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Da Psiquiatria Alienista ao Tratamento com Psicofármacos: Hospital Galba Velloso

(1962 – 1970)

Darlan Luiz Silva Santos*

Resumo

O objetivo com este trabalho é apresentar de maneiras gerais o cenário teórico em que surge o

hospital psiquiátrico Galba Velloso. Entendemos que esta instituição fundada em 1962, rompe

com grande parte daquelas teorias alienistas e organicistas, colocando a psiquiatria mineira

mais próxima à medicina clínica. O período de 1962-1970 foi de grande relevância para esta

ciência, pois houve um grande avanço de medicamentos (psicofármacos) no tratamento da

loucura desenvolvidos por este hospital. Com a criação da Fundação Educacional e de

Assistência Psiquiátrica no Galba Velloso em 1968, cria-se também a residência psiquiátrica,

que faz aumentar a produção científica voltada para a psiquiatria em Minas Gerais.

Palavras-chave: Psiquiatria – Hospital Galba Velloso – Minas Gerais

Abstract

The objective with this work is to present in general ways the theoretical scenery in that the

psychiatric hospital Galba Velloso appears. We understood that this institution founded in

1962, it breaks up with those theories psychiatrists' great part and organicistas, putting the

psychiatry closer inhabitant of Minas Gerais to the clinical medicine. The period of 1962-

1970 went of great relevance to this science, because there was a great progress of medicines

in the treatment of the madness developed by this hospital. With the creation of the Education

Foundation and of Psychiatric Attendance in Galba Velloso in 1968, he/she also grows up the

psychiatric residence, that he/she makes to increase the scientific production returned for the

psychiatry in Minas Gerais.

Key-words: Psychiatric – Hospital Galba Velloso – Minas Gerais

1. Introdução

Com o surgimento da anti-pisiquiatria na década de 1960, na Inglaterra, temos um

cenário de negação dos hospitais psiquiátricos e negação de que a doença mental pode ser

classificada como uma doença somática. De acordo com esse pensamento, os loucos devem

* Estudante de graduação em História pela Universidade Federal de Viçosa.

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ser tratados dentro do seu meio social, e não dentro das instituições asilares psiquiátricas.

Esses indivíduos não devem mais ser segregados e/ou excluídos da sociedade.(AMARANTE,

1998: 42)

Esta nova concepção de doença mental ou loucura implica em alternativas para o

tratamento das pessoas que sofrem de tal moléstia. A prerrogativa de que uma possível cura

para esta doença, inclusive a contestação se há realmente uma doença a ser curada, está fora

do hospital psiquiátrico, lugar este criado e controlado pelos saberes dos psiquiatras, coloca

em dúvida a verdade científica construída pela psiquiatria durante seus quase dois séculos de

existência.

A discussão sobre o conceito de loucura traz-nos questionamentos sobre o normal e

o patológico, o racional e o irracional. Há um modelo de mente saudável, ou, pelo contrário,

um modelo de mente doente? Qual o papel da psiquiatria junto ao Estado? Era um agente

segregador, excludente, ou um agente que possibilitaria a cura e a reabilitação social dos

indivíduos por ela abordados? Questionamos também a verdade científica: até que ponto os

experimentos realizados sob teorias cientificamente comprovadas são eficazes e

incontestáveis?

Em meio a essas contestações sobre a psiquiatria, é fundado em Belo Horizonte no

ano de 1962, o hospital psiquiátrico Galba Velloso, considerado símbolo de uma nova

tendência no tratamento da loucura no Estado de Minas Gerais. O objetivo com este trabalho

é apresentar de maneiras gerais o cenário teórico que se forma a psiquiatria mineira, e

especificamente, as principais referências que se baseiam a fundação e funcionamento desse

hospital.

Entendemos que esta instituição rompe em grande parte com as teorias alienistas,

colocando a psiquiatria mineira mais próxima à medicina clínica. Para tanto, evidenciaremos

o período de 1962-1970 por acreditarmos ser de grande relevância para esta ciência, pois

houve um grande avanço de medicamentos (psicofármacos) no tratamento da loucura

desenvolvidos pelos psiquiatras do Galba Velloso.

