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Déficit de governança e crise de legitimidade do Estado no Brasil
Reinaldo Gonçalves1
13 de julho de 2013
Introdução
O objetivo deste artigo é analisar os protestos populares que eclodiram no
Brasil em junho de 2013 e que provocaram instabilidade política. O argumento central
é que os protestos derivam de uma crise sistêmica que tem raízes estruturais e abarca
graves problemas de governança e de legitimidade do Estado. Neste sentido, o artigo
contrapõe-se à maior parte das análises que foca nos graves problemas urbanos
(transporte, saúde, educação e segurança) como causas dos protestos populares.2 Vale
notar que pesquisa recente mostra que a os problemas de maior gravidade no Brasil
são: violência/crime; condições econômicas (inflação, pobreza, desemprego,
desigualdade) e governança (inoperância do governo, corrupção); enquanto a
deficiência de infraestrutura urbana aparece na quarta posição (Singer et al, 2012, p.
125-133).3 De fato, a maior parte das análises peca pela ausência de um modelo
analítico básico, ao mesmo tempo em que negligencia as raízes estruturais da crise
brasileira e a natureza sistêmica desta crise.
Este texto está dividido em seis seções. Na seção 1 apresenta-se o modelo
conceitual e analítico básico que deriva da Sociologia Política moderna. Nas seções que
se seguem procura-se aperfeiçoar e adaptar este modelo para o melhor entendimento
da situação brasileira. Em conseqüência, na seção 2 discutem-se os determinantes
estruturais que geram o déficit de governança, a crise de legitimidade do Estado e a
crescente perda de bem-estar (insatisfação, sofrimento e revolta) que estão na origem
dos protestos. Na seção 3 examinam-se os três catalisadores básicos que fizeram com
que a perda de bem-estar se corporificasse em mobilizações, protestos e violência.
1 Professor Titular, Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Portal:
http://www.ie.ufrj.br/hpp/mostra.php?idprof=77. E-mail: [email protected]. 2 A hipótese do “inferno urbano” é levantada, por exemplo, por Stedile (2013), Genro (2013) e Chaui
(2013). Por outro lado, há analistas que destacam fatores estruturais, Passarinho (2013) e Gomes (2013). 3 Segundo esta pesquisa a violência é, de longe, o mais grave problema no Brasil segundo a amostra de
pessoas consultadas. Violência, condições econômicas desfavoráveis e déficit de governança são o principal problema para 32,6%, 17,7% e 13,0% das pessoas pesquisadas, respectivamente.
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Estes catalisadores são: Brasil Invertebrado, Brasil Negativado e Transformismo do
PT/Lulismo. Nesta seção faz-se referência, ainda, a alguns fatores conjunturais que
tiveram o efeito de transbordamento, ou seja, foram a “gota d´água”. A seção 4
discute, de forma sumária, a reação imediata do governo por meio de um conjunto de
cinco pactos. A fragilidade destas propostas expressa, efetivamente, o déficit de
governança. Nesta seção apresenta-se, ainda, o algoritmo secular usado pelos grupos
dirigentes para neutralizar os protestos populares no Brasil. Como contraponto a este
algoritmo secular, a seção 5 aponta algumas diretrizes básicas de propostas orientadas
para mudanças estruturais. A seção 6 apresenta síntese das principais conclusões e
perspectivas.
1. Modelo conceitual e analítico básico
O conceito-chave é o da legitimidade do Estado. Legitimidade é a confiança da
sociedade nas autoridades e instituições políticas e é condição necessária (embora não
suficiente) para a estabilidade política (Useem e Useem, 1979).4 A legitimidade
depende diretamente da governança efetiva; ou seja, as formas e os resultados da
ação governamental nas suas diferentes funções.5 Governança abarca a capacidade de
executar políticas e a eficácia de atingir os resultados de interesse da coletividade.6
Os modelos mais simples associam déficit de governança, perda de bem-estar,
percepção de custos de manutenção do status quo, protestos populares e
instabilidade política. O modelo pode ser linear na seqüência de causalidade que tem
como ponto de partida o déficit de governança. Por outro lado, o modelo circular
implica que a instabilidade gera perda de bem-estar e agrava o déficit de governança.
