de anima - aristoteles (maria cecilia) (pb)

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  • Existem livros to nobres e preciosos que geraes inteiras de estudiosos so bem empregadas se, graas ao seu esforo, tais livros so conservados inteiros e inteligveis (Nietzsche). O veredicto dos sculos no d margem a dvida: o De Anima um desses livros. Eis o esprito com que devemos saudar a publicao da primeira verso integral e propriamente acadmica em lngua portuguesa do tratado de Aristteles.

    A leitura do De Anima no tarefa fcil. Obra esotrica, constituda por anotaes usadas por Aristteles no Liceu, ela requer um elevado grau de empenho e disciplina por parte dos que se animam a es- tud-la. Mais que isso: as idias de Aristteles sobre a alma entendida aqui como psykb ou princpio comum a tudo o que vive, ou seja, a todos os seres animados (dotados de anima) cobram uma contextualizao e anlise cuidadosas para se alcanar uma compreenso de sua pertinncia e originalidade.

    Da a importncia do trabalho empreendido por Maria Ceclia Gomes dos Reis ao preparar esta edio. Nela o leitor encontrar no apenas a traduo da obra, feita diretamente do grego, mas tudo o que necessita para tirar o melhor proveito de sua incurso pela psicologia aris- totlica: um ensaio introdutrio situando o De Anima na histria das idias e mapeando os conceitos e problemas abordados; um sumrio analtico demarcando os passos lgicos e explicitando a estrutura da argumentao; quase duzentas pginas de notas explicativas e comentrios minuciosos elucidando as princi-

  • 16 3 2 135 10 11 89 6 7 124 15 14 1

  • Aristteles

    DE ANIMALivros I, II e III

    Apresentao, traduo e notas de Maria Ceclia Gomes dos Reis

    ed ito raH 34

  • Editora 3 4 Ltda.

    Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

    Copyright Editora 34 Ltda., 2006 Traduo Maria Ceclia Gomes dos Reis, 2006

    A FO TO C PIA DE Q U A LQU ER FOLHA D ESTE LIV RO ILEG A L, E CONFIGURA UMA

    APROPRIAO INDEVIDA DOS D IREITO S INTELECTUAIS E PATRIM ON IAIS DO A UTO R.

    Ttulo original:Feri F sykbs

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica: B racher & M alta P roduo G rfica

    Reviso:C arlos A. Inada O liver T olle Fabrcio C orsaletti

    Ia Edio - 2006 (Ia Reimpresso - 2007)

    CIP- Brasil. Catalogao-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

    Aristteles, 384-322 a.C A75d De Anima / Aristteles; apresentao,

    traduo e notas de Maria Ceclia Gomes dos Reis. So Paulo: Ed. 34, 2006.360 p.

    ISBN 85-7326-351-2

    Traduo de: Peri Psykhs

    1. Filosofia antiga. 2. Filosofia aristotlica.I. Reis, Maria Ceclia Gomes dos. II. Ttulo.

    CDD - 185

  • SUMRIO

    Prefcio........................................................................................... 9Abreviaes................................................................................... 13Introduo..................................................................................... 15Sinopse do tradutor.................................................................... 40

    D e A n im a

    Livro 1.............................................................................................. 45Livro I I ........................................................................................... 71Livro I I I .......................................................................................... 103

    Notas do tradutor

    Sumrio analtico......................................................................... 135Notas ao livro 1............................................................................ 145Notas ao livro I I .......................................................................... 203Notas ao livro I I I ......................................................................... 273

    Lxico.............................................................................................. 343Bibliografia.................................................................................... 346

  • minha irm, Maria Luiza

  • Prefcio

    O objetivo desta publicao do tratado De Anima de Aristteles oferecer uma traduo que possa ser utilizada pelo estudante que no l grego, sem nenhuma pretenso erudio. Adotei o texto da Oxford Classical Texts, editado por W. D. Ross (1956), indiquei em nota de rodap uma ou outra variante escolhida e limitei-me a acusar nas notas finais as principais passagens em que problemas no estabelecimento do texto tm impacto em questes gerais de interpretao.

    Os comentadores consultados, que so a fonte das referncias a outras passagens do corpus e esto na base das interpretaes compiladas, foram quatro. O comentrio de Toms de Aqui- no, produzido no sculo XIII, foi seguido freqentemente para a diviso do texto em partes. O de R. D. Hicks (1907), por sua vez, foi inestimvel para as minuciosas questes de interpretao. No tendo trabalhado diretamente com os comentadores gregos e latinos do tratado, encontrei no trabalho de G. Rodier (1900) muitas citaes dos antigos, que por vezes iluminaram as dificuldades. Por fim, os comentrios de W. D. Ross (1961) ofereceram um padro enxuto de apresentao dos problemas levantados por Aristteles. As notas de D. W. Hamlyn (1968) sua traduo do tratado, sem terem o carter de um comentrio, foram consultadas regularmente. No tive, desse modo, nenhuma pretenso originalidade, embora tenha me esforado para levar ao leitor uma anlise cuidadosa e acessvel dos argumentos envolvidos.

    Em relao traduo, uma ou duas palavras talvez possam esclarecer ao leitor a linha geral do procedimento. Tentei

    9

  • Prefcio

    conciliar o que me parecem ser imperativos tcnicos e estticos: respeitar a consistncia do vocabulrio, estabelecendo uma rede de conceitos conectados entre si e eficientes em suas diversas ocorrncias, com ateno coerncia etimolgica, mas tendo em vista a clareza e a fluncia para o leitor no iniciado em lngua grega.

    Embora o estilo de Aristteles seja sucinto e sem licenas literrias, o texto muitas vezes elptico, no raro um termo tem vrias acepes. Contornei cada uma dessas dificuldades de maneira diferente. A ambigidade dos termos empregados por Aristteles, em muitos casos, tem relevncia filosfica e no h como apag-la sem onerar pesadamente sua metafsica o caso de ousia, que alguns traduzem por substncia, outros por essncia, colocando o tom ora no aspecto ontolgico, ora no epistemo- lgico, coexistentes na palavra grega. Outras palavras tm vrias acepes filosoficamente relevantes, embora seja de todo impossvel no recorrer a diversos termos na traduo por exemplo, logos, que tem no tratado pelo menos trs sentidos distintos: ( 1 ) enunciado ou formulao, isto , discurso que traduz o que algo, embora de maneira mais vaga e abrangente do que uma definio; (2) determinao, isto , princpio objetivo que determina a razo de ser de algo, e (3) razo, isto , relao proporcional entre as partes.

    H, por outro lado, um tipo de ambigidade que me parece fruto do excesso de literalidade na traduo. o caso do termo aisthsis e derivados to aistbtikon , to aistbton etc. , literalmente, sensao, sensitivo, sensvel. Os inconvenientes da opo literal so bem percebidos pelo leitor comum, pois no portugus coloquial o termo sensao freqentemente empregado no sentido de impresso fsica geral por exemplo, sensao de mal-estar, sensao de medo e ao que parece vem se especializando para designar o mbito dos sentimentos e das emoes. Dispomos, contudo, da expresso percepo sensvel, cujo sentido corresponde exatamente principal acepo do termo aisthsis no tratado de Aristteles, a saber, a apreenso ou aquisio de co

    10

  • Prefcio

    nhecimentos por meio dos sentidos. Neste, e em outros casos, descartei a literalidade em favor da clareza.

    O vocabulrio essencial do tratado, de qualquer maneira, est estabelecido em um lxico no final do volume, que, por sua vez, indica as pginas desta edio onde podem ser encontradas observaes mais pormenorizadas sobre os termos gregos, bem como justificativas para a traduo, quando cabveis.

    Adotei a conveno usual para indicar as passagens duvidosas no estabelecimento do texto, isto , [...] para as supresses e para as adies.

    No incio de cada pargrafo da traduo, o leitor encontrar o nmero da pgina, coluna e linha que so convencionalmente usados para referncia ao texto original, estabelecido pela edio de Immanuel Bekker (1831).

    Este livro fruto direto de seminrios de ps-doutorado que pude realizar no Departamento de Filosofia da FFLCFI-USP, em 1997-1998. Essa foi uma ocasio particularmente feliz para o amadurecimento de algumas partes do trabalho e gostaria de agradecer principalmente ao professor Pablo Rubn Maricon- da pelo inestimvel apoio, e aos participantes do seminrio, Alberto Munoz, Fernando Rey Puente, Roberto Bolzani, Maurcio de Carvalho Franco, Marisa Carneiro Donatelli, Lucas Angioni, Regina A. Rebollo; ao professor Marco Zingano, que na mesma ocasio apresentou seu instigante trabalho sobre o tratado em um curso intensivo de ps-graduao, e especialmente ao professor Henrique M urachco, pela paciente reviso da primeira verso direta do grego e pelas valiosas sugestes, embora todas as falhas e problemas encontrados sejam de minha inteira e exclusiva responsabilidade.

    O trabalho resulta de muitos anos dedicados pesquisa, em uma rea particularmente difcil. E, ainda que seja impossvel agradecer a todos, desejaria mencionar especialmente J. A. A. Torrano, Sandra Regina Sproesser, Jos Arthur Giannotti, Francis Wolff, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Franklin Leopoldo e

    11

  • Prefcio

    Silva, Rubens Rodrigues Torres Filho e tambm Robinson Gui- tarrari, Paula Lapolla, Marcos Pompia, Elizabeth Guedes, Flo- riano Jonas Cesar, Thai's Leonel Stinghen e Ninho Moraes. Entre 1993 e 1995, pude trabalhar como pesquisadora visitante no Kings College de Londres e gostaria de agradecer ainda a Ga- briela Carone, Tad Brennan, M. M. McCabe e Richard Sorabji, que leram verses preliminares de trabalhos incorporados s notas desta traduo. Durante todo esse tempo, Eduardo Giannetti facilitou de diversas maneiras o acesso bibliografia, leu, comentou e fez vrias sugestes de carter editorial, e minha perseverana certamente foi estimulada por sua gentileza e amizade. Agradeo por fim Fapesp e Capes pelo apoio financeiro, e ao Ibmec So Paulo, que me concedeu afastamento para a redao final do trabalho.

    Nada disso teria sido suficiente sem o privilgio da amorosa convivncia com Luiz Fernando Ramos. Alm de um interlocutor excepcionalmente lcido e crtico, ele esteve pacientemente ao meu lado nesta empreitada repleta de altos e baixos e acreditou no sentido do meu trabalho at quando eu mesma estive a ponto de desistir. A ele, Clara e Lcia a minha alegre gratido.

