desenvolvimento na terra indÍgena raposa-serra … · pelo movimento indígena, ... 5 como expôs...

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1 DESENVOLVIMENTO NA TERRA INDÍGENA RAPOSA-SERRA DO SOL: QUESTÕES SOBRE MERCADORIA E DÁDIVA 1 João Francisco Kleba Lisboa DAN/UnB Resumo: Neste artigo, pretendo abordar como, após a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (TIRSS) e a desintrusão dos invasores, estão sendo discutidas e implementadas as possibilidades de atividade econômica e os projetos de desenvolvimento na área demarcada. Dentro desse recorte, buscarei analisar a inserção dos Wapixana e Makuxi em redes transnacionais de apoio, visando à captação de recursos e à realização de iniciativas de desenvolvimento dentro da Terra Indígena, prestando atenção nas categorias indígenas que tornam tais projetos possíveis desse a negociação até seus efeitos mais palpáveis na vida cotidiana local. Assim pretendo inserir-me no debate sobre dádiva e mercadoria, mais especificamente sobre as práticas ameríndias de construção de pessoas através da circulação de coisas. Palavras-chave: Terra Indígena Raposa-Serra do Sol; Desenvolvimento; Mercadoria. A “nossa cultura” e a nossa “economia” No dia 17 de dezembro de 2013, a página da internet do Conselho Indígena de Roraima (CIR) publicou uma nota com o seguinte título: “Visita reafirma avanço sustentável e organização política dos povos da Raposa Serra do Sol” 2 . A visita em questão havia sido feita pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e pela Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Indígenas, ambas da Câmara dos Deputados Federal, entre os dias 6 e 8 daquele mês. A notícia do fato dada pelo movimento indígena, como ficou claro após a leitura, consistia não apenas em um texto informativo, mas sem prejuízo da veracidade dos fatos ali descritos de uma verdadeira defesa da viabilidade econômica e social da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (TIRSS). Citando uma carta elaborada pelo próprio CIR em reunião ampliada e 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Disponível em: http://www.cir.org.br/index.php/component/k2/item/304-visita-reafirma- avan%C3%A7o-sustent%C3%A1vel-e-organiza%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica-dos-povos-da- raposa-serra-do-sol

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1

DESENVOLVIMENTO NA TERRA INDÍGENA RAPOSA-SERRA DO

SOL: QUESTÕES SOBRE MERCADORIA E DÁDIVA1

João Francisco Kleba Lisboa

DAN/UnB

Resumo: Neste artigo, pretendo abordar como, após a conclusão do processo de

demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (TIRSS) e a desintrusão dos

invasores, estão sendo discutidas e implementadas as possibilidades de atividade

econômica e os projetos de desenvolvimento na área demarcada. Dentro desse recorte,

buscarei analisar a inserção dos Wapixana e Makuxi em redes transnacionais de apoio,

visando à captação de recursos e à realização de iniciativas de desenvolvimento dentro

da Terra Indígena, prestando atenção nas categorias indígenas que tornam tais projetos

possíveis desse a negociação até seus efeitos mais palpáveis na vida cotidiana local.

Assim pretendo inserir-me no debate sobre dádiva e mercadoria, mais especificamente

sobre as práticas ameríndias de construção de pessoas através da circulação de coisas.

Palavras-chave: Terra Indígena Raposa-Serra do Sol; Desenvolvimento; Mercadoria.

A “nossa cultura” e a nossa “economia”

No dia 17 de dezembro de 2013, a página da internet do Conselho Indígena de

Roraima (CIR) publicou uma nota com o seguinte título: “Visita reafirma avanço

sustentável e organização política dos povos da Raposa Serra do Sol”2. A visita em

questão havia sido feita pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento

Sustentável e pela Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Indígenas, ambas da

Câmara dos Deputados Federal, entre os dias 6 e 8 daquele mês. A notícia do fato dada

pelo movimento indígena, como ficou claro após a leitura, consistia não apenas em um

texto informativo, mas – sem prejuízo da veracidade dos fatos ali descritos – de uma

verdadeira defesa da viabilidade econômica e social da Terra Indígena Raposa-Serra do

Sol (TIRSS). Citando uma carta elaborada pelo próprio CIR em reunião ampliada e

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN. 2 Disponível em: http://www.cir.org.br/index.php/component/k2/item/304-visita-reafirma-

avan%C3%A7o-sustent%C3%A1vel-e-organiza%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica-dos-povos-da-

raposa-serra-do-sol

2

entregue aos representantes durante a visita, ressaltava-se que a) A Terra Indígena

estava agora em um processo de recuperação e buscando um desenvolvimento

sustentável; e b) Os indígenas não estão passando fome ou “vivendo nos lixões” – como

fora alegado – após a saída dos fazendeiros que tinham invadido a TIRSS:

Na Carta houve manifestações importantes da realidade atual dos

povos indígenas da Raposa Serra do Sol. De acordo com a Carta, os

povos indígenas registram dizendo que “após a desocupação dos

fazendeiros do interior da TI Raposa Serra do Sol, estamos

trabalhando coletivamente para recuperar a terra pelos anos de

exploração degradante que sofreu e mesmo assim, temos avançados

positivamente”.

Para esclarecer a inverdade que vem sendo propagada nos meios de

comunicação local e nacional, de que indígenas saíram da RSS e

moram nos lixos da capital, a Carta registra que “não é verdade que

nós indígenas estamos vivendo nos lixões de Boa Vista, ou que

estamos morrendo de fome porque os arrozeiros saíram da terra

indígena. Pelo contrário, após a reintegração de posse de nossas terras,

estamos mais tranquilos, sem a violência e ameaças que impediam de

avançar em nossa sustentabilidade.”

Essa defesa só faz sentido se conhecermos o contexto no qual ela está inserida,

contexto no qual tal afirmação (da viabilidade da área após ser oficialmente reconhecida

como Terra Indígena) foi duramente posta em dúvida, configurando um dos argumentos

contrários3 à própria demarcação da TIRSS

4. A disputa, mais do que um embate de

ideias, também envolveu atos de violência por parte de fazendeiros, que incendiaram e

destruíram locais estratégicos para os indígenas dentro da TIRSS, como o Centro de

Formação e Cultura, uma igreja, um hospital e uma escola5. Boa parte da imprensa

referia-se a essas pessoas como “arrozeiros”, denominação que ressaltava o caráter

produtivo de seu interesse pela terra, em oposição à expressão “índios”, muitas vezes

dotada preconceituosamente do sentido inverso. O que está em questão aqui, sem

dúvida – questão essa que vai muito além do caso local e assume amplitude nacional –,

é a opção pelo modelo de exploração social e econômica a ser adotado no território. E

3 Conforme artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, dia 26/08/2008, com o título “Políticos de

Roraima são contra área indígena Raposa/Serra do Sol”.

(http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u437871.shtml) 4 O processo demarcatório em questão obteve grande visibilidade nacional, sendo levado ao Supremo

Tribunal Federal (STF). Esse foro, a maior instância do Poder Judiciário brasileiro, julgou recentemente

(em 23 de outubro último) os Embargos Declaratórios (que ficaram conhecidos com as “condicionantes”)

relativos à Petição 3.388, de 2005, uma Ação Popular que questionava o ato de demarcação da TIRSS.

