crime, sujeito e sujeição criminal- aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria de...

Upload: fernanda-nathali

Post on 02-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    1/25

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    CrIme, sujeIto e sujeIo CrImInal1:

    aspeCtos de uma ContrIbuIo analtICa

    sobre a CategorIa bandIdoMichel Misse

    Muitas contribuies recentes teoria do sujeito tm argu-mentado que a experincia de tornar-se sujeito est vincu-

    lada undamentalmente experincia da subjugao. Nessesentido, o sujeito seria o pressuposto da agncia, j que nose pode explic-la sem a interveno ativa que contrape aestrutura. Se tomarmos estrutura como poder (mesmo nosentido amoro weberiano), ento a experincia da sujeio(no sentido de subjugao, subordinao, assujetissement)seria tambm o processo atravs do qual a subjetivao a

    emergncia do sujeito se ativa como contraposto da estru-tura, como ao negadora. O sujeito, nesse sentido, o eei-to de ser posto pela estrutura (poder) e de emergir comoseu ser contraposto e refexivo (potncia). assim queautores como Foucault (1977, 1984, 1988, 2006), Althus-ser (1972), Butler (1997, 2005) e, mais recentemente, Das(1989, 2005) e Das et al. (1997), tentam responder ao per-

    sistente paradoxo de se pensar a ao refexiva e a interao1 Sobre o conceito de sujeio criminal, ver Misse (1999). Aproveito, neste arti-go, trechos de minha argumentao primeiramente apresentada naquele estudo.

    A este respeito, ver tambm Misse (2006).

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    2/25

    16

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    sem perder de vista suas determinaes, particularmente dongulo de quem se encontra subalterno.

    Entretanto, essas contribuies tendem a pensar o sujei-

    to social que emerge da experincia de subordinao comosujeito revolucionrio que pe novos valores (marxismo,eminismo, movimento gay, ecologia etc.); raramente otomam pela sua ao egosta, voltada para si ou para seu gru-po, cnica ou ctica quanto necessidade do Outro que noseja sob a orma tambm da subordinao ou de sua subju-gao. Dito de outro modo: raramente o sujeito que emerge

    da experincia da subordinao pensado como sujeito quesubordina ou que subjuga, que produz outros assujeitamen-tos e, portanto, tambm outros sujeitos. Um dos argumentospara no pens-lo como sujeito exatamente o ato de queele no pe valores, no democrtico (Wiewiorka, 2008).Entretanto, se o negamos como sujeito, camos em novosparadoxos, entre os quais o de repor o confito entre ao e

    estrutura, para os quais teramos dois pesos e duas medidas.Anal, o que queremos dizer quando armamos que o atorpensa, que o ator sore, que o ator ama? Pensar, sorere amar no so categorias assimilveis analiticamente nem estrutura, nem aos papis, nem ao ator e nem agncia.

    A sociologia convencional tem preerido esquivar-sedesses problemas reugando a discusso sobre o processo

    de subjetivao psicologia, psicanlise, losoa e aoschamados cultural studies, e deendendo no plano micro aautonomia constitutiva da interao social, atravs dos con-ceitos clssicos de sel, identidade social, ator social, papise statussociais. Para ligar esse plano de categorias interacio-nistas ao plano da estrutura, das instituies, das prticas eda ao coletiva recorre por vezes noo de agncia. Se

    tomarmos importantes contribuies que lidam com temascomo o nosso, por exemplo, os trabalhos de Erving Gomane Howard S. Becker, observaremos o quanto noes comoestigma e rtulo tensionam com essa tradio mas evi-

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    3/25

    17

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    tam conrontar diretamente a categoria implcita do sujeitoque sore e manipula o estigma ou que rotula ou rotulado,preerindo permanecer no ocultamento ttico do sujeito

    sob o selsocial. De alguma maneira, o sujeito posto orado sel, como seu undo ou sua essncia, para melhor selivrar dele. O sujeito do sel, como j se disse inmeras vezes,no pertenceria sociologia, assim como o descascar dascamadas da cebola no nos conduz a qualquer proundi-dade; quando a buscamos, no encontramos nada alm daprpria cebola descascada. No entanto, o paradoxo persis-

    te, pois h um agir que se dene por sua autonomia rente estrutura, rente uno e contra o j dado, que pe eresgata o sujeito em algum lugar que est no selmas que,ao mesmo tempo, o nega e o ultrapassa no desejo, nas emo-es, na produo do sentido e na ao refexiva propria-mente dita. O sujeito no est em qualquer proundidadedo sel, apenas uma outra orma de abord-lo.

    As minhas pesquisas tm me conduzido constatao deque h vrios tipos de subjetivao que processam um sujeitono revolucionrio, no democrtico, no igualitrio e no

    voltado ao bem comum. O mais conhecido desses tipos osujeito que, no Brasil, rotulado como bandido, o sujeitocriminal que produzido pela interpelao da polcia, damoralidade pblica e das leis penais. No qualquer sujei-

    to incriminado, mas um sujeito por assim dizer especial,aquele cuja morte ou desaparecimento podem ser ampla-mente desejados. Ele agente de prticas criminais paraas quais so atribudos os sentimentos morais mais repulsi-

    vos, o sujeito ao qual se reserva a reao moral mais ortee, por conseguinte, a punio mais dura: seja o desejo desua denitiva incapacitao pela morte sica, seja o ideal de

    sua reconverso moral e sociedade que o acusa. O eue-mismo de ressocializao ou de reinsero social acusa,aqui, por denot-la, a autonomia desse sujeito, e parado-xalmente a sua no sujeio s regras da sociedade.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    4/25

    18

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    A minha questo envolve a constatao de uma comple-xa anidade entre certas prticas criminais as que provo-cam abrangente sentimento de insegurana na vida cotidia-

    na das cidades e certos tipos sociais de agentes demarca-dos (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e peloestilo de vida. Seus crimes os dierenciam de todos os outrosautores de crime, no so apenas criminosos; so margi-nais, violentos, bandidos.