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  • Abreviaes

    T r a t a d o s d e A r is t t e l e s

    Cat. Categorias D l De Interpretatione P. Anal. Primeiros Analticos S. Anal. Segundos Analticos Top. TpicosRef. Sof. Refutaes Sofsticas Fis. Fsica DC De CaeloG C De Generatione et CorruptioneMeteor. M eteorolgicaDA De AnimaPN Parva NaturaliaSens. De SensuMem. De MemoriaSomn. De SomnoInsomn. De InsomniisDiv. Somn. De Divinatione per SomnumLong. De Longitudine Vitae]uv. De JuventuteResp. De RespirationeHA Historia AnimaliumPA De Partibus AnimaliumMA De Motu AnimaliumGA De Generatione Animalium

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  • Abreviaes

    Probl. Problemata Met. Metafsica EN tica a N icm aco MM Magna Moralia EE tica a Eudemo Pol. Poltica Ret. Retrica Po. Potica

    C o m e n t a d o r e s d o D e A n im a c o n s u l t a d o s

    CH HicksCHa HamlynCR RossCRod RodierCTA Toms de Aquino

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  • Introduo

    O leitor encontrar neste volume o tratado Peri Psykbs de Aristteles livros I, II e III , em uma traduo direta do grego, acompanhada de notas, sumrio analtico, lxico e bibliografia. O tratado chegou at ns atravs de cerca de cem manuscritos medievais, provavelmente cpias de duas fontes diversas. Nem todos os manuscritos trazem o texto integral,1 mas a organizao interna do tratado e sua coerncia no corpus colocaram de lado qualquer dvida consistente sobre sua autenticidade. E, embora as edies modernas dem mais ateno ao segundo e terceiro livros, penso existirem bons motivos para se realizar a publicao completa do tratado, em particular a relevncia metodolgica, e no apenas histrica, do panorama crtico apresentado por Aristteles no primeiro livro.

    A inteno deste trabalho mostrar que o De Anima um clssico na melhor acepo da palavra capaz de manter viva a reflexo sobre um vasto leque de questes pertinentes, na medida em que amplia os recursos tericos para a busca de solues em diversos caminhos. Essa fora aparece, j em seus dias, tanto na maneira de considerar os problemas e analisar os meios pelos quais podemos ter deles uma exata compreenso, como na habilidade de frustrar com crticas as solues propostas.

    Como bom discpulo de Plato, Aristteles escreveu dilogos que devem ter tido boa aceitao e circulao. Mas desta obra (exotrica) restam poucos fragmentos, j que os mais de trinta tratados que chegaram at ns o corpus aristotelicum

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  • Introduo

    constituem provavelmente o trabalho de carter didtico (esotrico) e de uso exclusivo do Liceu, ao menos at serem editados e publicados, entre 43 e 30 a.C., por seu dcimo primeiro chefe, Andrnico de Rodes. Aristteles foi um investigador incansvel e vigorosamente analtico em filosofia natural alm de um extraordinrio colecionador de dados cuja fama repousa sobretudo na obra sobre biologia.2 De Anima um tratado central em todo esse esforo.

    Apesar de pouco conhecido em nossos dias fora dos crculos filosficos, este tratado era lido, durante o Renascimento, nos cursos de medicina, e foi um requisito bsico nas universidades para a obteno do ttulo de bacharel em artes.3 As motivaes humanistas, que exigiam um retorno s fontes primrias corrompidas pela tradio medieval, provocaram um amplo programa de edies e novas tradues dos autores gregos.4 O emprego da forma De Anima para designar o estudo que Aristteles dedica ao princpio de vida do ser animado empsykhon, um ser dotado de psykb em oposio ao inanimado [DA 4 1 2 a ll-3 ] , est consagrado desde aquele perodo, por isso esta forma foi mantida sem reservas no ttulo deste trabalho.

    O termo psicologia, inclusive, foi cunhado, ao que tudo indica, pelo humanista alemo Joannes Thomas Freigius, em 1575, para referir-se justamente ao conjunto amplo de temas e problemas abordados no De Anima de Aristteles e nos oito opsculos suplementares, conhecidos como Parva Naturalia, sobre os fenmenos comuns psykb e ao corpo [PN 436a6-8].5 O divrcio entre o estudo da vida e o estudo da alma, tal como passou a ser entendido na filosofia moderna, de fato, s se deu completamente no sculo XVII. Na perspectiva do De Anima, a investigao da alma contempla plantas e animais, bem como seres humanos, sem diferenciar-se claramente do que hoje o campo da biologia o problema da demarcao, em outros termos, inclusive colocado por Aristteles [DA 402b l-5 ]. O De Anima certamente continuou sendo uma influncia seminal para os pensadores do sculo XVIII e posteriores.6

    16

  • Introduo

    A CENTRALIDADE NO CORPUS

    Alm de estar na origem da psicologia como disciplina terica, o tratado de Aristteles tem, como se viu, laos ancestrais com a biologia. E, de fato, voltou cena no debate contemporneo sobre o problema mente-corpo, que estimulou uma significativa parte da pesquisa em filosofia antiga sobre o De Anima. Por isso a herana de Aristteles tem sido pleiteada por mais de uma corrente filosfica.7

    A psicologia de Aristteles a pea terica que fundamenta e coordena toda sua investigao em zoologia.8 As anlises e os conceitos metafsicos que contm so fruto da exigncia de se compreender racionalmente os princpios que regem a simultnea complexidade e unidade dos seres biolgicos, tarefa que parece estar ainda por ser concluda.9 Na medida em que se ocupa das mais elaboradas entidades naturais, a psicologia foi considerada tambm o pice da filosofia natural de Aristteles.10 De Anima , de fato, um exemplar magistral da articulao dos dois mais fortes aparatos conceituais de Aristteles: aqueles desenvolvidos para a teoria do movimento na Fsica e para a teoria da substncia sensvel na Metafsica.1]

    No que concerne ao exame da alma como princpio dos desejos, pensamentos e aes do homem, De Anima tambm relevante para a tica. No tratado, alm de apresentar parmetros gerais da complexa relao entre a razo e a vontade na conduta, Aristteles levanta o problema da escolha intertemporal [DA 433b5-13]. Suplementa, enfim, com um vasto estudo das capacidades naturais, a doutrina da virtude como hexis, ou disposio adquirida, amplamente conhecida por um de seus mais estudados tratados, a tica a Nicmaco.

    De Anima subsidia, ainda, sua teoria geral do conhecimento, na medida em que considera a natureza e os princpios da inteleco. Traz, inclusive, um tema que se tornou uma verdadeira obsesso filosfica: um certo intelecto que produz os inteligveis mencionado uma nica vez e de forma alusiva como um

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  • Introduo

    estado de luz [DA 4 3 0 a l5 ]. Esta talvez seja uma das passagens mais discutidas da histria da filosofia antiga. Aristteles emprega um smile igualmente clebre para explicar a possibilidade que o intelecto tem de receber toda e qualquer noo inteligvel, da mais simples s mais complexas proposies: ele como uma tabuleta de argila em que absolutamente nada ainda foi inscrito [DA 429b31-430a2],

    No que diz respeito s emoes, o tratado, por fim, tem laos com a Retrica, cuja fora reside no apelo aos sentimentos, e, nessa medida, at mesmo com a Potica. Uma edio completa do De Anima enfatiza tanto sua centralidade no corpus como permite uma apreciao correta de seu escopo e problemas de fundo.

    A DEPENDNCIA DE COMENTADORES

    Os tratados de Aristteles, contudo, formam um conjunto intrincado de doutrinas, e muito difcil explicar os detalhes fora de contexto; de forma que a interpretao de seus escritos requer uma trama de anlises. A estatura de seu pensamento, reconhecida praticamente em todas as pocas, levou ainda a uma proliferao ativa de filosofias exgenas que se serviram mais ou menos consciente e abertamente - de suas teses e noes. Com isso, seu prprio pensamento viu-se excessivamente ligado a uma mais ou menos nobre tradio de comentadores gregos, latinos, rabes, cristos e escolsticos.12 Entre os antigos e os medievais, prevaleceu muitas vezes a crena de que os tratados de Aristteles expressam um sistema coerente de doutrinas, de maneira que o esclarecimento de pontos obscuros luz do que afirmado em outras partes foi prtica livre e corrente.

    Contudo, difcil pressupor coerncia em um conjunto de tratados que, quando examinados de perto, revelam contradies. Se quisermos ser coerentes com o prprio Aristteles, ou assumimos que seu pensamento evoluiu e que os conflitos se acomodam em um eixo temporal, ou ento assumimos que as con

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  • Introduo

    tradies so aparentes e representam perspectivas e abordagens diversas de um mesmo assunto ou questo.13 A primeira alternativa norteou todos aqueles que, na primeira metade do sculo X X , trabalharam no assim chamado mtodo gentico.14

    Nos dias de hoje, h um certo consenso entre estudiosos de que a abordagem mais adequada do corpus aquela, por assim dizer, pluralista.15 Ela consiste, grosso m odo , em admitir que o que Aristteles afirma em uma dada passagem sobre certos problemas pode no ter relao com problemas aparentemente similares de outras passagens, e essas diferenas devem ser vistas como diferenas de nfase e de perspectiva.16

    A presente traduo aspira a contribuir para a linha de pesquisas que recupera o Aristteles grego (vale dizer, analtico e crtico) que h por trs de sua desfigurao (dogmtica) ao longo dos tempos. As notas, em larga medida, so fruto da seleo e compilao paciente de anlises conceituais e reconstrues de argumentos, sem pretender ou poder, contudo, dar-lhes qualquer tratamento formal. O objetivo, em suma, reunir em torno do De Anima a pesquisa recente que contribui para revelar a originalidade do autor.

    O processo de deturpao do pensamento de Aristteles vem de longa data, ocorrendo em maior escala por obra e graa da filosofia escolstica, cujo maior expoente Toms de Aquino. No obstante sua aguda apreciao da complexidade da filosofia de Aristteles, a interpretao que Aquino nos legou incorre em duas graves tentaes: acomodou-a a noes teolgicas que lhe so totalmente estranhas e apresentou-a como um sistema de idias encadeadas dedutivamente. A desmontagem paciente deste sistema monumental s foi empreendida de fato no sculo X X .17

    O mrito da filosofia de Aristteles, de um certo ponto de vista, consiste exatamente em reconhecer a irredutibilidade das reas de conhecimentos umas s outras o que talvez se deva ao reconhecimento de que impossvel proceder a uma reduo dos diversos mbitos da realidade a um nico mantendo, en

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  • Introduo

    tretanto, a firme disposio de examinar os vnculos que existem entre elas, por meio de um vocabulrio interdisciplinar, se que podemos definir assim o expediente metafsico.

    Em particular, como observador e investigador do fenmeno da vida, por via estritamente especulativa (vale dizer, usando exclusivamente as ferramentas de sua filosofia primeira), Aristteles formulou uma teoria elaborada e penetrante. A clareza que teve da complexidade dos problemas envolvidos e das condies que se impunham para a sua soluo, est longe de ser ingnua ou desencaminhadora. O dficit de nossa poca, por sua vez, eminentemente terico.1

  • Introduo

    em torno de questes como: que gnero de coisa este princpio de vida, que designamos alma? Seria uma substncia, no sentido de algo de natureza material, extensa, ocupando lugar no espao, como pretendiam alguns pr-socrticos? Ou, como sustentavam outros, seria a alma algo abstrato, relacionado s quantidades envolvidas em seus componentes materiais? Ou, quem sabe, uma espcie de alterao sofrida no todo natural, tal como uma mudana de qualidade, decorrente da forma como as partes materiais so combinadas? Ou, como parece querer mostrar Aristteles, nenhuma das alternativas anteriores?

