crime loucura
TRANSCRIPT
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Crime e Loucura
O aparecimento do manicmio judicirio
na passagem do sculo
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor Antnio Celso Alves PereiraVice-reitora Nilca Freire
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO
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Rodrigo Lacerda
Comisso Editorial Sergio Miceli Pessa de Barros (Presidente)David Arrigucci Jr.Hugo Aguirre ArmelinOswaldo Paulo ForattiniTup Gomes Corra
C313 Carrara, SrgioCrime e loucura : o aparecimento do manicmio judicirio
na passagem do sculo / Srgio Carrara. Rio de Janeiro :EdUERJ ; So Paulo : EdUSP, 1998.
228 p. (Coleo Sade & Sociedade)
Originalmente apresentada como dissertao de mestrado.ISBN 85-85881-54-2
1. Insanos, delinqentes e perigosos. 2. Psiquiatria forense.3. Crime e criminosos. 4. Insanidade. 5. Antropologia socialI. Ttulo. II. Srie.
CDU 616.89-008.444
CATALOGAO NA FONTEUERJ/SISBI/SERPROT
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Crime e Loucura
O aparecimento do manicmio judicirio
na passagem do sculo
Srgio Carrara
Rio de Janeiro1998
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COLEO SADE & SOCIEDADE
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A Maria Cleusa de Castro Leite,agora na lembrana...
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H alguns anos, quando este livro era uma dissertao de mestrado,
agradecia o apoio de vrias pessoas e instituies*. Passado todo esse
tempo, posso reconhecer muito mais claramente a importncia que tive-
ram. Peter Fry, a quem agradecia ento como amigo e orientador, foi mais
que isso. De fato, como escrevi em algum momento da minha narrativa,
eu fui seu aprendiz, mas s hoje percebo que o fui no sentido mais lato
da expresso. Tive o privilgio de aprender com ele em campo, na prtica
da pesquisa, e ele me ensinou muito mais do que simplesmente fazer
antropologia social. Tambm agradecia especialmente a dois professores
do Museu Nacional, Lygia M. Sigaud e Luiz Fernando D. Duarte. De
fato, ambos tiveram grande peso na minha formao intelectual. Luiz
Fernando, que posteriormente orientaria minha pesquisa de doutorado,
exerceu e continua exercendo sobre mim um enorme fascnio por sua
generosidade, seriedade e extrema erudio. Tive e continuo tendo um
enorme respeito intelectual por Lygia M. Sigaud. Admiro sobretudo a
coerncia com que sempre articulou seus interesses intelectuais e suas
posies polticas, produzindo um conhecimento relevante no apenas
para o avano da cincia, mas para a transformao ativa do mundo sobre
o qual nossas cincias se constroem. professora Mariza Correa, da
Unicamp, agradecia por ter discutido minhas idias e ter me cedido docu-
Agradecimentos
_____________
* Alm da dissertao, parte deste trabalho apareceu na forma de um artigo (CARRARA, 1991).
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mentos importantes. De fato, foi a Mariza quem me ganhou para a
antropologia ainda nos bancos da faculdade, e este meu trabalho no teria
sido possvel sem suas prvias incurses pela histria da implantao da
disciplina no Brasil.
Agradecia aos amigos de dentro e fora da academia, por terem
discutido meu trabalho e, sobretudo, pelo afeto e generosidade com que
me presentearam. Fico feliz em reler a lista e perceber que os ltimos dez
anos no me separaram deles: Ana Luiza Martins-Costa, Ana Maria Daou,
Antnio Carlos de Souza Lima, Brbara Musumeci Soares, Flix Vieira,
Jaime Aranha, Maria Fernanda Bicalho, Maria Josefina SantAnna, Maria
Lcia Penna, Ndia Farage, Paulo Santilli, Paulo Vaccari Ccavo, Santuza
Cambraia Naves e Tania Salem. Dos colegas do Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que poca contri-
buram para o meu trabalho, eu destacava Andra Loyola, Aspsia Camargo,
Jurandir Freire Costa, Renato Veras e Snia Correa. Dentre eles, reconhe-
o agora, muito especialmente, a contribuio do professor Jurandir, que
certo dia me presenteou com o livro de Genil-Perrin, que seria to impor-
tante para que eu entendesse melhor o conceito de degenerao. Ao longo
da coleta de dados, pude contar com o auxlio precioso de Marcos Otvio
Bezerra e Cludio de Lorenci, com uma dotao Ford/Anpocs e com o
trabalho consciencioso de bibliotecrias e arquivistas cariocas.
Agradeo muito especialmente ao professor Antnio Carlos de
Souza Lima, que tomou a iniciativa de enviar o manuscrito para a EdUSP.
Sem sua interveno este livro no existiria. Depois disso, o trabalho ficou
nas cuidadosas mos da EdUERJ, que, como Editora principal, aceitou os
encargos mais pesados e decisivos na sua publicao. Agradeo as excelen-
tes sugestes do annimo parecerista da EdUSP, e ainda o trabalho edito-
rial impecvel de Sonia Faerstein e a reviso cuidadosa de Ana Silvia
Gesteira.
A reviso final do texto para a atual publicao e a redao do
Posfcio foram feitas em Chicago, onde, com o apoio do CNPq, desen-
volvo atualmente meu ps-doutorado vinculado ao Morris Fishbein Center
for the History of Science and Medicine (Universidade de Chicago). Fazer
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esses ltimos acertos em Chicago teria sido sem dvida muito menos
agradvel sem o apoio, o carinho e o bom humor de Patrick Larvie.
Finalmente, tenho a felicidade de poder repetir o que escrevi h
dez anos: Agradeo a todos, e ainda Mariinha e ao Romeu, que de to
longe permaneceram enviando energias positivas; se eles aparecem no final
destes agradecimentos, porque, de qualquer modo, estiveram sempre no
comeo de tudo.
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Querelle sorria. Deixava desenvolver em si mesmo aquela
emoo que conhecia to bem, que daqui a pouco, no lugar
certo, l onde as rvores so mais cerradas e a nvoa densa,
tomaria posse dele por completo, afugentaria toda
conscincia, todo esprito crtico, e ordenaria a seu corpo
os gestos perfeitos, apertados e seguros do criminoso.
