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ISBN978-85-60668-02-1

Foto da Capa: Osmar Gusmão, pátio interno do CPFEP.Capa e Editoração: Rômulo GarciasRevisão: Andreza Lima de Menezes

Impressão: Gráfica e Editora O Lutador – 2010

Ficha catalográfica:

De uniforme diferente: o livro das agentes.

Virgílio de Mattos – Belo Horizonte : Fundação MDC, 2010.

1. Criminologia. 2. Execução Penal. 3. Sistema Prisional. 4. Agentes penitenciárias.

5. Direitos Humanos.

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“Don’t expect a prision officer to have a heart.His pay will not allow it.”

Bernard Shaw

“Do Estado a gente só tem desconto1.”

“O processo de legitimação da violência no sistema penitenciário brasilei-ro está ancorado, na forma e no lugar, na cultura jurídica e religiosa. Os

atos violentos são, eles próprios, derivados de um estoque de tradições depunição relacionadas a penas muito antigas (degredo e morte). Portanto, a

violência e a crueldade presentes em nosso sistema não são um fatoexcepcional, mas um acontecimento maior que tem vínculos com as

culturas jurídica e religiosa sobre a punição”2.

1 - Agente que pediu para não ser identificada.2 - Gizlene Neder, Sentimentos e Ideias Jurídicas no Brasil: Pena de morte e Degredo Em doistempos. In: História das Prisões no Brasil, vol. I. Rio de Janeiro : Rocco, 2009, p. 105.

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SumárioSumário

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Null – Advertência necessária

Prefácio – Túlio Vianna

I – Introdução

II – Diz aí, Dona Agente

III – O que a Dona Agente não diz

IV – Os gráficos

V – Conclusões?

VI – Referências

Anexos

I – Grupo Focal entre diretores de

unidades prisionais.

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AdvertêncianecessáriaAdvertência necessária

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Pense bem antes de começar a leitura. Este livro pode não lhefazer bem. Aliás, esse é o tipo de leitura difícil de fazer bem, no sentido deproporcionar bem-estar ao leitor. Não estamos aqui pra isso. É mais umretrato em branco e preto, sem soneto, sem retoque, sem possibilidade decanção.

Vários foram aqueles que ajudaram de algum modo na feituradeste trabalho, pelo menos no de campo, e se distanciaram da pesquisa e docurso de seu curso. Alguns com silencioso oportunismo, após conseguiremo que queriam, sejam ideias, contatos, aprovação; outros com passiva indi-ferença. Poucos aguentam por muito tempo o tranco, que não é fácil, issoera avisado desde o início: era um trabalho aos trancos, que nos sacudia atodos os envolvidos. Dos que se distanciaram não lhes registro o nome enem cobro explicações. Cada um sabe as trilhas que traça, pena de sertraçado por elas, paciência. Paciência nunca foi o meu forte. Sigo tocando obarco aproveitando essa calma tempestade. Mesmo para estudantes de di-reito e psicologia lidar com trabalhadoras do sistema prisional não é nadacorriqueiro, nem fácil, entendemos.

Oportuna a citação do comandante Carlos Marighella, herói dopovo brasileiro, durante movimento de reivindicação por ele liderado, quan-do preso na Ilha Grande-RJ: “ou tá com o coletivo ou tá com a casa”.Obviamente sempre estivemos do lado do coletivo. Obviamente “a Casa”soube disso desde o início. Sempre dissemos a que vínhamos e o porquê.Nada escondido. Nunca houve nada escondido de nossa parte, de nossolado. Cada um sabe bem o lado que escolheu. Todo mundo tem um lado.No fundo todo mundo tem um lado e tenta defendê-lo e se defender comele, sendo possível. Às vezes é possível mudar de lado, mas nós nuncafizemos ou sequer cogitamos disso. Mas também entendemos os que,fragilizados, mudam de lado.

Os alunos têm o vício de se formarem e a pesquisa-ação não secoaduna com a necessidade que se lhes aparece em primeiro plano: ganhardinheiro. É preciso compreender isso. De ambos os lados. Esteja de quelado estiver.

No campo dos agradecimentos a professora Vanessa Barros, doscursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da UFMG, foi de gran-de ajuda na formação do questionário.

À pesquisadora Vanessa De Maria, bem como ao professor Gui-lherme Portugal, quando ela disse que não conseguia, agradeço a correção

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e a forma final dos gráficos.Laurinha Lambert, com a paciência de Jó bíblico de sempre,

garantiu a tranquilidade necessária, e a logística idem, para a feitura destaescritura, como sempre fez com as outras e fará com as futuras, estamosabsolutamente seguros disso. Dela ainda as correções de rumo fundamen-tais sempre que derivávamos como um destroço no mar dessa tempestadedo sistema prisional neoliberal de Minas.

Paula Brito, cujo trabalho sobre a homoafetividade prisional femi-nina é um marco, estava presente quando o Grupo de Pesquisa-Ação foi“terminantemente proibido” de seguir a pesquisa e frequentar a penitenci-ária por um desses ilusionistas iludidos. Ao sairmos da penitenciária, pelaúltima vez, me disse, sem conseguir conter a tristeza que a engasgava: “issonão pode ficar assim. Que absurdo! O que o senhor vai fazer?”. Lem-bra que eu pedi pra você ter calma e esperar, Paulinha?

Tenham todos boa leitura!

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Este não é mais um livro jurídico escrito em uma torre de marfim.Este livro foi escrito em uma masmorra de areia que, se ainda existe, éporque até os ventos fazem curvas para não terem que visitá-la. Este livro éum sopro a plenos pulmões. E como sopra este Virgílio de Mattos!

Virgílio é meu eterno mestre preferido do Direito Penal. Dentreas muitas coisas que aprendi com ele, uma das mais importantes você apren-derá também lendo este livro: o Direito não se faz em gabinetes com arcondicionado, mas nas ruas que enlameiam a barra da calça de seu terninhobem cortado. Este livro tem cheiro de suor.

Poucos são os juristas dispostos a enfrentar o trabalho de campo.É muito mais penoso que a produção dogmática, é muito menos valorizadopor seus pares e, principalmente, é preciso ter consigo uma dose de sonhoincomum nestes dias em que o sucesso profissional equivale a ser aprovadoem um concurso público.

Ir ao presídio, olhar de perto o que o Direito criou e, a partir da-quele lugar físico e teórico, botar os dedos na ferida é um grande desafio.Virgílio foi, olhou e viu. Para ir e olhar é preciso antes de tudo disposição;pra ver é preciso perspicácia. E a perspicácia de Virgílio é tamanha que elepercebeu que lá não se encontravam presas apenas as presas, mas tambémsuas vigias.

PrefácioPrefácio

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“De Uniforme Diferente” é, nas palavras do próprio Virgílio, umlivro sobre “mulheres que custodiam outras mulheres e – disso quasenenhuma delas se dá conta – que também estão presas, embora esseregime semiaberto seja ao contrário: elas trabalham presas e vão dor-mir em casa, ao contrário daquelas que saem para trabalhar e voltampara dormir na penitenciária”.

No fundo ninguém queria estar ali: nem as presas, nem as agen-tes, nem Virgílio.

É possível também que você não queira ler este livro. Nós enten-deremos.

Só não é possível defender um modelo punitivo tão sofrível eexcludente para todos que com ele convivem diariamente sem saber do quese trata.

Este livro de Virgílio aponta para este modelo e diz: “Vejam, oh, éde areia!”.

Respirem fundo e soprem com ele.Belo Horizonte, verão escaldante de 2010.

Túlio Vianna3

3 Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFMG. Editor do site www.tuliovianna.org

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INTRODUÇÃO I

“Ditadura, liberdade, democracia… a casa do caralho! Eu queroé paz no meu plantão!”4

Este resultado de pesquisa de campo que se vai ler teve curso napenitenciária feminina de Belo Horizonte, a aplicação do questionário ocor-reu no período de fevereiro a dezembro de 2007 e abrangeu a totalidade5

das trabalhadoras dali, naquele período. O grupo focal que se encontra trans-crito no anexo foi realizado no final de 2005.

Assim como fizemos com todas as presas no período 2005/2006,submetemos todas as trabalhadoras do atualmente denominado ComplexoPenitenciário Feminino Estevão Pinto, a penitenciária de mulheres da capi-tal do Estado de Minas Gerais, a um questionário, com 51 perguntas. Onzea menos do que o questionário anteriormente aplicado às presas, cujos re-sultados já foram publicados6. Tínhamos com quase todas elas uma convi-vência amistosa. A relação com o Grupo era diferente daquela mantida comoutros visitantes esporádicos. Nós nos situávamos entre aqueles que, mes-mo não sendo do grupo de agentes ou do Estado, presenciávamos e enten-díamos as dificuldades diuturnas daquele trabalho. Estávamos ali pelo me-nos uma vez por semana, desde 2005.

Depois de terminada a primeira fase da pesquisa sobre Violência,Criminalidade e Direitos Humanos, do lado de dentro do Complexo Peniten-ciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte, onde analisávamos osdados referentes às presas, houve a necessidade de também nos debruçar-mos sobre a questão das agentes e demais trabalhadoras que ali exercemsuas funções em tempos de encarceramento em massa. É disso, basica-mente, que cuida este livro: mulheres que custodiam outras mulheres e -disso quase nenhuma delas se dá conta - que também estão presas, emboraesse regime semiaberto seja ao contrário: elas trabalham presas e vão dor-

4 Ricardo Azevedo, O plantão do Napolitano. pp. 83-87. In; Tiradentes, um presídio da ditadura:memórias de presos políticos. Alípio Freire, Izaías Almada, J.A. de Granviele Ponce organizadores.São Paulo, Scipione, 1997.5 Menos um quadro técnico, que se recusou, em mais de uma oportunidade, a responder o questi-onário ou dialogar com os pesquisadores.6 Cf. A VISIBILIDADE DO INVISÍVEL. Belo Horizonte : Fundação MDC, 2008.

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mir em casa, ao contrário daquelas que saem para trabalhar e voltam paradormir na penitenciária.

Uma das principais razões de ser desta publicação é a crítica feitapelas trabalhadoras do sistema penitenciário, no sentido que toda literaturapenitenciarista padeceria de um vício: “teórico-metodológico, centradona narrativa dos encarregados da aplicação da lei nas prisões, (...)que se apóia, quase que exclusivamente, nos relatos dos apenados”.7

Neste trabalho que se vai ler não só a metodologia é diferente, mas tambéma história é bem outra, seu avesso. Os relatos baseiam-se inteiramente nasfalas das agentes, nas respostas, nas informações passadas durante, antes edepois das aplicações dos questionários.

O que quer a agente (carcereira/guarda) penitenciária? Paz noseu plantão. Há alguns outros sonhos, como fazer faculdade (34%), cons-truir casa própria (18%), prestar um concurso público (13%), casar e terfilhos (11%), se aposentar (8%), tirar carteira nacional de habilitação (3%)ou mesmo sem planos8 (3%), mas principalmente o que se almeja num diacomum de trabalho é ter paz. Ir e voltar em paz para casa, uma questão quenão está muito presente no cotidiano da maioria das trabalhadoras de outrasáreas, que vivem na realidade o lance de dados de Stephan Mallarmé, quejamais pode abolir o acaso, mesmo durante um naufrágio. As agentes traba-lham como se estivessem durante um naufrágio, diuturnamente.

Ir e voltar em paz significa, ou pode ser resumido, basicamente,em voltar com vida, “sã e salva.” Sem que a cadeia “vire”, ou “balance” 6.Sem que haja rebelião ou motim. Sem que o chefe torne sua jornada aindamais difícil e insuportável. Sem que haja “furos”. Sem que morra algumapresa, fato lamentavelmente comum logo após o encerramento da pesquisanaquela unidade9.

A agente (carcereira/guarda) tem um tipo de trabalho bastantediferente e valorizado em tempos de controle total e encarceramento em

7 CASTRO E SILVA, Anderson Moraes de. Nos braços da lei: o uso da violência negociada nointerior das prisões. Rio de Janeiro : e+a, 2008, p. 1. Anderson foi policial civil e agentepenitenciário no Rio de Janeiro, utilizou essa trajetória anterior na sua pesquisa acadêmica noPrograma de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS) da UFRJ.8 Deve ser triste o futuro de alguém sem planos, ainda que o presente deva agoniar mais.9 A cadeia “virar” é o medo pânico de todo trabalhador do sistema. Significa que aqueles que sãomandados passam a mandar e aqueles que mandavam tornam-se reféns. Encontra sinonímia emrebelião, motim. A cadeia “balançando” é expressão que significa tentativa de rebelião ou motim,qualquer “clima pesado” ou “clima ruim” pode ter o mesmo efeito no imaginário da agente.

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massa10: com garantia de absorver mão-de-obra, mesmo não especializada.Normalmente há medo e tensão antes e a caminho do trabalho, durante otrabalho – em crescendo - e após o trabalho. O medo é algo perceptível,concreto, que parece poder ser cortado à faca. Ainda que 11% delas sus-tentem que não têm medo de nada. O limite entre um medo controlado e omedo pânico é tênue, evidenciado naquelas que confessam não dormir bem(18%), ter pesadelos (17%) e insônia (33%), bem como tomar medicaçãopara depressão e ansiedade (15%). Um número extremamente alto (40%)sofre de hipertensão e toma medicação específica, dores são comuns (25%)e demandam medicação diária, “senão a gente não dá conta nem depensar”. Mais da metade (53%) já esteve afastada do serviço, um númerosignificativo por depressão, estresse e transtornos mentais mais graves (22%).

61% buscam “medicar” as condições pesadas de trabalho com oálcool, no final de semana (34%) e “socialmente” (61%). 17% não sabem oque é ter um bom dia de trabalho.

Mas a agente ainda encontra, mal chega em casa, quase sempreapós um dia estafante e tenso - tanto física quanto mentalmente -, asobrejornada de trabalho invisível: arrumar a casa, lavar e passar a roupa,preparar alimentação para ela mesma e para a família, resolver os proble-mas da família, ajudar a fazer os deveres escolares, planejar o dia seguintede todos, etc.

Quase sempre essa questão é omitida, assim como o fato de amaioria delas utilizar a remuneração como parcela fundamental para o sus-tento da família, mesmo quando a família não é monoparental.

Assim como a existência das presas, para aqueles que estão no“mundão”, esse fato cotidiano é invisível. Essa dupla exploração de gêneroé tida como “normal”. Afinal a mulher que trabalha, “tem que dar contadas obrigações normais de mulher, né?!11” As próprias vítimas da duplajornada dizem que ela faz parte das “obrigações normais de mulher” e

10 O número de suicídios, tentados e consumados, aumentou vertiginosamente, fato que redundou,inclusive, em audiência pública, a pedido do Sindicato da categoria dos agentes prisionais,, naComissão de Direitos Humanos da ALMG.11 Nos últimos 15 anos houve um aumento de 250% no número de presos, segundo AirtonMichels, coordenador do DEPEN, do Ministério de Justiça. Em “Seminário Nacional Psicologiaem Interface com a Justiça e Direitos Humanos: um compromisso com a sociedade”, do ConselhoFederal de Psicologia, Brasília – DF, 19/11/2009.

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não se insurgem contra isso, porque, afinal de contas, “desde que o mundoé mundo as coisas são assim”12, dizem, encerrando qualquer possibilidadede aprofundamento, ou mesmo de um questionamento específico sobre aquestão de gênero.

Além de quererem “paz no plantão”, qual seria o perfil13 dessastrabalhadoras? Por que escolheram essa atividade? Há escolha? Houveescolha da carreira? Quais os principais problemas, no trabalho e fora dele?Haveria um padrão? Haveria adoecimento pelo trabalho estafante,estressante, relativamente14 bem pago?

O curioso/sintomático é que dentre todos os trabalhadores umaúnica pessoa recusou-se terminantemente, muito irritada e muito nervosa, aser entrevistada, mesmo após várias tentativas, porque “eu não vou ficarrespondendo questionário pra vocês”. Era uma agente do quadro técni-co, uma assistente social. Rara unanimidade: odiada tanto pelas presas, quantopelas demais trabalhadoras. Ganhou também nossa antipatia.

Entristece ter que concordar com a fala de uma antiga tra-balhadora do sistema: “Todo mundo sonha em ter uma profissão legal.Engenheiro, médico, advogado. Ninguém sonha em ser agente peni-tenciário”.

Por quê?Pode parecer prosaica a realidade do sistema penitenciário brasi-

leiro, em especial o mineiro, se se olha para uma, duas décadas atrás. Nãosó o espanto em relação aos números (de trabalhadores e presos), mas aprópria lógica do sistema, comparados com o encarceramento em massaque assistimos exponencialmente em todo o mundo. A prisão como fonte deemprego e lucro. Arremedo de solução para a violência, também ela agoraem curva ascendente, que só produz mais violência. Para emprestarmos aexpressão de FOUCAULT, a cadeia que gera mais crimes é como o hospi-tal que gera mais doenças.

E essas invisíveis trabalhadoras, quem se preocupa com elas? Paraos chefes de ocasião são “moles” demais e quanto mais “duras”, mais as-cendem, mais são bem vistas. Para as presas, “o capeta em forma de gen-

12 Ouvido de uma técnica de nível superior que ficou muito intrigada com a resposta de que otrabalho, as obrigações domésticas não devem ser coisa de mulher, mas de todos que coabitam omesmo espaço, independente do gênero.13 idem.14 Aqui entendido como linha de contorno de qualquer coisa apreendida numa visão de conjunto.

