Desta forma, ele garantia os votos necessrios

    para aprovar os projetos que interessavam a amplos setores da elite sem dar muita bola queda dos

    ndices de popularidade.

    Contrariando as aparncias, a utilizao das polcias ou do exrcito para aes repressivasno um sinal de fora e sim de fragilidade do bloco no poder. A coero se torna um meio

    indispensvel para manter a ordem quando as classes dominantes j no conseguem convencer as

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    massas de que o seu projeto de sociedade o nico capaz de realizar seus anseios e atender suas

    necessidades.

    Ainda que todo convencimento seja sempre encouraado por formas abertas ou disfaradas

    de coero, o uso da fora para reprimir o descontentamento o reconhecimento de que os

    problemas e as contradies sociais amadureceram a tal ponto que os meios democrticos j no

    conseguem alcanar um equilbrio entre os setores que compem a sociedade. A mesma democraciaque possibilitou um perodo de explorao e acumulao torna-se agora um empecilho e cede o lugar

    ditadura. Nela, o lobo despe da pele do cordeiro e assume sua verdadeira identidade para tentar

    destruir ou pelo menos, enfraquecer as foras que se ope sua dominao. Vejo que voc est

    coando a cabea. O que disse? Que vai ser difcil lembrar de todas estas ferramentas e dicas que

    esto sendo dadas?

    No se preocupe. Tente utiliz-las pouco a pouco durante a leitura do jornal ou ao ouvir um

    noticirio. Eu sei que agora voc est se sentindo meio perdido, como se estivesse no seu primeiro

    dia de trabalho onde tudo parece estranho, complicado e hostil. Assim como hoje voc tira de letra

    aquelas tarefas que pareciam impossveis, a mesma coisa vai acontecer com o seu esforo deanalisar as conjuntura. Estudando e praticando, tudo se torna mais fcil e compreensvel.

    Para agilizar o trabalho de coleta das notcias que aparecem de forma desordenada e

    dispersa, vai aqui um captulo inteiro sobre...

    5. Como organizar a leitura de um jornal.

    Agora que voc tem uma noo geral do que precisa ser pesquisado e analisado, vou

    apresentar algumas dicas que facilitam o trabalho de coleta das informaes atravs dos jornais e dos

    noticirios.

    A experincia ensina que, no lugar de recortar e arquivar as matrias, mais proveitoso que

    voc organize num caderno um resumo dos dados econmicos e dos principais acontecimentos

    polticos nacionais e internacionais. Ainda que por suas influncias e relaes no seja possvel dividir

    estes blocos em compartimentos estanques, no campo da economia bom se preocupar em registrar:

    As linhas mestras da poltica econmica do governo.

    O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do pas e a participao de cada atividade

    econmica na formao desse ndice.Os investimentos pblicos e privados: quantidades,

    origens dos capitais e setores em que so investidos.

    A evoluo das dvidas interna e externa e, sobretudo, quanto pago em juros e

    amortizaes.

    A situao dos principais setores produtivos (indstria, extrao mineral, agricultura, pecuria,

    construo civil, transporte) tanto em termos de produo de bens e de suas potencialidades

    de desenvolvimento, como perante os desafios da concorrncia internacional.

    As condies em que se encontra o setor de servios e sua participao na economia.

    Os recursos naturais que esto sendo explorados e os que ainda no foram aproveitados.

    A situao da Infra-estrutura: estradas, ferrovias, portos, aeroportos, fontes de energia,

    sistemas de telecomunicao.O comrcio exterior: fluxo de importaes e exportaes, tipo deprodutos, quantidades, pases que compram nossas mercadorias e que vendem ao Brasil o

    resultado de sua produo.

    A distribuio da populao e os fluxos migratrios.

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    Os nveis de salrio, a variao do custo de vida, do emprego e do subemprego.

    A poltica fiscal: tipo de impostos, incidncia e sua utilizao pelo Estado.

    As classes sociais: sua localizao no sistema produtivo, grau de homogeneidade, atuao

    poltica, organizao em partido, processos que levam formao de novas classes e grupos

    sociais ( o caso, por exemplo, dos que foram chamados de excludos).

    A histria econmica do pas ou da regio que est sendo analisada.

    Aparentemente, o levantamento destes dados transforma a conjuntura num emaranhado de

    movimentos e relaes entre mercadorias que parecem ganhar uma vida independente dos seres

    humanos. Por isso, sempre bom lembrar que sem a ao dos homens e das mulheres no haveria

    histria. O estudo da estrutura econmica da sociedade ajuda a compreender o ambiente e os limites

    que condicionam esta ao que alicerada em interesses bem definidos. Ou, como diz Marx no

    Dezoito de Brumaio, os homens fazem a histria, mas no a fazem como querem, sob circunstncias

    de sua escolha, mas naquelas com as quais se defrontam e que lhes so transmitidas pelo passado.

    Por isso, o nosso esforo no deve deixar escapar os acontecimentos que se desenvolvem nocampo da poltica e da formao de um determinado consenso social em torno dos projetos das

    classes dominantes. Para dar conta desta tarefa, registre no caderno tambm os dados sobre:

    Os setores sociais que esto direta ou indiretamente representados por ministros, secretrios e

    assessores de governo que controlam o ncleo estratgico da burocracia do Estado no interior

    da qual se decidem os rumos do pas.

    Os partidos polticos: a composio de sua base parlamentar, os setores sociais que so por

    eles representados, as alianas e os projetos que esto sendo discutidos e viabilizados.

