de repente, o enem perdeu sua identidade e passou a ser o...

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Uma escola tradicional, mas sem tradicionalismo Educação CADERNO DE FOLHA DIRIGIDA www.folhadirigida.com.br 27 de março a 2 de abril de 2014 FOLHA DIRIGIDA — O SENHOR ESTÁ QUASE DOIS ANOS E MEIO NA DIRE- ÇÃODO COLÉGIOSAGRADOCORAÇÃO DE MARIA. QUE AÇÕES COLOCOU EM PRÁTICA AO LONGO DESTE PERÍODO? Amaro França — Vim de Recife para este desafio. É um novo mercado, uma nova praça, uma nova reali- dade, sem falar no atrativo que re- presenta o nome e da história da instituição. Esta foi uma das gran- des motivações para eu estar aqui. Alguns desafios maiores tento re- sumir, pois sempre gestão é algo desafiador, seja qual for a realida- de. Mas, um elemento que tem sido prioritário é o resgate da iden- tidade institucional. Essa é uma escola de referência, de história sig- nificativa para a cidade, o estado e o país. Essa escola tem uma iden- tidade muito forte, um papel so- cial importantíssimo. E, nesse sentido, uma de nossas priorida- des e esta, que se desdobra em alguns aspectos no sentido da inovação pedagógica, de projetos que correspondam com um diá- logo maior com a realidade que vivemos e investimentos em âmbito de tecnologia e espaços pedagógicos que possam melho- rar o processo de ensino-aprendi- zagem. Estas são algumas diretri- zes que estabelecemos. PODERIA NOS FALASSE SOBRE ESTA IDENTIDADE A ESCOLA, A QUE SE REFE- RIU. QUAL A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA? A escola pertence à Rede Sagra- do, que tem cinco unidades no Brasil, e que possui toda uma me- todologia e unidade pedagógi- ca muito bem definidas. Ela parte de pressupostos de cunho filo- sófico de identidade, princípios e valores, além de um ou outro eixo pedagógico que está ligado mais a uma dimensão mais me- todológica. Há pressupostos pe- dagógicos mais globais, funda- mentais e com aspectos mais so- ciointeracionistas, mas também existem outras vertentes pedagó- gicas que nos guiam. Por exem- plo, acreditamos que somos uma escola com princípios tradicio- nais, com relação à identidade, mas de princípios muitos inova- dores para responder à realida- de à qual vivenciamos. O SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA TEM MAIS DE UM SÉCULO DE EXISTÊNCIA. COMO A INSTITUIÇÃO LIDA COM O DE- SAFIO DE MANTER A TRADIÇÃO E, AO MESMO TEMPO, ESTAR ALINHADA COM OS NOVOS TEMPOS? É bom diferenciar o que é tradi- ção, que para nós está relaciona- do com a nossa identidade insti- tucional, da história que ela tem em si, do que é tradicionalismo. Nesse aspecto, não somos tradi- cionalistas. Somos uma escola de tradição, com seus princípios e valores dos quais não abrimos mão, mas que dialoga com a rea- lidade em que estamos inseridos. E aí está o grande desafio para ma escola que tem princípios e valo- res: manter-se fiel a sua identida- de e corresponder às necessidades deste mundo que são tão desafi- adoras. Um exemplo disso é como enfatizamos a formação continu- ada. Este é um princípio para nós. Estar sintonizado é estar sempre estudando, buscando qualificação de nosso corpo docente, técnico e administrativo. Esta é uma for- ma importante de dialogar com realidades desafiadoras. Existem escolas de modismo, que se ori- entam apenas pelo que a socie- dade cobra e, com isso, se perdem ao longo do tempo. NOS ÚLTIMOS ANOS, O EXAME NACIO- NAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) TOR- NOU- SEOSUBSTITUTODOSVESTIBULA- RES PARA AMAIORPARTE DASINSTITUI - ÇÕES FEDERAIS EM TODO O PAÍS. COM ISSO, TEM CRESCIDO A PRESSÃO DOS PAISPARAQUEASESCOLASTENHAMUM BOM DESEMPENHO NA PROVA. DE QUE FORMAAESCOLALIDACOMESSAPRES- SÃO DECORRENTE DO ENEM? O Enem nasceu com um propó- sito e, de repente, ele passou a ser o grande vestibular do país. E tornou-se uma espécie de ranking nacional, até muito in- devido, para todas as escolas. Se tomarmos como referência, por exemplo, o ensino superior, te- mos o Sistema Nacional de Ava- liação do Ensino Superior (Sina- es), que possui várias vertentes para avaliar a instituição de en- sino superior. E, na educação básica, é praticamente o Enem que dita esta norma. E isto, in- felizmente, limita muito o pa- pel educacional da escola. No nosso caso específico, trabalha- mos esse aspecto com muita se- riedade, pois acreditamos que o Colégio Sagrado Coração de Maria tem o papel fundamental de formar o sujeito enquanto cidadão, mas também o sujeito academicamente bom, que possa competir com outros alunos de quaisquer instituições. E quan- to aos resultados, inclusive, te- mos