cultura pop

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Astúcia e inocência Sônia Salzstein RESUMO Este texto examina o debate artístico e cultural do último quartel do século XX, quando o termo pop se viu presa de uma aguerrida batalha de reconfigurações ideológicas, reto- mado ora como marco de uma nova e benfazeja era da cultura, ora como desfecho da “arte histórica” que finalmente auspiciava o advento da “Arte” como puro conceito. Discute o rescaldo contemporâneo desse debate — no qual uma “questão pop” persiste em lugar de destaque — e analisa especialmente a influência que sobre ele tiveram as correntes do multiculturalismo. PALAVRAS-CHAVE: pop art; multiculturalismo; história da arte; arte contemporânea. SUMMARY This essay focuses the intensive ideological reconfigurations to which the term “pop” fell prey in the artistic and cultural debate of the last quarter of the twentieth century.During these years, pop was claimed or as a wedge in a new and wholesome cultural era or as the grandiose accomplishment of the “historical art”, from which finally would rise “Art” as a pure concept. It also discusses the contemporary remains of this debate — a “pop issue” follows being its kernel — and analyses specially the role that multiculturalist currents have had in this context. KEYWORDS: pop art; multiculturalism; art history; contemporary art. NOVOS ESTUDOS 76 ❙❙ NOVEMBRO 2006 251 [1] “Cultura pop: Astúcia e inocên- cia” é uma versão modificada da pri- meira parte de um ensaio original- mente produzido para o seminário interno “Pop Art and Vernacular Cul- tures”, realizado em 2006 no Insti- tute of Visual Arts, de Londres; o ensaio aparece com outro título em coletânea organizada no mesmo ano pelo Institute of Visual Arts, de Lon- dres, no âmbito da série “Anotating Art Histories”, que tem como editor Kobena Mercer. [2] Cito apenas dois autores rele- vantes para este debate, cujos traba- lhos, que trazem títulos eloqüentes sobre o sentimento de época, estabe- lecem a arte pop como um divisor de Desde a década de 1980 a arte pop se tornou um topus recorrente no reexame da ideologia da modernidade 2 , este balanço a que a antevisão precoce do desfecho do século XX compelia,em face do recrudescimento do contencioso político, econômico e social que se acumulara no processo de exaustão de mais uma era de modernização. Era emblemático que fosse a pop — ela mesma uma espécie de culmi- nação fastigiosa da modernidade experimentada cerca de 30 anos antes — uma figura privilegiada nesse reexame. Assim, um dos acon- tecimentos mais reveladores de todo o período proveio do campo da arte,no qual o célebre dito de Andy Warhol — “Business art is the step that comes after Art” 3 — parecia finalmente se confirmar. Como é sabido, o decênio em questão marcava, muito a propósito, uma on- da européia e norte-americana de construção de museus de arte e CULTURA POP 1

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Sonia Salzstein

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  • Astcia e inocncia

    Snia Salzstein

    RESUMO

    Este texto examina o debate artstico e cultural do ltimo

    quartel do sculo XX, quando o termo pop se viu presa de uma aguerrida batalha de reconfiguraes ideolgicas, reto-

    mado ora como marco de uma nova e benfazeja era da cultura, ora como desfecho da arte histrica que finalmente

    auspiciava o advento da Arte como puro conceito. Discute o rescaldo contemporneo desse debate no qual uma

    questo pop persiste em lugar de destaque e analisa especialmente a influncia que sobre ele tiveram as correntes

    do multiculturalismo.

    PALAVRAS-CHAVE: pop art; multiculturalismo; histria da arte; arte

    contempornea.

    SUMMARY

    This essay focuses the intensive ideological reconfigurations

    to which the term pop fell prey in the artistic and cultural debate of the last quarter of the twentieth century. During

    these years, pop was claimed or as a wedge in a new and wholesome cultural era or as the grandiose accomplishment

    of the historical art, from which finally would rise Art as a pure concept. It also discusses the contemporary remains

    of this debate a pop issue follows being its kernel and analyses specially the role that multiculturalist currents

    have had in this context.

    KEYWORDS: pop art; multiculturalism; art history; contemporary art.

    NOVOS ESTUDOS 76 NOVEMBRO 2006 251

    [1] Cultura pop: Astcia e inocn-cia uma verso modificada da pri-meira parte de um ensaio original-mente produzido para o seminriointerno Pop Art and Vernacular Cul-tures, realizado em 2006 no Insti-tute of Visual Arts, de Londres; oensaio aparece com outro ttulo emcoletnea organizada no mesmo anopelo Institute of Visual Arts, de Lon-dres, no mbito da srie AnotatingArt Histories, que tem como editorKobena Mercer.

    [2] Cito apenas dois autores rele-vantes para este debate, cujos traba-lhos, que trazem ttulos eloqentessobre o sentimento de poca, estabe-lecem a arte pop como um divisor de

    Desde a dcada de 1980 a arte pop se tornou um topusrecorrente no reexame da ideologia da modernidade2, este balano aque a anteviso precoce do desfecho do sculo XX compelia,em face dorecrudescimento do contencioso poltico, econmico e social que seacumulara no processo de exausto de mais uma era de modernizao.Era emblemtico que fosse a pop ela mesma uma espcie de culmi-nao fastigiosa da modernidade experimentada cerca de 30 anosantes uma figura privilegiada nesse reexame. Assim, um dos acon-tecimentos mais reveladores de todo o perodo proveio do campo daarte,no qual o clebre dito de Andy Warhol Business art is the stepthat comes after Art3 parecia finalmente se confirmar. Como sabido, o decnio em questo marcava, muito a propsito, uma on-da europia e norte-americana de construo de museus de arte e

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  • guas: Arthur Danto. The transfigura-tion of the common place, New York:Harvard University Press, 1981; eHans Belting. Das Ende das Kunstges-chichte? Munique: Deutscher Kuns-tverlag, 1983.

