cultura em ms numero04 2011

Upload: pilar-de-zayas-bernanos

Post on 18-Jul-2015

199 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

N 4 2011

BODOQUENA-PANTANAL

GEOPARK

A cultura abre a paisagemGILBERTO LUIZ ALVESEducao e arte

ARTESANATO O milagreda fibra

VIDEODANANova interface esttica

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

1

Novas vias para o desenvolvimento localQuem acompanha as discusses sobre paisagem cultural e o Geopark Bodoquena-Pantanal perceber a ligao entre essas propostas e a ideia de desenvolvimento sustentvel. Junto promoo e proteo de nosso patrimnio histrico, cientfico, cultural, est a qualidade de vida das pessoas que o cercam. Um sintoma dessa nova viso pode ser conferido no terceiro artigo da Portaria 127/2009 do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, que reconhece o carter dinmico da ao humana sobre o territrio e a incontornvel convivncia com transformaes inerentes ao desenvolvimento. A compreenso atual sabiamente percebe que no frutuoso separar a preservao da busca por melhores condies econmicas e sociais. Com essa poltica integrada em mente, o Governo do Estado de Mato Grosso do Sul tem apoiado fortemente o desenvolvimento do Geopark Bodoquena-Pantanal desde que ele ainda era um sonho, uma aspirao de unir interesses humanos de diversas esferas, at sua consolidao atual. Todos sabemos o quanto preciso, na contemporaneidade, buscar novas sadas para o desenvolvimento, combater cenrios de crise com criatividade, descobrir maneiras novas de valorizar nossas riquezas, enxergar as aes em suas consequncias a longo prazo. Por englobar essa srie de vantagens e cuidados e estar voltado para o desenvolvimento local aliado conservao ambiental, o Geopark Bodoquena-Pantanal, tema central desta edio da revista CULTURA EM MS, representa um novo conceito que agrega diversas possibilidades na construo de um Mato Grosso do Sul mais forte. Andr PuccinelliGovernador do Estado de Mato Grosso do Sul

Governador de Mato Grosso do Sul Andr Puccinelli Vice-governadora Simone Tebet

Presidente da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul Amrico Ferreira Calheiros Diretor Geral Jos Alberto Furlan Gerente de Patrimnio Histrico e Cultural Neusa Narico Arashiro Assessoria de Comunicao Gisele Colombo, Mrcio Breda e Rodrigo Ostemberg

Comisso editorial Cultura em MS Amrico Calheiros, Arlene Vilela, Edilson Aspet, Maria Christina Flix, Neusa Arashiro, Soraia Rodrigues e Marlia Leite

2011 - N.4 A revista Cultura em MS uma publicao do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul por meio da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul Memorial da Cultura e Cidadania - Av. Fernando Corra da Costa, 559 Tel.: (67) 3316 9155 - Campo Grande-MS Edio: Marlia Leite (DRT/SP 10.885-78) e Moema Vilela (DRT/MS 09-05) Reportagem e redao: Alexandre Maciel, Allison Ishy, Andr Mazini, Carol Alencar, Fabio Pellegrini, Hellen Camara, Las Camargo, Lu Tanno, Luiza Rosa, Mrcio Breda, Maria Jos Surita Pires de Almeida, Marlia Leite, Moema Vilela e Rozana Valentim Projeto grfico: Marlia Leite e Yara Medeiros; Edio de arte: Marina Arakaki, Marlia Leite, Lennon Godoi (pg. 44 a 48) e Jos Benetti (pg. 64 a 67); Editorao eletrnica: Marlia Leite e Marina Arakaki; Tratamento de imagens: Marina Arakaki e Antnio Marcos Gonalves Francisco Finalizao: BW3 Consultoria tcnica: Nivaldo Vitorino, Paulo Boggiani e Paulo Robson de Souza Reviso ortogrfica: Daniel Santos Amorin Fotografia: Daniel Reino, Dbora Bah, Everson Tavares, Fabio Pellegrini, Paulo Robson de Souza, Rodrigo Ostemberg e colaboradores Agradecimentos: Alexander Ona, Andr Rachid, Ana Cristina Andrade Maricato, ngelo Arruda, Aparecido Melchiades, Cludia Leito, Cludia Mller, Denise Parra, Desire Melo, der Jneo, Elis Regina Nogueira, Gabriela Ferrite, Gisele Colombo, Gilson Martins, Jean Stringheta, Lenilde Ramos, Leoneida Ferreira, Marcelo Brown, Mrcia Gomes, Maria Ins Amaral, Marlene Mouro, Patrcia Caldas, Paulo Caldas e Rubens Moraes da Costa Marques Impresso: Grfica Alvorada Verso eletrnica da revista no site: www.fundacaodecultura.ms.gov.brISSN: 2237-2652

Imagem de Capa: Morraria do Sul, distrito de Bodoquena, vista do Mirante. Foto de Paulo Robson de Souza.

Pginas de Abertura: Crianas da cidade de Bonito-MS, protagonistas do Projeto Arte Para Todos, durante o Festival de Inveno de Bonito. Foto de Rodrigo Ostemberg.

ltima Capa: Efeito de iluminao na fachada do Museu de Arte Contempornea de MS (Marco). Foto de Rodrigo Ostemberg.

2

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

SUMRIO4 JanelasMsica de MS abre novos espaos, investimentos movimentam cultura, portas so (re)abertas ao pblico, sagrado e profano em festas de MS, cuidando de nossas razes

9 10

EspelhoNossos artistas e seus talentos

EntrevistaGilberto Luiz Alves: a busca pela singularidade sul-mato-grossense

40 44 49 53 56 58 60

MsicaA cena musical de Dourados

Artes VisuaisExperimentaes em torno da arte e tecnologia

Cultura e EducaoA liberdade do aprender, o prazer da leitura

TeatroClio Adolfo: viajante da arte

ArtigoEconomia criativa, por Cludia Leito

DanaSemana pra Dana no palco de Trs Lagoas

CrnicaLino Villach: Aos ps do So Francisco

64 CapaPAISAGEM CULTURAL Cultura, economia, cincia e turismo se encontram no

Novas LinguagensA videodana rev conceitos, quebra barreiras

68 70 73 75 77

PersonagemIracema Sampaio: palavras de uma guerreira

Cultura e TurismoDo Toro Candil ao duelo de touros em Porto Murtinho

1821 22 22 23 25 25 32 32 33 34 37

Geopark Bodoquena-PantanalO conceito de paisagem na histria O esprito do lugar Aproximando cenrios A ideia do Geopark O Geopark Bodoquena-Pantanal Para trazer desenvolvimento Cincia e emancipao Pegadas de dinossauro so importante estmulo ao turismo Centro de referncia deve ser construdo em Bonito Desafios da gesto Cultura e desenvolvimento localGEOSSTIOS

ArtesanatoO milagre da fibra em Itaquira

Cultura PopularA saga da famlia Perez e a tradio circence

Sabor e CulturaIguarias da Regio Norte

28

Da preguia-gigante aos mortos na Guerra do ParaguaiENTREVISTAS

26

Maria Margareth Escobar Ribas Lima O geopark como forma de preservar o patrimnio Nilde Brun O geopark pode ser a alma do produto turstico local Amrico Calheiros O fato cultural mais importante a presena do ser humano e sua relao com o ambiente

34

37

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

3

AES DE DIFUSO, READEQUAO DE ESPAOS E INVESTIMENTOS EM PROJETOS MOVIMENTAM E ENRIQUECEM A CENA CULTURAL DO ESTADO.

Investimentos que movimentam a culturaNos ltimos quatro anos, o Fundo de Investimentos Culturais (FIC-MS), gerido pela Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul, investiu R$ 4 milhes e 200 mil em recursos prprios na concretizao de projetos artsticos executados pela comunidade sul-mato-grossense. Foram 37 projetos culturais contemplados em 2008, 29 em 2009, 27 em 2010 e 40 em 2011 um total de 133 trabalhos. Em 2011 o Fundo aplicou R$ 1 milho e duzentos mil em projetos selecionados e aprovados pelo Conselho Estadual de Cultura, aps anlise feita pela equipe tcnica do FIC-MS e da Procuradoria Jurdica da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul. O teatro sul-mato-grossense, rea de interesse do Fundo, recebeu R$ 641.002,32, que possibilitaram a realizao de peas, palestras e oficinas. Os recursos proporcionaram a realizao de quatro edies do Festival Nacional de Teatro de Campo Grande (FestCamp), do Cena do Mato (Bienal de Teatro) e da Semana Cultural - MS em Cena - 5 a Representao, alm de diversas apresentaes, principalmente no interior, onde h mais carncia de opes na rea. Os festivais tm se mostrado eventos que conseguem agregar mais pblico ao nosso teatro, alm de possibilitar o intercmbio entre a produo teatral de Mato Grosso do Sul e a de outros estados brasileiros e divulgar essa arte como uma forma de reflexo e entretenimento, afirma o presidente da Fundao de Cultura, Amrico Calheiros. O FIC-MS tambm financiou projetos em todo Mato Grosso do Sul ao longo dos ltimos quatro anos, como Bandas e Fanfarras, Festival do Sob, Salo de Artes Plsticas de Aquidauana, MS Street Dance Fest, Dana MS, Ciclo de Concertos, Frontera, Teatro Popular em Circuito, MS EnDana, Som da Fronteira, Papo de Rua e o 4 Fogo no Cerrado. Somente nos festivais realizados na capital e no interior o Fundo de Investimentos Culturais aplicou R$ 781.224,22, contemplando folclore, dana, artes visuais, culinria e msica. O resultado alcanado pelo FIC-MS nos ltimos quatro anos foi extremamente satisfatrio. Posso afirmar que a cena cultural do estado foi significativamente enriquecida com a execuo desses projetos que beneficiaram a capital e municpios do interior, diz Calheiros.Apresentao de teatro de rua no 2o FestCamp.

FIC-MS

conquistando novos espaosO projeto Kit de Difuso Musical, desenvolvido pelo Governo do Estado por meio da Fundao de Cultura para fortalecer e divulgar a msica sul-mato-grossense dos mais variados gneros, chegou terceira edio em setembro, celebrando o trabalho de cinquenta artistas regionais. Sero distribudos 1.500 kits para rdios, jornais e fundaes de cultura do estado, reduzindo a distncia entre estes, os msicos e os ouvintes. Cada um composto por dois CDs e um livreto. No primeiro disco esto 100 msicas. No segundo, informaes completas e imagens dos msicos. J o livreto rene release resumido, foto, ficha tcnica das msicas e contato dos participantes. Alm de divulgar em nosso estado, enviaremos o Kit de Difuso Musical para rdios educativas, universitrias e comunitrias espalhadas pelo Brasil, procurando assim conquistar novos espaos para os diversos gneros musicais produzidos em Mato Grosso do Sul e fomentando a economia criativa, explica Amrico Calheiros, presidente da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul. O projeto j contou com a participao de 175 artistas regionais. A ideia promover a circulao dos produtos musicais sul-matogrossenses, ampliando o acesso da populao do estado e do pas ao que se produz em Mato Grosso do Sul, e ao mesmo tempo apoiar os msicos, instrumentistas, intrpretes e compositores profissionais. Ao registrar o mosaico musical local, o projeto contribui ainda para a preservao da memria artstica e cultural e da prpria histria de vida cantada pelos artistas. Atuando na difuso musical, o projeto tambm fomentar a cadeia produtiva da msica ao possibilitar o reconhecimento dos artistas. (MB)Confira a relao de msicos que participam da 3 edio do Kit de Difuso Musical da Fundao de Cultura: Campo Grande: Alcir Rodrigues, Alex Silva e Osiel, Artur Felipe, Banda U.S.K, Banda Zuka, Bizarros, Carlo e Cleonir - Duo Pantaneiro, Carlos e Ruan, Castelo, Chico Simo, Curimba, Dimitri Pellz, Dombrs, Flvio Otoni, Grupo Acaba, Grupo Agarra, Grupo Pantaneiro, Grupo Som do Mato, Grupo Trembo, Guga Borba, Higor Vasconcelos, Jonavo & Barulho Zen, Lao de Ouro, Louva Dub, Luis Fernando e Z Miguel, Marcos Assuno, Mari Depieri, Max Moura e Cristiano, Nillo di Moraes, Nino e Nara Layde, Paula Mattos, Paulo Csar e Renan, Raffa Marin, Robson & Juliano, Rodrigo & Thayanne, Sarravulho, Silmara e Manu, Tangar e Z Viola, Thiago e Donizeti, Thiago & Graciano, Vandir Barreto e Viviane Nunes.DANIEL REINO

Msica de MS

Interior: Giani Torres (Dourados), Izabella Costa (So Gabriel do Oeste), Paulo & Miguel (Dourados), Os Urutaus (Rio Brilhante), Osmar da Gaita (Jardim), Rafaell S (Itapor), Rosy Firmo e Jorge (Jardim) e Surfistas de Trem (Ponta Por).