4 Segundo Levi (1994, p. 675) legitimidade do Estado “consiste na presença, em uma parcela
significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos.” Ainda segundo este autor a legitimidade depende da comunidade política (credibilidade, lealdade), das instiuições (natureza, qualidade, eficácia) e da eficácia do governo (respeito às instituições e eficácia).. 5 A governabilidade, por seu turno, reflete as condições sob as quais ocorre a ação estatal. Governança é
um termo mais amplo que inclui também as relações entre as relações entre atores sociais e políticos. Ver Gonçalves (2005). 6 Para uma definição mais ampla, que envolve a governabilidade, ver Kaufmann, Kraay e Mastruzzi
(2010, p. 4), que também apresenta a metodologia do Banco Mundial de indicadores de governança. Ver, também, Mimicopoulos (2007) para uma revisão da literatura sobre o tema.
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Nestes modelos a questão central reside na definição (e quantificação) das
variáveis independentes que afetam a governança, a percepção de custos crescentes
de manutenção do status quo, e das variáveis que operam como catalisadores.
Inúmeros fatores endógenos e exógenos influenciam a governança (Simmons, 2011, p.
78-88). Estes fatores envolvem processos históricos (herança colonial, transição
democrática, nível de desenvolvimento econômico), questões estruturais (dotação de
recursos, qualidade e fragmentação das elites) e fatores conjunturais (pressão
internacional).7 A percepção de custos de manutenção do status quo é influenciada
pela liberdade de imprensa, nível de organização da sociedade civil, repressão estatal e
histórico de protestos e conflitos violentos. Estas variáveis também aparecem como
catalisadores que fazem com que a percepção de custos crescentes de manutenção do
status quo se materialize em protestos populares.8
O Quadro 1 apresenta versão adaptada do modelo básico de análise.
QUADRO 1
7 O estudo empírico de Rahmani (2010) conclui que o mais significativo determinante da legitimidade do
Estado é a fragmentação das elites políticas.
8 Na América Latina a fragilidade institucional parece estar associada a protestos e revoltas populares,
que geram instabilidade política (Machado, Scartascini e Tommasi, 2009). Ademais, parece haver um processo de “normalização” de protestos populares em alguns países da região (Moseley e Moreno, 2010). Este processo implica maior propensão a protestos em reação a políticas governamentais, inclusive aquelas que impactam na distribuição de renda.
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2. Crise brasileira: Determinantes estruturais
O Quadro 2 resume a aplicação do modelo básico ao caso dos protestos
populares no Brasil em junho de 2013.
QUADRO 2
O Brasil vive crise sistêmica com fortes raízes estruturais. A crise abarca as
dimensões econômica, social, ética, política e institucional. A principal causa estrutural
da crise é que há 20 anos o país tem um modelo de desenvolvimento denominado de
Modelo Liberal Periférico (MLP). O MLP tem como características marcantes:
liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa
estrutural; e dominância do capital financeiro. O MLP tem padrões específicos de
dominação, acumulação e distribuição. No que se refere ao padrão de dominação, o
MLP envolve pacto dos grupos dirigentes com os setores dominantes (empreiteiras,
bancos, agronegócio e mineradoras) e cuja conseqüência é o aumento da
concentração de riqueza e poder. O padrão de acumulação envolve, além de baixas
taxas de investimento, o deslocamento da fronteira de produção na direção do setor
primário-exportador. E, por fim, o padrão de distribuição limita-se à redistribuição
incipiente da renda entre os distintos grupos da classe trabalhadora de tal forma que
os interesses do grande capital são preservados, ou seja, não há mudanças na
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estrutura primária de distribuição de riqueza e renda (rendimentos da classe
trabalhadora versus renda do capital).