    Uma segunda ordem de problemas concerne unidade da alma: preciso examinar tambm se ela divisvel em partes ou no, e se toda e qualquer alma de mesma forma [hom oeids DA 402b2]. Aristteles sugere que o problema no simples e, de fato, no fcil dar-se conta do que exatamente est em jogo. A alma, por um lado, garante a coeso das partes materiais que compem o ser vivo e determina suas propores [DA 416 a l6 -7 [ do contrrio seus elementos fsicos no se manteriam agregados e sob certos limites.

    Alguns dizem ainda que a alma partvel, e que uma

    parte o pensar, outra o ter apetite. Pois bem, o que m an

    tm afinal a alma junta, se ela por natureza partvel? Certamente no o corpo. Ao contrrio , parece mais que a

    alma que mantm junto o corpo, pois, quando ela o aban

    dona, ele se dissipa e corrom pe. [DA 411b5-9|

    E a alma exibe tambm um tipo de homogeneidade, no sentido de estar toda ela em cada parte do corpo, sendo possvel em certa medida secionar partes do ser vivo sem diminuir-lhes a vitalidade como um todo [DA 41 3b 16-241. Contudo, o viver se diz de fato em vrios sentidos, pois dizemos que um ser vive caso tenha ao menos um dos seguintes atributos: nutrio, percepo, locomoo e inteleco [DA 413a22-5], o que sugere que a alma talvez seja algo complexo. possvel que a alma tenha par-

    21

  • Introduo

    tes logicamente distinguveis, sem que tenha o tipo de divisibilidade dos objetos extensos, no sendo talvez apropriado falar de partes da alma sediadas em partes especficas do corpo, como o fez Plato.

    Aristteles parece preferir falar em potncias antes que em partes da alma [DA 414a29]. Os atributos da alma so capacidades e de diversas modalidades: umas intermitentes e intencionais, e outras simplesmente contnuas. De maneira que a psicologia tem de encontrar uma definio de alma que escape ainda de certos dilemas (lgicos e epistemolgicos), legados por filsofos anteriores a Aristteles sobre o status da potencialidade. Os megricos, por exemplo, sustentando que tudo o que se pode dizer sobre um ser qualquer que ele est, ou no est, em um determinado estado, afirmavam que o ser s potente quando atua e quando no atua no potente [Met. 1046b29-30]. Isso, contudo, parece insustentvel ao bom-senso aristotlico: se s aquele que atua pode ser considerado capaz, ento um construtor, por exemplo, teria de readquirir sua arte, a cada vez que reiniciasse seu ofcio [Met. I046b33-4|.21

    Que gnero de coisa pode dar conta de garantir a unidade do ser e, ao mesmo tempo, comandar a variedade de tais atributos? Eis a terceira ordem de problemas: os da definio. H um nico enunciado definidor de alma? Ou diversos, e um para cada espcie? A propsito, toda e qualquer alma do mesmo gnero? A boa definio, de qualquer modo, aquela que deixa claro o porqu das propriedades do que define [DA 402b l6-403a2]. E o desafio da psicologia, em uma palavra, enunciar o que a alma e mostrar, a partir disso, como todas estas dificuldades encontram soluo.

    O ARGUMENTO PRINCIPAL

    Aristteles, em todo o primeiro livro, levanta pacientemente objees cabveis a cada uma das teses antigas que lhe parecem

    22

  • Introduo

    no dar conta da tarefa. Refuta severamente os que, com base na convico de que s o que se move pode fazer algo se mover, de uma maneira ou de outra, definem a alma simplesmente como algo em movimento. Por mais que se esmerem em conceb-la de forma sutil e incorprea, todas as tentativas anteriores estavam comprometidas com o materialismo, se atribuem a um movimento tout court o princpio da vida. Por isso diz:

    Na opinio de alguns, simplesmente a natureza do

    fogo que causa a nutrio e o crescim ento, pois s o fogo,

    dentre os corpos, ou [os elementos] revela-se nutrido e cres

    cente. E por isso algum poderia supor que tambm o fogo

    que opera nas plantas e nos animais. De certa maneira, ele

    um causador coadjuvante, mas no o causador simplesmente, o qual antes a alma. Pois o crescim ento do fogo

    em direo ao ilimitado e at o ponto em que existir o com

    bustvel, mas em tudo o que constitudo por natureza h

    um limite e uma proporo para o tam anho e para o crescimento, e essas so coisas da alma e no do fogo, e da deter

    m inao mais do que da matria. [DA 4 1 6 a 9 -J 8]

    Aristteles adverte-os, de fato, alhures que a ordem e a beleza dos seres naturais no so engendradas pelo jogo aleatrio de seus componentes [Met. 9 8 4 a ll-1 5 ].

    H, por outro lado, aqueles que abstraem demais a ponto de tratarem a alma matematicamente, independente de seu poder de movimento. Para Aristteles, contudo, os seres naturais so menos separveis que entidades matemticas. Do ponto de vista da sua filosofia natural, a grandeza matemtica uma propriedade dos corpos e pretender que a alma seja algo de natureza numrica significa dizer que a alma uma propriedade da matria. Outros, por sua vez, defendem a teoria de que a alma como uma harmonia das partes que compem o ser vivo, isto , uma qualidade decorrente do arranjo material. As cincias como a harmnica, a ptica e a astronomia, ao contrrio da geometria,

    23

  • Introduo

    estudam efetivamente as entidades em suas naturezas e no como meras abstraes [Fis. 194al-13]. Porm, causar movimento no atributo da harmonia e isso o que principalmente se atribui alma [DA 407b34]. Se a alma fosse simplesmente uma caracterstica emergente do corpo, ento ela seria algo derivado, posterior e ontologicamente subordinado a ele. Mas, segundo Aristteles, a alma princpio e comanda a ordenao progressiva de suas partes ela substncia, no qualidade.

    A alma causa e princpio do corpo que vive. M as estas coisas se dizem de m uitos m odos, e alma similarmente

    causa conform e trs dos modos definidos, pois a alma de

    onde e em vista de que parte este movim ento, sendo ainda

    causa com o substncia dos corpos anim ados. O ra , que

    causa com o substncia, claro. Pois, para todas as coisas, a

    causa de ser a substncia, e o ser para os que vivem o vi

    ver, e disto a alma causa e princpio. [DA 4 1 5 b 7 -1 4 ]

    O avano de Aristteles em De Anima consiste em mostrar que a alma princpio de movimento, mas que no pode ser algo em movimento. Sua inovao foi admitir que a alma um princpio parado embora atuante nos processos de mudana denotando vida. Sua soluo, de fato, a no imediatamente clara tese da alma como a primeira atualidade entelekheia prte do corpo natural orgnico | DA 412b.5-6]. Tomemos um outro caminho.

    A ALMA COMO SUBSTNCIA NO SENTIDO DE FORMA

    A noo de substncia [ousia], por sua vez, tem alta relevncia tanto nos tratados de biologia como nos de lgica, por seus vnculos complexos com a teoria da predicao e com a tese da homonmia do ser o ser se diz em vrios sentidos.22 E foi alvo dos mais severos ataques.23 Talvez seja um dos temas mais difceis da filosofia de Aristteles.24 Contudo, tese bem aceita que

    24

  • Introduo

    Aristteles define a substncia (primeira) como aquilo que nunca predicado, mas sempre sujeito [Cat. lb l l - 3 ; Met. 1029a8-9], porque, permanecendo a mesma, sofre mudanas e admite o vir a ser [Cat. 4 a l0 -b l9 ].

    Aristteles sugere que a substncia no a matria, mas a forma [eidos]: aquilo por meio do que o sujeito o que [DA 412a8-9].25 Pois, a forma, em poucas palavras, o que permanece constante por trs das mudanas. De fato, assim como possvel substituir o bronze de uma esttua sem modificar sua figura, da mesma maneira, a forma de um ser vivo mantm-se idntica, mesmo sua matria sendo, ao longo da vida, totalmente substituda pela nutrio.26 Ao faz-lo, conserva mais do que perde sua integridade e unidade, preserva a forma [GC 321b22- 8]. neste sentido que Aristteles afirma que necessrio [...] que a alma seja substncia como forma do corpo natural que em potncia tem vida [412a 19-211.

    Mas, como seria possvel conceber um tal princpio formal, para dar conta do fato de que ele existe informando a matria e atuando nela, e no subsiste por si e separado (como supunham os platnicos)? Sem resolver este ponto, a teoria de Aristteles continuaria vacilante entre um formalismo desencarnado (a substncia uma frmula inteligvel) e um materialismo rstico (a substncia a matria).27 O problema concerne relao que guardam forma e matria no devir.

    A argumentao de Aristteles parece seguir esta direo. Na medida em que a forma subordina-se a um fim [telos], ela tem em ltima instncia um aspecto separado. Isto claro, em se tratando da produo artificial. A construo de uma casa, por exemplo, tem como causa final a meta de ser um abrigo contra intempries e como causa formal o projeto do construtor, que quem efetivamente inicia os movimentos apropriados de sua construo com pedras e madeiras reais. Na gerao natural, por sua vez, a alma algo desse tipo inscrito naturalmente nos organismos [DA 415b l6 -7 ] e que Aristteles designa por atualidade primeira. O que a filosofia de Aristteles quer entender como

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  • Introduo

    se d a transio do ato (separado) da finalidade para os movimentos de sua realizao.28 Suas consideraes mostram, em geral, que este princpio formal tem sua realizao condicionada a uma outra coisa: ele correlato matria, no sentido de que os meios de alcan-lo so particulares e concernem ao que se apresenta como sendo o caso. O princpio tem uma natureza dual. Tanto form al e esquemtico pois um plano desprovido de contedo real , quanto dinmico j que tem tambm o princpio de movimento em outra coisa, a saber, a matria particular que se apresenta. Alma e corpo, tanto quanto forma e matria, so princpios correlatos e formam unidade na melhor acepo do termo [DA 412b6-9]. Nesta medida, nenhum constitui por si s base para a substncia.29 A matria a carncia de determinao, a forma uma disposio orientada para de- termin-la em certa direo (reproduo via nutrio, por exemplo). Essa disposio analisvel logicamente em termos de um fim (absorver matria e replicar-se), a que est subordinada a forma da composio, e que estar realizada to logo condies reais contribuam com a matria adequada e seus movimentos.

    Uma vez que justo designar todas as coisas a partir

    de seu fim e uma vez que o fim consiste em gerar outro

    com o si mesmo , a primeira alm a seria a capacidade de

    gerar outro com o si mesmo. [DA 4 1 6 b 2 5 ]

    A ATUALIDADE PRIMEIRADE UM CORPO NATURAL ORGNICO

    A alma como forma a causa ativa que mantm a unidade ordenada do composto face ao poder destrutivo do devir. Os elementos a partir dos quais o organismo gerado contribuem com suas propriedades para uma ordem e funo mais elevada. O objetivo superior impede que os elementos faam, de acordo com a fsica aristotlica, o que seria natural em estado simples: tende

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  • Introduo

    rem a seus lugares prprios. E por isso Aristteles pode dizer que os seres naturais so destrudos por aquilo a partir de que so constitudos [DC 2 8 3 b21-2]. A corrupo dos organismos vivos causada, ento, pela dissipao dos elementos constituintes. preciso, pois, um princpio atuante que mantenha a ordem complexa e superior. E isto precisamente a forma no sentido de substncia. Ter alma poder guardar uma certa ordem nas partes materiais e manter-se imune destruio.