    [3] E o artista prossegue: Comeceicomo um artista comercial e pretendoacabar como um artista de negcios.Depois de ter feito essa coisa chamadaarte,ou o que quer que seja isto,entreipara o ramo da arte de negcios. Euqueria ser um Homem de Negcios daArte ou um Artista dos Negcios. Serbom em negcios o tipo mais fasci-nante de arte; cf. Andy Warhol. Thephilosophy of Andy Warhol (from A to Band back again). San Diego: A HarvestBook, s.d., p. 92. O captulo Work,do qual se extraiu a citao acima,con-tm outras passagens no menos pro-vocantes: En-to, fui baleado emmeu escritrio: Andy Warhol Enter-prises. (...) Um entrevistador me fezvrias perguntas sobre como eu admi-nistrava meu escritrio e eu tenteiexplicar-lhe que no era eu, mas ele,realmente, que me administrava (id.ib.,p.91-92,passim).

    [4] No importa, no caso, se osdefensores de uma Arte promovidaao estgio da filosofia ou ao puroconceito estivessem no extremooposto do espectro ideolgico emrelao aos que propugnavam a recmconquistada comunidade global/lo-cal da cultura: ao libertar-se dos obje-tos a Arte no poderia firmar-secomo tal seno contra o pano defundo da cultura mas, para retor-nar vitoriosa a si mesma, nele que eladeveria sem cessar submergir.

    complexos culturais,e a novidade principal que esse surto construtivosinalizava (entre outros fatores que aqui no sero discutidos ou ape-nas indicados) era o reluzente ingresso da arte na esfera dos grandesnegcios do entretenimento cultural,sob os auspcios da arquitetura.

    Evidentemente, a onipresena que a cultura revelava na situaocontempornea era um fenmeno indito: no que concerne a suasimplicaes para o debate artstico, cumpre dizer que j no se tratavada clebre polaridade moderna entre arte e cultura, na qual os termosse constituam e vicejavam precisamente no movimento permanentede sua contradio, sem esconderem fascnio e repulso recprocos.Baudelaire aclamava o belo na bastardia das ruas porque era delas queo poeta retirava o supra-sumo da experincia e porque a matria maissublime da arte s se revelaria a ele mediante a imerso desabusada novulgar. Ora, o ambiente da cultura que se havia formado na Paris demeados do sculo XIX, de resto trazendo novos ingredientes esferapblica burguesa,no se legitimava socialmente sem esse seu outro:a bastardia e a vulgaridade das ruas.

    Bastardia, vulgaridade e bomia essa frmula modernasegundo a qual arte e cultura se contaminavam sem perderem suasjurisdies respectivas eram a um s tempo o subproduto da esferapblica burguesa e o que propriamente pressupunha o poder norma-tivo desta; eram o que lhe testemunhava a universalidade, mas que aomesmo tempo recomendava que esta deveria ser sempre repactuada,na exata medida em que a transgresso persistiria flanqueando-a meia luz,de maneira apenas suficiente para obter um reconhecimentotcito. A arte moderna, pelo menos desde Courbet, sempre soubeextrair seus resultados mais radicais dessa ambigidade da esferapblica burguesa haurindo nos materiais permissivos da vidapopular, que entretanto apareciam como que criptografados sob anova racionalidade tcnica a que os artistas haviam reduzido o estilo (aesse respeito, seria interessante investigar a presena latente da cul-tura visual dos almanaques populares e dos clichs de jornais satri-cos,digamos,na Olympia de Manet).Portanto,a idia da cultura comoinstncia de mediao entre a arte e o espao social, como uma mat-ria impura mas viva e indispensvel arte, no era, historicamente,um fenmeno novo. O que se via, pela primeira vez naqueles anos1980, isto sim,era a arte e a cultura irmanadas numa adeso recprocaperfeita,sem sobras algo como uma sntese conservadora,um pro-cesso que finalmente atingira seu absoluto ou,em outros termos,sua resoluo positiva.

    A proclamao que freqentemente se ouvia durante a dcada de1980, de que se alcanava uma nova e benfazeja era da cultura ou, con-forme o ponto de vista, uma Arte por fim emancipada de seus objetos ecom A capital4, sugeria que se colocava uma p de cal na duradoura

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    [5] Concordamos neste ponto com aargumentao de Yve-Alain Bois emPainting: The Task of Mourning(Painting as Model. Cambridge, Mas-sachusetts:MIT Press,1990).

    [6] Remeto o leitor, sobre a questodo advento contemporneo de com-plexos dispositivos de intermediaocultural,a Otlia Beatriz Fiori Arantes.Urbanismo em fim de linha e outros estu-dos sobre o colapso da modernidadearquitetnica. So Paulo: Editora daUniversidade de So Paulo, 1998, e,conforme vemos freqentemente ci-tado em Otlia,a Jeremy Rifkin.Lage delaccs la revolution de la nouvelle eco-nomie.Paris:La Decouverte,sine datum.