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te”. Para os familiares das presas, “isso não é gente”. Para os própriostrabalhadores, são “estressadinhas demais”. O que forma essas trabalhado-ras? Por que delas se exigem rigor excessivo, violência, rispidez e não setoleram a boa educação, o atuar atencioso e criterioso, como deve ser praxeem todo serviço público? Estariam também elas condenadas, só que semalgemas, a manterem a cabeça baixa e não olharem nos olhos? Espécie deprograma operacional padrão do adoecimento e do descarte de gente pro-movido nos últimos anos pelo sistema prisional neoliberal de Minas.

Basicamente a função das agentes penitenciárias (carcereiras/guardas) e também dos chamados agentes administrativos15 é de dupla or-dem: evitar fugas, manter a ordem interna e o funcionamento burocrático,burocraticamente16 funcionando. Quando nada dando a impressão de quetudo está funcionando.

Como ensina e explica a experiência de CASTRO E SILVA, ain-da que o lócus do sistema seja o Estado do Rio de Janeiro:

“A administração prisional, por sua vez, não se interessa em sabercomo os guardas estão agindo para manter o controle da situação. Osgestores desejam simplesmente que as coisas sejam resolvidas no interiorda cadeia. Ninguém está se importando em saber de que forma isso vemsendo feito. Desde que não ocorram fugas e rebeliões – estes parecem seros únicos fatos que interessam à imprensa local a respeito do sistema penal,nada mais importa”18.

Antigas são as reivindicações de todos, independentemen-te de gênero: uma seleção mais exigente do pessoal contratado, maior graude escolaridade, cursos especiais de treinamento, salários ainda maiores,sobretudo a efetivação daqueles que entraram no sistema sem concursopúblico19 (mais de 79% só nessa unidade específica à época da pesquisa) e

15 Se se considera o valor líquido recebido pelas agentes, categoria à qual se exige o nível de ensinomédio, temos que ele é superior em quase um terço àquelas trabalhadoras que possuem nívelsuperior dentro do sistema prisional.16 Dentro do sistema os trabalhadores podem ser divididos em dois grandes grupos: os chamadosfuncionários administrativos; aí englobando as direções, o serviço social, o jurídico, o de saúde eos agentes penitenciários propriamente ditos (guardas/carcereiras).17Fazendo funcional a estrutura ineficiente, inoperante, morosa nas soluções, sem iniciativa eflexibilidade, indiferente às necessidades das pessoas por ela, burocracia, envolvidas; obediente aosenso comum e, às vezes, com gosto em complicar ainda mais os trâmites rotineiros e ampliar suaárea de operações e seu poder barato.18 CASTRO E SILVA, Anderson Moraes. Nos braços da lei: O uso da violência negociada nointerior das prisões. Rio de Janeiro : a+e, 2008, p.112.19 Em Minas Gerais, à época da pesquisa, havia um total de 13 mil agentes penitenciários, apenas3 mil entraram no sistema por concurso público.

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aí permanecem indefinidamente, alguns há mais de 20 anos.Em tempos de pauperização generalizada, precarização de oferta

de postos de trabalho e crise/quebra do modelo neoliberal, investir na custó-dia de gente passou a ser, literalmente, um “grande negócio”.

A função do sistema prisional não seria mais “apenas” intimidar,punir e tentar evitar que voltem, mas fazer o impossível milagre prescritopela teoria das prevenções da dogmática penal. Além disso, passa a tertambém a função de gerar lucro, postos de trabalho, ascensão vertical, etc.

Para o senso comum o que não se tolera em termos de “falhas”,são aquelas relativas à segurança e à disciplina. Em havendo, serão alcan-çados os níveis mais baixos para “punição”. Esta, em grau máximo, impli-cando na “troca de uniforme”, onde o agente passará a usar o uniforme depreso20; em grau médio, a perda do cargo sem processo penal, fechando aporta de entrada para todo o sistema penal21 - esse mercado em ascensãoe de emprego garantido - na qualidade de trabalhador. Em grau mínimo, atransferência de unidade, para um local pior e mais longe da moradia daagente.

Para a presa, o senso comum estimula a criação de mais tipospenais, espécie de ilusionistas iludidos creem que dessa forma estarãomais seguros em suas casas e apartamentos transformados em pequenasfortalezas à prova de tudo, exceto de pânico; bem como formas de cumpri-mento de penas mais duras. Mais e pior. Mais do pior. Não pode haverconforto, nem nada a ele assemelhado. Uma cela dentro dos padrões daONU22 é quase uma heresia. Este mesmo senso comum estima e estimulaque o sistema de punição e intimidação ao preso e aos seus familiares nosdias de visita seja uma espécie de “norma”. O efeito colateral é que a agen-te (carcereira/guarda) é quem vai ser feita refém nos motins, vai morrer nasrebeliões, ou a caminho do trabalho e saindo dele, vai pagar esse pactoperverso. Quase sempre com o próprio corpo, algumas vezes com a própriavida.

74% das agentes, mesmo quando saem do trabalho, o tra-

20 Raríssima, para não dizermos impossível, a possibilidade de um preso vir a ser um agentepenitenciário, mas a recíproca é muito mais comum do que se possa imaginar.21 Há uma norma não escrita pela qual aqueles que saem do sistema, pouco importando o motivo,a ele não podem voltar.22 Cf. as Regras Mínimas para o tratamento de reclusos, de 1948. Estabelecendo seis metrosquadrados por preso, ambiente arejado, onde frio e calor excessivos sejam evitados; alimentaçãodigna, etc.

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balho não sai delas, observe o gráfico sobre esta questão, o de n. 25. Sãomedos constantes, pesadelo contínuo do desassossego.

Mas preocupou-nos também saber qual a “impressão”,como diziam as presas, que se tem das agentes (carcereiras/guardas) e quepapel elas cumprirão dentro da unidade. As presas referem três grandesgrupos: a “neutra”, que não atrapalha a vida de ninguém, mas também nãoajuda; a “boazinha”, que pode prestar pequenos favores, tratar com dignida-de também aos familiares, levar e trazer notícias; e a “estressadinha”, “jáchega no serviço estressada e quer fazer terapia ‘na’ gente” (sic).

As “estressadinhas” são mesmo um perigo e uma ameaçaconstante ao “sossego” – as aspas são inevitáveis – das presas. Rudes, sempudor em atuarem de forma violenta, manifestam todas as suas frustraçõessobre as presas com o poderzinho que lhes é conferido pelo estado, mas queem cotejo com as presas, sem poder nenhum, exceto o de dizer “sim, senho-ra”, é um poder imenso.

A violência, explícita ou não, está presente desde a panca-da com a tonfa ou no spray de pimenta nos olhos, como também no “vá profundo da cela”, “cala a boca”, “quem manda aqui sou eu”, “quem é que é apresa aqui?”

Mais da metade (53%) já esteve afastada do serviço emfunção de problemas de saúde. Apenas 12% não se queixam de nada quedificulte o trabalho. 58% relatam falta de companheirismo, de comunicaçãoe intrigas, entre as próprias trabalhadoras, como o que mais dificulta o tra-balho. O paradoxo é que 45% relatam que o melhor cargo a ser ocupado emuma penitenciária é exatamente o delas: agentes penitenciárias.

40% dos familiares não aprovam, têm medo e acham muitoperigoso o trabalho por elas desenvolvido. 43% é o percentual de famíliasque sentem orgulho, gostam do trabalho realizado e dão apoio. São opiniõesopostas pelo vértice. Algumas têm outros agentes penitenciários na família:maridos, pais, irmãos, que influenciaram, de certa forma, a opção, a escolhadesse tipo de trabalho. Uma ou duas sempre sonhou em fazer exatamente oque faz.

Algumas poucas agentes são críticas em relação ao pró-prio sistema, “ineficiente, ruim, fracassado, precário, fraco” (24%),embora a maioria tenha dele uma ideia positiva, de que é “bom, seguro,disciplinado”, não faltando mesmo aquelas que fazem rasgados elogios aoatual governo do estado, quase sempre em posição de direção e mando.18% ficam “em cima do muro” e respondem que o sistema “melhorou

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muito”, sendo que 13% sustentam que ainda “pode melhorar”. O que nãodeixa de ser um modo de responder sem se comprometer, o que às vezessignifica não responder. Algumas resumem a questão a dinheiro, “se tiverdinheiro tudo anda”. O que mais nos preocupa são as 3% que “nãoacham nada”. 96% das pesquisadas recomendaria que outra colega res-pondesse ao questionário aplicado, “para que as pessoas ficassem pordentro do que acontece”.

Dividimos o trabalho que se vai ler, para melhor análise, empartes que podem ser lidas de forma estanque, você preferindo, se assimsua pressa ou o pequeno interesse recomendarem: o que dizem as agentes,o que as agentes não dizem, os gráficos e nossas conclusões. No anexo atranscrição de um grupo focal entre diretores de unidades, antes da pesqui-sa de campo.

Enfim, é um texto que dá voz e vez ao universo real e ao doimaginário das agentes, bem por isso nenhuma deles é identificada. A unida-de onde foram aplicados os questionários foi o Complexo Penitenciário Fe-minino de Belo Horizonte, a antiga Penitenciária Industrial Estevão Pinto(PIEP), onde estivemos pesquisando no período de 2005/2008. Outras agen-tes agregaram, em entrevistas e textos, suas impressões sobre as dificulda-des de um trabalho também invisível na prática: a antiga, dolorosa e poucogratificante tarefa de manter gente presa.

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II – “DIZ AÍ, DONA AGENTE”.

“A Bastilha não era apenas uma prisão, mas um monumentoao oculto, a eventos muito além do conhecimento comum.”23.

“Começou a trabalhar e só depois de uns três dias é que percebeuque estava trabalhando em uma penitenciária. Pensou que estavatrabalhando em uma fábrica”.24

“Que podemos fazer com essa pesquisa?”25

Assim como procedemos no A VISIBILIDADE DO INVISÍ-VEL26, fundamental darmos voz às próprias agentes além do questionáriorespondido. Nas respostas dadas, por mais que houvesse confiança (maio-ria dos casos) e boa vontade (em todas elas), sempre havia o medo e o riscode haver alguém “monitorando” – para usar um termo caro àquelas quevivem e trabalham sob o geist da segurança -, por isso a transcrição integralde um relato de agente penitenciária, que não será, a pedido, identificada:“pode prejudicar a gente, o senhor sabe como é”. Lógico que sei comoé. Dizer a verdade pode custar o cargo, o emprego, quando nada o sossego.

“Diz aí, Dona Agente”. Gíria utilizada pelas presas com aquelasagentes da categoria de “boazinhas”; porque utilizar essa expressão comuma “estressadinha” na certa redundaria em “comunicação”27 contra a presa,ainda que a expressão signifique, em rigor; “manda, Dona Agente”.

Eis o relato, conforme combinado, com ausência de sinaisidentificadores da autora:

23 O que os olhos não veem: histórias das prisões no Rio de Janeiro. Marcos Luiz Bretas. Históriadas Prisões no Brasil, vol. II. Rio de Janeiro : Rocco, 2009, p.186.24 De um questionário descrevendo o primeiro dia de trabalho.25 De uma psicóloga, quando perguntada se tinha algo mais a dizer.26 opus cit.27 Podendo, conforme a “comunicação” da agente redundar em Conselho Disciplinar para a presa.

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“Considerações sobre as dificuldadesvivenciadas no trabalho

Inicialmente, gostaria de informar que sou servidoraconcursada28 da Secretaria de Defesa Social há um ano e que na uni-dade prisional onde atuo, que está localizada na Região Metropolita-na de Belo Horizonte, não existe transporte público até lá. Alguns ser-vidores que moram em Belo Horizonte, assim como eu, solicitamos daempresa de transporte que determinasse ao motorista da viagem de 7horas da manhã que nos trouxesse até o presídio. Isso foi acatado,porém diariamente sofremos com esta situação, pois tanto o motoristaquanto o trocador não gostam de fazer o que foi pedido. O mal-estarjá começa logo cedo, com as indiretas do tipo, “já estamos atrasados,vou pedir para trocar de horário” e outras coisas mais que nem mere-cem ser citadas. Se uma de nós atrasa e perde esse ônibus, o próximojá não nos leva. Temos que andar por cerca de 30 minutos em umaestrada com pouco movimento ou pedir carona. Quanto aos familiaresde presos, a realidade é a mesma.

Apenas nos finais de semana esta linha vem até a uni-dade em horários determinados para trazer e buscar os familiares.

Outro ponto que merece ser destacado e exemplificadoé que o quadro de servidores é deficiente, sobrecarregando a todos egerando cansaço e adoecimento. Não temos previsão de quando essarealidade poderá ser modificada (...) a unidade tem 250 presos.

Nesse presídio inexistem telefones públicos para queos presos possam conversar com seus familiares.

Outro aspecto a ser relatado é a falta de incentivo, mo-tivação por parte dos diretores. À medida que o tempo passa percebe-mos que existe um jogo de interesses, todos querem ser diretores geraise só se preocupam em criar atritos, fazer intriga, etc. Talvez a vaidadeexcessiva seja o termo melhor a ser empregado.

Em relação à dificuldade na resposta dos órgãos naexecução dos serviços vale citar um exemplo ocorrido no local de tra-balho. O consultório do dentista ficou sem funcionar por 4 meses por-que uma peça que custava R$ 35,00 estragou e não cabia licitação,pois o valor era baixo demais. Os detentos ficaram sem atendimento

28 Fato que é bastante raro.

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por todo este tempo e o profissional ficou bastante desestimulado.Em relação às metas da Secretaria de Defesa Social,

não existe clareza destas metas, nem mesmo número de detentos a se-rem atendidos, número de documentação providenciada, etc.

Convém citar que existe uma carga horária a ser cum-prida pelos profissionais de nível superior. Esta cobrança só é válidapara a Pedagogia, Enfermeira e Assistente Social. Os demais profissi-onais fazem de acordo com a sua conveniência. O tratamento é desi-gual. Isso gera desconforto e falta de motivação. Enquanto uns estãosobrecarregados, pois a demanda é contínua, outros ficam tranquilose no dia do pagamento o valor recebido é o mesmo. Tal situação ocor-re em todas as unidades prisionais. O tratamento é desigual.

Outro assunto que merece ser destacado é em relaçãoà mídia, ela não mostra a realidade dos presídios. Será que o que asociedade quer é ver as unidades prisionais superlotadas? Presos emcelas coletivas? Famílias sendo destruídas? Jovens que poderiam cum-prir outro tipo de punição, porém estão trancados igual a bichos, jo-vens que deveriam estar se tratando da dependência química, porémpor serem pobres, com baixa escolaridade e morarem na periferia eaglomerados, encontram-se presos à espera de um julgamento que podedemorar anos.

A manipulação dos meios de comunicação é impressio-nante. Apenas mostra o que é de interesse do poder econômico, o lobbyé fortíssimo. Várias leis foram votadas, objetivando o recrudescimentodas penas, em função do poder exercido pela mídia, exemplificando, alei dos crimes hediondos e agora retornando com o examecriminológico. Tal exame “medirá” qual a eficácia que a pena trouxepara o encarcerado, se ele tem condições de retornar ao convívio so-cial, se ainda representa perigo para a sociedade. Como se isso fossepossível, dentro de um sistema prisional que aniquila o ser humano,humilha a família e interrompe com todas as possibilidades de umavida digna a ser vivida por estes. Viola todos os direitos e garantiasfundamentais existentes. Os juízes e o Ministério Público, que deveri-am fazer inspeções nos presídios regularmente para verificarem ascondições vivenciadas pelos presos, não o fazem com frequência.

A rixa entre os agentes penitenciários e a polícia mili-tar ficou evidenciada quando os agentes foram escoltar uma presapara receber o bolsa-família. Ocorreu uma denúncia anônima que esta

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presa estaria sendo extorquida. A polícia militar cercou o carro e hou-ve bate-boca entre estes. Tal fato serviu para prejudicar ainda mais ospresos que agora precisam aguardar autorização judicial para seremescoltados quando precisarem receber algum benefício. A demora des-sa autorização tem acarretado inclusive perda de parcelas de seguro-desemprego.

Por mais que tentemos sensibilizar a direção em relação aisso, estes são categóricos em impor suas decisões. Isso é não pensarno outro, é não se colocar no lugar da família que está necessitandodesse recurso até para se alimentar. Uma decisão como esta contribuinegativamente em todos os aspectos.

Percebemos que a formação dos agentes penitenciários é de-ficiente, pois os mesmos tratam o preso como bandido e a família comose também assim fosse. No Complexo X, por exemplo, ficava estarrecidacom o tratamento dispensado às famílias dos detentos na portaria. Issovariava de acordo com o poder econômico destas.

Recentemente agentes penitenciários contratados foram fa-zer novos exames psicológicos. O diretor geral reuniu todos estes parainformar que cerca de 30% deles seriam dispensados. Muitos ficaramsem dormir, trabalhando sobressaltados e sentindo-se também despre-zados, incapacitados e abalados emocionalmente. Esse contrato é per-verso e pode ser rescindido por qualquer motivo.

Fica este registro dessas dificuldades do dia-a-dia.”Dificuldades prosaicas também foram relatadas no sistema off

the recorder, por motivos óbvios. São documentos que deixam de ser enca-minhados, de ter o seu curso normal, necessário, porque a cota mensal deimpressão já ultrapassou o limite determinado, ou porque não há tinta naimpressora, ou papel, até que termine o mês e se inicie a nova cota.