    A composio do eleitorado e a tendncia de voto.

    As organizaes dos trabalhadores e as da classe dominante: seu desenvolvimento,

    interesses, projetos polticos, reivindicaes, a correlao de foras no interior destas

    entidades, as relaes que elas mantm com suas bases, com seus adversrios, com as

    massas populares e com organismos internacionais do mesmo tipo.

    As foras organizadas da sociedade civil: movimentos populares, igrejas, organizaes

    assistenciais e no governamentais. Delas, devemos mapear os objetivos, as estratgias de

    interveno, as contradies e o tipo de insero na realidade local.

    As correntes culturais e suas relaes com os interesses das classes dominantes.

    Os meios de comunicao: seus vnculos com setores econmicos e polticos, o sentido dado

    aos principais acontecimentos, os valores, as idias e as formas de comportamento que

    tentam consolidar no senso comum.

    A propaganda oficial das realizaes governamentais.

    A situao da escola: leis e orientaes que regem o ensino, grau de participao popular e

    efetivas possibilidades de mudanas no ambiente escolar e nas linhas pedaggicas adotadas.

    Nunca demais lembrar que a anlise de conjuntura no pode limitar-se a resumir e a ordenar

    aquilo que os atores sociais dizem de si mesmos e de suas aes, mesmo porque um batedor decarteiras nunca diria que se sente seguro numa praa cheia de policiais. Nossos esforos devem

    relacionar a cada momento as mudanas, os conflitos, os problemas e as contradies que se

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    manifestam na sociedade com as formas pelas quais os atores tomam conscincia desses elementos

    e encaminham a sua soluo.

    Isso vai nos ajudar a perceber at a que ponto as suas respostas se limitam a corrigir sintomas

    ou se preocupam em ir raiz dos problemas e a delinear os caminhos pelo quais as elites mantm a

    sua dominao e chegam at mesmo a ganhar o apoio das prprias classes trabalhadoras. O fato de

    conhecer profundamente o como e o porqu das coisas, vai nos ajudar a preparar as mudanasque se fazem necessrias para colocar o ser humano, e no o lucro, no centro das preocupaes da

    vida em sociedade.

    Dito isso, seria um erro acreditar que possvel traar uma anlise de conjuntura sem levar em

    considerao o panorama internacional no qual se insere a realidade do pas. No uma novidade

    para ningum o fato de que o Brasil se encontra numa situao de dependncia em relao s

    polticas econmicas traadas pelos pases do primeiro mundo e sofre as conseqncias de suas

    decises. neste sentido que, alm do quadro poltico e econmico nacional, a nossa coleta de

    informaes dever incluir:

    A situao econmica e os investimentos nas e das grandes potncias (Estados Unidos,

    Alemanha, Japo, China e Rssia) e nos principais pases da Amrica Latina (Mxico e

    Argentina).

    Os dados sobre a produo de mercadorias de grande importncia para a economia mundial

    (petrleo, produtos agrcolas, minrios, etc.).

    As projees e as medidas que vm sendo apresentadas e implantadas por organismos

    internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetrio Internacional e a Organizao

    Mundial do Comrcio.

    As lutas e a postura das classes trabalhadoras desses pases.

    Ao levar adiante o trabalho de coleta de dados, no se deixe orientar s pela preocupao de

    descrever o desenrolar dos acontecimentos, mas procure sempre investigar as relaes que no so

    visveis primeira vista, mas que podem ser desvendadas atravs do resgate da histria. Ao

    questionar a realidade em suas manifestaes, vrias peas do quebra-cabea que pareciam inteis

    ou redundantes podem comear a fazer sentido e a abrir o acesso a aspectos do quotidiano que, por

    ficarem ocultos, impediam de relacionar cada parte com o todo e o todo com cada uma de suas

    partes.

    6. O corte conjuntural.

    s vezes o jornal to rico de acontecimentos que voc pode achar que j tem todos os

    elementos para entender a realidade e delinear os seus futuros desdobramentos. Ainda que as

    notcias sejam recheadas de dados que nos levam a dar alguns passos nesta direo, provavelmente,

    as projees que elas permitem fazer so bem limitadas, incautas e sofrem da falta daqueles

    elementos que j vinham marcando presena na histria e que necessrio resgatar com o devido

    cuidado.Em outras palavras, como se voc tentasse avaliar o desempenho de um time de futebol e

    opinar sobre o possvel resultado do jogo somente a partir da imagem congelada de um zagueiro que

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    est passando a bola. Para alm da descrio de tudo aquilo que acontece nesta cena, qualquer

    palpite seria puto chute.

    Ao analisar a ao do zagueiro, voc vai perceber que faltam respostas s perguntas que

    poderiam orientar as suas previses: h quanto tempo o jogo comeou? Qual resultado parcial?

    Qual a situao dos dois times no campeonato? Qual tem sido o desempenho dos atacantes, da

    defesa e dos goleiros de ambas as equipes? Estamos no final ou no incio do campeonato?Ou seja, para projetar com certa preciso o resultado do jogo, fundamental que ele seja

    entendido e estudado dentro de um processo maior que est em movimento e do qual a cena do

    zagueiro apenas uma parte que, ao mesmo tempo, produto deste processo e produtora de

    elementos que iro atualiz-lo e daro origem a outras jogadas.