    [7] T.J. Clark, em seu ensaio In De-fense of Abstract Expressionism,assi-nala o desfibramento do pathos mo-derno da morte da arte num momentobem anterior a este que examinamos:avirada dos anos 50 para os 60 do sculoXX:No ser capaz de fazer com que ummomento prvio altamente realizadorse torne parte do passado no saberperd-lo,no passar pelo luto e,se pre-ciso for, desprezar esse momento significa para a arte,nas circunstnciasdo modernismo, mais ou menos omesmo que no ser capaz de produzirarte alguma. Isso porque desde queHegel formulou,nos idos da dcada de1820, a proposio fundamental domodernismo que a arte, conside-rada em sua mais nobre vocao, econtinua a ser para ns uma coisa dopassado a continuidade da artedepende de seu xito em tornar essamxima especfica e pontual. Ou seja,determinar o momento do seu ltimoflorescer em algum ponto do passadorecente e descobrir que dele restou osuficiente para que parea possvelempreender um trabalho irnico,melanclico ou decadente de continua-o (...). por isso que nosso fracassoem entender que Jackson Pollock e Clif-ford Still encerraram alguma coisa,ou aausncia de uma narrativa sobre o que,a nosso ver, eles estavam encerrando, muito mais do que uma crise da crticade arte ou da histria da arte. Significaque, para ns, a arte no mais umacoisa do passado;isto ,que no dispo-mos de uma imagem usvel do seu fim,numa poca e num lugar em que possa-mos nos imaginar vivendo, ainda quetalvez preferssemos no estar l(Clark, T. J. Modernismos/Ensaios sobrepoltica, histria e teoria da arte. Trad.Vera Pereira. So Paulo: CosacNaify,2006 [no prelo]).

    morte da arte, este leitmotiv moderno por excelncia, que se havia mos-trado to mais estimulante para a arte do sculo XX quanto mais parecerainfindvel aquela agonia e, aquela morte, sempre possvel de se adiarainda um pouco mais5.A despeito de tamanha euforia em face da procla-mada superao do historicismo e do sentimento de que doravante sevivia uma era ps,a arte tendo se espargido afinal num estado de cul-tura6,a questo persistiu pelos anos subseqentes.Mas algo nela haviamudado.A atribulada experincia moderna daquela morte sempre pror-rogada para o lance seguinte havia se banalizado e vulgarizado irreme-diavelmente;toda arte com alguma pretenso de elegncia herica mos-trava-se, na melhor das hipteses, um ersatz de alta cultura, umcomentrio afetadamente nostlgico da arte. Para outras correntes dodebate artstico, ela se havia decantado num ressentimento refinadocontra a arte, isto , bem entendido, na arte tal como esta se forjara nacultura ocidental era preciso ento punir os culpados pelos sculosde usurpao (a execrao da modernidade em nome de uma aviltadapureza das origens mostra o tanto de rancor que tal posio destilou) eprocurar desagravar a arte na vida onde ela tivesse sido denegada7.

    Para aqueles,entretanto,cautelosos diante da hiper-ideologizaodo debate em curso, o novo estado de cultura impunha um austeroesforo de compreenso.Como se disse h pouco,a questo da morteda arte no abandonara o cenrio, como queriam fazer crer os ps-modernismos.Muito ao contrrio,ela repunha-se inclemente luz dodia,por ironia como num didtico drama pico brechtiano incapaz deprovidenciar o desfecho esclarecido,porque surgia resolvida agora revelia da oniscincia crtica do narrador pico (ou espectador),sempathos; o teatro pico falava aborrecidamente do presente em ter-ceira pessoa, e levava o espectador contemporneo no atividade oua uma fulgurao crtica do pensamento, como queria Brecht, mas aoestarrecimento e a uma espcie de estase das idias. mais ou menosdeste ponto,eu creio,que se deve retomar o debate da arte e da culturainiciado nos anos 1980 (inclusive para inquirir tudo o que ento sedisse dos 1960), distantes como podemos hoje estar do sentimentoespetacular do fim dos tempos e do clima de arrivismo que marcou odecnio nos planos econmico, poltico e social.

    No se podia negar, em todo caso, que a palavra de ordem das van-guardas modernistas,de fundir a arte na vida,de algum modo se haviarealizado; naquele estgio em que o mundo se encontrava, um de-pois da arte, um presente sem cronometragem, respirava-se cultura ou Arte por toda parte.Tampouco se pode hoje negar que o reno-vado interesse dos anos 1980 pela pop era em grande parte uma auto-justificao do salve-se-quem-puder da nova montante neoliberal,cujas pardias de radicalidade pour pater le bourgeois (sintomatica-mente, uma espcie que h tempos havia sumido da cena histrica)

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  • [8] Devo o achado dessa expresso auma longa conversa que mantive como crtico Guy Brett, em 2004.