As agentes de determinada unidade doaram uma cerca elétricaque apresentou defeito. A unidade não possui verba para o reparo e asubsecretaria não determinou seu conserto porque não é material cadastra-do no sistema. Assim, até que a concertina seja instalada, fica a cerca elé-trica não eletrificada de “enfeite”.

A questão do transporte já estressa a trabalhadora antes mesmoda chegada ao local de trabalho. “Só de pensar no ônibus eu já saio decasa com raiva de mim mesma”. O problema não é basicamente o dedistância, mas na quantidade e qualidade do transporte público da regiãometropolitana. “Teoricamente, conforme divulgado, os horários de ôni-

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bus comportam 20 minutos de espera entre uma viagem e outra. Narealidade os intervalos são de 40 minutos a uma hora. Ou seja: a gen-te passa mais tempo esperando pelo ônibus do que viajando nele. Vaime dizer se não deixa qualquer um fora do sério?”

Tanto estresse antes de se chegar se projeta durante o trabalho,no qual o autoritarismo, o controle excessivo, o cumprimento de metas difi-cílimo de ser alcançado e a volta ao passado, como a implantação de Co-missão Técnica de Classificação (CTC), isso é “tarefa impossível quandonão há profissionais suficientes e, quando existem, não sabem sequero que é atendimento interdisciplinar”, torna ainda mais difícil uma jorna-da minimamente confortável.

Algumas respostas foram bem contraditórias, exemplificativamenteà saúde considerada como “ótima”, e à seguinte pergunta sobre se tomavaremédios, a resposta de que “sim, 20 mg de fluoxetina”. Também emrelação ao medo, quais os medos? Fez pensar – e muito – o “medo deperder o medo”.

Um medo bastante presente é o “de perder o emprego. Tenhomedo de presa, não”.

A cultura de subalternização, que supervaloriza o cargo em vez deseu ocupante é outra lamentável constante. Na verticalização da “carreira”– curioso falar em carreira se não há concurso público – uma agente, mes-mo tendo razão, ao não concordar com as ideias da diretora geral em reu-nião de trabalho, é transferida acintosamente, “ela disse na minha caraque era pra servir de exemplo”.

Os problemas financeiros, uma constante embora o salário sejasuperior a bem mais do dobro do mínimo legal29, tornam as agentes irritadiças,impacientes e desmotivadas. As constantes trocas de equipe, jornadas ex-tras, as alterações das rotinas de trabalho sem prévio aviso, como forma depunir, de acarretar o tristemente famoso “pede pra sair”, são igualmentepermanentes.

“Tem funcionária que dá mais problema do que a pre-sa”, assegurava uma delas de nível hierárquico superior.

As respostas atentas e obedientes ao senso comum nãodeixam de chocar. É triste ouvir, de quem conhece a realidade do lado dedentro dos muros, que “a lei é frouxa, o infrator pode se safar facilmen-

29 À época da pesquisa as agentes ganhavam um pouco menos de três salários mínimos líquidos.

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te”, “se o crime é bárbaro tem que haver pena de morte”, ou que aalternativa para o sistema prisional seria “penas mais rigorosas”, “mudaras leis e acabar com as regalias, as presas deveriam ficar sempretrancadas”, “construção de mais penitenciárias”, [o sistema] “está avan-çando, mas tem muito que melhorar, precisa de mais presídios”. “Aspresas têm muitas regalias... tudo de graça: alimentação, banho, remé-dios, dentista...” “Pra elas tudo é bom demais, estão na boa. Enquantolá fora tem gente que passa fome”. Mas a culpa, obviamente, é “dessespovo (sic) de direitos humanos. Direitos humanos atrapalham bastan-te. Deveria olhar (sic) os dois lados. Os honestos sofrem com os direi-tos humanos que protegem os criminosos”. A velha lenga lenga de quedireitos humanos deveriam valer apenas para os “humanos direitos”, ouainda que “direitos humanos só pra quem é honesto, cadeia para oresto”.

Chega a ser intolerável perceber que sempre se pede mais domesmo, mais do pior. Até mesmo para aquelas distraídas30 que “só depoisde uns três dias é que percebeu que estava trabalhando em uma peni-tenciária. Pensou que estava trabalhando em uma fábrica”.

O que mais dificulta o seu trabalho? Era a 35ª pergunta doquestionário, e estas respostas resumem todas as demais:

“- Muito chefe pra pouco índio”. Ou ainda: “Chefe aqui é oque não falta. Tem dia que a gente não sabe a quem segue”.

“A pessoa se abrindo com o outro descobre alguma coisanele”, finalizou uma agente de nível técnico ao terminar de responder segostaria de acrescentar alguma coisa que não houvesse sido perguntada.

Se trabalhar nessas condições ultrapassa o limite do tolerável,irrespondível continua a questão posta por Bodê de Moraes:

“Por que essas instituições, apesar de terem fracassado, so-bre isso parece não haver mais dúvidas, em sua promessa deressocializar aqueles que cometeram atos vistos como criminosos oupatológicos, continuariam existindo? E pior ainda, porque elas teriamampliado seu espectro de ação tornando-se uma forma preferencialde punição”.31

30 “A vida dos distraídos é sempre cheia de surpresas”, já alertava João Guimarães Rosa.31 Bodê de Moraes, Pedro Rodolfo. Punição, encarceramento e construção de identidade profis-sional em agentes penitenciários. São Paulo : IBCCRIM, 2005, p.265.

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III – O QUE A DONA AGENTE NÃO DIZ.

“Carcereiro do povo (aquele que se sente na missão desacanear os presos ao máximo, julgando que assim cumpre seu deverde justiçá-los em nome do povo”).32

A história da humanidade, em termos prisionais, é a história damaldade humana, da segregação em nome da justiça, da injustiça em nomedo controle a todo custo. “Bandido respeita crueldade”33, como constataMENDES, que esteve por mais de 30 anos no sistema prisional paulista.Seria por isso que as condições de contenção são tão drásticas mundo afo-ra? Porque “bandido respeita crueldade” a função de guarda e vigilânciadeve ser o mais cruel possível?

Em vez das teorias das prevenções, que tanto agradam aosdogmatas do direito penal, a vingança social contra os alvos de sempre, ospobres e miseráveis, que conseguem ser apanhados, processados e conde-nados, vindo a cumprir pena privativa de liberdade. A culpa do bandido,perto da culpa do Estado é pequena, já alertava Nilo Batista34.

Afastada a tristeza profunda do lado de dentro e do entorno, algu-mas realidades parecem brincadeira. De mau gosto, mas parecem. Quandovoltamos ao passado enxergamos a “modernidade” do nenhum respeito jáno início do século XVI, alguns35 encontram esse início no curso do séculoXIV, com a pré-história do direito penal do inimigo. Mas quem seriam osinimigos, senão sempre os de sempre: os pobres e miseráveis.

Dentre os pobres e miseráveis, os que conseguiam não sucumbir/submergir ao limite imposto pelos poderosos de uma linha d’água imagináriada sobrevivência, esta, bem real.

Oportuna a sempre oportuna análise de Gislene Neder:“As políticas para assistir os segmentos vulneráveis da popu-

lação contavam sempre com a repressão. Neste sentido, não apenas avadiagem era questão de polícia, mas a pobreza, a indigência e a men-dicância. Esta a razão de encontrarmos a invocação pendular, ora da

32 MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevimente. São Paulo : Cia. das Letras, 2009, p.233.33 opus cit., p. 271.34 Punidos e mal pagos. Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeior : Revan, 1990.35 Cf. ANITUA, Gabriel Inacio. ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentoscriminológicos. Rio de Janeiro : Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2007.

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assistência, ora da repressão”36.O interior das prisões e o seu entorno, sob o ponto de vista de

trabalho e prestação de serviços, sempre esteve próximo da privatização dopúblico em proveito próprio, entre nós pelo menos desde o século XVI.

Hoje, em tempos de precarização de postos de trabalho e de tra-balho sem nenhuma garantia, quando há trabalho, as agentes chegam asonhar que estão trabalhando, tal a carga de pressão, de estresse. “Ospresos têm tudo, as agentes não têm nada”37. E o medo comum: “qual-quer um pode cometer um crime, mudar de uniforme”. Sabendo que agrande saída é “ter autoridade sem ser autoritário’38.

A constatação de uma antiga agente quanto ao local de trabalhotambém faz claro o quão pouco se pode esperar: “aqui não é lugar praarrumar amigo, não39”.

No local de trabalho, próprio para confinamento do tempo do ou-tro como pena, o tempo para as agentes corre ao contrário, tudo é priorida-de e pressa. “Urso, urso”40. O agente trabalha sempre em posição deextrema vulnerabilidade, fustigado pelo desejo de vingança da sociedade, apressão das chefias imediatamente superiores até o nível da direção geral,que tem pouca ou nenhuma influência na rotina que funciona por inércia, ea constante vigilância das presas. Tentando identificar alguma possibilidadede aproximação e de “ganho” com essa aproximação. Mas na prática trans-formam-se em meros “robôs da Casa”, são as presas que “jogam com aCasa”. Obviamente que, quem “joga com a Casa”, joga contra o coletivo.

E, do lado de fora do local de trabalho um desagrado constante:“Em sociedade o agente penitenciário não tem o menor orgu-

lho em revelar sua profissão. Quando por força das circunstâncias, éobrigado a fazê-lo, diz receber em troca olhares de desconfiança eacusação, como se ele fosse o responsável pelas mazelas do sistemapenal”41.

Dentro, a função da agente é sempre a de lembrar à presa de queela está presa, mesmo quando é possível alguma distração que as leve um

36 NEDER, GISLENE. Entre o dever e a caridade: assistência. Discursos Sediciosos. Rio deJaneiro: Revan; ICC, 2004, p.213.37 Cf. Grupo focal no anexo.38 idem.39 ibidem.40 Na linguagem oral e mesmo codificação de comunicação de rádio significa “urgente,urgentíssimo”.41 CASTRO E SILVA, opus cit., p. 72

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pouco pra longe da “tranca dura”. Fora, não há possibilidade de distração:são levadas a serem agentes 24 horas por dia, todos os dias da semana,todas as semanas dos meses, todos os meses e anos que estiverem traba-lhando no sistema, até mesmo quando saem dele. Olhando por sobre osombros, observando os carros e seus ocupantes no trânsito, olhando os queestão presentes nos supermercados. Fazendo sempre “leitura de local”, etc.“Minha família fala que eu mudei muito, fiquei mais atenta a tudo”.42

Não conseguem perceber que também fazem parte da engrena-gem do grande capital espoliador das massas de miseráveis e sem nada,cujo lócus privilegiado de contenção é a prisão. Não mais humílimos nossubúrbios em longos trajetos até o trabalho das fábricas. Não mais dóceis.Agora inimigos e presos, por serem inimigos ou potenciais inimigos do riscode arranhar o patrimônio dos poderosos de todo o gênero. Porque não têmtrabalho e sequer podem ser explorados pelo “método tradicional”.

“O novo sucesso experimentado pelo aparelho penitenciárioem tempos de mundialização do capital, deve boa parte de sua existên-cia à generosa possibilidade de lucros que dele se pode extrair. A uti-lização da força de trabalho no interior das prisões sempre as acom-panhou. A prisão nasce de exigências do mercado de trabalho e funci-ona como dispositivo de poder disciplinar capaz de arrebanhar a for-ça de trabalho a fim de torná-la útil – e aqui uma série de variáveispodem atribuir sentidos diferentes a tal atitude – à produção na fábri-ca.”43

Para os consumidores falhos, os supranumerários do sistema pós-fordista, para dizermos com BAUMAN e PAVARINI, a reserva do cárce-re, que agora não mais prepara e torna dóceis os corpos para a fábrica – jánão há mais fábricas para a contenção atrativa do exército de mão-de-obrade reserva.

Outra vez oportuna a oportuna lição de SOUZA SERRA;“As grandes corporações atualmente desconhecem frontei-

ras e procuram se instalar onde o mercado de trabalho se encontramais flexibilizado; qualquer alteração desse quadro pode levar àspopulações locais ao arrependimento, pois segundo o interesse dos

42 Resposta a questionário sobre quais as queixas dos familiares a respeito da entrevistanda.43 Souza Serra, Marco Alexandre de. Economia política da pena. Rio de Janeiro : Revan, 2009, p.124. Cf. ainda Juarez Cirino dos Santos. Direito Penal; parte geral. Curitiba: ICPC; Lúmen Júris,2009, p. 492.

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investidores ‘sem rosto’, a companhia pode se transferir para um novoeldorado da precarização; quando bem entender, deixando em seurastro os despojos da absoluta falta de compromisso com asconsequências de sua existência. O capital, de transnacional passa aglobal, aprofundando os efeitos deletérios de que o imperialismo in-dustrial já havia se encarregado.”44

O capital que especula na bolsa de valores da longínqua Kuala-Lumpur, no dia seguinte está fazendo o mesmo serviço sujo na bolsa devalores de São Paulo. Como assegura Alessandro De Giorgi, em seu funda-mental Il governo dell’eccedenza- Postfordismo e controllo dellamotitudine45:

“Se pode assim compreender em que sentido a economia po-lítica da penalidade fordista se revela inadequada a descrever as for-mas de produção de subjetividade que se delineiam no horizonte docontrole social pós-fordista: as suas análises negligenciam os proces-sos de transformação do trabalho, limitando-se as observações do tra-tamento penal do desemprego, do não-trabalho”.46

Nos períodos cíclicos de crise do capitalismo a criminalidade, ou oseu dito aumento, transforma-se em espécie de “mantra” do discurso demais do mesmo, de mais do pior. Mais penas privativas de liberdade, sepossível sem devido processo legal, garantias mínimas de ampla defesa econtraditório. É preciso fazer com que o preso “cheire como um preso”47, éessa a política “humanizadora” do tudo penal.

Na origem estadunidense, o modelo privado de prender osubproletariado já teve o seu auge. No Brasil, nas unidades da federação48

onde adotada a privatização do sistema prisional, seu abandono deveu-seexatamente ao fracasso do modelo.

44 idem, p. 112.45 Há edição em português, que teve o título de A miséria governada pelo direito penal.Rio de Janeiro : Revan, 2006.46 tradução livre, no original, Verona : Ombre corte, 2003, p. 61: “Si può comprendere in chesenso l’economia política della penalità fordista si riveli inadeguata a descrivere le forme diproduzione di soggettività Che si delineano nell’orizzonte del controllo sociale postfordista: lesue analise trascurano i processi di trasformazione del lavoro, limitandosi all’osservazione deltrattamento penale della disoccupazione, del ‘non-lavoro”.47 “Make prisioners smell like prisioners”.48 Ceará e Paraná.

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WACQUANT é fundamental na análise da origem estadunidensedo sistema de lucrar com a exploração do preso, seja ele visto como merca-doria ou matéria-prima:

“A política do ‘tudo penal’ estimulou o crescimento exponencialdo setor das prisões privadas, para o qual as administrações públicasperpetuamente carentes de fundos se voltam para melhor rentabilizaros orçamentos consagrados à gestão das populações encarceradas.Elas eram 1.345 em 1985; serão 49.154 dez anos mais tarde, faturan-do dinheiro público contra a promessa de economias ridículas: algunscentavos por dia e por preso, mas que, multiplicados por centenas demilhares de cabeças, justificariam a privatização de fato de uma dasfunções régias do Estado. Um verdadeiro comércio de importação-ex-portação de prisioneiros prospera hoje entre os diferentes membros daUnião: a cada ano, o Texas ‘importa’ vários milhares de detentos dosestados vizinhos, ao arrepio do direito de visita das famílias, parareenviá-los no fim da pena para suas cidades de origem, onde serãoconsignados sob liberdade condicional”.49

Em Minas, a tempestade neoliberal da social democracia tucana,no sistema prisional, apresenta-se tal como sua matriz estadunidense: con-trole rígido50 até nas mínimas movimentações, às vezes com um toque deiniciativa, um plus não previsto em lei, no sentido de humilhar, de controlarainda mais, de demonstrar – como se isso fosse necessário – que quemmanda é a/o agente.

Medidas “populares” na matriz entre os adeptos de nenhuma tole-rância, nem mesmo aquelas previstas nos direitos fundamentais inscritos na

49 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos.Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2000, p.31.50 Observe-se o que diz o PROCEDIMENTO OPERACIONAL PADRÃO, o famigerado POP,instrumento instituído pelo modelo de gestão tucana do sistema prisional, que, sob pretexto de“tornar mais ágil e segura” as operações com as presas, na verdade estabelece um controle digno,não fosse pior, de konzentrationslager para qualquer deslocamento fora da cela, em especial parao trabalho ou escola, o “Processo de Trânsito Interno de Sentenciados”: 6. Descrição. 6.1.Movimentação para o trabalho e a escola; 6.1.2. Determinar que o sentenciado, de costas,coloque as mãos para fora da portinhola; 6.1.3. Algemar o sentenciado, conforme descrito noPOP.GP.01.21 – Algemar o sentenciado, para movimentações para o trabalho e para a escola quese situam fora do pavilhão”. Há ainda um “requinte”, não previsto nem na LEP, nem no POP:durante todo o tempo o/a sentenciado/a deverá ficar de cabeça baixa e jamais olhar nos olhos do/a agente.51 - opus cit., p. 90

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Constituição da República, já começam a encontrar defensores por aqui.Proibição de televisões e ventiladores, nas celas, bem como restrição à quan-tidade de produtos passíveis de serem trazidos pelas visitas.