4

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

DANIEL REINO

Portas (re)abertas ao pblico

A

FOTOS: DANIEL REINO

A cultura sul-mato-grossense possui muitas moradas. Duas delas, dentre as principais, receberam este ano melhorias e novo visual. O Centro Cultural Jos Octvio Guizzo e o Museu da Imagem e do Som (MIS de MS), na capital, passaram por reformas e reabriram suas portas para possibilitar mais alternativas a agentes culturais e ao grande pblico. Primeiro ponto cultural do governo de Mato Grosso do Sul, o Centro Cultural foi reinaugurado em outubro deste ano, aps uma reforma que comeou em junho de 2010. A revitalizao melhorou a segurana e a qualidade tcnica tanto no teatro quanto nos demais espaos utilizados pelos artistas e espectadores. O projeto priorizou a acessibilidade aos portadores de necessidades especiais com a reforma e manuteno do elevador de acesso ao teatro, adaptao dos banheiros e instalao da passarela que liga o Centro Cultural Fundao de Cultura. O Teatro Aracy Balabanian foi beneficiado com a instalao de um novo aparelho central de ar-condicionado. As poltronas receberam manuteno, assim como o carpete que reveste as paredes e o cho. O teatro conta tambm com novo cortinado e novas mesas de som. A Sala Rubens Corra recebeu climatizao e teve suas cadeiras reformadas, estando apta para receber novamente o Cinema d(e) Horror, o Cine Brasil e o Cineclube, alm de novos projetos audiovisuais, palestras e workshops. Foram investidos R$ 415.561,00 na reforma do Centro Cultural Jos Octvio Guizzo, permitindo a conservao e modernizao desse espao referencial das artes sul-mato-grossenses. Localizado na rua 26 de Agosto, antiga rua Velha, considerada a primeira rua de Campo Grande, o Centro Cultural de Mato Grosso do Sul foi fundado por meio de decreto do governador Wilson Barbosa Martins em 11 de outubro de 1984. Segundo Idara Duncan, foi de grande importncia o empenho de Nelly Martins, artista plstica e poca primeira-dama do estado, no sentido de materializar esse espao.

O terreno abrigou a antiga usina eltrica, fundada em 1919, que deu lugar em seguida ao prdio do Frum da Comarca de Campo Grande, construdo na dcada de 1960. Na dcada de 1980 o frum foi transferido para o edifcio onde funcionavam as reparties pblicas do estado, na Avenida Fernando Corra da Costa (hoje Memorial da Cultura Apolnio de Carvalho), que, por sua vez, foram transferidas para o re-

PONTO REFERENCIAL DAS ARTES NO ESTADO, O CENTRO CULTURAL REABRIU SUAS PORTAS OFERECENDO MAIS SEGURANA E QUALIDADE TCNICA EM SEUS ESPAOS.Ao alto, fachada do Centro Cultural e Teatro Aracy Balabanian. Abaixo, hall de entrada com painel de Jos Octvio Guizzo em primeiro plano. Ao lado, rampa de acesso ao prdio do Memorial da Cultura.

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

5

Alm da melhor conservao do acervo, a reestruturao do espao fsico permite ao MIS oferecer programao diversificada ao pblico. Acima, o dia da reinaugurao. Ao lado, exposio da Cia. Matte Larangeira.

cm-construdo Parque dos Poderes. Ento, aproveitando a edificao do antigo frum, foi fundado o Centro Cultural de Mato Grosso do Sul. A denominao Centro Cultural Jos Octvio Guizzo veio em decreto de 1989, homenageando o advogado, historiador, estudioso do folclore, cineasta, estimulador de talentos, produtor cultural, msico, poeta e ex-presidente da Fundao de Cultura, falecido no dia 20 de novembro do mesmo ano. Houve tambm em 1989 uma reforma e a construo do anexo com o teatro. O Centro abriga salas com nomes de personalidades relacionadas cultura, como Teatro Aracy

Balabanian, Sala Rubens Corra, Sala Conceio Ferreira, Galerias Wega Nery e Ignez Corra da Costa. Funcionou ali a Biblioteca Isaas Paim, atualmente instalada no Memorial da Cultura Apolnio de Carvalho, a Pinacoteca Estadual que deu origem ao Museu de Arte Contempornea (Marco) e a Filmoteca, que funciona hoje no Museu da Imagem e do Som. E, tratando-se do MIS de MS, o acervo audiovisual mantido pela Fundao de Cultura do estado est mais bem protegido aps as reformas que tambm mudaram o visual e melhoraram o atendimento do museu. Localizado no terceiro andar do Memorial da Cultura e Cidadania, na capital, o MIS teve seu espao fsico reestruturado por meio de dois projetos: Adequao das reas de Salvaguarda do Acervo e Implementao da Sala de Projeo, ambos realizados com o apoio do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e contrapartida do governo estadual. Para isso, foram investidos mais de R$ 300 mil. O MIS tem por finalidade preservar os registros que compem a memria audiovisual sul-mato-grossense, efetuando a salvaguarda dos bens culturais que formam a identidade scio-histrica do estado. O acervo, formado a partir de doaes particulares e institucionais, composto por um rico material que contempla categorias como fotografia, vinil, CD, VHS, DVD, pelcula, livro, catlogo e objeto. Desde sua criao, o museu desenvolve aes para formao e a difuso de conhecimento e da cultura no estado, oferecendo comunidade uma programao diversificada, que compreende palestras, oficinas, cursos, seminrios, mostras de cinema e exposies. Em 2007 e 2010, o MIS foi contemplado pelo Edital de Modernizao de Museus, elaborado pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan). Assim, recebeu grande parte do apoio financeiro desse edital, aplicado no s na instalao e climatizao do museu no Memorial da Cultura, mas tambm na instalao de arquivos deslizantes para a devida adequao das reas de salvaguarda do acervo e na implementao da sala de projeo. O governo estadual investiu tambm em outras necessidades e na criao da nova sala de exposio, explica Rodolfo Ikeda, coordenador do MIS. (Mrcio Breda)

Memria viva de um astroUm dos grandes nomes do cinema brasileiro, David Cardoso natural de Maracaju e, portanto, um dos cones da cultura sulmato-grossense. Por seus mritos, tanto como diretor, produtor, roteirista e ator, desde 2009 a Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul mantm aberta ao pblico a Sala David Cardoso, no Memorial da Cultura eDANIEL REINO

Cidadania, com o objetivo de cultuar e difundir o conjunto de sua obra. A sala abriga materiais que retratam as obras produzidas ao longo da carreira, assim como objetos pessoais e profissionais. Para Caciano Lima, coordenador da Sala David Cardoso, cerca de 1.500 pessoas fizeram visitas orientadas ao local somente neste ano, incluindo acadmicos, graas parceria com o Laboratrio de Antropologia Visual Alma do Brasil (Lavalma) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, participando de debates sobre produo cinematogrfica e assistindo a exibies de filmes, inclusive com a presena do prprio homenageado. Uma sala de memria que tem o prazer de ter o seu homenageado vivo! Um acervo que no para de crescer e alimentar as ideias da Sala. Para o ano que vem, vrias universidades do interior querem participar desses debates e exibies, e isso uma dinmica cultural que esse projeto de salvaguarda permite, explica Caciano. As visitas orientadas devem ser agendadas pelo fone (67) 3316-9154.

6

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

FOTOS: DANIEL REINO

E

ManiFE staesEm A peste, de Albert Camus, os personagens da feia, neutra e sem alma cidade de Oran no refletem. Segundo o narrador, seus habitantes trabalham para enriquecer e a lgica capitalista predomina, engendrando a vida de seus cidados. Dedicados a criar hbitos, suas vidas e amores so submetidos pressa, rotina e ao instinto. Ainda revisitando Camus, uma proposta antropolgica curiosa de leitura das cidades:Uma forma cmoda de se travar conhecimento com uma cidade procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre (A peste).

Culturais e Religiosas de MSpois no espao da f que respondemos s perguntas de onde viemos e como vamos. Tambm a crena em uma tradio proveniente de um passado imemorial ou em um mito fundacional de nossas identidades est nos domnios da f. J o amor, o amor terra propcia para o entrelaamento, o nascimento e a festa. A montagem de festas populares pressupe um trabalho comunal em que os atores sociais so os protagonistas de rituais que se opem ao seu cotidiano no palco da plis, mas que transmitem suas lembranas e reafirmam suas identidades. Partindo desse princpio, as festas populares religiosas e folguedos folclricos tm muito a dizer sobre as comunidades em que se realizam como local de pertencimento identitrio, preservando aspectos de sua cultura, memria, sentimento, lugar e tradio. E para aqueles que vivenciam sua representao de mundo, ou parte dela, por intermdio de imagens, sejam elas fotografia, cinema ou vdeo, o mapeamento das manifestaes festivas religiosas e culturais de Mato Grosso do Sul em uma srie de documentrios uma forma de registro de nossa memria compartilhada no tempo. A primeira festa gravada na ntegra foi a de Nossa Senhora dos Navegantes em Bataguassu, em agosto deste ano. Composta de vrios eventos que passeiam entre o sagrado e o profano, como bailes, missas, churrasco e quermesse, na travessia do lago da Usina Srgio Motta que o sagrado se nos mostra mais revelador. Na belssima procisso fluvial pelo Canal da Santa, o caminho das guas rumo missa campal na cidade de Epitcio-SP se traduz em duas horas de teros, louvao e ladainhas. Este primeiro registro imagtico de nossa tradio o resultado de uma iniciativa da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul em parceria com a TV Brasil Pantanal, no qual esto previstas 16 edies em vdeo das manifestaes populares festivas mais relevantes de nosso patrimnio histrico imaterial.FOTOS: GABRIEL SANTOS

FESTAS ESTIMADAS:

Se a liberdade potica me permitisse, a esse recorte acrescentaria que outra maneira plausvel de se conhecer uma cidade perceber como se congraam e confraternizam seus indivduos. Questes fundamentais de f esto ligadas ao modo como vivemos e como pretendemos morrer,

Folia de Reis em Bodoquena Folia de Reis em Trs Lagoas Festa do Padroeiro So Paulo Festa da Colheita em Maracaju Folia dos Malaquias, distritoem Ivinhema

Vila Santa Tereza, no Municpio de Figueiro Festa do Divino em Coxim Festa de So Joo da Comunidade Quilombola So Joo Batista em Campo Grande Banho de So Joo em Corumb Festa de Nossa Senhora do Carmo em Coimbra Dia de So Cristvo em Dourados Festa do Santo Fujo em Costa Rica Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Bataguassu Festa do Bon Odori em Campo Grande Festa da Semana Farroupilha em Chapado do Sul Festa de Nossa dos Remdios em Ladrio Festa de Nossa Senhora de Caacup em Porto Murtinho e Ponta Por

POR LU TANNOPRODUTORA DE TV

No caminho das guas, o momento mais emblemtico da Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Bataguassu.