    Voltando para a anlise da realidade, podemos dizer que a conjuntura um momento de um

    perodo histrico que vem se desenvolvendo e est alicerado numa estrutura econmica, poltica e

    social que se insere num determinado contexto de relaes internacionais. Quanto mais prolongado

    for o momento conjuntural que est sendo estudado, maiores sero as chances de projetar os

    acontecimentos que se aproximam.Mas, ser que depois de uma semana j vamos ter elementos suficientes para fazer isso?

    Talvez sim, talvez no. No existe um corte conjuntural que possa ser considerado padro, pois as

    mudanas da conjuntura podem ocorrer em anos, meses, semanas, dias e at mesmo horas. A

    alterao da poltica econmica do governo ou a ecloso de um golpe militar, por exemplo, podem

    alterar o momento presente em tempos e ritmos diferenciados.

    Enquanto o perodo histrico pode ser medido em anos ou dcadas e o movimento das

    estruturas se processa em prazos ainda mais amplos, a conjuntura sofre constantemente pequenas e

    grandes alteraes que ora consolidam de uma forma qualitativamente diferente o resultado de

    longos anos de evoluo de determinadas opes no campo da economia, da poltica, da formao

    do consenso social, ora projetam desafios que exigem respostas imediatas.

    Uma dica para comear com o p direito pode ser esta: depois de analisar os jornais da

    semana, com base nas suas observaes, tente escrever em poucas linhas o possvel desfecho dos

    acontecimentos. Na semana seguinte, voc ter duas tarefas. A primeira ser ainda a de coletar e

    estudar os acontecimentos. A segunda, a de avaliar at a que ponto as suas previses se

    concretizaram e quais so os elementos da realidade que, por estarem faltando ou no terem sido

    levados em considerao, ajudaram a produzir os erros que voc est constatando. Com base neste

    trabalho, o fim de semana aguarda uma nova rodada de projees para o futuro iminente.

    Alm de aprimorar uma disciplina de estudo e a capacidade de observar a realidade, pouco a

    pouco, todo este esforo vai ajudar a perceber como cada elemento da conjuntura , ao mesmo

    tempo, o resultado do desenvolvimento do perodo histrico e das estruturas e um agente que

    contribui para atualizar e fazer progredir este ambiente que o produziu.

    Para explicar isso melhor, vou usar como exemplo o Plano de Obras Pblicas, iniciado por

    Vargas em 1939, que teve entre suas principais realizaes a construo da hidroeltrica de Paulo

    Afonso, da Companhia Siderrgica Nacional e a criao da Companhia Vale do Rio Doce. Fruto da

    resposta aos desafios impostos ao Brasil pela crise de 1929, (conhecida como Crise do caf) o

    Plano vinha sacramentar uma nova forma de interveno do Estado na economia ao mesmo tempoem que alterava a estrutura produtiva do pas.

    Alm de servir para consolidar a ditadura do Estado Novo de Vargas, a sua progressiva

    realizao oferecia indstria as condies necessrias para elevar a sua participao na produo

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    da riqueza nacional e fortalecer o poder de seus representantes no interior do grupo dominante. Com

    sua importncia econmica reduzida, os cafeicultores perdiam espao enquanto a burguesia industrial

    aumentava o seu peso e a sua influncia nas decises que eram tomadas pelos vrios rgos do

    Estado.

    Bom, se verdade que uma anlise completa das causas e dos efeitos gerados pelos

    acontecimentos s possvel aps um certo perodo de tempo, tambm verdade que o esforo derelacionar a conjuntura com o perodo histrico e o desenvolvimento das estruturas nos ajudar a

    visualizar os caminhos do futuro e a aprimorar os instrumentos que nos permitem transform-los.

    Sabendo disso, vou usar as prximas pginas para esboar melhor os elementos que pem em

    movimento a realidade do dia-a-dia.

    7. A sociedade no uma nau sem rumo.

    Mesmo que, primeira vista, os acontecimentos que se desenrolam sob os nossos olhos

    parecem ser obra do acaso, voc j deve ter percebido que as mos que tecem a trama das relaessociais pertencem a atores que tm uma identidade, um papel e interesses bem definidos. Em outras

    palavras, para podermos analisar a conjuntura, precisamos sempre levar em considerao os eixos

    centrais que comandam o funcionamento da nossa sociedade: as contradies do sistema capitalista.

    Acontecimentos, atores e correlao de foras so, ao mesmo tempo, produto e produtores de

    uma realidade que, no capitalismo, orientada pela obteno e acumulao de lucros nas mos dos

    donos dos meios de produo que se apropriam da maior parte da riqueza produzida pelo trabalho

    coletivo da sociedade.

    em torno desta contradio central que, a nvel econmico, poltico e da formao da

    conscincia social, se constroem blocos de interesses. Os que querem que as coisas continuem como

    esto se unem e desenvolvem determinadas relaes com ou contra os que querem mud-las. O

    resultado o desenrolar dos acontecimentos.

    Para ter uma anlise de conjuntura, alm de lembrar o rumo que orienta as aes dos grupos

    no poder, necessrio pesquisar e estudar que outras contradies so produzidas no quotidiano das

    classes sociais pela acumulao capitalista e como as elites procuram garantir sua mxima expanso

    e fortalecimento ao mesmo tempo em que coordenam seus interesses com os das classes

    subalternas. Ficou difcil, no ? Agenta firme que a vo dois exemplos para explicar quanto acabo

    de dizer.