Segundo WACQUANT, “Uma proposta de lei recentementedebatida pela Assembleia da Califórnia pretende banir o uso de pesose halteres, as revistas pornográficas, o cigarro e as roupas pessoais”.51

Quanto mais duro o sistema de aprisionamento, de lá pior saem oscontidos. Aqueles que trabalham na contenção parecem não se dar contadisso.

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IV - OS GRÁFICOSVisto o que os gráficos não dizem, o que dizem os gráficos? Assim

como fizemos em relação às presas, demonstramos nesse capítulo todos osdados das agentes tabulados em gráficos, para uma mais fácil visualizaçãodas informações coletadas.

Questão 01 – NaturalidadePredominância de trabalhadoras vindas da própria capital, com

parcela oriunda do interior significativa e pequeno número de agentes deoutros estados.

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Questão 2 – Cidade e bairro em que moramA capital concentra acachapante maioria, embora várias algumas

viajem mais de 50 km até o local de trabalho, mesmo havendo (Nova Con-tagem, Neves e Vespasiano) outras unidades prisionais próximas de suaresidência. Em confirmação de hipótese de transferências de caráter puni-tivo.

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No quesito bairro, 14% residem bem distantes da unidade prisional,e 86% no entorno da penitenciária.

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Questão 3 – ResidênciaAssim como as presas, cujo número de casa própria é superior a

50%, exatos 2/3 das agentes reside em casa própria, sendo o número deresidências alugadas muito próximo ao das presas (19%);

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Questão 4 – IdadeO intervalo etário também obedece proporcional simetria àquele

encontrado com as presas, mormente o de 30 a 39 anos, o prevalente (47%)entre as presas.

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Questão 5 – Tem Filhos; Quantos; Sexo; Idade.O número das agentes que têm filhos é inferior ao das presas

(82%), enquanto que o patamar daquelas que não os têm situa-se em quaseo dobro em comparação às presas (18%).

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Em relação à quantidade de filhos há significativo equilíbrio naprevalência, sendo que, em relação às presas, 26% apresentam mais de 4filhos.

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O número de filhos é pouco mais que 10% que o números defilhas

Se se compara a prevalência da idade dos filhos com a idade dasagentes é significativamente indicativa a maternidade precoce, para nãodizermos gravidez adolescente.

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Questão 6 – Estado CivilNo que diz respeito ao estado civil, há franco descompasso entre

os números verificados entre as presas, majoritariamente solteiras (60%).

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Questão 7 – Escolaridade

Neste aspecto percebe-se um nítido descompasso em relação àspresas, cuja prevalência é de Ensino Fundamental Incompleto (63%), comaté três anos de educação formal. Ensino Médio completo, a prevalênciadas agentes, tem correspondência em míseros 4% para as presas.

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Questão 8 – Religião

Há uma prevalência das católicas, assim como nas presas, embo-ra estas últimas apresentem apenas 45% de católicas, sendo 25% delasprotestantes. O número de sem religião é significativamente mais baixo doque aquele encontrado para as presas (15%).

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Questão 9 – ProfissãoA esmagadora maioria das entrevistadas é agente, assim também

declarando cargo e função. Outras, embora declarem a profissão de agen-te, estão em outros cargos. O mesmo se dá para as funções declaradas.Observem-se os gráficos abaixo.

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Questão 10 – Cargo que ocupa

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Questão 11 – Função que exerce

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Questão 12 – É concursada?A preocupação, estampada sempre nas respostas e nas declara-

ções delas, é no que diz respeito à “segurança do trabalho” e não propria-mente na “segurança no trabalho”, que também é outra menção recorrentenas declarações de respostas. Um número inacreditavelmente superior a 2/3 de trabalhadoras não é concursada, o que não é uma especificidade daunidade em si, mas de todo o sistema.

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Questão 13 – Já trabalhou no sistema antesEmbora exista regra não escrita de que aquela que sai não volta a

trabalhar nos sistema, 11% desmentem tal norma não escrita.

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Questão 14 - Há quanto tempo ocupa este cargo59% delas foram contratadas no atual governo tucano, como que

“justificando” o número inacreditável do aprisionamento em massa dos po-bres e miseráveis.

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Questão 15 – Já ocupou outro cargo“Estréiam” no próprio cargo que ocupam atualmente. Em tudo

diferente da experiência anterior, em especial daquele ocupado anterior-mente no comércio ou no setor de serviços, como no gráfico seguinte.

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Questão 16 – O que fazia antes de trabalhar no sistemaO maior fornecedor de trabalhadoras para o sistema penitenciário

é o setor de serviços, seguido de longe pelo de comércio e por aquelas queestudavam apenas; indústria e desempregadas vêm em seguida. Ínfima par-cela sai dos serviços domésticos para o sistema.

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Questão 17 – Quais os seus planos para o futuroMais de 1/3 delas pretende, pela via universitária, ascensão no

trabalho ou mesmo fora dele. Um concurso público e/ou pós-graduaçãomuita vez significa continuar no sistema. A efetivação, não necessariamen-te via concurso público, como se houvesse essa possibilidade, aparece em10% delas, percentual muito próximo daqueles que pretendem ter e/ou criarseus filhos.

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Questão 18 - Descreva seu dia de trabalhoHá uma certa forma evasiva na resposta “rotina específica da

função” sem, no entanto, especificá-la. “A cada dia muda tudo” era o quemais presenciávamos.

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Questão 19 - Qual momento do dia é mais prazeroso no trabalhoMuitas saíram pela tangente fácil do “todos os dias são bons,

“é um bom serviço””; sendo mais crível que no início do trabalho, quandoestão mais descansadas, ou mesmo um dia de trabalho “sem alterações”,“quando tudo está tranquilo” represente o universo verdadeiramente sig-nificativo de “tudo é bom”. Em aparente contradição com a segundaprevalente “quando vou embora”.

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Questão 20 - Qual o momento mais prazeroso fora do trabalhoChegar em casa, o que não significa exatamente o mesmo prazer

do encontro familiar ou com o namorado, é o momento de maior prazer.Fora do trabalho, fora da tensão, esta já é a grande recompensa.

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Questão 21 – Acredita fazer um bom trabalho. Por quê?Parcela próxima de zero alega não acreditar fazer um bom traba-

lho.

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Quando a tarefa é explicar os porquês a questão muda um pouco.A prevalência indica que fazem o melhor que podem, se esforçam

muito.Em seguida estão aquelas que trabalham com amor, exatamente

por fazerem aquilo que gostam: controlar gente presa. Bem como as quenunca foram chamadas a atenção e recebem elogios.

Importante notar que 13%, aquelas que se dedicam totalmentesem empregar a força é apenas o quinto índice.

Entretanto, ser competente, honesta e seguir as regras aparececomo menor indicativo do porquê serem boas trabalhadoras.

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Questão 22 – Se pudesse o que mudaria?Mudar o sistema, dizer o que mudaria na rotina de trabalho assus-

ta um pouco. A maioria sai pela tangente. Significativa parcela não mudariaabsolutamente nada, “está funcionando bem do jeito que está, vou mu-dar pra quê?” Tranquilidade e ansiedade aparecem em seguida. Apenasínfima minoria gostaria de poder ser mais rigorosa.

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Questão 23 – Você gosta do que faz? Por quê?Pequeno número delas não gosta daquilo que faz, o que necessa-

riamente não significa não gostar da função de agente penitenciária, mas docargo em si efetivamente ocupado.

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Amar o trabalho, tê-lo como realização pessoal e fazê-lo de modoprazeroso são as prevalências que demonstram sensação de pertencimento.Gostar de trabalhar com a área de segurança e mesmo a realização de umsonho infantil aparecem ainda bem representados.

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Questão 24 – Quais são os seus medos

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Questão 25 – Quando você chega em casa costuma pensarem seu dia de trabalho

A maioria, embora tente, não consegue se desligar do local detrabalho quando chega em casa. Refaz mentalmente o percurso para ver senão se esqueceu de nada e se tudo ficou bem feito. Se realizou o trabalho acontento dos superiores, se deixou tudo sem falhas para o outro plantão oumesmo para o dia seguinte. A trabalhadora sai do trabalho, mas o trabalhonão sai dela. Estar sempre de sobreaviso, disponível, é uma exigência nãoescrita dos contratos sempre a título precário. O medo do desemprego é ummedo forte, real.

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Questão 26 – Você dorme bem?Dentre as que sustentam dormir bem estão aquelas que chegam

em casa, comem alguma coisa, tomam um banho, desempenham a duplajornada própria da exploração de gênero em uma sociedade machista comoa nossa e “desmaiam” para só acordar quando o despertador toca.

18% delas são assaltadas durante o sono entrecortado pelos pro-blemas que teimam em ir com elas para casa, junto com o uniforme dentroda maleta.

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Questão 27 – Costuma ter pesadelosNúmero significativo o das que lutam com pesadelos, embora a

acachapante maioria não os tenha e durma bem. Os pesadelos referem aquedas em abismo, a conversa com mortos e a presas. O ambiente de tra-balho é bem vivo no inconsciente.

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Questão 28 – Você tem insôniaAinda que o número daquelas que aleguem dormir bem seja bas-

tante superior, nota-se que 1/3 delas tem insônia, ou sono entrecortado, oumesmo dificuldade em conciliá-lo.

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Questão 29 – Como é sua saúdeA maioria diz ter boa saúde. Várias são as que só não a conside-

ram ótima por um ou outro senão de alimentação, exercícios ou hipertensãoarterial. Daquelas que consideram ter saúde ótima, a maioria faz exercíciosregulares ligados a alguma arte marcial ou mesmo defesa pessoal, orientadopara o trabalho.

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Questão 30 – Você toma remédios? Quais remédios?Um número bastante significativo usa medicação contínua. A hi-

pertensão, como se pode observar do gráfico abaixo, é a prevalente.

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Um número bastante significativo trabalha sob a “escolta” deantidepressivos e analgésicos.

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Questão 31 – Já esteve afastada do serviço; Principais motivos.

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Mais da metade delas já esteve afastada do trabalho por motivorelacionado à saúde.

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Excetuando-se a licença maternidade que, em rigor, não pode serconsiderada doença e agregando motivos outros, a prevalência dos afasta-mentos diz respeito à saúde. Cirurgias, transtornos de ordem mental, fratu-ras/queimaduras, bem podem ser relacionadas a acidentes de trabalho.

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Questão 32 – Você bebe? Com que frequência?

Ainda que a maioria declare não consumir bebidas alcoólicas, quasea metade delas tem no álcool uma espécie de suporte.

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Daquelas que bebem socialmente, se se agrega o número das quesó o fazem durante o final de semana, temos significativos e preocupantes96%, na “quase metade” das que bebem do gráfico anterior.

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Questão 33 – Qual o seu pior dia de trabalho. E o melhor dia?

Nota-se uma tangência na prevalência daquelas que não tiveramo pior dia de trabalho, ou dele não se lembram. Normalmente dias tensoscomo os de rebelião ficam marcados nas trabalhadoras, mormente se dire-tamente atingidas (aquelas que trabalham dentro dos pavilhões). Igualmen-te normal que os primeiros dias de trabalho, até se acostumarem com arotina, possam ser considerados os piores dias.

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Igualmente percebe-se que as respostas tangenciam ao respon-der que “todos os dias são bons”. Em nenhuma categoria laboral isso éverdade, quando nada pelo simples fato de não haver um dia igual ao outro,não importando a carga da rotina. Esperado que o melhor dia de trabalhoseja aquele em que corra tudo bem, mas também aqui um certotangenciamento na resposta. Não ter o melhor dia de trabalho é preocupante.

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Questão 34 – O que facilita o seu trabalho?

O companheirismo e a equipe de trabalho são os mais importanteselementos facilitadores. Diálogo e a própria capacidade vêm em seguida.Fundamental ainda o respeito, boa educação e humor, bem como a vontadede trabalhar e de ajudar.

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Questão 35 – O que dificulta ?Dificuldades de comunicação e comunicação truncada proposita-

damente (intrigas), ligados ambos à falta de companheirismo, são asprevalências daquilo que dificulta o trabalho das agentes. Burocracia, faltade equipamentos, má-vontade aparecem depois da presença de certas cole-gas que, em vez de ajudar, atrapalham. Nada dificultar o trabalho não deixade ser um número – e bastante significativo – que tangencia a pergunta semrespondê-la de forma livre e convincente. Em todo trabalho humano há algoque o dificulte, quando nada o cansaço.

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Questão 36 – Você é submetida a algum tipo de controle?

Obviamente que numa instituição onde disciplina e hierarquia sãofundamentais, todas as trabalhadoras recebem algum tipo de controle; queros de modo direto, via chefia; quer aqueles indiretos, via secretaria, envio derelatórios, auditorias, etc. A significativa parcela que alegou não sofrer ne-nhum tipo de controle pode, é uma hipótese não descartável, não ter enten-dido bem a pergunta.

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Questão 37 - Você consegue imaginar alguma situação que lhefizesse entrar em conflito com a lei?

Daquelas que responderam afirmativamente, quase a totalidadedelas, relacionavam o ato à legítima defesa própria e de familiares.

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Questão 38 – Você tem algum conhecido que foi preso? QualMotivo?

Mais de 1/3 possui algum conhecido que já tenha sido preso.

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Drogas, com quase a metade dos casos, seguido de subtraçõesviolentas foram os motivos preponderantes. Homicídios aparecem em se-guida, outros motivos, 17% abrigam todas as outras hipóteses de tipos pe-nais.

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Questão 39 – Como foi seu primeiro dia de trabalho?

Todo primeiro dia de trabalho fora do sistema implica em certacuriosidade/ansiedade. Dentro, é a segunda última característica. Um diacansativo também era de se esperar para trabalhadoras que não podem sesentar (assim como vendedoras, balconistas, etc.) durante a jornada. A ca-tegoria de “ótimo, bom, excelente” parece apresentar um certotangenciamento ao que fora perguntado. As denominações de “péssimo,estressante, tenso e com medo”, quase a metade delas, parece reproduzir aimpressão de que do trabalho delas tem o leigo, aquele que não conhece otrabalho realizado dentro do cárcere.

A falta de preparação para o que seria encontrado no primeiro diade trabalho é recorrente nos questionários. As mais antigas referem quesequer tinham uma pálida ideia do que iriam encontrar lá dentro e o queteriam que fazer, sendo treinadas no primeiro dia, com um nível de medomuito grande, pela colega de trabalho mais antiga.

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Questão 40 – Qual o melhor cargo para se ocupar num sistemaprisional?

A prevalência das agentes penitenciárias pode traduzir a respostade ser este o melhor cargo para se ocupar no sistema. Preocupante é per-ceber “nenhum” aparecer em quinto lugar. A pequena parcela de “não sabe”indica pequeno índice de resposta evasiva neste gráfico.

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Questão 41 - E o pior cargo?

Natural que a direção geral apareça como o pior cargo a ser ocu-pado e a justificativa é a cobrança que essa função impõe. Estar “24 horaspor dia ligada na penitenciária”. Não existir cargo pior e “não sei” apresen-tam-se em percentual bastante significativo de resposta evasiva.

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Questão 42 – Seu vencimento é fundamental para a sua família?

Um terço delas tem o vencimento como parcela fundamental parao sustento da família, mesmo quando não se trata de família monoparental.

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Questão 43 – O que sua família pensa do seu trabalho?

Todos os familiares têm medo da profissão escolhida pelo perigoque creem representar. Se se soma aquelas famílias que gostam/dão apoio,sentem orgulho e respeitam a opção teremos exatamente a metade. Mesmosomados os que não opinam nada sobre o trabalho e os que desaprovamabertamente, não se chega a 1/3.

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Questão 44 – Quais as queixas mais freqüentes?

A reclamação de ausência pode ser traduzida pela jornada de tra-balho e pelo sistema de plantões, que não poupa domingos e feriados eafasta a trabalhadora dos filhos, notadamente aqueles em idade escolar.

Preocupante, ainda que a incidência seja pequena, a mudança decomportamento, notadamente se a segunda queixa situa-se exatamente noagir “nervoso, bravo, explosivo” após a entrada para trabalho no sistema.“Exigência, rigidez e autoritarismo” são outras características que coinci-dem com aquilo que as presas mais reclamam. Não ter queixas parece umaresposta evasiva, não há de quem não se tenha queixa, mormente em rela-ções familiares. Nenhuma delas teria cunhados?

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Questão 45 – Seu bairro é violento?

Questão que envolveu um nível de resposta bastante subjetivo.Bairros não considerados necessariamente violentos tiveram uma

resposta positiva e vice-versa.

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Questão 46 – As pessoas do seu bairro sabem da sua profissão?

Mais da metade esconde a profissão, não por vergonha, mas poruma “questão de segurança”. Seja medo ou precaução, são poucos os tra-balhadores de atividades lícitas que percebem a necessidade de esconderdos vizinhos no que trabalham.

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Questão 47 – Que causas você atribui a violência e acriminalidade?

A falta de educação, que quase não surge em nenhuma pesquisade disparador da criminalidade, aqui aparece como prevalente, seguida pelodesemprego, desigualdade social, falta de família e punição empatam comigual incidência, seguidos de falta de apoio do governo e corrupção, pobre-za, fome e, bastante significativo, apenas em último lugar a questão dasdrogas.

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Questão 48 – O que você pensa do sistema prisional?

A maioria prefere enaltecer as qualidades ou mesmo tangenciarem evasivas do tipo “já melhorou muito, mas pode melhorar ainda mais”.