J. Genet (1986:46)
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Sumrio
Apresentao Peter Fry ................................................................................... 15
CAPTULO I
O Objeto da Investigao e sua Construo .............................................. 23
Um aprendiz de antroplogo em apuros ............................................... 23
O que eu podia ver era um tanto contraditrio ................................ 27
Mdicos versus juzes: problemas legais .................................................. 29
Terapeutas versus guardas: questes institucionais .............................. 33
Doidinhos e pepezes ........................................................................... 38
A proposta de pesquisa ................................................................................ 43
Apreenses metodolgicas ........................................................................... 50
CAPTULO II
Loucos & Criminosos ......................................................................................... 61
A questo do crime na passagem do sculo ......................................... 62
Crime e doena: o criminoso enquanto objeto da patologia ......... 68
Crime como episdio da loucura: os monomanacos ....................... 69
Os degenerados: o crime como mais uma face da alienao
mental ................................................................................................................. 81
Os brbaros esto entre ns: os criminosos natos ............................. 99
O criminoso nato ........................................................................................... 104
Criminosos natos e degenerados: uma ciranda sinistra ..................... 116
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CAPTULO III
Hrcules e o Comendador, o Caso de um certo Custdio .................. 127
Quem era Custdio Alves Serro ............................................................. 127
A vtima ............................................................................................................. 129
O crime .............................................................................................................. 130
Custdio versus os mdicos-legistas da polcia ..................................... 134
Um ms depois, Custdio foge do Hospcio Nacional .................... 141
A fuga de Custdio coloca o Pinel crioulo em maus lenis ........ 143
O que fazer dos loucos-criminosos? ........................................................ 148
A caminho do hospcio: algum ainda duvida da loucura de
Custdio? ........................................................................................................... 159
De volta s malhas da lei: Custdio deixa de ser louco para ser
um simples degenerado ou criminoso nato ....................................... 161
Um julgamento sui generis .......................................................................... 168
Uma histria sem fim: Teixeira Brando versus
Nina Rodrigues ............................................................................................... 173
Os degenerados e o surgimento do primeiro manicmio
judicirio brasileiro......................................................................................... 187
Concluses .............................................................................................................. 195
Posfcio .................................................................................................................... 201
Referncias Bibliogrficas ................................................................................... 223
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sempre uma honra ser convidado a escrever uma Apresentao,
sobretudo quando se trata do livro de um amigo e ex-aluno. Este caso,
porm, mais especial ainda, como o leitor depreender das primeiras
pginas de Crime e Loucura: O Aparecimento do Manicmio Judicirio na
Passagem do Sculo, onde o autor, descrevendo a si prprio como um
aprendiz em apuros, conta como eu o abandonei, em 1985, logo no
incio de uma difcil pesquisa de campo no Manicmio Judicirio do Rio
de Janeiro. De fato, este abandono, mais fsico que moral, espero eu,
durou algo em torno de sete anos, durante os quais trabalhei na frica,
temporariamente fora do mundo acadmico. Nesse perodo Srgio Carrara
persistiu com sua pesquisa no Manicmio Judicirio, para lev-la a uma
bela dissertao de mestrado, da qual este livro uma verso atualizada,
com um importante Posfcio que resenha a mais recente literatura sobre
o tema. Nesse mesmo perodo, tambm, partiu para sua tese de doutora-
mento sobre outro tema que explora o encontro da moralidade, da medi-
cina e da lei: a luta contra a sfilis no Brasil1. Nada mais justo, portanto,
que eu retornasse agora para fazer homenagem ao primeiro trabalho do
aprendiz, agora mestre, e cujos apuros iniciais podem ser interpretados,
benevolentemente, como o sofrimento que constitutivo do rito de pas-
sagem de tornar-se antroplogo de verdade. O mundo social do Manic-
Apresentao
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1 Tributo a Vnus: A Luta contra a Sfilis no Brasil da Passagem do Sculo aos Anos 40. Rio deJaneiro: Fiocruz, 1996.
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mio, como bem mostra Srgio Carrara neste livro, representa um desafio
analtico e emocional no menos severo que quaisquer aldeias nos confins
do mundo ps-colonial.
O caminho que nos levou ao Manicmio Judicirio comeou com
um estudo sobre o caso de Febrnio ndio do Brasil. Este jovem mulato
foi preso em 1927, acusado de ter matado jovens rapazes nos arrabaldes
do Rio de Janeiro, aps atra-los com pequenos presentes e mirabolantes
profecias, publicadas num livro chamado As Revelaes do Prncipe do
Fogo2, tatuar os seus corpos com hierglifos msticos e seduzi-los sexual-
mente. Os advogados de Febrnio argumentaram, com o apoio de diver-
sos laudos psiquitricos, que ele era um louco moral e, portanto, no
responsvel por seus atos. Como resultado, Febrnio foi internado no
recm-construdo Manicmio Judicirio sob uma medida de segurana
que, apesar de muitos apelos, nunca foi revogada. Em 1981 escrevi um
pequeno texto sobre o caso para abordar o crescente poder dos mdicos
brasileiros na definio da loucura e da responsabilidade criminal, bem
como a constituio de uma srie de saberes sobre a homossexualidade e
a miscigenao; dois fatores importantes na definio da loucura moral de
Febrnio.
Nesse ensaio eu tratara Febrnio como personagem de um passa-
do remoto. Mas, em conversa com o meu amigo Alexandre Eullio, que
se interessara pela histria de Febrnio atravs dos seus estudos sobre
Blaise Cendrars, autor de um ensaio instigante sobre o caso quando este
ocorreu, apreendi que Febrnio vivia ainda no Manicmio. Incrdulo,
procurei um amigo psiquiatra no Rio de Janeiro, Pedro Bocayuva Cunha,
que no s confirmou que Febrnio estava vivo, mas que era seu paciente!
Ato contnuo, o Dr. Bocayuva Cunha me levou ao Manicmio para um
encontro com Febrnio. A visita me marcou profundamente. Febrnio,
muito envelhecido, ainda lembrava o rapaz garboso das fotografias tiradas
_____________
2 O livro foi queimado pela polcia e sumiu. Procuramos por ele em vo. No ano passado, CarlosAugusto Calil conseguiu localiz-lo na Biblioteca Nacional, e vai public-lo junto com outrosdocumentos sobre o caso Febrnio, ainda este ano.
PETER FRY
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na ocasio de sua priso. As tatuagens misteriosas que cercavam seu trax,
e que ele teria gravado tambm sobre os corpos de suas vtimas, conti-
nuavam visveis, embora desbotadas pelo tempo. Bastante retrado e descon-
fiado, porm altivo, Febrnio demonstrou orgulho pelo seu status de pri-
meiro interno no Manicmio (na sua ficha constava o nmero 0001), e de
ter construdo um mnimo de dignidade e um mdico poder na instituio
na qual teria vivido por quase 60 anos; o dobro do tempo que um preso
comum pode ficar legalmente internado. E mais: insistia ainda na sua
inocncia.
Mas o que me impressionou tambm foi o prprio Manicmio,
que se encontra no final de um sombrio e longo beco margeando o
presdio da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Como hospital, possui
mdicos e enfermeiros encarregados de tratar os pacientes at a sua
recuperao. Para conter os internos mais violentos, aplicam medica-
mentos psicotrpicos. Como priso, o Manicmio possui guardas peniten-
cirios que aplicam mtodos mais convencionais para manter a ordem
dentro da instituio. Constantemente presentes, lidam com o cotidiano
dos internos. A ambivalncia entre hospital e priso se estende aos pr-
prios habitantes, que so definidos e se autodefinem ao mesmo tempo
como doentes e presos. Parte hospital e parte priso, parecia um lugar-
chave para aprofundar minha pesquisa sobre a responsabilidade penal e os
embates entre a medicina e o direito.
Em 1983 migrei de Campinas para o Rio de Janeiro, como pro-
fessor visitante no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
do Museu Nacional, onde Srgio Carrara, que se formara na Universi-
dade de Campinas e seguira a mesma rota migratria, ingressara como
aluno de mestrado. Fascinado, como eu, pela histria da construo social
de personagens como loucos, criminosos e homossexuais no Brasil,
e inspirado pelos trabalhos de Michel Foucault, logo concordou em
embarcar comigo num estudo sobre o Manicmio. Quando comeamos
nossa pesquisa de campo, em 1984, defrontamo-nos com mais uma
ambivalncia no Manicmio. Nesse hospital-priso, os jovens mdicos,
inspirados pela restaurao da democracia no Brasil (Leonel Brizola tinha
APRESENTAO
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sido recentemente eleito governador) e pela antipsiquiatria, lutavam para
introduzir elementos de autogesto entre os internos que, mesmo assim,
permaneciam legal e medicamente subordinados aos guardas e equipe
mdica. Tentava-se reconciliar os princpios democrticos de igualdade
social com a mais profunda desigualdade que caracteriza a instituio,
sobretudo aquela entre a liberdade dos funcionrios e a situao tutelada
dos presos-doentes.