    Mas isso no tudo. A forma dispe o composto em termos de capacidades. E a efetividade da forma no deve ser confundida com sua plena atividade. A disposio natural do organismo para certas funes denotando vida precede o exerccio propriamente dito. Um animal, por exemplo, vive mesmo quando est dormindo e, embora inativa, sua capacidade de perceber no desaparece por completo e permanece de algum modo disponvel [DA 4 1 7 a 9 - ll |. Em outras palavras, o que inseparvel do corpo animado e tem de entrar na definio to somente a capacidade efetiva (primeira atualidade entelekbeia prt) como algo distinto da inatividade ou atividade efetiva (energeia). Em tempo: passar da capacidade atuao (vale dizer, a passagem da atualidade atividade) nem bem mudar, nem bem mover se falamos em mudana ou alterao apenas por impreciso da linguagem , trata-se apenas da manifestao do que j existe e est l [DA 417b2-9].

    Aristteles, por fim, tem de mostrar de que modo esta definio permite a clara compreenso de todos os atributos denotando vida. Ora, viver se diz em vrios sentidos, pois viver nu- trir-se, crescer, gerar, sentir (ter tato, paladar e olfato), perceber (olhar, ouvir), desejar e locomover-se, querer e agir, pensar (imaginar, saber) e discursar (opinar, deduzir, demonstrar). E a dificuldade de uma definio geral de alma, tal como a de figura geomtrica, remonta ao seu arranjo serial |DA 4 1 4b l9 -32 ], E possvel um enunciado comum. O problema que ele no ser suficientemente informativo sobre as potncias que inclui, pois

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  • Introduo

    omitir o ponto crucial, a saber, o fato de que elas formam uma progresso.

    Eis, em poucas palavras, o argumento principal e a definio proposta por Aristteles.

    Aristteles, nos demais captulos do tratado, ocupa-se do exame detalhado de cada uma das cinco potncias da alma nutritiva, perceptiva, desiderativa, locomotiva e raciocinativa [DA 414a31-2] luz da definio de psykh como primeira atualidade do corpo natural orgnico.

    A CRTICA MODERNA A ARISTTELES

    A filosofia natural de Aristteles entrou em eclipse j no alvorecer do sculo XVII, que viu no aristotelismo como um todo nada mais do que uma camisa-de-fora imposta ao ensino e ao estudo. Cosmologias contrrias sua vinham emergindo desde que fsicos e astrnomos comearam a demolio de seus postulados na Fsica, uma histria, alis, bem conhecida. Foi quando ao desprezo dos humanistas por anlises lgicas de carter escolstico, juntou-se o desprezo da tradio galileana por certas noes metafsicas imiscudas em sua anlise do mundo natural. Aristteles, grosso m odo, foi acusado de impedir o uso de princpios explicativos que permitem determinar o movimento em termos estritamente quantitativos. Sua fsica e cosmologia foram postas de lado porque recorriam a explicaes teleolgicas que analisam os processos em termos de seus fins incompatveis com a mecnica e cosmologia modernas. No que concerne psicologia, para atravessar o hiato entre a teoria da matria (e seus movimentos por necessidade) e uma teoria da ordem natural dos seres, Aristteles, na perspectiva moderna, teria recorrido a princpios explicativos adicionais: finalidades e formas substanciais. Para a nova cincia, alm disso, a experincia tem um novo status. Assim, por deslizamentos conceituais e pequenos reparos metodolgicos, ocorreu por fim o desmoronamento com-

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  • Introduo

    pleto do sistema com o qual a filosofia de Aristteles fora identificada. E o auge da crise, em fins do sculo X IX , d-se com os adeptos das crticas kantianas metafsica ingnua, que tinham Aristteles como exemplo mais notvel.

    E conveniente, portanto, dedicar duas palavras especialmente ao problema do finalismo. Cabe dizer, em geral, que a teleo- logia de Aristteles tem carter basicamente emprico, e no de todo uma doutrina metafsica a priori, trazida do nada para a investigao da natureza. Se h um papel importante para ela, particularmente nos estudos cientficos, isso nada tem a ver com algum tipo de princpio csmico universal,30 e tampouco envolve qualquer idia de desgnio de um agente planejador.31 No que concerne ao De Anima, Aristteles apenas admite que, na investigao sobre os seres animados, o tipo correto de anlise e explicao envolve o que hoje entendemos por estrutura e funo.

    A pesquisa recente sobre os tratados biolgicos de Aristteles, por sua vez, parece desautorizar um tipo de essencialismo que lhe era atribudo com o amparo de certas noes da lgica a idia de que a espcie uma forma absoluta imposta sobre os indivduos. Esse essencialismo que lhe era imputado, de fato, se ope aos argumentos mais elaborados dos estudos de Aristteles sobre a gerao dos animais.32 Pode-se dizer que ele est mais prximo da perspectiva moderna do que se supunha, tambm no sentido de pretender que a compreenso adequada de um rgo, por exemplo, passa pelo conhecimento de seu papel e contribuio para a vida do organismo. E, se for possvel pensar em uma inclinao dos organismos vivos para algum tipo de bem geral, no se deveria entend-lo em termos normativos, mas como uma tendncia ao estado completamente desenvolvido ou plena maturidade sua akm ,33

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  • Introduo

    N o t a s

    1 O manuscrito considerado paradigmtico (E Parisians Graecus) apresenta indcios de que uma outra verso do segundo livro substituiu a original, e de que a nova verso talvez no derive da mesma famlia de manuscritos que os outros livros. De qualquer modo, o conjunto de manuscritos, segundo os especialistas, no foi ainda suficientemente analisado, e haveria lugar para uma nova edio crtica do texto. Para um breve resumo da situao dos manuscritos, ver Nussbaum, The Text of Aristotles De Anim a, p. 1-6; e Jannone, Aristote De lme, p. xxiv-xlv.

    2 Darwin, por exemplo, refere-se a Aristteles, em carta de 22/2/1882 ao Dr. Ogle, autor de um estudo sobre a biologia aristotlica, nestes termos: Eu estava, atravs de citaes, bem esclarecido sobre os mritos de Aristteles, mas no tinha a menor idia do homem extraordinrio que ele foi. Lineu e Cuvier eram meus dois dolos, ainda que de formas diferentes, mas eles so meros estudantes secundaristas, se comparados ao velho Aristteles. E como era curiosa, tambm, a sua ignorncia de alguns pontos, como o fato de que os msculos so os meios do movimento. Eu estou satisfeito que voc tenha explicado de uma maneira to plausvel alguns dos mais gritantes equvocos atribudos a ele. Eai nunca tinha me dado conta, antes de ler seu livro, da enorme quantidade de trabalho que devemos a ele, mesmo no que diz respeito aos nossos conhecimentos mais comezinhos . A carta est em Life and Letters o f Charles Darwin, vol. 3, p. 252.

    3 A informao est em Park e Kessler The Concept of Psychology, p. 456. Para uma apreciao da presena da filosofia de Aristteles nas universidades europias deste perodo, ver Schmitt, The Aristotelian Tradition and Renaissance Universities.

    4 O De Anima, que circulava at ento em uma verso latina de W illiam de Moerbeke, acompanhando o comentrio de Toms de Aquino, es- timativamente dc 1271, teve duas novas tradues no sculo X V e, pelo menos, outras cinco para o latim e duas para o italiano, durante o sculo XVI. Ver Park e Kessler, The Concept of Psychology, p. 458.

    5 Ver Park e Kessler, The Concept of Psychology, p. 455.

    6 Uma evidncia textual pode ser encontrada em Hegel, por meio de quem a obra de Aristteles conheceu, no incio do sculo X IX , uma vigorosa reabilitao. Ele diz que os mtodos da cincia moderna teriam se imposto tambm psicologia emprica, mantendo a teoria metafsica fora da cincia indutiva que assim se apegou a conceitos metafsicos de senso-comum. Nesse contexto afirma: Os livros de Aristteles sobre a alma, ao lado de

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  • Introduo

    suas discusses sobre seus respectivos aspectos e estados especiais, so ainda, por esta razo, de longe o mais admirvel e, talvez, mesmo o nico trabalho de valor filosfico neste tpico. O principal objeto da filosofia da mente s pode ser re-introduzir unidade e princpio teoria da mente, e assim reinterpretar as lies daqueles livros de Aristteles. Ver Hegel, Philosophy o f Mind, p. 3. Sobre a alta considerao que Leibniz tinha por Aristteles, ver o prlogo de Berti em Aristteles no sculo XX.

    7 Sobre a pertinncia e os parmetros da relevncia dos filsofos antigos para o problema mente-corpo, ver a introduo de Everson em Companion to Ancient Thought 2 Psychology, e tambm Ostenfeld, Ancient G reek Psychology and the Modern Mind-Body Debate.

    No que concerne ao tipo de relao que Aristteles supe entre a alma e o corpo, as interpretaes so assustadoramente divergentes. No livro I do De Anima, grosso m odo, ele rejeita tanto o dualismo substancial (de Plato) a alma uma substncia incorprea (de natureza matemtica) quanto o materialismo reducionista (de Demcrito) a alma matria. Mas sua prpria exposio sugere que deve haver uma terceira alternativa. De fato, certas passagens parecem sustentar alguma outra forma de materialismo: afirmam, por exemplo, que as capacidades psquicas existem com o corpo [DA 403a6-17 , 407b4]. Outras sugerem algum dualismo: caso o intelecto no seja propriedade de um rgo fsico, ento ele pode existir separado [DA 4 1 3b24|.

    H uma linha de pesquisa, do incio do sculo X X , que procurou resolver a aparente contradio por meio da hiptese de um desenvolvimento intelectual de Aristteles (ver nota 12). Mas foram outras as tendncias que por fim prevaleceram. Para uma discusso das interpretaes dualistas, ver Hardie, Aristotles Treatment of the Relation between the Soul and the Body, Robinson, Aristotelian Dualism, e Shields, Soul and Body in Aristotle . Para as materialistas, ver Sorabji, Body and Soul in Aristotle, e Hartman, Substance, Body and Soul.

    H quem tenha sugerido que Aristteles sustenta alguma forma de atributivismo, e que este varia de uma capacidade psquica para outra a alma no uma substncia incorprea: algumas capacidades psquicas so como que atributos fsicos do corpo, outras so propriedades inteiramente no fsicas. Esta a interpretao de Barnes, em Aristotles Concept of M ind . A dificuldade aqui que Aristteles parece refutar uma teoria antiga, da mesma cepa: a que define a alma como a harmonia do corpo. Para uma defesa do atributivismo ou teoria de aspecto dual para o problema mente-corpo, ver Nagel, The View from Nowhere, cap. 3.