Significativa parcela, entretanto, apresenta crítica direta deineficiência, fracasso e precariedade, bem como aponta o fundamental: oaprisionamento não socializa.

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Questão 49 - Você pensou alguma alternativa para o sistemaprisional?

Vendidas como alternativas aparecem soluções de senso comum,como revisão do código penal para que nele constem artigos de lei maisduros e formas de cumprimento idem. Construção de mais presídios e peni-tenciárias, mas sempre dentro da lógica prisionalocêntrica.

Algumas respostas, dentre aquelas que já refletiram sobre o tema,apontam que boas alternativas seriam trabalho e educação, nesta ordem, oque não deixa de ser significativo e indicador de esperança.

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Questão 50 - Você gostaria de acrescentar algo que nãofoi perguntado?

As poucas que gostariam de acrescentar algo não perguntado,normalmente criticavam a própria Secretaria de Defesa Social, despreocu-pada, segundo as críticas, com o bem-estar da agente no que diz respeito àsegurança pessoal, formação teórica e a questão de moradia. Bem comooutras questões relativas à ausência de concursos.

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Questão 51 - Recomendaria que algum colega respondesse a estequestionário?

Esmagadora maioria recomenda que outras colegas respondamao questionário, algumas até mesmo indicando nomes.

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V – CONCLUSÕES?

“Em nítido contraste com a sabedoria convencional do perí-odo passado, a opinião dominante agora é a de que ‘a prisão funcio-na’ – não como um mecanismo de reforma ou de reabilitação, mas comoinstrumento de neutralização e de retribuição que satisfaz as exigênci-as políticas populares por segurança pública e punições duras” 52.

“Eu vou dizer uma coisa que você vai entender e não vai esque-cer: esse lugar aqui é ‘o melhorzinho que tá tendo’ no sistema. Se melhorar,estraga”.53

A prisão como lócus substitutivo das políticas sociais tem sido omodelo “tucano” – chamá-lo de social democrata ofende à social democra-cia, por mais problemas que tenha esse modelo ideológico que no Brasil nãotem nada de social e, muito menos, de democracia - de enfrentamento damiséria e da pobreza, sobretudo em Minas Gerais. O encarceramento massivodas camadas do subproletariado, os pobres e miseráveis, tem sido a únicapolítica pública que avança em Minas. Aliás, além da propaganda, a únicacoisa que avança no governo tucano de Minas é o controle total, via penaprivativa de liberdade, dinheiro público jogado fora.

Para dizermos com Elliot Currie: “falando mais rigorosa-mente, a prisão passou a ser a nossa política de emprego, a nossapolítica antidroga e a nossa política de saúde mental, no vácuo deixa-do pela ausência de esforços mais construtivos (...) Assim, a prisãopassou a ser crescentemente a agência social de primeira instância.”54

A justificar tudo isso, em sua “função de espantalho”, con-forme a feliz expressão de GARLAND, o direito penal, em especial o pra-ticado dentro dos estabelecimentos prisionais, em sua função multiuso de-veria: prevenir o crime, manter a tranquilidade pública e, por fim, a prisãodaqueles que cometem atos que a classe dominante de determinada épocae coordenada geográfica defina como crime. A prioridade operacional foi esegue sendo a prisão. Afinal, a prisão é o modo mais caro de transformar

52 GARLAND, David. A Cultura do Controle. Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro : Revan; ICC, 2008, p. 59.53 Fala de uma agente que ocupava um cargo administrativo.54 apud COMFORT, Megan. “A casa do papai”: A prisão como satélite doméstico e social.Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro : Revan; ICC, 2003, p.95.

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“gente ruim”, como diz o senso comum, em pessoas cada vez piores. Essesidiotas da contenção total creem que podem fazer justiça social com direitopenal...

Como assegura a experiência de Cristina Rauter, que du-rante vários anos trabalhou a psicologia no sistema penitenciário do Rio deJaneiro:

“Uma instituição não é algo abstrato que paira acimadas cabeças daqueles que nela trabalham. Ela se reproduz cotidiana-mente nas diferentes tarefas que a constituem. É assim que, cada quala seu modo, do guarda ao diretor do presídio, do psicólogo ao psiqui-atra ou assistente social, todos se encontram envolvidos na tarefa últi-ma e mais importante que é a colocação em marcha da engrenagemcarcerária.”55

Mesmo aqueles que não percebem e não se percebem como par-te de uma engrenagem dessa perversa indústria de prender e fazer sofrertem demonstrado preocupação com as propostas privatistas. Outros acredi-tam que “pra mim não muda nada”. Muda. A lógica privatista muda tudo,mas, este o paradoxo: alguns creem que terão, para sempre, um mercado detrabalho garantido, agora sob o comando privatista dos “empresários dosofrimento” que transformam o preso em mercadoria, a prisão em negócioe usufruem do lucro extraído da mais-valia do sofrimento de todos.

Já tivemos oportunidade de pontuar, no Iº Seminário Antiprisional,Justiça na Execução Penal, que a proposta de privatização das prisões ébastante antiga:

“Essa proposta de privatização, agora também dos presídios,vendida como moderna, mas, na verdade, velha de 1819 pelo menos,fez-me lembrar a fala do Príncipe Fabrizio Salina, no magistral ro-mance de Tomasi di Lampedusa, Il gattopardo: “Tudo será diferente, masserá pior”. Pode-se garantir o pior desde já. A privatização transformaainda mais o preso em mercadoria e, por via de consequência, a per-gunta que não cala é a seguinte: quem pagará esse pacto? O lucro do‘investidor’ na contenção é pago pelo preso e sua família, ou pelopreso, sua família e todos nós? Já não estariam satisfeitos com aprivatização da saúde e da educação, com os resultados negativos aque assistimos? Por que mais do mesmo? Mais do pior? Por que mais

55 Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro : Revan; ICC, 2003, p. 98.

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do pior? Como se fosse um jogo, por que apostar no perdedor? Quelógica, sem lógica, é essa? “56

As apostas que o governo tucano tem feito em Minas, notadamentena área da contenção prisional dos pobres e miseráveis, já ultrapassou todosos limites. Nunca se encarcerou tanto e ainda comemoram como se issofosse algo positivo. Como se o único lugar possível para a juventude pobre emiserável fosse o cárcere, até que alquebrados pela máquina de moer genteque é o sistema prisional, ele os devolva às ruas para retornarem ao sistemae assim até o fim.

Embora se tente, via massivo apoio midiático, iludir o povo comduas táticas de “avanço” e “modernidade”, na verdade a política do tudopenal é bastante antiga, datando do início dos anos 1980, pelo menos. De“neo” tem apenas o prefixo. Esse “novo” que tentam vender é velho demaispara todos os gostos, não serve, aperta, está fora de moda, fora de lugar.

Observe-se GARLAND:“A combinação comumente contraditória daquilo que veio a

se chamar ‘neoliberalismo’ (a reafirmação das disciplinas do merca-do) e ‘neoconservadorismo’ (a reafirmação de disciplinas morais), ocompromisso com a ‘retração do Estado’ concomitante à construçãode um aparato estatal mais poderoso e autoritário do que antes – estasforam as posições contraditórias que estavam no coração dos regimesde Thatcher e Reagan”.57

A lógica é simples e pode ser resumida no seguinte: o Estado émáximo apenas para a contenção dos pobres e miseráveis, para que aselites possam desfrutar também ao máximo os lucros da exploração; masdeve ser mínimo o Estado nas garantias – também elas mínimas – de umaeducação pública, gratuita e de qualidade, na saúde idem, e com a questãoda terra – que privilegia os latifúndios e o agronegócio multinacional - e nahabitação nos grandes centros urbanos – que privilegia as construções deluxo e drena os recursos das moradias populares. Para dizermos com Ra-quel Bandeira58: “tanta gente sem casa, tanta casa sem gente”.

56 O que é ruim pode ficar ainda pior. MATTOS, Virgílio, em Estudos de Execução Criminal– Direito e Psicologia. Belo Horizonte: TJMG; CRP, 2009. MATTOS, Virgílio [et] TÔRRESOLIVEIRA, Rodrigo. [org]., p.51.57 GARLAND, opus cit., p. 215.58 Estudante de Medicina da UFMG. Da Frente de Saúde do Grupo de Amigos e Familizares dePessoas em Privação de Liberdade.

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“Por você as presas todas ficavam soltas. E a socieda-de? [Fechando a cara] Antes de melhorar aqui, temos que combinar demelhorar lá fora, tá certo?!”59

Qualquer discussão antiprisional despertava a defensiva de quese quer a “vagabunda na rua e gente de bem presa dentro de casa”.Não há um juízo crítico sobre as trabalhadoras reproduzirem essa seleçãode senso comum que as alcança, 35% delas tem algum conhecido que foipreso.

A questão do consumo e do consumismo é também da ordem dasprioridades do modelo neoliberal, instilar falsas necessidades para venderfalsas soluções, sobretudo na juventude, nada que não tenha sido exaustiva-mente pensado antes:

“Foram a produção e comercialização em massa de bens queviabilizaram o mundo de supermercados e de shoppings centers, de me-canismos de poupança do salário e bugigangas eletrônicas, de paga-mentos parcelados e crédito estendido, da indústria da moda e daobsolescência intrínseca – em poucas palavras, todo um ethos de ‘con-sumo’ e ‘consumismo’ e das atitudes culturais que lhes são próprias”.60

Talvez a melhor obra de referência sobre o universo prisional bra-sileiro da atualidade, visto pela ótica dos agentes, que trabalham “presoscom os presos” 61, seja mesmo o insuperável trabalho de BODÊ DEMORAES, Punição, encarceramento e construção de identidade pro-fissional entre agentes penitenciários62. Oriundo da área da sociologia,BODÊ apresenta na sua tese, escrita em linguagem bastante simples, massem deixar de ser científica por isso, um quadro bastante amplo e profundoda realidade prisional.

“Entende-se, assim, porque se tem chamado a atenção paraos índices alarmantes de distúrbios psiquiátricos entre os agentes pe-nitenciários, que vão da insônia e do nervosismo até a paranóia, pas-sando pela dependência química, principalmente o alcoolismo. No casobrasileiro, a situação não é diferente. Segundo pesquisas realizadasem São Paulo pela Academia Penitenciária, ‘cerca de 30% dos agen-tes de segurança dos presídios apresentam sinais de alcoolismo. Um

59 Fala de uma agente que ocupava cargo de coordenação.60 GARLAND, opus cit., p. 186.61 Não raro incorporam os gostos, hábitos, estética, língua e linguagem daqueles que custodiam.62 BODÊ DE MORAES, Pedro Rodolfo. São Paulo : IBCCRIM, 2005.

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em cada dez sofre de distúrbios psicológicos”.Em Minas o alcoolismo campeia em quase a metade das

trabalhadoras, embora o adoecimento psíquico declarado sequer chegueaos índices paulistas, cujo sistema prisional – o maior da América Latina –padece ainda dos vícios do gigantismo e embate mais duro entre os presos –que são amplamente organizados – e os agentes.

Segundo BODÊ63, em pesquisa sobre as profissões maisestressantes realizada pela University of Manchester, em seu instituto deciência e tecnologia, em 1997, dentre as 104 profissões pesquisadas, a deagente penitenciário apareceu em primeiro lugar.

O local de trabalho como agente de adoecimento físico epsíquico não chega a constituir uma novidade. O interessante, no recortedessa categoria de agentes penitenciárias, é o quanto é disparador doadoecimento, notadamente o psíquico, as condições de trabalho suportadasna dificílima tarefa de conter gente.

Na verdade as agentes penitenciárias executam duas tare-fas de manutenção: da disciplina e da ordem, talvez não necessariamentenessa ordem, o que significa, em apertada síntese: manter funcionando osistema, abrindo e fechando cadeados, ou na visão doídamente crítica deum agente da Lemos de Brito, do sistema carcerário do Rio de Janeiro,fazendo o papel de “porteiro de vagabundo”.

Mas há também o lado de dentro de um dentro profundo:tanto a triagem (dentro do pavilhão e lócus de segregação inicial e seguro64)quanto a ala de segurança máxima funcionam como local de trabalho isola-do, onde a única companhia, exceto a das presas, é a do rádio de comunica-ção, que “chia na cabeça da gente o plantão todo, quando eu chegoem casa continua chiando na minha cabeça, é um inferno”.

O que mantém, verdadeiramente, a paz dentro do sistemapenitenciário? Um conjunto de coisas bastante simples, mas que dependemfundamentalmente das agentes penitenciárias: alimentação, saúde (remédi-os e material de higiene), assistência jurídica (que os processos “andem”) evisita, talvez não necessariamente nessa ordem. É o trabalho da agente que

63 opus cit., p. 226.64 O isolamento do isolamento. Lócus onde estão as presas que mudaram de uniforme, isto é: queeram agentes penitenciárias ou policiais, presas ameaçadas de morte, infanticidas, matricidas,condutas rejeitadas nas cadeias femininas assim como os estupradores o são nas cadeias masculi-nas.

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torna fundamental pagar65 todas essas “facilidades” que seguram a ca-deia. Um modo simples de fazer “virar a cadeia”, que sempre esteve e estánas mãos das agentes, é “escrachar” ou “esculachar” a visita, fato que naunidade pesquisada ocorre em intensidade bem menor do que nas unidadesprisionais masculinas.

Repetindo a pergunta feita a BODÊ por um agente66: “porque o senhor quer entrar num lugar de onde todo mundo quer sair?”

Talvez pudéssemos questionar a ausência de pesquisas soba ótica do trabalhador do sistema por esse aspecto.

O próprio BODÊ nos proporciona uma boa resposta:“Muito pequena a produção de pesquisas, trabalhos e

reflexões sobre o sistema penitenciário, no caso dos agentes penitenci-ários, ela é quase inexistente”.67

Por que trabalhar em um lugar onde só se entra e perma-nece por obrigação legal? Raríssimas são as agentes vocacionadas (9%!).Por que pesquisar as trabalhadoras que dizem amar o trabalho que fazem(43%), que se sentem realizadas pessoalmente e veem o trabalho comoprazeroso (36%)? Se está tudo bem, por que também elas sofrem tanto?

A corroborar, entretanto, ser aquela penitenciária “omelhorzinho que tá tendo no sistema”, como dito por uma agente queocupava cargo de coordenação, e como todas as generalizações são perigo-sas e apenas por metade verdadeiras, pode ser entendido como “nem todassão violentas” e “não há processos instaurados por corrupção” no universoda penitenciária feminina, pelo menos no decorrer do curso da pesquisa.Logo, inviável a generalização de que todo agente é violento e corrupto,como faz o senso comum, de certa forma induzido pelo julgamento midiáticoe imediato.

O trato ríspido, o autoritarismo pelo prazer de demonstrarsuperioridade, para “quebrar a presa”, vem sendo estimulado como normade conduta. As denúncias de presos e presas “comidos na tonfa e napimenta”68 tornou-se algo mais raro de não ser denunciado a cada semana

65Verbo que dentro do sistema prisional tem o significado de conceder, fornecer. Oriundo dalinguagem militar e amplamente utilizado em todas as unidades da Federação.66 cf. opus cit., p. 46.67 opus cit., p. 74.68 Espancados e com o rosto borrifado com spray de pimenta.

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nas reuniões do Grupo de Amigos e Familares de Pessoas em Privação deLiberdade69. O que era excepcional no período da pesquisa, e sempre justi-ficado por todas como necessário “porque a presa tava descontroladaavançou na agente”, parece ter virado rotina.

Se para a presa o trabalho significa poder “tirar a cadeiada cabeça”, preservar sua saúde psíquica70, para a trabalhadora do siste-ma ele pode exatamente produzir o efeito inverso: transformar a saúde psí-quica em doença.

Outra vez com razão e feliz na síntese, RAUTER:“Tudo se passa como se a prisão produzisse exatamen-

te o contrário daquilo que seria sua missão primordial; como se aoinvés de curar o criminoso ela agravasse o seu mal. Este fracasso daprisão tem sido exaustivamente admitido até mesmo por autoridadesdo sistema penitenciário, policiais, autoridades judiciárias. As críticase tentativas reformadoras são tão antigas quanto a própria prisão. E,no entanto, sua realidade quase imutável tem desafiado todas elas comose delas zombasse”.71

Enfim, uma certeza emerge diante de tantas dúvidasabissais: as agentes não são piores, nem melhores e nem iguais às presas.Embora se pensem astros do sistema, gravitam na órbita do sofrimento daspresas e de seus familiares, são satélites do planeta prisão e, sobretudo,essa é mesmo a maior diferença: vestem uniformes diferentes.

69 Todas as segundas-feiras, a partir das 18h30, o Grupo realiza reuniões abertas ao público noauditório do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. É nessa oportunidade que ofamiliar e o amigo do preso podem falar sobre seu contato com o sistema prisional, sobretudodurante as visitas.70 RAUTER sustenta que “Este talvez seja o único ‘lucro’ do preso que trabalha: a preservação desua saúde psíquica”. Opus cit., p. 103.71 RAUTER, opus cit., p. 104.

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ANEXOS

TRANSCRIÇÃO72 DE FITA DE VIDEO, grupo focal73 entrediretores de unidades prisionais em Minas, 2005.

Visando fazer a montagem de um curso de capacitação, denível superior, para agentes penitenciários e diretores de unidades prisionais,foram convidados a participar de um grupo focal vários diretores de unida-des prisionais. A subsecretaria de administração penitenciária, que seria aentidade contratante desse curso, escolheu os participantes e enviou umadiretora de ressocialização, uma diretora de segurança, uma diretora e umdiretor geral de unidades prisionais da Região Metropolitana de Belo Hori-zonte àquela época.