    Tenho procurado entender esse complexo processosocial, que teve no Rio de Janeiro o seu primeiro e mais

    conhecido desdobramento no Brasil, como o de uma acu-mulao social da violncia (Misse, 1999; 2006; 2008a). como se alguns atores sociais se alimentassem reciproca-mente em algo como uma causao circular acumulativa,gerando, de um lado, acumulao de desvantagens para umsegmento da populao e, de outro, estratgias aquisitivaspartilhadas tanto por agentes criminais quanto por agen-

    tes encarregados de reprimi-los, de um modo que ganhoudierentes graus de legitimao em importantes camadas dasociedade mais abrangente. Alm da associao entre acu-mulao de desvantagens e incriminao preventiva de cer-tos tipos sociais, desenvolveu-se um persistente processode sujeio criminal de uma parcela de agentes de pr-ticas criminais. Tal dinmica terminou por constituir algo

    como uma cultura associada a esses sujeitos.Para sublinhar uma importante dimenso do que estouchamando de sujeio criminal preciso compreenderque, no Brasil, pelo menos a partir de meados dos anos1950, sempre houve certa justicao, eu no diria consen-sual, mas habitual, para a eliminao sica de criminososcomuns, mesmo quando sua periculosidade no poderia

    servir para justic-la. H inmeras descries, por exem-plo, de vinganas contra pequenos ladres submetidos atorturas em rituais pblicos de degradao e crueldade.Trata-se do deslizamento de sentido da punio pelo cri-

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    5/25

    19

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    me cometido para a punio do sujeito porque crimi-noso contumaz: para o que seria seu incorrigvel mau--carter, sua subjetividade essencialmente criminosa, m;

    para sua irrecuperabilidade potencial. Tudo isso no algoque se deva deixar de lado quando se tem em mente ossucessivos esquadres da morte, a diuso dos grupos deextermnio e a conuso moral de praticar crimes para jus-ticadamente punir crimes. Esquadres e grupos de exter-mnio no poderiam existir durante tanto tempo se noexistisse algum tipo de ambientao social em busca de sua

    legitimao. Do mesmo modo, o volume de suspeitos queso mortos pela polcia em vrios estados brasileiros, espe-cialmente no Rio de Janeiro, aponta para ao menos duasquestes: o quanto esto sendo simplesmente executadose, se no or o caso, por que preerem o risco da morte ase entregar polcia, como em outros lugares. Se h mes-mo um conronto legal, como explicar que a polcia fu-

    minense tenha matado mais de 10 mil suspeitos de crimeno mesmo perodo em que perdeu, em servio, menos dequatrocentos de seus homens?

    Esse processo de sujeio criminal ganhou uma novadimenso quando os mercados de trabalho ilegais conven-cionais, tradicionais, principalmente o mercado de trabalhodo jogo do bicho, que era local e depois se torna nacional,

    vo sendo tragados, aos poucos, por um novo mercado detrabalho, uma empresa altamente lucrativa, relativamentedesorganizada e amplamente disseminada, como o varejode drogas ilcitas, especialmente da cocana. Em comparaocom os mercados de trabalho ilegais convencionais, comoa prostituio popular, o jogo, o pequeno contrabando, as

    vigarices, a compra e venda de objetos roubados e mesmo

    o jogo do bicho, o varejo da cocana mostrou-se extrema-mente atraente para os padres de renda das populaesque atingiu. Despertava tambm, curiosamente, menorreao moral local, por oposio aos crimes convencionais.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    6/25

    20

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    Redes de quadrilhas oram se constituindo e abarcando osdierentes aglomerados urbanos de baixa renda avelas,conjuntos habitacionais, lotes da perieria de um modo

    muito caracterstico: vrios pontos de venda xos, guarne-cidos por soldados, a partir dos quais pequenos vendedo-res, os vapores, oerecem a mercadoria a usurios locaisou que vm de outras partes da cidade. Naturalmente, todaa rea desses pontos de venda terminava conundindo-secom o aglomerado urbano do qual azia parte, constituin-do-se assim num territrio do trco a ser deendido, a

    erro e ogo, de outras redes de quadrilhas e das incursesda polcia.

    Uma parte importante da explicao dessa associaodo varejo do trco com a violncia deve-se ao surgimentode quadrilhas que controlam territrios em reas urbanas debaixa renda, o que leva a intermitentes confitos com outrasquadrilhas pelo controle desses territrios e de seus pontos

    de venda. Do mesmo modo, o baixo poder aquisitivo dosque operam nesses territrios torna-os vulnerveis a um sis-tema de consignao de vendas em que a dvida paga coma morte. O trco de drogas, que atende s elites e s classesmdias em praticamente todos os pases do mundo, inclusi-

    ve no Brasil, no se associa da mesma maneira violncia,principalmente porque operado por indivduos e no por

    quadrilhas e no baseado em controle de territrios, masem relao direta com o consumidor, atravs da entrega emdomiclio ou em lugares combinados. No h, portanto,uma relao necessria entre drogas ilcitas e montante da

    violncia, a no ser quando o trco se territorializa e operacom jovens pobres, submetidos ao sistema da consignaode vendas e relao de subordinao ao chee da quadri-

    lha (Zaluar, 2004; Misse, 2006; Grillo, 2008).Nesse sentido, a sujeio criminal tambm se territo-rializa, ganha contornos espaciais e amplica-se nos sujei-tos locais e mesmo nas crianas e adolescentes cuja sujei-

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    7/25

    21

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    o esperada2. Como tal, no pode ser compreendidaexclusivamente apenas no plano da interao contextual edo desempenho de papis sociais, pois se mostra ancora-

    da num plano macro de acumulao social da violncia emtipos sociais constitudos e representados por sujeitos cri-minais produzidos em contextos scio-histricos determi-nados. Aqui a sujeio criminal poderia ser compreendida,ao mesmo tempo, como um processo de subjetivao e oresultado desse processo para o ponto de vista da socieda-de mais abrangente que o representa como um mundo

    parte. Por exemplo, o mundo do crime (Ramalho, 1983),que representa as pessoas que azem parte desse mundo(como malandros, marginais, tracantes, bandidos)como sujeitos criminosos. Tambm por isso podemos consi-derar que a sujeio criminal um processo de criminaode sujeitos, e no de cursos de ao. Trata-se de um sujeitoque carrega o crime em sua prpria alma; no algum que

    comete crimes, mas que sempre cometer crimes, um ban-dido, um sujeito perigoso, um sujeito irrecupervel3, algumque se pode desejar naturalmente que morra, que pode sermorto, que seja matvel. No limite da sujeio criminal, osujeito criminoso aquele que pode ser morto4.