sido até prejudicados. POR QUE? por dois anos consecutivos, o Inep não divulgou nossos resul- tados. Para que se tenha uma ideia, foram 25 mil escolas ca- dastradas na última edição do Enem e, destas, 14.575 ficaram sem resultado. E, entre elas, está a nossa. Estamos em uma briga judicial para que este resultado seja divulgado. No entanto, ape- sar disso, tivermos um crescimen- to importante no ensino médio. Isto acontece por conta do bom resultado dos nossos alunos, pois sabemos as notas individu- ais; elas só não foram divulga- das oficialmente. E temos tam- bém nossos alunos sendo apro- vados tanto em instituições pú- blicas como em particulares muito sérias. Para nós, a educa- ção vai muito além do Enem. Encaramos isso com muita seri- edade. Em uma análise de expe- riência educacional e de gestão, o Enem, nesse momento, tem a sua relevância e terá durante um certo tempo, como aconteceu com os vestibulares específicos das universidades públicas. A sociedade vai tomar novas cons- ciências e novos rumos políticos para redefinir este aspecto. Para nós, o Enem é um processo que está sempre em foco, mas não nos angustia. HOUVE ALGUMA JUSTIFICATIVA DO MEC PARA A NÃO-DIVULGAÇÃO DA NOTA DOS ALUNOS DO SAGRADO CO- RAÇÃO DE MARIA? Nenhuma. Não só para a nossa como também para mais de 14 mil escolas. Temos buscado es- clarecimento e, nesse sentido, vai uma crítica ao Inep, é o fato de que fizemos todo um pedido formal, preenchemos um proto- colo via site da instituição, entra- mos com representação judicial e, até o momento, não temos uma justificativa plausível para nós e para as outras escolas. ACREDITA QUE ISTO PREJUDICA A ES- COLA? DE QUE FORMA? Realmente, é lamentável em um processo tão significativo como este, não ter o resultado. É óbvio que no primeiro momento vem o problema da imagem das es- colas que não têm o resultado di- vulgado. Mas, nosso trabalho é tão sério que nesse aspecto temos toda uma compreensão dos pais, dos alunos em relação a nossa formação. Mas, é óbvio que que- remos uma explicação do Inep sobre o que aconteceu. NACONDIÇÃODE EDUCADOR, COMOAS MUDANÇAS QUE O ENEM SOFREU, PARASETRANSFORMAREMVESTIBULAR NACIONAL? FORAM POSITIVAS? ESPE- RAQUETRAGABONSRESULTADOSPARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA? Considero as avaliações de larga escala importantes, desde que te- nham um norte. Na realidade ori- ginal do Enem, este norte era a busca pela melhoria da educação. Seus resultados deveriam ser ve- rificados e, a partir daí, políticas deveriam ser adotadas para que as melhorias acontecerem. Mas, de repente, o Enem perdeu sua identidade e passou a ser o gran- de vestibular do país. Com isso, tornou-se muito mais um instru- mento para a formação de um ranking e, sob esse aspecto, o não vejo com bons olhos. Acho uma crueldade, pois limita todo o papel educacional. No entanto, se os dados forem trabalhados para que avanços sejam alcança- dos, aí considero o exame impor- tante. Para isto, é preciso que exista uma vontade política sé- ria e se defina, entre outras coi- sas, qual o papel do ensino mé- dio na realidade do hoje. A SEU VER, QUAL DEVERIA SER ESSA IDENTIDADE? O primeiro aspecto é que o ensi- no médio tenha uma característi- ca de diálogo com a realidade. Não pode ter conteúdos que não são significativos. É preciso também que ele abra portas para uma rea- lidade que se aproxima do merca- do. Para isso, necessita ter também foco no desenvolvimento de ou- tras habilidades e competências. Faz-se necessária, ainda, uma for- mação mais humana. Muitas es- colas, hoje, trabalham o conteúdo pelo conteúdo. E quando este alu- no entra no ensino superior, que tem suas especificidades e desafi- os, ou quando chega à realidade do mercado, valores e habilidades fundamentais, como saber traba- lhar em equipe, não foram cons- truídos. E isto acaba gerando de- semprego. Não estou falando da competência técnica, mas de com- petência humana. Não se trata de dizer que o ensino médio deve se tornar um ensino técnico, mas que possa também ter essa perspecti- va. Aqui na escola, por exemplo, procuramos realizar práticas de visitas a universidades públicas e privadas de qualidade, que tenham experiências diferenciais no mer- cado. É interessante já trazer um pouco dessa realidade e dessa dis- cussão para o ensino médio. COMOOSENHORAVALIAASITUAÇÃODO ENSINOPRIVADO? QUAISOSPRINCIPAIS DESAFIOSPARAUMAESCOLADOSETOR, HOJE, MANTER-SE NO MERCADO? Parto do pressuposto que a gestão ela não tem receita pronta. Mas, há alguns aspectos que são fundamen- tos da gestão. Respeitar a cultura local e