A baixa qualidade da gravação em vídeo fez com que, emalguns momentos, não se ouvisse o que diziam os participantes, mas taisacontecimentos não desconstroem o fluxo das informações.

Abaixo a íntegra dos depoimentos em linguagem coloquial,do que pensam esses trabalhadores de nível mais alto da hierarquia prisionalna RMBH.

João Batista Moreira Pinto74: Estarmos aqui significa que to-dos vocês têm alguma coisa em comum em relação à segurança pública e àformação. O que nós vamos discutir é isso, nós vamos abrir, provavelmentefazer algumas questões, e a ideia é que a gente vá conversando sobre isso eaí relatar as experiências de cada um, as percepções de cada um serãoimportantes para enriquecer isso que nós vamos construir. Esse projeto eessa proposta de construção de um curso, mais já considerando quais são aspercepções, quais são as demandas que vocês efetivamente acham impor-tantes para a transformação hoje da segurança pública. Talvez a gente te-

72 Mantida a literalidade da fala coloquial. Transcrição Ricardo Henrique de Carvalho Lara.73 Pesquisas utilizando esta metodologia, técnica utilizada originalmente em marketing, ocorremem um lugar previamente selecionado e são orientadas por um moderador, neste caso específicopor dois moderadores. O objetivo primordial da metodologia é identificar sentimentos, percep-ções, atitudes e idéias dos participantes a respeito de determinado assunto relacionado à suaprática profissional, exemplificativamente.74 Professor universitário.

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nha que discutir mesmo a questão desta experiência dos problemas, dosdesafios, das lacunas.

Meu nome é João Batista, eu sou aqui da Faculdade X75, souprofessor de Sociologia Jurídica e coordeno um grupo de pesquisas, assimcomo Virgílio, relacionado a essa questão e também direitos humanos.

Virgílio de Mattos76: Meu nome é Virgílio. Eu estou coordena-dor desse grupo de pesquisas Violência, Criminalidade e Direitos Humanos,e atualmente faço pesquisa de campo lá na PIEP.

Antes nós tivemos uma capacitação de noves meses para com-preender esse grupo que inicialmente era muito grande, éramos 27 e hojecontando todos somos meia dúzia, meia dúzia de cinco, então a coisa ébastante aguerrida, bem difícil.

Sou professor de criminologia aqui e de direito e criminologia lá naUFOP, e venho nos últimos três anos, movido mesmo por uma obsessão queé essa questão do aprisionamento feminino, e em que condições elas cum-prem essas penas. Inicialmente eu pensava em trabalhar com aquelas só dacreche, que são vinte, vinte e três agora, e de fato a pesquisa foi tomandoum outro rumo, um outro rumo, e hoje a gente... O tipo de trabalho que agente menos atuou foi com essas meninas que estão na creche. A gentetava com uma preocupação muito grande de conseguir possibilidades traba-lho pra elas do lado de fora, trabalhá-las enquanto estão lá dentro e depoisfazer o acompanhamento do lado de fora. São cinco nesse momento traba-lhando fora, duas em liberdade condicional e três fazendo trabalho durante odia e voltando a noite. As possibilidades são inúmeras. Outra questão é ondeestão aprisionados os chamados loucos. Essa também é uma questão queme preocupa muito. É um sistema que não é pensado, né? As pessoas comoé que olham? Varrendo a sujeira pra debaixo do tapete e a sociedade não tánem aí, a sociedade quer é que vocês prendam mesmo, fechem a porta,joguem gasolina e taquem fogo. A sociedade não quer nem saber especial-mente da presa, parece.

G.77: A mulher é mais crucificada que o homem.Virgílio: Mais crucificadas do que os homens embora não haja

tanta violência quanto tem nas cadeias masculinas. O número também émenor, os números da ONU em 2005 falam em 4,5 % de presas e 95,5% de

75 Nomeia a instituição privada na qual trabalha.76 Professor universitário.77 Diretora de unidade prisional.

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presos do sexo masculino.G.: Na minha época cadeia era pra homem. Os crimes praticados

pelo homem são iguais ao que a mulher pratica inclusive estupro78. Lá naPIEP uma das mais (ininteligível). Então são coisas do crime comum tantoao homem quanto as mulheres.

Virgílio: Eu queria que a senhora se identificasse com o nome ea unidade prisional.

G.: Meu nome é G., trabalho na UNIDADE X, lá em Neves, dire-tora de segurança.

Virgílio: Há quanto tempo a senhora está lá?G.: Eu estou lá vai fazer dois anos.E.79: meu nome é E. (ininteligível) a diferença da presa para o

preso, além das dificuldades normais que existem nas penitenciárias emgeral, é a carência, às vezes as presas já chegam pra conversar comigo, ouchorando, ou numa condição que parece que ela se sente bem lá em baixo enuma dificuldade pra levantar, então a gente tá com um trabalho lá de cabe-leireiro que a gente tá deixando ser realizado; entra secador, e aí tem genteque faz dia de semana, final de semana, e aí a gente chega lá na segunda-feira todo mundo com o cabelo alisado... A partir dessa semana todas aspresas poderão trabalhar... Aí falam: “ô seu E. brigado, brigado”. Entãoeu tô sentindo essa alegria que tá lá dentro e o meu trabalho vai ser manterisso aí, com atividades. (ininteligível)

Tem duas presas de Cuiabá que vieram pra cá e foram condena-das aqui recentemente. Desde que foram presas, mais de cinco meses, nãotêm contato com a família, e essas estão difíceis de trabalhar e eu quero vero que eu posso fazer (...) são as que me dão mais trabalho, todo dia eu tenhoque conversar com elas. (...)

A presa tem uma carência maior porque além de tudo, eu tenhoobservado que a presa, o sexo feminino, na sociedade ela se senteinferiorizada, e a mulher é mais ligada à família que o homem, seja porcausa da carência, filho, marido, pai, mãe...

S.80: A mulher na verdade, o que acontece com a mulher, é que

78 Ainda que a dogmática jurídica discordasse àquela época. Para o Direito Penal positivo de entãoapenas o homem poderia ser sujeito ativo do estupro (Art. 213, CP), pois que necessitava parasua configuração a penetração peniana na cavidade vaginal.79 Diretor de unidade prisional.80 Diretora de unidade prisional.

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ela vai presa mais ela leva toda a família dentro do coração, então tudo queacontece lá fora ela tá sofrendo lá dentro, são os filhos, é o companheiroque está preso em outra unidade, é a família que tá sofrendo também, entãoisso tudo atinge ela. Com o homem já não é assim, o homem já é mais frio.

G.: É o companheiro que não está preso, mas pode estar comoutra lá fora...

João Batista: Aqui, vamos tentar fazer essa identificação pri-meiro?

S.: Meu nome é S. eu sou do Complexo X, diretora deressocialização e tem dez anos que eu estou dentro do sistema prisional.

C.81: Meu nome é C. e vai fazer quatro anos que eu estou nosistema prisional, dois anos na penitenciária Dutra Ladeira e dois anos naunidade Y, estudo na faculdade X e estou no 9º período de Direito.

Teve há pouco tempo reunião na Secretaria com o subsecretário,diretores de ressocialização, advogados, e o que eu pude perceber é que aressocialização é a menina dos olhos do subsecretário, e de um modo geral,de todos, e eu também concordo porque nas nossas presas a gente podeobservar a diferença daquelas que estão trabalhando das que não estão.Assim, a gente tem presas trabalhando na lavanderia, como na faxina, nojardim, é diferente, a gente olha pra elas, é diferente, as presas que traba-lham na faxina, ou junto à administração, elas sorriem, tem mais alegria,falam dos companheiros, a gente pode perguntar : “Oi, tudo bem?” A gentepode perguntar: “Como vai seu filho, como vai sua criança?”. Elas nãoprecisam ser mal educadas, respondem com um brilho maior, então eu con-cordo, o caminho é esse aí.

G.: Eu na verdade fui da área de segurança toda a vida, eu entreina PIEP com cinco meses fui pra chefe de segurança. Eu tô com uma vidamuito voltada para ressocialização, na época ainda não tinha ressocialização.

Então quando o preso me falava: “Eu roubei porque Deus nãotava me ajudando” e eu falava: “Olha como é que Deus tá te ajudando,se você fez uma coisa errada e uma pessoa trabalhando honestamentetá te ajudando?”

Ela era de uma quadrilha. Elas iam toda grã-fina, de vestido deseda, salto alto, e roubavam só boutique, tinha o carro que as levava atécerto ponto, tinha as que recebiam a sacola e levavam, era uma quadrilhacompleta. Tanto é que ela nem sabia mais quem eram seus filhos. E eufalava: “Silvia82 você tem que se recuperar, você e seus filhos, se você

81 Diretora de unidade prisional.82 Nome fictício.

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nunca mais entrar na cadeia, porque aí você vai falar, você experi-mentou e viu que não é bom, então você ainda vai ter moral, mais sevocê voltar, não.” Aí ela falou que não ia mais roubar, aí ela começou a tersaídas e as colegas começaram a chamar, aí ela me chamou e falou : “DonaG. elas me chamaram mas eu consegui, eu não fui” aí ela saiu de condi-cional e ficou uma colega dela presa, mais aí ela me contou : “Dona G., euestou trabalhando na faxina lá do fórum Lafayete” então quer dizer,mesmo não tendo a ressocialização eu já trabalhava voltada praressocialização.

Virgílio: Eu queria também que cada um falasse o que seria doagrado de vocês num curso superior que visasse a formação, não só dosdiretores de ressocialização, dos de segurança, mas no geral, com as expe-riências de vocês, o que vocês identificam que falta, o que sobra, como éque vocês pensam isso, o que seria fundamental para ser ensinado?

S.: Ética Profissional.Virgílio: O que falta? Falta ética?S.: As pessoas às vezes não sabem separar certas coisas, o dire-

tor tem que se posicionar como diretor, ele tem que separar o profissional dopessoal, eu quando estou sentada atrás da cadeira de diretora de uma unida-de, isso não é questão de ser ou não ser diretora, a partir do momento que euestou no cargo de confiança eu tenho que me posicionar como profissional,muitas das vezes eu chego perto de uma pessoa, comento um assunto sério,que não pode ser comentado e aquele assunto se espalha. Isso é muitograve! Aí surge aquele assunto, mas eu não comentei aquele assunto comtodos. Então eu acho isso muito grave dentro do sistema prisional, principal-mente nós da ressocialização que trabalhamos com laudo criminológico.Muitas coisas que são discutidas dentro da sala não podem sair dali emhipótese nenhuma, mais infelizmente costuma vazar.

G.: Quando eu faço geral83 nas celas eu comunico na hora, por-que se elas me virem de uniforme de agente penitenciário, já sabem que eutô entrando lá pra dentro, por isso hoje eu faço assim, uma vez ou outra nacadeia toda e de quinze em quinze dias revezando.

Virgílio: E o que encontra?G.: Olha, a primeira vez que nós fomos encontrei muito estilete,

muito pedaço de vidro, muito presto-barba. Hoje não se encontra nada,hoje é tudo controlado, não se encontra nada. Essa noite nós fizemos noanexo 2 e não encontramos nada.

83 Revista minuciosa, tanto em local quanto em pessoa.

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Virgílio: E., lá como é que é essa questão da segurança, o que seencontra?

E.: Drogas (ininteligível)Virgílio: E na carceragem feminina?E.: Na feminina praticamente não encontro nada, nem drogas,

nada. Ontem eu até perguntei como é que tava a situação.S.: Lá na X teve drogas esses dias, mas na realidade foi uma

coisa muito (...) porque a própria sentenciada que guardou a droga se sentiupreocupada com a questão da ameaça, então ela mesma procurou a direto-ra e contou, mas assim, isso é raro de acontecer.

Virgílio: De ter entrado ou de ter falado?S.: Não, nós não temos esse problema graças a Deus. Raramente

acontece, porque elas se sentem tão preocupadas, que eu não sei se vocêsconcordam comigo, mas dentro de uma demanda de 212 sentenciadas, agente pode contar quem é que tem perfil de bandido. Quando ela chega e eucomeço a conversar com ela, ela me passa que não tem nada a ver comaquele mundo de bandidagem, a fala dela é diferente e às vezes tem genteque fala: “Ah, mas eu não acredito que tenha inocente dentro do siste-ma prisional”. Gente, pode até ser que eu esteja enganada, mas eu querocontinuar acreditando que tem muito inocente, principalmente mulher.

E.: Tem que ter mais divulgação, porque da visão que eu tinha dosistema prisional antes de entrar pro sistema não sobrou nada disso e hojeeu vejo que a realidade é outra, a maioria da sociedade não sabe o que éfeito e o que está sendo feito pra melhorar. É igual foi falado no início “jogao preso lá dentro e não tá nem aí” e esquece que ele vai sair e vai voltarpra sociedade.

S.: E é nosso dever prepará-lo porque a gente é reeducador.Virgílio: Não é pra ser carcereiro, né?E.: Então eu penso que a primeira coisa é conscientizar, eu acho

que tem que cuidar do preso na segurança, na ressocialização, na saúde,essa parte de ética também tem que ter mudança, porque a pessoa tem queser profissional, acho que tem que ter integração de todos os setores, por-que eu não estou aqui pra julgar ninguém, eu estou aqui pra cuidar do presopra ele voltar bem pra sociedade, porque o dia que eu deixar de acreditarnisso eu procuro outra coisa pra fazer.

G.: E esse curso vai ser ministrado pra agente?Virgílio: Pra vocês.G.: Pra diretores?Virgílio: A ideia é que seja geral. Primeiro nós começaríamos

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com uma capacitação e essa capacitação seria certificada com um curso. Aideia inicial é essa, né João? Agora o segundo momento é o momento dostecnólogos, porque tanto o Secretário quanto o Subsecretário, eles não que-rem que ninguém chegue à direção – pelo que eu entendi se é que eu enten-di certo - sem curso superior. Parece que o Secretário conversou com vocês,e ao mesmo tempo, o Estado ia proporcionar isso pra vocês e ira mantê-los.E esse curso de tecnólogo funciona com uma espécie de bacharelado, sóque o tempo dele é muito menor, esse curso de capacitação eu penso quepoderia ser semestral para os agentes. Aqui nós temos muitos agentes estu-dando, é rara a turma que não tenha pelo menos um.

E.: Pelo que eu observei, tem muito agente fazendo faculdade, eunão sei dizer a proporção, mas sem discriminar aqueles que não têm, essesagentes são os que têm mais facilidade de entender e compreender a fun-ção deles.

Virgílio: Pensa o seguinte, minha filha mais velha é psicóloga etrabalha num centro de internação para adolescentes, o valor do vencimen-to do agente é superior ao do psicólogo. Um advogado hoje, você encontrapor 800 reais, um advogado pra você contratar e colocar no seu escritório.Um agente custa 1200 reais.

E aí o exemplo que eu digo é o da Penitenciária de Francisco Sá,1200 reais em Francisco Sá é como se ganhasse 5000 reais em Belo Hori-zonte. Dá pra pessoa viver bem. E aí eu queria saber, o que levou vocês prosistema prisional, como é que foi a forma de entrada, o que motivou vocêsirem pro sistema prisional?

G.: O meu foi por acaso. Eu fiquei sabendo que precisavam deagente lá na PIEP, aí eu fui lá, fiz a inscrição pro concurso, aí eu fui pra lápor um acaso, nunca tinha entrado numa delegacia ou num presídio.

Mas eu acho que nesse curso tinha que ter excelência em atendi-mento, porque todas as reuniões que eu faço com os agentes, eu falo: “Gen-te, a educação em primeiro lugar. A família do preso tá chegando aquipra visita, vocês tratando com educação vão tranquilizar o preso e avisita vai sair satisfeita” quer dizer, o bom atendimento começa na porta-ria.

Virgílio: E você, C., o que te levou para o sistema prisional?C.: Eu também fui por acaso, eu trabalhava numa distribuidora de

informática e ganhava muito melhor do que eu ganho hoje, muito mesmo.Virgílio: E você, S., como é que você foi parar lá?S.: Eu caí de pára-quedas (risos). Uma pessoa comentou comigo

dentro do ônibus e falou que as inscrições estavam abertas, eu era da edu-

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cação, aí falei: “Vamos lá, né? Aí cheguei lá, na época era a diretora S.que falou : “já fechou, mas se você quiser - falou com aquele jeitinhodela - você traz seu currículo amanhã”. Aí eu falei: “Ah, então tá bom”.Aí no outro dia eu levei. Passaram poucos dias nos chamaram para fazer oteste psicotécnico. Aí, de uma quantidade boa de candidatos, nessa peneirasó passaram 12 e eu fui uma delas. Aí eu sai da Educação e fui pra DefesaSocial, na época não era Defesa Social, era Secretaria de Justiça, e entreiassim, e eu acho que é a melhor coisa que eu fiz na minha vida, porque eunão vejo a penitenciária como uma profissão, eu vejo aquilo ali como umamissão, eu acho que ninguém entra pro sistema prisional porque quis, por-que aconteceu, não. Você entra pro sistema prisional, toda pessoa envolvi-da com o sistema prisional tem uma missão ali dentro, ele tem alguma coisapra fazer de positivo.

Porque quando a gente é criança um pai ou uma mãe perguntam:“O que você vai ser quando crescer?” E a pessoa responde: “Eu vou seragente penitenciário”. Eu nunca ouvi falar, concorda?