Com a minha retirada de cena, Srgio Carrara aprofundou suas
observaes sobre o cotidiano do Manicmio, detalhando mais claramente
a essencial ambivalncia da instituio, nela identificando a superposio
de dois modelos de interveno social: o modelo jurdico-punitivo e o
modelo psiquitrico-teraputico. O primeiro v o indivduo como sujei-
to de direitos e deveres, capaz de adaptar livremente seu comportamento
s leis e normas sociais [...] capaz, enfim, de ser moral e penalmente
responsabilizado por suas aes. O segundo define o indivduo no
enquanto sujeito, mas enquanto objeto dos seus impulsos, pulses, fobias,
paixes e desejos, no sendo, assim, moralmente responsabilizado nem,
portanto, passvel de punio. A partir desta observao, Carrara se ques-
tionou sobre o processo histrico que teria levado ao surgimento do louco-
criminoso e subseqente necessidade de uma instituio especfica
destinada ao seu tratamento e conteno. A partir de que relaes signi-
ficativas entre representaes e prticas que se ocupam da transgresso s
normas e valores sociais foi possvel a figura do louco-criminoso e a ins-
tituio que dele se ocupa?. Para responder a esta questo, o autor mer-
gulhou no mais na aldeia do Manicmio contemporneo, mas numa
outra aldeia; aquela dos arquivos que contm livros, laudos, documentos
e processos criminais que revelam as representaes e aes dos persona-
gens que no final do sculo XIX e incio do sculo XX discutiram: a
questo do crime, da transgresso e da responsabilidade.
Com maestria, Srgio Carrara utiliza os documentos da sua al-
deia-arquivo para entender e revelar os argumentos dos protagonistas
brasileiros no debate em torno do crime e da doena, em particular Afrnio
Peixoto, Nina Rodrigues e Teixeira Brando. O debate era nada pa-
PETER FRY
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roquial. Cada um, sua maneira, invocava os grandes nomes da
criminologia e da psiquiatria da poca, para avanar e legitimar opinies
divergentes sobre a natureza da loucura e os limites da responsabilidade
criminal. Carrara dedica uma ateno especial genealogia do psicopata
(ou pepezo, na gria do Manicmio Judicirio dos nossos dias), traan-
do-a com mincia desde o monomanaco dos alienistas franceses; passando
pelos degenerados de Morel, pelos criminosos natos da trade italiana
de Lombroso, Ferri e Garofalo e pelos loucos morais de Maudsley.
Demonstra como, aos poucos, foi-se configurando a personagem que no
sofre de delrios, mais do que so nas faculdades intelectuais, mas que
no responsvel por seus atos anti-sociais. Inicialmente, as pessoas rotu-
ladas de loucos morais eram internadas na Seo Lombroso do Hospcio
Nacional de Alienados, onde sempre representaram um problema grave
de ordem para os mdicos e enfermeiros, por causa do seu comporta-
mento anti-social e por sua resistncia cura. Foi para este personagem
que, a exemplo dos pases europeus, se construiu o Manicmio Judicirio
no Rio de Janeiro, sendo inaugurado em 1921.
Mas Srgio Carrara no se restringe apenas ao debate terico-
ideolgico contido nos livros e artigos da sua aldeia-arquivo. Atravs de
casos concretos, em particular o caso extraordinrio, mas tambm exemplar,
do jovem Custdio Serro, ele capaz de analisar as representaes
dos mdicos e juristas na sua prtica social. Foi a polmica em torno dos
crimes mais chocantes que marcou as posies polticas dos protagonistas
perante a opinio pblica, naquela poca, como agora, vida por escnda-
los e por detalhes sobre o sofrimento alheio. Desta forma, Carrara mostra
a relao entre as idias dos especialistas e a vida cotidiana dos cidados.
Os casos criminais de grande repercusso foram palco para a dramatizao
das idias em circulao e para a consolidao da supremacia da corrente
que favorecia a construo do Manicmio. Alm disso, estes casos revelam
claramente as conseqncias, muitas vezes nefastas, para os cidados que
caram nas malhas da lei e da medicina forense. Em 1897 Serro matou o
tutor de sua irm a sangue frio, porque pensou que este estava tramando
sua internao no hospcio. Rendeu-se polcia, mas foi imediatamente
APRESENTAO
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classificado como louco e, logo aps, internado no Hospcio Nacional de
Alienados que tanto temia. Da em diante, todos os atos de Custdio para
provar a sua sanidade mental e se sujeitar ao julgamento dos seus atos, mas
no da sua pessoa, inclusive a sua fuga do hospcio, tiveram o efeito
apenas de aumentar as evidncias da sua loucura. Na anlise deste caso
pungente, encontramos os juristas e psiquiatras da poca se digladiando
sobre a definio do estado mental de Custdio no contexto de intensa
disputa sobre a configurao institucional jurdica. Foi atravs deste caso,
entre outros, que os protagonistas da construo de uma instituio espe-
cfica para loucos-criminosos ganharam a disputa contra aqueles outros
mdicos e juristas, que insistiam que o criminoso ou era responsvel ou,
se doente, irresponsvel pelos seus atos. O meio termo de doente-crimi-
noso, argumentaram, era simplesmente uma aberrao lgica.
A importncia deste livro no se restringe contribuio que faz
histria social da psicopatia no Brasil. Dialogando com Michel Foucault,
Robert Castel, Roberto Machado, Marisa Correa e Thomas Szasz, entre
outros, Carrara fala das grandes questes da modernidade, sobretudo da
questo do livre arbtrio e da responsabilidade criminal, epicentro da dis-
cusso sobre a natureza da pessoa humana e as formas de controle social
no perodo. Por um lado posicionavam-se aqueles socilogos, psiquiatras
e juristas, defensores do direito positivo, que queriam retirar a responsa-
bilidade de todos os criminosos, classificando o livre arbtrio como mera
metafsica. Por outro lado, juntaram-se os defensores do direito clssi-
co e do liberalismo, pautados na responsabilidade e na integridade do
indivduo. O Manicmio Judicirio, ambivalente, ambguo e contradit-
rio, parece uma maneira de agradar a gregos e troianos, mas, como bem
mostra Carrara, ainda o sistema jurdico que fica com a ltima palavra.
Enquanto os mdicos psiquiatras produzem os laudos, so os juzes que
decidem sobre o destino dos acusados. So eles que emitem e revogam (ou
no) as medidas de segurana. O totalitarismo inerente ao direito positivo
foi, e continua sendo, pelo menos em princpio, controlado pelo sistema
jurdico. Talvez seja por esta razo que o Manicmio Judicirio foi
construdo to prximo penitenciria da rua Frei Caneca.