organizacional é um fator decisivo para qualquer gestão. Isto nos dá a sensibilidade necessária para traçar algumas metas e desa- fios. É importante também planejar conhecendo a realidade. E, nesse aspecto, entra a dimensão orça- mentária, dos investimentos. Di- zem que o papel do gestor é ser o grande maestro da instituição edu- cacional que possibilite o resulta- do final da qualidade, que é a aprendizagem dos alunos. E para isto, temos o papel fundamental de articulação, de mediação, de li- derança junto à equipe de profes- sores, equipe pedagógica, família. Outro desafio também é poder avançar nos resultados sem perder aquilo que lhe é princípio e valor. Um aspecto importante é alinhar processos administrativos, enten- da-se financeiros, de forma espe- cífica. Não se pode comprometer esta parte de forma alguma. Esta é uma organização como qualquer outra, do ponto de vista de empre- sa. Então, não se pode levar a um comprometimento. As despesas devem ser feitas de forma muito bem planejada. Este são os prin- cipais desafios, a meu ver, para qualquer instituição educacional. MUITOS GESTORES EDUCACIONAIS DI- ZEM QUE GERA MUITA PREOCUPAÇÃO AS MUDANÇAS FREQUENTES NA LEGIS- LAÇÃO EDUCACIONAL. DE QUE FORMA ISTO AFETA AS ESCOLAS? Uma boa escola, mais ou menos em setembro, está projetando ou já tem projetado todo o ano vin- douro. E, de repente, vem uma decisão de legislação, um decre- to ou uma normatização, que vai comprometer muito seu orça- mento. Então, o que se faz neces- sário? Percebo que as normatiza- ções têm um fim em si, mas pre- cisam ter um tempo para que sejam executadas. E não tenha dúvida que algumas decisões que parecem ter um fim positivo têm um impacto direto, no sentido fi- nanceiro, de estrutura, entre ou- tros aspectos. Quando estas leis são impostas, têm um impacto na organização letiva, funcional e administrativa. E lamentavel- mente, temos sofrido com isso na educação e, principalmente, no ensino superior. Isso é um desa- fio para o setor privado. esde 2012 à frente de uma das mais tradicionais instituições de ensino do Rio, o Colégio Sagrado Coração de Maria (Sacré-Coeur de Marie), o professor per- nambucano Amaro França, de 43 anos, possui dois objetivos principais. Ele busca, por um lado, promover um fortalecimento da identidade institucional da esco- la, que completará 103 anos de existência em junho deste ano. Em outra frente, atua no sentido de aliar a tradição centenária do colégio às demandas da educa- ção moderna. Para isso, tem investido em capacitação de professores e utilização de re- cursos tecnológicos para incrementar as atividades nas salas de aula e nos laboratórios. Formado em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e também em Ciências Religiosas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), o diretor fez também especialização em Psicopedagogia pela UFRN e em Gestão Acadêmica e Universitária pela Fundação Pedro Leopoldo (FPL-MG). Hoje, faz mestrado em Educa- ção pela Universidade da Madeira de Portugal. Mas, suas referências não são só acadêmicas ou de gestão. Durante sua trajetória profissio- nal, Amaro França atuou como professor, coordenador pedagógico, vice-diretor e diretor- geral, cargos ocupados tanto em instituições de educação básica quanto de ensino superior. Ele também é o primeiro homem a comandar uma escola da Rede Sagrado Coração de Maria em todo o mundo. Ao falar sobre sua busca por unir o respeito à história da ins- tituição e a necessidade de inseri-la na vanguarda educacional, ele salientou que o ca- minho é ser tradicional, sem ficar preso ao tradicionalismo. “Somos uma escola de tradição, com seus princípios e valores dos quais não abrimos mão, mas que dialoga com a realidade em que estamos inseridos. E aí está o grande desafio para ma escola que tem princípios e valores: manter-se fiel a sua identidade e corresponder às necessidades deste mundo que são tão desafiadoras”, destacou o diretor, que também faz palestras sobre temas como gestão, formação humana e práticas educacionais e é autor de dois livros: “Interlocuções – reflexões sobre a vida” e “Composições do caminho”. De repente, o Enem perdeu sua identidade e passou a ser o grande vestibular do país. Diretor do Colégio Sagrado Coração de Maria, o professor Amaro França fala, nesta entrevista, sobre ensino médio, Enem, desafios para gestão nas escolas privadas e, ainda, salienta como busca conciliar a tradição de mais de um século de existência com as demandas da educação moderna ZENITE MACHADO AMARO FRANÇA Uma escola tradicional, mas sem tradicionalismo D D

