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CÉSAR AZEVEDO CARNEIRO
A Eclesiologia de Comunhão em Yves Marie-Joseph Congar
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia da PUC – Rio como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teologia.
Orientadora: Profª Ana Maria Tepedino
Rio de Janeiro Março de 2008
César Azevedo Carneiro
A Eclesiologia de Comunhão em Yves Marie-Joseph Congar
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC – Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Ana Maria de A. Tepedino Orientadora
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Profa. Eva Aparecida R. de Moraes Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. José Li Guozhong Faculdade São Bento
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro
De Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 28 de março de 2008
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da Universidade.
César Azevedo Carneiro
Graduado em Filosofia pela PUC Minas e em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA – BH). Especialista em Ciências da Religião (PUC Minas).
Ficha Catalográfica
Carneiro, César Azevedo
A eclesiologia de comunhão em Yves Marie-Joseph Congar / César Azevedo Carneiro; orientadora: Ana Maria Tepedino. – 2008. 95 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Eclesiologia. 3. Comunhão. 4. Trindade. 5. Concílio Vaticano. 6. Congar, Yves Marie-Joseph. I. Tepedino, Ana Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.
CDD: 200
Dedico esse trabalho à minha família, aos amigos fiéis, aos eternos mestres e aos alunos companheiros do dia-a-dia.
Agradecimentos
À minha orientadora Professora Doutora Ana Maria Tepedino pela dedicação nesse acompanhamento e sensibilidade aos imprevistos da distância (BH – Rio). À PUC - Rio pelo acolhimento, apoio e confiança. À minha família que sempre esteve na torcida, apoiando e incentivando minha trajetória acadêmica. Ao amigo Pe. Ronnie Anderson Diniz, irmão e orientador de todas as horas e necessidades. À amiga, mestre e sempre companheira Ir. Maria Helena Morra, que me mostrou a beleza da teologia, grande incentivadora na vida profissional e acadêmica. Aos colegas professores e funcionários do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, pela paciência, confiança e solidariedade. À Igreja de Deus em terras mineiras, pelo ensinamento pastoral e vivência da comunhão.
RESUMO
Carneiro, César Azevedo; Tepedino, Ana Maria Azeredo. A Eclesiologia de Comunhão
em Yves Marie-Joseph Congar. Rio de Janeiro, 2008, 95p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O foco deste trabalho está na fundamentação, na caracterização e no processo da
Eclesiologia de Comunhão no pensamento de Yves Marie-Joseph Congar, cuja contribuição
teológica nos remete a refletir a Igreja na dinâmica da Trindade, onde reside sua origem, seu
modelo e sua meta. A Igreja é anunciada e revelada como comunhão. Pretende-se refletir essa
eclesiologia articulada com as intuições e a “reviravolta” teológica trazida pelo Concílio
Ecumênico Vaticano II no contexto de sua recepção. Visando uma síntese mais abrangente
que valorize tanto o Concílio quanto os estudos de nosso teólogo, o autor procede em três
passos: primeiro, a caracterização do fundamento básico da eclesiologia congariana: toda
cristologia é pneumatologia e vice-versa. Segundo, a articulação da recepção do Vaticano II
com o pensamento de Congar, valorizando os modelos de Igreja, as suas notas e propriedades.
No terceiro passo, refletiremos sobre os sinais, dimensões e procedimentos da Eclesiologia de
Comunhão em Yves Congar e suas implicações na dinâmica eclesial.
Palavras-chave
Eclesiologia, Comunhão, Trindade, Concílio Vaticano II, Yves Marie-Joseph Congar.
RESUME
Carneiro, César Azevedo; Tepedino, Ana Maria Azeredo. L’ecclésiologie de
Communion chez Yves Marie-Joseph Congar. Rio de Janeiro, 2008, 95p. Mémoire de Mastère – Departamento de Teologia , Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
L’objet de cette recherche se situe dans la fondamentation, la caractérisation et dans le
processus de l’Ecclésiologie de Communion dans la pensée de Yves Marie-Joseph Congar,
dont la contribution théologique nous conduit à penser l’Église dans la dynamique de la
Trinité, dans laquelle se trouve son origine, son modèle et son but. L’Église est annoncée et
révélée comme communion. Il s’agira de penser cette ecclesiologie en l’articulant avec les
intuitions et le “retournement” théologique opéré par le Concile Vatican II, dans le contexte de
sa réception. Visant une large synthèse, l’auteur procède en trois étapes. La première est la
caractérisation du fondement de base de l´ecclésiologie congarienne: toute christologie est
pneumatologie et inversement. La seconde est l’articulation de la réception de Vatican II avec
la pensée de Congar, en mettant en valeur les modeles d’Église, leurs notes et leurs propriétés.
Dans la troisième étape, nous réfléchirons aux signes, aux dimensions et aux méthodes de
l’Ecclesiologie de Communion chez Yves Congar et ses implications dans la dynamique
ecclésiale.
Mots-clé
Ecclésiologie, communion, Trinité, Concile Vatican II, Yves Marie-Joseph Congar.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
Capítulo I: A caracterização do pressuposto básico da Eclesiologia de
Comunhão em Yves Congar 17
I.1. Introdução 17
I.2. A Cristologia Pneumatológica 18
I. 2.1. A Experiência de Revelação e Filiação 19
I. 3. A Pneumatologia Cristológica 23
I. 3.1. O Espírito Santo e a Experiência da Revelação 24
I. 3. 2. A Teologia Trinitária e o Espírito Santo 26
I. 4. Toda Cristologia é pneumatológica e toda Pneumatologia é
Cristológica 29
I. 4.1. A quênose do Espírito e a quênose do Verbo 30
I. 5. Conclusão 32
Capítulo II: A caminho da Eclesiologia de Comunhão: o Concílio Vaticano II
e a Eclesiologia de Comunhão de Yves Congar 35
II. 1. Introdução: O Concílio Vaticano II e suas esperanças para a Igreja 35
II. 2. A questão dos modelos de Igreja e as perspectivas da comunhão 42
II. 2.1. Igreja Povo de Deus 42
II. 2. 2. Igreja Corpo Místico de Cristo 46
II. 2. 3. Igreja Templo do Espírito Santo 49
II. 3. Notas e propriedades da Igreja 51
II. 3.1. Unidade 52
II. 3. 2. Santidade 54
II. 3.3. Catolicidade 55
II. 3. 4. Apostolicidade 56
II. 4. A Eclesiologia de Comunhão no pensamento de Yves Congar 57
II. 5. Conclusão 60
Capítulo III: A Eclesiologia de Comunhão e realidade eclesial: sinais,
dimensões e formas de processamento da Eclesiologia de Comunhão 62
III.1. Introdução: O redescobrimento da Eclesiologia de Comunhão 62
III. 2. As dimensões da comunhão 64
III. 2.1. A dimensão de Koinonia 64
III. 2.2. A dimensão Escatológica 68
III. 2.3. A dimensão Sacramental 70
III. 3. As formas de se processar a comunhão 73
III. 3.1. A comunhão de fé 73
III. 3. 2. A comunhão de culto e pelos sacramentos 75
III. 3. 3. A comunhão de vida social na perspectiva da caridade 78
III. 4. Conclusão: a Igreja é uma comunhão, uma comunhão de Igrejas 80
CONCLUSÃO 84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 88
ABREVIATURAS
De escritos de Congar: AG Decreto do Concílio Vaticano II Ad gentes
ES I Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo I: L´Esprit Saint dans l’ Économie;
révélation et expérience de l’Esprit.
ES II Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo II: Il est Seigneur et Il donne la vie.
ES III Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo III: Le Fleuve de vie (Ap 22, 1) coule em
Orient et em Occident.
PE A Palavra e o Espírito
SC Le Saint-Espirit et le corps Apostolique réalisateurs de l´oeuvre du Christ
Outras abreviaturas:
AG Decreto Ad gentes
CD Decreto Christus Dominus
CEB Comunidade Eclesial de Base
CIC Catecismo da Igreja Católica
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
DV Constituição Dogmática Dei Verbum
GS Constituição Dogmática Gaudium et Spes
LG Constituição Dogmática Lumen Gentium
OT Decreto Optatam totius
PC Decreto Perfectae caritatis
PO Decreto Presbyterorum ordinis
SC Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium
UR Decreto Unitatis redintegratio
13
INTRODUÇÃO
O símbolo maior da mudança de enfoque da relação entre fé cristã e
mundo moderno é o Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII.
Precedido por importantes movimentos de renovação que, num cauteloso
crescente, vinham propondo os grandes temas da renovação da Igreja nos mais
diversos aspectos, como na exegese bíblica, na vida eclesial, na liturgia, na ação
pastoral e na teologia propriamente. De caráter prevalentemente pastoral, o
Concílio inaugurou um tempo novo para a Igreja em todo o mundo, cunhando,
definitivamente, a necessidade de uma correta reflexão teológico-pastoral em vista
de uma Igreja mais dialógica e comunional.
Pela própria natureza da Igreja, esse evento foi (e ainda é!) ao mesmo
tempo uma experiência espiritual, enquanto manifestação do Espírito de Cristo
que renova a sua Igreja, e um acontecimento da história, no clima cultural do
mundo moderno. Como todo evento histórico, também o Concílio está submetido
às suas limitações. Por isso mesmo, para compreender seu dinamismo pleno não é
suficiente fixar-se na sua realização como evento histórico. É necessário buscar-
lhe um sentido mais amplo no horizonte de sua repercussão, de seus antecedentes,
sua eficácia histórica, no conjunto do povo de Deus. Teologicamente, o Concílio e
todo seu momento de preparação e recepção fazem parte da mesma ação do
Espírito que conduz a Igreja pelo caminho da comunhão.
Um dos obstáculos apontados pelo Concílio foi urgente reflexão
pneumatológica sobre a Igreja. Um “novo Pentecostes” configurava o Concílio
nessa perspectiva. Teólogos como Yves Congar1 propuseram uma visão nova de
1 Yves Marie-Joseph Congar (1904-1995), ilustre teólogo do século XX, descobriu sua vocação religiosa num ambiente diocesano de Paris. Aos 21 anos ingressa à Ordem dos Pregadores, tornando-se uma das grandes referências dos Dominicanos contemporâneos. De formação Tomista (influenciado, sobretudo, por J. Maritain e F. Blanche), Congar recebe sua maior influência intelectual de Marie-Domenique Chenu, principalmente no contexto da “historicidade da Teologia”. Ordenado sacerdote em julho de 1930, Congar inicia seu “ministério teológico” em direção de uma Eclesiologia ecumênica. Em Le Saulchoir descobre o gosto pela carreira acadêmica assumindo a cadeira “De Ecclesia”, onde no ano de 1937, impulsionado por espírito de
14
ver e entender a Igreja que já abriria caminhos a uma consciência de comunhão
dentro e fora dos muros eclesiais. Yves Marie-Joseph Congar foi um grande
responsável pela abertura da teologia católica para a questão ecumênica. Para ele,
a unidade dos cristãos é uma tarefa histórica para as Igrejas. O problema é saber
até que ponto a comunhão pode tolerar a diversidade. Sua proposta se baseia em
praticar uma re-recepção dos escritos normativos para a fé de cada Igreja, para
situá-los de novo no conjunto do testemunho da Escritura. Supõe repensar os
dogmas, historicizar a própria tradição e relativizar contrastes, evidenciando o
núcleo comum das diversas tradições cristãs. Congar pondera que, para isso, é
necessário uma longa e cautelosa caminhada.
Posto isto, nesta dissertação refletiremos sobre o paradigma eclesiológico
de Congar baseado na comunhão, a saber, a Eclesiologia de Comunhão, que tem
como fundamento primordial a origem da Igreja na Trindade. As relações
intratrinitárias, queridas por Deus e garantidas pela ação do Espírito,
autonomamente preservadas, asseguram a fundamentação teológica para esse
paradigma. A Igreja, com sua natureza batismal e como sinal visível de salvação à
humanidade, é o lugar da comunhão por excelência.
Pretende-se articular o pensamento de Congar sob o crivo de três relações
essenciais, a saber: pneumatologia – eclesiologia – comunhão. Na amplitude dos
escritos de Congar, essas relações se fazem fortemente notar, ainda que nem
sempre verbalmente explicitadas. Apesar de se co-implicarem reciprocamente,
renovação declaradamente de ardor ecumênico, lança a Coleção de Eclesiologia e ecumenismo “Unam Sanctam”. Essa coleção de livros, inicialmente, deveria abarcar estudos teológicos, históricos e ecumênicos e, pela urgência de uma reflexão teológica mais apurada nessa área, acabou por se tornar uma referência na renovação da eclesiologia católica francesa marcada pela Cristandade. Dessa coleção surge a principal obra de nosso teólogo na linha do ecumenismo: “Les chrétiens desunis”. Conhecido pela excelência de sua pregação e pelos conteúdos teológicos libertários da mesma, no período da Segunda Guerra Mundial, nosso teólogo é preso e nessa experiência de exílio relê a história recente da Igreja na França e vê nesses acontecimentos o período de maior amadurecimento eclesiológico de sua carreira. Nos anos seguintes, 1947-1956, por conta da publicação de sua obra “Vraie et fausse reforme dans l’église”, recebe por parte da Igreja Universal censuras e intervenções e exilado, novamente, é enviado à Terra Santa. Nos anos do Concílio Vaticano II (1961-1964), Congar torna-se uma figura chave nesse processo de mudança da Igreja. Consultor e perito oficial da Comissão teológica, ele redescobre nessa abertura da Igreja um evento providencial de renovação da eclesiologia. No ano de 1995 nosso teólogo “é chamado a contemplar a face de Deus” deixando um legado inestimável ao saber teológico.
15
nesta dissertação optaremos por dialogar com essas categorias no contexto próprio
do Concílio Vaticano II e no período subseqüente a fim de compreendermos a
Eclesiologia de Comunhão de nosso teólogo e suas implicações no espaço
eclesial.
Precedido desta introdução, o corpo da dissertação constará de três capítulos.
O primeiro tratará da fundamentação e os pressupostos da Eclesiologia de
Comunhão de Yves Congar, ou seja, da relação dialético-teológica entre
pneumatologia e cristologia. Perscrutada a origem dessa relação no mistério
trinitário, mediante uma avaliação e confrontação crítica das tradições latinas e
grega, dar-se-á uma atenção especial às missões econômicas do Verbo e do
Espírito advindas do Pai, testificadas pelas Escrituras. Daí Congar propunha a
base histórica de seu axioma fundamental: Toda Cristologia é Pneumatologia e
vice-versa. Ratificada essa base teórico-existencial do pensamento de Congar que
preconiza a existência de uma dualidade relativa entre as operações e iniciativas
salvíficas do Filho e do Espírito na Economia da graça, teremos o chão concreto
de nossa pesquisa que é a Eclesiologia de Comunhão, que nasce do coração
mesmo da Trindade.
No segundo capítulo, buscaremos a base histórica da Eclesiologia de
Comunhão em diálogo profundo com a realidade do Concílio Vaticano II,
ressaltando as discussões em torno do tema e as características da Eclesiologia de
Comunhão em Yves Congar. O foco desse capítulo deve ser encontrado
positivamente na articulação da chave eclesiológica do Concílio, a categoria Povo
de Deus, com a categoria que mais fortuna teve no pós-concílio e muito cara a
nosso teólogo, a saber, a comunhão. Parte-se do fato de que o Concílio não foi um
evento historicamente acabado e perfeito. Sua visão eclesiológica,
necessariamente aberta ao processo de recepção, carece de uma síntese mais
profunda. As categorias eclesiológicas, tanto trazidas pelo Concílio como
refletidas por Congar, são produtos históricos da razão crente e, por isso mesmo,
não esgotam a compreensão do mistério da Igreja, mas cada uma delas conota
algo de fundamental do ser da Igreja enquanto mistério de comunhão. Além do
mais o uso de categorias sempre tem a ver com interesses concretos que transitam
na sociedade, conotando não só o dado teológico, mas também a sua relação com
16
a sociedade e seus ordenamentos históricos como o político, o econômico, o
cultural e o religioso.
O terceiro capítulo abordará os sinais e as formas de processamento da
Eclesiologia de Comunhão. A Comunhão deve ser um conceito entendido
teologicamente à luz dos dados da revelação de Deus. Desde sua raiz trinitária até
os eventos eclesiais propriamente, podemos refleti-la de formas variadas e com
significações diversas. Suas dimensões – koinonia – sacramental – escatológica –
dão-nos a medida precisa de como valorizar e identificar na vida cristã a sua
vocação primeira. Suas formas de processamento na realidade eclesial
determinam o modo próprio de ser e de realizar-se na história e testifica a Igreja,
em sua natureza, origem e estrutura como comunhão.
A pesquisa baseou-se em fontes bibliográficas, buscando fazer uma leitura
teológico-pastoral das principais obras de Yves Congar concernente ao tema da
Eclesiologia de Comunhão e um diálogo com outros autores afins. Para isso, o
principal método foi o que parte da experiência fundamental cristã, assumindo a
Igreja como Povo de Deus, sujeito da comunhão, nascido da e chamado à
comunhão pericorética intratrinitária. E também: o método reflexivo e o da
mediação sócio-analítica (teologia dos sinais dos tempos, relação Igreja –
mundo).
Cabe ressaltar que a escolha de Yves Congar e de sua obra como objeto de
investigação e análise deve-se, sobretudo, à sua grande notoriedade na Igreja
como teólogo e moderador do grande Concílio Ecumênico do século XX:
Vaticano II. Somado a isso, sua perspectiva ecumênica de Igreja, seu zelo
apostólico pelo papel dos leigos na vida eclesial, face ao clericalismo
institucional, e sua capacidade de discernimento à verdade histórica ratificam o
desejo e o valor dessa escolha. E, finalmente, a vasta e valiosa contribuição
literária congariana, especialmente seus escritos pós-conciliares concernentes à
Pneumatologia – que, a propósito, hão de constituir-se na principal fonte de
análise e consulta da presente dissertação, dão a certeza da escolha feita.
Não obstante talentoso e perspicaz em suas análises, dotado de um estilo
literário preciso e fluente, Congar não se intitula como um grande teólogo
17
sistemático. Ao escrever, nosso autor tende a ser, muitas vezes, digressivo e
repetitivo, dificultando o alinhavamento das idéias. Nem sempre se vê clara a
organização de seu pensamento, quando não se tem em mente o conjunto de seus
escritos teológicos (sobre a sua Eclesiologia de Comunhão, Congar não dedicou
uma obra específica sobre esse tema, mas ele abordará o tema em diversos de seus
escritos).
Na prática, o que se pretende nessa dissertação é articular a Eclesiologia de
Comunhão de Yves Congar numa tentativa de superar de vez a insuficiência
histórica da categoria comunhão como definição da natureza da Igreja,
contrabalançando o seu uso ideo-político, determinando-lhe o modo próprio de ser
e de realizar na história.
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CAPÍTULO 1:
A CARACTERIZAÇÃO DO PRESSUPOSTO BÁSICO DA ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO EM YVES CONGAR
I.1. Introdução
O pensar teológico, durante alguns séculos de história, trabalhou a
Cristologia como conteúdo independente e até mesmo isolado da ação do Espírito.
Tamanha foi a supremacia dessa postura dentro da teologia, que se acabou por
criar um cristomonismo2 exacerbado, tendo como conseqüência um
desaparecimento da Pneumatologia dentro das esferas teológicas e,
conseqüentemente, tornando-a a grande esquecida da fé crente. O tratado da
Cristologia é a explicitação de tudo aquilo que está encerrado na confissão de fé:
Jesus (de Nazaré) é o Cristo, ou seja, o Ungido, o Enviado último de Deus à
humanidade. Essa profissão de fé não pode se esquivar do prenúncio
pneumatológico, ou seja, a ação de Deus em Jesus é absolutamente marcada por
uma existência pneumática. A ação do Espírito em Jesus e o dom que ele faz do
Espírito não são eventos divisíveis do ponto de vista temporal. O kairós de Cristo
é também Kairós do Espírito3. É imprescindível que a Cristologia seja entendida
em sua articulação fundamental com a Pneumatologia e vice-versa, acredita
Congar.
2 Termo relativamente recente dentro das esferas teológicas, é utilizado, sobretudo, para significar o primado e a unicidade da mediação de Jesus Cristo. E mais, relaciona a realidade da Igreja unilateralmente a Jesus Cristo como seu fundador e princípio de vida, não valorizando suficientemente a missão e função originais do Espírito Santo para sua animação carismática. Conseqüência eclesiológica: uma concepção de Igreja ligada fundamentalmente só a Cristo, sendo que ao Espírito Santo não é reconhecida nenhuma função constitutiva. 3 No pensamento Congariano, Kairós tem sua originalidade na declaração de que a situação temporal da história já se cumpriu em razão da encarnação de Deus, o Filho, no tempo e no espaço do homem sob égide renovadora do Espírito Santo.
19
Imbuído dessa intuição, Congar propõe uma relação dialético-teológica
fundamental entre Pneumatologia e Cristologia. Pesquisada a origem dessa
relação no mistério intratrinitário, resguardando a cidadania do Verbo e do
Espírito, ambas advindas do Pai, nosso autor extrairá a base de seu axioma
fundamental: Toda Cristologia é Pneumatologia e toda Pneumatologia é
Cristologia. Esse axioma servirá de fundamentação e pilar à sua Eclesiologia de
Comunhão.
Refletiremos agora as etapas pelas quais nosso teólogo seguiu para definir
seu axioma fundamental.