    [9] J no prefcio de seu livro O fimda histria da arte, uma reviso dez anosdepois, Hans Belting chama a atenopara esse fato o de que as exposi-es, mais do que os trabalhos de arteou as instituies marcariam deci-sivamente a fisionomia do meio dearte nos decnios finais do sculo XX(So Paulo: CosacNaify, 2006).

    disfaravam mal a satisfao (pequeno-burguesa) das classe mdiasurbanas do mundo industrializado com o bem estar dos novos tem-pos (a arte como life style).8

    Da parte dos que propugnaram a morte da arte como estgionecessrio para o advento da Arte, permanecer-se-ia a espera de que anotcia se visse confirmada na prtica, isto , que se mostrasse na ver-dade da prpria produo artstica. At segunda ordem, o que se pro-duziu at hoje em nome dessas idias foram tentativas de deslocar deuma inerme arte contempornea antigas premissas essencialistas,premissas que,estas sim,permanecem vivas (desta feita pressionandoda direo da filosofia), e que doravante se alojariam numa Teoria, toonisciente e imperialmente estabelecida quanto difcil de ser verifi-cada salvo nas formulaes dos prprios tericos. Ao mesmotempo, os idelogos da Arte acabaram por servir de mulo a todo tipode postulao narcsica do eu pessoal e idiossincrtico do Artista (oudo Curador),de sorte que se tornou difcil determinar se do puro con-ceito Arte que doravante se trata ou da idia do artista inflacionada(ou fetichizada) dimenso do conceito (de todo modo,pouco impor-tar decidir se alcanamos o reino da Arte ou da cultura em ambosos casos promove-se a mesma essencializao do mundo).

    Seja o que for, decorridos quase trinta anos, parece claro que ali sepreparava algo que, bem ou mal, poder-se-ia chamar de uma demo-cratizao cultural (ao menos nos termos da nova cultura que sepassava a produzir em escala planetria), algo que, no mnimo, haviaconseguido fazer parecer ridiculamente esnobe tudo o que menospre-zasse o apelo e vitalidade daquele fenmeno.Cumpre,portanto,admi-tir que o interesse dos anos 1980 pela pop continha uma centelha derevelao em meio a um punhado de mistificaes ideolgicas (noduvidemos de que a atitude essencialmente includente do novo cir-cuito artstico internacional se exercia nos quadros de uma re-hierar-quizao de poder em nvel mundial, segundo a qual centros de deci-so estrategicamente difusos continuavam a regrar a forma e aqualidade do aparecimento dos contextos perifricos nos eventos einstituies desse circuito).De fato,as novas massas que no curso dosdecnios subseqentes acorreram sucesso atordoante de eventosartsticos e s novas bienais inauguradas mundo afora9 demonstra-vam que o pblico da arte se havia alargado para muito alm das anti-gas classes mdias urbanas tangidas pela cultura universitria,e que omercado de produtos culturais se internacionalizava descanonizandofronteiras de bem estabelecidos plos hegemnicos (o que afinal,mais cedo ou mais tarde, no seria passvel de se tornar cultural?).

    Eis um fenmeno to intrigante quanto incontestvel, que nosdefronta s seguintes questes: de que mudanas profundas na arteesse novo pblico dava notcias? Em que medida a cultura pop que

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  • [10] Do vesturio propaganda, dasinalizao de trnsito ao mobiliriodas classes mdias e populares aoredor do mundo,da msica comercialjovem s formas sincopadas e elpti-cas da lngua falada pelas multidesns grandes cidades contemporneasno se havia decantado, afinal, algoda potica moderna da colagem e damontagem, dos procedimentos com-plementares da construo e des-construo propalados pelas van-guardas modernas? [esta formulaodeve muito aos insights sugestivos quedespertaram em mim conversas man-tidas com o crtico e historiador decinema Ismail Xavier].

    [11] A esfera pblica,na qual os inte-lectuais se moviam como os peixes nagua, tornou-se mais includente, ointercmbio mais intenso do que emqualquer poca anterior. (...) A utili-zao da internet simultaneamenteampliou e fragmentou os nexos decomunicao.Por isso a internet pro-duz por um lado um efeito subversivoem regimes que dispensam trata-mento autoritrio esfera pblica.Por outro lado, a interligao emredes horizontais e informalizadas decomunicao enfraquece ao mesmotempo as conquistas das esferaspblicas tradicionais...; cf. JrgenHabermas. O caos da esfera pbli-ca. Folha de S. Paulo, 13 de agosto de2006, p. 4 -5.

    [12] Nos termos da Teoria institu-cional de George Dickie, por exem-plo (cf. Art and Values/Themes in thePhilosophy of Art. Malden, Massachu-setts: Blackwell Publishers, 2001).

    se havia decantado no mundo globalizado no era, afinal, a almejadauniversalizao de um gosto moderno, finalmente apropriado e rein-vestido pela imaginao coletiva a modernidade, nestes termos,tendo auspiciado uma multicolorida (e no importa o quo problem-tica pudesse ser) cultura vernacular moderna?10 Como a nova situao uma era da imagem exponencialmente vivificada pela internet (eneste caso entenda-se tambm o texto como imagem) obrigava auma redefinio da noo clssica de um espao pblico da arte?11 Porque no conjecturar recusando as vises essencialistas e,no fim dascontas, historicistas do ps-modernismo que tal situao, em vezde constituir propriamente uma ruptura, era uma agudizao ourepotencializao de certos processos ensejados pela prpriamodernidade,dos quais no se chegaram a conhecer todas as possibi-lidades? Restaria saber (o que no tarefa deste texto) se aquele fen-meno punha a nu um processo mediante o qual a arte se reduzira a umaquesto institucional12, ou se, diferentemente, a forma e o lugar destahaviam mudado de modo to profundo na cultura que ela ainda no sedava a reconhecer embora provavelmente as condies de faz-lapermanecessem, de um modo ou de outro.