    Para outros intrpretes, enfim, o exame acurado da psicologia de Aristteles mostra que, em geral, ele contrasta a alma e o corpo (forma e mat

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  • Introduo

    ria) para opor estados funcionais aos estados fsicos que os constituem ou realizam, e que sua posio tem um vis funcionalista. O funcionalismo compatvel com certas formas de materialismo. Esteve em alta, no final do sculo X X , quando as teorias materialistas da identidade entre o fsico e mental entraram em crise, com a verificao emprica da capacidade que o crebro tem, aps certas seqelas, de servir-se de circuitos neurolgicos alternativos para restabelecer atividades mentais. O funcionalismo, por sua vez, admite que estados mentais devem ser identificados, no com estados fsicos especficos do crebro, mas com estados funcionais, que tm a caracterstica de serem neutros em relao aos meios fsicos pelos quais os estados mentais so realizados. Para a abordagem funcionalista de Aristteles, ver Irwin, Aristotles Philosophy of M ind, e Cohen, Hylomorfism and Functionalism.

    O maior ataque a esta tendncia vem de um polmico artigo de Burn- yeat, Is an Aristotelian Philosophy of Mind Still Credible?, cujo impacto pode ser apreciado na coletnea de artigos organizada por Nussbaum e Ror- ty, Essays on Aristotles De Anima.

    8 Ver Lloyd, Aspects of the Relationship between Aristotles Psychology and his Zoology. Para uma viso geral do legado da biologia de Aristteles para o entendimento de sua filosofia, com interesse para a histria e filosofia da biologia, ver Gotthelf e Lennox, Philosophical Issues in Aristotles Biology.

    9 Cf. Furth, Aristotles Biological Universe: An Overview, p. 26.

    10 Esta seria a opinio de Averres e do prprio Aristteles na abertura do tratado [DA 402a2-4], segundo Park e Kessler, em The Concept of Psychology, p. 456.

    11 Nesses dois tratados se renem os resultados do trabalho de Aristteles como lgico e investigador da natureza. Cabe notar, que a direo que ele tomou na Fsica, e os desdobramentos, na Metafsica, da assim chamada teoria aristotlica da atividade e da potncia, no so uma criao ex nihilo. Aristteles via-se desafiado por problemas colocados por filsofos do seu tempo. No (pouco) que havia de consensual entre os filsofos gregos, estava a crena de que o conhecimento captura intelectual do que h de permanente por trs da variabilidade dos fenmenos revelada aos sentidos. Nesse contexto, a filosofia grega ficou fechada em um beco ao qual fora levada pelo inspirado poema de Parmnides de Ela, que bania o mundo emprico da especulao filosfica, ao sustentar que todas as mudanas observadas nele nada mais so que iluses e enganos dos sentidos. A radicalidade do eleatis- mo vinha sendo combatida por todos que esperavam mais do mundo emprico do que simplesmente bani-lo. E Aristteles era um desses. Para um pa

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  • Introduo

    norama da reao antiga ao eleatismo, ver Dijksterhuis, The Mechanisation o f the World Picture, cap. 2.

    12 Ver Nussbaum, The Text of Aristotle, p. 3-4. Em linhas gerais, a tradio de comentrios a seguinte. Teofrasto o primeiro chefe do Liceu depois da morte de Aristteles, em 322 a.C. e Alexandre de Afrodisias que floresceu j por volta do ano 200 da era crist discutiram partes considerveis do texto, e Themistius, no sculo IV, produziu uma parfrase. Os neoplatnicos e antagonistas Simplicius e Philoponus, nos sculos V e VI, foram intrpretes importantes e escreveram os dois maiores comentrios antigos que chegaram at ns. Depois disso, s no sculo XIII, Sophonias escreveu uma parfrase do tratado. De fato, nos seis primeiros sculos da era crist, os nicos tratados de Aristteles certamente conhecidos em primeira mo eram Categorias e De Interpretatione, ligados a uma suposta lgica tradicional e suas querelas. (A lgica includa na primeira parte do ensino universitrio medieval o Trivium , estava acompanhada da gramtica de Donatus e Prisciano e da retrica de Ccero e Quintiliano, que no diferenciavam a teoria da demonstrao dos Segundos Analticos, da dialtica contida nos Tpicos). Nesse meio tempo, por outro lado, os tratados foram encontrando seu caminho at a Bagd dos Abssidas, onde os rabes do Califado os teriam conhecido e traduzido. Avicena, no sculo X I na Prsia, e Averres, no sculo seguinte na Espanha, ocuparam-se diretamente do De Anima. Finalmente, por volta de 1271, Toms de Aquino, que no lia grego, mas queria fazer face interpretao da tradio rabe circulante, trabalhou em um comentrio completo do De Anima (a partir de uma verso latina produzida por William de Moerbeke).

    13 Isto se impe a Aristteles, como se sabe, pelo Princpio de no contradio: impossvel o mesmo atributo ser e no ser atribudo ao mesmo sujeito, ao mesmo tempo e sob um mesmo aspecto [Met. 1005b l9 -21],

    14 Esta linha de pesquisa vincula-se ao clebre trabalho de Werner Jaeger de 1923, Aristteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. Cabe notar que ele se baseia nos dilogos de Aristteles, dos quais conhecemos apenas fragmentos e que esto fora do corpus tradicional. Jaeger estipulou uma evoluo do pensamento de Aristteles em trs fases e procurou mostrar extratos destes diferentes perodos na metafsica e na tica. Em 1929, Solmsen estendeu a hiptese de Jaeger ao Organoti, e o resultado do mtodo aplicado lgica pode ser apreciado em Stocks, The Composition of Aristotles Logical W orks . Ver tambm dois influentes artigos de Owen, Logic and Metaphysics in Some Earlier W orks of Aristotle e The Platonism of Aristotle . Em 1939, Nuyens estende o mtodo psicologia em L Evolution de la psychologie d Aristote.

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  • Introduo

    A posio de Jaeger, grosso m odo, a seguinte. Aristteles comea platnico e termina um cientista emprico. Em outras palavras, nos vinte anos em que freqenta a Academia, ele aceita a doutrina da pr-existncia e imortalidade da alma, bem como a do conhecimento como reminiscncia; e, nessa medida, deve ter sustentado tambm a teoria das formas como transcendentes. Na fase de transio (um perodo de viagens e atividade didtica pela sia Menor, entre a fase acadmica e a propriamente peripattica), Aristteles produz os trabalhos biolgicos e expressa objees s teorias antes sustentadas. Por fim, h o perodo de maturidade, em Atenas, quando Aristteles trabalha segundo seus prprios princpios e constitui sua prpria escola, o Liceu.

    Ross, na introduo de Parva Naturalia, em The Development of Aristotles Thought e na introduo ao De Anima, endossa Jaeger e Nu- yens. No perodo dos dilogos, Aristteles adota a posio de Plato no P- don e tem em foco a alma humana. Nos trabalhos biolgicos, insere o homem no reino animal e est mais propenso a ver todo e qualquer ser vivo como dotado de alma; associa a psykh ao calor, e localiza-a no corao. Na fase do De Anima, a alma pensada como princpio de organizao do corpo, entelkbeia.

    Sobre as crticas a esse mtodo, ver Hardie, Aristotles Treatement of the Relation between the Soul and the Body e Aristotle's Ethical Theory, cap. 5. Ver tambm Kahn, Sensation and Consciousness in Aristotles Psychologie.

    15 Ver Nussbaum, The Text of Aristotles De Anima, p. 6. Berti emprega essa expresso, que j teria sido utilizada por J . M . Moravcsik. Cf. Berti em Aristteles no sculo XX, p. 165.

    16 provvel at mesmo que Aristteles tenha deliberadamente recorrido a proposies contraditrias como uma maneira de aprofundar suas reflexes sobre um tema. Cf. Guthrie, A History o f Greek Philosophy, p. 12.

    17 O movimento surgiu na prpria filosofia catlica do final do sculoX IX , com Frans Brentano (1838-1917), mas foi levado adiante por W. Jaeger (ver nota 11) e outros, j no sculo X X , acompanhado agora da recusa escolstica. O estudo de Brentano sobre os mltiplos sentidos do ser em Aristteles, alm de abalar a tradio escolstica, influenciou diretamente Martin Heidegger. Brentano possivelmente teve influncia indireta sobre G. E. Moore, professor de Wittgenstein, que antecipou o interesse da filosofia analtica inglesa pela linguagem comum. Parece, que no momento mesmo desse abalo, planta-se uma semente aristotlica na raiz de duas importantes tendncias do pensamento contemporneo. Ver Berti, Aristteles no sculoXX, caps. 2 e 3.

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  • Introduo

    Em linhas gerais, deu-se o seguinte. Brentano dedicou-se filosofia de Aristteles em geral e psicologia em particular, mas conservou a inspirao escolstica no modo de interpretar o aspecto teolgico da metafsica e o intelecto ativo. Afirmou que sua poca sofria com o obscurecimento moderno da filosofia aristotlica e entendia ser possvel fazer com a obra de Aristteles o que Cuvier fizera com os restos de animais pr-histricos: pela natureza das partes existentes determinar a das faltantes. Aventou a hiptese de uma lei de transformao no pensamento de Aristteles e viu-a na teoria da definio. Em suma, considerou importante a cronologia das obras para a ordenao das vrias partes da filosofia de Aristteles, a que ele se referia como um grande organismo. Cf. Brentano, Aristteles, p. 24-32.

    Jaeger, por sua vez, insatisfeito com os neokantianos da Escola de Marburg, que interpretavam Plato como um antecessor da teoria das formas a priori do conhecimento e viam Aristteles como um exemplo da metafsica ingnua criticada por Kant, despertou para o estudo de filosofia antiga. A esta avaliao negativa contrapunham-se fillogos como Trendelen- burg, professor de Brentano, Bekker, editor do corpus pela Academia de Berlim (1831) e Bonitz, autor do Index Aristotelicus (1870). Influenciado por seu professor, Adolf Lasson, ligado a essa tradio, Jaeger ocupou-se de Aristteles para realizar a mesma exegese minuciosa de texto, que j se praticava, na Inglaterra, com vis filolgico e filosfico por Bywater, editor da tica a Nicm aco, fundador e primeiro presidente da clebre Aristotelian Society, no final do sculo X IX , e tambm por W. D. Ross, editor com J. A. Smith da traduo inglesa do corpus (Oxford, 1908-1951).

    Jaeger salienta a mentalidade analtica de Aristteles, o carter problemtico e no sistemtico de sua filosofia, que busca coordenar anlise conceituai e investigao emprica. Interpreta a metafsica como uma investigao fundada na fsica, que busca conhecer racionalmente os princpios ltimos do mundo, e por isso culmina na idia de um primeiro motor imvel. Sua hiptese evolutiva sobre a Metafsica, contudo, constata uma verdadeira falncia na tentativa de Aristteles de conciliar especulao e cincia. Mas, a concluso de Jaeger pode estar ligada influncia da atmosfera neokan- tiana sobre ele prprio, na medida em que reduziu a cincia a uma anlise emprico-positiva da realidade. Ver Berti, Aristteles no sculo XX, cap. 1.

    18 Em 1948, o fsico Erwin Schrdinger chamava a ateno para o que ele descreveu como o grotesco fenmeno de mentes altamente competentes, com boa formao cientfica, mas com uma perspectiva filosfica incrivelmente infantil, subdesenvolvida e atrofiada. Sua opinio foi expressa em Londres, nas Conferncias Shearman, que depois foram transformadas em livro. Ver Schrdinger, La naturaleza y los griegos, p. 28.