2. A origem da psiquiatria moderna

Com a chamada Revolução Científica a partir do século XVII, a razão era buscada

ao extremo, portanto as instituições consideradas irracionais eram criticadas e passa-se a

acreditar fielmente no progresso da ciência e da tecnologia, desenvolvimento de profissões, da

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economia de mercado, da burocracia e expansão da educação. Os Estados centralizados que

vão surgindo neste período necessitavam de ordem e disciplina, por isso a anormalidade e/ou

a irracionalidade deveriam ser evitadas. (PORTER, 2001: 283)

Nos séculos XVIII e XIX, encontramos uma grande quantidade de fundações de

escolas, prisões, asilos e manicômios. Estes últimos para lidar com pessoas consideradas

problemáticas para o Estado por serem rotuladas de irracionais. Prostitutas, idosos, mendigos,

criminosos, todos os indivíduos que eram estigmatizados como inúteis ao Estado estavam

sujeitos a serem colocados fora do convívio social, dentro de um manicômio. Este é um

processo que entendemos como institucionalização da loucura. Atribui-se um lugar específico

para que seja levado o louco afim de que ele seja curado, ou que pelo menos, não corrompa a

sociedade. Com esta institucionalização da loucura e com o confinamento, a loucura deixa de

ser ouvida, perde o seu espaço social. (PORTER, 2001: 287)

Philippe Pinel é considerado pela maioria dos autores como o fundador da

psiquiatria moderna. E o que marca a diferença de tratamento adotado e difundido por esse

médico francês é exatamente a libertação do louco de suas correntes, literalmente falando, e a

utilização de tratamentos “morais” para combater a loucura. (PORTER, 2001: 295)

Destacamos as idéias de Pinel por serem muito influentes, assim como as de seu

discípulo Jean-Étienne Esquirol, na psiquiatria desenvolvida em Minas Gerais, principalmente

até o início do século XX. (DUARTE, 2009: 36) De acordo com Paul Bercherie, Esquirol foi

o fundador da clínica psiquiátrica, levando adiante as teorias de Pinel mas com um maior

rigor científico e especificando melhor as diferenças entre os distúrbios

mentais.(BERCHERIE, 1986: 26)

As teorias de Pinel fazem parte da psiquiatria conhecida como Alienista. Este tipo de

psiquiatria era dividida em duas grandes áreas, uma chamada de visão organicista e outra de

moral. Esta vertente moral, defendida por Pinel, acreditava que a loucura era uma

psicopatologia das paixões e provocadas por um ambiente social patogênico.( JACOBINA,

2001: 51) É exatamente por essa concepção que admite-se as fundações de asilos

psiquiátricos. O asilo era entendido como um lugar que poderia salvar o louco das

deformações da sociedade. De acordo com Bercherie, Esquirol acreditava que o asilo por si só

era capaz de curar a loucura, por evitar que a sociedade corrompesse os indivíduos que eram

mentalmente frágeis. (BERCHERIE, 1986)

A teoria alienista moral desenvolvida por Pinel admitia que o louco poderia ser

curado com o contato com a sociedade, mas sob o controle do psiquiatra. Este profissional

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poderia reordenar os pensamentos do doente, que era visto como uma criança furiosa, por

meio da conversa e disciplina a qual o paciente deveria se submeter. As correntes e castigos

não eram bem vistos, deviam ser banidos.1 (PORTER, 2001: 295)

De acordo com o historiador Roy Porter, por causa da preocupação que havia após a

revolução proposta por Pinel de libertar os loucos das correntes, a fiscalização das condutas

dos asilos para com seus pacientes aumentou. Redobraram as atenções sobre os tratamentos

que eram submetidos os loucos e se realmente quem estava sendo colocado no asilo era um

doente que precisava dos cuidados psiquiátricos. Somado-se a isso, há o desenvolvimento de

uma medicina muito mais científica, classificatória, experimental e cada vez mais influente na

sociedade.2 Para um melhor acompanhamento dos asilos e impedir que os abusos

acontecessem neste local, o Estado começa a controlar os asilos para loucos, e passa também

a selecionar quem deveria ser levado a este local para receber os devidos cuidados.