Encerrou-se assim um litígio que durava anos, o que é comum a outros processos demarcatórios de Terras

Indígenas. 5 Como expôs a respeito o na época presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),

Dom Geraldo Magella, na seção Tendências/Debates do jornal Folha de São Paulo, datado de 09 de

outubro de 2005. (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0910200509.htm)

3

as lideranças da TIRSS reconhecem que o assunto, embora trate da sobrevivência diária

deles próprios e de suas famílias, gera repercussões muito mais amplas, que envolvem

um projeto estatal de desenvolvimento que quer se impor sobre os territórios indígenas e

sobre direitos pretensamente garantidos pela Constituição Federal. Aludem assim a

outros casos em que há violações dos direitos indígenas pelo país6.

Esse é um debate cujo aspecto jurídico é inescapável. Ao analisarem o longo

processo de demarcação da TIRSS (se contarmos com ambas as suas fases,

administrativa e judicial), Mota e Galafassi concluem abordando a questão do

desenvolvimento econômico da área e as preocupações éticas e ambientais daí

decorrentes. O direito à diversidade, portanto, decorrente da interpretação dos artigos

constitucionais relacionados aos índios, incluiria a diversidade de seus modelos

econômicos, mesmo se assumirmos que o principal valor destes esteja nas “preciosas

contribuições à sociedade brasileira” com as quais poderiam nos brindar:

(...)também os índios da TI RSS têm seu próprio modelo de

desenvolvimento que, como bem lembrado no julgamento do STF, é

rico em exemplos que podem servir à sociedade brasileira em geral. É,

pois, fundamental reconhecer que o critério de “desenvolvimento

econômico”, nos moldes pregados pelos defensores da manutenção

das monoculturas no interior da TI RSS, além de não estar acima das

causas ambientais, não é absoluto. Outros modelos de

desenvolvimento podem oferecer preciosas contribuições à sociedade

brasileira, o que por si só justifica o esforço em permitir que os índios

preservem seus usos, costumes e tradições. Uma sociedade fraterna e

pluralista, como preconiza o preâmbulo da Constituição, não se faz

sem o reconhecimento da diversidade e o caso da demarcação da

Terra Indígena Raposa Serra o Sol constitui uma grande oportunidade

de amadurecimento da discussão sobre o direito à diferença (MOTA;

GALAFASI, 2009, p. 124).

Orlando Sampaio Silva já identificara, em seus estudos na década de 1980, no

nordeste do Estado de Roraima, que o sistema de produção econômica baseado na

criação de gado – levado à região com o início da ocupação branca, no século XVIII –

6 Assim continua a matéria no site do CIR: “As lideranças indígenas também demonstraram preocupação

com as questões a nível nacional em relação o retrocesso na garantia dos direitos fundamentais dos povos

indígenas, principalmente aqueles referidos a livre determinação e a terra. Diante disso, os povos de

Roraima manifestaram dizendo que ‘o Estado brasileiro não pode optar por um modelo econômico

desenvolvimentista, de crescimento acelerado, baseado na exploração dos recursos naturais e na

decorrente disputa pelo controle dos territórios, em detrimento dos povos indígenas’.” A mesma termina

da seguinte forma, relacionando sustentabilidade com autonomia política: “O avanço sustentável e a

organização política, social dos povos indígenas, especificamente na TI Raposa Serra do Sol foi

constatada in loco nas regiões, Surumu, Serras, Baixo Contingo e Raposa nos dias de agenda da Comissão

junto aos povos indígenas.” (Idem).

4

está diretamente ligado ao histórico de contato interétnico entre essas populações

indígenas e a “sociedade envolvente”. Na linha conceitual elaborada por Roberto

Cardoso de Oliveira, Silva aponta as pressões que esse contato impõe sobre os grupos

indígenas locais, especialmente os Wapichana e Makuxi:

Os Wapixána – como os Makuxí – têm tido sua sociedade pressionada

por ações oriundas da sociedade dominante na situação colonial em

que estão inseridos, não apenas no nível econômico, mas também nos

níveis ideológico e psicossocial. Em consequência e em função das

influências exercidas sobre esses índios pelos agentes de diferentes

espécies que representam o “mundo dos brancos”, a identidade étnica

nos agrupamentos societários Wapixána sofre maior ou menor

impacto e é direcionada em sentidos divergentes ou convergentes.

Esses encontros produzem reflexos na etnicidade (SILVA, 2001, p.

59).

Não à toa, a carta do CIR procurava enfatizar a ausência de uma relação de

dependência direta dos indígenas para com os “arrozeiros” – pois, se houvesse tal

dependência, poderíamos presumir que, com o fim da atividade arrozeira, alguns índios

estariam sim nos lixões em busca de comida. Interessante, contudo, é notar que há

décadas pelo menos, fazendeiros e indígenas coexistem na região, apesar dos esbulhos e

invasões7 por parte dos primeiros. Como notado por Silva, essa coexistência assume aos

poucos a forma de uma relação de exploração da força de trabalho indígena:

Índios, individualmente, em grupos familiares ou em grupos

masculinos, deixam-se levar às “fazendas” como trabalhadores, para

realizar tarefas em empreitadas (como construções de cercas, p. ex.)

ou para o trato com o gado. Nesta segunda situação, ora trabalham em

parceria com o “fazendeiro” (recebendo p. ex., 1/5 das crias), ora

como assalariados, prevalecendo, nos últimos tempos, este último

sistema. Trata-se de uma forma de exploração da mão-de-obra

indígena pelos que, quase sempre, são invasores das terras dos

explorados (Idem, p. 63).

Por ocasião do julgamento da ação popular 3.388/2005 no STF, a advogada

indígena Joênia Batista de Carvalho Wapichana realizou sustentação oral – sendo a

primeira defensora indígena a fazê-lo na tribuna da mais alta corte do país – em 27 de

agosto de 2008. Ali, acusando a morosidade do processo demarcatório, a violência

7 “Os fazendeiros agem de dupla maneira. Ora empregam a violência, invadindo territórios indígenas, ou

resistindo em desocupar áreas indígenas invadidas. A atitude de desrespeito aos direitos dos índios

também se manifesta indiretamente, mediante a prática de influência junto a órgãos governamentais, na

expectativa de terem reconhecidos direitos seus em detrimento dos direitos indígenas sobre as terras.

Adotam, também, outros meios, estes pacíficos e regulares, ao recorrerem às lides judiciais, ocasiões nas

quais se defrontam com as comunidades indígenas, quase sempre representadas pela FUNAI” (SILVA,

2001, p. 63).

5

sofrida pelos indígenas (com 21 lideranças assassinadas em 30 anos) e o preconceito de

que são alvo, Joênia também abordou o aspecto econômico da Terra Indígena. E, numa

fala impecável – para a qual se paramentou tanto com a beca, obrigatória aos

advogados, quanto com pinturas indígenas tradicionais no rosto – tratou da questão de

duas maneiras diferentes. Sabendo exatamente qual a natureza de seu papel como

interlocutora entre dois mundos, primeiro definiu o que era a relação tradicional que

aqueles povos indígenas mantinham com a terra, ou o que chamou de “a nossa cultura”:

Cabe ao Supremo Tribunal Federal, a essa Corte, definitivamente

aplicar o que nós já vimos há muito tempo falando, que as terras

tradicionais indígenas vão além da própria casa. Muitas pessoas não

sabem que as casas indígenas não se resumem apenas nas moradias,

mas incluem os lugares onde se pesca, caça, caminha, onde se mantêm

os locais sagrados, a espiritualidade, a nossa cultura. Estes são pontos

fundamentais para que nós tenhamos garantida a nossa importância,

da nossa terra, não só para agora mas para amanhã também. Nós

queremos isso! (WAPICHANA, 2009, p. 170).