    Originalmente, a sujeio criminal apenas distinti-va. Nesse sentido, ela sempre comea no plano da intera-

    o social contextual, mas j sob a reerncia estrutural do

    2 A Polcia do Rio de Janeiro matou nos ltimos cinco anos (2004-2008), em su-posto conronto legal, 5.600 civis suspeitos de crimes, dos quais 1.836 crianas eadolescentes. Ver oDirio Ofcial do Estado do Rio de Janeiro(http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=150), para os dados sobre autos de resistncia. Sobre asujeio criminal de crianas e adolescentes, ver Misse (2007) e Nri (2009).3 A ideia de recuperabilidade pode ser um bom divisor analtico entre sujeitosimplesmente incriminado e sujeito criminal. De qualquer modo, aponta para

    causas a serem removidas no sujeito e, portanto, para a subjetividade na repre-sentao do que seja um criminoso. Sobre as mudanas nas representaes sociaisdo que seja um criminoso, ver Melossi (2000).4 A conexo com as questes tratadas por Agambem (2007) inevitvel, mas elano ser analisada aqui.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    8/25

    22

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    criminal. O reerente est dado no apenas nos cdigospenais, mas na prpria linguagem que na interao serempregada para distinguir a ruptura da normalidade ou a

    sua expectativa em um sujeito. Se partirmos do pressupostodurkheimiano de que o crime no existe nem no even-to nem em seu autor, mas na reao ao evento e ao autor,poderemos compreender melhor como se d o processocomo um todo. A acusao social que constri o criminoso(e que coincide com o incio do processo de incriminao) sempre resultante de uma interpretao contextua lizada,

    entre agentes, de cursos de ao cujo signicado normalou desviante se produz nesse mesmo processo e no antesdele. Evidentemente, h uma pauta classicatria dos cri-mes (o Cdigo Penal, por exemplo) que anterior e exte-rior ao evento e que tomada como reerncia; mas essapauta no existe seno no processo social que a aplica, quea interpreta, que a contextualiza ou que a despreza. E h

    tambm a sensibilidade jurdica local, que nem semprecoincide ou concorda com os cdigos peritos. O crime denido primeiramente no plano das moralidades que setornaram hegemnicas e cuja vitria ser inscrita posterior-mente nos cdigos jurdicos.

    Embora seja reconhecido que a denio de uma aocomo desviante (divergente, problemtica, desnormalizada

    ou que nome se lhe queira dar) depende de um julgamentobaseado numa certa ideia de normalidade, e que as ideias sobrenormalidade so lbeis e produzidas contextualmente entre osagentes envolvidos, so poucos os que reconhecem que nessecaso uma pauta relativamente xa de signicados de norma-lidade apenas culturalmente reerencial, e as denies decada situao um processo social que ganha relativa auto-

    nomia em relao a essa pauta. Nesse caso, incluir um agenteem algum item de uma pauta legal reconhecida, como porexemplo o Cdigo Penal, que o que estamos chamandoaqui de incriminao, no uma ao simples e direta de

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    9/25

    23

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    encaixamento, mas um complexo processo de interpretaobaseado tambm empoderesde denio da situao. Todoesse processo reconhecidamente uma construo social

    (Misse, 2008b). Vrios autores trataram dele, no plano dateoria dos papis sociais e de sua internalizao pelo ator,atribuindo-lhe vrias dimenses que se superpem no con-ceito de identidade social. o caso pioneiro de Frank Tan-nenbaum (1938), quando arma que the person becomesthe thing he is described as being. Edwin Lemert (1951;1967) elabora esse processo chamando-o de desvio secun-

    drio, ao se reerir ao indivduo cuja autoconcepo de sie de suas aes se conorma substancialmente com a ima-gem desviante que os outros tm dele. tambm o caso deHoward S. Becker (1963), John Kitsuse (1962) e Kai Erikson(1962) ao popularizarem como rtulo (label) esse tipo destatusnegativo atribudo ao desviante; e tambm de ErvingGoman (1962) ao denominar de estigma suas resultantes

    para a identidade social deteriorada, cuja manipulao peloselele estudou brilhantemente.

    Na sujeio criminal encontramos esses mesmos proces-sos, mas potencializados por um ambiente de prounda desi-gualdade social, orte privao relativa de recursos de resis-tncia (ou ocultao social) estigmatizao e pela domi-nao (mais que apenas pelo predomnio) da identidade

    degradada sobre todos os demais papis sociais do indivduo.O rtulo bandido de tal modo reicado no indivduo querestam poucos espaos para negociar, manipular ou abando-nar a identidade pblica estigmatizada. Assim, o conceito desujeio criminal engloba processos de rotulao, estigmati-zao e tipicao numa nica identidade social, especica-mente ligada ao processo de incriminao e no como um

    caso particular de desvio. Entre esse selsocialmente degra-dado e subjugado pelo horizonte de risco de uma morte imi-nente, sem sentena e sem qualquer glria, e a emergnciade um sujeito criminal inteiramente egosta e indierente ao

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    10/25

    24

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    destino dos outros, reicado em seu prprio atributo social,estende-se o continuumde dimenses do conceito.

    A sujeio criminal no apenas um rtulo arbitrrio, ou

    o resultado de uma luta por signicaes morais disputveis,mas um processo social que condensa determinadas prticascom seus agentes sob uma classicao social relativamenteestvel, recorrente e, enquanto tal, legtima. H estruturaona produo social da sujeio criminal, mas cada evento s capturado nessa estruturao se zer sentido para muitosindivduos, inclusive para o prprio acusado.