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Uma escola tradicional,mas sem tradicionalismo

EducaçãoCADE

RNO

DE FOLHA DIRIGIDA

www.folhadirigida.com.br27 de março a 2 de abril de 2014

FOLHA DIRIGIDA — O SENHOR ESTÁHÁ QUASE DOIS ANOS E MEIO NA DIRE-ÇÃO DO COLÉGIO SAGRADO CORAÇÃODE MARIA. QUE AÇÕES COLOCOU EMPRÁTICA AO LONGO DESTE PERÍODO?Amaro França — Vim de Recife paraeste desafio. É um novo mercado,uma nova praça, uma nova reali-dade, sem falar no atrativo que re-presenta o nome e da história dainstituição. Esta foi uma das gran-des motivações para eu estar aqui.Alguns desafios maiores tento re-sumir, pois sempre gestão é algodesafiador, seja qual for a realida-de. Mas, um elemento que temsido prioritário é o resgate da iden-tidade institucional. Essa é umaescola de referência, de história sig-nificativa para a cidade, o estadoe o país. Essa escola tem uma iden-tidade muito forte, um papel so-cial importantíssimo. E, nessesentido, uma de nossas priorida-des e esta, que se desdobra emalguns aspectos no sentido dainovação pedagógica, de projetosque correspondam com um diá-logo maior com a realidade quevivemos e investimentos emâmbito de tecnologia e espaçospedagógicos que possam melho-rar o processo de ensino-aprendi-zagem. Estas são algumas diretri-zes que estabelecemos.

PODERIA NOS FALASSE SOBRE ESTAIDENTIDADE A ESCOLA, A QUE SE REFE-RIU. QUAL A PROPOSTA PEDAGÓGICADO SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA?A escola pertence à Rede Sagra-do, que tem cinco unidades noBrasil, e que possui toda uma me-todologia e unidade pedagógi-ca muito bem definidas. Ela partede pressupostos de cunho filo-sófico de identidade, princípiose valores, além de um ou outroeixo pedagógico que está ligado

mais a uma dimensão mais me-todológica. Há pressupostos pe-dagógicos mais globais, funda-mentais e com aspectos mais so-ciointeracionistas, mas tambémexistem outras vertentes pedagó-gicas que nos guiam. Por exem-plo, acreditamos que somos umaescola com princípios tradicio-nais, com relação à identidade,mas de princípios muitos inova-dores para responder à realida-de à qual vivenciamos.

O SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA TEMMAIS DE UM SÉCULO DE EXISTÊNCIA.COMO A INSTITUIÇÃO LIDA COM O DE-SAFIO DE MANTER A TRADIÇÃO E, AOMESMO TEMPO, ESTAR ALINHADA COMOS NOVOS TEMPOS?É bom diferenciar o que é tradi-ção, que para nós está relaciona-do com a nossa identidade insti-tucional, da história que ela temem si, do que é tradicionalismo.Nesse aspecto, não somos tradi-cionalistas. Somos uma escola detradição, com seus princípios evalores dos quais não abrimosmão, mas que dialoga com a rea-lidade em que estamos inseridos.E aí está o grande desafio para maescola que tem princípios e valo-res: manter-se fiel a sua identida-de e corresponder às necessidadesdeste mundo que são tão desafi-adoras. Um exemplo disso é comoenfatizamos a formação continu-ada. Este é um princípio para nós.Estar sintonizado é estar sempreestudando, buscando qualificaçãode nosso corpo docente, técnicoe administrativo. Esta é uma for-ma importante de dialogar comrealidades desafiadoras. Existemescolas de modismo, que se ori-entam apenas pelo que a socie-dade cobra e, com isso, se perdemao longo do tempo.

NOS ÚLTIMOS ANOS, O EXAME NACIO-NAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) TOR-NOU-SE O SUBSTITUTO DOS VESTIBULA-RES PARA A MAIOR PARTE DAS INSTITUI-ÇÕES FEDERAIS EM TODO O PAÍS. COMISSO, TEM CRESCIDO A PRESSÃO DOSPAIS PARA QUE AS ESCOLAS TENHAM UMBOM DESEMPENHO NA PROVA. DE QUEFORMA A ESCOLA LIDA COM ESSA PRES-SÃO DECORRENTE DO ENEM?O Enem nasceu com um propó-sito e, de repente, ele passou aser o grande vestibular do país.E tornou-se uma espécie deranking nacional, até muito in-devido, para todas as escolas. Setomarmos como referência, porexemplo, o ensino superior, te-mos o Sistema Nacional de Ava-liação do Ensino Superior (Sina-es), que possui várias vertentespara avaliar a instituição de en-sino superior. E, na educaçãobásica, é praticamente o Enemque dita esta norma. E isto, in-felizmente, limita muito o pa-pel educacional da escola. Nonosso caso específico, trabalha-mos esse aspecto com muita se-riedade, pois acreditamos que oColégio Sagrado Coração deMaria tem o papel fundamentalde formar o sujeito enquantocidadão, mas também o sujeitoacademicamente bom, que possacompetir com outros alunos dequaisquer instituições. E quan-to aos resultados, inclusive, te-mos sido até prejudicados.

POR QUE?por dois anos consecutivos, oInep não divulgou nossos resul-tados. Para que se tenha umaideia, foram 25 mil escolas ca-dastradas na última edição doEnem e, destas, 14.575 ficaramsem resultado. E, entre elas, estáa nossa. Estamos em uma brigajudicial para que este resultadoseja divulgado. No entanto, ape-sar disso, tivermos um crescimen-to importante no ensino médio.Isto acontece por conta do bomresultado dos nossos alunos,pois sabemos as notas individu-ais; elas só não foram divulga-das oficialmente. E temos tam-bém nossos alunos sendo apro-vados tanto em instituições pú-blicas como em particularesmuito sérias. Para nós, a educa-ção vai muito além do Enem.Encaramos isso com muita seri-edade. Em uma análise de expe-riência educacional e de gestão,o Enem, nesse momento, tem asua relevância e terá durante umcerto tempo, como aconteceucom os vestibulares específicosdas universidades públicas. Asociedade vai tomar novas cons-ciências e novos rumos políticospara redefinir este aspecto. Paranós, o Enem é um processo queestá sempre em foco, mas nãonos angustia.