Assim, Joênia afirmava que certas atividades – produtivas ou não do ponto de

vista do utilitarismo ocidental – como caça, pesca, espiritualidade, é que estabelecem a

relação dos índios com a terra, ou seja, seu uso tradicional. E é isto que define a terra

como Terra Indígena, segundo a Constituição Federal da República do Brasil. Até aqui,

em tese, não havia nada que os magistrados da causa pudessem desconhecer. Em

seguida, utilizando-se de estatísticas e dados quantitativos, a advogada demonstra que,

mesmo nos termos ocidentais de desenvolvimento econômico, a TIRSS não é um

fracasso. Ao contrário, tem grande relevância para aquela região e para o Estado de

Roraima:

Nós temos e desenvolvemos nossa economia e isso sequer é

contabilizado pelo Estado de Roraima, que não falada economia que

circula dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Nós somos os

maiores criadores de gado e é esta atividade produtiva que alimenta as

comunidades indígenas da região. Nós temos nossos profissionais que

estão trabalhando pela gestão da terra, por isso queremos avançar esta

fase. Nós temos uma economia, que circula anualmente na Terra

Indígena, de mais de 14 milhões de reais. Também contribuímos com

o mercado de Boa Vista, mas até hoje não se tem um estudo sobre o

montante dessa contribuição. Em nossa área, temos mais de 300

escolas indígenas e mais de 5.600 alunos e 485 professores (Idem, p.

170).

Ambas as maneiras com que a questão econômica fora abordada tinham um

papel importante na construção da defesa feita por Joênia Wapichana. Lembrando que a

6

ação impetrada na justiça tinha como objetivo questionar a demarcação da TIRSS em

“área contínua”, sugerindo que era suficiente uma demarcação “em ilhas”, o que incluía

apenas os locais diretamente habitados pelos indígenas. Tal proposta, entretanto, não

prevaleceu, uma vez que a terra tradicional dos índios vai “além da própria casa” como

bem ressaltou Joênia. O que estava sendo defendido, naquele momento, era uma outra

forma de se pensar e viver não apenas a casa, no sentido de moradia, mas também

aquilo que na definição moderna seria seu oposto: a produção. A fala de Joênia mostrou

com clareza que a separação entre vida pública e vida privada8 – tão cara às teorias

ocidentais, da política à psicologia – simplesmente não opera (ou não da mesma forma e

nem com os mesmo efeitos) nas sociedades indígenas. O que chamaríamos de espaço

produtivo, ou a esfera dos “negócios”, portanto, é incluído pela concepção indígena de

casa, entre outras esferas que também são incluídas, como “os locais sagrados”, etc.

Por outro lado, jogando com as nossas regras, havia a necessidade de desmontar

a associação perversa da ideia de Terra Indígena como um espaço improdutivo – e

portanto desnecessário ou até “ilegítimo”, do ponto de vista produtivista. Daí a

afirmação de Joênia: “nós temos uma economia”, reforçada com dados contundentes, a

provar que os conceitos alienígenas de nosso economicismo moderno tampouco podem

fazer frente à ligação dos povos indígenas com a terra. O fato de os índios criarem gado

na TIRSS, por sua vez, também é questionado por seus adversários por não ser

atividade propriamente indígena – e portanto mais uma vez “ilegítima” –, não deixando

qualquer saída seja em termos lógicos ou éticos para o reconhecimento do direito dos

índios àquela terra9.

Gado, índios e desenvolvimento

Como vimos, o gado bovino adentra o contexto local acompanhando o processo

de esbulho das terras indígenas. A inserção da pecuária na região, em fins do século

8 Sigo aqui a definição de Roy Wagner: “ao passo que a produtividade é pública, pode-se dizer que a

família é periférica e privada. Dinheiro e, por conseguinte, trabalho são necessários para ‘sustentar’ uma

família, mas nem dinheiro nem trabalho [labor] devem ser a principal preocupação no interior de uma

família. A despeito de como o dinheiro é ganho ou gasto, a renda familiar é em alguma medida

compartilhada entre seus membros, mas não distribuída em troca de serviços familiares. Como mostrou

David Schneider em American Kinship, as relações no interior da família são simbolizadas em termos de

amor, de amor sexual ou de uma relação de ‘solidariedade difusa, duradoura’. A oposição entre dinheiro e

amor dramatiza a separação nítida traçada em nossa cultura entre ‘negócios’ e ‘vida doméstica’”

(WAGNER, 2010, p. 57). 9 Tais sofismas seriam comparáveis talvez somente à definição de “guerra justa” tantas vezes aplicada

para destruir e escravizar as populações indígenas.

7

XVIII, teve a princípio uma finalidade estratégica em disputas fronteiriças de Portugal

com outros Estados colonizadores, como Espanha, Holanda e Inglaterra. Inicialmente na

forma de “Fazendas da Coroa”, ao longo do século XIX serão feitas concessões a

particulares e, sob o Império, a atividade irá se expandir, atraindo migrantes e fazendo

aumentar a população local, conforme o intuito de consolidar a ocupação brasileira

naquela área de fronteira. Esse sistema de exploração do território (pastoreio) e do

trabalho (baseado na relação entre o fazendeiro e o vaqueiro) é que organizou a

ocupação daquela região por não-índios, sendo também uma forma de atrair e

concentrar a mão-de-obra indígena após os aldeamentos do século XVIII (OLIVEIRA,

2012, p. 45-52). Alessandro Roberto Oliveira ressalta ainda que o interesse nos recursos

naturais da área – visando à exploração econômica – e a criação de gado impuseram aos

grupos indígenas uma nova situação, quase sempre mediante o uso da violência:

Enquanto expedições científicas mapeavam áreas e recursos naturais,

a multiplicação das fazendas particulares de gado impôs uma nova

ordem de realidade sobre os povos indígenas, seus territórios e o

desenho de suas aldeias. A inserção de pecuaristas inicialmente do

lado brasileiro e depois também do lado da Guiana marcou o violento

processo de invasão e expropriação territorial dos povos indígenas e a

sujeição dos índios ao trabalho forçado nas fazendas que se estendeu

pelo século XX (Idem, p. 54).

A presença de gado bovino em terras indígenas não pode ser creditada a uma

escolha deliberada dos povos indígenas, tendo significado muitas vezes o seu contrário.