(PORTER, 2001: 296)

Percebemos que esta tentativa de ordenamento pelo Estado do lugar para loucos

resultou em mais problemas do que soluções para a loucura. Esta

(...) preocupação legal para prevenir que os asilos fossem usados como instituições carcerárias pode ter-se provado contraprodutiva. Pois, com essa insistência em que apenas lunáticos formalmente certificados fossem alojados em asilos, a transformação do asilo em uma instituição ‘aberta’, mais flexível, fácil de entrar e sair foi atrasada. Em vez disso, o hospital mental foi confirmado como a instituição de último recurso; a certificação assim tornou-se associada à detenção prolongada. (PORTER, 2001: 296)

A outra corrente alienista conhecida como organicista, que teve como grande nome

no Brasil o também francês B. A. Morel, acreditava que a loucura era provocada por uma

lesão no cérebro. Esta corrente teórica vai ser mais utilizada, no fim do século XIX e início do

XX, após o desenvolvimento da medicina biológica. (JACOBINA, 2001: 50) 1 Alguns autores consideram que as teorias de Esquirol eram também organicistas, pelo teor científico que ele agregava em suas teorias. De fato, esta divisão entre teorias alienistas organicistas e morais não é bem definida. Ver também: BERCHERIE, Paul. Los fundamentos de la clínica: História e estructura del saber psiquiárico. Buenos Aires:Manantial, 1986.; CANGUILHEM, George. O normal e o patológico. tradução de Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.; FOUCAULT, Michel. Os

anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Trad.: Eduardo Brandão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 2 Sobre o desenvolvimento da medicina clínica nesta época, ver também: FOUCAULT, M. O Nascimento da

Clínica. Rio de Janeiro: Graal, 1977.; NUTTON, Vivian. Ascensão da medicina. in: Cambridge: História

Ilustrada da Medicina. Trad.: Geraldo Magela Gomes da Cruz. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter Ltda, 2001.; GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. Trad.: Valter Lellis Siqueira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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3. A assistência a alienados em Minas Gerais

Em Minas Gerais, a assistência a alienados é inaugurada em 1903 com a fundação

do Hospital Colônia de Barbacena. (DUARTE, 2009: 36)

Em 1900, o então presidente do Estado de Minas Gerais, Francisco Silviano de

Almeida Brandão, sancionou a Lei que criou a “Assistência de Alienados” no Estado. Nesta

Lei, fica decretado que a assistência aos alienados se daria em locais anexos a hospitais

estaduais. E ainda que, no prédio que for destinado ao hospício, deverá haver além das

devidas acomodações aos pacientes, um pavilhão exclusivo para observação de indivíduos

suspeitos e um local específico para tratamento electro-terápico.(MORETZSOHN, 1989: 13)

Podemos perceber com a Lei de Assistência a Alienados que há uma preocupação

em identificar os loucos dentro da sociedade para que estes recebam o devido tratamento. O

que faz-nos remeter ao significado de “normal” de Minkowski, que diz que “o normal não é

uma média correlativa a um conceito social, não é um julgamento de realidade, é um

julgamento de valor, é uma noção-limite que define o máximo de capacidade psíquica de um

ser. Não há limite superior da normalidade.” (MINKOWSKI apud CANGUILHEM, 2009:

p.45) Coloca-se em tratamento, ou mesmo fora do convívio social, o indivíduo que destoa de

um padrão considerado tolerável. Em que pese isso, quem tem esta competência para

diagnosticar se tal indivíduo é normal ou louco, ou mesmo um louco em potencial, são

instituições controladas pelo Estado, revestidos de um discurso científico, na figura central do

psiquiatra.

Criado para atender às necessidades de todo o Estado de Minas Gerais em relação à

“assistência a alienados”, já que era o único hospital capacitado existente na época, em pouco

menos de 20 anos de funcionamento, o Hospital Colônia de Barbacena já encontrava-se

superlotado e estigmatizado como “depósito de loucos”.