HOUVE ALGUMA JUSTIFICATIVA DOMEC PARA A NÃO-DIVULGAÇÃO DANOTA DOS ALUNOS DO SAGRADO CO-RAÇÃO DE MARIA?Nenhuma. Não só para a nossacomo também para mais de 14mil escolas. Temos buscado es-clarecimento e, nesse sentido, vaiuma crítica ao Inep, é o fato deque fizemos todo um pedidoformal, preenchemos um proto-colo via site da instituição, entra-mos com representação judiciale, até o momento, não temosuma justificativa plausível paranós e para as outras escolas.

ACREDITA QUE ISTO PREJUDICA A ES-COLA? DE QUE FORMA?Realmente, é lamentável em umprocesso tão significativo comoeste, não ter o resultado. É óbvioque no primeiro momento vemo problema da imagem das es-colas que não têm o resultado di-vulgado. Mas, nosso trabalho étão sério que nesse aspecto temostoda uma compreensão dos pais,dos alunos em relação a nossaformação. Mas, é óbvio que que-remos uma explicação do Inepsobre o que aconteceu.

NA CONDIÇÃO DE EDUCADOR, COMO VÊAS MUDANÇAS QUE O ENEM SOFREU,PARA SE TRANSFORMAR EM VESTIBULARNACIONAL? FORAM POSITIVAS? ESPE-RA QUE TRAGA BONS RESULTADOS PARAA EDUCAÇÃO BRASILEIRA?Considero as avaliações de largaescala importantes, desde que te-nham um norte. Na realidade ori-ginal do Enem, este norte era abusca pela melhoria da educação.Seus resultados deveriam ser ve-rificados e, a partir daí, políticasdeveriam ser adotadas para queas melhorias acontecerem. Mas,de repente, o Enem perdeu suaidentidade e passou a ser o gran-de vestibular do país. Com isso,tornou-se muito mais um instru-mento para a formação de umranking e, sob esse aspecto, o nãovejo com bons olhos. Acho umacrueldade, pois limita todo opapel educacional. No entanto,se os dados forem trabalhadospara que avanços sejam alcança-dos, aí considero o exame impor-tante. Para isto, é preciso queexista uma vontade política sé-ria e se defina, entre outras coi-sas, qual o papel do ensino mé-dio na realidade do hoje.

A SEU VER, QUAL DEVERIA SER ESSAIDENTIDADE?O primeiro aspecto é que o ensi-no médio tenha uma característi-ca de diálogo com a realidade. Nãopode ter conteúdos que não sãosignificativos. É preciso tambémque ele abra portas para uma rea-lidade que se aproxima do merca-do. Para isso, necessita ter tambémfoco no desenvolvimento de ou-

tras habilidades e competências.Faz-se necessária, ainda, uma for-mação mais humana. Muitas es-colas, hoje, trabalham o conteúdopelo conteúdo. E quando este alu-no entra no ensino superior, quetem suas especificidades e desafi-os, ou quando chega à realidadedo mercado, valores e habilidadesfundamentais, como saber traba-lhar em equipe, não foram cons-truídos. E isto acaba gerando de-semprego. Não estou falando dacompetência técnica, mas de com-petência humana. Não se trata dedizer que o ensino médio deve setornar um ensino técnico, mas quepossa também ter essa perspecti-va. Aqui na escola, por exemplo,procuramos realizar práticas devisitas a universidades públicas eprivadas de qualidade, que tenhamexperiências diferenciais no mer-cado. É interessante já trazer umpouco dessa realidade e dessa dis-cussão para o ensino médio.

COMO O SENHOR AVALIA A SITUAÇÃO DOENSINO PRIVADO? QUAIS OS PRINCIPAISDESAFIOS PARA UMA ESCOLA DO SETOR,HOJE, MANTER-SE NO MERCADO?Parto do pressuposto que a gestãoela não tem receita pronta. Mas, háalguns aspectos que são fundamen-tos da gestão. Respeitar a culturalocal e organizacional é um fatordecisivo para qualquer gestão. Istonos dá a sensibilidade necessáriapara traçar algumas metas e desa-fios. É importante também planejarconhecendo a realidade. E, nesseaspecto, entra a dimensão orça-mentária, dos investimentos. Di-zem que o papel do gestor é ser ogrande maestro da instituição edu-cacional que possibilite o resulta-do final da qualidade, que é aaprendizagem dos alunos. E paraisto, temos o papel fundamentalde articulação, de mediação, de li-derança junto à equipe de profes-sores, equipe pedagógica, família.Outro desafio também é poderavançar nos resultados sem perderaquilo que lhe é princípio e valor.Um aspecto importante é alinharprocessos administrativos, enten-da-se financeiros, de forma espe-cífica. Não se pode comprometeresta parte de forma alguma. Esta éuma organização como qualqueroutra, do ponto de vista de empre-sa. Então, não se pode levar a umcomprometimento. As despesasdevem ser feitas de forma muitobem planejada. Este são os prin-cipais desafios, a meu ver, paraqualquer instituição educacional.