Dessa forma, não seria justo exigir dos Wapichana, Makuxi e outros povos indígenas

que habitam o nordeste de Roraima que ignorem ou permaneçam alheios ao histórico de

ocupação “branca” e todos os impactos que a atividade pecuária vem produzindo ao

longo de séculos em seu território, com prejuízos para suas práticas tradicionais de

“produção”, como caça e pesca, e forte interferência nos seus modos de organização

social. Como relata Oliveira, a criação de relações entre pecuaristas e índios deu-se de

forma desigual e hierárquica, mas com profundo alcance social:

A invasão de fazendas de gado provocou uma série de impactos nas

práticas indígenas de uso territorial. Enquanto o avanço do gado

destruía as roças, o desenho das fazendas provocava uma série de

constrangimentos à mobilidade dos índios e às suas práticas de

tradicionais. Com as fazendas, surgiram proibições à prática de pesca

com timbó, restrições do acesso aos lagos e outras fontes de água

perenes, e o cerco de regionais também refletiu no progressivo

escasseamento da caça. Além destes impactos sobre as práticas, o

recrutamento de crianças indígenas para pretensamente “aprenderem”

8

a lidar com o gado junto às famílias “civilizadas” na maior parte das

experiências revelava o caráter servil do regime de exploração do

trabalho que caracterizou as relações entre fazendeiros e índios. Este

foi um expediente também amplamente utilizado pelos posseiros,

criando relações de compadrio que reforçava os laços clientelistas

com os índios (Idem, p. 62).

A partir da década de 1970, entretanto, ocorre a organização do movimento

indígena contemporâneo no Estado de Roraima, num contexto de lutas por demarcação

de terras, sendo criado o Conselho Indígena de Roraima (CIR) com o apoio de

missionários católicos ligados ao CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Com isso,

são pensados projetos de desenvolvimento que permitissem aos povos indígenas

conquistar autonomia frente às práticas clientelistas locais. Além disso, numa região

onde era a presença de gado o que marcava de fato a “posse” da terra, este passa a ser

visto como uma alternativa estratégica tanto à subsistência quanto ao processo de

retomada das terras indígenas. Dá-se assim o que Alessandro Roberto Oliveira define

como “uso reverso do gado”, ou seja, o que antes era um mecanismo de esbulho e

submissão dos índios passa então a ser utilizado por eles a seu próprio favor10

(Idem, p.

59-66). Os resultados da experiência foram positivos em muitos aspectos, que não se

limitaram apenas à renda, permitindo, por exemplo, o retorno de indígenas que haviam

ido para as fazendas a suas comunidades de origem:

...desde seus primeiros passos, as lideranças indígenas avaliaram os

resultados da criação de rebanhos comunitários de forma positiva.

Muitos índios que foram trabalhar nas fazendas fizeram o caminho de

volta para suas comunidades, enfraquecendo o sistema de exploração

da mão de obra indígena nas fazendas. Inicialmente concentrado na

região das Serras, no transcorrer dos anos 1980 o projeto de gado se

desenvolveu de maneira rápida pelas demais regiões com ampliação

dos diferentes agentes que passaram a apoiar a iniciativa (Idem, p. 67).

Ao pensarmos em alternativas de etnodesenvolvimento, o que fica claro após

este exemplo é que elas não são um mero exercício de livre imaginação criativa,

devendo antes se ater ao histórico de invasão e degradação das terras indígenas, de

10

“O ‘Projeto do Gado’ teve início em 1977 com a iniciativa da Diocese de promover uma campanha

internacional para angariar fundos na Inglaterra, Canadá e principalmente na Itália com o apelo ‘Uma

vaca para o índio’. (...)o projeto iniciou-se na região de Normandia, onde 60 cabeças de gado foram

doadas inicialmente a três comunidades. A proposta do projeto era criar um sistema de rodízio de

rebanhos entre as comunidades indígenas que recebiam um lote de 50 vacas e 1 ou 2 touros e no prazo de

cinco anos deveriam repassar o mesmo número a outra comunidade, permanecendo com excedente de

reses nascidas neste intervalo. Depois da região de Normandia o projeto foi estendido para a maloca

Maturuca. Em 1983 a comunidade Maturuca fez o repasse da mesma quantidade de gado que havia

recebido originalmente e dois reprodutores para a comunidade do Monte Roraima, permanecendo como

saldo 76 cabeças de gado na comunidade” (OLIVEIRA, 2012, p. 66).

9

pressões sobre práticas tradicionais de produção e organização social e, sobretudo, aos

processos de retomada da autonomia indígena que fizeram frente a esse histórico. Ainda

assim, a prática da pecuária pelos índios não deixa de causar certo incômodo em alguns

de seus aliados, uma vez que tal atividade contrasta com o “modelo tradicional” de vida

dos povos americanos nativos.

Maria Barroso Hoffmann demonstra o quanto a imagem de índios

“ecologicamente corretos” contribuiu para justificar o envio de recursos na forma de

ajuda externa por parte da Rainforest Foundation Norway, acompanhando uma

mudança de ênfase nas ações de apoio internacional aos povos indígenas, cujo interesse

desviava de uma caracterização desses grupos enquanto vítimas de violações dos

direitos humanos para um discurso que associava os “conhecimentos tradicionais”

desses povos a questões ambientais:

Os conhecimentos indígenas, às vezes englobados dentro do conceito

mais amplo de “conhecimentos tradicionais”, “conhecimentos

tradicionais ecológicos” e outros termos afins, passaram a ser alvo de

um extenso conjunto de tratativas e protocolos internacionais ligados à

área de meio-ambiente a partir dos anos 90, firmados sobretudo

quando da realização da ECO-92, promovida pelo Programa das

Nações Unidas sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento – PNUMA,

no Rio de Janeiro, como a Carta da Terra, a Convenção da

Diversidade Biológica e a Agenda 21, todos estes com cláusulas

específicas sobre a proteção e o uso desses conhecimento

(HOFFMANN, 2008, p. 237).

Hoffmann critica a romantização11

que tal visão de sociedades integradas à

natureza promove, além de considerá-la “um retorno às concepções fixistas sobre as

identidades étnicas” (Idem, p. 238). Por outro lado, é fato que os povos indígenas hoje

estão se preocupando com questões ambientais, apropriando-se de conceitos ocidentais

como “natureza” e “ecologia” para usá-los em mesas de negociação e atrair recursos e

aliados. Poderíamos assim pensar que a aproximação do movimento indígena com

11

“Essas concepções foram construídas em grande medida em cima de uma ‘vulgarização’ do

conhecimento etnográfico existente sobre determinados grupos indígenas (...).

“Entre os problemas gerados por essa romantização, em que os índios são representados como habitantes

das florestas tropicais vivendo em condições ideais de equilíbrio e virtualmente isolados do contato com

outros grupos, está o da obstaculização à construção de argumentos políticos por parcelas significativas

das populações indígenas atualmente vivendo em cenários urbanos, sob condições de inserção marginal

na economia de mercado, onde ocupam geralmente as posições mais subalternas, pois esses grupos não se

adequam à imagem criada e divulgada na mídia ambientalista sobre os povos indígenas, que tende a

apresentar seu lado mais exótico e passível de ser ‘vendido’ no mercado da cooperação” (HOFFMANN,

2008, p. 238).

10

questões ambientais deve-se não apenas às fantasias românticas ocidentais, mas também

a ações materiais e construções simbólicas realizadas pelos próprios índios12

.

Além do mais, questões ambientais e direitos indígenas muitas vezes estão do

mesmo lado, como se percebe nos impactos dos grandes projetos de desenvolvimento.