No MLP brasileiro a trindade da Economia Política (dominação-acumulação-
distribuição) é perversa visto que é sustentada por um sistema político corrupto e
clientelista. Este sistema não se restringe às relações entre grupos dirigentes e setores
dominantes. De fato, ele envolve sindicatos, entidades estudantis, organizações não-
governamentais, intelectualidade, grupos sociais no campo da pobreza absoluta e da
miséria. De fato, este sistema gera o Brasil Invertebrado, ou seja, a perda de
legitimidade do Estado (executivo, legislativo e judiciário) e das instituições
representativas da sociedade civil (partidos políticos, centrais sindicais e estudantis,
organizações não-governamentais, etc.). Trata-se de um social-liberalismo corrompido
por patrimonialismo, clientelismo e corrupção e garantido pelo invertebramento e
fragilidade da sociedade civil.
A lógica dominação-acumulação-distribuição (ou seja, a economia política do
governo Lula) pode ser vista no Quadro 3.9
QUADRO 3
9 Para uma análise detalhada, ver Filgueiras e Gonçalves (2007) e Gonçalves (2013.a).
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A consolidação do MLP e a maior degradação das estruturas, relações e
processos políticos geram o Desenvolvimento às Avessas. Esta trajetória de
desenvolvimento é marcada, na dimensão econômica, por: fraco desempenho;
crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que
fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que
sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Ademais, observa-se o
invertebramento da sociedade, a deterioração do ethos, a degradação das instituições
e a consolidação, a ampliação e aprofundamento do sistema político corrupto e
clientelista.10
A discussão sobre modelos de desenvolvimento não é abstrata. É evidente que
há diferentes modelos na Suécia, China, Japão, Estados Unidos e Paraguai. O modelo
brasileiro atual aproxima-se deste último. Portanto, são 2 décadas de acúmulo de
graves problemas estruturais nas dimensões econômica, social, ética, política e
institucional. O resultado não poderia ser outro: trajetória de instabilidade e crise de
natureza sistêmica. Não é por outra razão que em avaliação recente sobre o futuro do
Brasil chega-se à seguinte conclusão: “E, como resultado do MLP, o país está em
trajetória de Desenvolvimento às Avessas. Se continuarmos com este modelo e nesta
trajetória, a poucos anos do bicentenário da independência, o país faz viagem rumo ao
passado. O Brasil invertebrado entranha-se em uma trajetória de fraco desempenho
econômico, com recorrentes momentos de instabilidade e crise, e se embrenha em
nuvens cinzentas que turvam o caminho do desenvolvimento social, político, ético e
institucional.”11
3. Catalisadores e fatores de transbordamento
Para que a percepção de crescente perda de bem-estar ou efetiva insatisfação
resulte em mobilização e protestos populares é necessário que haja catalisadores. Ou
seja, há fatores que fazem com que a insatisfação, o sofrimento e a revolta sejam
canalizados concretamente para mobilizações e protestos populares. A crise que
10
Trato destes temas em livro recente (Desenvolvimento às Avessas. Verdade, má-fé e ilusão no atual
modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC, 2013); ver Introdução e Capítulo 8.. 11
Ver Gonçalves (2013.a, p. 182). O livro foi concluído em julho de 2013 e publicado em fevereiro de 2013. Portanto, meses antes da eclosão da crise de junho de 2013.
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eclodiu em junho de 2013 tem 3 catalisadores – fenômenos próprios dos 2 governos
petistas: o Brasil Invertebrado, o Brasil Negativado e o Transformismo do PT/Lulismo.
O Quadro 4 apresenta o modelo completo que articula: determinantes
estruturais da crise, padrão de dominação-acumulação-distribuição, catalisadores,
crise de legitimidade do Estado, protestos populares e instabilidade política.