O Instituto Neuro-Psychiatrico (posteriormente nomeado Instituto Raul Soares)

iniciou sua construção no ano de 1922, em Belo Horizonte, através do decreto expedido por

Arthur Bernardes aprovando o regulamento conhecido como “Regulamento Affonso

Penna”.(MORETZSOHN, 1989:13)

De acordo com o regulamento, esse hospital passaria a ser considerado o Hospital

Central de Minas Gerais e para suplantar o Hospital Colônia de Barbacena. Inaugurado como

centro de referência em equipamentos, instalações e saber psiquiátrico, já que fica permitido

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que a Faculdade de Medicina de Minas Gerais utilize o Instituto para desenvolver os ensinos

de psiquiatria e treinamento de pessoal. Com a inauguração deste hospital, em 1924, já com o

nome de Instituto Neuro-Pshychiatrico Raul Soares, acreditava-se que estavam criando um

hospital de excelência em psiquiatria, referência em todo o Brasil, condizente com a jovem

capital mineira.

O Instituto Raul Soares aparece como um divisor da psiquiatria mineira. Antes desse

instituto, a psiquiatria em Minas Gerais era basicamente asilar. Com seu funcionamento,

pretendia-se inaugurar uma psiquiatria clinica voltada para pesquisas e ensino.

Lembramos que este é um momento de intensa mudança e descoberta da medicina e

ciências naturais. Há uma avalanche de teorias formuladas baseadas em grandes autores como

Darwin, Comte e Kreapelin. A idéia da degenerescência estava em alta. Baseado nesta teoria,

a doença do louco aumentava conforme passavam-se as gerações herdeiras genéticas destes

doentes. Portanto, colocá-lo no asilo era a melhor solução. O darwinismo social ditava que

somente as sociedades adaptadas poderiam sobreviver, isso fazia com que o irracional, imoral

fosse rejeitado, reforçava a exclusão do indesejável, sendo louco ou não, pessoas que

poderiam corromper o desenvolvimento da sociedade deveriam ser colocadas fora dela.

(PORTER, 2001: 298) Há também neste período um crescente desenvolvimento militar, o que

ajuda a organizar a sociedade, preocupados com a formação de uma corporação altamente

treinada. (PICKSTONE, 2001: 322)

Descobertas da medicina, como por exemplo, que muitas doenças poderiam ser

causadas por microorganismos específicos aumentam a busca pela cura de todas as doenças, e

ainda aumenta o poder do médico diante da sociedade. Influenciados por grandes descobertas

de estudiosos como Robert Koch e Louis Pasteur, desenvolveu-se todo um aparato cientifico

para descoberta da cura e/ou minimizar os efeitos de doenças graves na população, pensando

também na diminuição dos gastos do Estado com as enfermidades. (PICKSTONE, 2001: 323)

Particularmente para a psiquiatria, a década de 1950 é muito significativa porque

desenvolvem muitas pesquisas com psicofármacos.3 O uso de alguns medicamentos na

estabilização do comportamento obtêm enorme sucesso neste período. (PORTER, 2001: 300)

4. Hospital Galba Velloso (1962-1970)

3 Psicofármacos são medicamentos utilizados no combate de doenças mentais.

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Nesse contexto de expansão das pesquisas com psicofármacos que surge o Hospital

Galba Velloso (HGV). Novos medicamentos foram desenvolvidos por grandes indústrias

farmacêuticas e adotados por muitos psiquiatras no tratamento da “loucura”. Muitas dessas

drogas eram usadas como efeito paliativo ao eletrochoque. Apesar deste tratamento ser mais

utilizado por ser considerado mais eficaz e mais barato, o uso dos psicofármacos se expandiu.

Junto com eles eram adotadas medidas de socialização como o sistema open door, que era

baseado em visitas diárias e excluindo os quartos-fortes4. Também foi muito utilizado o

sistema de laborterapia, que visava à ocupação dos pacientes com algum tipo de trabalho para

que estes pudessem desenvolver suas habilidades. (DUARTE, 2009: 59)