2

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

7

Educao patrimonialAs conquistas cientficas alcanadas pela pesquisa arqueolgica e a preservao de todo o patrimnio cultural e histrico do estado so os temas das prximas oficinas a serem desenvolvidas por meio do Projeto de Educao Patrimonial da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul. Desde o fim de agosto, quando foi realizado o 1 Simpsio Estadual de Educao Patrimonial, a gerncia de Patrimnio Histrico e Cultural da FCMS realiza oficinas na capital e nos municpios do interior para identificar registros e resgatar valores culturais de Mato Grosso do Sul. Imprescindvel para a adequada proteo do patrimnio cultural das pequenas comunidades, o projeto atua em um processo de conscientizao, por meio de atividades escolares de preservao dos marcos e manifestaes culturais, da definio de conceitos, do esclarecimento de dvidas, da divulgao e da apresentao dos resultados dos trabalhos e, o mais importante, dividindo responsabilidades. S se ama aquilo que se conhece e se fundamenta na metodologia cientfica da histria oral. O projeto ressalta a importncia do conhecimento do passado para se entender o presente e o registro para o futuro. No devemos perder os elos da nossa histria. A preservao uma questo de educao, explica o prof. Amrico Calheiros, presidente da Fundao de Cultura de Mato Grosso do Sul. De acordo com a professora Maria Christina Flix, coordenadora do projeto, este ano as ofici-

Cuidando de nossas razesnas se desenvolveram dentro do tema Olhares sobre Mato Grosso do Sul imagens e palavras, dando enfoque a autores regionais, identidade dos municpios e ao patrimnio cultural de pequenas comunidades. Uma dessas palestras teve como tema a Comunidade Quilombola So Benedito, de Campo Grande. s novas geraes foi proposta uma motivao maior para enxergar a identidade negra como motivo de autoafirmao, autovalorao e orgulho pela contribuio que o grupo social exerce na construo da sociedade brasileira, principalmente como instrumento para a reivindicao dos direitos historicamente negados. Assim como em diversas palestras pelo interior, o Projeto de Educao Patrimonial objetivou nesse debate reforar a identidade de alunos oriundos das comunidades remanescentes de quilombos e a construo e a reconstruo da histria local, aliando o passado s perspectivas positivas no presente. O Projeto Educao Patrimonial pretende fortalecer o patrimnio histrico de Mato Grosso do Sul, dando oportunidade de discutir e aperfeioar estas questes e promovendo, por meio da educao, da conscientizao e da instruo, uma nova gerao com uma percepo mais aguada, crtica e carinhosa com tudo aquilo que faz parte da sua prpria histria, tratando-se de bens materiais ou imateriais, analisa a professora Maria Christina Flix. O ciclo de palestras do projeto continua at o final de 2011. O patrimnio cultural ser discutido pelo arquiteto Rubens Moraes da Costa Marques e pela professora e pesquisadora do folclore de Mato Grosso do Sul Marlei Sigrist. J o patrimnio arqueolgico do estado ser tema de oficina dos arquelogos e professores Gilson Rodolfo Martins, Emlia Mariko Kashimoto e Divaldo Rocha Sampaio. O projeto tambm fechar 2011 com o lanamento de um livro sobre a culinria de Mato Grosso do Sul, tema de palestras e oficinas no ano passado, e uma exposio de banners com os resultados do projeto neste ano. Todas as atividades acontecem no Memorial da Cultura e Cidadania, na capital, e tm entrada franca. (Mrcio Breda)

Palestras, oficinas, atividades educativas: aes a favor do patrimnio histrico de MS.

8

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

o que sou, o que me contmMeu primeiro contato com fotografia aconteceu por intermdio do meu irmo mais velho, que revelava seus filmes preto e branco em um improvisado laboratrio domstico. Conheci a fotografia colorida na dcada de 1980 e, posteriormente, servi-me da cor para fotografar o Pantanal. A intimidade com Manoel de Barros e sua obra (ramos vizinhos em Campo Grande) me levou a produzir vasto material sobre a temtica pantaneira, razo pela qual por bom tempo, fora do estado do MS, me tornei conhecido como o fotgrafo do Pantanal. A praticidade de trabalhar com a cor foi permeada por dificuldades com o preto e branco. Aps inmeras tentativas frustradas de dominar essa tcnica do P&B, o encontro com o fotgrafo gacho Leopoldo Plentz foi decisivo para compreend-la e aperfeio-la. Foi nos anos 1990, em Londres, que tive acesso a cerca de 200 originais da obra do fotgrafo Henri CartierBresson. O contedo assimilado a partir dessa experincia se tornou elemento essencial para a formao do meu olhar. Por volta de 1997 renunciei aos trabalhos comerciais e parti para os ensaios de carter documental. As duas sries, Carvoeiros no MS e Curtume no Marrocos, remetem ao universo documentado por Sebastio Salgado. Sua brilhante trajetria me serviu de referncia, estmulo e coragem. Ele era economista quando deixou a profisso para se tornar fotgrafo; eu, estudante do quinto ano de medicina, abandonei a estvel carreira de mdico em troca da instvel vida do fotgrafo freelancer. Hoje, meu olhar direcionado a outros temas, cuja natureza no tem relao com o universo do Salgado. Carrego influncias de minhas vivncias, investigaes fotogrficas e de minha prpria necessidade de expresso. Optei pelos ensaios documentais por acreditar que atravs desse caminho o fotgrafo tem possibilidades de expressar sua ideologia e anseios. MARCELO BUAINAIN fotgrafo Fiquei cego quando era criana e logo passei a desenvolver uma audio muito apurada. A msica surgiu em minha vida to espontaneamente quanto a nascente de um rio. Alis, impossvel descrever com palavras a relao que tenho com ela. muito mais do que um simples instrumento de trabalho, preenche todas as lacunas da alma, os espaos do meu corao. O sonho de ser violinista foi infinitamente maior do que as enormes barreiras enfrentadas por mim para chegar at aqui. E foram centenas, inmeras. A primeira foi encontrar um professor disposto a dar aulas a um garoto cego. Precisei esperar at os 12 anos e ento viajei para onde ele morava, para ir ao seu encontro, deslocando-me do Amap, onde vivia com a famlia, rumo ao Par. Em pouco tempo, aquele professor ensinou-me tudo o que sabia. Com menos de 45 dias eu j interpretava 457 msicas sacras, alm de outros gneros. Nunca parei de estudar. J toquei ao lado de grandes nomes, como o maior intrprete de Bach de todos os tempos, o pianista Joo Carlos Martins. Hoje vivo em Campo Grande e sou feliz por ter ao meu lado minha famlia e pessoas que fazem parte de minha histria de sucesso, como o maestro Eduardo Martinelli. Sou um sul-mato-grossense de corao e agradeo a todos desta terra pelo reconhecimento que venho recebendo. RITTLHER MARTINS violinistaEVERSON TAVARES

MARCELO BUAINAIN

Nasci em So Paulo, na Lapa, com estardalhao. De nascimento trouxe o nome Jos Ronald Gonalves Rosa Junior. Cresci com lpis, tinta e outras coisas sempre mo. Consegui unir minha paixo por artes veterinria. Um dia me disseram que no calendrio maia meu selo galctico era o Terra Eltrica. Me descreve bem. Desde que me recordo, estou no movimento pelo planeta. Sou irrequieto. Tenho inspirao e ideias no meio do sono, o que me leva a pensar que minha cabea no para. E nesse movimento eltrico da Terra, fui parar no Pantanal em 1987, como integrante da equipe que iria desenvolver o primeiro projeto de ecoturismo no Pantanal, o que viria a se tornar hoje o Refgio Ecolgico Caiman. Foi paixo. Virei observador de aves, cavaleiro, amigo dos campeiros, cantor de fogueira. Agora minha relao com o Pantanal j era amor. Mas eu no aguentava mais turistas e suas malas extraviadas. Pedi para sair. E fui cair em Bonito. At engajar-me com a ONG Brazil Bonito, onde estou. Cabe dizer que nunca parei de desenhar ou pintar. Hoje me dedico ao problema do lixo na natureza. Luto para reduzir esse problema nesse cantinho de paraso que Bonito. Educao Ambiental ainda faz parte de minha vida e meus desenhos servem para propsitos que julgo nobres. Estou recentemente s voltas com a criao de um ponto de cultura em Bonito, voltado para filmes de animao. E a garotada j est fazendo arte. No entendo a vida sem ela. Desenho, pinto e canto para mim. E estou aqui para servir. RONALD ROSA mdico veterinrio e educador ambiental

Incentivada por meu pai, cheguei a Campo Grande aos 17 anos de idade para cursar odontologia. Depois de formada, sempre estive engajada em aes pela valorizao da minha profisso. A oportunidade de montar um museu odontolgico para um congresso foi o ponto de partida para a preservao da memria de nossos pioneiros. Lembro-me com carinho das visitas e entrevistas feitas aos dentistas mais antigos. Aprendendo sobre o passado e saboreando os quitutes oferecidos, fiz grandes amizades. Assim surgiu meu primeiro livro, em 2008: Histria de pioneiros odontologia em Mato Grosso do Sul, escrito em parceria com minha colega Nildes Prieto. O segundo, intitulado Haisha, foi escrito para homenagear os dentistas nikkeis no ano do centenrio da imigrao japonesa para o Brasil. Atualmente estou concluindo minha terceira obra, com histrias de imigrantes que vieram a Mato Grosso do Sul provenientes da provncia de Okinawa, no Japo. Concludo esse trabalho, seguirei divulgando a rea na qual atuo e que, embora pouco conhecida, traz muitos benefcios a ortopedia funcional dos maxilares. Ainda estranho um pouco quando as pessoas me chamam de escritora, porque no se trata de minha especialidade. Porm, gosto de passar as minhas pesquisas para o papel. EDNA YOSHIKO IDE KOHATSU cirurgi-dentistaEVERSON TAVARES

FABIO PELLEGRINI

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

9

ENTREVISTA

GILBERTO LUIZ ALVES

Entre a educao e as artes

a busca pela singularidade sul-mato-grossenseMAIS DE 450 OBRAS DE ARTE, UMA BIBLIOTECA REFERENCIAL NA REA DE EDUCAO, PROFESSOR E AUTOR COM TTULOS RECONHECIDOS EM NVEL NACIONAL, GILBERTO LUIZ ALVES UM PESQUISADOR INCANSVEL. PAULISTA DE NASCIMENTO, ADOTOU O ESTADO QUANDO AQUI CHEGOU, NA DCADA DE 1970. GRADUADO EM PEDAGOGIA, COM PS-DOUTORADO EM FILOSOFIA E HISTRIA DA EDUCAO, ALM DA ATUAO NA REA ACADMICA, DEDICA HOJE GRANDE PARTE DE SEU TEMPO A ESTUDOS DE TEMTICAS REGIONAIS QUE LEVEM COMPREENSO DA SINGULARIDADE CULTURAL SUL-MATO-GROSSENSE. Professor e pesquisador, colecionador de pesquisador, artes, estudioso da cultura. Qual sua vocao maior? impossvel dissociar esses aspectos. Eles esto indissoluvelmente entrelaados em minha vida. Sempre me identifiquei com o trabalho docente, mas, desde minha poca de graduao, na Faculdade de Cincias e Letras de So Jos do Rio Preto [SP], hoje integrante da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho [UNESP], comecei a sentir que, sem a pesquisa, o ensino no tem vida. Voc precisa transmitir conhecimentos que acredita sejam verdadeiros. O contedo didtico no pode ser um enlatado, extrado do livro da moda e despejado sem emoo e envolvimento na sala de aula. A busca da verdade, portanto, foi algo que deu sentido no s minha atividade de pesquisa, mas tambm de ensino. Da, tambm, a motivao para entender a minha rea, a educao, e o espao onde passei a viver: Mato Grosso e, depois da diviso do estado, Mato Grosso do Sul. No processo, formei uma boa biblioteca, povoada de livros regionais, histricos, educacionais e clssicos. Ela se tornou um instrumento fundamental de trabalho e, revisitando-a cotidianamente, intensifiquei o agradvel vcio da leitura. A coleo de artes plsticas comeou como um apndice, em 1974. Mas no comprei o primeiro leo sobre tela pensando em uslo como decorao. Ele me falava das relaes sociais e permitia, como um livro, que eu compreendesse a realidade humana. Aprofundei, em paralelo, estudos sobre esttica e, quanto mais estudava, mais me distanciava das interpretaes dominantes sobre a cultura regional. As ideias correntes ainda fluem, sobretudo, do senso comum. So apressadas e, muitas vezes, no resistem ao crivo da crtica cientfica. Talvez seja por isso que, mais recentemente, tenho dado relevo investigao de temticas ligadas nossa singularidade cultural. Por enquanto, os focos de anlise esto voltados para as artes plsticas e ao artesanato. Assim, impossvel falar de um aspecto que se sobreponha aos demais. Tenho muito prazer quando exero a atividade de ensino, quando realizo pesquisa ou quando adquiro uma nova e expressiva obra de arte. Contudo, no por prazer, mas por necessidade social, hoje atribuo prioridade ao trabalho de formao cultural. Como cidado, a ele pretendo consagrar um pouco mais de meu tempo nos prximos anos.