    O conceito de sujeio criminal proposto com analidade de determinar trs dimenses incorporadas narepresentao social do bandido e de seus tipos sociais. Aprimeira dimenso a que seleciona um agente a partir desua trajetria criminvel, dierenciando-o dos demais agen-tes sociais, atravs de expectativas de que haver, em algummomento, demanda de sua incriminao. A segunda dimen-

    so a que espera que esse agente tenha uma experinciasocial especca, obtida em suas relaes com outros bandi-dos e/ou com a experincia penitenciria. A terceira dimen-so diz respeito sua subjetividade e a uma dupla expectati-

    va a respeito de sua autoidentidade: a crena de que o agen-te no poder justicar sensatamente seu curso de ao ou,ao contrrio, a crena em uma justicao que se espera

    que esse agente d (ou que possa ser dada legitimamente aele) para explicar por que segue reiteradamente nesse cur-so de ao criminvel. Prticas criminais so todas as prti-cas criminveis, isto , que tm chance objetiva, numa dadasociedade e dada uma determinada denio da situao,de serem criminadas e cujo agente sabe ter chance objeti-

    va de ser submetido a um processo de incriminao.

    importante risar que a sujeio criminal o resultado,numa categoria social de indivduos, de um processo socialde constituio de subjetividades, identidades e subculturasdo qual participam como atores: 1) designaes sociais que

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    11/25

    25

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    produzem uma especca excluso criminal (atravs deacusaes e incriminaes) de agentes que caiam na classi-cao social do que seja delito (crime ou contraveno); 2)

    atribuies ao agente (baseada na crena de que sua traje-tria conrma, nesse caso, regras sociais de experincia) deuma tendncia a praticar crimes, isto , de seguir um cursode ao incriminvel, geralmente com a expectativa de queesse curso de ao venha a ter (ou j tenha) regularidade;3) autorrepresentaes, no agente, ou representaes nosseus amiliares, ou mesmo nos seus grupos de reerncia ou

    na comunidade em que vive, que ora demandam ou ten-tam justicar ou explicar suas prticas e escolhas indi-

    viduais, ora as atribuem sua singularidade ou concluempela impossibilidade dessa justicao. A inexistncia dequaisquer dessas dimenses exclui um agente da situaode sujeio criminal, mas no necessariamente da incri-minao. Indivduos que so eventualmente incriminados

    podem no incorporar (ou no serem socialmente incorpo-rados) na sujeio criminal5. As prticas criminais no pro-duzem sempre sujeio criminal.

    Com esse conceito, pretendo estender uma ponte entreas abordagens interacionistas e ps-estruturalistas, de modoa contribuir para a compreenso desses processos sociaisnuma sociedade proundamente desigual, como o caso

    do Brasil. Nesse sentido, representaes de periculosida-de, de irrecuperabilidade, de crueldade participam deprocessos de subjetivao que conduzem, no limite, justi-cao do extermnio do sujeito criminal. Trata-se de umprocesso de inscrio do crime na subjetividade do agente,como numa possesso, e no apenas no seu comportamen-to criminvel, tornando muitas vezes sua tentativa de sair

    do mundo do crime to inverossmil para os outros a pon-

    5 Ver Magalhes (2006), sobre as narrativas de presos que explicitam contextos desujeio criminal.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    12/25

    26

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    to de exigir praticamente um processo de converso (des-possesso) de tipo religioso.

    Para que haja sujeio criminal, preciso que certos

    tipos de curso de ao, representados no apenas como des-viantes, divergentes, problemticos ou ilegais, mas denuncia-dos principalmente como criminais, inclusive pelo agente, sereiterem na expectativa social a propsito desse agente; queesses tipos de curso de ao condensem signicaes de rup-tura com representaes de normas sociais de validez abran-gente e, principalmente, rompam ou ameacem romper com

    o ncleo emocional dos agentes sociais, um ncleo ortesobre o qual se concentram as representaes sociais da nor-malidade, do crime e da violncia. Em oposio ao no zpor mal do negligente e do ui levado a isso do neutraliza-dor, ele pode chegar, no limite, a assumir publicamente suaidentidade como mau ou se tornar inteiramente indieren-te ao statusnegativo que continuam a lhe atribuir. Impor-se

    pelo medo uma das ormas mais elementares e universaisde operar o poder em condies de desconana recproca.Nessa identicao-limite, e ainda a, ele no desconhece aclassicao social do que sejam boas ou ms aes na eseramais abrangente dos valores. Constitudo como sujeito plenono registro do atributo e no registro de suas prprias identi-caes e de sua vivncia, no registro da moral e do direito,

    a ele se indaga: por que esse caminho? Agrupei suas variadasrespostas em trs tipos-ideais de autojusticao: o acaso ou odestino; a escolha racional; e a vontade de... (Misse, 1999).Dierentemente tambm da sujeio criminal que busca neu-tralizao (ntima ou pblica), embora ele geralmente vejarazes para autocontrolar ou modicar seu destino, suasescolhas e sua prpria vontade, pensa que poder azer isso

    mais rente, algum dia talvez, quando chegar a hora.Ele assume, de certa maneira, um livre-arbtrio que no negaa necessidade das normas e valores sociais, mas que o coloca,por assim dizer, por algum tempo acima deles.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    13/25

    27

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    Nesse sentido, o perigo que tal agente passa a repre-sentar reora a crena de que ele possua uma subjetividade

    peculiar, algo como um carisma de valor negativo, mas que

    denota uma dierena que pode ser interpretada por elecomo de superioridade moral. Traz-lo de volta normae sociabilidade convencional representaria, portanto, umprocesso da magnitude de uma converso ou reconver-so, e no raro que esse processo se realize estritamentesob a orma de uma converso religiosa6.

    A maior ou menor coincidncia ou tenso entre a atri-

    buio social e a autoidenticao do agente a um tipo ou auma combinao de tipos sociais de sujeio criminal podeindicar dierentes dimenses tcitas de um jogo que envolvediretamente os agentes postos na posio acusatria, que or-mam para ele um out-group, os agentes postos na posio deparceiros ou iguais, ainda que de grupos rivais, que ormamum in-groupabrangente, e os agentes cuja posio combina

    ou oscila entre os dois grupos (mediadores, tanto em sentidopositivo quanto negativo na diversa apreciao dos gruposde agentes). A entradano mundo do crime muito variadae muitas vezes ocasional. Para os objetivos deste trabalho, oque mais importa no a entrada, nem mesmo a adesoou a opo pelo crime, mas, na sua reiterao, tornar-se pas-svel de incorporaonuma identidade social negativa e sua

    consequente acomodao a um tipo social7

    .