Com a fundação do Hospital Galba Velloso, visava a implantação dessas novas

correntes existentes na psiquiatria brasileira em Minas Gerais. O uso da terapia ocupacional

como recurso para desenvolver a criatividade e potencializar o tratamento de doentes mentais,

foi defendido por psiquiatras do HGV. Eram utilizadas para isso algumas medidas inovadoras

como a participação coletiva dos internos em atividades de lazer, reuniões periódicas entre o

paciente e a equipe médica, aproximação do médico com o paciente, a fim de diminuir o

autoritarismo de um frente ao outro. O tratamento de internos com a comunidade terapêutica

foi uma inovação na psiquiatria mineira, buscando o resgate do “louco” para a sociedade Há

com isso a tentativa de resolver os problemas do indivíduo fora do manicômio, junto com a

comunidade. A interação destes indivíduos com o meio externo ao hospital e a proximidade

com seus parentes, facilitava o enquadramento destes pacientes nos parâmetros aceitos pela

sociedade e a saída destes da comunidade terapêutica. (DUARTE, 2009: 60)5

Os anos de 1960-1972 foi um período de afirmação do HGV, com o desenvolvimento

de pesquisas sob direção de Jorge Paprocki. Com os estudos realizados nesta época, houve um

reconhecimento do Galba Velloso dentro da psiquiatria mineira, o que possibilitou a criação

do Centro de Estudos do Galba Veloso, tornando-se famoso pelo desenvolvimento de

psicofármacos e por ser o primeiro hospital em Minas com residência psiquiátrica.

Os estudos em psicofarmacologia renderam a publicação do livro Psicofármacos. O

lançamento deste livro pelo HGV foi um marco para a psiquiatria mineira. Como avaliação da

4 Sistema utilizado para a contenção dos enfermos que era semelhante ao sistema carcerário. 5 Sobre o Hospital Galba Velloso, ver também: PICCININI, Walmor J. História da Psiquiatria: apontamentos para a história da Psiquiatria mineira á luz das suas publicações (III). Psychiatry on line Brasli..v.11, n. 6, Jun. de 2006.; GOULART, Maria Stella Brandão et. al. Hospital Galba Velloso e as vicissitudes da história da reforma psiquiátrica mineira nos anos 60. FAPEMIG/ FIP/PUC Minas. Belo Horizonte, 2008, (prelo).; BAGGIO, Marco Aurélio. Uma história da psiquiatria mineira: a turma do Galba 1993. Jornal Mineiro de Psiquiatria. Belo Horizonte, ano VI, ed., 16.

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eficácia do uso de psicofármacos em pacientes psiquiátricos internos, uma grande empresa

farmacêutica multinacional começou a financiar pesquisas em hospitais em Minas Gerais.

(DUARTE, 2009: 64)

Por estas pesquisas desenvolvidas e mais tarde pela criação do curso de residência no

Hospital Galba Velloso, Jorge Paprocki e Fernando Velloso tornam-se respectivamente

Secretário de Saúde e assessor especial da Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica.

Isso se deu em razão da acumulação de capital simbólico que recebem os indivíduos de

prestígios em um grupo. Assim ambos passaram para um patamar de decisão quanto à

institucionalização de políticas públicas de saúde mental. (DUARTE, 2009: 65)

Segundo Pierre Bourdieu, o capital científico é uma espécie particular de capital

simbólico, “o qual é fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento, que consiste no

reconhecimento do conjunto de pares-concorrentes no interior do campo

científico”.(BOURDIEU, 2004)

Percebemos que os discursos da psiquiatria se sobrepõem com o passar dos anos. A

busca por uma ciência mais eficaz no tratamento da loucura faz com que novas teorias sejam

formuladas para substituir as antigas e tradicionais. Entendemos que este foi um momento

particular da psiquiatria mineira que possibilitou uma significativa mudança em suas ações,

visto que, com a criação da residência em psiquiatria no HGV, sendo esta a primeira em

Minas Gerais, a partir daqui passam a ser formados os primeiros especialistas nesta área. Sai

de cena a formação auto-didata dos psiquiatras mineiros, para entrada de psiquiatras formados

pela academia. (DUARTE, 2009: 70)

Apesar do discurso sobre a comunidade terapêutica, percebemos nos Anais do 1º

Congresso Mineiro de Psiquiatria, a afirmação de que há

(...) uma posição de onipotencia que o psiquiatra assume no hospital tradicional, e que quer conservar, para se sentir seguro, mesmo quando propõe um trabalho em equipe, ou a realização de uma comunidade terapêutica, que conduzem necessariamente a uma revisão desta posição. (PAPROCKI et al, 1970: 11)

Este congresso surgiu a partir de diversos encontros internos realizados nos hospitais

da Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica. O Congresso aconteceu de 26 a 29 de julho

de 1970 em Araxá-MG. Participaram deste evento 122 pessoas, todas elencadas ao final dos

Anais.