QUADRO 4
O Brasil Invertebrado caracteriza-se pelo fato de que os grupos dirigentes têm
sido capazes de cooptar a grande maioria das organizações sociais, sindicais,
estudantis e patronais. Grupos sociais não-organizados assim como movimentos
sociais de maior envergadura (por exemplo, MST) também são neutralizados por meio
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de políticas clientelistas. Por um lado, o Brasil Invertebrado permite que os grupos
dirigentes exerçam controle sobre lideranças e organizações representativas da
sociedade civil organizada e influência sobre seus “clientes” na base da pirâmide de
renda. O Brasil Invertebrado é, portanto, mecanismo de garantia de governabilidade.12
Por outro lado, o Brasil Invertebrado - ausência de organizações representativas
confiáveis - provoca frustração e revolta. A situação agrava-se quando se constata que
a impunidade de corruptos e corruptores continua como a regra geral que tem poucas
e surpreendentes exceções. Ademais, a percepção cada vez mais generalizada é que
grandes grupos econômicos desempenham papel de atores protagônicos via abuso do
poder econômico, corrupção e financiamento de campanhas eleitorais. Portanto, a
grande maioria da população sente-se traída e desamparada ao mesmo tempo em que
o cotidiano do cidadão brasileiro é de humilhação e sofrimento. Há, então, razões mais
do que evidentes para revolta e protestos populares.13
O Brasil Negativado, por seu turno, expressa a deterioração das condições
econômicas e abarca o país, o governo, as empresas e as famílias. As finanças
públicas se caracterizam por significativos desequilíbrios de fluxos e estoques, além,
naturalmente, dos problemas epidêmicos de déficit de governança e superávit de
corrupção (Gonçalves, 2013b). O aumento da dívida das empresas e famílias tem
causado crescimento significativo da inadimplência. O aumento da negatividade é
resultado da política de crédito fortemente expansionista no contexto de taxas de
juros absurdas, fraco crescimento da renda, inoperância da atividade fiscalizadora e
abuso de poder econômico por parte dos sistemas bancário e financeiro. Milhões de
pessoas (pobres e classe média) estão perdendo o sono diariamente porque estão
12
Vale notar que alguns analistas desconhecem o fenômeno do Brasil Invertebrado visto que entendem que o governo Lula (mais do que o governo Dilma) criou mecanismos de democracia participativa com inúmeros conselhos e conferências. O equívoco é imaginar que estes mecanismos tenham tido influência efetiva na formulação de políticas que impliquem em mudanças estruturais que comprometam o pacto entre os grupos dirigentes e os setores dominantes. Para ilustrar, representantes dos trabalhadores (ex-presidentes da CUT) no Conselho de Administração do BNDES simplesmente validaram políticas que levaram à maior concentração e centralização de capital e o deslocamento da fronteira de produção na direção do setor primário-exportador. 13
Expressão evidente do Brasil Invertebrado é o fato de que as centrais sindicais só lograram realizar mobilizações praticamente um mês depois do início dos protestos. As manifestações das centrais em 11 de julho foram relativamente pouco significativas comparativamente às mobilizações espontâneas em junho.
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negativados, não conseguem pagar suas dívidas (Gonçalves, 2013c). E isto causa
sofrimento e revolta.
A terceira causa da crise é o fenômeno do Transformismo do PT. A eleição de
Lula expressou a vontade popular de transformações estruturais e de ruptura com a
herança do governo FHC. Entretanto, o transformismo dos grupos dirigentes do PT
gerou grande frustração. O social-liberalismo corrompido só se consolidou visto que
sustentado por transferências e políticas clientelistas e assistencialistas. Depois de 10
anos de governo há a falência do PT que tem sido absolutamente incapaz de realizar
mudanças estruturais no país. Só houve a consolidação do Modelo Liberal Periférico
(que reúne o que há de pior no liberalismo e na periferia) e a manutenção da trajetória
de Desenvolvimento às Avessas. O transformismo petista – codinome Lulismo – gera
frustração e revolta.14
O Brasil Invertebrado, O Brasil Negativado e o Transformismo do PT/Lulismo
agravam os problemas econômicos, sociais, éticos, políticos e institucionais,
comprometem a capacidade de desenvolvimento do país, e geram frustração,
sofrimento e revolta. Portanto, os governos petistas e seus aliados são os principais
responsáveis pela crise atual.