    II

    Neste ponto,vale a pena uma breve recapitulao de alguns aspec-tos relativos emergncia daquele novo sistema cultural nos anos1980, mesmo porque so eles que nos informam da transfiguraocontempornea no s do pblico da arte, mas da prpria esfera daarte. No se pode ignorar, na reordenao em larga escala do sistemacultural no Ocidente da qual as mudanas no campo da arte eramapenas uma faceta ,o efeito indireto que tiveram sobre ela as deman-das que provinham de regies at ento margem desse sistema e queagora pressionavam o mundo desenvolvido cobrando sua parte noprocesso da modernizao.Essas demandas chegavam de regies quenos decnios de 1980 e 1990 se emancipavam politicamente (no con-tinente africano), que reorganizavam sua vida poltica, econmica esocial depois de longos perodos sob ditaduras militares (na AmricaLatina e Central),ou,ainda,que,dirigidas por assim chamados gover-nos no-alinhados, empreendiam polticas agressivas de moderniza-o visando sua insero estratgica na economia mundial (ndia,Tai-wan, China, Coria).

    Decerto o rpido espraiamento mundial do multiculturalismodesempenhava papel importante no reconhecimento de um estatutopoltico e de uma nova representatividade na opinio pblica mundiala essas demandas produzidas no jogo econmico do capital, e nelefadadas a uma eterna desvantagem de posies; os pases em desen-

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    14_Sonia_p250a263 11/28/06 2:33 PM Page 255

  • volvimento alcanavam o centro do sistema cultural mundial (simbo-licamente, j que a presena fsica dessas regies se fazia sentir de hmuito no centros avanados, mas como figura de penria e sub-cida-dania,nas contnuas levas de emigrados formando ali a prova viva dasdisfunes da modernizao), e a prpria novidade da afirmao (eauto-compreenso) deles nesse sistema desnudava os dispositivos deum poder imperial. Tampouco se pode subestimar o quanto o multi-culturalismo teve parte na denncia (e na reviso) da rgida hierarquiade poder que conformou tal sistema,pelo menos desde que ele logrou,nas asas da hegemonia norte-americana, uma completa jurisdiointernacional, no perodo que se seguiu Segunda Grande Guerra. Eainda como contou na promoo dos direitos civis alargando emmuito a noo clssica de direito, at chegar aos direitos da subjetivi-dade de grupos marginalizados (de mulheres, negros, homosse-xuais, minorias tnicas) em diversas partes do mundo.

    Permanece a dvida,contudo,sobre se o discurso multiculturalista(talvez a contrapelo do esforo de muitos de seus tericos) no tersuprimido a complexidade e a diversidade histricas de um debate quej contava com uma longa lista de lutas polticas e sociais em sua folhade servio. A propsito, nunca demais lembrar o fato eloqente daorigem terica e acadmica desse discurso. A impresso que hoje setem que ele acabou por avocar a si o mrito de experimentos em dire-o a novas formas de expresso poltica que haviam brotado das maisdiversas trajetrias histricas, em pontos vrios do planeta, experi-mentos que de modo geral haviam frutificado como respostas aocolapso,desde o final da dcada de 1960,das formas polticas tradicio-nais at ento na base dos movimentos sociais. tempo de perguntar:1. sobre a homogeneizao ideolgica que fatalmente ocorreu a partirdo momento em que o multiculturalismo pareceu assomar como oporta-voz de todas as reivindicaes feitas em nome da diferena; 2.sobre o quanto o multiculturalismo, em seu modus operandi global,mimetizava os procedimentos de totalizao/fragmentao quedenunciava na modernidade, e alm disso, sobre como havia conve-nientemente negligenciado a crtica do processo de globalizao nointerior do qual ele prprio pudera se engendrar e, por fim, 3. sobre oquanto o multiculturalismo, ao almejar algo como uma comunidadeglobalizada transparente a si mesma, redimida na cultura finalmenteconquistada como tica privada, conteria, a despeito de si mesmo, aidia de tutela e infantilizao das massas.

    Sobre a pergunta de nmero 1, por exemplo, basta lembrar que olegado de experimentaes do movimento dos negros,das mulheres e dejovens remontava pelo menos aos ltimos anos da dcada de 1960 muito antes, portanto, que se ouvisse falar em multiculturalismo , esuas plataformas, diferentemente do que possa pensar o senso comum

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  • multiculturalista,ultrapassavam em muito a reivindicao da igualdadede direitos;traziam o dado novo e provocante de uma crtica implacvelda subjetividade burguesa e o convite a novas formas de sociabilidade.No Brasil,o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (populari-zado como MST), formado no final do decnio de 1970, um dessesexperimentos extraordinrios no movimento social contemporneo,surgido margem de partidos e instituies polticas tradicionais.

    Sem entrar na discusso sobre o quanto a organizao possa ter seenrijecido e perdido, em tempos recentes, muito de seu antigo vioexperimental,no resta dvida de que deixa na histria social contem-pornea ao lado de sua denncia severa da renitente injustia socialbrasileira formidveis experincias culturais de politizao da vidacotidiana, de educao popular e de emancipao de mulheres oriun-das das classes trabalhadoras.Valeria a pena tambm salientar,de pas-sagem,a renovao drstica que o MST trouxe, opinio pblica mun-dial, da imagem dos pobres brasileiros, que desde os anos 1980passavam a surgir na mdia como massas organizadas e auto-confian-tes,em nada semelhantes figura de vitimizao,estupidez e danaobblica do pobre diabo, to arraigada na imaginao nacional. Na novaimagem que a opinio pblica se via obrigada a digerir,era igualmenteimpressionante o fato de essas massas mostrarem-se capazes de umaracionalidade organizacional e institucional incomuns nas represen-taes da pobreza latino-americana.