    Provavelmente, voc j ficou revoltado diante da destruio de produtos agrcolas como arroz,

    feijo, cebola e tomate. Parece impossvel que isso possa acontecer justo num pas onde morrem

    cerca de mil crianas por dia pelos efeitos da fome. Diante deste absurdo, uma anlise apressada dos

    acontecimentos se limitaria a responsabilizar a estupidez dos produtores e a m administrao do

    governo que poderia resolver o problema da abundncia fazendo com que os famintos se

    encontrassem com a comida. Se as nossas observaes permanecem neste nvel superficial,

    dificilmente poderemos desvendar as relaes que se escondem por trs deste acontecimento e,

    muito menos, vamos conseguir ter uma viso clara das tarefas que se fazem necessrias para corrigir

    esta contradio to gritante.Vejamos. Se verdade que na nossa sociedade tudo orientado para a obteno de lucros a

    serem embolsados por poucos atravs da produo e venda de mercadorias, bvio que cada

    indivduo orienta seus investimentos para o setor que oferece uma melhor retribuio para o seu

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  • 8/3/2019 Dicas para uma anlise de conjuntura - Emilio Gennari

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    dinheiro. Se a escassez de tomates na safra anterior proporcionou boas margens de lucro aos

    agricultores, provavelmente, mais gente deve ter resolvido plantar tomates no para atender

    necessidade humana de saciar a fome e sim para tentar garantir um bom retorno ao dinheiro

    investido. A grande quantidade de produto que espera a hora de ser vendido provoca uma queda nos

    preos do tomate e, com ela, uma reduo das taxas de lucro que cada agricultor esperava obter.

    Se no lugar de destruir o excedente produzido, os agricultores resolvessem distribu-lo, secriaria uma situao ainda pior do ponto de vista dos ganhos que esto sendo esperados. De fato, at

    mesmo quem dispe de dinheiro para comprar tomates acabaria ficando na fila dos que esperam

    receb-los de graa. Mas se forem destrudas vrias toneladas desta mercadoria, a reduo da oferta

    vai provocar um aumento dos preos e, com ele, das esperanas de obter lucros compensatrios.

    A contradio bsica do sistema (produo coletiva da riqueza, apropriao privada,

    capitalista, da mesma) acaba de gerar uma srie de outras que, de tempos em tempos, voltaro a se

    apresentar nos demais setores da economia propondo a destruio da abundncia em meio a uma

    situao de grande pobreza. claro que, em caso de revolta dos famintos, as classes dominantes

    tentaro conter o seu descontentamento demitindo ministros e secretrios, distribuindo cestasbsicas, criando frentes de trabalho ou coisas parecidas, pois, sempre melhor perder alguns anis

    do que correr o risco de perder os dedos.

    Como segundo exemplo, vou usar o da ideologia do pequeno produtor. Diante do aumento

    dos excludos, que tem suas origens nas contradies do sistema, uma das sadas apontadas pela

    burguesia vai no sentido de convencer os indivduos a montarem o seu prprio negcio. O elo de

    ligao entre os interesses dominantes e os demais setores da populao construdo atravs da

    idia de que, no capitalismo, ser empresrio no apenas uma questo de sorte e sim uma realidade

    que se projeta no horizonte daqueles que desejam realmente subir na vida pelo prprio esforo. Ao

    fortalecer esta viso de mundo entre o povo simples, as elites matam vrios coelhos com uma

    cajadada s. Entre eles, com certeza os quatro que seguem:

    1. Criam um ambiente de sonho em nome do qual muita gente vai se dedicar produo ou

    distribuio de mercadorias atravs de micro e pequenas empresas cuja sobrevivncia

    depende diretamente dos interesses das mdias e grandes. Diante da necessidade de garantir

    preos competitivos para se afirmar no mercado e atender s demandas dos grandes

    empresrios, este exrcito de novos empreendedores vai usar e abusar do subemprego, das

    longas jornadas de trabalho, dos baixos salrios, do trabalho infantil e de todas aquelas

    prolas que so uma afronta a tudo aquilo que poderamos chamar de uma condio de

    trabalho digna de qualquer ser humano.

    2. Ao comprar das mdias e grandes empresas o maquinrio necessrio para a produo das

    matrias-primas que sero por elas adquiridas, estes novos candidatos a patro desembolsam

    quantias considerveis em troca de verdadeiras sucatas. Ao mesmo tempo, proporcionam ao

    grande capital a reduo dos gastos na compra dos novos equipamentos que se fariam

    necessrios para diminuir os custos de produo se esta no passasse a ser assumida pelo

    exrcito de micro e pequenas empresas que sero suas fornecedoras.

    3. Ajudam a manter sob controle o grau de tenso e conflito social na medida em que projetam

    possibilidades de gerao de renda. Apesar de poucos terem sucesso e crescerem de acordocom o esperado, a existncia destes felizardos faz com que as elites possam chamar de

    incompetentes, acomodados e preguiosos quantos j foram falncia ou permanecem na

    pobreza.

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    4. Mesmo vendo frustradas suas esperanas de ascenso social, os nossos pequenos

    empreendedores tendem a no perceber as verdadeiras razes de seu fracasso.