Neste sentido, o processo de integração regional levado a cabo pelos governos sul-

americanos – com a criação, entre outras, da Iniciativa de Integração da Infra-estrutura

Regional Sul-Americana (IIRSA), a envolver doze Estados e com foco nas áreas de

transporte, energia e telecomunicações13

– acabou por favorecer grandes empreiteiras

brasileiras que atuam num contexto transnacional, num modelo que opta pela

concentração de capital e investimentos públicos em detrimento de uma maior

participação ativa e do protagonismo dos povos locais. Ressalta-se que, no que parece

ser uma contradição, tal opção se dá apesar do caráter “progressista” de alguns governos

da região. Como expõe Couto:

Em síntese, é possível afirmar que os eixos de “desenvolvimento” que

a IIRSA propõe estão focados no provimento de condições para

empresas (trans)nacionais e o agronegócio otimizarem seus lucros,

terem acesso a mais mercados e facilitarem o escoamento de recursos

por meio de grandes “corredores” de exportação que atravessam o

continente, inclusive regiões sensíveis como a Amazônia e os Andes.

Apesar da retórica de integração dos povos, a “Iniciativa” negligencia

o desenvolvimento local, o forte impacto social e ambiental das obras,

além da falta de transparência nos dados e a ausência da participação

da sociedade civil nesses processos. Os governos tidos como

progressistas na América do Sul acabaram por abraçar a integração

proposta pelo BID sem uma apreensão crítica sobre quem serão os

verdadeiros beneficiados com os aportes de dinheiro público e as

consequências sociais e ambientais de longo prazo (COUTO, 2008, p.

81-82).

Ocorre que, se há por um lado um processo de “transnacionalização” regional

dos interesses político-econômicos na América do Sul – que se insere num contexto

maior de globalização econômica – talvez possa ser possível identificar um movimento

inverso, por parte justamente desses povos que são diretamente atingidos pelas

“consequências sociais e ambientais de longo prazo” do modelo de desenvolvimento em

voga. Assim, poderíamos afirmar que, além de uma internacionalização hegemônica,

12

Por exemplo, através da análise do discurso de Davi Kopenawa, xamã Yanomami, Bruce Albert

constatou a “ecologização” do discurso político dos atuais representantes indígenas na Amazônia, devida

não somente à ascensão do ambientalismo na cena internacional, a partir dos anos 80, mas principalmente

ao desenvolvimento, pelos indígenas, de uma “adaptação criativa” capaz de se apropriar desse discurso

ambientalista (ALBERT, 2002). 13

Ver sobre isso COUTO, 2008, em um volume que aborda especificamente os megaprojetos e seus

financiamentos.

11

haveria um conjunto de processos em pequena escala de superação dos limites

territoriais estatais e construção de relações transfronteiriças.

De forma algo semelhante, Gustavo Lins Ribeiro vê a condição de

transnacionalidade como um aspecto chave do mundo contemporâneo, mesmo

lembrando que não se trata de nenhuma novidade. Ao notar a complexidade crescente

dos pertencimentos e identidades sócio-culturais, Lins Ribeiro observa que os agentes

individuais e coletivos contemporâneos estão envolvidos em diferentes níveis de

integração, mantendo suas diversas relações simultaneamente nos níveis local, regional,

nacional, internacional e transnacional (RIBEIRO, 1997). O transnacionalismo,

portanto, não corresponde diretamente a um território específico ou a realidades

espaciais, ele “só pode ser concebido como difuso e disseminado em uma teia” (Idem,

p. 11). Mais do que mera “fragmentação” de comunidades camponesas antes estáveis,

trata-se aqui de reconhecer o processo dinâmico de contatos e hibridizações das

culturas. Daí que a situação de transnacionalidade apenas intensifica (em termos de

alcance geográfico, por exemplo) essa dinamicidade. Como afirma Ribeiro:

A despeito das pretensões de pureza, organicidade, coerência,

estabilidade, centralidade e outras semelhantes, as culturas sempre

foram híbridas, instáveis, multifacetadas, entidades fractais formadas

pelas contribuições desiguais de indivíduos e povos existentes no

presente, no passado e em diferentes locais. A globalização,

certamente pelo aumento em complexidade cultural que gera,

transformou em cânone a crítica a noções “essencialistas” de cultura.

Debates sobre pós-modernidade e globalização, sempre ressaltaram a

natureza mesclada, entrelaçada dos fenômenos culturais. Fluxos,

fragmentos, malhas, hibridização, desterritorialização, glocalização,

metáforas de disseminação, dispersão, informam o que no presente é

uma abordagem padrão sobre a cultura em geral e a “cultura global”

em particular (Idem, p. 14).

O autor ressalta que essa crítica “pós-moderna”, no entanto, não deve ser levada

ao extremo a ponto de fazer com que as identidades culturais, sociais e políticas, em vez

de atores reais, se pareçam com “fantoches de ideologias nacionais/étnicas alienadas ou

em profetas de fundamentalismos” (idem, p. 15). Portanto, não se deve esquecer

também o caráter sistêmico, a organicidade e os verdadeiros laços sociais, que não só

permanecem como se reorganizam em contextos que se transformam. Assim, o

hibridismo proveniente de uma situação transnacional não deve ser visto nem como

enfraquecimento de substância ou perda da essência e nem, por outro lado, como

criação arbitrária de identidades ou mera invenção manipulada. Trata-se de um espaço

12

em que novas possibilidades de atuação aparecem, em que os vínculos sociais se

estendem e em que as simbolizações culturais continuam operando.

O papel de algumas ONGs e de redes em escala global apontam para essa

dimensão política e social em que preocupações globais e princípios universais operam

em conjunto com valores culturais locais, mantendo ainda relações com órgãos oficiais

do Estado. No que diz respeito às organizações indígenas, elas não deixam de buscar

apoio onde este se mostra disponível.

O mundo de mercadorias e o mundo indígena

As relações interétnicas fazem com que os povos indígenas encontrem-se cada

vez mais inseridos e adaptados a uma economia globalizada, muitas vezes ligados a

processos de produção de riqueza em escala internacional, sofrendo as consequências

nefastas daí decorrentes mas, também, extraindo benefícios e ganhos políticos e

econômicos de tais situações. Na verdade, é lícito pensar que não há nada de muito

recente nessa situação dos grupos indígenas “em contato” com o mundo exterior. Nádia

Farage aponta como produtos manufaturados holandeses penetraram a região do Rio

Branco com participação ativa dos grupos indígenas. Os holandeses basearam sua

política colonial não na conversão ou aldeamento dos índios, mas no estabelecimento de

relações de escambo e tratados comerciais14

. Foi a presença desses objetos holandeses

em domínios portugueses, com ampla difusão na população tanto de indígenas quanto

de colonos, o que motivou a ocupação militar e mais tarde a política de povoamento da

região pela Coroa – que temia uma invasão holandesa, além de proibir o comércio com

estrangeiros (FARAGE, 1986, p. 146-151).

Nos estudos antropológicos de etnologia indígena, entretanto, esse enfoque nem

sempre esteve presente. A ideia de uma rede de circulação de mercadorias – que

acabaram antecedendo o contato com os brancos em muitas situações na Amazônia –

confrontava a noção de sociedades indígenas autossuficientes e a imagem de totalidades

autônomas que tanto marcaram a disciplina. A própria experiência de campo, ao que

parece, fez com que se notassem as conexões em que tais grupos estavam envolvidos.