MUITOS GESTORES EDUCACIONAIS DI-ZEM QUE GERA MUITA PREOCUPAÇÃOAS MUDANÇAS FREQUENTES NA LEGIS-LAÇÃO EDUCACIONAL. DE QUE FORMAISTO AFETA AS ESCOLAS?Uma boa escola, mais ou menosem setembro, está projetando oujá tem projetado todo o ano vin-douro. E, de repente, vem umadecisão de legislação, um decre-to ou uma normatização, que vaicomprometer muito seu orça-mento. Então, o que se faz neces-sário? Percebo que as normatiza-ções têm um fim em si, mas pre-cisam ter um tempo para quesejam executadas. E não tenhadúvida que algumas decisões queparecem ter um fim positivo têmum impacto direto, no sentido fi-nanceiro, de estrutura, entre ou-tros aspectos. Quando estas leissão impostas, têm um impactona organização letiva, funcionale administrativa. E lamentavel-mente, temos sofrido com isso naeducação e, principalmente, noensino superior. Isso é um desa-fio para o setor privado.

esde 2012 à frente de uma das mais tradicionais instituições de ensino do Rio,o Colégio Sagrado Coração de Maria (Sacré-Coeur de Marie), o professor per-nambucano Amaro França, de 43 anos, possui dois objetivos principais. Ele busca,por um lado, promover um fortalecimento da identidade institucional da esco-la, que completará 103 anos de existência em junho deste ano. Em outra frente,atua no sentido de aliar a tradição centenária do colégio às demandas da educa-

ção moderna. Para isso, tem investido em capacitação de professores e utilização de re-cursos tecnológicos para incrementar as atividades nas salas de aula e nos laboratórios.Formado em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) etambém em Ciências Religiosas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), o diretorfez também especialização em Psicopedagogia pela UFRN e em Gestão Acadêmica eUniversitária pela Fundação Pedro Leopoldo (FPL-MG). Hoje, faz mestrado em Educa-ção pela Universidade da Madeira de Portugal.Mas, suas referências não são só acadêmicas ou de gestão. Durante sua trajetória profissio-nal, Amaro França atuou como professor, coordenador pedagógico, vice-diretor e diretor-geral, cargos ocupados tanto em instituições de educação básica quanto de ensino superior.Ele também é o primeiro homem a comandar uma escola da Rede Sagrado Coração deMaria em todo o mundo. Ao falar sobre sua busca por unir o respeito à história da ins-tituição e a necessidade de inseri-la na vanguarda educacional, ele salientou que o ca-minho é ser tradicional, sem ficar preso ao tradicionalismo.“Somos uma escola de tradição, com seus princípios e valores dos quais não abrimos mão,mas que dialoga com a realidade em que estamos inseridos. E aí está o grande desafio parama escola que tem princípios e valores: manter-se fiel a sua identidade e corresponder àsnecessidades deste mundo que são tão desafiadoras”, destacou o diretor, que também fazpalestras sobre temas como gestão, formação humana e práticas educacionais e é autor dedois livros: “Interlocuções – reflexões sobre a vida” e “Composições do caminho”.

De repente, oEnem perdeu sua

identidade epassou a ser

o grandevestibular do país.

Diretor do Colégio Sagrado Coração de Maria, o professor Amaro França fala, nesta entrevista,sobre ensino médio, Enem, desafios para gestão nas escolas privadas e, ainda, salienta como busca

conciliar a tradição de mais de um século de existência com as demandas da educação moderna

ZENITE MACHADO

AMARO FRANÇA

Uma escola tradicional,mas sem tradicionalismo

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