    Provavelmente, vo manter de p a iluso de poder crescer e se tornar patres sem perceber

    que, se esta fosse uma possibilidade real para todos, estaria decretada a morte da prpria

    burguesia, cujas chances de sobreviver so diretamente vinculadas existncia de uma

    massa crescente de pessoas exploradas.Aparentemente, a idia de cada um montar o seu negcio, parece capaz de resolver as

    contradies do sistema. Na verdade, ela apenas consegue construir um equilbrio instvel entre os

    interesses das classes dominantes e a situao em que se encontram os trabalhadores e as

    trabalhadoras da nossa sociedade. A frustrao, a revolta, a precariedade das condies de vida dos

    excludos podem criar vrios elementos capazes de ameaar este equilbrio de foras. Isso vai obrigar

    as elites a enveredar por outros caminhos que, atravs do convencimento ou da coero, procuraro

    os meios para anestesiar novamente as contradies que ameaam o sistema.

    Como voc j deve ter percebido, no basta manter os olhos bem abertos. necessrio que

    eles sejam equipados com uma viso de raios X para penetrar fundo na realidade e desvendar oselementos que a sustentam. Por isso vai a mais uma dica importante.

    Se voc observar atentamente a maneira pela qual os acontecimentos so apresentados pelos

    meios de comunicao, vai perceber que, em geral, as elites atribuem o movimento da conjuntura

    interveno de causas externas que, por serem imprevisveis, fortalecem a idia de que tudo obra

    do acaso. De acordo com esta viso, por exemplo, os saques ocorrem apenas devido ao de

    baderneiros e agitadores e no porque existe um caldo de cultura que permite a expresso da revolta

    coletiva incentivada por quem, por desespero ou conscincia, decidiu no passar fome.

    Ou seja, ao fortalecer a percepo de uma causa externa como sendo a responsvel pelo

    saque, as classes dominantes tentam impedir que sejam percebidas e analisadas as contradies e

    os problemas que so parte do sistema e sem os quais a ao dos agitadores no produziria efeito

    algum. Se no houvesse famintos revoltados, o grito de um indivduo que incentiva a saquear o

    supermercado receberia uma resposta bem diferente. Provavelmente, as mesmas pessoas que esto

    fazendo as compras somariam esforos para det-lo e entreg-lo polcia.

    Repare que se as causas externas podem ser aquelas que detonam as mudanas, as

    contradies internas ao ambiente constituem a base sobre a qual elas iro agir. Vou explicar isso

    melhor atravs de um exemplo tirado da vida de todos os dias. Como voc sabe, para que o ovo se

    transforme em pintinho, se faz necessria uma causa externa chamada galinha chocadeira. Aps

    vrios dias de choco, do nosso ovo nasce um pintinho. Isso possvel porque no interior da casca j

    existiam os elementos necessrios formao do pintinho.

    Numa ao maldosa, troque agora um dos ovos de verdade por um daqueles de plstico que

    se vendem nas lojas. Ele pode ter forma, cor, tamanho e peso de um ovo e pode ser to bem feito a

    ponto de enganar a prpria galinha. O nico problema que ele no tem em si os ingredientes que

    podem dar origem a um pintinho e, mesmo aps o dobro dos dias de choco, o nico resultado ... um

    calo na bunda da coitada da galinha. Ou seja, se o ovo no traz em si os elementos capazes de dar

    origem sua transformao em pintinho, de nada adianta a ao externa da galinha.

    Com o dia-a-dia da vida em sociedade acontece a mesma coisa. As causas externas sdetonam um processo quando os elementos deste j estavam presentes no quotidiano. Por isso,

    algumas pginas atrs, j constatvamos que os acontecimentos so o resultado da ao de vrias

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    causas e, ao se manifestarem, se tornam eles mesmos uma causa que ir produzir novos

    acontecimentos.

    Ao lembrar dos objetivos que a sociedade persegue, do conjunto de causas e efeitos que nela

    se entrelaam, do tamanho de seus problemas e contradies, a nossa anlise de conjuntura deve

    captar o movimento da realidade no estgio em que ele se encontra. Quanto mais aprimorado for este

    processo, melhores e mais precisos sero os elementos de reflexo e ao que sero oferecidos aostrabalhadores e s trabalhadoras que se preocupam em entender o mundo para mud-lo.

    8. Tendncias, acidentes, manifestaes subordinadas.

    Se a anlise de conjuntura um instrumento indispensvel para que tenhamos melhores

    condies de intervir na realidade, ela no pode limitar-se a apresentar as mudanas que ocorrem na

    sociedade, mas deve traar tendncias que permitam definir linhas concretas de ao. Ou seja, uma

    vez coletados e analisados os dados, somos chamados a responder a uma pergunta incmoda: tudoisso... vai dar no que?

    Sim, eu sei que ningum tem bola de cristal para prever o futuro com todos os detalhes do

    caso, mas aqui se trata de listar possibilidades de desenvolvimento dos prprios acontecimentos que

    nos permitem ponderar as potencialidades e os limites das aes que empreenderemos. Graas a

    elas, no s poderemos nos prevenir de situaes desgastantes, como saberemos explicitar de

    maneira mais eficiente as contradies que esto se avolumando, a necessidade de usar

    determinados instrumentos para resolv-las e para produzir uma nova correlao de foras capaz de

    desmascarar e vencer nossos adversrios. No por acaso que, ao comparar a necessidade de

    traar tendncias com a medicina, Maquiavel escreve: Da tsica, dizem os mdicos que no comeo

    do mal fcil de curar e difcil de conhecer, mas depois, com o passar do tempo, se no foi logo

    conhecida e medicada, torna-se fcil de reconhecer e difcil de curar.