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  • Introduo

    19 Salta aos olhos, para o leitor do De Anima, a afinidade de enfoque e de anlise que o prprio Schrdinger guarda com Aristteles. Em palestra no Dublin Institute for Advanced Studies do Trinity College, ele se refere ao cdigo hereditrio nestes termos: [S]o esses cromossomos, ou provavelmente apenas um filamento esqueltico axial daquilo que realmente vemos ao microscpio como um cromossomo, que contm em algum tipo de cdigo, todo o padro do desenvolvimento futuro do indivduo e de seu funcionamento no estado maduro. (...) Mas o termo cdigo , evidentemente, muito estreito. As estruturas cromossmicas so, ao mesmo tempo, o instrumento da realizao do desenvolvimento que prefiguram. So o cdigo legal e o poder executor ou, para usar outra analogia, so o projeto do arquiteto e a percia do construtor em um s. O que ele est dizendo, sem o saber, que a cincia de seus dias concebe a estrutura cromossmica exatamente como Aristteles afirmou ser a forma dos seres naturais: causa formal, final e eficiente. Ver Schrdinger, O que vida?, p. 34. De fato, o bilogo M ax Delbrck, atribuindo a Aristteles a descoberta do DNA por identific-lo noo aristotlica de forma, sugeriu brincando que a ele caberia um prmio Nobel, caso a Academia de Estocolmo conferisse prmios pstumos. A histria contada por Berti, Aristteles no sculo XX, p. 310.

    20 preciso lembrar que a Fsica de Aristteles trata de tudo aquilo que tem em si mesmo o princpio de movimento e mudana |ft's. 192b 13- 4|. Note-se, assim, que tanto os elementos simples (fogo), como os compostos inanimados (rocha), quanto os seres vivos (plantas e animais) e suas partes, todos tm em si mesmos um princpio de movimento, devido a sua natureza (plrysis) prpria, o que quer dizer que podem mover-se de modos caractersticos, caso no sejam impedidos de faz-lo (por exemplo, o fogo por natureza sobe; a rocha, cai). E mais: todo e qualquer ser fsico tem por si mesmo tambm a potencialidade (dynamis) de ser modificado e alterado por outro, ou por uma parte de si |Met. 1 0 1 9 a l5 -6 ; 10 4 6 a 9 -13).

    Assim, as entidades naturais podem atuar umas sobre as outras (e sobre aspectos de si mesmas), afetando-se mutuamente |Met. 1029a l2 -3 ] e respondendo de modos recorrentes e caractersticos aos estmulos que sofrem. Dentre tais afeces (pathoi) ou interaes entre as coisas naturais, e em seus vrios nveis, algumas so destrutivas (por exemplo, um corpo natural simples como o fogo destri um tecido natural complexo como o da pupila); outras, so conservadoras e preservam uma certa disposio do ser, ou de uma parte dele, exatamente na medida em que o colocam em atividade (ener- geia) e no exerccio da prpria potncia (a luz natural, por exemplo, aciona a capacidade do olho de ver) [DA 417b2-16; Met. 1046al3-6]. Mas todas as afeces, tanto as destrutivas como as conservadoras, acontecem com o amplo suporte da matria componente e de mudanas fsicas patentes [kinesis,

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  • Introduo

    moo, isto , movimento de um dos seguintes tipos: deslocamento, diminuio e aumento de quantidade, alterao de qualidade Fis. 2 0 1 a l0 -1 9 ].

    21 Assumindo tal posio, eles acabavam ainda por endossar a opinio de Protgoras cuja famosa sentena reza ser o homem a medida de todas as coisas para quem nada ser, por exemplo, nem quente, nem doce e, em geral, nenhuma das demais qualidades, quando no percebido \Met. 1047a4-6], e cujo relativismo epistemolgico parecia a Aristteles de todo esprio. Ele afirma, por sua vez, que preciso existir a qualidade sensvel em ato antes de qualquer sensao, pois, o sensvel o agente da alterao que acompanha a percepo sensvel; e se a qualidade existe mesmo antes do contato com o sentido, ento o sujeito que sente no pode ser a medida de seu ser. De fato, segundo Aristteles, possvel descrever o sensvel ainda no percebido como qualidade potencial, na medida em que o processo no estar plenamente realizado at que tal qualidade seja efetivamente percebida, mas no pretender (como Protgoras) que s existe quando percebida.

    Os megricos esto na raiz da outra grande escola de lgica antiga a estica ao lado da do prprio Aristteles. Foram os seguidores de um certo Euclides de Mgara, contemporneo ligeiramente mais velho de Plato e estudioso da obra de Parmnides. Inspirados pelos paradoxos sobre o movimento de seu discpulo Zeno [Fis. 239 b 9 -l I ], e influenciados pelos debates dialticos (que, por colocarem os argumentos na forma de pergunta e resposta, eram tambm denominados ersticos), os megricos teriam desenvolvido idias interessantes sobre os chamados operadores modais, embora pouco tenha sido conservado pela tradio.

    22 Esta a mais fecunda em dificuldades das teses aristotlicas. Apresenta um problemtico (e clebre) corolrio epistemolgico para o status da metafsica (tanto como da tica). Se o ser no um gnero (e nem tampoucoo bem), ento apenas as cincias particulares so possveis, e qualquer filosofia com a pretenso de investigar a natureza geral de tudo o que existe deve ser descartada (bem como uma cincia do bem, isto , uma tica). Ver EE 1217b25-35.

    23 Ningum menos que Bertrand Russell, em sua History o f Western Philosophy, publicada em 1945, emite a opinio sobre a lgica aristotlica de que sua influncia hoje to contrria ao raciocnio claro que difcil lembrar-se do grande progresso por ele realizado sobre todos os seus predecessores. Russell atacou a noo de substncia com crticas deste calibre: quando encarada seriamente, um conceito impossvel de estar livre de dificuldades [...]; simplesmente um modo conveniente de se reunir acontecimentos em feixes [...]; substncia, numa palavra, um erro metafsico, devido transferncia para a estrutura do mundo da estrutura de sentenas

    37

  • Introduo

    compostas de um sujeito e um predicado. Cf. Russell, Histria da filosofia ocidental, vol. 1, p. 221 e 228.

    24 Os textos bsicos da teoria da substncia de Aristteles so os complicadssimos livros VII [dzeta] e VIII fbeta], alm dos livros IV [gama] e VI [epsilon] da Metafsica onde ele examina a possibilidade de uma cincia do ser enquanto ser. Ver Bostock, Aristotle Metaphisics books Z and H e Kirwan, Aristotle's Metaphysics books Gama, Delta, Epsilon. A pesquisa sobre este tpico extensa, tanto em lngua inglesa, como em francs. Um artigo de 1957, que est na raiz do debate recente, o de Owen, Logic and Metaphysics in Some Earlier Works of Aristotle, no qual o seguinte argumento apresentado. Na medida em que Aristteles foi formulando melhor, contra Plato, sua prpria teoria da substncia como forma imanente da matria (e, nessa medida, refinando seus conceitos para abordar melhor o problema da ambigidade do ser), ele tambm pde desvencilhar-se de suas velhas objees a uma filosofia primeira ou metafsica. Aristteles se d conta de que o ser no um caso de mera ambigidade, e que seus diversos sentidos podem reduzir-se a um padro nico (bem como os diversos sentidos de outras noes com a mesma generalidade, tais como a de bem e, quem sabe, a de alma). Um novo tratamento dispensado ao ser [to on] por Aristteles: o ser se diz em relao a uma coisa e a uma nica natureza |pros hen kai mian physin legom ena Met. 1003a33-4|. Ele interpretado por Owen como dotado de foca l meaning.

    Salta aos olhos a semelhana entre o padro de traduo redutiva proposto por Owen para aquela crucial passagem da Metafsica e a crtica de Russell de que substncia simplesmente um modo conveniente de reunir acontecimentos em feixes (ver nota 21). Se Owen est correto, Aristteles at certo ponto concordaria com Russell. O mesmo padro sugerido, inclusive, como aplicvel psicologia. Cf. Articles on Aristotle Metaphysics, p. 20.

    A difcil aproximao entre o estudo do ser e a teologia do livro XII |lambda] foi tratada no influente artigo de 1960 de Patzig, Theology and Ontology in Aristotles Metaphysics .

    25 O termo eidos, ligado etimologicamente ao verbo ver, em sua forma do perfeito, indica a noo de trnsito do perceber ao conhecer (tendo visto algo, o conhecemos) em registro francamente diverso do pensamento ocidental posterior, que indica a oposio entre forma/aparncia (conhecida pelos sentidos) e essncia (conhecida intelectualmente). Para os gregos, a forma traz a promessa da verdade . Ver Pellegrin, Logical and Biological Difference: The Unity of Aristotles Thought, p. 322. Bases para uma interpretao de forma sem o status de universal, que tradicionalmente lhe

    38

  • Introduo

    conferem, podem ser encontradas no influente artigo de Frede, Individuais in Aristotle.

    26 A maior pesquisa nessa direo foi realizada por Gill em Aristotle on Substance.

    27 A melhor discusso deste ponto pode ser encontrada em Mansion, The Ontological Composition of Sensible Substances in Aristotle .

    28 Cf. Mansion, The Ontological Composition of Sensible Substances in Aristotle, p. 84.

    29 Nesse ponto, avanos tm sido feitos para iluminar outro aspecto obscuro da biologia aristotlica: a noo de pneuma e seus vnculos com os processos vitais. O exame de inmeros textos esparsos subsidiou a idia de que Aristteles pretendia levar adiante uma pesquisa de carter estritamente fisiolgico para dar suporte a suas teses psicolgicas. Uma excelente apresentao de problemas, exegese minuciosa e anlises penetrantes, o trabalho de Freudenthal, Aristotles Theory o f Material Substance.

    30 Ver Charles, Teleological Causation in the Physis.

    31 Cf. Irwin, Aristotles Philosophy of M ind, p. 64.

    32 Na interpretao tradicional da teleologia aristotlica, o ser vivo individual e transitrio fruto de um processo de gerao fazendo parte da tendncia, inerente ao mundo natural, de preservar sua ordem. Esse processo de reproduo de plantas e animais seria presidido por formas efetivamente existentes, isto , por objetivos finais a serem alcanados, que so as espcies conhecidas. Ver Cooper, Aristotle on Natural Teleology. Um artigo mostrando que no Generatione Animalium Aristteles assume uma perspectiva no essencialista, j que o animal se desenvolve por semelhana parental incluindo mesmo detalhes no essenciais do ser, o de Balme, Aristotles Biology was not Essentialist .

    33 Ura artigo seminal sobre o assunto o de Gotthelf, Aristotles Conception of Final Causality e seu postscript, onde o debate que gerou resumidamente apresentado. Ver tambm Cooper, Hypothetical Necessity and Natural Teleology, e Balme, Teleology and Necessity. As linhas mestras da discusso esto em Sorabji, Necessity, Cause and Blame, Waterlow, Nature, Change and Agency in Aristotles Physics, e tambm em Lennox, Teleology, Chance and Aristotles Theory of Spontaneous Generation, e Bradie e Miller, Teleology and Natural Necessity in Aristotle .