    6 Ver o desenvolvimento dessa conexo em Teixeira (2009).7 A entrada no mundo do crime (e, portanto, a incorporao da sujeio crimi-nal) segue, muitas vezes, um padro anlogo (e culturalmente oposto) ao seguidopelo adolescente Zuni, estudado em clebre ensaio de Lvi-Strauss. O adolescente,acusado de eitiaria, tornou-se eiticeiro medida que procurava tacitamenteexplicar-se, perante os juizes, da acusao. O acusado, preservado como testemu-nha, traz ao grupo uma satisao de verdade, innitamente mais densa e mais

    rica do que a satisao de justia que teria proporcionado a sua execuo (Lvi-Strauss, 1985, p. 201). O padro anlogo e oposto porque, em nosso caso, oagente acusado submete-se sujeio, torna-se bandido, muitas vezes por noconseguir escapar dessa identidade, testemunhando-a, recusando-a e atestandoassim a realidade do sistema que a tornou possvel (p. 200).

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    14/25

    28

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    No h sujeio criminal sem incriminao, mas podehaver incriminao sem sujeio criminal. O que distingueradicalmente a incriminao de um indivduo de sua sujei-

    o criminal representado socialmente, grosso modo,pela distino entre bandidos e no bandidos. O signi-cado de bandido, embora remeta a integrante de umbando, ganhou autonomia individualizante, passou a seraplicada ao agente cuja sujeio criminal j est em cursoou que se considera consolidada. Na representao jurdi-ca, a reincidncia poderia aparecer como um indicador

    dessa distino, e geralmente o , mas no suciente.Pode haver reincidncia criminal e no haver sujeio cri-minal, como pode haver sujeio criminal sem reincidn-cia judicialmente registrada. De um modo geral, a dieren-a construda pela nase maior que se d ao sujeito, nocaso da sujeio criminal, com a expectativa social de queo agente , de algum modo, subjetivamente ligado trans-

    gresso; e pela nase maior na transgresso que no sujeito,no caso da mera incriminao, com a expectativa social deque aquela transgresso no subjetivamente ligadaao agen-te (ao seu carter, s suas origens e ao seu meio social, suabiograa etc.).

    De qualquer modo, quando o agente sabe que, aoempreender determinado curso de ao, ele poder cair

    dentro de uma classicao social incriminadora, que eleconhece e com a qual at pode partilhar, logo uma autoava-liao se impe: a que indica o quanto ele est (ou no) liga-do subjetivamentea esse tipo de curso de ao e de que modoele a interpreta. A maior ou menor capacidade e interessedo agente em azer essa ligao e interpret-la a dimensoprincipal da sujeio criminal no mbito do processo de sub-

    jetivao, e as tenses entre a imputao subjetividade eitapelo acusador e pelo acusado (seja internamente ao agente,seja externamente entre agentes) permitem construir indi-cadores ecundos da variedade de situaes em que os pode-

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    15/25

    29

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    res de defnioda sujeio criminal so operados, seja paraneutraliz-la, assimil-la, incorpor-la ou agrav-la.

    Alm disso, dierentes representaes sociais da die-

    rena social entre o ilcito, o ilegal e o criminal permeiama estraticao bandido/no bandido. Como toda sujeiocriminal tende a produzir uma condensao com deter-minados tipos sociais e estes, por sua vez, podem conerir sujeio criminal algumas de suas caractersticas, podedesenvolver-se uma especca subcultura da sujeio crimi-nal que incorpora traos ans a outras subculturas. O ato

    que, de um modo geral, a representao social possa dis-tinguir crime de mundo do crime e a lei distinguir, porexemplo, contraveno de crime, exige que tambm adierena entre incriminao e sujeio criminal se apoiena maior ou menor socializao do agente criminal numasubcultura representada como, no mnimo, desnormalizadaecomo, no mximo, criminal.

    No basta, portanto, sujeio criminal, que ela liguea subjetividade do agente expectativa de reiterao datransgresso; necessrio tambm que essa ligao se dem determinadas condies sociais, que deniro algo comouma estraticao social dos agentes passveis de sujeio cri-minal. Pode-se, ento, propor a hiptese de uma seleo socialda sujeio criminal, que o processo de incriminao repro-

    duz ampliadamente. Essa seleo tendencialmente acompa-nha as linhas da estraticao social mais abrangente. Domesmo modo, as linhas de reiterao das prticas criminaisdependem tambm de recursos de poder que, geralmente,acompanham a estraticao social, por dependerem dedierentes poderes sociais de disposio de bens materiaisou simblicos. Certos tipos de criminao so condensados

    em certos tipos de agentes tanto por seleo social atributiva(ascribed) quanto por sua aquisio motivada (acquired). Masno basta absorv-la numa teoria dos papis sociais: pre-ciso atentar para a prounda dimenso ideolgica envolvida

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    16/25

    30

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    na constituio desse tipo de sujeito, que parece envolver umtipo-limite da prpria noo de sociabilidade.

    Quando vivida de orma extrema, a experincia da

    sujeio criminal, ao constituir um tipo de sujeito-limite ouum sujeito-em-ruptura com a ordem legtima dominante,aprounda sua individuaoe sua desafliaonuma direoque o torna passvel de vivenciar, muitas vezes de ormaradical, a incomunicabilidadedessa experincia social. De ummodo anlogo (e apenas anlogo) experincia do msticoe do esquizornico, sua participao no registro da inter-

    subjetividade parece-lhe, de algum modo, desnecessria,supercial ou mesmo impossvel. Talvez por isso, vrias dasconverses que reintegram esse indivduo ordem sociallegtima, o reintegram tambm como um indivduo especial,cuja vivncia incomum representada como passvel deter-lhe permitido acessar registros ontolgicos incomuns.O carisma negativo se metamoroseia em carisma positivo.

    No basta que haja converso, necessrio dar-lhe o testemu-nho pblico. No so poucos os casos em que o ex-bandidose transorme no seu tipo oposto, em pastor, sacerdote oumesmo em santo8.