Entrevista a Marlia Leite, com fotos de Dbora Bah. Reproduo de obras: Marian Jan Chudechi Jr.

10

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

Quando o senhor veio para Mato Grosso do Sul e o que o trouxe para esta regio? Em 1969 conclu o curso de Pedagogia. Na poca esse curso assegurava uma rica formao em cincias humanas. A Reforma Universitria de 1968 ainda no o mutilara a partir de uma concepo estreita e burocrtica do trabalho didtico. Na faculdade, um grupo de estudantes pensava em sair de So Paulo, por fora da saturao do mercado de trabalho, e exercer o magistrio em outros estados vizinhos. Eu estava com um grupo de recm-formados que viera sondar possibilidades de trabalho em Mato Grosso. Chegamos pelo sul. Em Dourados, o delegado regional de ensino me convidou para ser diretor e implantar o Centro Educacional de Ponta Por. Os centros educacionais eram angulares na poltica educacional do primeiro governo de Pedro Pedrossian. Tinham como novidade o fato de serem escolas integradas, nas quais a educao infantil e o ensino fundamental se desenvolviam numa mesma unidade escolar. Os centros maiores ofereciam inclusive o ensino mdio. Aceitei o convite e trouxe mais outra colega que se formara comigo em So Jos do Rio Preto, Wanyr Scamardi, para exercer a funo de supervisora escolar. Juntamo-nos a Neusa Barauna, Fernando Peralta, Vera Maria Carvalho Bittencourt e Alcides dos Reis, entre outros educadores locais, formando uma equipe dirigente cheia de boa vontade e motivada para o trabalho. O edifcio do Centro Educacional de Ponta Por era imponente e causava boa impresso, mas, para fazer a escola funcionar, improvisamos mesas e estantes com as prprias embalagens das carteiras escolares. Quando visitou a escola, o secretrio de educao gostou da iniciativa dos professores que administravam a escola e convidou-me para coordenar os centros educacionais de Mato Grosso, dentro da prpria Secretaria de Educao. Permaneci em Ponta Por de fevereiro a junho de 1970. Em Cuiab trabalhei at o final do ano de 1972. Por incompatibilidade com o secretrio de educao do governo Jos Fragelli, resolvi sair de Cuiab e aceitei o convite de Salomo Baruki, diretor do Centro Pedaggico de Corumb, unidade integrante da Universidade Estadual de Mato Grosso [UEMT], para trabalhar como professor de cursos de licenciatura para a formao de professores. Comecei em Corumb no ano de 1973. Aproximei-me da rea de histria da educao e passei a interessar-me pelas temticas regionais. Desde ento, liguei-me profundamente s formas locais de expresso da cultura e, exceo dos breves perodos necessrios realizao de cursos de psgraduao, nunca mais me afastei da regio. Passei a sentir-me um dos seus. Em 1988 fui transferido para Campo Grande, por fora da implantao do Curso de Mestrado em Educao, resultado de um convnio entre a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul [UFMS] e a Universidade Estadual de Campinas [Unicamp] , que eu ajudara a articular como doutorando naquela universidade paulista. Fixei residncia na capital e hoje a considero, tambm, a minha cidade.

Como se deu seu mergulho na realidade do estado e o despertar do interesse por sua cultura? Entendo que os rumos que damos s nossas vidas no podem ser explicados s por propenses pessoais. Companheiros de jornada so muito importantes. A interlocuo lcida, instigante e inteligente nos ajuda e nos impulsiona. Em Corumb, meus contatos com professores do Centro Universitrio foram essenciais para fixar a direo dada s minhas investigaes. No posso deixar de nomear, em especial, Valmir Batista Corra e Lcia Salsa Corra. Discutamos muito e, em primeira mo, comunicvamos nossas descobertas. Usvamos, inclusive, os recursos uns dos outros. Eles tambm formaram uma biblioteca excepcional. Quanto aos ttulos da parte regional, desconheo qualquer outro acervo particular que a supere. As pessoas s vezes no entendem o porqu de nossa obsesso por adquirir livros. Se elas tivessem a exata conscincia das limitaes que enfrentvamos no incio da dcada de 1970, por certo teriam outra expectativa. Nessa poca, lamos os jornais de So Paulo do dia anterior. A comunicao telefnica era precria e sujeita s condies do tempo. Algumas vezes ramos literalmente ilhados pelas enchentes do Pantanal. Era pobre o prprio acervo da biblioteca da universidade. E no existia internet! Nossos livros, portanto, no eram somente os recursos que mantinham aceso o trabalho de pesquisa; eles eram os instrumentos que nos permitiam vencer o isolamento e nos libertavam das limitaes decorrentes das condies materiais por ns vividas. Hoje tenho a conscincia de que at mesmo um especial apego afetivo aos livros se desenvolveu ao sabor dessas condies adversas. O estudo sistemtico, por seu lado, mais nos instigava a entender esse estado que, at ento, nos impressionara por sua imensido. Aqui havia histria, que ia muito alm de episdios como a Retirada da Laguna e a Retomada de Corumb, durante a Guerra da Trplice Aliana. Mas era uma histria em grande parte subterrnea. Nossas relaes com os vizinhos, por exemplo, to importantes no sentido de plasmar nossa singularidade cultural, nem sempre gozavam de apreo por

TENHO MUITO PRAZER QUANDO EXERO A ATIVIDADE DE ENSINO, QUANDO REALIZO PESQUISA OU QUANDO ADQUIRO UMA NOVA E EXPRESSIVA OBRA DE ARTE. CONTUDO, NO POR PRAZER, MAS POR NECESSIDADE SOCIAL, HOJE ATRIBUO PRIORIDADE AO TRABALHO DE FORMAO CULTURAL.

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

11

FALAR SOBRE A CONSTITUIO DE MEU ACERVO FALAR DA HISTRIA REGIONAL, DE MINHA PRPRIA VIDA E DAS PROGRESSIVAS MUDANAS OPERADAS NA FORMA DE EU VER E ANALISAR AS RELAES SOCIAIS.

parte dos mato-grossenses. O discurso oficial as enaltecia, mas, por fora da (de)formao cultural, olhvamos bolivianos e paraguaios com estranhamento. Ao mesmo tempo, havia uma disputa poltica, herdada do passado e j sem sentido, entre as lideranas das cidades porturias e dos proprietrios rurais, razo de uma sensvel atomizao poltica, sem que estudos cientficos procurassem desvelar suas razes. Isso gerava interrogaes e, na medida em que a academia pouco pode fazer no sentido de intervir direta e imediatamente em questes to candentes, nos propusemos a investigar a fundo as relaes sociais na regio, esperando, honestamente, que no futuro o conhecimento acumulado pudesse corrigir distores to arraigadas. Portanto, nosso interesse pela cultura no foi algo diletante. No nos colocvamos no mesmo campo dos regionalistas que batiam no peito para cantar as grandezas da terra. Nem dos aventureiros que, chegando de outros rinces, viam a regio como terra arrasada e se metiam a fazer propostas polticas as mais esdrxulas. Queramos ver Mato Grosso reconhecido pela sua histria e pela cultura produzida pelos homens que viviam em seu espao. Queramos, igualmente, que o conhecimento cientfico pudesse desvelar mais claramente o que somos para construir, no futuro, relaes sociais que superassem preconceitos e carncias dominantes. Colecionar obras de arte foi consequncia ou aconteceu por acaso? Como j disse, as obras de arte sempre foram vistas por mim como registros do real. Ao captarem as relaes sociais, elas nos ajudam a reconstruir em pensamento a trajetria dos homens. Logo, falar sobre a constituio de meu acervo falar da histria regional, de minha prpria vida e das progressivas mudanas operadas na forma de ver e analisar as relaes sociais. Nunca adquiri uma pea pela qual no nutrisse algum tipo de identificao. Na dcada de 1970, quando comprei a primeira tela, eu pouco sabia de esttica. Mas desejava saber mais. Ao mesmo tempo, sentia certo desconforto com as consideraes especializadas da maioria dos crticos e dos estudiosos de arte profissionais. Pareciam-me superficiais, abstratas e arrogantes, alm de muito distanciadas dos acontecimentos que marcam a existncia humana. Lukcs [Georg Lukcs, filsofo hngaro, 1885-1971] ensinou-

me que uma obra s consegue emergir condio de arte quando, alm de atender a certos critrios estticos formais, tambm capta as contradies da sociedade. Portanto, impossvel dissociar tais elementos formais da mensagem veiculada pela obra de arte. Por isso, sempre histrica, esta nos permite apreender as relaes sociais; da a sua perenidade, da a possibilidade, a qualquer tempo, de ela ajudar a revelar a histria dos homens. De incio, intuitivamente, mas, em seguida, de uma forma mais intencional, esse parmetro passou a ser uma exigncia que sempre observei nas aquisies de peas de artes plsticas. ilustrativo falar da primeira tela de minha coleo, adquirida no ano de 1974. Realizava-se em Corumb uma exposio do artista plstico boliviano Rubn Dario Aez Romn, promovida pelo Centro Pedaggico onde eu trabalhava. Uma tela expressionista, intitulada Manifestacin, tocou-me profundamente. Segundo o artista, ela fora concebida em Santa Cruz de la Sierra, quando do golpe de estado que levou Hugo Banzer Surez ao poder. A violncia nas ruas teria sido intensa. Profundamente sensibilizado, Rubn esboou a obra, concluda mais tarde quando j residia em Corumb. Essa tela remeteu-me ao meu passado estudantil, ento pouco distante. Estava bem viva em mim, ainda, a conjuntura inaugurada pelo AI-5 [Ato Institucional no 5], de 1968. Nessa fase, eu presidia o Diretrio Acadmico Filosofia, da Faculdade de Cincias e Letras de So Jos do Rio Preto. O movimento estudantil e todos os movimentos de massas se encontravam em refluxo. Vigiados e ameaados, muitos jovens, intelectuais e lideranas de esquerda preferiram submeter-se clandestinidade para tentar realizar um projeto de transformao social com o recurso das armas. s imensas manifestaes, anteriores a 1968, havia se sucedido o medo. Iniciativas isoladas dos mais afoitos eram realizadas sempre vista do perigo de priso. Com os direitos individuais banidos, nas celas da ditadura militar imperava a violncia. Tortura e morte no foram acontecimentos isolados. O Brasil perdeu, ento, talentos da melhor estirpe, cuja maioria se encontrava em processo de formao. Ao suscitar esse passado recente, a pintura de Rubn produziu em mim fortes sentimentos. Revi, por