Naturalmente, há fatores de transbordamento (“gota d´água”) que provocaram
a eclosão da revolta popular: baixo crescimento da renda, aumento da inflação,
reajuste das tarifas de transporte, PEC 37, demora na punição efetiva dos condenados
no caso do mensalão, desperdício de recursos com a Copa e as Olimpíadas, aumento
das evidências de enriquecimento de dirigentes políticos e promiscuidade com grandes
empresários, etc. Entretanto, na raiz desses fatores há graves problemas estruturais. A
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O argumento de que o Transformismo do PT decorre do pragmatismo das lideranças máximas (na realidade, os donos) do PT é pura falácia e tem sido repetido ad nauseum pelos aliados dos governos petistas (exemplo recente: Beluzzo, 2013, p. 108). A falácia é óbvia quando se considera: Argumento No. 1: na disputa pelo poder os dirigentes petistas e seus aliados se comprometem com a disputa ideológica, política e eleitoral focada em princípios e projetos de mudanças estruturais; Argumento No. 2: estes mesmos atores afirmam que, tendo tido acesso ao poder, a governabilidade depende de alianças e pactos com grupos econômicos e políticos que defendem ideologias e políticas diametralmente opostas; o que inviabiliza princípios e projetos de mudanças estruturais; e, Argumento No. 3: estes atores concluem, então, que no poder é necessário abandonar princípios, programas e políticas para garantir a governabilidade. Simplesmente uma falácia. A governabilidade exige, não a capitulação frente aos setores dominantes, e, sim, o acirramento da luta política (fora e dentro do Estado) para realizar projetos de transformação. Nos governos petistas ocorre exatamente o oposto: ideologia, programas e políticas tornam-se irrelevantes e descartáveis sob o imperativo do acesso ao poder e perpetuação no poder. Na tradição política brasileira o pragmatismo é, quase sempre, usado como biombo para covardia, cinismo, hipocrisia e projetos pessoais de glória, riqueza e poder pessoais.
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proteção da indústria automobilística, a inoperância e a corrupção comprometem todo
o sistema de transporte. A degradação na educação e a tragédia na saúde são
processos evidentes. A indignação e o desconforto da população decorrem também da
hipocrisia e da inoperância dos grupos dirigentes, do abuso do poder econômico das
grandes empresas e da impunidade. Há também clara percepção de crise ética
associada à fragilidade e degradação das instituições.
E, ademais, no plano da disputa político-partidária, de modo geral, a oposição é
tão medíocre e nefasta quanto a situação. Esta é uma razão adicional que mostra que
a crise é sistêmica e, não é por outra razão, que os manifestantes dispensam e, até
mesmo rejeitam os partidos políticos e as lideranças tradicionais. No Brasil a
promiscuidade epidêmica, que envolve dirigentes e grandes empresas e não implicava
risco moral, parece ter alcançado ponto de saturação. Há crise de legitimidade do
Estado e de representação. Enfim, crise institucional.
4. Reação governamental: algoritmo secular
Como parte da herança maldita do governo Lula há não somente o
aprofundamento do Modelo Liberal Periférico e o Desenvolvimento às Avessas, como
também o déficit de governança e de liderança (governo Dilma). Estes fenômenos são
causas da falta de apoio para as propostas apresentadas no dia 24 de junho.
O Pacto No. 1 reafirma a responsabilidade fiscal. Por um lado, ele informa aos
setores dominantes (principalmente, bancos e grupos rentistas) que seus interesses
não serão afetados, ou seja, não haverá qualquer mudança na política de geração de
superávits primários focados no pagamento dos juros da dívida pública. Por outro, há a
sinalização para governadores e prefeitos que, sendo evidente que a sufocação da
revolta passa pela abertura dos cofres públicos, o Executivo federal quer dividir a
fatura com as outras instâncias de governo. Neste sentido, pode-se ler este pacto da
seguinte forma: a sufocação da crise exige recursos extraordinários que devem
também vir da redução da “taxa de malfeitos” em todas as instâncias de governo.
No que se refere à reforma política (Pacto No. 2), a ideia de plebiscito objetiva
ganhar tempo. É uma forma de adiar decisões que contrariem os interesses dos grupos
dirigentes e dos setores dominantes. Vale notar que a proposta da OAB é a única
sensata: representações da sociedade civil discutem e elaboram um projeto, que
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recolhe apoio na própria sociedade (assinaturas) e é enviado para o Congresso
sancionar. Ou seja, o Executivo fica de fora, enquanto o Legislativo somente aprova; o
que é a única forma de enfrentar a crise de legitimidade do Estado.