    Quando a experincia da sujeio criminal no to radi-cal assim, ou atenuada por uma subcultura que lhe conereintersubjetividade suciente para arreecer essa individuao

    extrema, o indivduo, que geralmente tambm no se desa-liou to completamente dos vnculos que o integram ordemlegtima, poder abandonar a sujeio criminal utilizando-sede recursos sociais mais variados e menos extremados. Aindaassim, sua experincia anterior lhe servir para dierenciar-sedo homem comum. Em muitos casos, por alta de recursosde reintegrao ao mercado de trabalho, ele migrar para as

    8 Sartre representou a radicalidade dessas opes limtroes em sua pea O Diabo eo bom Deus, em que o personagem principal, Goetz, experimenta alternativamentea posio do mal absoluto e do bem absoluto, antes de reconhecer sua relativi-dade para si prprio e para os outros.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    17/25

    31

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    ranjas da sujeio criminal, explorando as possibilidades denavegao entre o que aprendeu com a experincia anteriore o que poder azer agora, no interior e ao mesmo nas ron-

    teiras da ordem legtima dominante.Embora a sujeio criminal retire o indivduo do seu

    contexto social comum para transeri-lo a um lugar social-mente separado(o submundo, a boca, o ponto, o antroe, enm, a priso), esse retiro, essa excluso criminalnunca so completos. Ao contrrio, apenas demarcam umaposio nas relaes sociais, que continuam a se desenvol-

    ver sob a infexo (ou no, pois depende de sua visibilidadesocial) da nova posio. Em alguns casos, mais extremos, adesaliao poder ser muito grande, mas raramente o con-tato social direto com vrios tipos de indivduos no demar-cados deixar de existir. O desenvolvimento de subculturasque vinculam indivduos que ocupam posies demarcadaspela sujeio criminal com os demais pode ser interpretado

    como uma ampliao ou uma generalizao da sujeiocriminal, primeiramente para o grupo que vivencia a sujei-o e posteriormente para indivduos e grupos que circu-lam em seu entorno ou que mantm relaes relativamen-te regulares com os que se encontram socialmente (ou sorepresentados como) sob excluso criminal, mas que noso bandidos. Por razes de condncia e de reconheci-

    mento recproco, mas tambm por um processo identitrio,desenvolvem-se cdigos e linguagens prprios, cuja gene-ralizao aos grupos de entorno e at mesmo a segmentosda sociedade mais abrangente indica j o grau de sua sedi-mentao social, de sua antiguidade, de sua continuidade,de sua infuncia, bem como de suas metamoroses e rup-turas, ao se produzirem novos signicados apoiados em sig-

    nicantes antigos ou ao se condensarem vrios signicados,algumas vezes ambguos, num mesmo signicante. Essescdigos e linguagens tambm so demarcados socialmen-te como pertencentes ou originrios do submundo do

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    18/25

    32

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    crime e da contraveno e, quando utilizados em contextossociais inadequados, podem estigmatizar quem os veicula.

    A normalizao dos modelos de conduta construiu-se

    tambm pela produo do autocontrole na utilizao des-ses cdigos e linguagens ou mesmo na sua negao duranteo processo de socializao, atravs de ortes recriminaesao seu uso por crianas e adolescentes. Linguagens chulas,populares, expresses de gria, palavres, gestos, deter-minados movimentos corporais, exteriorizaes de paixescomo a clera, a inveja, o cime, o despeito etc., atravs

    dessas expresses e desses gestos codicados como baixos,sujos, mantm, no entanto, uma abrangncia social maiorque a de seus lugares de origem ou de utilizao maisrequente9. Essa ampliao ou generalizao dos cdigose linguagens do submundo para outras reas da sociedadeabrangente, se, por um lado, tende a ser parcial, seletivae quase sempre contextualizada (entre homens e rapazes,

    entre amigos ou em amlia), por outro, tem migrado maisrapidamente e com maior abrangncia e requncia de uso,nas ltimas dcadas, para mais longe do entorno social dasujeio criminal, alcanando mesmo inmeros segmentosda sociedade que anteriormente se echavam mais a seuemprego. Signos antes contidos s representaes que osprprios agentes aziam de suas prticas desviantes, diver-

    9 Dicionrios das linguagens de grias e palavres so muito antigos. Localizei, porexemplo, umDicionrio dos maleitores, editado em Lisboa em 1908. Em 1968, CarlosLacerda, ex-governador do Rio, preaciou um Dicionrio dos marginais, de autoriade Ariel Tacla. Nele, Lacerda rememora a sucesso de dicionrios do mesmo tipopublicados no Brasil desde o incio do sculo e acrescenta o Bambamb, de Ores-tes Barbosa, comentando: continha um glossrio dos malandros e gatunos hojereunidos na denominao legalstica e orencesca de marginais. Ficamos saben-do, entretanto, que oi ele, Lacerda, quem demoveu Tacla de intitular seu livro deLinguajar das prises, substituindo-o pelo ttulo nalmente adotado, Dicionrio

    dos marginais. Para justicar seu interesse pelo assunto, Lacerda encerra o preciocom uma nota sintomtica: Este livro no apenas curiosidade, uma contribui-o sria evoluo do idioma, que em sucessivas ases recebeu contribuies dessegnero, vindas l de baixo, de ora da boa sociedade, a qual anal incorpora, noraro destorcida, a gria dos inconormados e incompossveis. Ver Misse (1999).