    Por fim, a dvida sobre ser o multiculturalismo essencialmente aexigncia tica e moral do encontro do Outro (o que pressupe a dis-posio recproca para algum processo de mudana), ou um formid-vel passaporte ideolgico para a afirmao a qualquer preo de origense identidades (que,sendo sempre ideais,sublimam ou denegam o pre-sente que , por excelncia, o lugar do embate histrico com oOutro) mais um aspecto preocupante do problema.Em face dos tan-tos fundamentalismos tnicos, polticos e religiosos fermentados nocurso dos anos 1990 urgente reavaliar as estratgias no raro corpo-rativas e compensatrias que surgem como mulos do multicultura-lismo (estratgias dependentes, portanto, da maior ou menor capaci-dade dos indivduos de se organizarem em grupos de interesse epresso, que podem inclusive competir entre si na luta pela satisfaode seus interesses corporativos).

    III

    Voltemo-nos agora ao exame da (tambm problemtica) contri-buio do multiculturalismo no contexto do problema que interessamais diretamente a este texto: a reconfigurao da esfera da arte nosanos 1980. J nos referimos ao novo tipo de instituies artsticas e

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  • [13] A esse respeito, remeto o leitor adepoimento de Caetano Veloso,relembrando o processo de criao dacano Tropiclia, de 1967 (cujottulo lhe havia sido sugerido porHlio Oiticica): Com a mente numavelocidade estonteante, lembrei queCarmen Miranda rima com a banda(e eu j vinha fazia muito tempo pen-sando em bradar o nome ou brandir aimagem de Carmen Miranda), e ima-ginei colocar lado a lado imagens,idias e entidades reveladoras da tra-gicomdia Brasil, da aventura a umtempo frustra e reluzente de ser brasi-leiro (...). Decidi-me: Braslia, sem sernomeada, seria o centro da cano-monumento aberrante que eu ergue-ria nossa dor, nossa delcia e aonosso ridculo (...) Basta que se digaque essa cano (...) era o mais pertoque eu pudera chegar do que me foisugerido por Terra em Transe [o com-positor refere-se ao filme de GlauberRocha]. Cf.. Caetano Veloso. Verdadetropical. So Paulo: Companhia dasLetras,1997,p.184-187, passim.

    culturais que apareceu naquele perodo (as aspas servem para nos lem-brar o quanto o termo tem sua origem ligada tradio iluminista dosculo XVIII, modernidade burguesa, e sugerem sua provvel inade-quao para descrever os novos espaos). Museus de arte e espaosculturais flexveis, multiuso propiciavam uma intensa circulaode obras em nvel internacional,graas a uma bem azeitada poltica deexposies que pela primeira vez apresentavam em suas itinernciaspelos pases centrais (s mais tarde se estenderiam para outras gran-des capitais mundo afora) produes at ento impensveis nesse cir-cuito da Amrica Latina, logo mais do Oriente, da frica e da sia.

    O fenmeno se fazia acompanhar,ademais,de um aparato pesado detecnologias interativas e estratgias de gerenciamento institucional des-tinadas a criar a todo custo empatia entre os objetos de arte e o pblico,ou a despertar um intenso cinetismo entre ambos.A experincia artsticatornava-se,dessa maneira,uma espcie de prestao de servios,de sorteque era imprescindvel torn-la mensurvel para o pblico, process-lacomo informao,com o que se liquidava vorazmente a distncia queela viesse a instalar em torno de si como parte mesma de sua operaoconstitutiva, de sua prxis potica. Passados quase trs decnios, nodeixa de ser estimulante pensar que aquele florescimento indicava aentrada em cena de um novo pblico da arte, e mais de um novo eextraordinariamente abrangente espao pblico da arte.

    Mas, se a idia de uma arte vitoriosamente dissolvida na instnciada cultura estava na ordem do dia naquela dcada, improvvel que omeio de arte, com os olhos voltados pop, ignorasse o estoque explo-sivo de contradies ideolgicas que havia municiado essa idia naproduo artstica mais radical da dcada de 1960, e que instigaratanto a espcie de realismo maligno de Andy Warhol como a revoltaromntica de Guy Debord e dos situacionistas, para no mencionar otranse de deboche e fetichismo consumista vivido nos trabalhos deAntonio Dias do perodo ou ainda a hiperblica aventura dos tropica-listas brasileiros,de fuso de cultura de massa e tradies nacionais,daqual haviam resultado refinados e violentos constructos poticos, damais pura ambigidade ideolgica13. Que tipo de arte, portanto, nasentrelinhas se estava prescrevendo a um pblico que se queria poupardas penosas mediaes dos processos cognitivos, e que espaopblico era aquele que, em nome das novas parcerias globalizadas,demovia a presena de formaes histricas longamente decantadas,entre elas as formaes nacionais?