Ao lado, Rubn Dario (Santa Cruz de la Sierra, Bolvia, 1948 Corumb, MS) a.c.i.d. MANIFESTACIN 85 x 85 cm. leo sobre Tela 1974

12

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

meio dela, as manifestaes de que participara; lembrei-me de colegas desaparecidos ou alienados pela loucura. A tela de um artista boliviano, concebida a partir de um evento singular desse povo vizinho, mas ao mesmo tempo muito expressivo de um momento histrico em que ditaduras militares se alastraram pela Amrica do Sul, ajudou-me a compreender como a experincia humana universal e como a obra de arte foge aos grilhes da singularidade que a produz. Nessa mesma exposio, Rubn Dario exps a tela O grito, que adquiri mais tarde, em 1976. A temtica encontrava eco na minha forma de ver o mundo. Ainda muito influenciado pelos ideais libertrios do movimento estudantil, frustrava-me diante das tendncias antagnicas que dominavam o movimento da sociedade. O contedo desta tela, tambm expressionista, ao patentear uma indisfarvel angstia de viver, representava um elo de identificao, de fato, com o existencialista que eu ainda era. Como se deu a formao da coleo e quantas obras a compem atualmente? Depois de 1974, nunca mais deixei de adquirir obras de arte. O foco foi, por muito tempo, a nossa regionalidade. Formei um acervo muito expressivo de nossos mais relevantes artistas plsticos. Gosto muito de presentear meus amigos com telas, desenhos ou esculturas, hbito providencial, pois no teria espao suficiente em minha casa para guardar todas as obras j adquiridas. Como decorrncia, bugres da Conceio, telas de Ilton Silva, de Jorapimo, de Lelo, de Xavier e de nossos primitivistas passaram a povoar paredes e mveis das residncias de meus amigos, o que me deixa feliz. Sempre comprei diretamente dos artistas, frequentando seus atelis. Ao mesmo tempo, por saberem de minha ligao com as artes plsticas, vez ou outra algum me oferece obras mais antigas de artistas da regio. Alguns exemplares maravilhosos tm chegado s minhas mos dessa forma. Devo mencionar uma histria relevante. Certo dia visitou-me Magno Bas, sobrinho-neto de Lidia Bas. Trazia em suas mos uma tela dessa pioneira das artes plsticas em Mato Grosso do Sul, at ento integrante do acervo de sua famlia. Ele prprio estava preocupado com o estado de conservao da obra. Furos e descascados nas bordas comeavam a comprometer a pintura. Tendo a conscincia de seu valor histrico, ofereceu-me generosamente aquele exemplar, com a condio de que o restaurasse e tornasse possvel sua exposio ao pblico. No aceitei a doao. Mas, estipulado um preo, fiquei com a obra e providenciei sua restaurao. uma tela datada de 1917, anterior, portanto, Semana de Arte Moderna, evento que influenciou o rumo artstico de Lidia Bas em seguida. Trata-se de uma paisagem singela, mas rara pelo fato de ser datada, prtica pouco usual na autora, o que permite situla no tempo e apreender os primeiros passos da trajetria da pintora ainda adolescente. Com o tempo a coleo se diversificou. Hoje no mais se restringe s obras dos artistas regionais. Minhas viagens so pretextos para obter peas dos mais

expressivos artistas brasileiros. Tenho explorado tambm os leiles de algumas das principais galerias de So Paulo e do Rio de Janeiro. Recentemente, com o auxlio de Marian Jan Chudechi Jr., o meu acervo comeou a ser fotografado. Em paralelo, iniciei o trabalho de catalogao das obras que o integram. S ento tive a possibilidade de fazer um balano da extenso atingida pela coleo. Hoje ela inclui em torno de 450 peas, envolvendo telas, sobretudo, mas tambm desenhos e esculturas. Entre todas essas obras, que trabalhos considera mais expressivos? Por qu? Eu no indicaria uma ou outra obra, pois as tenho todas em alta conta. Prefiro mencionar a parte do acervo que rene obras de todas as fases daquele que um nome de relevo das artes plsticas na regio. Falo de Ilton Silva. Quem o conhece sabe que Ilton nunca guardou obras de referncia, visando constituir uma espcie de reserva expressiva de sua carreira. Isto foi o que fez, por exemplo, Humberto Espndola. Conservou exemplares de sua produo da maior importncia cultural, cuja

Acima, Lydia Bas (Corumb, MS, 1901 Campo Grande, MS, 1985) a.c.i.d. PAISAGEM 69 x 33 cm. leo sobre Tela 1917 Ao alto, Ceclio Vera (Amambai, MS, 1958 Campo Grande, MS) a.c.i.d. DERRUBADA 40 x 60 cm. leo sobre Tela 1991 (Meno Honrosa na Mostra de Arte Ingnua e Primitiva, SESC Piracicaba, 2 a 31.8.1991)

Ao lado, Ilton (Ponta Por, MS, 1944 Joinvile, SC) a.c.i.d. SRIE CORES E MITOS 70 x 50 cm. leo sobre Tela com moldura de madeira pirogravada (4,5 cm.) 1978

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

13

EM FACE DA GRANDEZA DA OBRA DE ILTON SILVA E DA DISPERSO DE SUAS TELAS, COMECEI COLECIONAR EXEMPLARES DE SUA PRODUO. PROCUREI ADQUIRIR TELAS EXPRESSIVAS DE TODAS AS SUAS FASES.

destinao final precisa ser um museu pblico ou de uma fundao. Tudo o que Ilton produziu foi direcionado ao mercado, da a disperso de suas telas e de seus entalhes. Sempre me identifiquei politicamente com a obra de Ilton, pois celebra o trabalho. Em especial, a existncia do trabalhador do campo por ele retratada com muita inspirao, revelando por inteiro sua lida, seus prazeres, sua explorao, seu sofrimento e seus vcios. Em face da grandeza da obra de Ilton Silva e da disperso de suas telas, comecei colecionar exemplares de sua produo. Procurei adquirir telas expressivas de todas as suas fases. Uma boa parte comprei dele prprio. Ao longo do tempo fui preenchendo as lacunas existentes. Constantemente sou procurado por pessoas que querem vender telas antigas do artista, o que facilitou esse trabalho de reconstituio de sua trajetria. Hoje, o acervo correspondente gira em torno de cem telas, produzidas entre o final da dcada de 1960 e os nossos dias. Como colecionador atento, qual sua avaliao do cenrio das artes plsticas em MS? Que tendncias predominam? Como o senhor v a nova gerao de artistas? No sou um nostlgico nem fao apologia do passado. Quero ver, sempre, a roda da histria se movendo para frente. Mas, infelizmente, a constatao a de que os nossos artistas escassearam. Vejo com preocupao, tambm, o cenrio e o rumo geral das artes plsticas na regio. Os contornos da situao podem ser ilustrados com diversos indicadores.

A nova gerao no ombreou com o mesmo talento nomes como Humberto Espndola, Ilton Silva e Jorapimo. Entre os jovens, um nico nome me impressiona vivamente. Trata-se de Ton Barbosa, premiado nos ltimos sales do estado e do municpio de Campo Grande. Ele tem em comum com os outros nomes citados o fato de ser um artista intuitivo. Os artistas intuitivos sempre representaram o que de melhor ns temos. Contraditoriamente, os frutos dos cursos de graduao na rea de artes plsticas foram escassos no que se refere produo de novos talentos. Restringiram-se quase to somente migrao para Mato Grosso do Sul de nomes expressivos, como os professores Darwin Longo de Oliveira e Lcia Monte Serrat. Os acadmicos e egressos pouco realizaram de relevante no plano das artes plsticas. Surgiu, sim, uma discusso pretensamente terica sobre as artes, incorporando modismos como as temticas ps-modernas, que revelam falta de foco e de conscincia social. um discurso que Kurz [Robert Kurz, filsofo alemo contemporneo] diria estar carregado de teorias antitericas. Tambm deixaram de existir movimentos que procuram problematizar a relao entre arte e a singularidade cultural sul-mato-grossense. Mesmo que se possa divergir da proposta de natureza regionalista do Movimento Guaicuru de Cultura e de sua idealizao do ndio, ningum pode negar que ele realizou um papel de animao cultural muito intenso no final do sculo XX. Formado por um grupo de artistas plsti-

14

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

cos, inmeros sales foram promovidos pelos seus mentores. Eles alimentaram na mdia, tambm, a discusso da questo cultural e do ndio. Hoje o que se tem o vazio dominando o espao de debate de questes que continuam sendo candentes. Ao mesmo tempo verifica-se uma situao de penria marcando a existncia dos pintores primitivistas de Mato Grosso do Sul. Falo do gnero de pintura mais expressivo do estado e de artistas que tiveram obras includas ou premiadas nas bienais do Salo de Piracicaba, o principal de arte primitiva no Brasil. Alguns so nomes reconhecidos, como Isaac Saraiva e Ceclio Vera. Outros so ignorados inclusive entre ns, como Juraci Marques, Sidney Nofal, Ramo Lopes e Marcelo Ivanhez. Ceclio, Juraci e Marcelo j foram premiados no referido salo. Quase todos eles asseguram a existncia pintando faixas para eventos ou desenvolvendo outras atividades para a complementao de seus rendimentos. E pblico para a rea das artes plsticas, j existe em nmero razovel? Tanto o pblico como o mercado de artes plsticas precisam ser produzidos e, por enquanto, dependem da instaurao de polticas, em especial das pblicas. Os sales de arte na regio comearam a ser retomados recentemente, iniciativa que se fazia necessria. Mas os espaos de exposio no fazem parte dos endereos visitados pelos sul-mato-grossenses. Os museus, fsica e culturalmente, esto distanciados das pessoas comuns. Galerias de arte h poucas. As principais resistem a trabalhar com artistas da regio, a pretexto de que eles no respeitam os preos fixados. Nem as escolas realizam visitas sistemticas dos alunos aos museus de artes. A formao dos professores conspira contra uma mudana de comportamento dessa natureza, pois eles prprios ignoram as artes na regio. Como estimular os alunos para coisas cuja importncia os prprios professores ignoram? lento e pouco dinmico o processo de atualizao dos acervos de nossos museus. Contraditoriamente, quem quiser, hoje, ter uma boa amostra das artes plsticas produzidas na regio deve visitar uma singela oficina de molduras na Capital: Wenceslau Molduras. L, o visitante ter contato com obras dos principais artistas sul-mato-grossenses, desde os mais consagrados at os primitivos, podendo adquirilas a preos convidativos. Talvez, na situao de estrangulamento das artes plsticas em Campo Grande e no estado, esse espao seja o local onde se realiza o que se encontra mais prximo de um trabalho de formao cultural. As paredes apinhadas de telas ajudam os visitantes a educar o olhar. A afetividade e o bom humor de Wenceslau e de Csar, que trabalham no local, bem como o conhecimento que passaram a ter das artes plsticas na regio e a disposio para discuti-las, fazem deles educadores. A postura no arrogante de ambos e o ambiente sem pompa acalmam a timidez das pessoas simples, hoje afastadas dos espaos de exposies, e as convidam ao conhecimento. Como o senhor analisa o mercado de arte em Mato Grosso do Sul? Para quem deseja investir, investir, uma alternativa rentvel? Que sugesto daria para um iniciante interessado em comear a colecionar? Quem quiser comear uma coleo, o melhor caminho a compra de obras dos artistas da regio. Essa foi a minha trajetria. Para tanto, espaos como o da oficina Wenceslau Molduras so providenciais. Ao mesmo tempo, pela sua limitada insero no mercado, necessrio reconhecer que a aquisio de arte regional no investimento rentvel a curto prazo. So reduzidas em nmero as pessoas que compram pinturas, desenhos e esculturas. O mercado estreito limita a procura e contribui para pressionar os preos para baixo. No se pode falar em cotaes precisas. As tendncias de preos so fixadas em leiles de arte e por um conjunto reduzido de galerias dos grandes centros culturais do pas. Infelizmente, as obras de nossos artistas no circulam nessas galerias e nos leiles de arte. Por isso, os preos so arbitrrios, pois destitudos de parmetros. A venda de uma obra, sistematicamente, est sujeita a negociaes que geram uma situao de constrangimento para o artista. De fato, o valor de sua obra encontra-se sob permanente suspeio. O que o senhor sugere para ampliar e incrementar a relao de fruio e consumo nesta rea? Tenho como referncia, sempre, a maioria dos homens e mulheres que vivem em nosso estado, principalmente os mais simples e humildes. A formulao de polticas pblicas na direo apontada essencial. Quanto s sugestes, no h novidades, pois algumas j foram objeto de iniciativas no passado. As crticas merecem ser dirigidas forma de execuo dessas iniciativas. Falta de articulao poltica e de apoio logstico matam muitas delas. E quando no vo frente, ao invs de se analisar o que falhou na execuo, simplesmente as prprias propostas so abandonadas.CULTURA EM MS - 2011 - N.4