I.2. A Cristologia Pneumatológica
O Cristo está penetrado pelo Espírito e vice-versa. Na unidade de Deus-
Pai, Filho e Espírito, a relação pericorética4 assegura a essencialidade da profissão
de fé trinitária: nosso Deus é um Deus relação, um Deus Tri-uno, unidade na
diversidade das pessoas santas. Os enunciados primordiais de Congar bebem
dessa verdade para aprofundar a Cristologia e a Pneumatologia. Uma Cristologia
só é plena se não houver divisão da ação do Espírito da obra mesma de Cristo.
Também a Pneumatologia não pode ser refletida sem a base cristológica. Na
existência histórica de Jesus, o Verbo e o Espírito se encontram indelevelmente
unidos. O Espírito é o Espírito de Cristo. Cristo e Espírito formam a união
hipostática de Deus com a raça humana.
4 Relacionalidade típica do Deus trinitário como amor que se comunica e ajuda a entrever no Deus-comunhão o ícone da comunidade dos homens chamados a fazer da experiência humana familiar, social, pessoal, um reflexo da circulação pericorética do amor do Deus de Jesus Cristo. Com a categoria de pericorese, a teologia trinitária obteve um ganho notável historicamente: o de aproximação da concepção ocidental à concepção oriental de Deus, vista sobretudo no sinal da oikonnomia e da dinâmica do amor tripessoal eterno que se funde e se comunica.
20
I. 2.1.
A Experiência de Revelação e Filiação
A relação intrínseca entre Cristologia e Pneumatologia advém da própria
experiência de Revelação, atestada pelos relatos bíblicos, passando pela tradição e
chegando até nossos dias. Essa realidade revelatória “constitui o objeto de nossa
fé e de nossa esperança à qual fomos chamados”5. O itinerário congariano é
percebido de forma decisiva pela revelação de Deus em Jesus: “ninguém subiu ao
céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem” (Jo 3, 13). A
experiência do Deus cristão se especifica mediante a revelação de Jesus Cristo.
Não há acesso a Deus a não ser no Filho, que, gozando da eternidade junto ao Pai,
se fez carne e tornou-se um de nós. Daí se conclui que conhecer a pessoa de Jesus
Cristo é essencial para o conhecimento de Deus (cf. Jo 17, 3). Jesus Cristo como
revelador do Pai aparece como a verdadeira chave hermenêutica da sua vida.
Congar tem nesse fato o ponto de partida de toda a sua fundamentação
básica. A Revelação histórica de Jesus é a condição primordial para compreensão
e desenvolvimento do dogma trinitário. E mais: um dos acessos a essa revelação
dá-se nos textos bíblicos, nos quais podemos testemunhar as características da
relação trinitária na qual professamos a fé. Mas adverte nosso teólogo: a fé
necessita apoiar-se na história, porém os Evangelhos não são propriamente um
testamento histórico, mas testamento de fé. Esses textos que sabemos não serem,
em grande parte, fatos históricos, mas que, apesar de tudo isso, cremos terem sido
inspirados pelo Espírito, suscitam a afirmação de fé.
O magistério da Igreja confirma essa verdade:
As coisas divinamente reveladas, que se encerram por escrito e se manifestam na Sagrada Escritura, formas consignadas sob inspiração do Espírito Santo (...) Portanto, já que tudo o que os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista de nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras6.
5 CONGAR, Yves M. - J. Introdução ao mistério da Igreja. Tradução de Petrus Gerardus Hollanders. São Paulo: Herder, 1996. p.12. 6 DV nº 11
21
Percorrendo os relatos bíblicos, nos deparamos com experiências
extraordinárias da ação mesma de Deus, de seu desejo de querer se revelar. De
fazer-se Trindade em nós. Assegurando o foco de nossa pesquisa, nos textos
veterotestamentários, observamos uma preparação (implícita) da experiência
trinitária. Os autores bíblicos preparam os atributos de Deus – criador e redentor
– na perspectiva da revelação histórica que, posteriormente, serão cridos e
sistematizados na compreensão da Trindade.
Utilizando a nomenclatura do teólogo J. B. Libanio, podemos pensar a
revelação bíblico-histórica de Deus se desvelando como uma automanifestação de
Deus mesmo e de seu plano salvífico, em três grandes momentos7: fase da
Promessa, fase da Realização em Jesus Cristo e fase da Consumação. Dentro da
atmosfera do pensamento de Congar, podemos utilizar tal nomenclatura para
ratificar o valor dado pelo nosso teólogo à experiência histórica da revelação.
2. Fase da Promessa: exemplificamos com os relatos proféticos, onde a
imagem da revelação dá-se através das Palavras de Promessa, que
inspiram e despertam no povo a esperança diante do mistério divino
(cf. Is 42, 1-8; 49, 3-9; 50, 4-9; 52, 13; 53, 12). A centralidade da
Aliança no Sinai é ao mesmo tempo herança e promessa de Deus a seu
povo, que por sua vez lê a partir daí os acontecimentos anteriores
(criação – Noé – Abraão) e projeta o que viverá posteriormente (juízes
– realeza – profetismo – experiência sapiencial – apocalíptica). Israel
vê nessa experiência uma faceta de Deus e de seu plano salvífico,
ultrapassando uma visão religiosa cultual (1Rs 6, 8, 10-13; 9, 1-3, 7;
Esd 5,2) e projetando-se para uma experiência religiosa que valoriza a
vida e a história mesma do povo.
3. Fase da Realização de Jesus Cristo: nessa fase, Jesus torna-se a voz
profética de Deus no meio de uma sociedade marcada por uma política
e por uma religião da “Lei pela Lei”, ressecada e distante da
7 LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da modernidade. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 317.
22
experiência mesma de Deus. A palavra de Jesus desvela o querer
libertador de Deus à humanidade na medida em que denuncia essa
sociedade que assegura o primado da Lei em detrimento do primado da
pessoa humana. Por isso, Jesus torna-se uma Palavra de Promessa, de
esperança e de intimidade com Deus. Ele é a plenitude da revelação
histórica e definitiva de Deus (cf. Hb 13, 8; 1,2). Jesus confirma e
plenifica a fase anterior, ao mesmo tempo em que inaugura um modo
novo de o homem pensar e viver Deus na vida (cf. Mc 1, 14s). Ele é o
perfeito e escatológico revelador de Deus (cf. Mt 11, 25-27; Jo 17).
4. Fase da Consumação: o Verbo encarnado é a revelação plena do amor
gratuito e fiel do Pai à humanidade. A consumação dá-se na glória
visível do Filho que manifesta a invisibilidade do Pai, conforme atesta
o evangelista João: “Quem me viu, viu o Pai” (14, 9).
Todo esse itinerário da revelação história de Deus não só aponta para um
estudo histórico e cultural, mas, sobretudo, para uma legítima maneira de se
compreender o movimento de Deus em revelar a si mesmo e o seu plano salvífico.
Nosso teólogo afirma que esse processo se dará na homogeneidade de finalidade e
conteúdo entre a obra de Cristo e a obra do Espírito8.
Outra categoria teológica central que para Congar é um elemento
imprescindível para a articulação de toda Cristologia é a filiação. Essa relação-
experiência viva, dinâmica e totalizante é captada, segundo nosso autor, por certos
elementos implícitos: as atitudes e comportamentos de Jesus (Ex.: quando Jesus
perdoa ou cura, ele não fala de Deus, mas implicitamente revela algo de sua
autoridade, de sua relação com Deus); e elementos explícitos: oração, obediência
e fé. Como Jesus viveu essa relação de filiação dá-nos a medida, do ponto de vista
humano, da densidade dessa experiência na história: “Jesus se dirige ao Pai com
gritos e lágrimas”.
8 Cf. Introdução ao Mistério da Igreja, p. 3.
23
Essa experiência orienta-nos sobre a identidade de Jesus (Quem é Jesus?)
e como ele entendia o Pai. Jesus como homem, só se pode entender sua existência
humana na medida em que se refere a Deus, a quem chama de Pai. Ele vive
totalmente de Deus e para Deus. Na própria consciência de Jesus emerge a certeza
de que ele nem começa e nem termina em si mesmo. Sua identidade é totalmente
relativa: Pai – Filho. Estar sempre fora de si, voltado para o Pai, constitui o
pressuposto de tudo o que Jesus faz. Tudo lhe é dado pelo Pai: Deus é alteridade
total, que não se confunde com ele – é o Pai. Aí aparece a unidade de tudo o que
ele realiza: uniciência de seu ser de, em e para Deus (Jo 10, 30: “O pai e eu somos
um”).
A radicalidade dessa relação filial em Jesus é tamanha que extrapola a sua
própria experiência. Jesus vai introduzindo os discípulos nessa experiência. Ele
não diz “Pai nosso”, mas “Pai” (Cf. Jo 20, 17: “o meu Pai e o vosso Pai”, “o
meu Deus e o vosso Deus”; Jo 10, 29s.37s; Jo 5, 19.30).
As duas realidades explicitadas anteriormente, revelação e filiação,
atestam a necessidade de uma correta articulação da Cristologia com a
Pneumatologia. O Espírito é o grande articulador desse movimento. Nessa
experiência fundante, nosso autor suscita a pergunta introdutória sobre o acesso ao
conhecimento da Pneumatologia cristológica: “O Espírito está sem rosto, quase
sem nome próprio. É o vento que não se vê, mas que faz mexer as coisas. Por seus
efeitos ele se dá a conhecer”9.
I. 3.
A Pneumatologia Cristológica
Nas Cristologias contemporâneas, uma atenção especial à intervenção do
Espírito no mistério de Cristo tem norteado o estudo de muitos teólogos. Congar
9 Cf. ES III, p. 193.
24
defende a necessidade de uma reflexão cristológica imbuída da Pneumatologia,
fazendo juz às missões do Verbo e do Espírito na vida concreta de Cristo.
I. 3.1.
O Espírito Santo e a experiência da Revelação
Anterior a fé em estado de saber, está à experiência revelatória do Espírito
de Deus. Na tradição teológica o Espírito sempre se colocou como uma presença-
real indagadora e dinamizadora da própria obra de Deus. Na escritura e na
Tradição da Igreja, recorda Congar, esse Espírito é lembrado na presença variada
de símbolos e imagens10. Tais como: sopro, ar, vento. Dos relatos
neotestamentários subtraem a experiência da “ruah” divina11, que se revela como
uma força vitalizadora do homem e do mundo, que na história realiza o desígnio
de Deus.
Essa experiência bíblica estritamente existencial, Congar contrasta-a com
o conceito grego afirmando:
Se o mundo da cultura grega pensa em categorias de substância, o judeu pensa em força, energia, princípio de ação. O espírito-sopro é aquele que age e faz agir e, se tratando do Sopro de Deus, anima e faz agir para realizar o Desígnio de Deus. É sempre uma energia de vida12.
Sob a ótica do Novo Testamento, nosso teólogo explora o simbolismo do
Espírito-Água do Evangelho joanino (cf. Jo 4, 10.13-14; 6, 35; 7, 37-39; Is 44, 3-
4) que, na lógica deste, aplaca nos homens a sede de vida eterna13. Outras
metáforas que retratam a presença dinâmica e vitalizadora do Espírito são as de
fogo e línguas luminosas (cf. Is 66, 15; 6, 6-7; At 2, 3), da Unção do Crisma (cf.
10 Cf. ES III, p. 26-27. 11 No Antigo Testamento a palavra hebraica Ruah, empregada 378 vezes, tem várias acepções: acepção etimológica: movimento de ar surpreendente e forte (movimento do vento, da respiração); acepção básica: vento, respiração; desdobramento antropológico: força vital, ânimo ou mente, vontade; e, finalmente, uma acepção teológica: força espiritual divina; força profética; Espírito de Deus. No Novo Testamento, os sinóticos testificam Jesus como portador do Espírito; já João e Paulo ampliam o conceito pneumatológico. 12 Cf. ES I, p. 20-21. 13 Cf. ES I, p. 75-81.
25
Is 61, 1; Lc 4, 18; At 10, 38), da Pomba (cf. Mt 3, 16) e do Dedo de Deus (Lc 11,
20; Mt 12, 28).
Congar questiona o porquê de a Revelação Divina do Santo Espírito
acontecer, preferencialmente, através de símbolos e imagens, analogias e
metáforas? E é a partir dessa indagação que nosso autor dá início à sua
sistematização a respeito da Pneumatologia cristológica.
Recorrendo a São Tomás, nosso autor esclarece que tais imagens são
necessárias para não esgotar o mistério inefável de Deus. Essas imagens, por mais
estranhas que sejam, são, talvez, as mais indicadas por evitarem a ilusão de que
um enunciado racional seja adequado para captar e abarcar o mistério infinito. Daí
a indicação da mediação simbólica como espaço da apreensão do transcendente14.
A metáfora intenciona o significado relacional da ação do Espírito de Deus. A
experiência revelatória do Espírito diz respeito, sobretudo, àquilo que Deus é para
nós, com vistas à nossa salvação em Jesus Cristo, nosso Senhor. Não se pretende
com isso dissecar a realidade íntima do ser de Deus, conclui Congar15.
As dificuldades de sistematização em torno do Espírito Santo já vêm de
longa data. Parte dessa dificuldade dá-se, sobretudo, pela manifestação do Espírito
destituído de um rosto pessoal mais explícito16; gerando uma incorreta acepção de
que sua ação está dissimulada ou até dissolvida na ação do Pai e do Filho.
Em termos teológicos, essa dificuldade tende a se acentuar. Na dinâmica
da Trindade, as características próprias de cada uma das pessoas divinas (noção)
são atestadas com uma apropriação clara e acessível da relação Pai - Filho.
“Paternidade” e “filiação” são absolutamente compreendidas na esfera humana
em sua explicitação: a partir de tais características, compreende-se o conceito de
pessoa, ou melhor, a partir de suas diferenças, visualiza-se, em si mesmas, um ser
pessoal (Pai e Filho). Já na experiência do Espírito, tal assimilação não é tão clara 14 Cf. PE, p. 15. 15 Cf. PE, p. 15. Sobre esse questionamento, afirma São Bernado: “Sei bem o que Deus é para mim; quanto ao que Ele é para si, somente Ele o sabe” (De Consideratione V, 11.24). 16 Embora o Espírito Santo seja reconhecido pelo Novo Testamento como sujeito de variadas ações, essa dificuldade persiste ao longo da grande tradição teológica.
26
e objetiva. “Espiração passiva”, a princípio, não caracteriza, por si mesma, uma
pessoa. A própria noção de “Espírito” e “Santo” é perfeitamente aplicada ao Pai e
ao Filho. E mais, na dinâmica das processões trinitárias as dificuldades persistem.
Não há uma revelação objetiva da terceira pessoa da Trindade, assim como é
explícito na experiência do Pai e na do Filho.
O que isso tem a nos dizer à luz de Congar e de toda a Tradição teológica?
É legítimo afirmar uma relatividade do Espírito em relação ao Pai e ao Filho?
Como passar do nível das imagens a formulações conceituais (racionalização)?
Ao Espírito é possível conferir nome e ação próprios?
As Escrituras nos acalentam, dizendo que sim. E mais, nos lançam à
questão pneumatológica crucial: o esvaziamento do Espírito Santo, ou melhor, a
sua quênose trinitária. Embora o Espírito seja caracterizado, tanto na Escritura
quanto na experiência religiosa, como uma força ou um dinamismo retratados em
imagens, a fé crente pede a confissão de sua condição de pessoa17 (cf. Jo 14, 26).
Para Congar, as imagens bíblicas são legítimas em si mesmas, pois se prestam à
tarefa dogmática – ricas em conteúdos e significados inteligíveis (a analogia é
necessária ao ato de teologizar e indispensável na sistematização da dinâmica
trinitária e na própria experiência de Deus).
Embora em nosso trabalho não seja possível, e nem é o objetivo primeiro,
descrever a história da Pneumatologia, é necessário apresentar alguns dados
essenciais, relativos ao nosso tema proposto, a saber, a relação entre Cristologia e
Pneumatologia, e um aprofundamento teológico que nos garanta uma
compreensão da fé eclesial em torno da pessoa do Espírito Santo18. Mas, antes,
cabe uma breve sistematização sobre a teologia trinitária onde aparecem o papel e
a especificidade mesma do Espírito Santo.
17 Nos escritos congarianos, tal tema é mais bem sistematizado na obra ES I, a qual nos oferece uma reflexão sobre a personalização do Espírito em São Paulo, São Lucas e São João. 18 Cabe ressaltar que antes de uma dogmática explícita em torno da igualdade ôntica entre as pessoas divinas, a Tradição eclesial priorizou algumas experiências e expressões de cunho pneumatológico de grande destaque na vida da comunidade: batismo, inspiração das Escrituras, preexistência de Cristo... Nesse contexto, a fala sobre o Espírito se dá numa perspectiva assinaladamente soteriológica.
27
I. 3. 2. A Teologia Trinitária e o Espírito Santo
Numa busca pela identidade pneumatológica dentro da teologia trinitária,
devemos ter claro que isso significa primordialmente uma penetração no mistério
mesmo da Trindade. Segundo nosso teólogo, o ponto de partida dessa reflexão é a
análise da revelação histórica.
Toda a tradição escriturística, bem como a eclesial, apontam para a
doutrina da Trindade na perspectiva da economia19, chegando assim às
experiências teológicas propriamente ditas. Historicamente, se faz necessário
diferenciar a Teologia Latina da Teologia Ortodoxa (diferenciação cara a Congar).
Na sistematização da Teologia Latina, a passagem da economia à teologia
é ilustrada na doutrina das missões divinas, a saber, o Pai envia o Filho e ambos
enviam (juntos) o Espírito Santo e, conseqüentemente, o ser humano experimenta
a graça provinda de Deus. Nessa perspectiva, Congar constata e enquadra a
teologia Rahneriana da “Trindade econômica na Trindade imanente (e vice-
versa)”20. Porém, nosso teólogo questiona Rahner, indagando: Na trindade
econômica revela-se a Trindade imanente; no entanto, revela-se ela por completo?
Se Deus se autocomunica na economia, o faz por inteiro? Se assim o é, nos
equivocamos na economia: o Filho torna-se mal compreendido, o Espírito não tem
rosto e o Pai é impotente. Uma distância necessária se impõe, pensa Congar, entre
a Trindade econômica e a Trindade imanente21. O mistério ultrapassa o revelado.
19 Ver explicação detalhada em ES III, p. 80. 20 Karl Rahner (1904-1984) em sua Teologia transcendental propõe o axioma da “Trindade econômica é a Trindade imanente (e vice-versa)” num desejo de provar a rigorosa correspondência entre Pai – Filho – Espírito Santo – história da Salvação. Rahner justifica esse princípio em três argumentos: 1- A Trindade é um mistério salvífico; do contrário não teria sido revelada; 2- Encarnação do Logos (caso decisivo) e 3- A história da Salvação difere de uma mera auto-revelação de Deus: é autocomunicação, sendo o próprio Deus o conteúdo dessa história. 21 Aprofundar em ES III.
28
Deus não é acessível segundo nossa lógica. Ele se revela se escondendo. Ele opera sua obra própria sob as espécies ou por meio de seu contrário, a justiça, a graça e a vida por um caminho de juízo e morte.22
Frente a esse axioma fundamental, a Teologia Latina23 afirma, no que diz
respeito à posição do Espírito face à pessoa do Filho, que existe uma
“continuidade ontológica entre a relação econômica do Espírito comunicado e a
relação eterna entre o Espírito e o Verbo”24. A Trindade é entendida numa
unidade da substância divina, onde as Pessoas se distinguem pela oposição de
relação de origem: o Filho procede do pai e, assim, distingue-se do Pai, que não
procede de ninguém; o Espírito procede do Pai e do Filho (ex Patre Filioque),
como de um único princípio consubstancial25.
Por sua vez, a Teologia Ortodoxa, questionando essa “continuidade”,
rejeita essa concepção Latina ao fazer com que o Espírito proceda não do que é
característico de uma hipóstase26, mas da natureza comum do Pai e do Filho.
Nessa teologia, a ênfase é dada à hipóstase das pessoas e não sobre a
consubstancialidade. Apoiados no Concílio de Constantinopla, os Ortodoxos
afirmam que, sob o aspecto hipostático, o Espírito procede do Pai, visto que uma
hipóstase apenas pode vir de uma outra; sob o aspecto de unidade substancial, o
Espírito procede do Pai pelo Filho27.
22 Cf. ES III, p. 43. 23 A reflexão Latina sobre a Trindade é influenciada pelo pensamento de Santo Agostinho. No que diz respeito a procedência Espírito, este afirma que o Espírito procede do Pai e do Filho, mas principalmente do primeiro, já que deste recebe o segundo a capacidade de ser co-princípio do Espírito ou de ter a vida e comunicá-la. 24 Cf. PE, p.121-122. 25 Para aprofundamento sistemático dessa questão: Schneider, Theodor. Manual de Dogmática. Vol II. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 437-509. 26 Etimologicamente, deriva do termo grego hypo-stasis, em latim sub-stancia, essentia, em português substância, essência. Conceito filosófico-teológico, equivalente a pessoa, central para a compreensão cristã do mistério de Deus Trindade, de Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado e da verdade da pessoa humana. 27 Para uma compreensão mais sistematizada dessas diferenças entre Gregos e Latinos, Congar recorre à tese de P. Régon: Gregos partem das pessoas como já dadas a priori para, em seguida, falar de sua consubstancialidade na unidade, respeitando a monarquia do Pai; os Latinos partem da unidade e unicidade de Deus para depois distinguir as pessoas (cf. ES III, p. 121-125).