    D o que pensar o fato de que nos anos 80 do sculo XX o debate daarte tenha,em sua quase totalidade,como que sublimado a fascinantee problemtica dimenso cognitiva que a cultura de massa, a despeitode sua instrumentalidade,deveria revelar quando fosse voltada contrasi mesma (era esta a aposta da arte mais experimental dos anos 1960

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  • [14] A maior parte dos populismoshistricos que se conheceu at aquibem ou mal eram marcados por seuscompromissos de emancipao na-cional e envolviam alguma crenamstica de redeno coletiva. Da ocarter extravagante do neopopu-lismo global, pragmtico, confiantena eficcia imaginria de suas aes,visando o curto prazo, dirigindo-se acomunidades lbeis.

    reportemo-nos aos exemplos h pouco mencionados), e que, aocontrrio, a tenha saudado em sua factualidade, como uma benesse aque o progresso tecnolgico naturalmente conduzira. O moralismoimplcito na idia de uma comunidade da cultura sempre transparentea si mesma criava,enfim,entre seus membros,a idia de uma acessibi-lidade absoluta arte, com o que se sepultava qualquer possibilidadeda pergunta sobre o que tornava algo arte,que no seno a perguntasobre a linguagem sobre a forma, se me permitem.

    D o que pensar, igualmente, que essa discusso tenha permane-cido recalcada pelas duas dcadas subseqentes, de sorte que apenasna virada do novo milnio o discurso triunfalista dos anos 1980 quequis fazer crer na cultura como panacia da humanidade , princi-piava a ser colocado em xeque. O fato que na esteira da angelizaomulticulturalista da pop surgia e continua a prosperar uma novaespcie de populismo, desta feita extravagantemente14 global. Ende-rea-se de maneira difusa a todos os estratos sociais, assenta-se naapologia das novas formas de sociabilidade auspiciadas pela tecnolo-gia da informao (passa-se ao largo da pergunta sobre o teor de coer-cividade que possa impregnar esse trnsito de informaes), temgrande confiana no novo espao pblico descortinado pela mdia e praticado eis um dado inquietante por governos, corporaestransnacionais,por toda uma inescrutvel fantasmagoria de organiza-es no-governamentais capazes de atrair os interesses do grandecapital e que prosperaram como formas compensatrias em face dacapitulao contempornea de polticas pblicas.

    O populismo turbinado promete nada mais nada menos do que apromoo das massas (tambm das massas miserveis dos pasesperifricos industrializados) por graa e obra da cultura ou da Arte,oferecidas aos militantes nefitos como qualidade de vida ou pro-messa de uma vida subjetiva proteica e atraente,espcie de dispositivocompensatrio em face da decomposio social em curso.Nem toque-mos na questo mais candente de que o capital que hoje patrocina emgrande estilo a arte ou a cultura em iniciativas de envergadura e alcancetransnacional como bienais, festivais internacionais de arte e cul-tura, itinerncias de megaexposies e eventos culturais de todo tipo jamais poderia se dirigir diretamente ao mundo social, quandoento teria de se haver,no mais com militantes nefitos e bem inten-cionados, mas com massas enfurecidas, despolitizadas, imantadaspela violncia, pelo ressentimento, pela necessidade. A esse respeito,os ataques urbanos ocorridos entre maio e julho de 2006 na cidade deSo Paulo, incitados por organizaes criminosas de presidirioscomandando os eventos de dentro das cadeias (e contando com apoiono aparato jurdico,legislativo e administrativo do Estado,como tam-bm no meio empresarial), so um bom convite reflexo.

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    14_Sonia_p250a263 11/28/06 2:33 PM Page 259

  • IV

    Essa breve recapitulao do ltimo quarto do sculo XX reconsti-tui em linhas gerais o ambiente no qual o termo pop se viu presa deuma aguerrida batalha de reconfiguraes ideolgicas. Valer semprea pena interrogar enfatizemos sobre se, quela altura da dcadade 1980, o termo ainda preservava algo do poder de fogo que haviamarcado suas manifestaes vinte anos antes.Pois na dcada de 1960,ningum,no meio artstico e cultural,poderia deixar de se pronunciarem face de uma questo pop; a maneira como esta se impunha aodebate das idias advertia que entravam decisivamente em xequevenerveis instituies da sociedade burguesa entre elas nadamenos do que a noo de espao pblico. O reexame dessa noo setorna tanto mais urgente, nos dias de hoje, quanto mais ela vai sendodescartada e demonizada em nome da celebrao pastoral de umacomunidade global. A propsito, preocupante que pouco se critiqueseriamente o legado ideolgico da noo clssica de espao pblico;talcrtica, se, por certo, deve contabilizar seus fracassos, no pode oblite-rar o valor de transformao que ainda possam ter suas aspiraes nocumpridas. Ora, contra que universalidade burguesa se erguia, nadcada de 1980,aquele novo mundo da cultura que reivindicava suafiliao ao pop? No pouco convincente atribuir quela onda neo-pop o poder de destituir um suposto domnio da alta cultura emplena era de universalizao da cultura de massa, que no esquea-mos gestara suas prprias hierarquias e critrios de legitimao, eno interior da qual inclusive a alta cultura encontrava um lugar dehonra e novos pblicos? Que alta cultura seria essa, da qual, estra-nhamente, sumira o lastro de uma sociedade burguesa, de h muitopresente apenas nos velhos livros de histria?