    Em outras palavras, quanto mais precoce e preciso for o diagnstico do desenvolvimento da

    realidade, melhores sero as possibilidades de dirigirmos a ao para criar as condies que mais nos

    aproximam do objetivo de acabar com toda forma de explorao. s vezes, podero ser s pequenos

    passos, mas eles no podero ser dados se os nossos movimentos no tiverem clareza da sua

    importncia ou se derem a reboque dos momentos que so propostos pelas elites e nos limites que

    elas impem. Descobrir a doena quando ela est em estgio avanado fcil, s que a sua cura vai

    se dar em condies bem mais difceis e delicadas.

    Sublinhada a necessidade de traar tendncias, importante resgatar que nem tudo pode ser

    previsto. Nas idas e vindas da conjuntura, freqentemente, nos deparamos com algo totalmente

    inesperado: os acidentes. Estou falando, por exemplo, da morte de uma figura de destaque, de uma

    catstrofe natural, da falta abrupta de um produto essencial ou at mesmo da represso a um

    movimento grevista que, contrariando as expectativas, transforma o protesto de um grupo de

    trabalhadores numa rebelio de contornos incontrolveis. por isso que podemos chamar de

    acidentes aqueles acontecimentos que, de forma imprevisvel, alteram a conjuntura e podem produzir

    mudanas bruscas em seu desenvolvimento.Alm dos acidentes, s vezes, nos deparamos com manifestaes que chamamos de

    subordinadas. Ao se desenvolverem, elas questionam os rumos da sociedade e, apesar de estarem

    subordinadas lgica dominante, so fonte de preocupao para as elites. Para explicar isso melhor,

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    vou usar como exemplo a realidade dos camels. Em geral, trata-se de ex-trabalhadores e ex-

    trabalhadoras assalariadas que vivem vendendo todo tipo de mercadorias. Por suas caractersticas,

    os camels no tm um papel determinante no conjunto das foras produtivas da nossa sociedade e

    suas atividades, anseios e realizaes obedecem lgica dominante. Ainda assim, em sua luta pela

    sobrevivncia, os seus interesses entram em conflito com os dos lojistas que os acusam de tirar deles

    parte da freguesia de baixa renda, de no pagar impostos e de trabalhar com produtos deprovenincia duvidosa. Pressionado por interesses opostos, o poder pblico tem agido ora no sentido

    de reprimir ora de disciplinar os camels, removendo-os para lugares onde seja reduzida a sua

    interferncia nas atividades dos lojistas. Como isso embute uma ameaa s suas condies de vida,

    as medidas tomadas pelas prefeituras tm desencadeado tenses, conflitos e protestos de todos os

    tipos. Ou seja, somando o aumento do desemprego e da excluso com os passos j consolidados

    pelos camels, podemos dizer que esta manifestao da conjuntura, que no questiona a orientao

    da sociedade para a busca do lucro, promete desenvolvimentos inesperados que, de tempos em

    tempos, vo obrigar as elites a se debruar sobre estes efeitos colaterais de suas prprias diretrizes

    de ao.Por suas caractersticas, podemos comparar as manifestaes subordinadas passagem de

    um cometa a grandssima distncia da terra. Ainda que ela possa trazer informaes importantes para

    a nossa compreenso do universo, a sua presena momentnea no ameaa o equilbrio do sistema

    solar, ao contrrio, sua rbita e seu futuro esto subordinados e dirigidos pelos movimentos que

    ocorrem neste mesmo sistema. As manifestaes subordinadas, portanto, merecem as nossas

    atenes, mas seu peso na conjuntura deve ser avaliado atravs de um estudo atento das

    caractersticas e das contradies que explicam e orientam o seu desenvolvimento.

    Eu sei que o seu cansao j deve estar batendo feio em funo desta chuva de dados,

    elementos, dicas, observaes e etceteras que est caindo na sua cabea. No fcil, mas agente

    firme que j estamos nos aproximando do fim do nosso trabalho de reconhecer e aprender a montar

    cada pea do quebra-cabea da realidade.

    9. Principais erros de uma anlise de conjuntura.

    Muitas vezes j tenho me deparado com anlises que so um enunciado de consideraes

    gerais: estamos no capitalismo... neste sistema a burguesia explora o trabalho dos operrios... h

    uma luta de classes... nesta luta o proletariado procura derrotar os seus dominadores.... o que

    poderia ser chamada de anlise relgio quebrado. Apesar de no estar funcionando... acerta a hora

    duas vezes por dia.

    Afirmaes to genricas como aquelas que acabo de apresentar so bastante comuns e

    demonstram que seus autores esqueceram de algo fundamental numa anlise: a necessidade de

    captar o movimento da histria naquele momento especfico. Ao compreender cada aspecto das

    contradies e dos problemas que esto presentes neste movimento, a anlise deve apontar o que

    distingue os acontecimentos do presente de outros semelhantes que se manifestaram no passado,

    como as foras sociais esto agindo para super-los e qual o possvel desdobramento que resultar

    da ao dos atores sociais envolvidos. Sem este tipo de avaliao, impossvel perceber como aconjuntura, o perodo histrico e as estruturas se condicionam e se atualizam mutuamente produzindo

    os passos do futuro.