Se essas redes já existiam antes da chegada dos europeus, elas se expandem após o

contato em proporções que alcançam a escala global. Uma narrativa que mostra essa

14

“tratados de paz e comércio entre holandeses e índios são registrados desde, pelo menos, 1672”

(FARAGE, 1986, p. 149).

13

mudança de percepção de forma contundente é feita por César Gordon a respeito de sua

pesquisa com os Xikrin, no Estado do Pará. Inicialmente o que seria um “estudo

clássico de parentesco” transformou-se, pelas circunstâncias etnográficas, numa

discussão sobre como dinheiro e mercadoria são incorporados pela cultura indígena.

Voltou-se assim para questões prementes daquela sociedade, percebendo-a “em

interação” com organismos os mais diversos:

Os Xikrin interagem direta ou indiretamente com diversos órgãos da

burocracia estatal, setores da sociedade civil, empreendedores locais,

nacionais e internacionais, grandes corporações, ONGs, missionários,

antropólogos, ambientalistas e agências multilaterais de

financiamento. Na pauta de temas em que estão envolvidos, somam-se

projetos de desenvolvimento sustentável, planos de manejo florestal e

atividade madeireira, exploração mineral, políticas públicas,

legislação ambiental, entre outros. As conexões são de tal ordem que,

em certo nível, os indicadores econômicos, as variações cambiais, as

oscilações do mercado e, até mesmo, eventos geopolíticos

internacionais têm, em algum grau, repercussões na vida dos Xikrin

(GORDON, 2006, p. 46).

Uma das questões que Gordon se põe é se o consumo acentuado de mercadorias

industrializadas não faria com que esses índios ficassem cada vez mais parecidos com

os brancos – ou kubẽ, para os Xikrin, embora o termo designasse também outros grupos

indígenas, ou qualquer um que não partilhasse da sua identidade étnica. Porém Gordon

mostra que o interesse dos Xikrin nas coisas produzidas pelos brancos não quer dizer

que haja um desejo de ser como um deles ou de viver em seu mundo: “ao mesmo tempo

em que reconhecem a capacidade dos brancos de produzir coisas belas, os Xikrin

parecem duvidar da capacidade deles de produzir pessoas belas ou de fazerem sua

própria sociedade bela” (Idem, p. 299). O uso dessas mercadorias dentro da aldeia,

longe de permitir uma acusação de “consumismo” por parte dos índios, seguiria uma

lógica própria, estando voltado para “agradar as pessoas e marcar laços de parentesco e

relações sociais. Presentear os parentes é uma forma de reconhecê-los, ‘lembrar deles’,

‘pensar neles’, como disse certa vez um dos chefes” (Idem, p. 302) 15

. Além do mais, as

mercadorias seriam internalizadas como objetos rituais, utilizados na produção de

“pessoas belas” e de diferenciação interna. Assim, essa dinâmica de incorporação de

15

Assim prossegue Gordon: “Todos estão o tempo todo preocupados em obter e comprar objetos, que

servirão não só ao uso pessoal, mas também para azeitar a ampla rede de relações sociais

intracomunitárias e intercomunitárias. O volume relativamente grande e o fluxo constante de mercadorias

que circulam no cotidiano xikrin têm o efeito prático de tornar extremamente difícil o mapeamento

etnográfico detalhado da circulação de mercadorias. De fato, elas estão em todo lugar, circulando

intensamente em vários níveis da organização comunitária” (GORDON, 2006, p. 303).

14

objetos kubẽ produz de fato alterações nos modos de vida indígenas, porém isso se dá

de acordo com as suas tradições:

Presenciamos ocorrer, hoje, com as mercadorias e o dinheiro dos

Xikrin um movimento que sempre ocorreu com as coisas que os

Mebêngôkre descobrem e capturam de outros tipos de seres e que está

ligado ao modo como eles concebem e vivenciam a relação com

alteridade. A relação com o Outro é mediada por ‘objetos’: nomes,

cantos, cerimônias, adornos, mercadorias etc. Repetindo mais uma vez

a fórmula do informante de Vidal: trata-se de fazer das coisas dos

kubẽ as nossas próprias coisas. Porém, como adicionava o outro

personagem dessa parábola: quero a minha parte em separado (Idem,

p. 386).

Sem querer me estender demais sobre um contexto etnográfico alheio aos

Makuxi e Wapichana do Nordeste de Roraima, tampouco pretendo isolar os povos da

TIRSS de qualquer comparação com outras sociedades indígenas da macrorregião que

se acabou chamando terras baixas da América do Sul. Dessa forma, busco dar crédito

àquilo que Eduardo Viveiros de Castro chamou de “uma integração comparativa em

escala continental” (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 266) ao referir-se ao livro

Individual and Society in Guiana, de Peter Rivière, enquanto uma “resposta caribe-

guianesa” à coletânea Dialetical Societies, organizada por David Maybury-Lewys e

voltada para sociedades Jê (como os Xikrin) e Bororo16

. Esse tipo de comparação, mais

do que encontrar semelhanças, visa a “articular diferenças” presentes entre as

manifestações sociais e culturais de diferentes grupos linguísticos do continente –

permitindo assim “reconstruir a diversidade que a decomposição analítica dissolveu”

(Idem, p, 276). Se na Guiana não há as regras de exogamia que marcam

imperativamente o casamento dos Jê e Tukano, (formando-se, ao contrário, grupos que

se fecham ao exterior), Eduardo Viveiros de Castro se pergunta o que compensaria tal

fechamento, pergunta esta que deixa contudo sem resposta, reconhecendo que “[a]s

16

“Rivière põe em continuidade a deriva uxorilocal da Guiana e a normatividade residencial dos Jê, como

vimos: a uxorilocalidade automática e normativa dos segundos (uma ‘estrutura elementar’ de residência,

no sentido lévi-straussiano da expressão) seria a cristalização, pela presença de instituições comunais, de

uma força já presente na Guiana. Sem rediscutir as razões desta interpretação, parece-nos que a diferença

entre “tendencial” e normativo é muito mais importante que a uxorilocalidade – pois ela aponta para tipos

radicalmente diversos de sociedade. Da Guiana para os Jê, não se trata de uma coagulação ‘prescritiva’ de

uma ‘tendencialidade’ subjacente e que na Guiana não encontrava condições de institucionalização. A

forma residencial guianesa é aberta ao evento, ela é uma ‘estrutura complexa’ que resulta da

sobredeterminação do atrator uxorilocal básico pelo jogo político, pelo acidente demográfico, pela

‘escolha’ individual; ou seja, mantendo esta analogia (talvez arriscada) com os conceitos lévi-

straussianos, o contraste Guiana/Jê não deve ser pensado em termos da oposição preferência/prescrição,

mas sim daquela entre elementar e complexo” (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 277).

15

sociedades indígenas sul-americanas continuam a exigir muito de nossa imaginação

antropológica” (Idem, p. 280).

Note-se que os dois principais conceitos de Eduardo Viveiros de Castro – um

sociológico, construído a partir da teoria da afinidade e tomando-a enquanto “esquema

genérico da relação social indígena”, e outro cosmológico, o “perspectivismo

ameríndio” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011) – são formulados visando a um alcance

mais amplo17

do que a mera análise etnológica de um grupo indígena específico.