Ilton A. Silva (Ponta Por, MS, 1944 Joinvile, SC) a.c.i.d. VELHO CARREIRO 50 x 70 cm. leo sobre Tela 1989

15

volvimento do grupo de estudos e pesquisa Histria, Sociedade e Educao no Brasil [HISTEDBR]. Tambm fundei a unidade regional desse grupo em Mato Grosso do Sul. Dentro dele, desenvolvemos uma pesquisa que tematiza a questo da organizao do trabalho didtico. Integram-no a Dra. Silvia Helena Andrade de Brito, da UFMS, os doutores Ana Arguelho de Souza, Carla Villamaina Centeno, Samira Saad Pulchrio Lancillotti e Joo Mianutti, e a doutoranda Enilda Fernandes, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul [UEMS]. Outra frente de produo acadmica que passei a desenvolver a partir de minha vinculao ao curso de mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, da Universidade Anhanguera-Uniderp, coloca em questo a relao entre cultura e ambiente. Da as minhas pesquisas mais recentes sobre arte e artesanato em Mato Grosso do Sul. Quais as principais obras publicadas? Logo que conclu o curso de mestrado em Educao, realizei uma pesquisa histrica intitulada Histria e educao em Mato Grosso: 1719-1864. Elaborado o relatrio homnimo, em 1982 o encaminhei Pr-Reitoria de Assuntos Acadmicos da UFMS, solicitando sua publicao. Essa universidade, poca, no tinha editora. Foi formada uma comisso ad hoc para analisar o mrito do texto. Aprovado, foi encaminhado Imprensa Universitria. Eis que o reitor de ento achou que o livro era coisa de comunista e suspendeu sua publicao. S com um novo reitor o livro foi publicado em 1984. A edio deste primeiro relatrio de pesquisa foi passo importante para a constituio da Editora UFMS e faz parte de sua histria. Pela UFMS, publiquei tambm o Catlogo bibliogrfico da educao sul-mato-grossense em 1988. O resultado de meu doutorado em Educao, com o ttulo O pensamento burgus no Seminrio de Olinda: 1800-1836, foi publicado em 1993. Sua segunda edio saiu em 2001 pela Editora Autores Associados. No mesmo ano, essa que uma das mais importantes editoras brasileiras da rea de educao, publicou tambm A produo da escola pblica contempornea, livro que teve mais trs edies em seguida. Resultados de pesquisas mais recentes, dois outros livros foram publicados pela mesma editora: O trabalho didtico na escola moderna: formas histricas, em 2005, e Educao no campo: recortes no tempo e no espao, em 2009. Quanto a este ltimo, fui seu organizador e autor de um extenso captulo. Por editoras universitrias publiquei livros de interesse regional. A Editora UNIDERP editou Mato Grosso do Sul: o universal e o singular, em 2003, Pantanal da Nhecolndia e modernizao tecnolgica, em 2004, e A casa comercial e o capital financeiro em Mato Grosso: 1870-1929, em 2005. A Editora UFMS coeditou o segundo livro. Recentemente, um projeto do MEC que edita obras de grandes educadores brasileiros e internacionais convidou-me para escrever um livro sobre o fundador do Seminrio de Olinda, objeto de meu doutorado. Em

Ao alto, Silvio Rocha (Cruzeiro do Oeste, PR, 1954 - Curitiba, PR) a.c.i.d. SRIE FRAGMENTOS GUAICURUS: A ltima carga da Cavalaria Guaicuru 64 x 100 cm. leo sobre Tela Colada sobre Madeira. s.d. (2002) Acima, Ton Barbosa (Campo Grande, MS, 1967 - Campo Grande, MS) a.c.i.d. PONTE SOBRE O RIO AQUIDAUANA 30 x 60 cm. Acrlica sobre Tela s.d. (2006)

Para ilustrar aponto dois exemplos. Em primeiro lugar, aes combinadas das reas de cultura e educao podem incentivar a explorao de nossos museus como recursos educativos pelas escolas. Isso ajudaria a criar pblico para as artes plsticas na regio e, portanto, mercado. Ajudaria, inclusive, a educar os educadores. De outro lado, exposies itinerantes promovidas pelo estado, em cooperao com entidades municipais, tambm assegurariam visibilidade constante da produo regional em todas as principais cidades e favoreceriam a sua comercializao. Logo, a produo de pblico no se desvincula da produo de mercado e, nas propostas, essas duas instncias precisam ser pensadas de forma combinada. Recursos materiais so necessrios para tanto, mas, muito mais do que recursos materiais, so essenciais o exerccio de articulao e a boa vontade das entidades culturais e educacionais do estado e dos municpios. Sem menosprezar as iniciativas privadas e o fato de serem desejveis, nos prximos anos o estado ainda ter um papel significativo na redefinio de rumos, no s das artes plsticas, mas de todas as manifestaes da cultura em Mato Grosso do Sul. No se quer um estado paternalista, mas um estado que, reconhecendo a necessidade de sua ao incisiva no momento, crie as condies para a ampliao de pblico consumidor de arte e do mercado de arte. Quanto sua produo acadmica, em que reas se concentram seus trabalhos? Sou ligado originalmente rea de educao. Ao longo do tempo, participei da fundao e do desen-

16

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

2010, a Editora Massangana publicou o resultado com o ttulo Azeredo Coutinho. Alm dos livros, inmeros artigos em revistas cientficas e captulos de livros na rea de educao assinados por mim encontram-se publicados no Brasil e no exterior. Atualmente, para que lado est direcionado seu interesse? Que trabalhos tem desenvolvido? Como esto seus estudos sobre artesanato e cultura indgena? H alguns anos, por necessidade de meus alunos do curso de mestrado em Educao da UFMS, escrevi um pequeno ensaio denominado O universal e o singular: acerca da abordagem cientfica do regional. Nesse trabalho lancei o embrio de uma proposta de investigao que d rumo ao que hoje realizo. Esse texto muito conhecido, inclusive fora de Mato Grosso do Sul. Com base nele, tenho me preocupado com o entendimento daquilo que poderamos chamar de matrizes culturais de Mato Grosso do Sul. Uma delas se revela no estudo das casas comerciais dos portos, que discute a formao das cidades porturias, as caractersticas dos migrantes e do processo de ocupao do espao dominado pela bacia platina. A discusso sobre a pecuria da Nhecolndia coloca em relevo outra matriz cultural, associada s famlias vindas do norte do antigo Mato Grosso, ligadas nas suas origens a bandeirantes empobrecidos l fixados. Mas muitos outros estudos so necessrios. Para ilustrar, necessrio aprofundar o entendimento da matriz associada imigrao de paraguaios para a fronteira sul. Ligada, de fato, populao que se amestiara em presena de espanhis e do imenso contingente guarani, e que revelava tambm o resultado da aculturao indgena nas redues jesuticas, o seu estudo pode lanar luzes sobre a disseminao de hbitos, costumes e valores que no se limitou fronteira, pois , adentrando para o interior do estado, tornou-se importante vertente para a constituio de nossa singularidade cultural. Pode-se falar, ainda, de uma matriz cultural mineira, que no processo de expanso da pecuria ampliou o seu espao para o norte de So Paulo e o leste e regio central de Mato Grosso do Sul. Matrizes como a japonesa e a rabe, cujos integrantes chegaram em grandes contingentes pelos trilhos da Noroeste do Brasil, tambm merecem estudos aprofundados. At mesmo uma matriz boliviana, que no se alastrou para muito alm de Corumb, precisa ser investigada, alm dos movimentos migratrios realizados por nordestinos, tendo como epicentro a Colnia Federal de Dourados, e os oriundos dos estados do sul a partir da dcada de 1970. Para tal, uma parte do terreno j est preparada, pois investigaes histricas recentes, realizadas a ttulo de exemplo por estudiosos como Valmir Batista Corra, Lcia Salsa Corra, Carla Villamaina Centeno e Silvia Helena Andrade de Brito, deram contribuies significativas para a sistematizao dos resultados requeridos. Tambm memorialistas tm oferecido relevantes relatos para o entendimento dessas matrizes culturais. Ilustram-nos obras de inegvel valor, como

Nossa gente, de Ablio Leite de Barros, referente matriz associada pecuria na Nhecolndia, e Memria: janela da histria, de Wilson Barbosa Martins, sobre a matriz mineira. Assegurar inteligibilidade a essas matrizes somente uma parte da tarefa, contudo. Mas o pr-requisito para a realizao de outra tarefa decorrente: a compreenso do caldo resultante das trocas culturais entre elas. Essas trocas se mantm e so reveladoras de uma sntese em permanente transformao. Tal sntese constituiria a singularidade cultural sul-mato-grossense. senhor, Quanto ao senhor, quais os planos daqui para frente? No plano da investigao cientfica, estou envolvido nesse processo de entendimento da cultura em Mato Grosso do Sul. Este um trabalho de natureza terica, associado minha vida acadmica, que no ter fim enquanto flego eu tiver. Como cidado, aspiro realizar um trabalho de formao cultural que permita s pessoas simples, inclusive, terem acesso ao que se produz de mais significativo na rea da cultura e, mais especificamente, nas artes plsticas em Mato Grosso do Sul e no Brasil. Minha coleo ficar disposio dessa iniciativa. A ideia produzir um espao que funcione como um verdadeiro centro cultural, onde os frequentadores possam se encontrar, discutir e estudar. Minha biblioteca tambm estar aberta ao pblico. Um auditrio seria essencial como espao de manifestao e de organizao de movimentos culturais e de grupos devotados s artes. Tambm a comercializao de telas, desenhos e esculturas poderia se realizar nesse espao com o envolvimento dos artistas locais. Talvez uma fundao seja o melhor caminho para tal. As dificuldades so de ordem material. A sede da iniciativa no pode ficar distanciada dos locais por onde as pessoas transitam, ou, pelo menos, deve ser de fcil acesso. A recente especulao imobiliria transformou os espaos centrais em reas extremamente caras. Enquanto a ideia permanece no papel, temos procurado sensibilizar pessoas amantes das artes em Campo Grande. A resposta tem sido positiva e muitas delas tm aderido proposta e se colocado disposio para participar de sua execuo.