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    No lugar de servir para iluminar os acontecimentos, a anlise relgio quebrado espera que a

    realidade confirme suas previses assim como o passar do tempo faz com que os ponteiros parados

    dem a hora certa duas vezes por dia. Por ser extremamente vaga, ela d a impresso de estar

    interpretando corretamente o quotidiano da vida em sociedade e, por incrvel que parea, convence.

    Para quem havia previsto uma luta entre burgueses e proletrios, toda e qualquer greve comprova o

    acerto de sua avaliao. Agora, por no compreender a especificidade deste acontecimento, elanunca vai nos dizer, por exemplo, se ele uma casualidade, se aponta para o ascenso de um

    processo de lutas ou se fecha um determinado momento da conjuntura. Enfim, este tipo de anlise

    totalmente incapaz de delinear tendncias que ajudem trabalhadores e trabalhadoras a aprimorarem a

    sua interveno na sociedade.

    A superficialidade , sem dvida, outro erro muito comum. Vou chamar de superficial aquele

    estudo que se limita a descrever o que pode ser visto por qualquer pessoa que ande pelas ruas de

    olhos abertos. A riqueza de detalhes d a impresso de que ela est mostrando o real em todas as

    suas manifestaes, mas, na verdade, ela no consegue desvendar as relaes que se escondem

    nos acontecimentos. Por exemplo, ao avaliar as necessidades da reforma da previdncia, muitasanlises produzidas pela prpria esquerda aceitavam como ponto de partida o dado divulgado pelo

    governo de que havia aumentado o nmero dos que usufruam dos benefcios em relao ao dos

    contribuintes e chegavam a concluses parecidas com aquelas que estavam sendo apontadas pelos

    empresrios. Apesar de tantos nmeros, estatsticas e discursos emocionados, poucos paravam para

    avaliar que:

    1. Do total de recursos que entram no caixa da previdncia, 85% so contribuies que incidem

    sobre os salrios e que, portanto, longos anos de arrocho haviam ajudado a encolher a

    quantidade de dinheiro disponvel para o pagamento das penses e das aposentadorias.

    2. De cada 100 trabalhadores empregados, somente 43 tm carteira assinada ou so autnomos

    com as contribuies previdencirias em dia.

    3. A sonegao est na casa dos 40% do total arrecadado e o prprio governo o maior devedor

    da previdncia social. Se isso no bastasse, a administrao federal permitiu que o nmero de

    fiscais casse de 1 para cada grupo de 250 empresas em 1975, para 1 fiscal para cada grupo

    de 1500 estabelecimentos em 1997.

    4. As contribuies recolhidas para a previdncia, freqentemente, so usadas pelo governo para

    outros fins.

    5. Ao pressionar o governo pela reforma, os empresrios buscavam reduzir os encargos sociais e

    abrir caminhos para a flexibilizao da legislao trabalhista. Em nome de um elevado custo

    da fora de trabalho, os patres procuravam formas de arrochar ainda mais os salrios e os

    benefcios.

    6. Graas ao clima de incerteza criado pela discusso das novas regras da previdncia, a postura

    dos banqueiros j estava engordando o patrimnio dos fundos de penso.

    7. Sabendo que a esperana de vida dos trabalhadores que recebem at cinco salrios mnimos,

    em mdia, no passa dos 64 anos, possvel perceber que a soluo do dficit da previdncia

    viria da impossibilidade material da grande maioria dos trabalhadores conseguir chegar idade

    mnima para a aposentadoria, apesar de ter contribudo com toda uma vida de trabalho esacrifcios.

    Listei rapidamente alguns dados e relaes que se escondiam no processo de reforma da

    previdncia para mostrar que, sem eles, toda anlise daquela conjuntura correria o risco de ser

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    superficial. Para evitar este erro, o estudo da realidade deve desmont-la nas partes que a compem

    e estabelecer o papel, as relaes e os interesses de cada um dos atores. Visualizado o jogo de

    presses, estabelecido o poder de barganha dos que dele participam e sua capacidade de ganhar a

    adeso de outros setores sociais, possvel delinear com clareza e profundidade os desdobramentos

    da conjuntura e a evoluo de suas contradies.

    Mas isso no tudo. O subjetivismo outro erro no qual comum incorrer ao analisar arealidade. Ele se d quando, consciente ou inconscientemente, assumimos o papel de torcedor. No

    lugar de avaliar friamente o andamento do jogo e as razes que levam a este ou quele placar,

    acabamos torcendo por um resultado favorvel ao nosso time. nesse sentido que, por exemplo, um

    saque a um supermercado apresentado como o incio de um processo de insurreio, ou o elevado

    grau de descontentamento popular torna-se sinnimo de certeza de vitria das oposies nas

    prximas eleies.

    Neste caso, o envolvimento com a realidade to grande que quem a analisa deixa de avaliar

    as aes que ainda podem ser tentadas pelos poderosos e, em geral, esquece que o inimigo tambm

    joga para ganhar. O maior problema do torcedor no est na sua maneira apaixonada de viver osacontecimentos, e sim em deixar que o sentimento ocupe o lugar da razo e passe a falar em nome

    dela projetando uma histria que no corresponde realidade dos fatos.

    A unilateralidade o ltimo erro sobre o qual quero chamar a sua ateno. Ele ocorre quando

    quem analisa a conjuntura superestima uma de suas manifestaes e, iluminado por ela, julga todos

    os acontecimentos. Manifestaes de descontentamento no interior das foras armadas, por exemplo,

    podem ser julgadas como uma ameaa de golpe sem sequer avaliar se as classes dominantes se

    encontram to enfraquecidas a ponto de serem obrigadas a lanar mo deste instrumento de

    interveno. Por isso, quem analisa a conjuntura deve cuidar para que sua anlise abranja os

    diferentes aspectos dos problemas e das contradies que se manifestam nos acontecimentos

    histricos e ponderar de forma equilibrada quais deles so principais ou secundrios no seu

    desenvolvimento.