A proposta de contratação de médicos estrangeiros (Pacto No. 3) mostra como
a inoperância pode chegar ao ponto do ridículo-trágico. Se esta proposta vingar
teremos médicos bolivianos trabalhando em hospitais no padrão haitiano (com
deficiência de equipamentos, remédios, enfermeiros, técnicos, administradores,
superfaturamento nas compras governamentais, etc.), ou seja, degradação ainda
maior da área da saúde. Há, ainda, a proposta inócua de aumento das penas por
corrupção. O Brasil tem um sistema penal profundamente antidemocrático em que
rico não é preso. Que diferença faz penas de prisão de 1 ano ou 30 anos para ricos que
sabem que não serão presos? Esta medida desmoralizará ainda mais as instituições e,
em algum momento, provocará mais indignação e revolta.
Os Pactos No. 4 e 5 envolvem promessas de maiores investimentos em
transporte e educação que, como parte da estratégia governamental, envolvem
promessas que não serão cumpridas. Na realidade, estes pactos reproduzem a prática
de 2 governos petistas que executaram menos da metade dos recursos
comprometidos com a área social.
O fato relevante é que a estratégia dos grupos dirigentes para enfrentar a crise
é a da “maré baixa”, ou seja, eles precisam cometer o mínimo de erros e ganhar
tempo. Na tradição secular brasileira os grupos dirigentes, frente à pressão popular,
usam o seguinte método: 1) cooptação de lideranças (verbas e cargos públicos); 2)
concessões marginais e pontuais para a população; 3) reforminhas políticas e eleitorais
inócuas; 4) promessas que não serão cumpridas; e 5) repressão.15 A divisão de
trabalho no poder Executivo é a seguinte: a instância municipal foca nas concessões
marginais e pontuais; a instância estadual se concentra na repressão violenta; a
instância federal encaminha reforminhas inócuas e, com a escalada da crise, entra com
a repressão ainda mais violenta; e as 3 instâncias dividem as tarefas de cooptar
lideranças e comprometer-se com promessas que não serão cumpridas. Este processo
se repete na crise atual.
15
Ver Rodrigues (1964).
12
O Quadro 5 mostra o algoritmo de enfrentamento de protestos populares
usado secularmente no Brasil.
QUADRO 5
5. Propostas orientadas para mudanças estruturais
A ruptura com o Modelo Liberal Periférico é a condição necessária para
reverter o Desenvolvimento às Avessas. Também é necessário ir além das propostas
genéricas ou consensuais de maior investimento em educação, saúde, habitação e
infraestrutura urbana. É preciso ir além das propostas pouco diferenciadas focadas
nas funções do Estado: estabilização, regulação, alocação e distribuição. Para ilustrar,
não basta quebrar do tridente satânico da política macroeconômica (câmbio flexível,
meta de inflação e mega superávit primário). Se, por um lado, é verdade que na
atualidade as funções do Estado brasileiro são distorcidas, enviesadas e ineficazes; por
outro, é ainda mais verdadeiro afirmar que há questões vinculadas à estrutura de
poder que precisam ser mudadas. O desafio histórico-político é romper o pacto atual
entre os grupos dirigentes e os setores dominantes. Nesta direção, podem ser
apresentadas algumas propostas.
13
A primeira proposta atinge o antidemocrático sistema penal brasileiro que se
caracteriza, entre outras anomalias, pelo fato de que, com raras exceções que
confirmam a regra, os ricos não são presos no Brasil. Dirigentes e políticos corruptos,
bem como empresários corruptores, também se beneficiam da impunidade. É um
verdadeiro atraso, uma aberração institucional que é absolutamente antidemocrática
e está vigente e pujante no Brasil no século XXI. País desenvolvido é país em que rico
vai para a cadeia. O Brasil só iniciará, efetivamente, o caminho na direção da
democracia e do desenvolvimento quando os criminosos ricos forem condenados e
cumprirem suas sentenças de prisão. Os 8 ou 9 anos de processo do mensalão não
expressam a força da institucionalidade democrática; muito pelo contrário, este
processo revela um dos lados mais profundamente antidemocráticos da realidade
brasileira.