    V

    Formulo a seguir buscando voltar contra o presente tal artilhariade questes alguns comentrios sobre o impasse em que se encon-tra, na situao contempornea, a exigncia de se pensar a arte. O sis-tema cultural que afluiu nos anos 1980, trazendo tona inmerosnovos protagonistas, por sua vez lanados a um novo e complexo jogode foras,atestava que no havia mais como contar satisfatoriamentea histria da arte. No apenas aquela que vinha se desdobrando nocurso dos trs decnios precedentes,mas toda a histria que estava noslivros; a histria da arte de que se dispunha at ento no Ocidentedemonstrava-se inservvel para explicar boa parte das manifestaesartsticas desde meados do sculo XX, e ideologicamente inepta para aexigncia contempornea de inquirir tantas histrias abortadas,tan-

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  • [15] A propsito de uma definiopossvel de ponto de vista da carn-cia, remeto o leitor descrio que ocineasta Rogrio Sganzerla, perten-cente gerao que se sucedeu docinema novo, d de seu filme Ban-dido da luz vermelha (1968): Fizum filme voluntariamente panflet-rio, potico, sensacionalista, selva-gem, mal comportado, cinematogr-fico, sanguinrio, pretensioso erevolucionrio. Os personagens des-se filme mgico e cafajeste so subli-mes e boais.Acima de tudo,a estupi-dez,a boalidade so dados polticosrevelando as leis secretas da alma e docorpo explorado, desesperado, servil,colonial e subdesenvolvido. Meuspersonagens so, todos eles, inutil-mente boais, alis como 80% docinema brasileiro (...).Assim,o Ban-dido da luz vermelha um persona-gem poltico medida que um boalineficaz, um rebelde impotente, umrecalcado infeliz que no conseguecanalizar suas energias vitais,In Arteem revista. So Paulo, n 1, jan-mar/1979, p. 19.

    tos modernismos, tantas experincias culturais que responderam demaneiras prprias e originais aos imperativos da modernizao masque naquela histria cannica constariam to-somente (se que de fatoconstariam) como manifestaes epigonais, retardatrias ou simples-mente como atvicos arcasmos regionais.Em segundo lugar,da crticaque naqueles anos se encetou, com maior ou menor profundidade, dahistria ocidental (na verdade iniciada no final da dcada de 1970) sur-gia a suspeita de que talvez a modernidade no fosse o destino univer-sal da humanidade, como parecia promanar daquela histria, e mais, apercepo de que a experincia esttica humana no se deixava aam-barcar no conceito de arte tal como se formara no Ocidente desde osculo XV, tampouco ser compreendida nos pressupostos de uma dis-ciplina,e menos ainda ser reduzida ao critrio dela.

    VI

    Para finalizar, duas questes. Em primeiro lugar cabe dizer queainda nos encontramos no fogo cruzado dessa discusso,e dela talvezsurjam novas possibilidades, complexas e multifocais, conformeesperamos, de se pensar a arte, como tambm de a arte pensar omundo. Dentre essas possibilidades, deve haver pelo menos uma quenos permita falar da pop do ponto de vista de uma experincia brasi-leira, ou que traga tona a relevncia de uma contribuio local para acompreenso da pop como um fenmeno internacional, em que locale global esto miscigenados sem que por isso se vejam destitudos dojogo de tenses mtuas que os alimenta. Em segundo lugar, cumprequestionar a cidadania euro-norte-americana que tacitamente se atri-buiu ao fenmeno pop, como se o ponto de vista da carncia15, isto ,aquele que se constitui privilegiadamente a partir dos pases perifri-cos (ou de experincias culturais perifricas,que podem inclusive for-mar-se nos centros) no fosse a outra face da moeda a dar sentido modernidade afluente dos pases centrais. Alis, preciso dizer queum esforo srio de compreenso no deixar de notar que as expe-rincias de fastio e acumulao que a arte pop pressupe podem ser,tambm,conforme o ponto de vista,de falta e vacuidade,de sorte que,seja nos pases centrais, seja nas regies perifricas, tais experinciastransitam livremente entre si,comutam-se mesmo uma na outra,acu-mulao e falta sendo, na verdade, nomes diferentes que se pode dar aum nico e mesmo processo.

    Uma esquemtica viso dualista durante muito tempo ops abso-lutamente centro e periferia,como se se tratasse de formaes distintasque,por vicissitudes histricas,tivessem alcanado nveis desiguais dedesenvolvimento.Essa abordagem,que nunca foi boa,revela-se inope-rante em face do carter difuso dos centros de poder na era globalizada.

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  • [16] Francisco de Oliveira. Crtica razo dualista. In: Crtica razodualista/O ornitorrinco. So Paulo:Boitempo, 2003, p. 32-33.

    Para contrapor-me a ela,recorro ao argumento de um notvel socilogobrasileiro, cuja obra conta entre aquelas que renovaram os estudossobre a expanso socioeconmica do capitalismo no Brasil:

    No plano terico, o conceito de subdesenvolvimento como uma formaohistrico-econmica singular, constituda polarmente em torno da oposioformal de um setor atrasado e um setor moderno, no se sustenta como sin-gularidade:esse tipo de dualidade encontrvel no apenas em quase todos ossistemas,como em quase todos os perodos.Por outro lado,a oposio na maio-ria dos casos to-somente formal: de fato, o processo real mostra uma sim-biose e uma organicidade,uma unidade de contrrios,em que o chamado mo-derno cresce e se alimenta da existncia do atrasado, se se quer manter aterminologia. O subdesenvolvimento pareceria a forma prpria de ser daseconomias pr-industriais penetradas pelo capitalismo, em trnsito, por-tanto,para as formas mais avanadas e sedimentadas deste; todavia,uma talpostulao esquece que o subdesenvolvimento precisamente uma produoda expanso do capitalismo. (...) em resumo, o subdesenvolvimento umaformao capitalista e no simplesmente histrica 16.

    Snia Salzstein professora no departamento de artes plsticas da ECA-USP.

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    Recebido para publicao em 04 de novembro de 2006.

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    76, novembro 2006pp. 251-262

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