29
Congar observa que cada tradição teológica traz a sua coerência própria e
que é fato a dificuldade de entendimento dogmático entre ambas28. Porém,
justifica sua ida a tais teologias concluindo que ambas refletem uma única e
mesma fé: o Espírito é confessado como a terceira pessoa da única natureza
divina, consubstancial ao Pai e ao Filho. Para tanto, conclui ressaltando a
apreciação de São João Crisóstomo que nos diz: “Amemo-nos uns e aos outros de
tal modo que possamos professar num só coração nossa fé no Pai, no Filho e no
Espírito Santo, Trindade consubstancial e indivisível”.29
Depois dessa breve viagem histórico-dogmática, nosso autor fundamenta
seu axioma apontando para o esvaziamento do Espírito estritamente ligado ao do
Verbo.
I. 4. Toda Cristologia é Pneumatológica e toda Pneumatologia é Cristológica
O axioma fundamental de Congar, a saber, toda Cristologia é
Pneumatologia e toda Pneumatologia é Cristologia, ratifica a verdade de que todo
ser de Cristo está penetrado do Espírito e vice-versa. Na unidade de Deus Pai, as
Pessoas divinas vivem uma relação de unidade indivisível em mútua doação e
acolhimento.
CRISTO ESPÍRITO
Sabedoria e segurança diante dos tribunais:
Lc 21, 12-15
Mt 10, 18-20; Mc 13, 10-12
Batismo no Cristo: Gl 3, 27 Batismo no Espírito: 1 Cor 12, 13
Um só corpo em Cristo: Ro 12, 5
Para formar um só corpo
28 Congar adverte, sobretudo, sobre a inadequação do vocabulário latino para traduzir nuances fundamentais do vocabulário grego e a utilização de dois princípios diversos para fundar a distinção das pessoas (cf. Ibidem, p. 263-264). 29 Cit. sem referência em Ibidem, p. 270.
30
O Cristo em nós: Ro 8, 10 O Espírito em nós: Ro 8, 9
E nós em Cristo: Ro 8, 1 E nós no Espírito: Ro 8, 9
Justificados em Cristo: Gl 2, 17 Justificados em nome do Senhor Jesus Cristo
e pelo Espírito de nosso Deus:
1 Cor 6, 11
Justiça de Deus em Cristo: 2 Cor 5, 21 Justiça, paz e alegria no Espírito Santo:
Ro 14, 17
Alegrai-vos no Senhor: Fp 3, 1 Alegria no Espírito Santo: Ro 14, 17
Amor de Deus em Cristo Jesus: Ro 8, 39 Vosso amor no Espírito: Cl 1, 8
Paz em Jesus Cristo: Fp 4, 7 Paz no Espírito Santo: Ro 14, 17
Santificados em Cristo: 1 Cor 1, 2 .30 No Espírito: Ro 15, 16; 2 Ts 2, 13
Falar em Cristo: 2 Cor 2, 17 Falar no Espírito: 1 Cor 12, 3
Repletos de Cristo: Cl 2, 10 Repletos do Espírito: Ef 5, 18
31
I. 4.1. A quênose do Espírito é a quênose do Verbo
Para fundamentar essa articulação tão cara ao seu itinerário teológico,
Congar fala da quênose do Espírito, estreitamente relacionada à do Verbo a partir
da teologia paulina que, para ele, melhor explicita essa articulação: se o Senhor
glorificado e o Espírito são distintos em Deus, todavia encontram-se
fundamentalmente tão unidos, que o experimentamos conjuntamente e podemos
tomar um pelo outro (cf. 2 Cor 3,17; 1 Cor 15, 45; Jo 14, 3.18) – a vitalidade da
Pneumatologia consiste na referência à obra de Cristo e à Palavra de Deus.
Nosso teólogo, bebendo da fonte da Tradição da Igreja, recorre aos Santos
Padres para falar da manifestação da obra de Deus operando através de duas
missões: a do Filho e a do Espírito Santo. S. Irineu, refletindo sobre elas, oferece a
sugestiva imagem das “duas mãos de Deus”. Procedendo do Pai, as “duas mãos”
realizam conjuntamente aquilo que o Primeiro no Amor deseja fazer: vivificar o
ser humano, conformando-o à imagem divina. O Pai envia o Filho e o Espírito
para executarem a mesma obra. Apesar de suas características próprias, uma
“unidade funcional”, salienta Congar, dialetiza o cumprimento das missões. Na
Sagrada Escritura, o Verbo e o Espírito se encontram sempre associados. Se o
Verbo é a forma, o Espírito é o sopro. A título de exemplificação, vejamos o
paralelo abaixo:
Nessa perspectiva, outro tema caro a nosso autor é a liberdade do Espírito
Santo, que é bem real, reconhece Gongar. Toda a tradição histórica e eclesiológica
testifica-a, comprobatoriamente. Tal liberdade, contudo, não é outra senão a do
Senhor Jesus, glorificado e vivo, em conjunção com o Espírito Santo. São as duas
mãos de Deus que, feito cabeça e coração, mantêm como de um só princípio a
vitalidade do corpo. Não há uma espécie de “setor livre” reservando ao Espírito,
como algo paralelo ao ordenamento das estruturas e meios de graças instituídos
pelo Cristo encarnado30. O Espírito comunica o que deve vir, ou seja, aquilo que
30 Cf. PE, p. 75. Sobre a “estrutura cristológica” das experiências pneumáticas da comunidade apostólica, cf. PALÁCIO, C. Jesus Cristo, história e interpretação. São Paulo, Loyola, 1979. p. 68-71.
32
recebe do Cristo glorificado, o mesmo que fala na carne. O que há de acontecer é
o futuro de Cristo no tempo da história!31
Como magnificamente expressou Lutero, “o Espírito não é cético”32. Se o
Verbo está penetrado de Espírito, o Espírito está penetrado de Verbo, porque
ambos procedem do Pai.
Numa alusão indireta às imprevisíveis iniciativas de liberdade do Espírito,
Congar alerta para o risco de uma dissociação simplista entre o cristológico e o
não instituído (o carismático). O pneumatológico é cristológico e vice-versa.
“Porque o Senhor é o Espírito, e lá onde está o Espírito do Senhor, lá está a
liberdade” (2Co 3,17). O Cristo está vivo, e muito ativo! Exclama Congar. Na
história Ele intervém.33
A ação do Senhor com e pelo Espírito não se reduz a uma mera atualização
das estruturas da aliança outorgadas na encarnação. Na ordem da vida da Igreja, o
Espírito Santo opera como enviado pelo Filho para completar sua obra. Mas não
se trata mais aqui do simples exercício eficaz dos poderes instituídos pelo Cristo,
da simples realização efetiva de uma estrutura posta pelo Verbo encarnado nos
dias de sua carne. Trata-se da realização de uma obra conduzida ativamente pelo
Cristo glorioso, chefe celeste do Corpo34. Continua Congar: “Ela é a fonte de
novidade na história”35. A transcendência do Cristo para com seu Corpo histórico
possibilita-lhe atuar de novas maneiras36. No entanto, o Espírito e o Senhor
sempre visam à edificação do Corpo. As novas intervenções do Espírito de Cristo
devem conformar-se plenamente com o Evangelho e o kerigma apostólico. Como
escreve Congar:
31 Cf. PE, p. 44. 32 De Servo arbítrio – WA 18,605. p. 31-34 (cit. Por Congar em Idibem, p.89.). 33 Cf. PE, p. 64. 34 Cf. SC, p. 44. 35 Cf. ES II, p. 24. ‘A obra de Cristo na história é irredutível àquilo que foi instituído na história constituinte da Revelação bíblica e da Encarnação (...) Não se pode ignorar um princípio pessoal de iniciativa. Em um catolicismo centrado na organização e na pura obediência, não há espaço para esta realidade incontestável” (PE, p. 65). 36 Cf. SC, p. 45.
33
A santidade da pneumatologia é a sua referência à obra do Cristo e à palavra de Deus.37
Para São Tomás de Aquino, Cristo e o Espírito formam juntos um só
princípio de graça. “Et ideo quidquid fit per Spiritum Sanctum etiam fit per
Christum”38 (Portanto, cada coisa feita pelo Espírito Santo também foi feita pelo
Cristo). Cristo age pelo Espírito, este age por meio daquele. O Espírito é do
Verbo, mas Jesus Cristo é do Espírito. Comunicando ao mundo o futuro de Cristo,
o Espírito glorifica o Filho, o qual, por sua vez, glorifica o Pai. Se a referência do
Espírito ao Verbo é total, não menos contundente, pensa Congar, será a afirmação
da monarquia do Pai.
Paradigmaticamente, no Verbo encarnado as duas mãos do Pai se unem
para dizer: toda pneumatologia é cristologia e toda cristologia é pneumatologia,
porque em teologia suprassumem-se doxologicamente, em unidade com o Pai. Em
sua existência eterna, o Cristo aparece penetrado do Espírito e vice-versa. Na
unidade do Pai, as Pessoas Divinas vivem, pericoreticamente, a essencialidade do
Amor, em mútua doação e acolhimento.
Assim sendo, na existência histórica de Jesus, o Verbo e o Espírito se
encontram indelevelmente unidos. Juntos, configuram a união hipostática de Deus
com o gênero humano. Da Graça Incriada, emerge a santificação do Cristo,
processada em sucessivos pentecostes, como atesta Congar. Mergulhado no
Espírito, Jesus abre-se crescentemente ao Pai em obediência filial, como servidor
do Amor. Quando morto na cruz, é assumido gloriosamente pelo Pai e constituído
Senhor na dinâmica recriadora do Espírito Santo. Herdando a plenitude da Vida, o
Filho humanizado de Deus se assenhora do destino salvífico de toda a criação,
podendo doravante intervir em todas as realidades e situações históricas pela
mediação graciosa do Espírito.
37 Cf. ES II, p. 24. 38 “Portanto, cada coisa feita pelo Espírito Santo também foi feita pelo Cristo” – Com. In Ephes. C. 1, lect. 5 (cf. PE, p. 76-77).
34
I. 5.
CONCLUSÃO
Após esse processo reflexivo, nosso teólogo aponta para a necessidade de
uma Cristologia histórica que faça jus à convergência histórico-salvífica das
missões do Verbo e do Espírito Santo na vida concreta de Cristo.
Dessa cristologia histórica, Congar extrai, por conseguinte, duas
conseqüências.
Primeira conseqüência: na Pneumatologia está a santidade da Cristologia.
Não há Graça Criada sem Graça Incriada, não há estruturas instituídas pelo
Verbo feito carne que não estejam pervadidas, a um só tempo, pela liberdade
transcendental do Espírito, penhor da plenitude escatológica do próprio Cristo. Se
o envio do Pneuma ao mundo é devido ao Filho, é por encontrar-se este revestido
daquele por primeiro... O modo latino de tratar a processão do Espírito ex Patre
Filioque (a saber: o Filho procede do Pai e, assim, distingue-se do Pai, que não
procede de ninguém. O Espírito, por sua vez, procede do Pai e do Filho)
subentende-se, no mistério, numa linearidade de dependência que parece ofuscar a
reciprocidade das relações intradivinas. O risco latente a essa visão de um
cristocentrismo paralizante pode incorrer, segundo Congar, em nefastas
conseqüências para a vida da Igreja e sua identidade no mundo.
Segunda conseqüência: na Cristologia radica-se, por sua vez, a santidade
da Pneumatologia. Uma exaltação sistemática do Espírito pela crítica oriental,
traindo não raro um certo ressentimento anti-ocidental, resulta na ótica de Congar,
em algo sumamente artificial. É inconcebível, pois uma doutrina isolada ou
autônoma do Espírito remete este constantemente à verdade do Senhor. Não há
corpo místico do Espírito Santo, e sim, de Cristo, com efeito, ambos são relativos
um ao outro, já que testemunham e atualizam a mesma verdade: o Amor do Pai.
Na liberdade do Espírito, subjaz a plenitude criativa e poderosa do Glorificado,
capaz de trazer para o hoje da história o sabor da novidade salvífica futura.
35
O Espírito e o Filho, como as duas mãos conjuntas do Pai, realizam na
criação e na história o plano salvífico de Deus. Através de suas missões
econômicas, o Amor Divino assume e transfigura o precário da experiência
humana e criatural. Assim como o Verbo, o Espírito participa da quênose salvífica
de Deus na história. Destituído de rosto próprio, faz-se todo relativo ao Filho
Primogênito e, por conseguinte, a seus irmãos. Sua única missão é fazer dos
homens filhos de Deus, configurando-os em amor e graça a Cristo. No Espírito, a
autocomunicação do ser divino se modela em diaconia divinizatória da
humanidade inteira.
Enfim, na Pneumatologia reside, portanto, a santidade da antropologia,
convertida, então, em Cristologia. Levando a humanidade a percorrer o caminho
de Jesus, o Espírito torna-a participante de sua filiação, conformando-a à divina
imagem e semelhança. Como fruto excelente e palpável da Pneumatologia
cristológica, impõe-se a antropologia da graça, como apelo existencial à
Liberdade e à Vida. Deus chama os homens à Vida em liberdade. Concede-lhes o
dom humanizador de seu Espírito.
Colocadas as bases de sua Eclesiologia, nosso teólogo nos convoca, a
exemplo das relações trinitárias que, assegurando as especificidades e respeitando
a diversidade, vivem absolutamente a unidade, a pensar sua Eclesiologia na
perspectiva da comunhão, dentro e fora das esferas eclesiais. Sobre esse tema será
delineada a segunda parte dessa dissertação.
36
CAPÍTULO 2:
A CAMINHO DA ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO: O CONCÍLIO VATICANO II E A ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO DE YVES CONGAR
II. 1.
Introdução: O Concílio Vaticano II e suas esperanças para a Igreja
No início na década de 60 a Igreja Católica vive um dos principais
momentos de sua história: o Concílio Ecumênico Vaticano II. Tal fato eclesial e
teológico marca o início de uma abertura providencial da Igreja com o mundo,
principalmente no que diz respeito à sistematização de uma Eclesiologia de
Comunhão Ad Intra (Relações mais dialógicas entre os membros, hierarquia e
fiéis, discussão de ministérios...) e Ad Extra (questão do diálogo da Igreja com
outras tradições religiosas cristãs e não-cristãs). Impulsionado pelo Espírito, o
Concílio Vaticano II ousou caminhos de liberdade frente aos novos “sinais dos
tempos”: cunhou, definitivamente, a necessidade de uma correta reflexão sobre a
comunhão em vista de uma Igreja mais dialógica e menos hierárquica39.
Um dos desafios apontados pelo Concílio foi a urgente reflexão
pneumatológica sobre a Igreja possibilitando assim o seu direcionamento a
caminho de sua vocação batismal, a saber, a comunhão. Um “novo Pentecostes”
39 No entanto, é preciso ter presente que a Igreja Católica, apesar de toda a transformação trazida pelo Concílio Vaticano II, ainda encontra na prática, senão até mesmo na visão que dela têm considerável número de responsáveis eclesiásticos, uma grande resistência em se situar dialogicamente no seio da comunidade cristã universal. É muito difícil conciliar a consciência de sua hegemonia no seio das Igrejas e comunidades eclesiais cristãs, que faz parte de sua identidade, como Igreja Católica, com o diálogo amplo e franco em busca da unidade com as demais Igrejas e denominações cristãs. Para além das explicações históricas, políticas, sociológicas ou, até mesmo, culturais, há quem pense num obstáculo propriamente teológico que tornará praticamente inviável o diálogo verdadeiramente ecumênico com as Igrejas e comunidades cristãs separadas da unidade católica.
37
configurava o Concílio nessa perspectiva. Se até então bastante rarefeita ou
mesmo olvidada na reflexão teológica latina, a pneumatologia e a eclesiologia
adquirem, a partir do Concílio, uma insuspeitada importância. Toda atmosfera do
Vaticano II busca suprir a falta de um desdobramento mais profundo e fecundo da
teologia do Espírito Santo no universo católico apontando para a necessidade de
uma Igreja mais dialógica e aberta aos desafios do mundo. Com efeito, uma
concepção da Igreja como “encarnação continuada”, moldada em parâmetros
“cristomonistas”40 unilaterais, vem delineando, há séculos, a autoconsciência da
Igreja ocidental e seu modo de agir. A ênfase dada ao institucional e às estruturas
hierárquicas de poder tem relegado, não raro, ao obscurantismo, valores
comunionais tão preclaros como aqueles assinalados por São Paulo em sua
primeira carta aos Coríntios (cf. cap. 12 a 14)41 e denunciados por nosso ilustre
teólogo Congar.
É sabido que o Vaticano II é um resultado de todos os movimentos de
renovação da Igreja que a partir do final do século XIX e início do século XX vão
influenciando a consciência católica em várias direções. A eclesiologia conciliar
move-se substancialmente em três direções, a saber:
1- na direção da auto-compreensão da Igreja como Povo de Deus, cujo
conteúdo essencial é o mistério de Cristo (temos a Lumen Gentium);
40 Etimologicamente deriva de Christos (Cristo) e monos (só, unicamente). O termo quer significar o primado e a unicidade da mediação de Jesus Cristo para que o homem alcance e viva uma relação de graça com Deus. Tal tendência no universo católico quis e quer relacionar a realidade da Igreja unilateralmente a Jesus Cristo como seu fundador e princípio de vida, não valorizando suficientemente a missão e função originais do Espírito Santo para a sua animação carismática: um cristomonismo eclesiológico em que se tem uma Igreja ligada fundamentalmente só a Cristo, sendo que ao Espírito não é reconhecida nenhuma função constitutiva. 41 Um dos méritos do Concílio foi o de ter recuperado, ainda que germinalmente, a eclesiologia paulina, buscando reequilibrar o dado cristológico central com o dado pneumatológico, numa sólida impostação do pensamento trinitário. Assim como a cristologia deve se articular com a pneumatologia para que se chegue a uma eclesiologia saudável e plena, também se espera o mesmo da segunda quanto à primeira. A perspectiva sedutora de um autonomismo pneumatológico, apreensível, por exemplo, em certas manifestações do movimento de Renovação Carismática, necessita, prontamente, de uma acurada avaliação e correção, mediante o juízo da cristologia histórica, sob o risco de obscurecer a concretude histórica das mediações salvíficas e sacramentais da Graça no mundo. Donde o valor fundante do axioma de Yves Marie-Joseph Congar, que servirá de base para a sua elaboração teológica da Eclesiologia de Comunhão: “toda pneumatologia é cristologia, e vice-versa” (questão explicitada no capítulo anterior).
38
2- na direção dos outros cristãos organizados em Igreja, ecumenismo, e
de outras religiões, no diálogo inter-religioso. Essa nova fase da
eclesiologia envolve uma concepção de Igreja diversa do passado, mais
aberta, não exclusivista, mas de fronteiras abertas a partir de sua
identidade fontal (temos a Unitatis Redintegratio);
3- na direção do mundo de hoje, compreendido como espaço onde
necessariamente ela deve exercer sua missão evangélica (temos então a
Gaudium et Spes).
Assim, inicialmente definido como Concílio dogmático, interessado em
proclamar novos dogmas, como expressão insuperável da identidade histórica da
Igreja, o Vaticano II surpreende por sua opção pastoral, ou seja, um concílio de
“aggiornamento” (João XXIII): uma verdadeira atualização da Igreja e de sua
mensagem à nova realidade do mundo, depois de quatro séculos de fixismo em
torno de Trento (diante dessa nova situação da Igreja, especialmente no terceiro
mundo, incluindo a América Latina, era de se esperar alguma evolução
eclesiológica posterior42).
O itinerário pós-conciliar, no entanto, demonstrou que, apesar das grandes
intuições do Vaticano II sobre a Igreja e suas orientações globais, nem tudo ficou
esclarecido. Há hesitações de nomenclatura43, há posições diferentes que são
42 Foi o que aconteceu na AL através de uma leitura do concílio a partir da periferia dos países centrais do Cristianismo ocidental (especialmente europeus, que, com o vigor de sua teologia, foram os principais responsáveis pelo bom êxito do concílio). A emergência dos pobres dentro da Igreja, no quadro atual das transformações sócio-eclesiais, se expressou na AL, com força, nos documentos episcopais de Medellín (1968), de Puebla (1979) e de Santo Domingo (1992), aprovados respectivamente pelo Papa (Paulo VI e João Paulo II). A visão de Igreja (e de sociedade) que se esboça, mesmo com algumas contradições, parte do “reverso” da história, do “não-homem”, ou simplesmente do pobre, reconhecido não simplesmente como objeto de solicitude pastoral da hierarquia ou dos cristãos burgueses, mas como sujeitos de sua fé, capazes de uma resposta plena do evangelho de Jesus Cristo, portanto, capazes de se organizarem como “ekklesia”. Essa emergência dos pobres dentro da Igreja e o reconhecimento dessa emergência pela hierarquia foram os acontecimentos eclesiológicos mais importantes dos últimos tempos. Tal acontecimento produziu transformações profundas na forma histórica de a Igreja se articular dentro do mundo. 43 Além dessas hesitações pode-se anotar também mudança de enfoque da Igreja como “povo de Deus”, forte no momento do Concílio, para a Igreja considerada como “comunhão”. Para esse deslocamento de acentos ver: Rev. Teologia 2 (1985) 135ss.; a Relatio Finalis do Sínodo Extraordinário de 1985, lembrando os 20 anos do término do Concílio, cf. SEDOC 18 (1986) 791-846; C. CALIMAN, “Visão eclesiológica do Sínodo”, em J. E. PINHEIRO (org.), O Sínodo e os Leigos, Loyola, 1988. p. 83-95.
39
“reconciliadas” no interior do texto. Alguns exemplos de nomenclatura hesitante
são: falamos de Igreja “católica” ou “universal”; de Igreja “particular” ou “local”;
de Igreja “particular” em contraposição com Igreja “universal” ou talvez, mais
precisamente, Igreja “local” em contraposição com “universal”? O que importa: o
Vaticano II pede que tratemos da Igreja a partir de sua realização “em um lugar”,
isto, a partir da Igreja local ou particular.