A segunda proposta trata do combate ao abuso de poder econômico que gera
ineficiência, concentração de renda, humilhação e sofrimento para a população. No
Brasil há limbo jurídico e institucional que impede a efetiva fiscalização das práticas de
abuso do poder econômico por parte dos bancos. Ademais, estas práticas não se
restringem aos bancos. A lista das empresas mais acionáveis nos juizados especiais
cíveis em processos de defesa do consumidor inclui além, naturalmente dos bancos, as
empresas de serviços de utilidade pública. E a impunidade não é somente privilégio
dos ricos como pessoas físicas. A institucionalidade regulatória brasileiro é frágil. No
período 2008-10 somente 4,7% das multas aplicadas pelas agências reguladoras no
Brasil foram efetivamente pagas.
A terceira proposta abarca o sistema tributário-fiscal. Inúmeras medidas
devem ser tomadas: (1) mudar a estrutura tributária, de regressiva para progressiva; a
modificação substantiva do sistema de alíquotas é fundamental, de forma que os ricos
paguem proporcionalmente mais impostos do que a classe média e os pobres. É
inadmissível que sobre os rendimentos do trabalho da classe média incida a mesma
alíquota que incide sobre os rendimentos do trabalho dos ricos. É necessária a
desoneração tributária que incide diretamente sobre a renda dos pobres e da classe
média; (2) eliminar boa parte das medidas de desoneração, seja da folha de
pagamento, seja a redução de IPI, principalmente dos setores de bens de consumo
duráveis (automóveis, linha branca etc.) e dos setores em que há baixa concorrência
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(produtos intermediários); (3) fazer com que a tributação sobre os rendimentos do
capital seja maior do que a tributação sobre os rendimentos do trabalho; (4) maior
taxação do estoque de riqueza dos ricos (ativos reais e financeiros superiores,
digamos, a R$ 10 milhões); (5) eliminar subsídios em financiamentos para projetos de
investimento de grandes empresas e grupos econômicos; (6) aumento da tributação
sobre a entrada e a saída de capitais do país, inclusive sobre remessas das rendas
(lucros e juros) destes capitais; (7) acabar com o financiamento com recursos públicos
para empresas estrangeiras que operam no país; e, (8) reduzir financiamento e
aumentar a tributação do setor primário, inclusive, com impostos específicos sobre
exportação.
A quarta proposta refere-se à questão do financiamento/gastos de partidos
políticos e campanhas eleitorais. As relações entre, de um lado, dirigentes partidários
e políticos e, de outro, agentes privados, principalmente, dos setores dominantes
(empreiteiras, bancos e setor primário-exportador) abarcam diferentes mecanismos:
compras governamentais, financiamento dos bancos públicos, concessão, regulação,
tráfico de influência etc. Entretanto, há outro mecanismo que cria fortes laços entre
homens públicos e agentes privados que é o financiamento dos partidos e das
campanhas eleitorais. Estes laços podem gerar relações de sujeição dos homens
públicos. A situação agrava-se com o famigerado saldo do “caixa 2” de campanhas
eleitorais que acaba por desembocar nos bolsos de dirigentes partidários, políticos etc.
A questão central é tanto definir normas claras de financiamento de campanhas,
como, principalmente, adotar rigorosa auditoria sobre os gastos de campanha. O
conceito de “ficha limpa” não deve se restringir ao período de exercício de mandato
eletivo e, sim, se estender para as práticas de financiamentos e gastos nas campanhas
eleitorais. A efetiva democratização do sistema penal brasileiro reduziria
significativamente os ilícitos praticados no esquema financiamento/gastos de partidos
e políticos.