PETER FRY
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Alm disso, creio que o livro tem enorme importncia para a
nossa atualidade, ajudando-nos a relativizar as posies do debate contem-
porneo sobre criminalidade. Na discusso erudita sobre as causas da
criminalidade, a oposio entre os positivistas e os clssicos continua,
s que o biodeterminismo dos velhos criminalistas cedeu lugar a um
sociodeterminismo que atribui o crime desigualdade social. a pobreza
que diminui a responsabilidade dos infratores pobres, que se tornam
menos sujeitos e mais objetos de uma sociedade cruel e injusta. Enquanto
isso, grandes parcelas da populao no guardam as mesmas dvidas sobre
a responsabilidade dos pequenos e grandes infratores. Crentes que a justi-
a leniente demais para com os criminosos, preferem lanar mo da lex
talionis com suas prprias mos, linchando supostos infratores, geralmen-
te jovens e de cor mais escura, com requintes de crueldade. Outros, uma
minoria, penso eu, fazem o que podem para fazer valer o Estado de
Direito, cientes, como os seus precursores clssicos, de que este um
sine qua non para a construo de uma sociedade democrtica na prtica
e no apenas como figura de retrica. Ao ler o esplndido livro de Srgio
Carrara no pude deixar de lembrar do imenso abismo que separa as
eruditas palavras dos juristas, mdicos e psiquiatras da vida como ela fora
dos gabinetes forenses. A aldeia-arquivo na qual Srgio Carrara condu-
ziu sua pesquisa parece s vezes uma outra instituio total, e os inte-
lectuais ali internados so levados a propor cdigos e legislao sem
precisarem se defrontar com os outros cdigos, eles tambm muito pode-
rosos, que regem o comportamento dos agentes da polcia, dos mdicos,
dos juzes, dos advogados e da populao como um todo na sua prtica
cotidiana. Atualmente, no Ministrio da Justia, uma comisso se debrua
sobre a reforma do Cdigo Penal. Mais uma aldeia?
Peter Fry.
Rio de Janeiro, maro de 1998.
APRESENTAO
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captulo 1
O Objeto da Investigao e sua Construo
me aproximarei de vocs, beterrabas cortadas e cogumelos
em lata. Sei que querem que eu fale de vocs. Todo mundo
quer. Mas estou quase chegando coisa... a um ponto de refe-
rncia, quero dizer. Se as leis do raciocnio so as mesmas leis das
coisas, ento tambm a moral relativa... e os costumes e o pecado
tambm so relativos, num universo relativo. Tem de ser. No se
pode fugir disso. Ponto de referncia...
J. Steinbeck (1966:85)
J
UM APRENDIZ DE ANTROPLOGO EM APUROS
O incio do estudo que informa as idias expostas neste livro se
prende a uma conversa em um pequeno restaurante de Campinas, j h
alguns anos. L, durante um almoo, o professor Peter Fry me convidou
para fazer com ele uma pesquisa sobre o Manicmio Judicirio do Rio de
Janeiro1. Alm de um trabalho de campo nos moldes clssicos da antro-
pologia social (observao participante, etc.), interessava ainda contemplar
a histria da instituio na tentativa de compreender seu significado a
partir do processo social do qual se originara.
_____________
1 Trata-se do atual Manicmio Judicirio Heitor Carrilho, que, daqui em diante, ser mencionadono texto apenas como MJ.
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24 SRGIO CARRARA
Eu nunca vira uma penitenciria, muito menos um manicmio
judicirio, mas a idia da pesquisa me agradava. Ainda me encontrava sob
o impacto das brilhantes anlises de Michel Foucault e, alm disso, parecia
haver particularmente na antropologia social do incio dos anos 80 (ao
menos como eu a vivia) um grande interesse na constituio de um olhar
mais amplo que desse conta de processos de mudana social, que estivesse
mais atento aos deslocamentos de significado, irrupo do novo e
questo do poder. A perspectiva de trabalhar com Peter Fry sobre essas
questes me atraa pessoalmente. Embarquei...
Em agosto de 1983, eu percorria pela primeira vez o sombrio e
longo beco que, margeando os muros do presdio da rua Frei Caneca, vai
dar nos feios portes do MJ. Acompanhava Peter Fry. Atravs do seu
trabalho sobre o caso mdico-legal envolvendo Febrnio ndio do Brasil
(FRY, 1982), ele mantivera previamente os contatos com a administrao
do estabelecimento e nossa entrada estava aparentemente livre. Alm de
auxili-lo em uma pesquisa mais ampla, eu esperava tirar daquela expe-
rincia subsdios para a confeco de minha prpria dissertao de mes-
trado.
Tnhamos uma estratgia para um primeiro reconhecimento do
universo a ser pesquisado e para um mapeamento preliminar de questes.
Inicialmente, trabalharamos na valiosa e abandonada biblioteca que en-
contramos no interior do MJ. Nela, o que mais nos interessava eram os
Archivos do Manicmio do Rio de Janeiro, publicao que, a partir da d-
cada de 1930, tornou-se a voz oficial da instituio2. Os Archivos, cuja
publicao se encontra interrompida h muitos anos, eram inicialmente
uma revista cientfica semestral, sendo que o primeiro nmero data do
primeiro semestre de 1930. Sua publicao se fazia ento sob os auspcios
do Diretor Geral da Assistncia a Psicopatas do Distrito Federal, Juliano
Moreira, e era dirigida por um de seus discpulos, o dr. Heitor Carrilho,
que se manteve tambm na direo do MJ desde a sua fundao, em 1921,
at 1954, quando morreu. A revista continha artigos originais dedicados
_____________
2 Para maiores informaes sobre Carrilho e sobre a revista que dirigia, ver FRY, 1985.
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25O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
ao tema da loucura e do crime, alm de documentos (laudos, pareceres,
sentenas...) de mdicos peritos, juzes e do Conselho Penitencirio do
Rio de Janeiro. Alm disso, nossos olhos deveriam ir dos documentos ao
entorno para que pudessem participar daquilo que (com ironia) podera-
mos chamar a vida do lugar. A identificao dos pesquisadores com os
empoeirados livros de uma biblioteca j bastante depredada facilitava nossa
penetrao em um meio social onde a presena de intrusos e curiosos
logo identificada e nem sempre bem aceita. Por outro lado, conforme
pude constatar mais tarde, especializada na questo da relao entre crime
e loucura, a biblioteca era motivo de orgulho principalmente para os
mdicos e outros terapeutas. Ela era uma espcie de testemunho dos
ureos tempos em que a instituio, alm de tratar certos indivduos,
produzia um conhecimento cientfico cujo valor chegou mesmo a ser
reconhecido por intelectuais brasileiros e estrangeiros. Assim, valorizar a
biblioteca era, de certo modo, valorizar o que havia de mais caro e leg-
timo no trabalho ali desenvolvido: sua fundamentao cientfica.
No incio, nossa estratgia se mostrou produtiva. Alm da coleta
de dados junto aos Archivos, participvamos das reunies da equipe tera-
putica que, por uma feliz coincidncia, realizavam-se semanalmente na
prpria biblioteca. Tais reunies eram abertas a todos os profissionais que
mantinham contato direto com os internos. Geralmente, apareciam mdi-
cos psiquiatras, psiclogos, assistentes sociais e enfermeiros. Raramente
aparecia um dos dois advogados que trabalhavam na instituio, e mais
raramente ainda algum representante do grupo dos guardas do MJ3. Alm
disso, tivemos a oportunidade de conversar com alguns internos e assistir
a algumas de suas atividades: jogos de futebol, assemblias, etc.
Por ser um primeiro reconhecimento de terreno, a pesquisa no
era intensiva: entre agosto de 1983 e maio de 1984, fiz umas trinta visitas
_____________
3 Salvo os mdicos psiquiatras e os advogados, a grande maioria dos profissionais que assistiam sreunies da equipe teraputica era composta de mulheres com formao profissional nas reas depsicologia, servio social e enfermagem. O nmero de participantes nessas reunies variava muito,e os assuntos giravam em torno de problemas no trato com os internos, de suas reivindicaes edas inovaes democratizantes que a equipe teraputica queria introduzir na dinmica institucional.