Virgílio: Concordo.S.: O que acontece, quando nós estamos dentro do sistema prisional,

nós temos uma responsabilidade para com aquela pessoa que está ali den-tro, de ajudá-la a se levantar, agora qual o levantar? Pode ser com a auto-estima, pode ser com a família, qual que é o processo, qual que é a técnicaque nós vamos usar para ajudar essa pessoa, cada caso é um caso, entãocada pessoa que nós atendemos é um caso, tem caso que numa entrevistaque você faz no dia fica detonada, tem caso que você atende que você ficafeliz, porque o outro reconheceu seu valor. “Você está bem? Estou”. Agoraquando a gente ouve isso a gente se sente bem, a gente se sente útil. Entãonós temos muitas sentenciadas dentro do sistema, porque quando nós fala-mos que o sistema é bom, que estar preso é bom a gente está mentindo, masàs vezes o próprio sentenciado chega a falar assim: “Eu prefiro aqui den-tro do que lá fora, se eu estivesse lá fora eu já tinha morrido”.

G.: A sua fugitiva já chegou lá.S.: Qual delas? Eu tô com duas.G.: Esqueci o nome delas.S.: Gil84?G.: Não.Virgílio: Jana85.S.: Jana? Sim, positivo.

84 Nome fictício.85 Nome fictício.

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G.: Deram uma batida na favela e pegaram ela, levaram ela paraum canto e quase mataram ela de couro, a Civil é que ouviu os gritos e tirou.Quando puxou a ficha dela: “Fugitiva da polícia? E ela falou: “Sou”. Aíela falou comigo “Dona G., eu agradeço a Deus deles terem me pegadoapesar deles terem me machucado muito, porque os meus pais estãomortos”.

S.: Isso não foi nem uma, nem duas, nós temos várias presas queagradecem por estar ali dentro, na hora de ir embora nós temos algumasque têm dificuldade, porque na hora de ir embora perguntam o quê que euvou fazer depois que sair desse portão aqui, para onde é que eu vou?

G.: Uma coisa que no curso podia ser dada é ensinar a redigirbem uma boa comunicação, porque nós tivemos um problema com umapresa, ela chegou da delegacia, e aí nós fazemos quando chega, com ascoisas delas, perto das presas a gente faz todas as guias, mostrando, escre-vendo, elas conferem e assinam e essa presa falou que tinha um cinto decouro, aí eu chamei ela na minha sala e ela disse: “Dona G. eu fui com umcinto de couro e ele sumiu”, aí eu falei: “Cadê seu papel?”. Havia umconosco e um com você. Ah, o seu cinto sumiu? Então tudo bem, você podeir para sua cela que eu vou procurar seu cinto pra você. E fui olhar no papele não constava o cinto dela, até aí tudo bem, chamei e mostrei que nãoconsta, sua assinatura. Reconhece sua assinatura? Assinatura da agente, odia e tudo, mas só que ela voltou pra cela e continuou falando que a agentetinha roubado o cinto dela. A agente ao invés de fazer a comunicação deque ela estava sendo acusada e aquilo é uma falta muito grave, estavapondo em xeque todos os agentes de plantão, só colocou que ela reclamoudo cinto e que o cinto não constava mais. Como a gente sabia do caso,entendemos de outra forma e ela foi punida com trinta dias de cela, aí a mãedela...

S.: Mas se esse documento chega pro juiz ele não entende comonós entendemos, juiz não vê isso.

G.: É por isso que eu queria que eles aprendessem a redigir bem,colocar o dia, a hora, quantas vezes chamou atenção, quantas vezes a presase rebelou, é porque tudo tem que ter um início, meio e fim. A comunicaçãotem que ter sim, que ela alegou que tinha, mas comprovou-se que não tinha,mas que ela continuou a acusar os agentes de terem roubado o cinto dela.Porque ela falou isso sempre. Era uma coisa que podia até ter registrado umB.O86., mas pelo fato do agente não saber fazer a comunicação, tivemos

86 Boletim de Ocorrência.

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que baixar a pena dela.E.: Lá em Contagem alguns agentes por não saberem fazer a

comunicação me chamam: “Ah, chama o E., lá”. “Aqui, e essa palavratem acento?”

G.: E mais, acento a gente ainda esquece, mas, em caso de dúvidaé só pegar o dicionário...

João Batista: Todos vocês começaram como agentes?E.: Eu tava advogando em São Paulo, e minha mãe faleceu. Eu

mudei pra BH. Aí eu perdi toda minha referência de trabalho, aí pegavauma causinha aqui, outra ali, aí eu fui fazer a defesa de dois agentes, aí elesfalaram: “Doutor é bom trabalhar no sistema, tem vaga pra assistentejurídico.” Aí eu me interessei e fui conhecer a penitenciária.

Virgílio: Agrícola?E.: É, aí eles falaram comigo que tinha vaga pra agente, aí eu

falei: “Agente?! Esse negócio é meio esquisito, ficar com preso.” Aífalaram: “Não sô, é tranquilo, um plantão bom, dá pra fazer seu traba-lho, advogar”. Aí eu fui, fiz as provas, foi até interessante, o edital falavaem até trinta e cinco anos na data da inscrição, no outro dia eu fiz trinta eseis, mas aí deixaram. Só que eu gostei tanto que passou 15 dias eu metornei coordenador e já estava ensinando o que eles tinham me ensinado.

Aí quando tinha um problema em algum pavilhão e tinha que cha-mar a diretoria, aí eu era bom de mediação, aí eu ia lá, eu mesmo resolvia eaí comecei a criar confiança. Aí falaram: “Tá bom, você vai ficar na ins-petoria”. Aí eu consegui o respeito dos agentes, dos presos, da diretoria. Aíme falaram que eu tava tão bom que não queriam que eu saísse. E tem umaparte do núcleo jurídico, mas aí continuei porque era minha área, dava praficar, continuar tendo contato com os presos, aí eu acabei, como era advo-gado, assumindo outras tarefas, aí tomei gosto pela coisa, trabalhando de diae de noite. À noite quando eu sonho é que tô indo trabalhar...

S.: Você passa a conviver muito mais dentro do presídio do quedentro da sua própria casa. Sua casa é o presídio.

Virgílio: Muda, transforma?E.: Muda porque é trabalhoso, às vezes eu volto pra casa e fico

pensando ......S.: O que eu vou fazer amanhã? O que eu preciso fazer?E.: A gente acaba se envolvendo de tal maneira que...João Batista: Vocês tiveram algum tipo de formação inicial quando

vocês entraram?E.: Olha, eu já comecei trabalhando...

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G.: Você perguntou se nós fomos instruídos? Nada, nada.G.: Joga lá e aprende lá.S.: Eu o primeiro dia que trabalhei...Virgílio: Foi você que, na entrevista, me falou que teve medo?S.: Foi.Virgílio: Eu me lembro, falaram faz assim e a S. ...S.: Me jogaram no corredor e eu me lembro, tinha uma presa lá

que era terrível. Eu não lembro o nome dela... Uma do cabelo pretinho queaté o rapaz do correio levou uma fita pra ela, eu não lembro o nome dela....Eu sei que nós tínhamos, que as outras colegas me disseram, você tem queolhar debaixo da porta, aí eu fui, novata né, sem maldade, com educação,porque eu lidava com criança, outra realidade. Quando eu me abaixei praolhar, ela deu uma pesada na porta que eu achei que ia morrer, eu medesestruturei tanto que falei: “Eu não vou voltar aqui mais não...”

E essa mulher xingava, mas xingava, que parecia que tinha inver-tido os pólos. Eu era a presa e ela a agente, aí naquele dia eu achei assim,mesmo com aquele medo eu vou ter que me posicionar, aí, tremendo eu vireie falei: “Ô minha filha, deixa eu te falar uma coisa. Você está confun-dindo as coisas, a agente aqui sou eu”. Aí eu fui lá, chamei a chefe doplantão, a chefe veio, chamou a atenção dela na hora, e ela ficou caladinha.

Daí desse tempo pra cá, eu comecei a trabalhar isso, eu sabia queia viver esse tipo de medo, essas agressões, só que você tem que trabalharisso.

Aí fiquei quatro, cinco meses como agente penitenciário, passouesse período me chamaram e falaram que a partir da data tal você vai ficarna área de gerência de produção, porque ela vai sair de férias e você vaificar com ela.

“Mas gente, eu não entendo nada da área de produção”. Aífalaram: “Nós não estamos perguntando se você entende ou não enten-de de produção”. Aí eu entrei crua. Aí fizeram uma reunião e falaram:“Chegou-se a conclusão que é você mesmo”.

Daí eu comecei a enfrentar os problemas da produção. Que euestava roubando, que eu não sabia trabalhar. Aí aquilo ali acabava comigo,quando eu ficava sabendo que alguma presa falava que eu tava roubando,aquilo eu custava a aceitar.

Virgílio: Agente penitenciário hoje sofre isso?S.: Diretor administrativo e gerente de produção é o que mais

sofre isso, porque hoje o dinheiro não fica tão à vontade não, mas naquelaépoca o dinheiro ficava à vontade, o dinheiro ficava muito “a la vonté”,

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tipo, eu pego aqui do empresário e passo prali. Hoje não, tem que pegar,documentar e fazer um tanto de coisas. Então eles falavam mesmo, só quevocê tem saber administrar isso, porque todo preso do 155, que é furto, ouroubo87, ele sempre acha que o outro também rouba, mas eu custei a enten-der isso e chorava e chorava, então eu tive que trabalhar isso. Aí quandofulana de tal falava isso, aí eu chamava ela e perguntava: “Essa assinaturaé sua? Essa também? Essa também?” Aí explicava tudo pra ela, aí cha-mava outra presa mais entendida para explicar tudo pra ela e, porque àsvezes o problema é a dificuldade de entender, ela não é obrigada a confiarem mim, mas na colega ela confia. Então isso chegou ao ponto que hoje seuma presa fala: “A dona S. fez isso”. Aí elas falam: “Não fala isso, nãoporque você não sabe nem de que está falando”. Então elas já têm issoem mente.

João Batista: Então se ninguém recebeu formação essa atuaçãofoi organizada a partir da prática?

Virgílio: Com os mais antigos?G.: Ou aprendia direito com aqueles que trabalhavam direito, ou

aprendia errado com aqueles que trabalhavam errado.Mas cada plantão trabalhava de uma forma. Então aqueles que

trabalhavam direito, as presas não gostam. Agora tinha plantão que tinhafulana e sicrana, aqueles eram bonzinhos.

Outra questão é o REDIPRI88, o art. 27 não pode ser aplicado porinteiro, e pra gente que não tá acostumado com a lei penal é difícil você ver,identificar qual vai ser o inciso, então tem que simplificar isso, mesmo por-que quem participa disso é o agente penitenciário, gerente de produção,alguns que não têm acesso a essas coisas, então acho que tinha que ter umaLEP89 mais simplificada para o agente penitenciário.

C.: Doutor, você tem a grade do curso?Virgílio: Não. É isso que estamos fazendo. O objetivo dessa téc-

nica é ouvi-los. Em cima das experiências de vocês, desenhar isso, subme-ter e provavelmente nós vamos retornar isso pra vocês, ampliando, e comisso vocês dão sugestões, se quiserem.

C.: Processo penal, direito penal, administrativo, constitucional...S.: Previdenciário, por causa do auxílio-reclusão...E.: São as noções básicas de processo penal, direito penal, cons-

87 O artigo do Código Penal correspondente ao roubo é o 157.88 Regulamento Disciplinar Prisional.89 Lei n. 7.210/84, de Execuções Penais.

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titucional, além de estudar um pouco mais a LEP.S.: Relações interpessoais colocou ai?Virgílio: Não.E.: Criar uma matéria com as questões que lidamos todos os dias,

tipo como se fosse direito penitenciário.Virgílio: Até mesmo com essa nomenclatura, Direito Penitenciá-

rio, porque nas escolas de direito normalmente a gente daria direito peniten-ciário só na pós-graduação, só no mestrado. Que eu saiba, não existe ne-nhuma universidade que ministre essa disciplina na graduação.

João Batista: Vocês acham que com esses conhecimentos, di-gamos, mais legal, de noções e conhecimentos mais ligados à questão peni-tenciária, tem outros aspectos que vocês acham que a atuação de vocêsseria diferenciada se vocês tivessem formação sobre outras áreas, se vocêstivessem a atuação de vocês seria diferenciada? De que vocês sentem ne-cessidade além dessas?

Virgílio: Como vocês veem?G.: Olha, eu quando tem alguma atividade eu vou atrás, porque eu

não tive acesso ao bloco de ressocialização, apesar de ser a favor daressocialização.

Virgílio: Só o bloco de ressocialização?G.: É, só o da segurança, então às vezes entrava em conflito, en-

tão eu não sabia, aí eu fui na Dra. M. e falei: “A senhora pode me dar umbloco da ressocialização?” Aí ela falou: “Olha que maravilha, a direto-ra da segurança querendo bloco de ressocialização”. Então agora eutrabalho com os dois blocos. Então a gente tá precisando conscientizar maisda ressocialização, porque eles acham que ressocialização é pra passar mãona cabeça de preso.

Virgílio: Onde vocês acham que tem esse pensamento equivoca-do?

G.: É porque se eles cometem uma falta, eu não tenho base ne-nhuma pra levar aquilo pra comissão90, aí eu chamo a presa, converso comela, falo que aquilo pode gerar uma reincidência, e aí pronto, resolvi. Aí eufalo com os agentes e eles falam que não vão comunicar mais, porque nãoestá surtindo efeito nenhum.

S.: A mentalidade dos agentes é que, se colocou no papel, tem queser punido. Então não precisa de Conselho Disciplinar. Eu mesmo possopunir, eu posso te comunicar porque tô meio estressada, mas a comissão

90 Comissão Disciplinar.

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não tá estressada. Pode ter 10 pessoas ali e uma tá estressada mas 9 tãotranquilos, então é só votar, de repente eu voto a favor e outro vota aocontrário, talvez eu tenha que repensar meu voto.

Então a agente acha que nós temos que punir o preso, ele senteque ele tem que ter moral, mas a questão não é moral. Eu sou reeducadora.Eu vejo que muitas vezes a gente não precisa comunicar o preso. Eu nãocomunico o preso. O preso fez alguma coisa eu chamo e digo: “Faz favor,o negócio é esse, esse, e esse. E é dessa, dessa e dessa maneira, vocêtem que entender que as coisas funcionam assim, tem uma disciplinaaqui dentro e você tem que respeitar”.

G.: Às vezes a própria agente já puniu a presa, porque às vezesela ia em tal lugar e a agente volta com ela pra cela. Precisa comunicar?Não, já está punida. Mas aí comunica porque, antes de passar pela Comis-são Disciplinar, eu faço uma avaliação, para depois levar pro diretor geral.Isso aqui acho que não precisa. Aí o diretor diz: “Concordo”. Aí eu chamoas presas e converso, por que tudo vai dar punição?

E.: Essa mania de comunicar, comunicar, comunicar, punir, punir,punir, a gente deve pensar, porque às vezes o preso está perto de um bene-fício e por causa da comunicação ele vai ficar lá um tempão.

S.: Eu tenho uma que perdeu um benefício por causa de umacomunicação.

C.: Eu acho que também os agentes não tem esse entendimen-to...

S.: Eu não sei se vocês prestaram atenção, se vocês abriram aintranet, tem um documento do sistema que agora não é mais o atestadocarcerário, o juiz pede o atestado carcerário, a gente manda o PIR...

Virgílio: O que é PIR?S.: Plano de ressocialização...E.: Plano Individual de Ressocialização.Selma: Ali dentro tem toda a vida do sentenciado.E.: Todo corpo técnico fala do sentenciado. O psicólogo fala as-

sim, assim assado, o assistente social fala das necessidades, o advogadofala dos problemas, então mostra que ele é diferente dos outros, já tá indivi-dualizando a pena.

S.: Aí o juiz quando vai dar o benefício, vai analisar o PIR.E.: É eficaz porque o exame criminológico demora...Virgílio: O problema é o exame criminológico ter validade jurídi-

ca ainda. Se a necessidade dele foi revogada ou não...G.: Agora, eu não acho válido, só porque o preso tá na porta de ir

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embora, de conseguir o benefício, você não vai dar uma falta grave que elecometeu?

S.: Aí é outra coisa.G.: Não. Porque ele não está pronto pra ir lá para fora. Tem que

punir mesmo!S.: Eu acho que o preso, se ele cometeu uma falta grave, a gente

tem que mandar pro Conselho Disciplinar e o Conselho analisar essas ques-tões. Se o conselho se acha, não falo incompetente não, mas se diante docaso da pessoa que vai sair tem essa dificuldade, manda pro conselho declassificação que vai ter um psiquiatra, um psicólogo...

G.: Lá tem psicólogo, nós não temos.E.: Isso é perigoso porque o agente pode fazer o preso cometer a

falta.S.: É porque ele vai irritando, irritando, irritando...E.: Porque para retirar o preso tem que ser com educação, por-

que se você começar a irritar o cara: “Pra escolta, anda logo”. A vida docara já tá... Porque ele também tem o direito de ficar irritado de vez emquando. Agora eu acho que isso aí é formação, que às vezes falta, porquemuitos agentes, principalmente os novatos, pensam assim: “Poxa, o presotem comida boa, tem dentista, tem médico, ele tem advogado, nós nãotemos isso não, nossa família não tem isso não”.