Mas, enfim, o que significou a eclesiologia do Vaticano II?
A visão da Igreja do Concílio, superando uma compreensão exclusivista
por uma mais aberta (inclusiva), tem um duplo significado para a construção de
uma nova teoria eclesiológica hoje, resumidamente:
A) Por ela se realiza a superação da eclesiologia “ultramontana”
elaborada especialmente no século XIX. O projeto eclesiológico
universalista, que pensa a Igreja sempre a partir do seu ápice, do topo
da hierarquia eclesiástica, agora é revisado. Inicia-se uma nova
abordagem a partir da Igreja Particular. Um texto muito significativo
dessa nova mentalidade eclesial pode ser encontrado na
Sacrossanctum Concilium 41: “principal manifestação da Igreja se
realiza na plena e ativa participação de todo o povo santo de Deus nas
mesmas celebrações litúrgicas, sobretudo na mesma eucaristia...”
B) Essa visão da Igreja a partir da Igreja local projeta uma eclesiologia
centrada na Palavra de Deus anunciada e na Eucaristia como centro da
comunhão eclesial. Projeta uma eclesiologia de “comunhão dos
santos” e de “comunhão das Igrejas” e das Igrejas (a contribuição do
Vaticano II vai nessa direção quando revaloriza a figura do bispo e da
colegialidade episcopal).
E ainda, enumeramos esquematicamente quatro pontos relevantes onde o
concílio, de fato, contribuiu decisivamente para as transformações da Igreja e seus
apontamentos à comunhão:
40
- Afirmando que a Igreja de Jesus Cristo se realiza “num lugar”, isto, nas
Igrejas locais44;
- Reconceituando a catolicidade. A relação da Igreja local com o seu
contexto (realidade, espaço humano, “mundo”...) é parte integrante de sua
catolicidade45. Isso quer dizer que Igreja católica não é aquela que paira acima das
culturas, da realidade, mas é aquela que pela sua encarnação nas culturas, na
realidade humana de cada lugar e cada tempo se expressa em sua abertura para o
projeto de Deus de salvar a todos. Abre-se para a realização de uma comunhão
universal46;
- O Vaticano II suscitou instituições novas e reanimou outras que fazem
reviver a Igreja local. O processo de renovação suscitado pelo Concílio corre de
baixo para cima e não o inverso (são as Conferências Episcopais, os Conselhos
Pastorais nos seus vários níveis, grupos de cristãos até os que pertencem ao
governo central da Igreja em Roma);
- O Concílio, alimentado pelo fecundo "retorno às fontes", recupera a
perspectiva de comunhão da igreja antiga, caracterizada pelo primado da
eclesiologia de comunhão: a unidade está antes da distinção; a variedade
ministerial é fundada e alimentada pela riqueza pneumatológica e sacramental do
mistério eclesial (ao situar o capítulo sobre o Povo de Deus antes dos capítulos
sobre a hierarquia e sobre o laicato na Lumen Gentium, o Vaticano II realizou
uma autêntica revolução: a vida segundo o Espírito, condição do cristão, precede
toda articulação e variedade interior da mesma e une os batizados entre si no
mesmo ato que os faz diferentes do mundo). Nesta perspectiva, o Concílio
redescobre a dimensão carismática de todo o povo de Deus, isto é, a riqueza dos
44 Cf. CD 11; LG 23. 45 A revista Concilium sempre enfrentou alguns temas interessantes de eclesiologia. O nº. 3 de 1997 trabalha o tema “A Igreja em fragmentos: a busca de que unidade?” Como pensar a Igreja em sua dimensão de catolicidade, ou seja, de universalidade num mundo pluralista e fragmentado como o nosso? 46 Cf. AG 4, 15,22; LG 13.
41
dons que o Espírito infunde nos batizados em virtude da utilidade comum47.
Apesar de operar a recuperação do primado da comunhão, o Vaticano II
visualiza ainda a Igreja conforme um dualismo hierarquia-laicato. Esse binômio,
precisamente à luz da eclesiologia de comunhão, aparece inadequado, pois, por
um lado, ele distingue demais, porque não evidencia suficientemente a unidade
batismal e eucarística que une leigos e ministros ordenados; por outro lado,
distingue muito pouco, porque no âmbito dessa unidade acentua a única
articulação de ministério ordenado, pensando negativamente das outras (leigos =
não-clérigos) e deixando completamente na sombra a maravilhosa variedade de
dons infundidos pelo único Espírito.
É por isso que, na fidelidade à "revolução", iniciada pelo Concílio, é
preciso superar o binômio hierarquia-laicato e o próprio conceito de laicato: a
Igreja não se identifica com o ministério hierárquico, a respeito do qual os outros
batizados postar-se-iam como totalidade indistinta, como rebanho passivo a ser
guiado (não existe uma Igreja docente em absoluto e uma Igreja em absoluto
discente, e nem uma Igreja que só dá, e outra Igreja que somente recebe!). Todos
na Igreja recebem o Espírito e todos devem dá-lo conforme o dom que lhes foi
conferido, no serviço correspondente a esse dom. Ao binômio hierarquia-laicato
é preciso dar lugar ao binômio comunidade-carismas e ministérios, que,
enquanto valoriza a unidade batismal, eucarística, pneumatológica de todo o
povo de Deus, evidencia a variedade carismática e ministerial no interior do
mesmo48.
Posto isto, qual a relação de nosso teólogo com as inspirações
eclesiológicas do Vaticano II?
A reflexão sobre a Eclesiologia é para Congar um problema teológico
primordial. Crítico por excelência da estagnação da teologia, cuja característica
47 Para aprofundamento dessa questão: LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005. 48 Uma boa compreensão do laicato dá acesso a uma saudável Eclesiologia de Comunhão. Porém, esse tema, também caro ao nosso autor, não será explicitado em nosso texto por não ser objeto de nossa pesquisa.
42
maior debruçava em uma estéril preocupação em defender os aspectos visíveis e
hierárquicos49, Congar propunha uma renovação da Eclesiologia que passava pela
redescoberta de Igreja como mistério a partir de seu aspecto sacramental, que
reacendia a realidade teândrica da mesma.
Ao viajar nas obras de nosso autor vislumbramos alguns questionamentos
imprescindíveis e anteriores a qualquer sistematização eclesiológica. São eles:
Como pensar a Igreja no tempo e no espaço histórico? A Igreja é imutável como
Deus, como as verdades eternas ou mutável como o processo histórico, como as
verdades humanas que vão sendo aos poucos desveladas? A Igreja já se realizou
plenamente no seu início em Jesus Cristo e agora é só um desdobramento dessa
realização plena ou ela progride no tempo para sua plena realização escatológica?
Como pensar a realidade mistérica da Igreja numa realidade eclesial
marcadamente hierarquiologizada?
Numa atmosfera daquilo que mais tarde seria o grande evento eclesial da
Igreja, o Concílio Vaticano II, nosso teólogo, em suas inquietações teológicas,
propusera uma visão nova de ver e entender a Igreja que já abriria perspectivas a
uma consciência de comunhão dentro e fora dos muros eclesiais. Aqui, cabe
ressaltar que ele foi um dos grandes responsáveis pela abertura da teologia
católica para a questão ecumênica com sua obra "Os cristãos desunidos", de 1937.
Nesse tema, Congar entende que a unidade /comunhão50 dos cristãos é uma tarefa
histórica para as Igrejas. O problema é saber até que ponto a comunhão pode
tolerar a diversidade. Sua proposta se baseia em praticar uma re-recepção dos
escritos normativos para a fé de cada Igreja, para situá-los de novo no conjunto
do testemunho da Escritura. Supõe repensar os dogmas, historicizar a própria
49 A concepção da Igreja, predominante na teologia católica até o Vaticano II, é aquela caracterizada pela expressão de Congar: "eclesiologia hierarcológica": significando uma valorização a respeito do aspecto hierárquico, visível e piramidal da realidade eclesial: a Igreja é vista como uma instituição histórica auto-suficiente (societas perfecta), com leis próprias, ritos próprios e chefes próprios. A mediação hierárquica é tão valorizada, a ponto de provocar a ironia da afirmação: 'Deus criou a hierarquia e assim providenciou mais do que o suficiente para as necessidades da Igreja até o fim do mundo'. (J. A. Mohler). Maior aprofundamento ver: FORTE, B. A missão dos leigos. São Paulo: Paulinas, 1987. 50 Para Congar os conceitos de Unidade e Comunhão são sinônimos. Essa questão será explicitada no próximo capítulo, onde trataremos sobre os elementos constitutivos da Eclesiologia de Comunhão e as suas perspectivas.
43
tradição e relativizar contrastes, evidenciando o núcleo comum das diversas
tradições cristãs. Porém, Congar pondera que, para isto, é necessária uma longa e
cautelosa caminhada...
Seguindo um caminho reflexivo em vista da eclesiologia congariana, nos
deparamos com a necessária compreensão sobre os modelos de Igreja.
II . 2. A questão dos modelos de Igreja e as perspectivas da
comunhão No ensaio Pode-se definir a Igreja? (1961), o eclesiólogo francês se
interroga a respeito do conceito mais apropriado para definir a Igreja. Ele
distingue quatro noções para descrever a realidade e o mistério da Igreja: as
categorias de Povo de Deus, Corpo Místico de Cristo, Sociedade e Comunhão. No
ensaio, Congar propunha uma síntese entre as categorias “Povo de Deus” e
“Corpo Místico de Cristo”, uma vez que considerava inviável uma definição da
Igreja centrada na categoria pós-tridentina de “sociedade”.
II. 2.1.
Igreja “Povo de Deus”51
O Concílio recuperou a categoria bíblica de Povo de Deus, que a teologia
católica redescobrira nos anos 1937-1942, graças sobretudo a Congar com o
estudo A Igreja e sua unidade (1937), também ao teólogo alemão Koster e ao
biblista Cerfaux. Congar mostra o múltiplo valor desta categoria, destacando: 1)
valor histórico, enquanto sublinha a continuidade da Igreja com Israel; 2) valor
antropológico: a Igreja não é uma unidade abstrata que passa sobre nossas
cabeças, mas é feita de homens que se convertem ao Evangelho; 3) valor de
historicidade: destaca mais “povo” que “instituição”; 4) valor ecumênico e
missionário: permite o diálogo com as Igrejas da Reforma; 5) valor dialógico:
permite o confronto com as filosofias da história.
51 Muito antes do Concílio Vaticano II, Congar já refletia sobre a noção da Igreja como Povo de Deus. Por exemplo, no estudo redigido em maio de 1937, em prol da Conferência do Cristianismo Prático, em Oxford, em julho de 1937, passim: Introdução ao Mistério da Igreja (1941).
44
Nosso eclesiólogo reconhece que a Igreja, no Vaticano II, se definiu como
Povo de Deus no momento em que, de um lado, a sociedade e a vida se
secularizavam e, de outro, os cristãos tinham melhor e mais intensamente
consciência das implicações sociais e políticas de sua fé.
Congar bebe da vigorosa contribuição de K. Mörsdorf e M. D. Koster para
fundamentar sua reflexão sobre a Igreja como povo de Deus. Esses autores
definem a Igreja como Povo de Deus, estruturado como um corpo orgânico, tendo
membros e cabeça e, portanto, segundo uma certa ordem hierárquica, povo
finalmente congregado para realizar o Reino de Deus. Este Povo de Deus é
estruturado e organizado sobre uma base sacramental, pelas consagrações
batismais. Todos os membros deste povo têm parte na atividade da Igreja, embora
alguns membros sejam discernidos entre os outros por uma outra maneira de ter
parte no tríplice domínio do culto, do ensino e da pastoral52.
Na análise do Concílio Vaticano II, nosso teólogo diz que a redescoberta
da categoria “Povo de Deus” foi devida ao fato de alguns terem excedido o ponto
de vista mais jurídico de uma fundação da Igreja e terem buscado, no conjunto das
Escrituras, o desenvolvimento da intenção de Deus. Redescobriram a
continuidade da Igreja como Israel, a situar a Igreja na perspectiva mais ampla da
História da Salvação e em concebê-la como Povo de Deus (“Ekklesia tou Theou”)
tal como ela existe ao longo dos tempos messiânicos. A Igreja é esse povo que
Deus constituiu, que estava como em gestação na história de Israel e foi
constituído na forma da Igreja que nós conhecemos pela obra do Verbo encarnado
e o envio de seu Espírito.
Um outro destaque que a categoria de Povo de Deus suscita em nosso
teólogo é o aspecto ecumênico, sobretudo pelo diálogo com os Protestantes (para
ele, diálogo é lugar ao mesmo tempo de acordo e de confrontação). Na
perspectiva Protestante tal categoria favorece pela idéia de eleição e de apelo:
tudo está sob a iniciativa de Deus! A Igreja como ‘Povo de Deus’ possibilita
evitar, de um lado, a institucionalização (com o uso desregrado de idéias de 52 Cf. Cette Église que j’aime, p. 16-17.
45
“poder” e de infabilidade), e, de outro lado, o romantismo de uma concepção
biológica do Corpo místico.
Sendo assim, acrescenta Congar, é o Povo de Deus estruturado que traz a
missão e representa, no mundo, o sinal da salvação que Deus constitui. Aqui a
questão fundante é a responsabilidade de todo batizado frente a essa missão, onde
essa categoria Povo de Deus se torna ponto de partida para a vocação comum de
todos os fiéis.
Entretanto, para Congar é preciso distinguir “Povo de Deus” em dois
sentidos ou extensões: 1) Sentido estrito – é o povo da religião revelada e
instituída, formada por aqueles que conhecem as estruturas positivas da Aliança e
vivem nela; este povo é, todo inteiro, portador do Cristo, a quem ele deve fazer
conhecer a verdade e transmitir a graça; 2) Sentido extensivo – tudo isto que, no
gênero humano, é para Deus: a imensa multidão dos humanos efetivamente
salvos, e todas as pessoas sem exceção, visto que salvas em princípio pela
Redenção tomada nela mesma ou no sentido objetivo.
Mas o eclesiólogo francês está também consciente dos limites da categoria
Povo de Deus, que deve ser completada com a de Corpo Místico de Cristo. Essa
Eclesiologia do Povo de Deus vai se aprofundar na direção de uma Eclesiologia
de Comunhão e Fraternidade, onde todos os membros da Igreja (para além de suas
funções e papéis) estão em situação de igualdade radical, derivada da graça do
Batismo53.
53 Aqui temos uma valiosa contribuição à laicidade: verificamos uma passagem de uma teologia do laicato à teologia do Povo de Deus. Pio XII, referindo-se, certa vez, aos leigos, disse: “Eles também são Igreja”. Afinal, qual é o estatuto do leigo na Igreja? Qual a sua função? Como fazer o leigo dizer sem constrangimento: “Nós somos Igreja”? Para que isso seja possível é preciso reformular a prática eclesial e a mesma eclesiologia. Dizia-se que o leigo tem uma participação própria na missão da Igreja por causa de sua secularidade. Sua fonte de energia (graça) vem de Jesus Cristo e não necessariamente da hierarquia. Do Espírito e não simplesmente do ministério hierárquico. Essas energias formam e constroem o povo de Deus em Igreja. Entrando já no Concílio Vaticano II, a Lumen Gentium nos liberta da predominância do jurídico, definindo a identidade histórica da Igreja com a categoria “povo”. Essa categoria tem as seguintes vantagens: Introduz na eclesiologia um dinamismo histórico; - Comunica um sentido dinâmico e concreto à Igreja, no seu agir; - Permite ultrapassar, com propriedade, definitivamente, o conflito entre hierarquia e laicato (houve mesmo quem afirmasse que “talvez seja preciso eliminar a palavra leigo, tão carregada de ambigüidades, para ficar apenas com “cristão” (Guilmot)”).
46
Concluindo:
Conforme Congar, a eclesiologia do Povo de Deus vai se aprofundar na
direção de uma eclesiologia de comunhão e fraternidade54, como dito
anteriormente. Posteriormente, o Documento de Puebla propõe uma eclesiologia
de “comunhão e participação”. Refazendo a história da eclesiologia do século XX
descobrimos como ela, partindo de uma concepção de uniformidade, caminhou na
direção do pluralismo enriquecedor da diversidade a partir da qual se constrói a
comunhão eclesial, graças à presença do Espírito. Caminhou-se, pois, na direção
do “comunitário”. Essa dimensão catalisou todos os esforços renovadores até a
nossa experiência latino-americana das CEBs. Os pontos de maior evidência são:
os movimentos de jovens, a renovação litúrgica, a valorização da assembléia
litúrgica e a nova consciência comunitária, presente do próprio agir histórico da
Igreja, ou seja, na pastoral55.
54 Para essa visão leia-se CONGAR, Y. Uma teologia da Comunhão. In: FEINER-LOHRER, Mysterium Salutis IV/3, Vozes, 1976, pp. 40-49. 55 Vejamos esses pontos de relevância eclesial: a) Os movimentos de jovens. Como reações ao individualismo crescente da sociedade liberal capitalista, surgiram nas Igrejas em geral e de modo específico dentro da Igreja católica, movimentos de juventude. Esses movimentos tinham como objetivo a educação da fé e como cerne de atração o tema “comunidade”, a dimensão comunitária. Esse pode ser considerado, sem receio, o acontecimento do século XX. Não se pode vê-lo, no entanto, de uma forma ingênua. Esses movimentos não nasceram do nada. A mesma sociedade civil, em reação ao exagerado individualismo da sociedade pequeno-burguesa, começou a desenvolver formas de organização na direção da socialização e do socialismo. Todavia, o fenômeno mais avassalador e problemático que se apresentou foi que, em alguns países, o fenômeno foi manipulado e as energias da juventude foram canalizadas na direção do estado totalitário. Trata-se da experiência da juventude nazista, na Alemanha de Hitler, e da juventude fascista, na Itália de Mussolini. Da parte da Igreja católica tornou-se um imperativo da época organizar, de maneira disciplinada, a Ação Católica, como resposta adequada da Igreja no contexto do estado totalitário; b) A renovação litúrgica. Este é um outro dado importante para compreender a renovação da eclesiologia. Ela recolocou no centro da própria ação litúrgica a dimensão comunitária da Igreja, no esforço para superar o juridicismo e o casuísmo litúrgico que tomaram conta da Igreja pós-tridentina. De fato, nos últimos séculos foi o que dominou o espírito da própria instituição eclesial. Os fiéis se viram obrigados a apelar para devoções particulares para satisfazerem sua piedade. A renovação litúrgica veio então promover a efetiva participação dos fiéis, como pessoas e comunidade, na celebração, da qual haviam sido afastados na qualidade de meros assistentes passivos da ação “produzida e administrada” pelo padre. Quando o Vaticano II promulgou a Sacrossanctum Concilium, sobre a Liturgia, a parte maior do caminho já havia sido percorrida. Esse documento havia sido precedido pela encíclica de Pio XII, Mediator Dei (1947). Depois disso, o Vaticano II conseguiu avançar em três pontos decisivos: no princípio da descentralização, no princípio da participação e no princípio da experimentação na liturgia; c) A valorização da assembléia litúrgica. Hoje este constitui um ponto pacífico na visão dos próprios fiéis. Essa valorização constitui um grande passo e uma grande conquista se for analisar o que era a liturgia antes do Concílio. A assembléia tinha seu lugar próprio, fora do “presbitério”, calada ou rezando o seu terço, enquanto o padre desenvolvia a ação litúrgica, toda ela rezada em latim. Havia, pois, dissociação entre a comunidade ideal (aquela imaginada e projetada pelos textos e reflexões teóricas) e a real (aquela concreta, do dia-a-dia). Mais: essa dissociação se expressava no
47
Essa auto-compreensão da Igreja, Povo de Deus, em nível histórico,
conduz a 5 áreas onde atualmente na Igreja se detectam mudanças, como
exigências dos novos tempos:
1) Na área das relações entre Igreja e mundo: acontece a exigência de uma
redefinição mais global;
2) Na área da pertença à Igreja: aqui se exige uma nova definição da
questão;
3) Na área da compreensão da Igreja como sacramento de salvação, deve-
se rever a questão do “extra ecclesiam nulla salus”;
4) Na área das relações entre as Igrejas particulares e destas com a Igreja
de Roma, há anseios de mudanças (que ainda não se concretizaram);
5) Na área dos serviços e ministérios eclesiais há também mudanças que se
esperam, partindo da nova experiência eclesial.
II. 2. 2. Igreja “Corpo Místico de Cristo”56
A categoria Corpo Místico de Cristo, segundo Congar, recebe sua maior
contribuição teológica do Movimento de renovação litúrgico e da Ação Católica.
O princípio básico dessa categoria é a afirmação de que no mistério de Cristo
todos somos iguais: “Se levarmos uma vida que seja d’Ele, a vida d’Ele em nós, a
vida d’Ele na humanidade, então seremos, verdadeiramente, seus membros”57.