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    19/25

    33

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    gentes ou mesmo criminveis, passaram a ser utilizadospelo homem comum com uma requncia inusitada se com-parada a pocas anteriores, inclusive em lmes e msicas de

    grande alcance pblico.O crescimento da representao social de um aumento

    da violncia acompanhou-se tambm de uma generalizaoe banalizao no emprego de cdigos e linguagens antescontidos aos segmentos sociais que os criaram e que eram

    vistos como constituindo um mundo parte. Se isso indicaalguma coisa alm da mera banalizao desses cdigos ou

    linguagens, no improvvel a hiptese de que o submun-do, tal como existia antes, est desaparecendo enquanto umlugar separado, tornando-se cada vez mais poroso e menosdelimitado do que antes. Isso poderia sugerir uma amplia-o da sujeio criminal para ora de sua antiga demar-cao espacial e social, uma acumulao social que estariaretirando progressivamente o sentido ao prprio processo

    de sujeio criminal. Essa acumulao, pelo menos quantoaos agentes de algumas prticas criminveis, poderia estarindicando a tendncia ao desaparecimento da sujeiocriminal, isto , produo de uma crescente zona som-breada entre a antiga demarcao da sujeio criminal ea demarcao do universo normalizado. Ordens legtimascoabitando e emergncia de zonas de sociabilidade violen-

    ta convivendo com a ordem legtima normalizada (Macha-do da Silva, 2004) no poriam m sujeio criminal, masa encolheriam e a restringiriam s prticas mais duras doncleo orte.

    O uso de expresses de gria emula uma imagem socialde malandro tanto quanto o uso do palavro est associa-do s imagens do macho e da virilidade. Se o uso dessas

    expresses generaliza-se para alm de seus contextos de usorequente, isso pode indicar que os valores contidos nes-sas imagens sociais ampliaram-se para mais segmentos sociaisdo que antes. Do mesmo modo, os valores contidos, seja

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    20/25

    34

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    nos signicados contextuais das grias e palavres, seja emseu signicado ambguo-metarico (Misse, 1979), ganharamtambm maior abrangncia social ou, pelo menos, deixaram

    de ser demarcados e contidos no submundo da sujeio cri-minal. No se trata apenas da substituio de expresses comum mesmo signicado contextual, como usar lho da putaem lugar de canalha, mas de uma apropriao ampliada designicados novos, que relativizam ou banalizam outros sig-nicados anteriormente contidos pelo autocontrole pessoale pela reao moral. Chamar, por exemplo, numa conversa-

    o amena, ao cadver de algum assassinado, de presun-to, denota uma relativizao moral que ecoa signicadosanteriormente contidos no submundo criminal ou policial epara os quais a sociedade abrangente criava processos poucofexveis de demarcao moral. Pode denotar, tambm, paraquem o ala, uma identicao com essa relativizao moral,emulada como uma superioridade e uma indierena blas

    que, anteriormente, cava contida aosperitosdo submundo(bandidos, contraventores, policiais, carcereiros, tcnicosmdico-legais, escrives, jornalistas policiais etc.).

    A emulao pblica desse tipo de superioridade moralpela utilizao dos cdigos e imagens de malandro (noemprego abundante de grias) ou de macho (no empregoabundante de palavres) possui algumas anidades com as

    representaes de superioridade moral que participam daautoleitura que agentes de prticas criminais podem azerde si mesmos num dos tipos de sujeio criminal. Anida-des tambm transmitem signicados a cursos de ao queinterligam a malandragem ao uso da ora, via machismo,transormando o sentido tradicional da astcia (prprio idealizao do malandro) em astcia no emprego da ora

    e, depois, simplesmente, em emprego da ora, principal-mente quando os recursos alternativos (e no violentos) deastcia (certas habilidades, por exemplo) caram escassosou so hoje menos socializados que antes.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    21/25

    35

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    O que antes participava de uma ilegitimidade sistmicavaiganhando alguma legitimidade em certos segmentos sociaisat transormar-se numa ordem legtima paralela ordem

    legtima dominante, de que se az uso quando necessrio(o contexto demarcar a necessidade, a adequao de sen-tido e a legitimidade). A emulao pblica da superiorida-de moral, nesse caso, contribui para a reproduo socialda sujeio criminal, principalmente em ambientes sociaisonde crianas e adolescentes partilham sua socializaocom grupos de reerncia vinculados ao submundo. Paulo

    Lins, em seu romance etnogrco Cidade de Deus, oereceinmeros exemplos desse processo pelo qual signicados desuperioridade moral so associados sujeio criminal atra-

    vs de cdigos e linguagens que passam essa inormao.A valorizao do proibido, do clandestino, to comumnos primeiros anos da adolescncia de dierentes geraesnormalizadas, acilita essa transmisso quando se associa ao

    consumo de drogas consideradas ilcitas. Se para a geraode classe mdia que nasceu nos anos 1940 ou 1950, umarum mero cigarro mercadoria lcita , aos 10 anos, emula-

    va uma superioridade em seus grupos juvenis de reern-cia, por denotar maioridade, vida adulta e virilidade,para a gerao que nasceu nos anos 1960, a maconha cum-priu esse papel e, nos anos 1980, tambm a cocana. Como

    essas so mercadorias ilcitas, aproundou-se o signicadoda clandestinidade, associando no intencionalmente,no consumidor, o mundo do consumo ao mundo do tr-co. A antiga linguagem do trco se generaliza, ganhamais expresses e vocbulos e , muitas vezes, partilhadaclandestinamente por muitos dos meros consumidores. Acriminalizao do consumo acilitou tambm essa conexo

    de sentido, quando no produz diretamente a sujeio cri-minal atravs do encarceramento do consumidor nos espa-os echados da sujeio criminal que so os institutos paramenores, os presdios e as penitencirias. Em condies

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    22/25

    36

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    sociais em que os recursos para a aquisio da droga soescassos, criam-se novos canais atravs dos quais o consumi-dor pode se transormar, tambm, em tracante e se sub-

    meter sujeio criminal. De certa maneira, pode-se dizerque o processo social que constri a sujeio criminal criatambm os prprios dispositivos de sua reproduo amplia-da. Alm das penitencirias e internatos de menores, umdos principais dispositivos desse processo social a polcia,e a sua maior ou menor vulnerabilidade ao mundo do cri-me um seguro indicador do grau de ampliao, acumula-

    o ou extenso da sujeio criminal para alm dos limitessociais de sua demarcao convencional.

    mich mi proessor do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e

    Antropologia do Instituto de Filosoa e Cincias Sociais daUFRJ. pesquisador do CNPq e Faperj.

    rci iifcAGAMBEM, G. 2007. Homo sacer:o poder soberano e a vida nua I. Belo

    Horizonte: Ed. UFMG.ALTHUSSER, L. 1972. Aparelhos ideolgicos de Estado. Rio de Janeiro: Paz

    e Terra.BECKER, H. S. 1963. Outsiders:studies in the Sociology o Deviance. New

    York: The Free Press o Glencoe.