S.: Eu e o L. tivemos uma palestra a respeito disso nessas unida-des que o preso tem tudo e eles não tem nada. É aquela questão, como quevocê tem um preso dentro do sistema e você não dá dentista e tudo se étudo direito deles? Isso é o mínimo.

G.: Eu não passo a mão na cabeça de preso, mas eu faço, eu mecoloco no lugar, se fosse filho meu, uma irmã, se fosse eu, como é que eugostaria de ser tratado, então é isso que eu falo para os agentes: “Se colo-que no lugar da família, se coloque no lugar do preso, vamos tratardireito. Você gostaria que fosse tratado assim? Então as pessoas pen-sam só em si mesmas, não pensam no outro. Porque hoje eu não tenhoninguém preso, mas pode acontecer, tenho filhos, tenho sobrinhos, eu mes-ma numa hora de raiva posso cometer um crime e posso mudar de unifor-me.

S.: Qualquer um de nós.E.: Isso é interessante. Direcionar a prática para a conscientização

mostrando que se eles têm direitos, eles têm deveres e os direitos são ga-rantidos por lei, nós temos que dar isso a eles, que as garantias que nóstemos, eles também têm, apesar de não estarem em liberdade. Eles têm

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direito à dignidade e isso é muito importante, a pessoa entender o conceito.O que é dignidade? O que é cidadania?

G.: Eu sempre falo isso com as equipes. Gente, se nós mantiver-mos um plantão tranqüilo pra presa é uma maravilha. É ótimo pra nós. En-tão vamos tratar com educação. Vamos ser firmes no sim e vamos serfirmes no não, mas com educação. Você pode se impor com educação. Asua postura é que vai levar as pessoas a te respeitar. Porque o respeito agente não impõe, a gente adquire, então não vai ser com falta de respeito,com falta de educação como aconteceu lá na reunião, e citei pra fazer umachamada geral de todos, porque a agente chegou lá no pavilhão e disse : “Ôvagabunda, anda que eu não tô por sua conta não, vamos sair” Aí apresa simplesmente falou: “Vagabunda é você”. Aí pronto, tinha um co-municado dessa presa, mas não era sobre isso, eu nem sabia disso.

Aí eu chamei a presa e ela falou: “Dona G. é só isso?” Aí eufalei: “Por que, tinha que ter mais?” Aí ela falou: “Tinha, porque euchamei a agente de vagabunda porque ela me chamou de vagabundaantes e a senhora falou que quando a gente chega aqui tem que terdisciplina, que tem que ter respeito de nós para com elas e delas paraconosco, então eu falei pra ela vagabunda é você.”

Ai eu chamei a funcionária e falei: “Cadê sua moral agora?Reza pra essa presa ir embora depressa se não você não tem moralmais não”.

Ela impôs sua maneira grosseira e acabou perdendo o respeito.João Batista: Mas volto à questão. O que vocês acham que é

necessário para melhorar a atuação de todos?G.: Nós como diretores?Virgílio: Como trabalhadores.C.: Como trabalhadores em geral?Virgílio: É.S.: Eu acho que o conhecimento dentro do sistema prisional é

geral, você ter um conhecimento na área penal, que às vezes precisa paravocê liberar o preso e às vezes você não tem esse conhecimento, conheci-mento na área da saúde.

G.: Às vezes eu chego de madrugada e eu tô na minha casa, meutelefone é 24 horas, aí pergunta sobre um documento, o nome da presa temalguma coisa errada, o nome dos pais não tá batendo, então precisa umacoisa assim pra ficar mais claro, pra trabalhar com mais segurança.

E.: Nessa capacitação ou mesmo no curso é importantíssimo terpenal, constitucional... (ininteligível)

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G.: O Oficial de Justiça não respeita o agente.Virgílio: Então não funciona como parceiro?G.: Não, eles impõem.S.: E o agente tem medo, e com razão de ter medo, né?G.: Vocês precisam ver a pressão, tem que ficar alguém conver-

sando com ele (Oficial de Justiça) pra ter como ligar, como fazer algumacoisa, então esse negócio de soltar preso de madrugada é muito complica-do.

E.: É interessante a formação e a capacitação, porque aí eles vãoaprender a argumentar.

S.: É porque quando você tem argumento, eles, né... Agora comoo agente normalmente não tem argumento...

E.: Porque algumas coisas básicas o preso sabe, então se o agen-te tiver mal informado muitas vezes o preso dá nó no agente e fala assim:“Tô com direito”.

Em Contagem tinha um preso, que veio da Dutra, que no pavilhãodele a gente não conseguia enrolar de jeito nenhum. Ele era um preso muitotranquilo, ficou muito tempo lá, acho que roubou um avião ou helicóptero,ele é fanático com avião, e entende muito, fala idioma, era muito educado emuito inteligente, então ele tinha o respeito dos agentes e sabia como exigiro direito dele e de todos os outros. Quando ele saiu de condicional, fui euque fiz o documento dele e ele saiu e falou: “Eu vou sair vou arrumar umadvogado só pra assinar, porque eu me especializei nessa área de Exe-cução Penal e vou ganhar muito dinheiro, você vai ver, você vai ouvirfalar de mim.” Inteligente, capacidade ele tem, é dessas pessoas que serecuperam, é o tipo do criminoso eventual, tinha de tudo pra não entrar nocrime porque tinha tudo, era de classe média alta, inteligente.

Virgílio: Eu queria saber o que vocês pensam que não tenha sidodito ainda e que pra vocês fosse interessante. A entrada no sistema, osprincipais problemas, já foram postos e muito bem postos. Mas queria sabero que mais. O que mais vocês pensam que a gente poderia ajudar?

S.: O patrimônio do Estado, conscientizar nessa questão dopatrimônio.

Virgílio: Nessa área de Direito Administrativo, pra licitação?G.: Uma coisa que vai precisar muito e tem uma carência enorme

no sistema, principalmente onde eu trabalho, é a informática, hoje tudo éinformática, então informática é uma coisa primordial.

S.: Atendimento...Virgílio: Eu acho que a questão do atendimento e as relações

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interpessoais, como você disse antes, são duas matérias fundamentais.G.: Eu já fiz curso de atendimento e sempre falei: “Esse curso

tinha que ser ministrado a todos os agentes, pra eles saberem que opreso é um cliente, ele não é um cachorro, não é um animal.”

E.: Eu já vi agente chegando e falando: “O que você quer, espe-ra um pouco aí”. E às vezes eles gostam de tratar família de preso pior quepreso.

Virgílio: Muita gente tem família e a família não vai, em funçãodo constrangimento que é imposto. Eu conheço vários casos. Tem muitapresa que não tem visita e aí a gente falava: “Vamos fazer uma brigada devisitas”, como a Professora Vanessa Barros, da psicologia, que levava osalunos do mestrado e os alunos do mestrado apadrinhavam aquelas que nãotinham visita e passavam a visitar. A Dona Léo91 não arruma gente pravisitar porque tem pavor da busca que sofre antes e depois. Prefere não servisitada...

S.: Mas eu acho que não é questão só da busca, é questão dotratamento. A gente tem que tomar muito cuidado porque o Dr. Herbert92

uma vez chegou lá sem o terno, à paisana, e chegou lá como visita. Derepente tem que pensar nessas questões porque quase ninguém conhece.Aí chega um figurão lá pra visitar o preso fulano de tal, aí passa pela bus-ca... Porque eu procuro tratar todas as pessoas da melhor forma possível,porque eu não sei quem é, não sei com quem que eu tô lidando.

(FALHA NO VIDEO. PERÍODO SEM CAPTAÇÃO DE IMA-GEM E SOM)

Virgílio: Tem muito a demonização do nicho dos agentes?E.: Eu acho que em todo lugar... (ininteligível)G.: Na verdade o que acontece é que temos poucos agentes, en-

tão o que acontece? O turno da noite tem que reforçar por isso é que euestou fazendo assim, de vez em quando dando geral na cadeia toda.

S.: Mas aí é mais fácil...E.: O que acontece, eles entram, dão geral e não encontram nada

aí o preso fala: “Pô dando geral de novo e não encontra nada?” Mastem que fazer.

(ininteligível)E.: Tudo é perigoso, tudo põe em xeque a segurança. É o que eu

falei, cuidar de preso não é manter o cara preso não, tem que dar trabalho,dar escola, pra dar condição de voltar melhor pra sociedade, porque o preso

91 Nome fictício.92 Dr. Herbert Carneiro, então juiz da Vara de Execuções Criminais da capital.

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que estuda e trabalha, ele não dá trabalho pra segurança.G.: Mas o foco da ressocialização é ressocialização com seguran-

ça. Quando você não tem um agente disponível pra tomar conta daquelepreso, nós não podemos pôr em risco a segurança porque aquele presopode...

S.: O que ele tá levantando não é isso, não, o que ele tá levantan-do é que às vezes nós temos agente penitenciário e mantemos o preso tran-cado...

G.: Mas tem muito preso preguiçoso...S.: Não, nós estamos falando de preso trancado...G.: É, mas tem preso que não quer sair da cela, quer só dormir,

comer e dormir.S.: É, mas aí tem aquela questão, porque é que o preso só quer

dormir? É chamá-lo para entender o porquê dessa preguiça. É preguiça? Tácom anemia? Vamos fazer uma avaliação, ele pode estar doente.

G.: Agora preso, seja ele condenado ou provisório, teria que serobrigatório estudar o fundamental. Não é obrigatório, mas eu acho que de-veria ser, porque se no presídio tem a ressocialização... Como que vocêressocializa a pessoa que é analfabeta? De vez em quando eu faço chanta-gem com elas, a diretora manda, faltou, faltou, faltou, aí eu chamo e digo:“Se não for pra aula, se faltar, não vai pro salão arrumar cabelo”.

S.: Eu já sou ao contrário, eu digo: Se você não estudar eu voucolocar no seu laudo criminológico: “A mesma não estuda porque não teminteresse nenhum”

Virgílio: (para G.) Lá é provisório, o grosso é provisório?S.: Nós tamos com 120 provisórios e 94 sentenciados, 86 saídas

temporárias e 23 albergados.Virgílio: E lá em V. como é que é?E.: É meio a meio.S.: Agora como que uma pessoa tá no aberto e você segura ela

dentro duma cela, com que direito?Virgílio: O próprio sistema do direito funciona violando o direito

nesse caso...G.: É porque eu falo com as presas, aproveita esse tempo, vai

estudar, mesmo que você já saiba escrever, ler e tudo, aproveita esse tempo,quisera eu ter tempo para sentar numa sala de aula e aprender mais. Chegana cela tem comida, tem café, tem tudo, roupa lavada, porque não aprovei-ta? Não é isso que o governo quer, ressocializar? Não é o que o governofederal, quer? Diminuir o índice do analfabetismo? Então o preso, seja pro-

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visório seja condenado tem que estudar.Virgílio: E o horário desse curso? Qual vocês acham que seria o

horário mais adequado?S.: Na verdade para os diretores qualquer horário é difícil porque

é vinte e quatro horas disponível. Eu acredito que o horário melhor é o dasdezenove horas.

E.: Eu acho tambémS.: Porque aí entra em contato com os diretores. Eu estou dentro

da sala de aula, você tá onde? Eu tô em tal lugar, porque o que um não poderesolver, o outro tem que ir lá e resolver, porque é complicado enquanto umtá na sala de aula o outro tá na faculdade como é o caso do...

Virgílio: Você acredita que aqueles que trabalham em turno, comfolga de 48 horas, eles teriam disponibilidade ou vontade de fazer, no perío-do de folga ou só se fossem obrigados?

C.: Teriam, tanto é que eles me perguntaram, esse curso vai sersó pra diretores? Então acho que eles teriam sim.

S.: Eu acho que esse curso foi pouco divulgado, tem muitos agen-tes que não sabem. Porque já mandaram um memorando sobre o curso enós já encaminhamos.

Virgílio: Essa discussão que nós estamos tendo aqui hoje não é sópra diretores não, é pra todo mundo. Eu penso que a gente tem como inves-tir também no que vocês falaram no começo, na auto-estima do trabalhador,pra ele se sentir valorizado e não jogado como vocês foram jogados.

E.: Porque se ele está estudando, a auto-estima dele... Dá maissegurança, porque tem gente que é bitolado e assim quando ele começar irpra sala de aula abre muito...

G.: Porque muita gente não estuda por falta de oportunidade, faltade dinheiro.

Virgílio: Vocês acham que tanto a capacitação, quanto o curso detecnólogo teriam condições? Eles teriam condições de arcar com o custo?

G.: Tem porque os que fazem faculdade saem do serviço e vãoestudar pagando...

S.: E hoje nós estamos com uma demanda de agentes que estãobuscando conhecimento...

G.: Lá na minha unidade tem muito agente...S.: Na minha também.E.: Uma coisa também é o plano de carreira que você sabe que tá

trabalhando, que tá subindo, porque o cara entra agente e aí tá pensando,daqui a dez anos eu sou agente, não vou chegar a diretor. A partir do mo-

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mento que tem esse plano de carreira e salários fica melhor.G.: Porque quando a pessoa não consegue redigir ou redigiu mal,

aí vai pro conselho disciplinar. O conselho vai julgar e às vezes não é aquiloque ele quis dizer, é pelo entendimento que tá ali.

E.: Porque eu sou assim, se eu não sei, eu chego e falo que eu nãosei, mas eu acho que eu posso aprender, você me ensina, eu sempre fuiassim...

S.: Eu acredito que nas unidades, as palestras que nós temos arespeito, eu nem sei que matéria que é, mas a questão do agente penitenci-ário se posicionar como polícia.

G.: A identificação do agente...Virgílio: Agente penitenciário e policial são duas coisas comple-

tamente diferentes.S.: Eu não sei qual matéria seria, mas tem que trabalhar isso aí.Virgílio: Isso seria nas relações interpessoais mesmo...S.: Trabalhar a conscientização do agente. Eu acho isso muito

sério.G.: Falou na Itatiaia93. Passou na primeira votação o colete de

polícia do agente, pra facilitar, porque às vezes tem uma fuga e ele não podeatuar, então tem que depender da polícia militar, mas até que vem...

Virgílio: Vocês são contrários ao agente poder portar arma?S.: Eu particularmente sou contra.C.: Eu também. Eu não uso.S.: Até o que foi colocado é que quem teria direito seriam os dire-

tores, aí eu falei: “pra mim não faz diferença nenhuma se votar a favorou contra”. Eu tenho muito mais confiança na minha bíblia que num revól-ver. A PM tá preparada pra isso, só que o PM é obrigado à educação física.Chega na Andradas, tá todo mundo lá (gesto de corrida), eles tão lá por quequerem? Não, porque são obrigados mesmo, treinar, curso de tiro, é diferen-te. Eu acho isso muito perigoso.

Virgílio: Do ponto de vista, aí já é mais curiosidade, do ponto devista de uma formação cultural, vocês acham que seria bem-vinda tam-bém? Uma seleção de filmes, passar esses filmes, fazer uma seleção detextos...

S.: Importantíssimo.E.: Olha o filme do BOPE94, do Rio de Janeiro, o jeito de assistir

esse filme não pode inspirar também, e todo mundo esquece que lá eles são

93 Rádio popular em Belo Horizonte com vários programas estilo mondo cane, e reportagenspoliciais.

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polícia e nós estamos trabalhando com presos que têm família, temINFOPEN, num pensa que eles vão invadir atirando em preso não. Eu faloisso todo dia lá na unidade.

S.: E agente não pode comparar agente penitenciário com políciamilitar, com polícia federal...

G.: As polícias, a civil, a militar e a federal andam armadas, a civile a militar mexem com bandido. Quem faz escolta de bandido? Os agentes.Então eles têm que ter treinamento porque a qualquer momento pode ter umresgate.

Virgílio: Vocês têm esses números de quantos foram resgatadosnos últimos 5, 10 anos? Porque eu não me lembro de nenhum caso...

S. e G.: Quase nenhum...E.: São casos isoladosGraça: Os agentes não são preparados para estarem portando

arma...Virgílio: O H. estuda aqui, e eu fiquei num dó dele quando ele

falou, muito alegre, que era pra vocês terem calma que ano que vem virão40 veículos...

S.: Isso é só ilusão...G.: Saíram dois carros pra oficina, um já teve que mandar com-

prar peça pra colocar, porque vai na oficina pra fazer só aquilo que a Secre-taria autorizou, não fazem um check-up aí já sai com o carro ruim...

S.: E o carro da PIEP, que ia ficar em 80 reais pra nós consertar-mos e se autorizou. Pelo tempo que vai ficar, se tivesse tirado 80 reais dobolso, o prejuízo ia ser menor...

E.: Teve caso de levar preso pra audiência em ambulância...G.: Agora, por que não tem uma manutenção constante, pra evi-

tar?Virgílio: Vocês acham que os próprios presos deveriam trabalhar

nisso?Todos: Com certeza.G.: É um tipo de profissão que vai dar pro preso, que eles vão

continuar lá fora.E.: O preso vai sair e vai ter uma profissão lá fora.Virgílio: Gente tem mais alguma coisa que vocês queiram dizer?

Eu tô muito satisfeito, muito agradecido.

94 Batalhão de Operações de Polícia Especial, a famigerada “tropa de elite” da PMRJ.

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Este livro, com tiragem de 1000 exemplares, foi composto em

Times roman, corpo 14/12, por

Rômulo Garcias Design, no outono de 2010, para a Fundação

Movimento Direito e Cidadania e impresso pela

Gráfica O Lutador.

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