NECESSRIO COMPREENDER O CALDO RESULTANTE DAS TROCAS ENTRE AS MATRIZES CULTURAIS PRESENTES EM NOSSA FORMAO. ESSAS TROCAS SE MANTM E SO REVELADORAS DE UMA SNTESE EM PERMANENTE TRANSFORMAO. TAL SNTESE CONSTITUIRIA A SINGULARIDADE CULTURAL SULMATO-GROSSENSE.

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

17

DO ALTO DA SERRA DA BODOQUENA AT ONDE O OLHAR ALCANA, A PAISAGEM IMPRESSIONA. ALM DO ENCANTO, H TODA UMA RIQUEZA CIENTFICA E CULTURAL A SER MAIS BEM CONHECIDA POR ESTUDIOSOS E APRECIADA POR TURISTAS, VISITANTES E PELAS PRPRIAS COMUNIDADES LOCAIS. SE BEM TRABALHADO, ESSE POTENCIAL PODE OFERECER TAMBM GRANDE INCENTIVO PARA ELEVAO DA QUALIDADE DE VIDA DE TODA A POPULAO.PAULO ROBSON DE SOUZA NIVALDO VITORINO CLEVERSON CLAY GIORDANO IPHAN-MS

FABIO PELLEGRINI

18

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

PAISAGEM CULTURAL Cultura, economia, cincia e turismo se encontram no

Geopark Bodoquena-PantanalMANOEL VALENA IPHAN-MS

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

19

PAULO ROBSON DE SOUZA (ACIMA) FABIO PELLEGRINI (ABAIXO)

IPHAN-MS

FABIO PELLEGRINI

EEstudos cientficos favorecem um olhar mais atento para aspectos ambientais e valores tursticos, econmicos, culturais e educacionais, possibilitando s novas geraes oportunidades de crescimento individual e coletivo. Abaixo, fssil de Corumbella werneri, descoberta em 1982 na cidade de Corumb. Ao lado, crianas examinam fsseis em uma escarpa calcria da cidade.

Em 1982, o professor alemo Detlef Walde e sua equipe estavam pesquisando a geologia de uma escarpa calcria de mais ou menos dez metros de altura, em Corumb-MS. Acabaram encontrando uma pea indita no quebra-cabea sobre a evoluo da vida na Terra. Na rocha matizada, uma impresso mais escura chamou a ateno, parecida com o corpo tubular de uma minhoca, achatada e rodeada de anis. Era o fssil do invertebrado mais antigo encontrado at hoje na Amrica do Sul, conta Paulo Csar Boggiani, gelogo e professor do Instituto de Geocincias da Universidade de So Paulo (USP). No meio da rocha h pequenos cristais de minerais que permitem dat-lo com muita preciso, e esses registros tm cerca de 550 milhes de anos. A raridade e a importncia do fssil fizeram com que o batizassem, em homenagem cidade, de Corumbella werneri, a bela de Corumb, possivelmente fazendo referncia tambm ao gelogo alemo Abraham Gottlob Werner (1749-1817). Para dar uma ideia da antiguidade da Corumbella, esse invertebrado surgiu depois do que pode ter sido uma glaciao global da Terra, em que o mundo todo estaria coberto de gelo. Animais como os primeiros dinossauros s surgiriam mais de 300 milhes de anos depois. Todo o cenrio atual, o macio rochoso coberto de vegetao, os calcrios pretos margem direita

do rio Paraguai, as casinhas irregulares no alto das rochas, onde hoje tudo isso est, um dia j foi mar. A Corumbella um dos primeiros animais marinhos com um tipo primitivo de esqueleto, talvez para se proteger de predadores e ondas. Mostrar a evoluo biolgica e geolgica do planeta remonta a esses testemunhos com milhes ou at bilho de anos. Do ponto de vista paleontolgico, a Corumbella muito impactante, afirma o professor e diretor do Museu de Arqueologia da UniversidaPAULO BOGGIANI NIVALDO VITORINO

20

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

de Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Gilson Rodolfo Martins. Apesar de a descoberta ter sido feita h quase trinta anos, s recentemente se comeou a falar nela. Nem os corumbaenses, nem os sul-matogrossenses, nem os brasileiros a conhecem. Ela est sendo conversada agora, diz Helosa Helena da Costa Urt, presidente da Fundao de Cultura e Turismo do municpio de Corumb. A possibilidade de estudos cientficos favorece um olhar internacional para a conservao do ambien-

te na regio onde se encontravam populaes de Corumbella, nas escarpas calcrias s margens do rio Paraguai, mas para os habitantes mais prximos h outros valores envolvidos, alm dos ambientais: educacionais, tursticos, econmicos, culturais. Por reconhecer essas relaes e para valorizar todos os elementos que coexistem em um local, a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco) adota hoje o conceito de paisagem cultural.

O conceito de paisagem na histriaA primeira meno paisagem nas leis da Europa, datada de 1805, trata de florestas no ambiente rural da Dinamarca. Naquela poca, nunca se imaginaria que as relaes entre um boiadeiro e o Pantanal poderiam ser um exemplo de paisagem a ser reconhecida, protegida e valorizada. A ideia de que uma paisagem rene natureza e cultura, de forma ampla e inseparvel, nova em nossa civilizao. Por muito tempo, os modelos de paisagem designaram quase estritamente a natureza e o que nela era considerado belo. Isso se refletia nas cincias, como na geografia, e tambm no modo de lidar com as paisagens dentro da sociedade. No Brasil, mecanismos legais efetivos de proteo ao patrimnio nacional foram se estabelecendo a partir da dcada de 1930. Surgiram cdigos como o Florestal, de guas, de Minas, de Proteo aos Animais. Em 1937, em nvel federal, foi criado o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan), para identificar e proteger os bens culturais. De incio, a questo ambiental no envolvia ainda uma contextualizao cultural abrangente, e a cultura no era entendida para alm de suas manifestaes materiais, como edifcios e monumentos histricos. Integrar natureza e cultura na compreenso da paisagem foi um longo caminho. Progressivamente, comeou-se a perceber que cada stio precisa ser considerado em relao sua ambincia, em suas relaes intrnsecas com os aspectos culturais. As atividades humanas no entorno, por mais aparentemente discretas que sejam, tm relao com o conjunto histrico que se deseja preservar. Foi essa concepo que a Unesco buscou fixar ao adotar a categoria de paisagem cultural na dcada de 1990. A partir da Conveno para a Proteo do Patrimnio Cultural e Natural, de 1992, a expresso paisagem cultural comeou a ser propagada. Era preciso evitar a viso dicotmica entre um bem a ser preservado e o entorno, considerado em sentido amplo. Desde ento, o modelo de paisagem cultural ganhou fora. Tornou-se cada vez mais utilizado no contexto internacional, ampliando-se, por exemplo, de paisagens rurais para todo tipo de paisagem, como urbana, industrial, costeira, submarina. Quando a Conveno Europeia da Paisagem foi organizada, em 2000, esse direcionamento estava to firme que se buscou, inclusive, no diferenciar o que era paisagem natural e cultural. O cultural estava integrado ao conceito de paisagem. A proposta era olhar para qualquer paisagem, deixando para trs a fixao naquelas de beleza nica e excepcional: todas interessam, inclusive as aparentemente comuns e as destrudas. No Brasil, um importante marco legal sobre o assunto a declarao do Iphan sobre a Paisagem Cultural Brasileira, na Portaria 127 de 2009. Qualquer cidado pode propor a criao de uma, no intuito de proteger conjuntamente o patrimnio do pas.

Nas pginas 18 e 19, foto maior, vista parcial da serra da Bodoquena e, nas fotos menores, da esquerda para a direita: placa do Geopark na gruta do Lago Azul, crianas no Museu de Histria do Pantanal, roda de cururueiros, turistas no rio da Prata em Jardim, geoturista filmando o pr do sol e avaliadoras da Rede Global de Geoparks durante visita tcnica regio. Na pgina 20, ao alto, foto maior, baa do Arroz com a morraria do Rabicho ao fundo, e nas fotos menores, da esquerda para a direita, carands em rea alagada na Estrada-Parque, figura em baixo relevo no stio arqueolgico do Lagedo em Corumb e cachoeira formada de tufas calcrias em Bonito.NIVALDO VITORINO

Abaixo, o breve espetculo da florao das pivas no Pantanal.

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

21

Carlos Delphim: o que d sentido a uma paisagem o olhar humano.

O esprito do lugarO que d sentido, ilumina, sombreia e confere valor a uma paisagem o olhar humano. o que afirma o coordenador geral de Patrimnio Natural e Paisagem Cultural do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Depam/Iphan), Carlos Fernando de Moura Delphim. Arquiteto e paisagista, ele explica que na paisagem que se renem todos os valores que podem ser considerados como patrimnio de um povo. Aqui, terras como as da Bodoquena e do Pantanal j so reconhecidas de alguma forma, como reserva da biosfera ou unidade de conservao, mas o mais importante na paisagem que ns no separemos corpo e alma. A alma, para Delphim, seriam justamente as questes humanas peculiares que condicionam a regio. Isso faria parte do esprito do lugar: a atmosfera que reina em um local determinado, os saberes e fazeres forjados ali, imagens e emoes que ele suscita. A alma da paisagem tudo aquilo que existe de prazeres, de sentimento, de sagrado que as pessoas conferem. Qualquer significado que ns estejamos conferindo vai enriquecer a paisagem. Durante o 2 Encontro Estadual do Geopark Bodoquena-Pantanal, no ms de julho, em Bonito, Delphim contou uma histria da casa de sua infncia. Uma vez, observando o telhado de telha v em uma despensa, onde sua me passava roupa, disse a ela que precisavam forr-lo. O quarto ficaria como o resto dos aposentos, em uma casa muito antiga em Minas Gerais. A me teria exclamado: Ah, mas eu gosto tanto disso... O caso ilustrou, para ele, a importncia de observar as relaes afetivas despertadas em cada localidade. s vezes ns chegamos a um lugar e queremos mudar uma coisa que parece importantssima para ns de fora, mas que tem um significado afetivo enorme para quem vive ali. A paisagem tem esse lado macro e micro. Ficar vendo o pr do sol, com toda sua grandiosidade, ver a paisagem, mas ver uma perereca pulando tambm ver a paisagem. Quem viu o arquiteto mineiro em Bonito pde observ-lo vivenciando este discurso. Enquanto os clientes do hotel tomavam caf da manh, Carlos Delphim abaixava-se para cheirar uma flor ou para ver de perto as galinhas e os galos que o estabelecimento deixa soltos pelo alojamento, como parte do cenrio. No horizonte, a morraria da serra da Bodoquena, com toda sua grandiosidade.

Desde 1992, a Unesco inclui as chamadas paisagens culturais em sua lista de bens do patrimnio mundial considerados to valiosos que a responsabilidade por sua proteo e valorizao partilhada por toda humanidade. Na prtica, pases signatrios da conveno da Unesco podem solicitar a incluso, na lista, de uma paisagem cultural a ser preservada em seu territrio. o caso do Brasil. Depois, o pas se compromete a proteg-lo e recebe apoio para isso. O que significa, entre outras coisas, recursos financeiros: desde que a instituio comeou a estabelecer essa lista, em 1972, foi criado o Fundo do Patrimnio Mundial, para contribuir com a salvaguarda dos bens ao redor do planeta. Graas a essa realidade complexa e rica da paisagem cultural, focar em um s aspecto de um local como a importncia geolgica, no caso dos fsseis de Corumbella no to eficiente nem interessante quanto considerar o todo. Esse olhar abrangente que se anuncia na contemporaneidade pode favorecer a conservao, valorizao e integrao dos diferentes tipos de patrimnio em territrio sul-mato-grossense, sejam eles as pegadas de dinossauros em Nioaque, a astronomia dos ndios Guarani, a beleza dos jardins submersos da Bodoquena ou os roteiros histricos da Guerra do Paraguai.