Voltando à ideia de produção, a questão passa então a ser identificar e descrever

o que poderíamos chamar de um “modelo indígena” de produção (mesmo que a

primeira pergunta seja produção do quê, exatamente), para além da mera absorção

passiva de valores e práticas ocidentais. Aqui as questões amazônicas encontram-se com

as de outros ambientes etnográficos, como é o caso da Melanésia18

– em que os estudos

sobre produção e circulação de pessoas e coisas são vastos. Roy Wagner, ao se deparar

com a atribuição de “materialistas” dirigida a nativos da Nova Guiné, já apontara uma

certa “inversão” do que significa produção nas sociedades tribais em comparação com a

nossas próprias definições:

Assim, as culturas tribais encarnam uma inversão de nossa tendência a

fazer das técnicas produtivas o foco das atenções e a relegar a vida

familiar a um papel subsidiário (e subsidiado). E essa inversão não é

trivial: ela permeia ambos os estilos de criatividade em todos os seus

aspectos. Na medida em que produzimos “coisas”, nossa preocupação

é com a preservação de coisas, produtos, e com as técnicas e sua

produção. Nossa Cultura é uma soma dessas coisas: conservamos as

ideias, as citações, as memórias, as criações, e deixamos passar as

pessoas. Nossos sótãos, porões, baús, álbuns e museus estão repletos

desse tipo de Cultura.

Por outro lado, a sugestão de que povos tribais são “materialistas” –

com frequência levantada no caso dos habitantes das terras altas da

Nova Guiné – faz tão pouco sentido quanto a acusação de que eles

“compram” esposas. Aqui, como diz Bugotu, as pessoas é que são

importantes; os objetos de valor consistem em “fichas” para “contar”

pessoas, e, longe de serem entesourados, são frequentemente dispersos

por ocasião da morte mediante pagamentos mortuários. São as

17

O antropólogo, no entanto, relaciona a formulação desses conceitos a um diálogo com um grupo de

autores, expoentes da etnologia amazônica: “meu forte (ou meu fraco) sempre foi a síntese, a

generalização e a comparação antes que a análise fenomenológica fina de materiais etnográficos. Essas

duas teorias supracitadas foram o resultado de uma extrapolação, no limite do verossímil, do trabalho de

muitos outros pesquisadores além de mim mesmo, entre os quais caberia destacar, com o risco de graves

omissões, os nomes de Bruce Albert, Joanna Overing, Peter Rivière, Tânia Stolze Lima, Philippe

Descola, Anne-Christine Taylor e Peter Gow. Se respondo por alguma contribuição original aqui, terá

sido a consolidação desse vasto trabalho coletivo sobre o parentesco e a cosmologia dos povos

amazônicos em uma grande teoria unificada, que não peca, reconheço, por falta de ambição” (VIVEIROS

DE CASTRO, 2011, p. 07). 18

Ver, por exemplo, GREGOR; TUZIN, 2001.

16

pessoas, e as experiências e significados a elas associados, que não se

quer perder, mais do que as ideias e coisas (WAGNER, 2010, p. 60).

É a circulação de coisas, portanto, o que faz com que vínculos entre pessoas

sejam criados e mantidos. O regime de acumulação e dispersão, portanto, serve para

estabelecer não apenas ligações, mas também separações – como entre homens e

mulheres, ou nativos e estrangeiros, por exemplo. Marilyn Strathern demonstra como as

trocas de objetos de valor entre homens, na Melanésia, produz e reforça os papeis

masculinos e femininos que estão em jogo: nas Terras Altas da Nova Guiné, a

circulação de bens entre homens, além de criar relações entre si, diz respeito também às

relações entre homem e mulher, já que é pelo casamento que se dá a forma máxima de

troca, como já apontara Claude Lévi-Strauss (STRATHERN, 2006; LÉVI-STRAUSS,

2003). Mesmo assim, seria simplório falar em “troca de mulheres”, uma vez que os

papeis femininos não são o mesmo para os diferentes lados da troca (irmã ou filha, para

um; esposa para outro), mesmo que estejam personificados em uma só e mesma mulher.

De acordo com Strathern:

Como um aspecto das identidades sociais dos homens hagen, as

mulheres são personificadas como "femininas", circulando por isso

como partes destacáveis de clãs ou pessoas que, em razão disso, são

tornados "masculinos". Mas isso se dá em virtude da transformação de

parentesco que faz passar as irmãs à condição de esposas. Uma mulher

deve ser separada de seus agnados por meio de sua relação com um

outro específico (marido), a quem seus parentes, dessa forma, devem a

própria possibilidade da separação, Só ele pode fazê-lo para eles. Do

ponto de vista dos doadores (de esposas), a irmã é agora uma parte

destacável, mas ela chega ao receptor (o tomador de esposa) como

uma plena representante de sua parentela de origem. Esta é uma

transformação de uma dádiva metonímica em metafórica. (...)Ela se

constitui nos pontos de vista diferentes que os participantes

masculinos têm sobre a sua interação. Daí a necessidade de que

estejam envolvidos no processo de troca, pois o que eles trocam entre

si são seus pontos de vista (STRATHERN, 2006, p. 338-339).

A teoria sobre a dádiva, desenvolvida inicialmente por Marcel Mauss, dialoga

com a Economia Política ao se estabelecer em oposição a um de seus termos-chaves, o

de commodity. Chris Gregory demonstra como, ainda antes do conceito ser elaborado,

os dados de pesquisa de Lewis Morgan produziram interesse em Marx e Engels,

apresentando modelos de sociedade alternativos ao europeu moderno – baseado na

propriedade privada – e que relacionavam parentesco, propriedade e sistemas de posse

17

da terra19

. Morgan forneceu assim as bases empíricas para classificações como

sociedades de clãs x sociedades de classes. Mauss levaria a questão de um contraste

entre estruturas sócio-políticas para uma oposição de estruturas econômicas, ou seja,

entre formas de circulação de coisas: commodity x dádiva (GREGORY, 1982).

Se o regime de commodity pode ser definido como uma relação entre coisas

alienáveis, operada por pessoas em independência recíproca, a dádiva, enquanto seu

inverso, é uma relação entre pessoas (em dependência recíproca) por meio de coisas

inalienáveis20

. Além disso, a troca de commodities supõe uma equivalência das coisas

trocadas como tendo igual valor (x = y), apesar de terem naturezas distintas. O valor

monetário seria aí a medida comum a ser encontrada entre ambas as coisas. Já a troca de

dádivas “estabelece uma relação desigual de dominação entre os transatores” (Idem, p.

47, em tradução livre minha), uma vez que o doador geralmente é visto como superior a

quem recebe a dádiva, uma vez que o mantém em uma relação de dívida. Mas mesmo

que ambos os transatores tenham doado e recebido mutuamente, não há que se falar em

equivalência já que não se trata de encontrar o valor comum das coisas trocadas, e sim

de estabelecer um ranking entre elas. Assim, no regime de troca de dádivas, uma coisa

de posição mais elevada não pode ser “compensada” por um grupo de coisas de posição

inferior. Existem portanto diferentes “esferas de troca” que definem não apenas que tipo

de coisas podem ser dadas em retribuição a uma dádiva recebida mas também com que

tipo de pessoas (ex: entre clãs diferentes, dentro do mesmo clã, mesmo nível de status,

etc.) ou em quais ocasiões (ex: cerimônias de casamento, iniciação) as trocas podem ser

efetuadas (Idem, p. 45-55).