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Foram idealizadores deste evento, dentre outros, Fernando Megre Velloso, que

participou como presidente do congresso e Jorge Paprocki, que participou como presidente da

comissão científica do congresso.

Este congresso não se constituiu de leituras de trabalhos, como tradicionalmente era

feito, mas foi organizado em torno de discussões em pequenos grupos, dividido em temas

específicos.

Podemos perceber neste congresso que houve um esquecimento do paciente dentro

dos vários temas sugeridos. São tratados temas como “o papel do psiquiatra”, o “papel do

psicólogo”, mas o doente acabou sendo deixado de lado.

De acordo com os anais deste congresso, quanto mais tradicional o hospital, mais a

oposição de onipotência do psiquiatra se destaca. O que é oposto ao proposto pela

comunidade terapêutica, que tanto os organizadores do congresso querem ressaltar.

“Observando atentamente vê-se que, a posição tradicionalista de quase todos, senão

todos os hospitais psiquiátricos do nosso meio, já existe uma definição clara do poder, do

prestígio, da responsabilidade, da submissão etc.” (PAPROCKI et al, 1970: 12)

É notado pelos relatores do Congresso, que a falta de diálogo entre alguns psiquiatras

e outros profissionais da área de saúde como enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos

pode se dever à tentativa do psiquiatra de manter seu status. “É provável que o psiquiatra

tenha temido a perda de sua ‘onipotência’ e um pouco do deu ‘poder’, ‘status’ e

consequentemente do prestígio para outros membros da equipe.” (PAPROCKI et al, 1970: 12)

E afirma ainda que o próprio psiquiatra “(...) em vista do observado, que os profissionais do

Hospital Psiquiátrico, ainda tenham, apesar do que se fala e se escreve, uma profunda

discriminação com este ‘outro’ que é o doente mental.” (PAPROCKI et al, 1970: 12)

Percebemos ainda nas discussões do Congresso que a comunidade terapêutica não era

produtiva, pelo menos nesta época, muito em função da falta de preparo dos profissionais,

mas sobretudo porque a própria comunidade a qual o doente faz parte não está preparada para

lidar com a loucura. Há discriminação tanto pelos profissionais, quanto pelos familiares dos

doentes.

5. Considerações finais

Percebemos que ao longo do desenvolvimento da psiquiatria moderna, encontramos

várias teorias formuladas que se sobrepõe e muitas vezes não se contrapõe. Teorias são

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formuladas de acordo com as mudanças culturais, com descobertas científicas, necessidades

da sociedade na época ou desenvolvimento de novas tecnologias.

O que é considerado normal e sociável em determinada época pode ser considerado

perigoso e passível de ser seqüestrado do convívio social em outra. Com o fortalecimento do

Estado e a crença que a ciência pode responder a todas as questões possíveis, há grande

utilização do aparelho estatal das descobertas e desenvolvimentos científicos. Utilizando-se

ainda do respaldo e crença na ciência, especificamente na medicina, para a ordenação e

disciplina da sociedade.

Podemos perceber ainda, que apesar de todos os experimentos e avanços científicos,

a psiquiatria ainda se mostrava frágil em relação ao tratamento da loucura. A própria relação

do médico com o paciente era cheia de imposições e preconceitos. Percebemos que apesar de

todo o desenvolvimento tecnológico pelo que passou a psiquiatria mineira nesta época, e

principalmente, tratando-se do Hospital Galba Velloso, uma referência para as demais

instituições psiquiátricas mineiras, o indivíduo ainda era posto de lado. A dificuldade em

perceber o louco como um cidadão tanto pela comunidade, parentes e profissionais da saúde

ainda era eminente, o que nos faz questionar se os tratamentos eram realmente pensados para

os pacientes ou para a afirmação do psiquiatra em um espaço social de poder e prestígio.

6. Bibliografia

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BAGGIO, Marco Aurélio. Uma história da psiquiatria mineira: a turma do Galba 1993. Jornal

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DUARTE, Maristela Nascimento. De “Ares e Luzes” a “Inferno Humano”. Concepções e

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JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. A prática psiquiátrica na Bahia (1874-1947): Estudo histórico

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