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26 SRGIO CARRARA
ao MJ. Penso agora que o momento no poderia ter sido mais propcio
para um trabalho de campo. A ento recente mudana do governo esta-
dual, contextualizada por um processo de abertura poltica de mbito
nacional, provocava o realinhamento dos grupos de poder no interior do
sistema penitencirio carioca, do qual o MJ faz parte. A crtica priso
e as tentativas de instaurao de uma nova poltica penitenciria marca-
vam os governos de oposio que poca ascendiam ao poder. O objetivo
mais amplo era o de preservar os direitos bsicos do preso e humanizar
as prises consideradas elemento fundamental na reproduo e incremen-
to da criminalidade no Brasil (FRY & CARRARA, 1986). Essas mudanas
mais amplas tambm se faziam sentir no MJ, que se abria a um perodo
de discusses e tentativas de reformas.
Como se v, embora realizado em momento propcio, o perodo
de observao direta foi bastante curto... Depois de algum tempo, Peter
Fry encerrou seu trabalho, e ento seu aprendiz ficou sozinho, assustado
e atordoado frente a uma realidade social que tem como caracterstica
distintiva combinar de forma crtica srios problemas de ordem material
e existencial. Tornou-se muito difcil empreender, na profundidade exigida
pela abordagem antropolgica, a pesquisa em um campo que consegue
articular, de um lado, duas das realidades mais deprimentes das sociedades
modernas o asilo de alienados e a priso e, de outro, dois dos fantas-
mas mais trgicos que nos perseguem a todos o criminoso e o louco.
Foram de ordem emocional as razes que me fizeram debruar prefe-
rencialmente sobre dados histricos e no etnogrficos. Entre mim
mesmo e meu objeto emprico imediato, tive que fazer intervir a espes-
sura tranqilizadora da palavra reificada, do registro histrico, mergu-
lhando num mar de textos, leis, processos, ofcios, moes e pareceres.
Porm, essa incurso histrica, cujos contornos desenharei adiante, cons-
tituiu-se a partir de problemas levantados nesse perodo de observao
direta. Assim, necessrio apresentar, antes de mais nada, alguns dos
aspectos caractersticos que, a meus olhos, singularizam o MJ. Depois
disso, poderei discutir a questo que me coloquei e a maneira escolhida
para abord-la.
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27O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
O QUE EU PODIA VER ERA UM TANTO CONTRADITRIO
Desde a primeira visita que fiz ao MJ, tive a impresso (dessas to
caras antropologia) de estar entrando em uma instituio hbrida e con-
traditria, de difcil definio. Alm disso, o MJ me pareceu totalmente
incapaz de atingir os objetivos teraputicos a que se prope. certo que
uma bibliografia j clssica nas cincias sociais vinha revelando que, sob
a fachada mdica das instituies psiquitricas, desenrola-se, na verdade,
uma prtica secular de conteno, moralizao e disciplinarizao de indi-
vduos socialmente desviantes. De certo modo, denunciava-se a priso que
existiria atrs de cada hospital. O trabalho instaurador de Erving Goffman
(1974) chegou a mostrar que uma nica estrutura de relaes sociais po-
deria ser encontrada tanto em presdios quanto em manicmios, ambos
podendo ser bem compreendidos atravs de um nico conceito: o de
instituio total. No entanto, se o manicmio e a priso so verdadeira-
mente espcies de um mesmo gnero, como o demonstrou Goffman,
o MJ chama a ateno justamente para a diferena que existe entre as duas
espcies; e isso por sobrep-las em um mesmo espao social. O MJ se
caracteriza fundamentalmente por ser ao mesmo tempo um espao prisional
e asilar, penitencirio e hospitalar.
Prenhe de conseqncias prticas, a diferena entre o asilo e a
priso, visvel atravs do MJ, est amplamente ancorada nas definies
opostas que mantemos a respeito do estatuto jurdico-moral dos habitantes
de cada uma das instituies. Para a priso enviamos culpados; o hospital
ou hospcio recebe inocentes. Sem dvida, a moderna percepo da loucu-
ra e do crime fruto de um processo que, embora tortuoso, j dura bem
dois sculos. Atravs desse processo, em que se empenharam mdicos,
juristas e outros profissionais, generalizou-se a idia de que existe uma
diferena de essncia entre as transgresses realizadas por sujeitos consi-
derados alienados que no teriam controle nem conscincia de suas
aes e aquelas provenientes de indivduos considerados normais que
teriam controle sobre suas aes e plena conscincia de seu carter delin-
qente ou desviante. No nvel do senso comum, bastante arraigada a
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28 SRGIO CARRARA
idia de que o crime se ope loucura como a culpa inocncia. Do
mesmo modo, a idia de pena e a idia de tratamento ainda se excluem,
pois, apesar de todas as oscilaes por que j passou, a reao penal
nunca deixou de significar explicitamente castigo ou expiao de uma
culpa.
Ora, se certo que vivemos em sociedades nas quais o comporta-
mento individual (especialmente o considerado desviante) cada vez mais
freqentemente compreendido nos termos de uma determinao psicol-
gica, no menos certo que, apesar de tais determinaes, fazemos ainda
uma clara e imediata avaliao moral de transgresses realizadas por indi-
vduos julgados mentalmente sadios e isentamos desse tipo de avaliao as
transgresses perpetradas por indivduos considerados alienados ou doentes
mentais. Embora possamos alocar inmeras determinaes psicolgicas
ou sociolgicas como causas da delinqncia, nenhuma delas, alm da
prpria doena mental, tem o poder de irresponsabilizar moral e penal-
mente os delinqentes.
Assim, a despeito de infinitas nuanas, continuamos a distinguir
claramente os atos desviantes que seriam frutos da loucura dos atos
desviantes que seriam fruto da delinqncia e os apreendemos atravs de
conjuntos de representaes que se opem em relao ao estatuto de sujeito
responsvel que atribuem ou no aos transgressores. Frente a tais repre-
sentaes, o MJ, instituio destinada a loucos-criminosos, no deixa de
parecer fundado sobre uma contradio. De fato, atravs de minha expe-
rincia em campo, foi possvel perceber que a instituio apresenta a
ambivalncia como marca distintiva e a ambigidade como espcie (se os
psiquiatras me permitem o uso da expresso) de defeito constitucional.
Atravs da legislao e do tratamento dispensado aos loucos-criminosos,
foi possvel ainda perceber que essa ambivalncia poderia ser detectada em
vrios nveis. Uma linha, a um s tempo lgica e sociolgica, parece
atravessar toda a instituio, marcando desde a legislao que a suporta at
a identidade auto-atribuda dos internos e das equipes de profissionais
encarregadas do estabelecimento. Quando comecei minha pesquisa, no
sabia que essa linha um longo e caudaloso rio cujas nascentes histricas
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29O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
se localizam na segunda metade do sculo XIX. Para demonstrar a impor-
tncia da linha que torna a instituio contraditria e inconsistente, bem
como as implicaes prticas da distino que instaura, repassarei agora
alguns pontos que podem esclarec-la. bom ressaltar que a discusso que
se segue no pretende ser uma anlise acabada e final; visa apenas a dese-
nhar o perfil de um problema.
MDICOS VERSUS JUZES: PROBLEMAS LEGAIS
Como se realizam legal e formalmente as entradas e sadas num
manicmio judicirio brasileiro? A legislao vigente poca da observa-
o4 previa basicamente duas situaes: uma referente ao condenado
preso e outra ao acusado no decorrer do processo penal.