Todos aqueles que se entregam a Cristo recebem uma vida nova, que é a vida
próprio momento da celebração. Foi então que entrou em cena o princípio da experimentação e da criatividade. Desenvolveram-se vários tipos de celebrações e reuniões litúrgicas: para pequenos grupos, para assembléias maiores, para grandes concentrações etc; d) Nova consciência comunitária. A renovação litúrgica ajudou a dar nova consciência aos fiéis da dimensão comunitária da Igreja na sua totalidade e não apenas dentro da ação delimitada pelo espaço litúrgico. A conquista do “comunitário” na celebração abriu caminho para a conquista do “comunitário” fora do espaço litúrgico, pois faltava ainda levar essa preocupação para fora, onde a vida do povo de Deus se realiza no dia-a-dia. Era preciso buscar uma ligação maior entre celebração e vida, entre fé e vida. Esse passo iria exigir um esforço bem mais profundo quer da parte do clero, que estava mal-acostumado a repartir tarefas, quer da parte do povo, que já havia desaprendido a participar ativamente nas tarefas eclesiais. 56 Ao falar dessa categoria, Congar cita a obra de M. D. Koster, “Ekklesiologie im Werden”, publicado em 1940 e que colocava a idéia da Igreja como Corpo Místico, assegurando um estado pré-científico da eclesiologia. 57 Cf. Introdução ao Mistério da Igreja, p. 75-93.
48
d’Ele por um mesmo e único princípio, que é o Espírito d’Ele, e somos, todos
juntos e de modo igual o corpo d’Ele e a Igreja d’Ele. O Corpo Místico se realiza
quando levamos nossa vida por conta de Cristo, afirma Congar.
A idéia de Corpo Místico não pode ser identificada como um conceito
romântico ou até mesmo intimista, mas este Corpo Místico não é somente a
humanidade que se consagra a Deus e imita a Cristo: é a humanidade que vive a
vida de Cristo, ou, o que é a mesma coisa, o Cristo que continua sua vida na
humanidade. Segundo Congar, a noção de corpo deve ser entendida como uma
construção, uma elaboração, não como um conceito propriamente. Isto é devido as
diferentes interpretações bíblicas da idéia paulina58 de “Corpo de Cristo”.
Refletindo a teologia Paulina, nosso teólogo explica que São Paulo partiu da idéia
de Povo de Deus e somente depois ele passa à afirmação do Cristo em nós e às
conseqüências éticas disto. Tudo isto faz pressentir a Congar que a noção de Povo
de Deus, por mais rica e verdadeira que seja ela, sem a articulação com a noção de
Corpo Místico é insuficiente para pensar adequadamente o mistério da Igreja
presente.
Assim, conclui Congar, como no corpo humano existe uma variedade de
funções na unidade de vida, a mesma coisa acontece com o Corpo Místico: ele
assume toda a diversidade humana na unidade de uma vida santa e religiosa que é
a vida de Cristo. Ele faz com que nossos atos sejam inscritos em Cristo e, enfim,
misteriosamente, sejam d’Ele, uma vez que são de Seu Corpo.
Concluindo:
Desta forma, temos como coroamento dessa nova mentalidade a passagem
de uma eclesiologia jurídica para uma eclesiologia do “Corpo místico”. A
58 Tomando como referência o “corpo”, Paulo desenvolve sua doutrina eclesiológica sobre a Igreja enquanto “Corpo de Cristo”. Com isso ele estabelece uma comparação: assim como os membros estão no corpo e formam o corpo, também a realidade “Igreja” une a todos. A Igreja como “Corpo de Cristo” adquire também um caráter universal. Assim como o primeiro Adão expressa a universalidade da humanidade, do mesmo modo o segundo Adão e sua representação histórica expressam essa universalidade de princípio e destino de todo ser humano em direção a Deus.
49
eclesiologia jurídica de que estamos falando agora corresponde ao modelo de
cristandade num contexto de confronto “Igreja-Mundo” (o pressuposto é que a
“societas perfecta” se coloca em plano de continuidade com a cristandade apenas
no plano intra-eclesial. No plano da relação da Igreja com a sociedade revela uma
Igreja aliada do poder, na defensiva, como modelo de confronto). Trata-se da
eclesiologia jurídica inaugurada por Gregório XVI e aprofundada por Pio IX, de
apologética contra o “indiferentismo” e contra o ideário da Revolução Francesa.
Nela se insiste sobre a autoridade (que se identifica sem mais com o poder) e
sobre a obediência. A isso se deu o nome de “ideologia da restauração”: “Uma
forte articulação em torno do poder e da autoridade na Igreja” vista sob o ângulo
de Roma, com o objetivo de refazer de novo o arranjo histórico entre trono e altar.
Qualquer tentativa de quebrar o monólito dessa eclesiologia no século XIX
(exemplos: Moehler, Newman) foi dar no Vaticano I, dominado por uma maioria
ultramontana, que exaltava incondicionalmente a autoridade papal. No século XX
homens como R. Guardini, K. Adam, Ch. Journet, de Lubac, o próprio Congar e
tantos outros, colocaram todo o seu esforço na renovação eclesiológica.
Introduziram o conceito de “sacramento”, aplicado agora à Igreja, orientando a
reflexão teológica para além daquele espaço eclesial que Congar chamou de
hierarcologia: a teoria de uma Igreja “societas perfecta, inaequalis, hierarchica”.
Não podemos esquecer que ainda no início deste século Pio X assim se
expressava a respeito da Igreja:
A Igreja é, por essência, uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que
abrange duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho, os que ocupam uma posição nos diversos graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E essas categorias são tão distintas entre si que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade; quanto à multidão, esta não tem outro dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus pastores59.
A visão sacramental da Igreja levou, aos poucos, a superar essa
compreensão na direção do “Corpo místico”. Já Pio XII escrevia em 1943 uma
importante Encíclica sobre o Corpo Místico (Mystici Corporis Christi). Por meio
de uma compreensão mistérica e sacramental da Igreja ele supera uma
59 Encíclica Vehementer Nos. Documentos Pontifícios, 88. Petrópolis: Vozes, 1957. p.10.
50
compreensão meramente societária e institucional. Abre o caminho para uma nova
compreensão do ministério papal como “chefe secundário” (sendo o principal
sempre Jesus Cristo, presente no mistério da Igreja). Há uma margem para
incentivar a participação dos fiéis, margem essa que já não é mais ocupada pelo
corpo clerical. Eis o princípio básico que orienta a nova fase da eclesiologia: no
mistério de Cristo todos somos iguais.
Em diálogo com nosso teólogo, indagamos: que conseguiu até aqui a
reflexão da Igreja como “Corpo Místico”? Conseguiu-se restabelecer a igualdade
radical dos batizados no plano do mistério, isto é, do Corpo místico, refletindo
sobre as nossas experiências de Igreja? O que falta? Falta recuperar essa
linguagem no plano histórico concreto: afirmar a igualdade radical no plano da
vida concreta. Esse é o próximo passo e o desejo maior de uma eclesiologia de
comunhão.
II. 2. 3. Igreja “Templo do Espírito Santo”
A Igreja na Teologia Paulina é também apresentada como Templo do
Espírito Santo. Tal idéia é cara a nosso teólogo. Esse modelo de Igreja como
Templo do Espírito Santo torna-se basilar para sua Eclesiologia Pneumatológica.
O Espírito Santo é o princípio de comunicação e de comunhão entre Deus e nós, e
entre todos nós, por que é soberano e sutil, é único em todos. O Espírito une as
pessoas sem profanar a sua interioridade e sem pôr limites à sua liberdade (cf.
2Cor 13, 13).
A pneumatologia é como que uma passagem, uma ponte, entre a
cristologia e a antropologia: o laço, o elo, que une Cristo e o fiel batizado e,
principalmente, o viés por onde se deve pensar a Igreja. Uma pneumatologia
completa não separa a ação do Espírito da obra de Cristo: “uma verdadeira
pneumatologia é aquela que descreve e comenta a vida na liberdade do Espírito e
51
na comunhão concreta da Igreja histórica, cuja essência não está nela mesma
nem em suas instituições”60.
O Vaticano II, situando a identidade histórica da Igreja no conceito Povo
de Deus, colocou em evidência, por isso mesmo, a ação do Espírito Santo como
poder gerador da Igreja em Jesus Cristo. A Encíclica de Pio XII sobre o “Corpo
Místico” falou em carismas, como dons do Espírito dados aos fiéis para o
testemunho e para a vida. O cristão deixa assim de ser meramente objeto de
solicitude pastoral da Igreja, entendida como hierarquia, para ser ele mesmo
sujeito da realização histórica do mistério da Igreja e de sua missão histórica.
A Igreja é o lugar do Espírito de Cristo atuante na história. Presente em
cada fiel que permanece em Cristo, o Espírito é força e comunhão para a vida da
Igreja. O Espírito é dado à comunidade e às pessoas. São João escreve nos
capítulos 14 a 16: "o Pai vos dará outro Paráclito, virá a vós, vos ensinará, vos
recordará, enviá-Io-ei a vós, vos anunciará toda verdade"; "vós" significa
certamente as pessoas e a comunidade reunida pelo Espírito enviado.
A Igreja é uma comunhão, uma fraternidade de pessoas; nela se unem então um princípio pessoal e um princípio de unidade comunitária, sendo o Espírito Santo que os harmoniza. A grande riqueza da Igreja são as pessoas. Cada uma delas é um princípio original e autônomo de sensibilidade, de experiência, de relações, de iniciativas61.
O Espírito reúne as pessoas numa comunidade de fé, faz nascer entre elas
o amor, no qual são impulsionadas a viver e partilhar fraternalmente, formando a
unidade e a comunhão de fiéis em Cristo. É o único Espírito de Cristo que em
todos e em cada um gera unidade e comunhão. A cada um e a todos em
comunidade foram dadas, no Espírito de Cristo, as condições de realizarem o
desígnio de Deus de dar vida e cooperar na salvação.
O Espírito é dado para realizar a Igreja como comunhão, como 60 Cf. ES I. 61 Cf. ES II.
52
testemunha da comunhão de Deus; sendo sinal e antecipação da vida futura, Ele
pode ser experimentado na comunidade por cada um, unidos uns aos outros no
Novo Povo de Deus, por uma nova condição religiosa das pessoas feitas filhos de
Deus e incorporadas a Cristo no Espírito62.
A tendência de compreender a Igreja concreta e real, aquela que é
concretamente vivida para daí se chegar à Igreja na sua figura “universal”, parece
que se impõe como idéia fundante da Igreja como Templo do Espírito Santo. Na
verdade, a Igreja “universal” não é outra coisa senão a Igreja particular aberta à
comunhão e à fraternidade universal sob a ação do Espírito.
Concluindo:
A eclesiologia é uma teoria relacionada com uma prática de Igreja. Na
medida em que a Igreja se transforma em sua prática, também se transforma em
sua teoria. Vimos na reflexão que fizemos em torno dos modelos de Igreja a
necessidade de superação de uma concepção de Igreja “societas perfecta”. O
Concílio dá o passo essencial para essa passagem: de “societas perfecta” para a
Igreja “Povo de Deus”. A cada modelo corresponde uma linguagem, um jeito de
falar, uma expressão simbólica, produto da prática histórica. Afinal, toda
experiência trazida à reflexão vem seguida de um esforço explicativo de
legitimação, formando uma teoria para justificar o caminho percorrido.
Cabe ressaltar que no itinerário latino-americano da Igreja cunhou-se
também a expressão “Igreja Popular”63, combatida por uns e defendida por outros
(os debates se desenvolveram, sobretudo, nas décadas de 70 e 80) para expressar
as novas práticas eclesiais. Documenta-se assim a passagem de uma eclesiologia
jurídica, centrada, sobretudo na categoria “Sociedade”, para uma eclesiologia do
“Corpo Místico”, centrada na categoria “Mistério”, ao redor do termo
62 Há dois pontos fundamentais da renovação da eclesiologia ligados à ação do Espírito Santo confirmados por nosso teólogo: 1) a participação dos fiéis na missão da Igreja; 2) a teologia da Igreja particular. 63 Cf. B. KLOPPENGURG, Igreja popular. 3 ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1983; e P. RICHARD. A Igreja latino-americana entre o Temor e a Esperança. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 71-83.
53
“comunidade” mística com Cristo; e desta para uma eclesiologia do “Povo de
Deus” centrada na categoria “Povo”.
II. 3. Notas e propriedades da Igreja
Após entendermos os modelos de Igreja centrais de nosso autor, um outro
aspecto relevante na compreensão de sua eclesiologia é a tarefa de pensar a Igreja
a partir de suas notas e propriedades (Unidade - Santidade – Catolicidade -
Apostolicidade). Segundo Congar, as propriedades da Igreja, no seu papel de
notas (notificare, notum facere), significam o advento de comunhão para o mundo
e atestam que o fato único do Cristo possui valor absoluto e universal de salvação.
Essas notas emanam da própria natureza da Igreja. Compreendemos as intuições
de nosso teólogo:
II. 3.1. Unidade
A unidade na Igreja é uma comunhão e uma extensão da própria unidade
de Deus: “A razão pela qual a Igreja existe, é a comunicação da vida do Pai a
muitos. E porque há um só Deus é que há uma só Igreja, una pela própria
unidade de Deus, fora da qual ela não existe”64.
O Espírito Santo é o princípio da unidade da Igreja (Dom de Deus – cf. At
2, 37-38; 8, 18-20; 10, 44-46; 11, 15-17; Ef 4, 7-8). Porém, alerta Congar, o
Espírito somente é dado quando existem criaturas capazes de possuí-Lo e gozá-
Lo: “Quando nos é dado, nos une a Deus e entre nós, pelo mesmo princípio que
64 Cf. Chrétiens desunis, p. 59.
54
sela a unidade de amor e da paz em Deus mesmo”65. E o Espírito só atua quando
estamos em relação: Antropologia no Espírito (a relação como princípio de
comunhão)66.
Sobre a nota da Unidade, nos deparamos com um desafio de ordem
metodológica nos estudos de Congar: a palavra comunhão é sinônimo de unidade.
Em nossa realidade eclesiológica essa distinção faz-se necessária: podemos, na
Igreja, estar unidos, sem estarmos em comunhão. Podemos estar em unidade (pois
proclamamos a mesma fé, participamos do mesmo batismo, recebemos e
testemunhamos a mesma Tradição); no entanto, podem nos faltar o amor mútuo, o
espírito de diálogo, a caridade... ou seja, a comunhão!67
Para configurar seu modo próprio de ser, a vida eclesial, o povo de Deus
deve dirigir seu olhar para o mistério da Trindade, onde reside a unidade perfeita.
Nela a diferença das Três Pessoas Divinas não gera nem divisão, nem separação,
mas a unidade. No princípio da vida divina está a comunhão. Assim, o modo
próprio do povo de Deus ser é a comunhão. Portanto, devemos buscar a
comunhão na Igreja sem anular a diferença das pessoas, mas reconhecendo a vida
divina que se derrama em cada um de seus membros.
Nessa realidade plural a Igreja é chamada a viver a unidade e diferença em
tensão entre vários projetos de Igreja. Mas todos esses projetos têm que guardar a
65 Cf. CONGAR, Y. El Espíritu Santo, Sección de Teologia y Filosofia. Barcelona: Herder, 1991. p. 111. 66 Num balanço da vida moderna, Congar descortina uma tendência geral de massificação, que inibe as pessoas de seu processo normal de individuação e socialização. O instinto de liberdade, porém, visando compensar essa massificação e o peso da sociedade competidora e planificadora, leva, não raro, à evasão da natureza. O homem moderno se encontra sedento de interioridade e de novo modo de participação no mundo. Necessitado de integridade do ser, pede a liberdade e clama, indiretamente, pelo Espírito (cf. ST, p. 11-15; EH p. 23-24). Frente a essa situação, nosso teólogo propõe uma reflexão sobre o papel do Espírito na progressiva realização da identidade pessoal do homem: enquanto presença ativa do absoluto no homem, o Espírito é fonte de interioridade profunda, sólida e calorosa, suficiente para que ele possa comunicar-se com os outros. 67 Exemplo mais eloqüente dessa diferença conceitual é a própria experiência no âmbito dos sacramentos: a eucaristia é o sinal visível de nossa comunhão; mas, alguns cristãos e cristãs, devido a motivos disciplinares, são “excluídos” dela (ora, se estão fora da comunhão visível, como permanecem em unidade com a Igreja?).
55
regra suprema da unidade na diferença. Nem a unidade anula a diversidade nem a
diversidade anula a unidade.
A unidade da Igreja de Cristo é a graça, acredita Congar. Ela nos chega
pela ação do Espírito Santo que opera na Igreja para que ela seja fiel ao projeto de
Deus em Cristo. Na sua realização histórica, a Igreja é constituída, na sua forma
social, por homens e mulheres, frágeis e pecadores. Por esse motivo, ela está
sempre ameaçada por rupturas da unidade visível.
Para melhor compreender esse princípio, recordemos as sábias palavras do
Vaticano II: “Todos os cristãos, mesmo separados de nós, tornam-se, pelo
Batismo, membros do Povo de Deus e, portanto, da Igreja”.68 Existe, pois, uma
comunhão verdadeira, não total, mas imperfeita, entre todos os batizados. Essa
comunhão verdadeira exige de todos um empenho ao diálogo, interno e externo,
humilde e aplicado.
II. 3. 2.
Santidade
Esta é a nota mais característica da Igreja, pois especifica de perto a Igreja
como lugar da presença de Deus no mundo (Deus = santo e fonte de santidade do
mundo). Essa santidade é, anterior a qualquer definição epistemológica, fruto do
Espírito; uma obra exclusiva do Espírito Santo (princípio da “inspiração” e da
“revelação” do pensamento, do plano e das vontades de Deus para com seu povo).
O Concílio Vaticano II destaca a função eclesial de santificação como
participação na unção de Cristo pelo Espírito e, sendo a Igreja a comunhão dos
Santos, ela torna-se comunidade santificante.
68 Cf. UR 3
56
Em razão do laço de destino que existe entre o cosmo e o homem, o mundo inteiro é envolvido na realização dos santos (cf. Rm 8, 20s): nós esperamos novos céus e uma terra nova onde a justiça habita (cf. 2Pd 3, 13)69
Ainda sobre a nota de Santidade, Congar adverte sobre as leis de
Santidade fundamentais de uma atitude pastoral70:
- 1ª Ter um mundo diante de si e ter consciência de sua existência: a
Santidade da Igreja: ter um mundo diante dela e o saber (Santidade não é
existir por si mesma, mas ser enviada a serviço do mundo em vista de Jesus
Cristo);
- 2ª “A Igreja não são as paredes, mas os fiéis”: a Igreja é o povo dos
evangelizados que se convertem ao Evangelho. Ela é excitadora e meio de
conversão (atos feitos por Cristo a atos feitos para Cristo).
Em suma, dizemos que a Igreja é indefectivelmente santa. Por graça ela
não perde nunca a santidade, não porque nós estamos dentro dela, mas porque
“Cristo amou a Igreja e se entregou por ela; ele quis com isso torná-la santa,
purificando-a com a água que lava, e isto pela Palavra; ele quis apresentá-la a si
mesmo esplêndida, sem mancha nem ruga, nem defeito algum; quis a sua Igreja
santa e irrepreensível” (Ef. 5, 25-27).
Na verdade, nos encontramos diante de duas situações. Quando a Igreja
em seus fiéis e em sua forma social se abre à ação do Espírito Santo, se desdobra
em fidelidade, ela é santa. Por isso, atesta Congar, a certeza dessa santidade
indefectível não pode vir, de forma nenhuma, de nós, mas de Deus mesmo. É da
fé para fé.
69 Cf. Cette Église que j´aime, p. 47-48. 70 Cf. “À mês frères” – Cerf – 1968.
57
II. 3.3. Catolicidade
Aqui nosso teólogo adverte para o sentido qualitativo: “No Cristo, a
totalidade da vida foi restaurada, e a Igreja nada mais é que a realidade desta
restauração levada a cabo no espaço e no tempo”71.
A palavra Católica (kath´holou – ser em plenitude) abrange a
universalidade do ser e dos seres na unidade, apontando para uma séria e honesta
maneira de pensar a articulação da Igreja no mundo: a Igreja é una, porque é
corpo de Cristo, que é um; Ela é santa, porque seu ser é comunicado por Cristo,
um ser santo, pneumático; Ela é católica, porque lhe são comunicados,
efetivamente, pelo Cristo, uma vida e um movimento capazes de reunir, por meio
dela e nela, todas as coisas, que estão no céu e na terra. Portanto: somos Uma
Santa Igreja Católica!
A Catolicidade da Igreja é a capacidade universal da Unidade:
“Universalidade dinâmica dos princípios de unidade da Igreja”72. A Unidade é
dada toda de uma vez só. Já a Catolicidade tem algo de potencial que se
desenvolve um pouco de cada vez. Assim, essa Catolicidade deve ser vivida como
a capacidade que os princípios de unidade da Igreja têm de assimilar, preencher,
ganhar para Deus, reunir e consumar Nele todo o homem e todos os homens, bem
como cada valor de humanidade.
Daí derivam as implicações da Catolicidade na vida do cristão: todos os
membros são católicos, mas, conforme a sua posição, devem concretizar a
catolicidade de maneiras diversas, acredita Congar: 1) Sacerdotes: instruir os fiéis
sobre o princípio da catolicidade; 2) Missionários: realizar a catolicidade com
71 Cf. Introdução ao mistério da Igreja, p. 17. 72 Cf. Chrétiens desunis, p. 115-148.
58
referência aos valores das religiões não-cristãs; 3) Leigos: concretizar a
catolicidade com referência aos valores terrestres.
Enfim, a unidade católica do Povo de Deus abrange diferentes modos de fé
eclesial. A dimensão universal do mistério salvífico que se manifesta na Igreja, se
realiza de muitos modos pela história da humanidade. A catolicidade da Igreja
deve refletir a universalidade de Cristo. Cristo é que é “católico”. Todos e cada
um dele recebem a vida. Somos Igreja católica por causa dele.