    39

  • Sinopse do tradutor

    L iv r o I

    1. Introduo: a natureza do estudo da alma e questes aserem respondidas

    2. Panorama das opinies relevantes3. Crtica das opinies: o problema do movimento4. O problema do movimento5. O problema do conhecimento e o problema das partes e da

    unidade da alma

    L iv r o II

    1. O enunciado da definio2. A definio3. Da distino das partes hierarquia das potncias4. A nutrio5. A capacidade de discernir: os sentidos6. Sensveis por si prprios e comuns e sensveis por

    acidente7. O visvel e a luz. A necessidade de um intermedirio8. O audvel e a produo do som9. O olfato e o odorfero

    10. O palatvel. O intermedirio intrnseco11. Algumas dvidas sobre o tato esclarecidas12. A unidade da percepo

    40

  • Sinopse do tradutor

    L iv r o III

    1. A percepo sensvel comum2. Suas demais funes3. A imaginao como derivada da percepo sensvel4. A capacidade de discernir: o aspecto potencial do intelecto5. O aspecto ativo do intelecto6. O inteligvel: o indiviso7. O juzo prtico: percepo sensvel, imaginao e

    pensamento envolvidos8. Percepo sensvel e intelecto9. A locomoo. O problema das partes da alma retomado

    10. Desejo, intelecto e imaginao11. Imaginao e locomoo de animais dotados s de tato12. Necessidade e capacidades da alma13. Sentidos, conservao e o bem dos animais

    41

  • Data/ /

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  • DE ANIMA

  • Livro I

    C a p t u l o 1

    4 0 2 a l. Supondo o conhecimento entre as coisas belas e valiosas, e um mais do que outro, seja pela exatido, seja por ter objetos melhores e mais notveis, por ambas as razes o estudo da alma estaria bem entre os primeiros. H inclusive a opinio de que o conhecimento da alma contribui bastante para a verdade em geral e, sobretudo, no que concerne natureza; pois a alma como um princpio dos animais. Buscamos considerar e conhecer sua natureza e substncia, bem como todos os seus atributos, dentre os quais uns parecem ser afeces prprias da alma, enquanto outros parecem subsistir nos animais graas a ela.

    4 0 2 a l0 . Em todo caso e de todo modo, dificlimo obter alguma convico a respeito da alma. Pois sendo a investigao comum tambm a muitas outras coisas quero dizer, a investigao que concerne substncia e ao que algo , poderia talvez parecer a algum que existe um s mtodo para tudo aquilo cuja substncia queremos conhecer (tal como h a demonstrao para os atributos prprios), de modo que seria necessrio buscar este mtodo. Mas se no h um mtodo nico e comum para saber o que algo, a tarefa torna-se ainda mais difcil; pois ser preciso compreender, em cada caso, qual o procedimento adequado. Se for evidente que se trata de demonstrao ou de diviso ou de algum outro mtodo, restaro ainda muitos impasses e incertezas no que diz respeito ao ponto de partida da investigao: pois para coi-

    45

  • 402a21 Aristteles 1.1

    sas distintas h princpios distintos, como, por exemplo, para os nmeros e as superfcies.

    402a23. Em todo caso, necessrio decidir primeiro a qual dos gneros a alma pertence e o que quero dizer, se ela algo determinado e substncia, ou se uma qualidade, uma quantidade ou mesmo alguma outra das categorias j distinguidas , e, ainda, se est entre os seres em potncia ou, antes, se uma certa atualidade. Pois isso faz diferena e no pouca. preciso examinar tambm se ela divisvel em partes ou no, e se toda e qualquer alma de mesma forma; e, no caso de no ser de mesma forma, se a diferena de espcie ou de gnero. Pois aqueles que agora se pronunciam e investigam a respeito da alma parecem ter em vista somente a alma humana. preciso tomar cuidado, porm, para que no passe despercebido se h uma nica definio de alma (tal como de animal) ou se h diversas, como, por exemplo, a de cavalo, co, homem, divindade, sendo neste caso o animal, considerado universalmente, ou nada ou algo posterior, o mesmo ocorrendo para qualquer outro atributo comum que for predicado.

    402b 9. Alm disso, no caso de serem muitas as partes e no as almas, deve-se primeiro investigar a alma como um todo ou suas partes? Tambm difcil definir quais dentre estas so, por natureza, distintas entre si, e se til investigar primeiro as partes ou suas funes: por exemplo, o pensar ou o intelecto, o perceber ou a parte perceptiva, e assim por diante. No caso de se optar primeiro pelas funes, haveria novamente impasse sobre se se deve investigar, antes delas, os objetos correlatos: por exemplo, o perceptvel antes da parte perceptiva, e o inteligvel antes do intelecto.

    4 0 2 b l6 . Parece que conhecer o que algo no s ajuda a considerar as causas daquilo que se atribui s substncias (assim como, nas cincias matemticas, conhecer o que a reta e a curva, ou

  • 1.1 De Anima 403a21

    o que a linha e a superfcie, ajuda a perceber bem a quantos ngulos retos equivalem os ngulos do tringulo), mas tambm, inversamente, parece que os atributos contribuem em grande medida para saber o que algo ; pois, quando pudermos discorrer seja sobre todos, seja sobre a maioria dos atributos conforme se mostram, poderemos ento nos pronunciar tambm mais acerta- damente a respeito da substncia; pois o ponto de partida de toda demonstrao o que algo; de modo que as definies que no nos levam ao conhecimento dos atributos, nem nos fornecem facilmente uma imagem deles, so todas, evidentemente, dialticas e vazias.

    403a3. H ainda a dificuldade de saber se as afeces da alma so todas comuns quilo que possui alma ou se h tambm alguma afeco prpria alma to-somente. E embora no seja fcil, necessrio compreender isto. Revela-se que, na maioria dos casos, a alma nada sofre ou faz sem o corpo, como, por exemplo, irritar-se, persistir, ter vontade e perceber em geral; por outro lado, parece ser prprio a ela particularmente o pensar. No obstante, se tambm o pensar um tipo de imaginao ou se ele no pode ocorrer sem a imaginao, ento nem mesmo o pensar poderia existir sem o corpo. Enfim, se alguma das funes ou afeces prpria alma, ela poderia existir separada; mas se nada lhe prprio, a alma no seria separvel. E seria ento como a reta que, enquanto tal, possui muitos atributos por exemplo, o de tangenciar num ponto uma esfera de bronze; todavia a reta no tocar a esfera assim separada, pois inseparvel, uma vez que se encontra sempre com um corpo.

    4 0 3 a l6 . Parece tambm que todas as afeces da alma ocorrem com um corpo: nimo, mansido, medo, comiserao, ousadia, bem como a alegria, o amar e o odiar pois o corpo afetado de algum modo e simultaneamente a elas. Isto indicado pelo fato de que algumas vezes mesmo emoes fortes e violentas no produzem em ns excitao ou temor; outras vezes, contudo, so-

    47

  • 403a21 Aristteles 1.1

    mos movidos por emoes pequenas e imperceptveis (por exemplo, no caso em que o corpo irritado j est como encolerizado). Isto se torna ainda mais evidente quando, no havendo ocorrido nada de temvel, experimentamos o sentimento de temor.

    403a24. Sendo assim, evidente que as afeces so determinaes na matria. De maneira que as definies sero tais como o en- colerizar-se um certo movimento de um corpo deste ou daquele tipo, ou de uma parte ou potncia dele, devido a isto e em vista daquilo. Por isso, a quem estuda a natureza que cabe enfim o inquirir a respeito da alma (seja toda e qualquer alma, seja a que deste modo).

    403a29. Contudo, o estudioso da natureza e o dialtico definiriam diferentemente cada uma das afeces da alma; por exemplo, o que a clera. Pois este falaria em desejo de retaliao ou algo do tipo, o outro, por sua vez, falaria em ebulio do sangue e calor em torno do corao. Um discorre sobre a matria e o outro sobre a forma e a determinao. Pois a determinao a forma da coisa, e necessrio que ela exista em uma matria de tal qualidade, se existir. Assim, o enunciado de casa algo como abrigo preventivo contra a destruio por ventos, chuvas e calor; mas outro falar em pedras, tijolos, madeiras, e outro ainda falar da forma que h nesses materiais em vista daqueles fins. Qual deles, ento, ser o estudioso da natureza? Aquele que aborda a matria ignorando a determinao ou aquele que aborda somente a determinao? Ou, melhor, aquele que combina ambas? Como caracterizaramos ento os dois primeiros? No h um nico que aborde as afeces que no so separveis da matria, nem consideradas como separveis? O estudioso da natureza aborda todas as funes e afeces que correspondem a um tal corpo e a uma tal matria; e no que diz respeito s afeces que no so deste tipo, ele as deixa para outros algumas so eventualmente tratadas por aquele que domina uma arte, por exemplo um carpinteiro ou mdico. O que no separvel mas no se

    48

  • 1.2 De Anima 4 m a i

    considera como afeco de um tal corpo e sim abstratamente, es- tuda-o o matemtico. Por fim, o filsofo primeiro trata do que separado como tal.

    403bl6. Mas preciso retornar ao ponto de onde partiu a discusso. Dizamos que as afeces da alma so assim inseparveis da matria natural dos animais, na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como nimo e temor, e no so como a linha e a superfcie.

    C a p t u l o 2

    403b20. No exame da alma, necessrio, ao mesmo tempo em que se expem as dificuldades cuja soluo dever ser encontrada medida que se avana, recolher1 as opinies de todos os predecessores que afirmaram algo a respeito dela, aproveitando-se o que est bem formulado e evitando aquilo que no est.

    403b24. O ponto de partida da investigao apresentar aquilo que mais parece pertencer alma por natureza. Ora, h a opinio de que o animado difere do inanimado especialmente em dois aspectos: o movimento e a percepo sensvel. E, em relao alma, so mais ou menos esses dois que recebemos de nossos predecessores. Alguns, com efeito, dizem que a alma , primordialmente, o que faz mover. E julgando que no pode mover outra coisa o que no estiver ele mesmo em movimento, supuseram a alma entre as coisas que esto em movimento.

    403b31. Donde Demcrito declara que a alma algo quente ou uma espcie de fogo; pois, havendo infinitos tomos e formatos,

    1 Lendo CTUjjLirepiXajj.pcveiv na linha 22.

    49

  • 4 0 4 a l l Aristteles 1.2

    diz que os de forma esfrica so fogo e alma (como no ar as chamadas poeiras, que se revelam nos raios de luz atravs das frestas); ele afirma, por um lado, que o agregado de sementes contm os elementos da natureza inteira (e de maneira similar pensa Leucipo), e, por outro lado, que dentre esses os de forma esfrica so alma, sobretudo porque tais fluxos podem tudo permear e, por moverem as coisas restantes, que se movem tambm. Disso se supe que a alma que fornece aos animais o movimento. E por isso tambm o que define o viver a respirao. Pois, como o ar circundante comprime os corpos, expulsando os formatos que, por nunca repousarem, fornecem aos animais movimento, um auxlio vem de fora. Pois, ao serem introduzidos de novo outros semelhantes no respirar, impedem que os formatos contidos nos animais escapem, ajudando a repelir aquilo que contrai e condensa e vivem enquanto puderem fazer isso.