1) Caso a suspeita de doena mental surja durante o cumprimento da
pena, estando o condenado preso, o diretor do presdio o transferir para
o MJ, onde os peritos o examinaro. O juiz deve ser informado dos
procedimentos e dos resultados dos exames. Se alguma doena mental for
diagnosticada, o internamento imediato. Caso tal doena perdure por
todo o tempo de interdio previsto pela pena que o sentenciado vinha
cumprindo, diz laconicamente o Cdigo de Processo Penal que, finda a
pena, o indivduo ter o destino aconselhado por sua enfermidade...
(CPP, art. 682).
2) Se, durante o processo-crime, for levantada a hiptese de ser o acusado
um doente mental ou ter desenvolvimento mental incompleto ou
retardado (CP, art. 22), ele dever ser internado no MJ pelo tempo que
os peritos julgarem necessrio para fazerem um diagnstico. Caso se
conclua que o acusado no podia compreender o carter criminoso do_____________
4 Tratarei aqui da legislao vigente no momento da observao, ou seja, dos Cdigos Penal (CP)e de Processo Penal (CPP) que vigoraram no pas desde o incio dos anos 40 at janeiro de 1985.Nesse ano, um novo Cdigo Penal apareceu alterando alguns pontos referentes internao emmanicmio judicirio. Apesar das alteraes, o perfil geral desse tipo de internao continua omesmo. Sobre as novidades introduzidas, ver FRY e CARRARA, 1986.
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30 SRGIO CARRARA
seu ato por ser um alienado, ficando provado o crime ou sua capacidade
de comet-lo sua periculosidade ele poder ser internado sem julga-
mento no MJ, mediante uma medida-de-segurana5. Neste caso, ele
considerado penalmente irresponsvel, devendo entretanto ser segregado
para um tratamento obrigatrio. A durao mnima da medida-de-segu-
rana para tratamento estipulada por lei (CP, art. 91), sendo menor mas
proporcional durao da pena que seria prevista para o mesmo crime
caso seu autor fosse considerado responsvel, ou seja, mentalmente sadio
e desenvolvido. Ao trmino do prazo estipulado para a medida-de-segu-
rana, novo laudo mdico psiquitrico deve ser produzido para a avali-
ao do estado mental do acusado e/ou de sua periculosidade. Caso o
juiz constate, mediante o laudo, que o interno continua doente e/ou
perigoso, seu internamento deve prosseguir. Alm disso, nessa legislao,
muito importante o fato de o juiz ter o direito de recusar os laudos
psiquitricos no todo ou em parte, qualquer que seja o resultado de tais
laudos.
Frente legislao acima resumida, o primeiro ponto a ser discu-
tido o que se refere prpria posio do perito psiquiatra e relao
entre seu papel e o que desempenhado pelo juiz. Neste sentido, inte-
ressante notar que, por no ser psiquiatra, o juiz tem obrigao de pedir
uma percia mdico-psiquitrica nos casos em que se duvida da sanidade
mental de um acusado, mas, por ser juiz, ele pode recusar os resultados
dessa percia no todo ou em parte. No se pode deixar de perceber o
conflito de competncia que subjaz superfcie ordenada das disposies_____________
5 O Cdigo Penal de 1940 se caracterizava pelo chamado sistema do duplo binrio. Fruto daslongas discusses que precederam o aparecimento do Cdigo, tal sistema se caracterizava porcomportar dois tipos de reao penal. De um lado, a pena, de carter expiatrio, medida segundoo grau de culpabilidade do sujeito e a gravidade de seu ato, e, de outro, a medida-de-segurana,fundada na avaliao do grau de periculosidade do acusado. A medida-de-segurana deveria atingiros loucos-criminosos e algumas outras classes de delinqentes no-alienados. Sua particularidadefrente pena foi bem sintetizada por Fragoso: A pena sano e se aplica por fato certo, o crimepraticado, ao passo que a medida-de-segurana no sano e se aplica por fato provvel, a repetiode novos crimes. A pena medida aflitiva, ao passo que a medida-de-segurana tratamento, tendonatureza assistencial, medicinal ou pedaggica. O carter aflitivo que esta ltima apresenta no fimpretendido, mas meio indispensvel para sua execuo finalstica (FRAGOSO, 1981:7).
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31O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
legais e como, atravs delas, a autoridade judiciria se protege (ao arre-
pio da lgica), impondo limites ao poder de interveno dos psiquiatras
em matria penal. Assim, por exemplo, durante o perodo de observao
direta, foi internada no MJ uma jovem psicloga envolvida com drogas.
Pelas informaes que obtive ento, o laudo produzido pelos peritos do
MJ atestava dependncia psquica e aconselhava o internamento. O juiz,
no entanto, no aceitou o resultado do laudo, e a jovem acabou sendo
transferida para presdio comum, acusada de trfico de maconha.
Uma outra face do mesmo problema parece estar presente no que
diz respeito durao do perodo de internao. Ora, h um descompasso
evidente entre a idia de uma medida-de-segurana com durao mnima
estabelecida pelos tribunais, e proporcional pena atribuvel ao mesmo
crime caso tivesse sido cometido por pessoa sadia, e as concepes
individualizantes da medicina relativas ao processo de doena e de cura.
Parece que no se pode exigir de uma doena que respeite os prazos legais,
embora seja exatamente isso que faz o Cdigo Penal. Essa nova inconsis-
tncia lgica aponta ainda para o fato de haver uma hesitao visvel, na
legislao e nos preceitos que institui, quanto a aceitar o fato de que,
tendo sido transformado em paciente, o delinqente deveria logicamente
ser retirado das malhas da lei para ser integralmente abandonado nas
mos dos psiquiatras. A formulao de um internamento mdico com
prazo mnimo determinado por lei um timo exemplo da complexidade
da interpenetrao de um modelo de interveno mdica e de um modelo
de interveno jurdica. Tal interpenetrao problemtica aponta, desde
logo, para a ambigidade do estatuto mdico-legal dos chamados loucos-
criminosos, habitantes de uma regio estranha onde culpa e inocncia
parecem se defrontar com igualdade de foras.
Para que se compreenda bem as reservas apontadas na legislao
quanto atuao dos mdicos psiquiatras nas questes penais, deve-se ter
em conta as prprias caractersticas da percia psiquitrica e seu poder de
interveno. Somente o perito psiquiatra, atravs de sua avaliao, pode
reivindicar o poder de interromper um processo, pronunciar-se sobre a
responsabilidade penal de um acusado e, o que mais importante, selar o
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32 SRGIO CARRARA
seu destino. Assim, de alguma forma, os papis desempenhados por juzes
e peritos psiquiatras se confundem e se colocam em uma clara relao de
concorrncia. Analisando legislaes penais americanas, cujas disposies
sobre o assunto em muito se assemelham s nossas, Thomas Szasz aponta
para a mesma indefinio entre os papis do perito psiquiatra e dos juzes,
bem como para a especificidade desse tipo de percia. Segundo o autor,
...de fato, a Justia reconhece um argumento psiquitrico e uma con-
denao psiquitrica. O acusado tem o direito de pleitear que no
culpado, devido loucura. O jri tem o direito de dar o veredicto
no culpado por motivo de loucura e, finalmente, o juiz tem o direi-
to de condenar um acusado ao internamento em hospital psiquitrico.