DANIEL REINO

Aproximando cenriosNa formao de Mato Grosso do Sul, uma pluralidade de contribuies culturais configurou territrios singulares, que podem ser pensados luz do conceito de paisagem cultural brasileira na definio do Iphan, de 2009, uma poro peculiar do territrio nacional, representativa do processo de interao do homem com o meio natural, qual a vida e a cincia humana imprimiram marcas ou atriburam valores. Os registros arqueolgicos mais antigos datam de oito mil anos, aproximadamente: vestgios da presena de caadores, coletores e pescadores prindgenas no estado, expressos por painis de arte rupestre e resduos da fabricao de ferramentas. Se hoje ns temos uma diversidade cultural acentuada dentro da populao indgena, que mostra a riqueza cultural do passado de MS, isso j vem desde a pr-histria, diz o arquelogo Gilson Martins. Ou seja: desde perodos muito distantes na linha do tempo bem anteriores formao de Santiago de Xerez, o povoado mais antigo, fundado por espanhis em 1593 possvel reconstituir universos culturais particulares, que no raro ajudam a explicar a apropriao humana do territrio em momentos posteriores. Atualmente, alguns roteiros histricos so valorizados e at explorados pelo turismo, como os que relembram a Guerra do Paraguai ou a Rota das Mones. Neste ltimo, h mais de dez anos,

22

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

passeios tursticos reconstituem o trajeto dos bandeirantes no sculo XVIII, conectando histria, meio ambiente, preservao e cultura ao abordar o perodo em que a descoberta de ouro no rio Cuiab consolidava um novo movimento de ocupao e expanso territorial na regio do atual Mato Grosso do Sul. Quanto guerra que envolveu Paraguai, Brasil, Uruguai e Argentina, de 1864 a 1870, a abrangncia internacional do conflito destaca o carter histrico de paisagens como as de Bela Vista, Jardim, Guia Lopes da Laguna, Antonio Joo, Corumb, Miranda, Aquidauana, Nioaque, Anastcio e de parte do Pantanal. A principal ao a unir turismo, cultura e histria envolve o episdio da Retirada da Laguna, com a proposta de uma trilha que segue o percurso dos soldados brasileiros. Como a Guerra do Paraguai um fenmeno histrico continental, os cenrios do conflito em MS projetam esses espaos para uma dimenso que transcende as nossas fronteiras, comenta Gilson Martins. Em diversos lugares do Brasil o Iphan est fazendo a identificao de paisagens culturais e, embora nenhum territrio sul-mato-grossense esteja identificado, possvel propor seu reconhecimento em diversas instncias, at mesmo a partir da prpria populao. Veja mais sobre paisagens culturais em Mato Grosso do Sul nas pginas 26 e 27.

A ideia do GeoparkSe um novo conceito de paisagem surgiu no horizonte, sob os auspcios da Unesco, nada mais natural que uma nova modalidade de conservao fosse criada. o caso do geopark. O termo designa uma rea delimitada, com excepcionalidades geolgicopaleontolgicas, mas cuja gesto precisa servir de estmulo ao desenvolvimento local. Apesar de abarcar stios geolgicos de importncia cientfica, raridade ou beleza, a explorao desses valores em um geopark no pode estar desvinculada do desenvolvimento econmico da regio, nem de componentes ecolgicos, histricos e culturais. O geopark est mais para um modelo de desenvolvimento econmico e social, explica Paulo Boggiani. Esse nome parque atrapalha um pouco, porque ele d essa viso de ser uma unidade de conservao, de um lugar fsico, diz o gelogo, acrescentando que muitos geoparks no usam o termo para evitar esse problema. Alm disso, o geopark no envolve s geologia ou paleontologia. Um dos conceitos fundamentais agregar vrios setores, tendo um apelo especial para o turismo, a educao e a cultura. Todos esses elementos vo se articulando, de forma que ao final do processo se chegue quele conceito de desenvolvimento local, diz o arquelogo Gilson Martins. Ao atrair o turismo e gerar atividades acessrias, a conscincia preser-

Conectando histria, meio ambiente, preservao e cultura, novo conceito de paisagem aproxima cenrios. Nas fotos menores, da esquerda para a direita, painel com rosto de mulher indgena ao lado de peas arqueolgicas, borboletas e peixes no rio da Prata em Jardim e peo conduzindo boiada no Pantanal. Na foto maior, turistas atravessam um corixo na Estrada Parque Pantanal.

RODRIGO OSTEMBERG (ACIMA), FABIO PELLEGRINI (DEMAIS FOTOS)

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

23

NIVALDO VITORINO

Tromba dos Macacos e Morro Santa Cruz: cones da paisagem reproduzidos na logomarca do Geopark Bodoquena-Pantanal (ver croqui pgina 26).

vacionista tambm fica mais aguada, j que as pessoas dependem do local para viver. Nada parecido com um simples roteiro geolgico-paleontolgico ou um museu a cu aberto. Uma explicao de um dos mentores do conceito de geopark de que o geo no se refere geologia, mas vem de Terra, de todo, completa Boggiani. Dentro desse conceito integrado, as reas podem pleitear o reconhecimento da Rede Global de Geoparks, sob os auspcios da Unesco. Hoje, 77 geoparks do

mundo inteiro so membros dessa rede, a maioria na Europa e na China. Na Amrica do Sul, o nico o Geopark Araripe, no Cear. Aprovado em 2006, ele pioneiro nas Amricas e, por enquanto, o nico do Brasil. Em 2010, a Rede Global de Geoparks recebeu 16 pedidos de incluso em sua lista. Dois foram do Brasil: um para o Quadriltero Ferrfero (Minas Gerais), e o outro em Mato Grosso do Sul, o Geopark Bodoquena-Pantanal. quena-Pantanal

Geopark ou geoparque?A opo pela grafia em ingls foi feita em funo, principalmente, da terminologia internacional e para diferenciar de parque, categoria de unidade de conservao adotada pela legislao brasileira. Criado em 2009, pelo decreto estadual 12.897, o Geopark Bodoquena-Pantanal tem cerca de 39.700 mil km2 e envolve 13 municpios: Anastcio, Aquidauana, Bela Vista, Bodoquena, Bonito, Caracol, Corumb, Guia Lopes da Laguna, Jardim, Ladrio, Miranda, Nioaque e Porto Murtinho. Na proposta enviada Rede Global de Geoparks, a rea foi reduzida para 20 mil km2. Para informaes atualizadas sobre o Geopark Bodoquena-Pantanal acesse: www.geoparkbodoquenapantanal.ms.gov.brMapa reproduzido do dossi de candidatura Rede Global de Geoparques Nacionais (adaptado do original).

24

CULTURA EM MS - 2011 - N.4

O Geopark Bodoquena-PantanalEm Mato Grosso do Sul, um grande exemplo concreto de viso global da paisagem cultural o Geopark Bodoquena-Pantanal, que abrange duas regies de rara beleza e extrema fragilidade em seus ecossistemas, no oeste e sudoeste do estado. Se integrado Rede Global de Geoparks, ser o segundo das Amricas. Criado em 2009, pelo decreto estadual 12.897, de 22 de dezembro, o Geopark Bodoquena-Pantanal envolve 13 municpios, com uma populao de aproximadamente 300 mil habitantes. Ele pleiteia o reconhecimento da Rede Global de Geoparks, j tendo sido visitado por tcnicos da instituio em junho de 2011. Na proposta enviada Rede Global, a rea do geopark, de aproximadamente 39.700 km2 segundo o decreto, foi reduzida para 20 mil km2. O relatrio dessa visita ser avaliado por uma comisso de especialistas, que dever divulgar o resultado at o final de 2011. A chancela um selo de reconhecimento de excepcionalidade, que faz com que a regio seja divulgada nacional e internacionalmente, facilitando, inclusive, o aporte de recursos financeiros. O que projeta a regio para a candidatura categoria de geopark so suas particularidades geolgicas e paleontolgicas. Alm da Corumbella, outro fssil de destaque encontrado em Corumb a Cloudina, um metazorio que viveu no Ediacarano, perodo da era neoproterozoica, compreendida entre 630 e 542 milhes de anos atrs. Ambos testemunham uma transio na histria do planeta, em que a vida evolua de formas microbianas mais primitivas para outras mais evoludas, caso dos dois fsseis. Por isso, o geopark ganhou o slogan de O alvorecer da biodiversidade. Este um geopark sui generis na rede mundial pela sua extenso, unindo duas realidades bem diferentes, da serra da Bodoquena e do Pantanal, mas que esto integradas nesse passado geolgico, de histria natural, com geosstios expressivos e bem diferenciados, avalia o arquelogo Gilson Martins. Alm de ser uma regio-chave para o conhecimento da evoluo geolgica e paleoambiental do continente sul-americano, s quem a conhece tem a dimenso de suas biodiversidade e diversidade cultural. O relevo da serra da Bodoquena rene inmeras grutas e dolinas, ressurgncias, tufas calcrias que originam cachoeiras, num territrio em que convergem provncias diferenciadas de flora e de fauna, com muitas espcies terrestres e aquticas. O substrato das rochas atribui transparncia e colorao azulada aos cursos dgua, gerando jardins submersos magnficos. uma rea prioritria para conservao, segundo o Ministrio do Meio Ambiente. Entre os bens de patrimnio histrico e cultural na regio, h territrios de ocupao indgena pretrita, marcantes na formao cultural do estado, e assentamentos rurais remanescentes de misses jesuticas. O Pantanal, por sua vez, a maior plancie inundvel do planeta, declarado

Para trazer desenvolvimentoA histria que resultou na criao do conceito de geopark ajuda a entender sua imbricao com a ideia de desenvolvimento. Envolvido desde o incio com as discusses para criao de um geopark em Mato Grosso do Sul, o gelogo Paulo Boggiani conta que o conceito remonta a um congresso internacional de geologia na China, em 1996, com profissionais que atuavam em trabalhos de geoturismo na Frana, Alemanha, Espanha e Grcia. Eram regies com caractersticas semelhantes, com as quais a gente tambm vai se identificar: reas rurais, de particular patrimnio geolgico, belezas naturais, uma paisagem excepcional, um grande potencial cultural; e todos enfrentando um problema de baixo desenvolvimento econmico, desemprego elevado, o que levava as pessoas a sarem da regio. Eles pensaram: como usar esse nosso potencial, desenvolver o geoturismo e trazer de novo essas pessoas para trabalhar aqui e trazer desenvolvimento? Boggiani explica que a denominao geopark inspirada nos parques naturais da Europa, principalmente da Frana, que tm muitas atividades econmicas envolvidas uma concepo diversa da que existe no imaginrio brasileiro. No Brasil, uma diferena importante no formato de geopark que ele no probe usos e ocupaes, nem implica indenizaes e desapropriaes. No tem nenhuma lei brasileira que enquadre ou o remeta a uma estrutura ou a uma instituio, e eu acho muito boa essa abertura. Em Mato Grosso do Sul, na dcada de 1990, uma tentativa prxima do formato dos parques naturais franceses foi pensada para o Pantanal, ligada Secretaria do Meio Ambiente e Federao dos Parques da Frana, mas no teve continuidade. Para o gelogo, algumas aes so essenciais para que o Geopark BodoquenaPantanal vingue em Mato Grosso do Sul com o brilho sonhado pela proposta mundial: montar uma equipe de trabalho em tempo integral, elaborar projetos educacionais, de geoconservao, de divulgao cientfica e para arrecadar fundos. Para isso, preciso uma equipe mnima, talvez trs ou quatro pessoas que durmam e acordem pensando o geopark 24 horas por dia. Trabalhando essas questes, o Geopark Bodoquena-Pantanal pode ser a oportunidade de unir interesses e at alavancar propostas antigas para a regio. Nossos modelos de desenvolvimento no esto dando a resposta que a gente quer. O geopark pode ser uma nova forma de pensar, gerir e planejar o