Diferentemente do interesse pelo lucro que marca a transação capitalista, o

objetivo de quem dá coisas em um regime de dádivas tem a ver com aumentar seu

prestígio ou influência sobre os outros, construindo-se enquanto pessoa ao mesmo

tempo em que se constroem espaços comuns, por meio da “troca de pontos de vista”

apontada por Strathern. Neste sentido, é interessante ver um esforço de antropólogos

19

Tal interesse resultou na publicação de “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”

(ENGELS, [1884] 1980), por Engels, um ano após a morte de Marx. 20

“Dessas observações sobre alguns povos melanésios e polinésios já se delineia uma figura bem formada

desse regime da dádiva. A vida material e moral, a troca, nele funcionam de uma forma desinteressada e

obrigatória ao mesmo tempo. Ademais, essa obrigação se exprime de maneira mítica, imaginária ou, se

quiserem, simbólica e coletiva: ela assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas: estas jamais

se separam completamente de quem as troca; a comunhão e a aliança que elas estabelecem são

relativamente indissolúveis. Com efeito, esse símbolo da vida social – a permanência da influência das

coisas trocadas – apenas traduz bastante diretamente a maneira pela qual os subgrupos dessas sociedades

segmentadas, de tipo arcaico, estão constantemente imbricados uns nos outros, e sentem que se devem

tudo” (MAUSS, 2003, p. 232).

18

contemporâneos em apontar sobrevivências do regime da dádiva na sociedade moderna

– não tanto na forma de um evolucionismo mal efetuado, mas mostrando que “há muito

mais coisas entre o céu e a terra” do que supõe o nosso sistema político-econômico. Um

exemplo desse esforço é o M.A.U.S.S. (Movimento Anti-utilitarista nas Ciências

Sociais) cujo nome rende homenagem ao autor de Ensaio sobre a dádiva – que o

conclui, cabe lembrar, buscando sinais de dom nas transformações sociais pelas quais o

mundo passava na época (anos 1920). Allain Caillé, um dos principais expoentes desse

movimento, aponta que...

...está surgindo nas sociedades ocidentais a questão de saber se é

possível apelar para o espírito do dom para superar os impasses nos

quais tais sociedades se envolveram, impasses que em meio a crises

políticas e econômicas mostram-se cada vez mais ameaçadores.

Esquematicamente, é possível dizer que a modernidade se edificou

confiando plenamente no desdobramento de duas grandes lógicas

sistêmicas e funcionais: a lógica do mercado e a lógica do Estado

representativo. A primeira, busca sua motivação no interesse

particular e encontra sua regulação na lei de equivalência do mercado.

A segunda, se organiza a partir do monopólio legal da violência e

repousa sobre o princípio da igualdade perante lei. É em nome dessas

duas grandes lógicas sistêmicas que se fundam respectivamente as

duas grandes ideologias da modernidade, o liberalismo e o socialismo

(CAILLÉ, 2006, p. 28).

Assim, a dádiva ou dom, para além de ser um sistema relegado a “sociedades

arcaicas”, apresenta-se enquanto modelo alternativo às duas lógicas modernas apontadas

por Caillé. Note-se que a acepção da palavra alternativo aqui oferece dupla

possibilidade de abordagem: tanto no sentido ético – com intuito de oferecer uma

solução para “superar os impasses ameaçadores” de que nos fala Caillé – quanto no

sentido analítico – o de observar práticas atuais que escapariam a explicações baseadas

somente no cálculo racional-utilitarista que tentou se impor enquanto única forma de

pensamento e ação humana na modernidade.

Um exemplo que acredito seguir esta segunda implicação de alternativo, ou seja,

num sentido analítico, é oferecido por Kelly Silva, ao observar como as relações de

Ajuda Externa envolvendo o novíssimo Estado de Timor Leste pautam-se pela lógica da

dádiva e uma “atmosfera de disputa”21

entre os doadores de recursos. Para tanto,

21

“Havia como que uma disputa entre os vários Estados-nações e agências da ONU sentados à mesa.

Cada um destacava seus feitos em Timor-Leste, angariando com isso certo capital simbólico diante dos

outros.

“A reunião converteu-se assim em uma arena de disputas rituais por status político entre os doadores.

Nessa guerra, a dádiva de recursos financeiros, humanos ou tecnológicos é a principal munição. Daí a

necessidade de explicitar, continuamente, o perfil dos bens oferecidos por cada doador. Como produto

19

examina as reuniões periódicas entre Timor Leste e Estados ou Organismos doadores

nos moldes de um “ritual de exibição pública das dádivas oferecidas a Timor Leste”

(SILVA, 2008, p. 152), no qual se encontram e se enfrentam “diferentes projetos

civilizatórios” (Idem, p. 154) para o país donatário. As dádivas ali ostentam não apenas

a imagem dos países e órgãos doadores – literalmente, com logotipos em adesivos que

identificam a origem do recurso doado – como também carregam consigo visões,

conhecimentos, modos de ser e projetos de desenvolvimento. Mais do que simples

altruísmo, há uma intensa disputa por influência na vida local, sobretudo em sua

administração política, por meio das dádivas e de tudo o que elas carregam, pois “estão

vinculadas à própria imagem que [os países] querem cultivar de si para o mundo”

(Idem, p. 164). Com isso, pretendeu-se mostrar que as relações mediadas por dádiva

podem ser encontradas no mundo contemporâneo, sem que delas se exija uma “solução”

ou mesmo uma “superação” das formas puramente capitalistas ou burocráticas.

Considerações finais

De volta à Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, poderíamos dizer que ali dentro

ocorrem tanto relações mediadas pelo regime da dádiva quanto pelo regime de

commodity. Ou, como definiu Joênia Wapichana, vive-se de acordo com a cultura

indígena e, ainda assim, produz-se uma quantidade considerável de valor – quantificável

pela “medida comum”, ou seja, valor monetário, dinheiro. Caberia ver de que forma os

parceiros internacionais que atuam na TIRSS utilizam-se também desses dois sistemas,

preocupando-se tanto com resultados materiais quanto com capital simbólico, prestígio,

entre outras coisas que suas doações possam gerar. Afinal, se nosso olhar precisa ficar

atento para a complexidade das formas de produção e circulação de recursos em uma

sociedade indígena contemporânea, inserida em redes globais de apoio, essa exigência

deve valer para as duas (ou mais, se existirem) pontas dessa rede. Isso não significa

planificar ou igualar índios e burocratas, xamãs e ativistas políticos. Mas tampouco

devemos impor a qualquer deles um modelo estanque e fechado em si mesmo. Trata-se,

antes de mais nada, de reconhecer que se em nossa cultura há divergências e disputas,

dessa competição, estabelece-se um ranking entre os doadores, o qual define relações de precedência

entre eles em alguns espaços sociais (...), como no jantar que o governo timorense ofereceu aos parceiros

no dia que antecedeu à abertura da conferência. Nele, entre outras coisas, aos países que mais recursos

repassam a Timor-Leste cabe a honra de se sentarem à mesa do Primeiro-Ministro” (SILVA, 2008, p.

151-152).

20

também outras culturas terão suas divergências e disputas – só que não devemos esperar

que sejam as mesmas.

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política da natureza (Yanomami). In ALBERT, B. e RAMOS, A. (org). Pacificando o

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21

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