    404a 16. E o que dizem os pitagricos parece seguir o mesmo raciocnio, pois alguns deles declararam que a alma so as poeiras no ar; outros, por sua vez, que ela o que faz com que se movam. Sobre as poeiras no ar disseram que elas se mostram em movimento contnuo, mesmo quando h calmaria absoluta. E mesma afirmao so levados tambm todos os que dizem que a alma aquilo que move a si mesmo,2 pois todos eles parecem partir do pressuposto de que o movimento algo muitssimo peculiar alma e que tudo o mais movido pela alma, sendo ela movida por si mesma pois no vem nada que faa mover que no esteja ele mesmo em movimento.

    404a25. De maneira similar tambm Anaxgoras diz que a alma o que faz mover e tambm todo aquele que tenha dito que o intelecto move o todo , o que no exatamente o que diz Demcrito. Pois este diz simplesmente que alma e intelecto so

    2 Lendo na linha 21 , segundo o texto de Jannone.

    50

  • 1.2 De Anima 404b23

    o mesmo, pois o verdadeiro o que se revela por isso Homero comps bem o seguinte verso: Heitor jaz desmaiado. Ora, De- mcrito no se serve do intelecto como uma potncia relativa verdade, mas diz que alma e intelecto so o mesmo. Anaxgoras, por sua vez, ainda menos esclarecedor a esse respeito, pois em muitas passagens diz que o intelecto a causa do modo belo e correto de ser, mas em outra diz que o intelecto a alma, pois ele subsiste em todos os animais tanto nos grandes como nos pequenos, tanto nos valiosos como nos sem valor. No entanto, no parece que o intelecto, ao menos no sentido de entendimento, subsista igualmente em todos os animais, e nem mesmo em todos os homens.

    404b7. Assim, por um lado, todos aqueles que deram ateno especial ao fato de que o animado se move supuseram que a alma por excelncia aquilo que faz mover. Aqueles, por outro lado, que se detiveram no fato de que o animado conhece e percebe os seres, identificaram a alma aos princpios: seja a uma pluralidade deles, seja a um nico; tal como Empdocles, que compe a alma a partir de todos os elementos, cada um deles sendo alma, e assim se expressa:

    pois com terra, terra contemplamos; com gua, gua;com ter, ter divino; com fogo, o fogo destruidor;com amor, amor; e discrdia com discrdia lgubre.

    4 0 4 b l5 . Do mesmo modo Plato, no Timeu, compe a alma a partir dos elementos, pois sustenta que o semelhante conhecido pelo semelhante e as coisas so compostas a partir dos princpios, definindo similarmente nas discusses sobre filosofia: que o prprio animal provm da idia mesma do uno e do comprimento, largura e profundidade primeiros, e tudo o mais de modo semelhante. Tambm dito, ainda de outra maneira, que o intelecto o uno e a cincia a dade: pois ela avana em direo a algo uno de um nico modo; e que a opinio o nmero da su

    51

  • 404b23 Aristteles 1.2

    perfcie, e a percepo sensvel o do slido; pois ele dizia que os nmeros so as prprias formas e os princpios, embora provenientes dos elementos, e que algumas coisas so discernidas pelo intelecto, outras pela cincia, outras ainda pela opinio e outras enfim pela percepo sensvel. Alm disso, esses nmeros so a forma das coisas.

    404b27. E como havia tambm a opinio de que a alma o que pode tanto mover como conhecer, alguns ento a combinaram a partir de ambos aspectos, declarando que a alma um nmero que move a si mesmo.

    404b30. Mas, em relao aos princpios quais e quantos so eles , h diferenas especialmente entre aqueles que os concebem como corpreos e aqueles que os concebem como incorpreos, e ainda discordam desses aqueles que os combinaram e declararam que os princpios procedem de ambos os tipos. H ainda diferenas em relao multiplicidade, pois uns assumem um nico princpio, outros um nmero maior. De acordo com isso discorrem tambm sobre a alma, pois supunham que o que por natureza fonte de movimento deve estar entre os primeiros princpios e no sem razo. Donde alguns terem a opinio de que a alma fogo, pois o fogo composto de partculas sutis e o mais incorpreo dos elementos e, alm disso, em sentido primordial, tanto movido como move tudo o mais.

    405a8. Tambm Demcrito expressou-se com maior mincia, ao declarar o porqu de cada um daqueles aspectos; pois alma e intelecto so o mesmo: algo que est entre os corpos primordiais e indivisveis, podendo mover-se pela pequenez e formato de suas partes. Ele afirma que o esfrico o mais mvel dos formatos; e assim so tanto o intelecto como o fogo.

    4 0 5 a l3 . Anaxgoras, por sua vez, parece dizer que alma algo diverso de intelecto; no entanto, serve-se de ambos, como se se

    52

  • 1.2 De Anima 405b9

    tratassem de uma nica natureza, exceto quando estabelece especialmente o intelecto como princpio de tudo; em todo caso, ele diz que, dos seres, o intelecto o nico simples, sem mistura e puro. Ele discorre sobre ambos o conhecer e o mover recorrendo a um mesmo princpio, ao dizer que o intelecto pe o todo em movimento. (E tambm Tales, segundo o que dele se lembra, parecia supor que a alma algo capaz de mover, se que disse que o magneto tem alma porque move o ferro.)

    405a21 . Digenes, bem como alguns outros, disse que a alma ar, julgando ser o ar composto das menores partculas e princpio de tudo, e que por isso a alma tanto conhece como move: por ser o primeiro princpio a partir de que tudo o mais existe, por um lado, a alma conhece; por ser composta das menores partculas, por outro lado, a alma capaz de mover. Tambm He- rclito disse que a alma o princpio, se de fato ela a exalao a partir do que tudo o mais se constitui; alm disso ela tanto o mais incorpreo como o sempre fluente. E que o movido conhecido pelo movido, e que os seres esto em movimento, pensava tanto ele como a maioria. Com alguma semelhana a eles, tambm Alcmon parecia fazer suposies a respeito da alma, pois diz que ela imortal por assemelhar-se aos imortais; e que isso atribudo a ela em virtude de ser sempre movente, pois tudo o que divino move-se sempre continuamente a lua, o sol, os astros e o cu inteiro.

    4 0 5 b l. Entre as opinies mais grosseiras, alguns declaram que a alma gua, tal como Hpon; e parecem ter-se persuadido disso com base na semente, que em todos os seres mida. Pois ele inclusive refuta os que afirmam ser a alma sangue, porque a semente alma primeira e no sangue. Mas outros declaram que a alma sangue, como Crtias, supondo que muitssimo peculiar alma o perceber e que ele subsiste por causa da natureza do sangue. Ora, todos os elementos tiveram um partidrio, exceto a terra; e ningum a declarou alma, a no ser que algum te

    53

  • 405b9 Aristteles 1.2

    nha dito que a alma composta de todos os elementos ou que ela todos os elementos.

    4 0 5 b l0 . Todos, com efeito, definem a alma por assim dizer por trs atributos: o movimento, a percepo sensvel e a natureza incorprea; e cada um deles remonta aos princpios. Por isso tambm aqueles que definem a alma pelo conhecer fazem dela ou um elemento ou algo proveniente dos elementos, afirmando coisas parecidas uns e outros, exceto um; pois dizem que o semelhante conhecido pelo semelhante e, uma vez que a alma conhece tudo, constituem-na a partir de todos os princpios. Assim, todos aqueles que dizem haver uma nica causa e um nico elemento tambm afirmam que a alma nica, por exemplo, fogo ou ar. Outros, por sua vez, ao afirmarem que so inmeros os princpios, tambm fazem da alma algo mltiplo. Anaxgoras o nico que diz que o intelecto impassvel e nada tem em comum com os outros seres. No entanto, sendo assim, como conhecer e por que causa, nem ele disse, nem fica claro a partir de suas palavras. Por outro lado, aqueles que colocam pares de contrrios como princpios, tambm constituem a alma a partir de pares de contrrios. E aqueles que colocam como princpio um dos contrrios por exemplo, quente, frio ou outro semelhante estabelecem de maneira similar que tambm a alma um desses contrrios. Por isso, eles se guiam pelas designaes: aqueles que dizem que a alma o quente, afirmam que tambm por isso o viver foi assim nomeado; aqueles que dizem que a alma o frio pretendem que seu nome vem de resfriamento e de respirao . Estas so, portanto, as opinies transmitidas a respeito da alma e as causas pelas quais foram ditas.

    C a p t u l o 3

    405b31. preciso examinar primeiro o que diz respeito ao movimento, pois talvez no somente seja falso que a substncia da

  • 1.3 De Anima 406a24

    alma tal como afirmam os que dizem que ela o que faz mover a si mesmo ou que pode mover, como talvez seja algo impossvel subsistir movimento na alma.

    406a3 . No necessrio que aquele que faz mover tambm esteja ele prprio em movimento, como j foi argumentado anteriormente. Tudo, porm, movido de dois modos pois ou movido por outro ou por si mesmo. E dizemos que movido por outro tudo quanto est em algo que se move por exemplo, os navegantes, que no so movidos de modo similar ao navio, pois este movido por si mesmo e aqueles por estarem em algo que se move, o que fica claro se considerarmos os membros do corpo: o movimento prprio dos ps o caminhar, que tambm o dos homens, o qual no se atribui aos navegantes dizendo-se, ento, de dois modos o ser movido. Examinemos agora, no que respeita alma, se por si mesma que se move e participa do movimento.

    4 0 6 a l3 . Posto que h quatro movimentos locomoo, alterao, decaimento e crescimento , a alma se moveria ou por um nico deles, ou por mais de um, ou ainda por todos. Se ela movida, mas no por acidente, o movimento seria atribudo a ela por natureza e, assim, tambm por natureza o lugar; pois todos os movimentos mencionados ocorrem em um lugar. Se a substncia da alma o mover-se a si mesma, o movimento ser atribudo a ela no por acidente, como ocorre com o branco ou com o comprimento de trs cvados, que tambm se movem, mas por acidente porque aquele a que so atribudos movido, isto , o corpo. E por isso eles no tm lugar; mas para a alma haver lugar, se que por natureza participa do movimento.

    406a22. Alm disso, se por natureza que a alma se move, tambm por coero poder ser movida; e, se movida por coero, tambm o seu movimento ser por natureza. E da mesma maneira no que concerne ao repouso; pois, para onde se move por

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    natureza, tambm ali repousa por natureza, e, de maneira similar, para onde movida por coero, tambm ali repousa por coero. Mas quais seriam os movimentos e os repousos por coero da alma, no fcil explicar nem mesmo para os que gostam de fantasiar.

    406a27. E mais: se a alma se move para cima, ser fogo; se se move para baixo, terra; pois estes so os movimentos destes corpos. O mesmo argumento vale tambm para os movimentos intermedirios. Alm disso, j que a alma se mostra como o que move o corpo, razovel e