II. 3. 4. Apostolicidade
Segundo a Teologia da Apostolicidade “a Igreja não é somente
sacramental: ela é apostólica e hierárquica”73. A Igreja age em duas atividades
vicárias do Cristo: 1- A do Espírito (invisível) por dentro; 2- A do corpo
apostólico (visível) por fora. Assim, assegura a identidade do ministério atual da
Igreja com aquele dos apóstolos e, conseqüentemente, com aquele de Cristo.
Alguns textos bíblicos apontam para uma certa organização hierárquica a
partir da autoridade dos apóstolos. Nesses textos, a Igreja, como Corpo Místico, é
sacramental e Apostólica. Sendo responsável pela função de órgão e de critério de
unidade doutrinária – ministerial – pastoral. Nesses aspectos, alerta Congar, a
hierarquia deve entender a apostolicidade da Igreja corretamente sem abusos e
desvios conforme o esquema proposto:
Apóstolos → Pedro → Corpo Episcopal (Sede Apostólica)
=
Relação Vicarial (procuradores) com Cristo (e não sucessores do Cristo).
73 Cf. Introdução ao mistério da Igreja, p. 18-29.
59
Congar retrata os sentidos da Apostolicidade, destacando: 1- Sentido
Formal: a humanidade se perpetua pela sucessão das gerações; 2- Sentido de
Conteúdo: conservar – através do espaço, que não pode ocupar uma mesma
presença corporal, através do tempo, que nossa caducidade não domina – a
identidade da missão apostólica: “Aqueles que foram enviados podem e devem
enviar outros depois de si”.
Nosso autor adverte para a necessária articulação entre Apostolicidade e
fato hierárquico, que devem fazer na própria ordem visível, que tudo derive do
fato único da Encarnação e da Páscoa históricas.
Enfim, todas essas propriedades não são separáveis entre si. Existe uma
presença e interioridade mútua; semelhante são as diversas funções de Cristo que
são emanações de sua unção pelo Espírito Santo e de sua plenitude de graça, de
maneira que sua realeza é profética e sacerdotal; seu sacerdócio, profético e real;
seu profetismo, real e sacerdotal.
II. 4. A Eclesiologia de Comunhão no pensamento de Yves Congar
Como vimos anteriormente, o paradigma eclesiológico de Congar baseia-
se na comunhão, a saber, a Eclesiologia de Comunhão, que tem como fundamento
primordial a origem da Igreja na Trindade. As relações intratrinitárias, queridas
por Deus e garantidas pela ação do Espírito, autonomamente preservadas,
asseguram a fundamentação teológica para esse paradigma.
Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo em comunhão recíproca.
Coexistem desde toda a eternidade; ninguém é anterior, nem posterior, nem
superior, nem inferior ao outro. Cada Pessoa envolve as outras, todas se
interpenetram mutuamente e moram uma nas outras. É a realidade da comunhão
trinitária, tão infinita que os Três são, por isso, um só Deus. A unidade divina é
comunitária, porque cada Pessoa está em comunhão com as outras duas.
60
Dizer que Deus é comunhão significa que as Três Pessoas Eternas, Pai,
Filho e Espírito Santo, estão voltadas umas para as outras. Cada Pessoa Divina sai
de si e se entrega às outras duas. As Pessoas são distintas. O Pai não é o Filho e o
Espírito Santo, e assim sucessivamente, não para estarem separadas, mas para
poderem se entregar umas às outras e fazer assim comunhão. No princípio está a
comunhão dos Três Únicos. A comunhão é a realidade mais profunda e criadora
que existe. É por causa da comunhão que existe o amor, a amizade e a doação
entre as pessoas sejam Elas Divinas, sejam elas humanas.
A comunhão da Santíssima Trindade se abre para fora, não está fechada
em si mesma. Toda a criação significa um desdobramento de vida e de comunhão
das Pessoas Divinas convidando as criaturas para também estarem em comunhão
entre si e com a Trindade Santa. O Evangelho nos revela esta realidade:
Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em Ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. Eu Ihes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um: eu neles, e tu em mim, para que sejam perfeitamente unidos, e o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste como amaste a mim (João 17,21 - 23).
A comunidade cristã tem por fundamento a comunhão da Trindade Santa.
A Igreja com sua natureza batismal e como sinal visível de salvação à
humanidade, é o lugar dessa comunhão por excelência, acredita Congar.
Essa comunhão, segundo nosso teólogo, tem duas dimensões que lhe são
essenciais. Uma primeira refere-se à relação de origem da Igreja. Sua raiz
profunda está no mistério de Deus uno e trino, em seu desígnio salvífico e
universal 74, como dito anteriormente. A Trindade é a fonte da vida e da santidade
da Igreja. Pela missão do Filho, o Verbo encarnado, Deus convoca um povo para
si, mediante a incorporação, pelo batismo. Por isso “não há judeu nem grego, não
há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em
Cristo Jesus”75.
74 Cf. LG, 1. 75 GL 3, 28.
61
Essa realidade profunda que constitui a dignidade fundamental do cristão
precede qualquer distinção de vocações, dons, tarefas, ministérios ou condição de
vida. Não se deve pensar, além do mais, que essa diversidade possa atrapalhar a
unidade. De fato, tanto a diversidade quanto a unidade na Igreja têm a mesma
origem, no dinamismo do Espírito76.
Uma segunda dimensão dessa comunhão, tão fundamental à Igreja quanto
a primeira, pois provém do mesmo dinamismo do Espírito, consiste no fato de que
ela é vivida não num espaço puramente subjetivo, intimista e privatizante, mas
numa forma pública, historicamente comprometida. Ela se vive na forma de
comunhão de discípulos de Jesus Cristo, enviados ao mundo a ser salvo. Não é
uma comunhão abstrata, que serve a todos os gostos, mas inserida no mundo, na
história, no contexto da realidade conflitiva, pecaminosa, quer do ponto de vista
pessoal quer social. Neste sentido, deve ser vivida profeticamente como denúncia
de um mundo que nega a comunhão e como anúncio de uma comunhão plena que
todos são chamados a viver a começar da história, em busca do Reino definitivo.
Por conseguinte, essa comunhão deve ser vivida como “comunhão dos
santos”. Trata-se da comunhão dos bens salvíficos que deve existir entre aqueles
que foram santificados pelo batismo. Ela exige circulação profunda da graça
libertadora no coração dos fiéis não apenas para o gozo próprio, mas, sobretudo,
para a vida do mundo.
II. 5. Conclusão
Após esse percurso, faz-se juz dizer que a comunhão deve tratar-se, pois,
de uma comunhão missionária dos discípulos de Jesus. Ela exige uma prática
histórica concreta de uma comunhão vivida e celebrada.
76 Cf. LG, 12; 1 Cor 12-14.
62
Para o cristão, a fé é vivida na diversidade das tarefas, dos compromissos e
dos trabalhos de cada um conforme a realidade na qual está inserido. Essa Igreja
“dispersa” deve viver a comunhão em primeiro lugar como participação à vida da
comunidade eclesial, sinal da participação no mistério de Cristo; em segundo
lugar, como participação na sociedade humana, na história, para denunciar as
contradições ao projeto de Deus, pelo empenho no mundo do trabalho, na família,
na economia, na política, na cultura, de forma a contribuir na transformação do
mundo.
A essa comunhão vivida corresponde sem dúvida a comunhão celebrada
pela comunidade convocada pela Palavra de Deus e reunida em seu nome. Aqui se
revela, de fato, a dimensão histórica de que essa comunhão baseia-se no tripé:
eucaristia, Igreja particular e inserção dentro da realidade do mundo para
transformá-lo em instrumento de comunhão universal.
Partindo dessa última intuição e aprofundando suas obras, podemos dizer
que a grande proposta de Yves Congar, à luz do Concílio Vaticano II, é
desenvolver uma eclesiologia “integral”, apontando o real papel da Igreja dentro
do mundo de hoje.
Mais do que isso trata-se de fundamentar uma eclesiologia que tenha como
ponto de partida a “eclesialidade batismal” do Povo de Deus, à luz do Vaticano II,
de seu desenvolvimento no pós-concílio e sua visibilidade no mundo moderno. O
Concílio tinha um objetivo: tornar o batizado “sujeito ativo” na Igreja, superando
a passividade a que ele fora relegado, sobretudo no milênio que está chegando a
seu fim. É nesse ponto que o Concílio abre as portas para um novo jeito de ser
cristão, um novo cristianismo e, conseqüentemente, um novo jeito de ser Igreja.
Essa “eclesialidade batismal” deve ser entendida em primeiro lugar não
como derivada do ministério pastoral da Igreja (enquanto instituição o
hierárquica), mas deve ser compreendida a partir do ato primeiro de Deus em
Cristo, constituindo um povo para que o conheça e o sirva (Cf. LG, 9).
63
Não se trata, pois, de uma teoria eclesiológica derivada de uma teoria
sobre a hierarquia. Mas o contrário, de uma eclesiologia básica do Povo de Deus
onde cabe também uma visão coerente do ministério pastoral. Só uma eclesiologia
“integral” do Povo de Deus sujeito histórico portador do mistério que nele se
revela, leva a sério a “inversão eclesiológica” proposta pela Constituição
Dogmática sobre a Igreja do Vaticano II, Lumen Gentium.
64
CAPÍTULO 3:
A ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO E REALIDADE ECLESIAL: SINAIS, DIMENSÕES E FORMA DE PROCESSAMENTO DA ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO
III.1. Introdução: O redescobrimento da Eclesiologia de Comunhão
Ao longo do século XX vários foram os fatores que facilitaram a eclosão
da idéia de comunhão dentro e fora dos muros eclesiais: as catástrofes das grandes
guerras mundiais despertaram a nostalgia de uma experiência religiosa intensa,
concreta e mais comunitária; a renovação litúrgica mostrou a debilidade de uma
experiência devocional intimista; os estudos bíblicos haviam mostrado a
centralidade das imagens com “Povo de Deus” e “Corpo de Cristo”, apoiadas em
fórmulas como “Em Cristo”, como o melhor conhecimento da prática de
comunhão entre as Igrejas; a centralidade da eucaristia abriu diálogo com os
ortodoxos e permitiu perceber o sabor tradicional de sua experiência eclesial, mas
apontou necessidade de outros espaços de comunhão... Nesta perspectiva, o
conceito de comunhão se impôs como convergência de todas as aspirações
eclesiológicas e eclesiais num mundo marcadamente em processo de mudança.
O Concílio Vaticano II, como dito anteriormente nessa dissertação, é
considerado como o momento em que a Eclesiologia de Comunhão recebeu sua
carta de cidadania. Tal concílio, em termos de curiosidade, utiliza em 122
ocasiões o termo comunhão (ao passo que o Vaticano I somente cinco vezes).
Porém, a quantidade não deve impedir a prudência de um juízo valorativo. O
concílio faz um uso, muitas das vezes, impreciso e fluído do termo comunhão em
sentidos diversos e com conotações variadas77. É difícil dizer, portanto, que o
77 Cf. LG 4, 8, 9, 26; OT 5, AG 15, 17; PO 4 e a própria idéia da comunhão como referência à relação entre papa e bispos.
65
Vaticano II ofereceu uma noção tecnicamente elaborada sobre a comunhão. As
reflexões pós-concílio, por outro lado, como dissemos no capítulo anterior,
primaram pela categoria Povo de Deus como expoente dessa eclesiologia de
comunhão. Mas para nosso teólogo Congar não basta.
Não podemos desconsiderar outros dados. No período pós-concílio
algumas propostas apresentaram a comunhão como a coluna vertebral da
eclesiologia e como a chave hermenêutica para compreender a evolução do
Vaticano II. Mesmo assim, a recepção dessas idéias foi variada. Nessa linha, há de
assinalar o sínodo de 1985: aponta para a relação final da eclesiologia de
comunhão como tema fundamental dos documentos conciliares. Adverte que não
se pode reduzir a questões meramente organizacionais ou de partilha dos poderes,
e sim que consiste na comunhão com Deus por meio de Jesus Cristo e seu Espírito
e assim essa comunhão se tornará, também, o fundamento da ordem da Igreja e o
instrumento de articulação da unidade na diversidade.
Essa tomada de consciência inspirou a teologia de Congar, que ousou
introduzir um fator de equilíbrio e integração na eclesiologia e na vida eclesial:
frente ao secularismo reinante, destaca-se a dimensão mistérica da Igreja; frente às
divergências internas, se colocava a idéia de unidade (ou comunhão).
Dada sua centralidade e a amplitude de sua recepção, há de se destacar a
instrumentalização ideológica que o conceito de comunhão corria o risco:
a) Há de se evitar o uso absoluto da comunhão que exclua a validade de
outras imagens que acabem por se tornar sinônimas de Igreja;
b) Há de se evitar uma concepção muito mística e espiritual que
obscureça a dimensão social, pública e institucional;
c) Há de se evitar o uso retórico tanto para sugerir a gestão democrática
da vida eclesial quanto para estimular a uniformidade e a unidade sem
fissuras;
d) Há de se evitar um reducionismo psicológico que entenda a comunhão
como compensação da própria saudade e das carências afetivas.
66
Assim, Comunhão deve ser um conceito entendido teologicamente à luz
dos dados da revelação de Deus. Desde sua raiz trinitária até os eventos eclesias
propriamente, podemos refleti-la de formas variadas e com significações
diversas78.
III. 2. As dimensões da Comunhão
Perscrutando as obras de nosso teólogo, podemos assinalar que a
Eclesiologia de Comunhão, seguindo seu itinerário teológico, concorre para
algumas dimensões fundantes que irão assegurar-lhe sua dignidade. São elas:
dimensão de koinonia, dimensão escatológica e dimensão sacramental.
III. 2.1. A dimensão de Koinonia
Como muito se tem ouvido, a Koinonia não é um neologismo cristão, mas
uma experiência que recebeu do cristianismo um conteúdo novo e dinâmico. No
mundo grego a Koinonia era utilizada para designar as relações interpessoais, a
harmonia cósmica e a união de Deus com a obra criada. No AT não existe registro
de utilização do termo koinonia, ainda que a idéia de Aliança possa ser
considerada como equivalente.
Estes precedentes não tiram a ousadia da 2 Pd 1, 4, que fala da Koinonia
dos Cristãos como “partícipes da natureza divina”. O sentido exato, porém, só
pode ser entendido à luz da Revelação de Deus que atuou e atua na história
humana como trindade. Desde essa ótica, segundo nosso teólogo, se abrirão
perspectivas eclesiológicas fundamentais: a eclesiologia deve basear-se sobre a
teologia trinitária se quiser ser uma eclesiologia de comunhão.
78 Segundo o teólogo A. Leys, em “Eccleiological Impacts oh the Principle of Subsidiarity”, a comunhão recebe diversas classificações: a) Comunhão dos Santos: participação do fiel na salvação dada por Deus; b) Comunhão de fé: enquanto o crente é membro ativo do Povo de Deus; c) Comunhão eclesial: é a comunhão da Igreja Local edificada sobre a eucaristia e governada pelos bispos, que expressam a unidade e a diversidade da Igreja; d) Comunhão Colegialidade: baseada na anterior, mas destacando a comunhão hierárquica na relação entre papa e bispos; e) Comunhão Cristã: se refere à comunhão plena com as Igrejas cristãs.
67
Vejamos as luzes dessa Koinonia na experiência eclesiológica de Congar:
a) Como ponto de referência implícita deve ser considerada a
experiência de Jesus com seus discípulos mais íntimos e destes
entre si (cf. Mc 3, 14; Lc 5, 10). A vocação de seguir Jesus
implica ruptura com os vínculos existenciais anteriores para
unir-se inteiramente a ele, a seu destino, a sua missão. Na adesão
à pessoa de Jesus, os discípulos são transformados em suas vidas
e introduzidos numa experiência comunitária distinta das que já
existiam.
Porém, seria um equívoco falar da comunhão em sentido cristão tão
restrito. A partir da experiência da Páscoa, quando a missão do Filho de Deus
havia sido consumada por sua glorificação e efusão do Espírito, o crente
experimenta o sentido pleno da salvação: restaurado em suas relações
fundamentais e integrada com sua essência interior, é acolhido no mistério do
amor trinitário, perdoado e aberto a esperança e alegria de Deus, tornando-se
assim um novo homem, uma nova mulher. A comunhão sempre inclui um aspecto
soteriológico e antropológico.
b) Essa Koinonia se produz no processo da Trindade econômica: a
salvação vem de Deus por seu Filho no Espírito. Segundo
Congar, é esse dinamismo do amor trinitário em que o crente é
envolvido e faz-se partícipe com Deus. Esta é a dimensão
vertical da salvação, que o NT apresenta de modo muito realista.
No NT não se pode falar de uma comunhão com Deus em sentido genérico
e nem como uma relação com o Pai de modo direto. Só se produz uma relação
com Deus por mediação de Jesus. É a lógica que desvela em 1 Cor 1, 9: a graça e
os dons recebidos pela redenção operada por Jesus resumem a vocação cristã na
participação comunional com Cristo e em Cristo79. O convite de Deus em virtude
de seu amor revelado em Jesus e a filiação que é relegada aos crentes constituem 79 A doutrina Paulina do batismo e da eucaristia atesta essa convicção.
68
ao batizado uma situação histórico-salvífica nova. Em 1 Jo 1, 3.6 aponta-se nessa
direção: o Filho é o que faz dar a conhecer o Pai (cf. Jo 1, 18), e a vida que dele
procede é o que estabelece a comunhão com o Pai e os irmãos.
O Espírito é o que entrega comunhão, é o que a faz possível (cf. 2 Cor 13,
13). A “comunhão desde o Espírito” não designa a participação com ele. Em
paralelo com as funções atribuídas ao Pai e ao Filho, há de se pensar a comunhão
recebida pelo Espírito: comunhão, aqui, é aquele dom do Espírito pelo qual o
homem não está sozinho e nem distante de Deus, e sim, é chamado a participar da
mesma comunhão que une entre si Pai, Filho e Espírito, e tem como alegria a
comunhão profunda com os irmãos, com quem partilha o mistério de sua relação
com Deus. A comunhão, por sua raiz trinitária, se abre à história: ao ser recebida
pelo homem, essa comunhão rompe com o mais profundo sentimento humano de
egoísmo, fazendo desse homem Filho de Deus e irmão dos outros homens. A
liberdade da salvação se mede não somente pela escravidão da qual o homem em
Deus é libertado, mas pelo âmbito de comunhão a qual ele é incorporado, atesta
Congar.
A comunhão, como koinonia, possui uma base e uma expressão
sacramental: o batismo, início da comunhão, faz o homem participar do mistério
pascal e resgata-o numa nova filiação em Cristo pelo Espírito e o insere no
caminho do serviço. Essa abertura alcança sua ratificação e plenitude na
eucaristia, enquanto inserção no corpo do Senhor (cf. 1 Cor 10, 16. 17) e doação
ao outro. A dimensão vertical da comunhão faz possível a sua abertura horizontal:
sua eclesialidade.
c) A Koinonia possui sempre uma dimensão e uma abertura
eclesiológica. Essa dimensão é fruto de uma dialética positiva: a
comunhão, ela mesma, cria comunidade entre os participantes;
as relações interpessoais aqui estabelecidas serão tanto mais
profundas quanto mais elevada for essa realidade em que se
participa. A koinonia deve ser base da eclesiologia, assim, a
Igreja tornar-se-á o prolongamento, no tempo e no espaço, da
comunhão com a trindade santa. A cristologia e a
69
pneumatologia, enquanto são soteriologia, se transformam em
eclesiologia.
Essa abertura eclesiológica da Koinonia deve ser entendida de modo
concreto, referida às relações interpessoais vividas em um grupo humano
determinado, donde se desenrola o processo de comunhão e celebração da mesma
fé.
A reciprocidade eucaristia – Igreja articula e conjuga a conexão das
dimensões vertical e horizontal da comunhão. Na antiguidade cristã a koinonia
designava o modo inseparável de celebrar o corpo do Senhor e a vinculação
eclesial (pertença a um grupo humano solidário). A Igreja como mistério de
comunhão se faz presente e se realiza na assembléia litúrgica. Essa unidade do
Povo de Deus, fundada na consagração batismal, operada pelo Espírito, faz com
que esse mesmo povo seja santo e enviado ao mundo para manifestar o dom de
Deus recebido.
Assim, essa koinonia eucarística implica uma objetividade, uma estrutura
institucional. A Igreja, Corpo Místico de Cristo, é uma comunhão, interiormente
expressa na vida espiritual dos fiéis pela fé – esperança – caridade; exteriormente
expressa na profissão de fé, de disciplina e de vida sacramental.
A Eclesiologia de Comunhão como koinonia exige gestos, atitudes e ações
concretas em seu exercício. Ela encerra em si mesma uma carga de eclesialidade
que irá contornar a vida e o testemunho do ser cristão: é o senso dos membros de
uma mesma assembléia que criam um “mesmo sentir” (cf. Rm 12, 16; 15, 5; 1Cor
1, 10; 2Cor 13, 11), respeitando as diferenças e particularidades de cada um. As
experiências neotestamentárias apontam para isso: quando Paulo propõe a coleta
em favor da comunidade (2Cor 8, 4; 9, 13), essa coleta realiza a comunhão entre
as igrejas nascentes, conserva a união entre os cristãos-gentios e os cristãos-judeus
e se abre o mundo dos pagãos. Dificilmente poderemos falar de comunhão sem
nos referir às relações pessoais em comunidade. O amor aos irmãos (1 Jo 2, 7-11;
3, 11-15), a fé autêntica (2 Jo 8-11), a comunhão de bens (Hb 2, 42), a oração
70
recíproca, o zelo pastoral... não são simplesmente expressões da comunhão, mas
sim a dimensão de koinonia da comunhão com o exercício.