Ao contrrio, o testemunho de outros peritos no pode evitar que um
acusado seja julgado, ou ajud-lo a se dizer no culpado, nem justi-
ficar um mtodo especial de cumprimento da pena; e, por fim, os
peritos no-psiquiatras no podem dotar a sociedade de um sistema de
penitencirias paralegais nas quais os indivduos socialmente desviantes
sero confinados, para sempre se preciso for... 6 (SZASZ, 1977:146).
Em seu livro sobre as relaes entre a psiquiatria e a lei nos Esta-
dos Unidos, Szasz no deixa claro quais so os limites impostos pela lei
interveno dos psiquiatras7. certo que se no houvesse limite algum
sua interveno, o perito psiquiatra se converteria em juiz muito mais
_____________
6 ...en fait, la justice reconnat une requte psychiatrique et une condemnation psychiatrique. Laccusa le droit de plaider non coupable pour raison de folie. Le jury a le droit de rendre le veredict noncoupable pour raison de folie et, enfin, le juge a le droit de condamner un accus linternament enhpital psychiatrique. Au contraire, le tmoignage des autres experts ne peut viter un accus dtrejug, ou laider plaider non-coupable, ni justifier une mthode spciale dacquittement; et enfin, lesexperts non-psychiatres ne peuvent doter la socit dun systme de pnitenciers para-lgaux dans lesquelesles individus socialment dviants seront enferms, prptuet si besoin est...
7 Como nos Estados Unidos os cdigos penais variam de estado para estado, o panorama fica umtanto mais complicado. Comparando o internamento em hospcio comum e o internamento emhospcio criminal no Distrito de Colmbia, diz Szasz que, enquanto o primeiro controladoexclusivamente pelos psiquiatras, o segundo controlado basicamente pelos tribunais (SZASZ,1977:180-181). A se crer em sua descrio, ao menos a situao do Distrito de Colmbia no difereessencialmente da que estamos descrevendo para o Brasil.
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33O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
poderoso. De um lado, sua sentena no poderia ser referida e contro-
lada por qualquer corpo de formulao dogmtica, pois a cincia, por mais
positivistas que sejamos, est longe de ter tal perfil. De outro lado, no
haveria nenhuma instncia superior qual se pudesse recorrer em caso de
discordncia.
Essas peculiaridades legais no deixavam de confirmar uma outra
primeira impresso que tive ao visitar o MJ a de que seus muros no
haviam sido construdos apenas para conter os movimentos indesejveis
dos internos; em seus limites, estavam tambm contidas as possibilidades
de interveno dos psiquiatras nas questes criminais. As ambigidades
presentes no Cdigo Penal em relao ao perfil mdico-legal dessa popu-
lao de pacientes-delinqentes (que, como j se pode observar, tambm
a outra face da complexa relao entre juzes e peritos psiquiatras) no
deixavam de se reproduzir intramuros. o que passarei a considerar.
TERAPEUTAS VERSUS GUARDAS: QUESTES INSTITUCIONAIS
Se todo hospital psiquitrico no deixa de ter semelhanas estru-
turais com a priso, o MJ tem suas particularidades. Concebido enquanto
priso/hospital ou hospital/priso, o estabelecimento conta basicamente
com a atuao de duas equipes de profissionais: os guardas, de um lado,
e os terapeutas, de outro. Como j disse, visitei a instituio durante um
perodo de transformaes e de crises. Provavelmente por essa razo, o
cenrio de atuao dessas duas equipes estava em parte destrudo, e os
bastidores amplamente expostos. Por detrs do palco, as relaes que se
viam no eram l muito amistosas...
Os terapeutas (equipe com a qual tive efetivamente contato) per-
cebiam os guardas como uma espcie de inimigo interno nmero um,
acusando-os principalmente de no compreenderem o carter mdico da
instituio e de tratarem os internos como presos comuns. Como vimos,
os guardas raramente apareciam nas reunies da equipe teraputica, o que
significava que tinham bastante autonomia para no se engajarem no projeto
de medicalizao proposto pelos outros profissionais. Essa autonomia
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34 SRGIO CARRARA
relativa dos guardas em relao aos terapeutas e prpria direo da
instituio, ocupada tradicionalmente por um mdico psiquiatra, pode
bem ser explicada por dois fatores. De um lado, o fato de o MJ fazer parte
do sistema penitencirio e estar prximo de um importante complexo
penitencirio o fazia mais parecido com uma priso do que com um
hospital. O fato de pertencer ao sistema penitencirio carioca fazia ainda
com que suas equipes profissionais se vinculassem diretamente a chefias
superiores que no estavam imediatamente subordinadas autoridade do
mdico diretor. De outro lado, pareceu-me que, em termos de alianas
com os internos, os guardas levavam vantagem sobre os terapeutas, pois
alm de exercerem o poder repressivo mais imediato, tinham um contato
mais constante com os internos. Parecia mesmo ser trabalhoso conseguir
que a presena dos terapeutas no interior da instituio fosse regular e, de
qualquer maneira, aps as 18 horas ela ficava inteiramente sob controle
dos guardas8.
Quaisquer que fossem as razes da autonomia dos guardas, ela era
encarada como um problema srio nas reunies da equipe teraputica.
Eram constantes as reclamaes a respeito de abuso de poder por parte
dos policiais: espancamentos, punies disciplinares consideradas injustas,
proteo a certos internos, etc. Em uma dessas reunies, um dos psi-
quiatras chegou inclusive a afirmar que, mesmo aos olhos psicticos dos
internos, era bvio quem detinha o poder no interior da instituio, pois
eles chamavam o chefe da guarda de vice-diretor. Assim, a figura mtica
do mdico-diretor no reinava soberana no interior do MJ. E isso, aos
olhos dos terapeutas, desvirtuava o carter hospitalar de que a instituio
deveria se revestir. O esprito democratizante e inovador pedia que tal
situao fosse revertida.
_____________
8 Segundo revelaes da prpria equipe teraputica, o MJ era visto por muitos profissionais comoum bico ou um trampolim para alcanar posies em lugares mais agradveis. Quando fizminhas observaes, havia uma carncia de mdicos na equipe teraputica o nmero de mdicosera de cinco para cerca de cento e cinqenta internos. Mesmo assim, durante o perodo de obser-vao, dois deles foram deslocados para atividades no setor de percias. A opinio mais ou menosconsensual da equipe era a de que trabalhar diretamente com os internos era acumular frustraese quem podia sair dessa atividade no titubeava.
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35O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
A luta por uma medicalizao mais completa do espao institucional
no encontrava, no entanto, resistncia apenas nos guardas e em seu chefe,
detentor de uma posio tradicional de mando. Havia tambm resistncia
de parte dos internos (ao menos de alguns), e um pequeno episdio pode
atestar o fato. Eu andava certa vez no interior do MJ com uma das
psiclogas da equipe. Ela me contava que, no dia anterior, um paciente
viera lhe mostrar a marca de um chute que levara de um dos guardas. O
paciente se escondia ento atrs dela, apontando para o guarda que o
agredira. Segundo me dizia a psicloga, a ordem do diretor era que tais
fatos fossem imediatamente denunciados e era o que ela faria. Exatamente
no meio da conversa, fomos interpelados por um outro interno que,
voltando-se ameaadoramente para a psicloga, disse: a senhora pode
denunciar, mas se denunciar os meus PMs, a senhora que leva coronhada.