    BUTLER, J. 1997. The psychic lie o power:theories in subjection. Stanord:Stanord University Press.

    . 2005. Giving an account o onesel. New York: Fordham UniversityPress.

    DAS, V. 1989. Subaltern as perspective. In: GUHA, R. (org.). Subalternstudies VI. New Delhi: Oxord University Press.

    . 2005. Lie and words:violence and the descent into the ordinary.Los Angeles: University o Caliornia Press.

    et al. (orgs.). 1997. Violence and subjectivity. Los Angeles: Universityo Caliornia Press.ERIKSON, K. T. 1962. Notes on the Sociology o Deviance. Social problems,

    vol. 9, Spring, pp. 207-314.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    23/25

    37

    Michel Misse

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    FOUCAULT, M. 1977. Vigiar e punir:nascimento da priso. Rio de Janei-ro: Vozes.

    . 1984. Histria da sexualidade II:o uso dos prazeres. Rio de Janeiro:

    Graal.. 1988. Histria da sexualidade I:a vontade de saber. Rio de Janeiro:Graal.

    . 2006. A hermenutica do sujeito. So Paulo: Martins Fontes.GOFFMAN, E. 1962. Stigma:notes on the management o spoiled identi-

    ty. Englewood Clis (New Jersey): Prentice-Hall.GRILLO, C. C. 2008.Fazendo o doze na pista:um estudo de caso do merca-

    do ilegal de drogas na classe mdia. Dissertao de mestrado. Rio deJaneiro: UFRJ.

    LEMERT, E. M. 1951. Social pathology. New York: McGRaw-Hill.. 1967. Human deviance, social problems and social control. Englewood

    Clis (New Jersey): Prentice-Hall.KITSUSE, J. 1962. Societal reaction to deviant behavior: problems o

    theory and methods. Social problems, vol. 9, Winter, pp. 247-256.LVI-STRAUSS, C. 1985. O eiticeiro e sua magia. In: Antropologia estru-

    tural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.MACHADO DA SILVA, L. A. 2004. Sociabilidade violenta: por uma

    interpretao da criminalidade contempornea no Brasil urbano. In:RIBEIRO, L. C. (org.). Metrpoles:entre a cooperao e o confito. SoPaulo: Perseu Abramo.

    MAGALHES, C. A. T. 2006. O crime segundo o criminoso:um estudo derelatos sobre a experincia da sujeio criminal. Tese de doutorado.Rio de Janeiro: UFRJ.

    MELOSSI, D. 2000. Changing representations o the criminal. In:GARLAND, D.; SPARKS, R. (orgs.). Criminology and social theory.

    Oxord: Oxord University Press.MISSE, M. 1979. O estigma do passivo sexual. Rio de Janeiro: Achiam/

    Socii.. 1999. Malandros, marginais e vagabundos:a acumulao social da

    violncia no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Iuperj.. 2006. Crime e violncia no Brasil contemporneo:estudos de sociologia

    do crime e da violncia urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.. 2007. Notas sobre a sujeio criminal de crianas e adolescen-

    tes. In: S, J. T. S.; PAIVA, V. (orgs.).Jovens em conito com a lei. Rio deJaneiro: Garamond.. 2008a. Sobre a acumulao social da violncia no Rio de Janei-

    ro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, no 3, pp. 371-385.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    24/25

    38

    Crime, sujeito e sujeio criminal: aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria bandido

    Lua Nova, So Paulo, 79: 15-38, 2010

    . 2008b. Sobre a construo social do crime no Brasil. In: MIS-SE, M. (org.). Acusados e acusadores:estudos sobre oensas, acusaes eincriminaes. Rio de Janeiro: Revan.

    NERI, N. 2009. Tirando a cadeia dimenor. Dissertao de mestrado. Rio deJaneiro: UFRJ.RAMALHO, J. R. 1983. Mundo do crime:a ordem pelo avesso. Rio de Janei-

    ro: Graal.TANNENBAUM, F. 1938. Crime and the community. Boston: Ginn.TEIXEIRA, C. P. 2009. A construo social do ex-bandido:um estudo sobre

    sujeio criminal e pentecostalismo. Dissertao de mestrado. Rio deJaneiro: UFRJ.

    WIEWIORKA, M. 2008. Neu leons de sociologie. Paris: ditions Robert La-ont.

    ZALUAR, A. 2004. Integrao perversa:pobreza e trco de drogas. Rio deJaneiro: Ed. FGV.

    Outros materiais

    DIRIO OFICIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Disponvel em. Acesso em

    30/10/2009.

  • 7/27/2019 Crime, sujeito e sujeio Criminal- aspectos de uma contribuio analtica sobre a categoria de bandido

    25/25

    237

    Rsumos /Abstracts

    Crime, sujeito e sujeio Criminal: aspeCtos de uma

    Contribuio analtiCa sobre a Categoria bandidoMichel MiSSe

    O autor toma, neste artigo, o conceito de sujeio criminal

    (Misse, 1999), visando contribuir para uma melhor com-

    preenso de como opera a categoria bandido na sociedade

    brasileira. Nesse sentido, recupera temas contemporneos da

    chamada teoria do sujeito bem como das abordagens cls-

    sicas sobre ator e agncia, rtulo e estigma, para melhor def-

    nir o conjunto de questes envolvidas em sua contribuio.

    pv-chv:Criminalidade; Violncia; Criminoso; Bandi-do; Sujeio criminal.

    crime, subject and criminal subjection: aspects of a

    contribution towards bandit categoryIn thisarticle the author recovers the concept o criminal subjection(Misse, 1999), to contribute to a better understanding o how operates

    the category o bandido (bandit) in Brazilian society. In this sense, the

    contemporary themes o the so-called theory o the subject are discussed

    as well as the classical approaches o actor and agency, label and

    stigma, to better defne the range o issues involved in its contribution.

    Kyw:Criminality; Violence; Criminal; Bandit; Criminal subjection.