III. 2.2. A dimensão escatológica
A comunhão possui uma tensão escatológica intrínseca, pois aponta o
momento em que Deus se desvela tudo em todos (cf.1 Cor 15, 28). Todo exercício
de comunhão, em termos pessoais ou em termos de comunidades, é a condensação
dessa dimensão escatológica numa efetiva antecipação do querer de Deus no agir
do homem: é a unidade perfeita de sujeitos que continuam sendo sujeitos pessoais
(comunhão íntima) e social (coletividade exterior). Aqui, a comunhão adquire e se
projeta no horizonte da esperança, alimentada por uma promessa que afeta o
destino do homem e do seu papel no mundo. O Deus possuído e que nos possuirá
perfeitamente será o princípio, interior a cada um e comum a todos, de nossa
comunhão.
A comunhão vem de Deus e se torna itinerante na terra. Esta condição
terrena se caracteriza por um “já” e um “ainda não” simultaneamente
verdadeiros. A comunhão na Igreja já é aquilo que é chamada a ser.
Segundo Congar, esta situação dialética e por vezes paradoxal da Igreja em
sua vida itinerante confere-lhe uma estrutura igualmente dialética, caracterizada
por uma dualidade que corresponde a este já-ainda não. O próprio Cristo se
apresenta como aquele que assegura para os seus uma e outra coisa. Ele une seu
povo numa realidade de graça que permanecerá, mas para isso dispôs de alguns
meios externos que passarão: enunciados doutrinais, preceitos, sacramentos,
autoridade pastoral, etc... Tudo isso representa um conjunto de meios destinados a
conduzir à comunhão os filhos de Deus e permitir-lhes viver nela.
Mas entre o meio e a realidade que este busca ou alimenta existe uma
homogeneidade e uma continuidade asseguradas pela identidade do princípio que,
tendo instituído e garantido o meio, opera através dele aquilo de que ele mesmo
será a fonte permanente.
71
Exemplifiquemos:
1- A Palavra pronunciada, se for recebida, e graças à operação de Deus por
ela, gera a fé e lança as bases da comunhão (cf. Rm 10, 14, 17; Jô 17 20; 1Pd 1,
23; Tg 1, 21);
2- O batismo incorpora a Cristo morto e ressuscitado e nos faz comunhão
com ele (cf. Rm 6, 3-11; 1 Cor, 12, 13; Gal 3, 27);
3- A eucaristia é comunhão com o corpo de Cristo (cf. 1 Cor 10, 16s)80.
Na unidade terrena da Igreja, a comunhão, em sua perspectiva
escatológica, pode ser considerada em dois planos: aquele dos meios externos e
aquele da realidade interiorizada. O ideal consiste em obter a plenitude dessa
realidade íntima utilizando a plenitude dos meios dispostos por Deus para
consegui-la. Só assim se responde plenamente ao desígnio de Deus. Só assim se
efetua em toda sua plenitude a unidade da Igreja. Efetivamente, esta é ao mesmo
tempo unidade de comunhão espiritual, isto é, salvação, e unidade dos meios que
proporcionam esta vida e esta salvação. Mas o caráter dialético da condição
terrena da Igreja encerra a possibilidade de uma distância e até mesmo de uma
separação entre o plano dos meios e a realidade interior. Isso a faz mediação
salvífica.
Assim, a comunhão se dirige e oferece o drama do homem individual:
exilado, desequilibrado interiormente, atormentado pela angústia... recebe a
garantia do perdão, o convite a um amor que dignifica seu espaço humano e sua
comunidade eclesial. Igualmente se dirige ao drama da humanidade dividida:
80 Seguindo as Escrituras e os Santos Padres, Congar atesta que estes dois sacramentos – batismo e eucaristia – unem-nos e nos identificam misticamente com o corpo imolado e vivo de Jesus Cristo. A unidade que os fiéis formam entre si e sua união com Deus brotam, através dos sacramentos, da encarnação pela qual Deus se uniu à natureza humana. A teologia patrística estende esse valor sacramental aos ministros, presidentes de comunidades; não no sentido de que eles comunicam a união com Cristo, como fazem o batismo e a eucaristia, mas pelo fato de que representam Jesus Cristo, a quem Deus constituiu princípio de comunhão e unidade entre ele e nós e entre todos nós: “estar profundamente unidos (a vosso bispo), como a Igreja o está a Jesus Cristo ao Pai, a fim de que todas as coisas estejam de acordo na unidade” (Ignácio de Antioquia).
72
entre as tragédias de guerras e enfrentamento, o Espírito vai abrindo âmbito de
encontro como sucessão de Pentecostes...
Por essa tensão escatológica desde os dramas humanos e institucionais, a
comunhão se constitui dinâmica. Não se enclausura, é sempre aberta, é sempre
integrada. Não poderia ser de outro modo, uma vez que partindo do próprio
mistério de Deus que é trindade, dinâmica e relação.
III. 2.3. A dimensão Sacramental
A Igreja vive de, na e para a comunhão que a Trindade estabelece no
interior da história. Por isso não deve ser estranha a visualização dessa comunhão:
a Igreja é a presença pública da acolhida do ser humano a graça de Deus como
dom. Isso a torna sacramento de comunhão de Deus Trinitário no mundo. O que
nosso teólogo irá chamar de sacramentalidade da Igreja.
Podemos elencar três pressupostos que legitimam e validam a premissa da
Igreja como realidade sacramental:
a) A Igreja se apresenta como um acontecimento estruturante do
mistério de Deus: nela se expressa e se atualiza o mistério global
de Deus e por isso mesmo ela é constituída como sacramento;
b) Todo elemento da realidade esconde um componente simbólico
que remete a outra realidade. Assim o é a Igreja: seus gestos e
ações insinuam sempre o mistério de Deus;
c) A Igreja é precisamente a encarnação da graça, a manifestação
social da graça vitoriosa de Deus enquanto acolhida na liberdade
agraciada dos homens.
Esses pressupostos da sacramentalidade da Igreja recebem sentido na
sacramentalidade de Cristo. Cristo é o sacramento por autonomasia: “O mistério
73
(o sacramento) de Deus não é nada mais que Jesus Cristo”81. Ele revela e faz
presente de um modo singular e irrepetível o Deus invisível, porque nele não há
distância alguma entre símbolo e significado: o humano e o divino estão unidos de
modo pessoal. Jesus é o sacramento radical do Pai.
Da sacramentalidade de Cristo vive a Igreja como sacramento:
E porque a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano, ela deseja oferecer a seus fiéis e a todo mundo um ensinamento mais preciso sobre sua natureza e sua missão universal...82.
Na LG, a Igreja como mistério se entende como o grande desígnio de Deus
de salvar todos os homens em Cristo. O ponto de partida da revelação do mistério
é Deus uno e trino, é o mistério mesmo da trindade santa. A Igreja, pois, pertence
àquilo que os Padres da Igreja chamavam de “economia”, isto é, a administração
histórica dessa auto-comunicação salvífico-libertadora de Deus na comunidade
humana. No acontecimento histórico da Igreja revela-se o mistério de Deus em
Cristo hoje. A Igreja, na expressão de Cipriano, aparece “como o povo reunido da
unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (cf. LG 4).
Assim, só se centrando em Cristo, a Igreja realiza plenamente sua
sacramentalidade. É como expressa belamente a imagem patrística da “mysterium
lunae”: assim como a lua reflete a luz do sol (não a sua própria), a Igreja deve
projetar sobre os homens o fulgor de Cristo, o sol que nos ilumina.
Sua sacramentalidade, na perspectiva da comunhão, permite perscrutar as
relações da Igreja com a Graça e o modo de sua mediação. Não basta dizer que a
Igreja é o sinal da graça sem se entender que o sentido que ela remete é distinto
dela mesma. Tampouco parece suficiente pensar que se produz a graça por si
mesma, desde fora, algo diverso dela, mas sobre seu domínio (monopólio).
81 Santo Agostinho, EP 187, 11. 82 Cf. LG, 1.
74
Uma adequada compreensão da sacramentalidade da Igreja permite
encontrar concepções válidas e algumas das questões mais debatidas na
eclesiologia congariana:
Se a Igreja é sacramento de salvação desde sua origem, se pode entender o papel
mediador da Igreja na salvação dos cristãos, seu mistério salvífico: se a graça
sempre se expressa na história, esta expressão visível aponta e vive de sua
referência a presença oficial e também visível que é a igreja (que atua, nesse caso,
como causa final);
A realidade divina e humana da Igreja, seu caráter de corpo místico e de
sociedade humana, se relacionam como “res” e “sacramentum”83, uma unidade
que não anula a distinção. A LG nº 8 indica que não são duas realidades distintas,
mas sim uma realidade complexa que deve ser compreendida e conciliada desde
analogia do mistério do Verbo encarnado;
Nesta integração do divino com o humano, que evita contraposições mantendo a
diferença, é peculiar a concepção católica de Igreja frente à realidade protestante:
se bem reconhece que a Igreja não monopoliza a salvação, mas sim vive dela,
proclama que ao encontrar a Igreja, se encontra Cristo, e que este se faz presente
na Igreja de modo objetivo e permanente. A eclesiologia católica, como afirma
um documento luterano-católico84, gira em torno do conceito sacramental de
Igreja, que justifica e legitima seu serviço de mediadora. Os luteranos, por sua
vez, como criatura e ministra do Verbo: sua função é servir ao anúncio do
Evangelho, porém, desde uma relação extrínseca respeitando o acontecimento
salvífico85;
83 Ib. idem. Mysterium Sallutis IV / 3. 84 Comissão Mista Católico-romana / Evangélico-Luterana. “Igreja e Justificação. A concepção da Igreja a luz da justificação”. nº 108, 1994. 85 Embora sejam ainda hoje amplamente discutidas essas diferenças, não se deve desconsiderar as convergências dessas duas eclesiologias: ambas aplicam a categoria símbolo à Igreja. Respeita-se a dependência radical a Cristo, que em seu fundamento e finalidade não estão enraizadas em si mesmo, mas na própria pessoa de Cristo e em seu espírito, que produz a mediação salvífica. A partir daí se pode precisar o conteúdo da Igreja como criatura e ministra da Palavra; o alcance de sua identidade enquanto gerada pela Palavra e enquanto prolongação histórica da Palavra proferida para a salvação do mundo.
75
A relação da Igreja com os sacramentos pode superar uma visão excessivamente
eclesiocêntrica: à luz do mistério que a Igreja atualiza, os sacramentos podem ser
apresentados como a celebração pela Igreja e na Igreja dos eventos fundadores e
estruturantes da história da salvação.
Enfim, em sua dimensão sacramental, a Igreja tem a possibilidade de
refletir que ela não é a mediação do “fazer” dos sacramentos, mas que em virtude
dessas celebrações sacramentais, ela insere o cristão no mistério maior que é
Cristo e ponto maior de nossa comunhão.
III. 3. As formas de se processar a Comunhão
Toda a Sagrada Escritura, especialmente os textos neotestamentários, está
repleta de relatos que apontam para uma consciência explícita do desejo de
comunhão. O livro dos Atos dos Apóstolos é um exemplo claro e digno dessa
verdade: ele dá-nos a dimensão correta de como a comunidade primitiva vivia a
comunhão: “E eram perseverantes no ensino dos apóstolos, na comunhão
fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2, 42). Esse ensinamento primitivo
da comunidade não se reduzia ao plano sentimental, mas era intenção lucana
apontar uma estrutura básica, que, segundo nosso teólogo, constituía por si mesmo
um ensinamento a respeito da comunhão: a- Unidade pela aceitação do
ensinamento apostólico (que assegura a unanimidade de fé e de confissão); b-
Unidade no plano da vida social (forma de vida comum) e c- Unidade na
celebração do culto (que comporta, juntamente com a oração realizada no âmbito
da comunidade judia, a celebração da fração do pão pela qual se consuma a união
dos fiéis com Cristo e dos fiéis entre si.
A esta análise da unidade (comunhão) proposta pela escritura, Congar
soma os textos de teólogos e até mesmo do magistério, distinguindo as formas da
unidade em vistas da comunhão: unidade de fé, de vida social e de culto e
sacramentos. A partir daí nosso teólogo sistematiza sua reflexão de como a
comunhão se processa na realidade eclesial e quais os seus desdobramentos e
desafios à Eclesiologia.
76
III. 3.1. A comunhão de Fé
Os ensinamentos patrísticos definiam a Igreja como “congregatio
fidelium”. Essa definição designa uma multidão de seres vivos dotados de
inteligência, congregados ou reunidos por um princípio de vida, ou ao menos de
ação, comum a todos eles. No caso da Igreja, esse princípio de união é a fé. A fé
não se resume num “depósito de verdades reveladas”, mas sim na realidade sobre
a qual se realiza a aliança entre Deus e nós. A fé em nós humanos é propriamente
abertura pela qual a ação de Deus encontra morada. É o nosso sim absoluto de nos
comprometer a ser totalmente para Deus. Na perspectiva divina, portanto, de
Deus, a fé é o ato pelo qual começa a comunicar-se a nós dizendo o que quer ser
para nós e, por conseguinte, dizendo algo daquilo que é para si mesmo.
Em alguns cristãos a experiência da fé pode ser “informe”, e neste caso
falta-lhe algo na linha da própria fé. Mas na Igreja, como afirma Congar, a Fé
tende à plenitude: nela, a fé une o povo da aliança com o Deus da aliança por
meio do laço eficaz e total da caridade. A fé não é só um princípio da existência
pessoal; é, além disso, o primeiro princípio de comunhão para as pessoas e de
unidade para a Igreja, pois nela as pessoas crêem na mesma coisa, tal como é
comunicado na Escritura, nos relatos da Tradição dos apóstolos e nos
ensinamentos que perpetua a Igreja.
Como princípio de comunhão, a fé atua interiormente e exteriormente na
vida do cristão convertido. Internamente, no compartilhar da mesma palavra, do
mesmo Deus e do mesmo Cristo, todos os fiéis têm como termo de seu
conhecimento e de sua adesão uma mesma realidade existencial. Essa realidade,
porém, não é só objeto de conhecimento – se assim o fosse, a Igreja seria uma
espécie de academia – e sim o princípio e o fim de nosso destino e do universo
inteiro, que não nos é apresentado de maneira objetiva e conceitual, mas sim sob o
crivo de uma experiência sobrenatural. Como realidade interna, a fé cria em nós
seres humanos uma unidade radical: a realização de uma mesma forma de vida.
77
Como princípio externo, a fé comporta uma estrutura determinada de
mediações: a revelação não nos é dada individualmente, mas publicamente, a uma
coletividade, por meio de ministros chamados para isso e encarregados de uma
missão, como são os profetas, apóstolos, redatores da Sagrada Escritura e o
magistério da Igreja. Tudo isso constitui o organismo de mediação para a
comunicação do objeto da fé.
A Escritura tem um valor normativo absoluto para aqueles que devem
receber a fé. Esse valor normativo absoluto deve-se à sua condição de inspirada,
que faz da Escritura a Palavra de Deus (Deus toma a iniciativa e
responsabilidade). Por esse motivo, os Santos Padres insistem em que a Igreja se
constrói sem cessar pela Escritura e pregação, que é seu anúncio vivo. Sobre esse
aspecto, Congar adverte: a Escritura não desempenha esse papel a não ser quando
em sua letra, e, através dela, manifesta seu verdadeiro sentido. A iniciativa
reveladora de Deus suscita, ao mesmo tempo, um testemunho escrito sobre os
fatos nos quais se inscreve – a Escritura – e uma missão acreditada, coextensiva à
duração e ao espaço nos quais a fé deve ser anunciada86. Assim, fica claro a
existência de um corpo único de testemunho e de ensinamento que corresponde à
unicidade e à universalidade da missão, sem detrimento da diferença entre as
primeiras testemunhas oculares, os apóstolos e seus sucessores. A doutrina
autêntica que emana desse corpo tem valor de regra para a fé da Igreja. No plano
da vida da Igreja como tal, isso só é possível se a regra da crença tem uma forma
efetiva propriamente eclesiástica. Sendo assim, para se evitar abusos de caráter
institucionais, reivindica-se o caráter teologal da fé: seu motivo é a verdade
primeira (incriada) tal como nos é proposta na Escritura segundo o ensinamento
da Igreja.
Um outro aspecto dessa dimensão externa da fé é a participação na
celebração dos sacramentos e em toda a liturgia, visto que muitos fiéis só tomam
acesso aos mistérios da fé nestes momentos. O batismo é a experiência maior
dessa verdade: como o próprio sacramento da fé, ele é ao mesmo tempo a
transmissão, a profissão e a incorporação do fiel à Cristo e à Igreja, ou na fala de 86 Cf. Mt 28, 19-20.
78
nosso teólogo, a Igreja não é mais do que o “nós” dos batizados; é a agregação
daqueles que, desde os apóstolos, creram em Cristo e viveram dele.
III. 3. 2. A comunhão de culto e pelos sacramentos
A fé situa-nos em face de Deus numa relação de culto; ela mesma é o
princípio de toda uma vida que tem valor cultual. O culto, na linguagem tomista, é
a expressão e profissão da fé. Nessa experiência cultual o fiel, além do uso dos
mesmos gestos, dos mesmos símbolos e das mesmas orações, realiza
comunitariamente uma atividade importante de formação da consciência e da
sensibilidade comum em torno daquilo em que se crê. Aqui emerge de modo
privilegiado, como relembra Congar, o papel da Tradição na sua função de
“imbuere”, ou seja, assegurar a doutrinação obtida pela participação na liturgia e
nos sacramentos87. Porém, a experiência cristã é muito mais que um culto, mas a
expressão da fé numa pessoa e em seu projeto: Jesus cristo, nosso salvador. O
culto cristão é inteiramente uma expressão desta fé. Como tal não une só por sua
natureza de culto, mas por seu conteúdo, já que dá a cada um dos fiéis, e a todos,
o mesmo centro e o mesmo princípio de vida, ao mesmo tempo que o mesmo
mestre.
A natureza do culto cristão se realiza plenamente nos sacramentos. Os
sacramentos não são somente os sinais pelos quais, ao expressar nossa fé, nos
unimos a Jesus Cristo; mas, e sobretudo, na celebração e vivência destes, opera-se
um laço corporal, através de um meio corporal, que a partir de Deus e de Cristo,
prolonga o ato supremo pelo qual Deus mesmo se fez meio corporal de nossa
salvação. Assim, a Igreja, compreendida desde a patrística até hoje, procede de
um dom e de uma comunicação de vida divina feita a partir do alto por meios
tomados de nosso mundo e adequados a nossa natureza, isto é, por meios
corporais. Pelos sacramentos – em virtude da intenção e da instituição divina –
entramos em contato corporal com o acontecimento histórico único com o qual
87 Cf. CONGAR, Y. La Tradition et les traditions, II: Essai theolog. Paris, 1963. p. 111-136.
79
Deus realizou nossa salvação comprometendo-se de maneira definitiva e eficaz na
salvação de todos.
Não é objeto dessa nossa dissertação explicar a natureza deste contato nem
como se realiza (isto é feito no Tratado dos Sacramentos), mas cabe ao tema do
qual estamos tratando assinalar a relação que existe entre sacramentos e a
eclesiologia de comunhão.
Nessa atmosfera, nosso teólogo dedica especial atenção ao sacramento da
eucaristia:
A Tradição sustenta unanimemente que a eucaristia é o sacramento da
unidade e da comunhão e que seu efeito espiritual é a unidade do corpo místico88.
Recorrendo brevemente à teologia sacramental, verificamos que o efeito de cada
sacramento corresponde a seu simbolismo. Na eucaristia este simbolismo consiste
numa realidade alimentícia, de nutrição: pela conversão do pão e do vinho
oferecidos no corpo e no sangue de Cristo, o alimento que nos é dado é o próprio
Verbo de Deus, unindo, assim, o ser humano consigo numa comunhão
divinizadora de vida. Na eucaristia, o cristão se une ao próprio Cristo
substancialmente presente e é a ele unido sob a forma de alimento. Estamos diante
de uma experiência de assimilação mística ao corpo de Cristo pelo ato de comer
seu corpo sacramentado.
Com freqüência essa verdade foi aplicada a Santo Agostinho: “Não és tu
que me mudarás em ti, como o alimento de teu corpo; sou eu quem te mudará em
mim”89. Aquilo que é comido é mais vivo e mais forte, e por isso nos assemelha a
si, exclama Paulo: “Vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim”90; e, ainda,
reler o apóstolo nos convoca à comunhão: “Por que há um só pão, nós, embora
muitos, somos um só corpo, visto participarmos todos do único pão”91.
88 Nos capítulos anteriores descrevemos a crítica de Congar acerca do conceito de unidade e comunhão em torno do sacramento da eucaristia. Agora apenas explicitaremos a sistematização teológica dessa relação. 89 Cf. SANTO AGOSTINHO. Confissões, VII, 10. São Paulo: Paulus, 2003. 90 Cf. Gal 2, 20. 91 Cf. 1 Cor 10, 17.
80
O conteúdo da eucaristia, enquanto produz nos fiéis bem dispostos que o
recebem na comunhão o efeito da unidade do corpo celestial, é Cristo em sua
Páscoa. A eucaristia é o sacramento da caridade pascal: é o dom da comunhão que
nos une a Cristo e que nos leva a dar-nos inteiramente, para além de todo o
egoísmo, a Deus e aos homens de forma inseparável, já que, para nós como para
Cristo, a aceitação da vontade do Pai compromete num dom total de si aos
homens e pelos homens.
III. 3. 3. A comunhão de vida social na perspectiva da caridade
Toda sociedade ou comunidade supõe em seus membros um amor pelo
mesmo objeto que una as vontades e as ações de diferentes pessoas numa comum
operação e numa vida comum. Para nós cristãos esse objeto comum é a caridade,
ou seja, o ágape cristão.