    Bom, a parte terica pra por aqui. O problema que para aprender a analisar a conjuntura

    no basta lembrar de todas as ferramentas e das dicas que foram dadas. necessrio utiliz-las e

    pratic-las com dedicao e empenho. Sabendo das dificuldades do dia-a-dia, este trabalho termina

    convidando voc a exercitar os instrumentos de anlise em cima de uma realidade que a histria j se

    encarregou de resolver e que, portanto, vai lhe fornecer logo a correo dos possveis erros e acertos

    do seu esforo de se debruar sobre os acontecimentos. Por isso, vou me despedir com um material

    sobre...

    10. A Revoluo Inglesa: um bom exerccio de anlise.

    Quando estamos totalmente envolvidos com a realidade que queremos analisar, muito difcil

    nos afastarmos dela o suficiente para examin-la em profundidade sem cometer os erros apontados

    no captulo anterior. Por isso, para treinar a capacidade de observao e a utilizao das ferramentas

    apresentadas, vai aqui um material sobre uma parte do perodo histrico conhecido como Revoluo

    Inglesa e, precisamente, sobre os acontecimentos que se estendem entre 1603 e 1658 na que hojeconhecemos como Gr Bretanha.

    O contexto no qual eles se desenvolvem caracterizado pela passagem do feudalismo ao

    capitalismo. Neste perodo, nas regies agrcolas, a nobreza adota uma nova forma de utilizar a terra.

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  • 8/3/2019 Dicas para uma anlise de conjuntura - Emilio Gennari

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    Vendo na comercializao da l para as manufaturas uma grande fonte de riqueza, os nobres

    resolvem expulsar os servos que trabalhavam em suas terras para que as mesmas sejam cercadas e

    usadas para criar ovelhas. Este enorme contingente de empobrecidos, que, de uma hora pra outra, se

    v privado dos meios que garantiam sua sobrevivncia, alimenta o exrcito de pobres e mendigos que

    vai perambulando em busca de uma maneira de matar a fome.

    Enquanto isso, nas cidades vo nascendo os que poderiam ser chamados de os primeirospatres daquela que ser a futura indstria da Inglaterra. As manufaturas que esto se formando

    empregam ex-artesos e camponeses expulsos de suas terras. A nova maneira de produzir a vida

    em sociedade convive com um ambiente onde esto ainda presentes a produo e a organizao dos

    artesos e no qual as velhas classes dominantes, a nobreza e o clero, ditam os passos da vida

    coletiva.

    Ao lado dessas transformaes econmicas, necessrio sublinhar que o exerccio do poder

    no est mais concentrado nas mos dos vrios senhores feudais, e sim nas de reis que mandam em

    naes j unificadas. Estas monarquias dispem de dinheiro e de condies polticas e militares

    suficientes para propiciar as grandes viagens martimas rumo descoberta de novas terras a seremexploradas e com as quais estabelecer relaes comerciais que permitam um ulterior enriquecimento

    das classes que se encontram no poder. Neste contexto, a burguesia comercial se alia, inicialmente,

    aos reis e nobreza e s bem mais tarde se colocar ao lado dos patres das manufaturas.

    A religio outra questo importante para entender o desenrolar dos acontecimentos da

    poca. Em todos os pases prevalece o catolicismo, mas as contradies que se desenvolvem no

    interior de cada nao levam a cises importantes como a Reforma Protestante na Alemanha e o

    Anglicanismo na Inglaterra.

    Bom, delineado o pano de fundo no qual se desenvolve a conjuntura, a seguir, voc

    encontrar sete boletins que se referem a uma seqncia de perodos histricos e que serviro de

    fonte de informao. O exerccio de anlise consiste no seguinte: dos primeiros seis boletins, devero

    ser mapeados os principais acontecimentos, os atores, os cenrios dominantes, o clima em que se

    desenvolve a trama social, a correlao de foras (quem se alia com quem contra quem) e as

    tendncias para o prximo perodo.

    Como proceder: analise o primeiro boletim (as duas pginas seguintes) e elabore as

    tendncias. Para ver se as suas previses so confirmadas pela realidade, basta ler e mapear os

    principais acontecimentos do segundo boletim. Faa com este o mesmo trabalho e, em seguida,

    verifique nos acontecimentos do terceiro se voc acertou as tendncias para o prximo perodo e

    assim por diante.

    Caso as previses no se confirmem, importante que seja retomada a leitura do material que

    serviu de base para delinear acontecimentos, atores, cenrios, etc., e que voc tente encontrar os

    erros que ocorreram na anlise levantando os aspectos da realidade que no foram devidamente

    avaliados.

    Ao todo so seis exerccios aps os quais o seu esprito de observao estar mais treinado

    para enfrentar o desafio de entender e montar as peas que compem o quebra-cabea da nossa

    sociedade atual.

    Portanto, mos obra! Arregace as mangas, pegue papel e caneta e vire logo esta pgina queh toda uma srie de reis, bispos, nobres e representantes dos mais diversos setores da sociedade

    que esto sua espera.

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