A quinta proposta procura combater o nexo poder político-riqueza que é tão
nefasto em decorrência do patrimonialismo secular e da corrupção endêmica. Trata-se
de emenda constitucional que altera o Art. 14 da Constituição Federal que incorpora o
seguinte: 1) nenhum mandato eletivo será superior a 4 (quatro anos); 2) o Presidente
da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos, os
15
Senadores, os Deputados Federais, os Deputados Estaduais, os Deputados Distritais e
os Vereadores e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos não
poderão ser reeleitos para um período subseqüente; e, 3) nenhum cidadão poderá
acumular mais do que 12 (doze anos) de mandatos eletivos nos Poderes Legislativos da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e nos cargos de Vice-
presidente, Vice-governador, Vice-prefeito e Ministro de Estado, e nos cargos de
secretário nos governos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Estes limites
podem ser estendidos também para as principais agências reguladoras, empresas e
bancos públicos. Esta proposta também pode ser complementada pela drástica
redução dos cargos de direção e assessoramento superior no serviço público; o que
permitirá, inclusive, o maior uso de funcionários públicos concursados . Na realidade, o
objetivo é acabar com a carreira de “político profissional”. Ademais, em um país com
mais de 150 milhões de adultos, deve-se procurar criar espaço para o surgimento de
novos forças e lideranças políticas. A democratização do tempo na televisão durante o
período eleitoral também é uma peça-chave do processo de mudanças.
6. Conclusões e perspectivas
A ênfase exagerada na influência do “inferno urbano” brasileiro nos protestos
populares é, certamente, um equívoco. Além de negligenciar as raízes estruturais da
crise, este enfoque desconhece o papel dos catalisadores que são fenômeno recente e
estão associados aos governos petistas (e seus aliados) (Gonçalves, 2013.d).
O Modelo Liberal Periférico tem tido fraco desempenho pelos padrões
históricos brasileiros e pelos atuais padrões internacionais, inclusive durante os
governos Lula e Dilma. E, como resultado do MLP, o país está em trajetória de
Desenvolvimento às Avessas. Se continuarmos com este modelo e nesta trajetória, a
poucos anos do bicentenário da independência o país faz viagem rumo ao passado. Os
governos petistas e seus aliados são os principais responsáveis visto que o Brasil
Invertebrado, o Brasil Negativado e o transformismo do PT/Lulismo agravam a crise
sistêmica.
Os fatos fundamentais são evidentes: problemas estruturais (econômicos,
sociais, éticos, políticos e institucionais), déficit de lideranças e organizações, déficits
de governança e de governabilidade, e crise institucional. Enfim, crise sistêmica. Não
16
há registro de manifestações significativas contra o atual modelo de desenvolvimento.
Não há indícios de propostas de reformas efetivamente estruturantes de um novo
modelo. Ademais, a estratégia de “maré baixa” dos grupos dirigentes e dos setores
dominantes é clara e para isso a tática é evidente: cooptação, concessões pontuais,
conciliação, reforminhas políticas e institucionais, promessas não cumpridas e
repressão violenta. Neste contexto, a probabilidade de que as revoltas populares
atuais causem mudanças estruturais é pequena.
A trajetória futura é de instabilidade pelas seguintes razões: 1) a crise tem
raízes estruturais; 2) a crise é sistêmica; 3) não é do interesse dos grupos dirigentes e
dos setores dominantes realizar mudanças estruturais; e 4) no movimento popular não
há convergência de entendimentos sobre as causas e responsabilidades da crise, nem
sobre propostas de luta política.
O Brasil entranha-se em trajetória de fraco desempenho econômico, com
recorrentes momentos de instabilidade e crise, e embrenha-se em nuvens cinzentas
que turvam o caminho do desenvolvimento social, político, ético e institucional em
função dos problemas estruturais que não são enfrentados. A “maré baixa” da revolta
popular não mudará a trajetória de instabilidade porque os problemas estruturais
permanecerão.
O mais provável é a repetição do nosso conhecido drama histórico: êxito no
curto prazo da estratégia de “maré baixa” dos grupos dirigentes e dos setores
dominantes, que contam com a perda de fôlego, exaustão e fadiga dos manifestantes.
Infelizmente é mínima a probabilidade de mudanças efetivas no padrão de dominação,
nas estruturas de poder e riqueza e, portanto, resta a persistência do Modelo Liberal
Periférico e do Desenvolvimento às Avessas na trajetória de instabilidade e crise.
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