Essa caridade enquanto princípio de comunhão da Igreja se distingue em
dois aspectos: em primeiro lugar, é a força que reúne a multiplicidade na unidade
pelo fato de unir um grande número de pessoas na busca do mesmo bem e de
fazê-las cooperar em toda classe de serviço; em segundo lugar, é participação da
mesma raiz e fonte de vida. Assim, na Igreja a unidade de vida, pela ação do
mesmo princípio, precede e suscita a unidade de cooperação e de serviço. Se
todos os fiéis estão obrigados ao serviço mútuo e sua função respectiva, é porque
o Espírito Santo os faz participar da vida e do bem de Deus, que é o amor-agápe.
Se vivemos em comunhão com todos os membros da Igreja, como comunidade de
irmãos, comunhão que se expressa em forma de cooperação e de serviços mútuos,
é porque a caridade nos une à vida dessa Igreja.
Numa intuição didática e pastoral, nosso teólogo reflete sob dois caminhos
dessa caridade em vista da comunhão:
2. Caridade – Serviço: toda vida cristã é por sua natureza e conteúdo, serviço.
Isto vem do fato de que a vida cristã é, em primeiro lugar, participação da
81
vida de Cristo, que é o servidor por excelência; em segundo lugar, uma
vida social no mesmo corpo. Por isso os membros se ajudam mutuamente.
As imagens de que se servem as Escrituras para exprimir a realidade da
Igreja sempre comportam a idéia de uma solidariedade e de uma cooperação para
a realização dinâmica de um todo: a Igreja é uma construção edificada pelos
ministérios, mas na qual também os fiéis se edificam uns aos outros92.
Para designar tais atividades os textos neotestamentários empregam o
termo grego diakonia, que significa comumente serviço, mas que significa
também, mais especificamente, ministério. Isto nos leva a ampliar esta noção de
ministério reduzida na prática ao âmbito dos ministérios instituídos ou
hierárquicos, concebidos ordinariamente como autoridade e poder mais do que
como serviço. Congar alerta-nos de que é preciso restabelecer a noção
neotestamentária dos ministérios, segundo a qual existe uma gama de ministérios
utilizados pelo próprio Cristo93 que vai desde os apóstolos até a prática dos dons
mais simples (como os dons da consolação, da presidência...).
3. Caridade – Comunhão: cada um atua sobre o outro e, dentro de certos
limites, uns podem atuar por outros, animados pelo próprio Espírito Santo
que é o próprio Cristo. Aqui a caridade é a forma que a torna nossa e ao
Espírito Santo como a seu primeiro princípio, e é a condição daqueles que
vivem na caridade e da caridade.
A caridade é realmente o laço que faz os cristãos serem cristãos, levando à
sua perfeição a unidade de todos eles. Essa caridade – comunhão é
inseparável de dois princípios pessoais dos quais depende a realização da
Igreja: o princípio divino originário, que é o Espírito santo, e o princípio
humano que lhe está unido à consciência de Jesus Cristo, habitada e
movida pelo Espírito. Isso faz com que inúmeras pessoas diferentes
formem um “nós”, uma unidade plural de comunhão profunda.
92 Cf. 1 Tes 5, 11; Rom 14, 19; 1Pdr 2, 5; Jd 20. 93 Cf. 1 Cor 12, 4-5.
82
O ser e o ter do cristão são o ser e o ter de membro do corpo vivo que é a
Igreja. O fiel é um ser em comunhão sempre: naquilo que ele é mais intimamente
e naquilo que ele realiza em nome de Cristo na Igreja. Portanto, cabe lembrar que
toda autoridade exercida em nome de Cristo deve ser regida pelo serviço da
caridade que consuma todo o desígnio de Deus. Assim, pois, se estabelece uma
cooperação e uma correspondência entre a graça do Espírito interiormente e a
organização ou conduta de vida social externamente.
Enfim, o que se quer considerar nas formas de se processar a comunhão na
Igreja não é propriamente a abstração de sua análise, mas a verdade existencial
que podemos haurir a partir daí: a Igreja, por natureza, origem e estrutura, é uma
comunhão.
III. 4. Conclusão: a Igreja é uma comunhão, uma comunhão de Igrejas!
Após esse percurso reflexivo, já podemos ousar afirmar que, ao pensar a
comunhão na Igreja, não podemos confundi-la com um movimento de
uniformidade. A redução da comunhão à uniformidade é impensável tanto na
esfera divina (Deus – causa eficiente e suprema da Igreja), como na realidade
humana (homens e mulheres – sujeitos receptores ou causa material) do ser Igreja.
A comunhão pensada por Congar e refletida nessa dissertação realiza-se em
unidades parciais nas quais se reflete e realiza-se a natureza do todo. Nisso os
Santos Padres sempre insistiram sabiamente: a Igreja é o “nós” dos cristãos! E a
própria Escritura testifica: Ef 5, 23ss; 2Cor, 11, 2-3; 1Cor 6, 15.17; Ef 2, 21-22... .
Nos Santos Padres o primeiro é a Igreja, mas todo membro enquanto membro
possui a plenitude dos atributos da Igreja (unidade, catolicidade, ...). Isto introduz
em cada membro e em cada comunidade particular à vocação para comunhão. A
diferença é condição necessária à comunhão e não o seu contraponto.
Isto traz a tona, propriamente, um tema especial e de tensão de nosso
trabalho: a tensão entre o particular e o total, o local e o universal (do qual já
refletimos no capítulo anterior). Especial, pois aqui reside a riqueza da novidade
(unidade na diversidade); tensão porque o fato de que cada parte contenha o
83
totalidade não faz com que ela seja a totalidade. Dito concretamente, significa que
o fato de as comunidades ou Igrejas locais sejam homogêneas com relação ao
todo não lhes exige estar no todo e de concorrer para realizá-lo mediante aquilo
que há em cada uma delas de singular e diferente. A solução não é a
uniformidade, como também não pode ser a dispersão descompromissada. O
caminho é a busca por uma teologia da comunhão que desemboque numa
eclesiologia de comunhão itinerante e que reforce o espírito de universalidade e ao
mesmo tempo o de autenticidade94.
A Igreja acontece num espaço histórico onde se realiza o seu mistério no
mundo, sua concretização na Igreja Particular. Nosso teólogo toma a Igreja
Particular não simplesmente como sendo “o” bispo, mas como sendo a
“comunidade dos fiéis” que vive, celebra e testemunha sua fé no serviço ao
mundo e a Deus em dado lugar sob a presidência do serviço apostólico do bispo.
Fazendo um corte teológico na questão e a fim de melhor situá-la, aqui
nessa dissertação deve-se enfocar a Igreja Particular, na perspectiva da
Eclesiologia de Comunhão Congariana, no contexto de uma problemática mais
ampla do exercício eclesial do poder e da participação na Igreja:
2. A primeira observação a ser feita, já dita anteriormente nessa dissertação,
ratifica: Igreja não existe em estado puro. Ela é sempre uma realidade que
se concretiza, toma corpo em dado tempo e lugar. Portanto, falar em Igreja
Particular não é a mesma coisa que falar da Igreja Universal. Aquela existe
concretizada aqui e agora. Esta só existe pela comunhão universal de todas
as Igrejas particulares através do serviço petrino (referente a Pedro, ao
Papa), como sinal de unidade de todos os fiéis e de todas as Igrejas em
Cristo.
94 No decorrer da história tivemos perspectivas diferentes sobre essa questão: durante o primeiro milênio predominou um regime de comunhão das Igrejas locais diocesanas (isso continuou principalmente na eclesiologia das Igrejas Orientais). No segundo milênio cristão, predominou um regime de organização mais unitário e universal de uma Igreja que forma um só corpo, com uma estrutura visível de um único povo a qual tende aos poucos o conceito de papado como pastor supremo, único da Igreja.
84
3. A segunda observação diz respeito justamente a esses dois aspectos da
realidade “Igreja”: o “particular” e o “universal”95. Independente da
questão teórica, o que de fato articula a Igreja é uma questão prática: a
questão da organização do poder e da participação dentro da Igreja. Uma
eclesiologia do poder vai acentuar o centro do conjunto das Igrejas
particulares, encarnado na figura da Igreja universal, presidida pelo bispo
de Roma, o Papa. Uma eclesiologia mais voltada para o consenso entre as
Igrejas, na realização das Igrejas particulares e para as relações entre elas,
vai acentuar a colegialidade episcopal, isto é, a responsabilidade comum
de todos os bispos, como sucessores dos apóstolos, na pregação do
Evangelho no mundo. Essa eclesiologia de consenso exige uma
organização menos centralizadora e mais participativa.
Assim, a idéia da “Igreja como comunhão” e comunhão de Igrejas, em seu
modo de ser e agir, deve conjugar sua identidade confessante e sacramental com a
particularidade humana e a localização territorial. Ou seja: para realizar-se num
espaço humano, a Igreja tem como tarefa primeira cultivar sua identidade de fé
sempre articulada com a vida, para que a fé e o Evangelho possam se expressar a
partir dos sujeitos da cultura. E mais: essa Igreja comunhão é constituída por essa
mesma fé que acolhe o anúncio da Palavra de Deus, como dom do Espírito dado
ao fiel para responder pessoal e socialmente às exigências da realidade em que
vive.
Assim, uma Eclesiologia de Comunhão sadia deve, pois, ter em vista:
a) O Papel do Espírito Santo na construção da Igreja;
b) A articulação da própria Igreja, como comunhão, com o Evangelho,
enquanto: nela acontece a Palavra como alegre anúncio do amor
misericordioso de Deus, ligado à proclamação da morte e ressurreição
de Jesus Cristo; nela acontece uma prática que “julga o mundo”, em
nome do Deus de Jesus Cristo, como denúncia profética do mal que
fere a dignidade dos seres humanos, criados à imagem e semelhança do 95 Cf. para aprofundamento: BOFF, L. Eclesiogênese. Petrópolis: Vozes. p. 28-47.
85
mesmo Deus (é a denúncia de tudo o que vai contra a vida plena!); nela
e por ela é exercido o ministério da reconciliação entre os homens
entre si e com Deus, expressando a misericórdia de Deus no mundo;
nela se dá a adesão prática e histórica ao Evangelho, fé enquanto vida
(fé que salva), que nos constitui filhos de Deus e irmãos entre nós. A
comunidade viva nos gera para Deus em Cristo.
c) A Chave eucarística. A igreja comunhão tem uma chave eucarística
fundamental. De fato, a Eucaristia mostra que a Igreja é
necessariamente local e necessariamente comunhão de Igrejas. Não é
possível pensar o corpo eclesial de Cristo sem o corpo eucarístico de
Cristo. Por isso mesmo a memória eucarística é o centro da
comunidade eclesial, da Igreja comunhão.
d) O ministério Pastoral é uma elemento constitutivo dessa comunhão.
Ele preside a construção da Igreja e a situa visivelmente na comunhão
das Igrejas.
Enfim, A Igreja é plenamente Igreja na comunhão e é preciso chegar até o
termo dessa verdade sublime: ela é uma manifestação visível na terra da santa
sociedade das três pessoas. Qualquer que seja a teologia, as dimensões, as formas
que se adotem, a unidade das três pessoas divinas é para a Igreja fonte, modelo e
fim.
86
CONCLUSÃO:
Chegou o momento de recolher os resultados deste trabalho. Para isso,
deve-se ter em conta sua peculiaridade. Ele quer resgatar o percurso teológico de
nosso autor estudado, Yves Congar, no campo específico de sua Eclesiologia. No
caso, para essa tarefa, parte-se de duas delimitações bem claras: a primeira, no
espectro mais amplo da teologia, a dissertação se detém à fundamentação da
Eclesiologia de Comunhão, sua caracterização e suas formas de processamento no
âmbito eclesial; a segunda diz respeito à realidade do Concílio Vaticano II e o
pós-concílio e, assim, recolhe alguns fragmentos dos debates em torno da
eclesiologia de comunhão, de sua recepção e seu desenvolvimento teológico.
Posta essa premissa, busca-se expressar, a modo de conclusão, o caminho
percorrido em três passos:
1º passo: O papel definitivo do Espírito na obra mesma de Cristo, o filho
eterno de Deus. Na qualidade de êxtase do amor de Deus, o Espírito Santo faz
eclodir a criação do Universo. Fecunda a vida do ser nas origens, revigora-lhes as
forças ao longo do tempo, encaminha-o para o futuro de seu pleno acabamento. É
ele o “Dom escatológico de Deus”, cuja presença habitadora no mundo e nos
homens redunda-lhes de graça de santidade e divinização.
Num mundo eivado de inércia, indiferença e fragmentação, o Espírito
representa um apelo constante de renovação e reintegração, interligando a
contingência do processo histórico humano à escatologia do Reino. Como
princípio soberano do futuro absoluto do homem e da criação, concede-lhes a
oportunidade de experienciar, desde já, as primícias do intemporal. Para a verdade
de Cristo, faz confluir todas as coisas, instituindo a “nova criação”. Assimilando a
criatura humana ao filho de Deus, o “novo e definitivo Adão”, o Espírito restaura-
lhe, gradativamente, a similitude divina desfigurada pelo pecado, mediante o dom
pessoal e comunitário da conversão. O Espírito gera o ‘homem novo” pelo dom da
liberdade. Liberto de toda idolatria, do peso da lei e da morte, o “homem novo”
encontra-se intrinsecamente habilitado para amar o semelhante e defender a causa
87
da liberdade. Ungido pelo Espírito Santo, vive sob o regime do amor solidário.
Solidificado em profunda interioridade, num processo de crescente personalização
abre-se simultaneamente ao mundo e à comunidade humana, empenhado
ativamente na práxis histórica da libertação. O destino autêntico da liberdade,
insiste Congar, é a vida em comunhão, não havendo real personificação humana
sem efetiva socialização. Na entrega aos outros, na vivência concreta do amor
pró-existente, o cristão experimenta o dom da liberdade divina. Configurado a
Cristo pelo Espírito Santo, lhe é dado participar da agraciadora obediência filial,
que se reflete na conformação de seu desejo humano ao “Desejo de Deus”. À
imagem de Deus tri-unitário, o Espírito modela a unipluralidade humana,
explicitamente vigente na inter-comunhão eclesial.
A humanidade nascida do Espírito é formada, precisamente, para vida
eclesial. Na Igreja – e como Igreja – se consolida a identidade dos cristãos. Para a
unidade do Templo uno do Espírito uno, hão de convergir e interagir, criativa e
não massivamente, a variedade múltipla dos Templos firmados em cada um dos
cristãos. Forjando o corpo de Cristo, o Espírito Santo potencializa todos os dons e
carismas pessoais para a mútua edificação de seus membros. Se, portanto, da
cristologia, o Espírito faz brotar uma nova antropologia, marcada pela ontologia
histórica e cristificante da graça, pede igualmente que se explicite, como algo
inerente à segunda, uma eclesiologia pneumatológica em vista da comunhão.
2º passo: Passagem de uma concepção de Igreja voltada sobre si para
uma Igreja voltada para realidade: a Eclesiologia de Comunhão. Encerrado o
Concílio Vaticano II começa o debate pela sua interpretação. E no campo
eclesiológico não foi diferente. O Concílio tomou como chave de leitura de sua
compreensão de Igreja a categoria “Povo de Deus” como expressão de sua relação
de origem – de Trinitate – e de sua relação com o mundo: sua plena historicidade.
A eclesiologia conciliar significou, por um lado, a passagem do fechamento sobre
si para o campo aberto da realidade pluralista (do confronto ao diálogo). Por
outro, a superação de uma eclesiologia parcial, a partir da hierarquia, por uma
eclesiologia integral de comunhão religiosa e teologicamente qualificada a partir
da graça batismal.
88
No processo de recepção do Concílio, buscam-se novas chaves de leitura.
A categoria que teve maior sucesso foi a de “comunhão”96. Todavia, a categoria
“comunhão”, como bem teologizou Congar, não se apresenta sem problemas quer
na sua conotação mais intra-eclesial quer na conotação hierárquica, que seu uso
nem sempre consegue esconder. Nesse sentido, faz-se necessária uma distinção
entre comunhão eclesial, como realidade de fé produzida pela graça batismal, sob
a força do Espírito, e a comunhão hierárquica, subordinada àquela, também ela
realidade da fé produzida pela imposição das mãos, sob a força do mesmo
Espírito. Essa comunhão só existe com o suporte de um sujeito histórico: o povo
de Deus. Este é o sujeito real da fé, como tal, também o sujeito da comunhão
eclesial e de sua inserção no mundo em vista da missão salvífica. Aqui deve-se
também afirmar uma espécie de “sujeito ativo-oculto” da comunhão tanto eclesial
quanto hierárquica. Esse “sujeito ativo-oculto”, como que alma da Igreja, se faz
presente no sujeito histórico como ator principal da vida eclesial: o Espírito Santo!
Portanto, o sentido radical da comunhão eclesial não se situa, repito, na
hierarquia, mas na Igreja como um todo, como dom do Espírito dado a todo o
corpo eclesial, constituído pela graça batismal. O mesmo Espírito que gera e
sustenta a comunhão eclesial, gera e sustenta a comunhão hierárquica, e esta por
sua vez deve ser diaconal em sua plenitude. A comunhão, como dimensão
fundamental da Igreja, pode e deve articular-se em toda e qualquer realização
histórica da Igreja e em todas as direções da mesma.
Ainda nesse segundo passo, a perspectiva da Igreja voltada para a
realidade à luz de sua vocação comunional coloca o desafio da relação entre os
fiéis e o ministério apostólico. Sem entrar em detalhe, a afirmação da igualdade
radical de todos os batizados como anterior a qualquer diferenciação é um
princípio eclesiológico que deve expressar-se na vida real da Igreja. Ele
fundamenta a compreensão da Igreja como comunhão de vocações, carismas e
ministérios, em vista da missão. É necessário, a partir dele, estudar
96 Como dissemos anteriormente nesta dissertação, essa categoria se apresentou como crítica ao uso sociológico e ideologizante da categoria povo de Deus. Na prática, o Sínodo Extraordinário dos 20 anos do término do Concílio (1985) apresenta essa categoria como chave de leitura da eclesiologia conciliar, deixando a categoria povo de Deus no esquecimento.
89
diligentemente, no quadro histórico em constante transformação, como responder
aos desafios do processo real de diferenciação das formas eclesiais, dos serviços
ministeriais do povo de Deus e do ministério hierárquico, no horizonte amplo da
busca da unidade necessária a partir da diversidade operada pelo Espírito na
Igreja.
3º passo: Emergência de um agir pastoral no contexto da comunhão
profunda. Nenhum trabalho esgota a discussão. Muito menos este! Há um leque
de enormes questões a serem levadas adiante com responsabilidade eclesial. A
concepção de “Igreja Comunhão”, redescoberta pela pneumatologia, deve gerar
em nós uma mudança de mentalidade em nível macro, comenta Congar: pensar
um Cristianismo de comunhão, uma concepção mais dinâmica da unidade como
estando incessantemente por fazer, a consciência, enfim, da inadequação das
formas adquiridas com relação à pureza, profundidade e plenitude às quais somos
chamados (o Espírito Santo, sem cessar, impulsiona para frente e nos chama a
isso!) permitiriam assumir um pluralismo e mesmo requerimentos, não raro ricos
em promessa e progresso, de tantos cristãos que, presentemente, não encontram
mais suficiente oxigênio nas estruturas todas feitas, e acabam buscando mais ou
menos à margem da Igreja uma resposta para as suas necessidades.
Enfim, o Espírito suscita reformas e renovações que não são anárquicas,
porque este mesmo está unido ao Verbo e é princípio de comunhão. O Espírito de
Deus é um espírito de invenção, renovação e adaptação. Ele deve nos inspirar,
sem cessar, para que brote na Igreja movimentos nesse sentido, os quais, para
serem verdadeiros movimentos da Igreja, devem se harmonizar em unidade e
proceder não de novidades estranhas à tradição, mas do coração mesmo desta.
90
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1.1. Sagrada Escritura Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1991 TEB. São Paulo: Loyola / Paulinas, 1995.
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1.2.1. CONCÍLIO VATICANO II CONSTITUIÇÃO PASTORAL Gaudium et spes CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Sacrosanctum concilium CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Lumen gentium CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum DECRETO Ad gentes DECRETO Presbyterorum Ordinis DECRETO Perfecte Caritatis DECRETO Unitatis Redintegratio DECRETO Christus Dominus DECRETO Optatam totius 1.2.2. PADRES DA TRADIÇÃO DA IGREJA
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91
III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO.
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América latina. Texto Oficial da CNBB, 1985.
III CONFERÊNCIA GERAL DO ESPISCOPADO LATINO-AMERICANO. DOCUMNETO DE Santo Domingos.
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_______________. Setor Vocações e Ministérios. Batismo: fonte de
todas as vocações ‘avancem para águas mais profundas’ (cf. Lc 5, 4).
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1999.
_______________. DOCUMENTO nº 71. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil – 2003-2006. São Paulo: Paulinas,
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São Paulo: Loyola, 1989.
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Cette Église que j´aime. Paris: Les Éditions du Cerf,1968
Chrétiens desunis. Príncipes d´um “Oecuménisme” catholique. Unam
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Diálogos de Outono (Entretiens d’ automne) Trad. de Marcos Marcionillo.
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(Ou: Os leigos na Igreja. São Paulo: Herder, 1996).
Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo I: L´Esprit Saint dans l’ Économie; révélation et expérience de l’Esprit. Paris: Les Éditions du Cerf, 1979.
Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo II: Il est Seigneur et Il donne la vie.
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