A relao entre terapeutas e guardas era sem dvida bastante
complicada e espelhava no nvel da instituio a tenso presente, na le-
gislao e nos tribunais, entre juzes e peritos mdicos-psiquiatras. Mas,
pelo que pude entender, a proposta da equipe teraputica no era simples-
mente eliminar os guardas, mas, sim, control-los, submetendo-os sua
autoridade. Realmente, os guardas eram imprescindveis e tinham consci-
ncia disso. s vezes, durante uma reunio, algum relatava ameaas do
chefe dos guardas. Ele dizia, ironicamente, que iria deixar o MJ nas mos
dos terapeutas s para ver o que acontecia.... A equipe teraputica
reconhecia a necessidade da presena dos guardas e, em alguns momentos,
tentava mesmo explicar a sua atuao violenta por falhas do controle
propriamente mdico. Como disse em certa reunio uma outra psicloga:
...sem medicao pode-se acender o farol vermelho dentro do mani-
cmio. Os pacientes no esto sendo medicados. Os guardas interpretam
seus comportamentos como insubordinao e intervm: tranca, violn-
cias, etc.
Pode-se perceber que, para os internos, as opes no eram l
muito boas: ou suas aes eram interpretadas como rebeldia, sendo puni-
das, ou como agudizao do quadro mrbido, devendo ser contidas qui-
micamente. No entanto, a declarao acima transcrita aponta ainda para
-
36 SRGIO CARRARA
o que julgo ser o centro dos problemas que opunham terapeutas e guardas,
qual seja, a avaliao diferencial que construam em torno da identidade
dos internos. Eles pareciam ser mais pacientes para uns e mais delin-
qentes para outros. Mas a ambigidade da posio dos internos no se
revelava apenas no tratamento especfico que guardas e terapeutas lhes
dispensavam. Ela minava de contradies a atuao da prpria equipe
teraputica, que se via muitas vezes presa numa camisa-de-fora que
impedia de levar adiante seus projetos humanitrios e medicalizantes.
Vejamos algumas evidncias desse fato.
Como j disse, visitei o MJ durante um perodo em que a nfase
global da poltica penitenciria dos governos de oposio era a
humanizao dos presdios e a defesa dos direitos dos presos, proposta
que se estendia tambm aos hospcios e outras instituies asilares. En-
quanto parte do sistema penitencirio, o MJ acompanhava tal movimen-
to. Uma das maiores inovaes nesse sentido foi, segundo me parece, a
criao de uma assemblia geral dos internos. Atravs das reunies
semanais, deveriam escoar as reivindicaes e propostas dos internos. No
entanto, alm da assemblia ser sempre presidida por um dos membros
da equipe teraputica, esta parecia consider-la muito mais parte do tra-
tamento psiquitrico do que uma atividade poltica. Era assim que as
reivindicaes e propostas de resoluo de problemas imediatos e coti-
dianos provenientes da assemblia passavam por discusses dos terapeutas
em reunies exclusivas, antes de atingirem seu destino ou de serem
implementadas. A reinterpretao psicologizante (e conseqente
desqualificao poltica) de reivindicaes bem concretas no era rara. De
qualquer forma, os terapeutas constituam uma espcie de filtro que se-
lecionava e avaliava cada proposta dos internos, fazendo a mediao entre
eles e a direo da instituio. Ao que parece, enquanto presos, os in-
ternos tinham o direito de se reunir e encaminhar propostas de mudan-
as, mas, enquanto alienados ou doentes, necessitavam de uma mediao
que avaliasse a lucidez de cada reivindicao. Em um mesmo movimen-
to, reconhecia-se a existncia de direitos dos internos e sua incapacidade
de exerc-los plenamente.
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37O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
Mas vejamos como a posio de delinqente-paciente afetava o
debate e o encaminhamento de alguns desses direitos. A caixa de correio
e o telefone pblico eram considerados pela equipe teraputica reivindi-
caes legtimas, porm seu atendimento passava por uma reflexo sobre
a possibilidade do uso irracional que os internos poderiam fazer desses
instrumentos de comunicao com o mundo extramuros. O mesmo
impasse se fazia sentir quando os terapeutas pensavam no possvel con-
tato entre internos e internas no interior do MJ. Para isso, fora institudo
um forr teraputico, baile semanal onde se encontravam internos de
ambos os sexos. Porm, embora incentivado, o contato deveria ser bem
controlado. E se surgissem casos de gravidez? Mesmo se houvesse uma
creche no interior do MJ (como acontece em alguns presdios), os in-
ternos, por serem alienados, no poderiam se responsabilizar por seus
filhos.
Uma outra reivindicao problemtica era o parlatrio, ampla-
mente reconhecido como um direito de preso. Um dos internos com
quem conversei dizia que um dos maiores problemas do MJ era a ausncia
de mulher, ou melhor, a impossibilidade de relacionamentos sexuais com
mulheres. Relaes homossexuais entre os internos, embora toleradas, eram
vistas pela prpria equipe teraputica como problemticas. Para alguns
terapeutas, as relaes homossexuais, alm de serem ocasio para conflitos
(rivalidades, cimes, etc.) eram vistas ainda como manifestao mrbida
da personalidade. Um parlatrio onde os internos pudessem receber seus
parceiros(as) sexuais, alm de ser um direito, aparecia como forma de
resolver tais questes. No entanto, os terapeutas hesitavam em implement-
lo. Alguns temiam que os internos cometessem violncia dentro do
parlatrio. Caso isso acontecesse, de quem seria a responsabilidade? Nova-
mente aqui aparece a atitude paradoxal de reconhecimento dos direitos
dos internos e de sua incapacidade de exerc-los. O fato de serem delin-
qentes colocava empecilhos a propostas que procurassem trat-los plena-
mente enquanto pacientes; o fato de serem pacientes (alienados) impedia,
por sua vez, que eles fossem humanitariamente tratados enquanto
simples presos ou delinqentes.
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38 SRGIO CARRARA
DOIDINHOS E PEPEZES
Abordarei agora um ltimo nvel sobre o qual a identidade de
paciente-delinqente projetava, a meus olhos, sua imagem inconsistente.
Conversando com alguns internos pude vislumbrar de forma precria,
verdade a maneira como tal identidade era vivida por eles. Absoluta-
mente notvel, primeira vista, era o fato de os internos quase sempre se
dizerem presos, e no doentes, ou de se referirem sua estada no MJ
quase sempre como uma pena, e nunca como um tratamento. Aparen-
temente, preferiam a identidade de delinqente de paciente. Mas tambm
a havia ambigidades e possibilidade de manipulaes. Tomemos um
exemplo.
D. Maria j estava h seis anos no MJ por ter estrangulado, segun-
do me contou, duas outras mulheres dentro de um hospcio pblico ca-
rioca, para onde fora levada durante uma crise. Quando a conheci, ela
trabalhava como contnuo no prdio da administrao, atividade que
considerava um preparo e um teste para a sua sada, prxima, pois o prazo
mnimo de sua medida-de-segurana se esgotava. Tinha muitas crticas ao
estabelecimento, que comparava constantemente ao Talavera Bruce (pre-
sdio feminino do Rio de Janeiro), onde estivera inicialmente presa. Apesar
de reconhecer ser o Talavera Bruce mais violento que o MJ, apon-
tava para o fato de l existirem atividades remuneradas e maior espao
fsico para as presas. Reclamava da ausncia de peclio no MJ, das insta-
laes dos cubculos e da comida (reclamao, alis, generalizada; alguns
internos se referiam comida como lavagem). Para d. Maria, o MJ s
era fcil para os mdicos e para os guardas que viviam s custas dos
presos que no lhes davam muito trabalho por estarem constantemente
drogados. Assim, segundo me disse, a nica bagagem que levava do MJ
era o fato de j estar aviciada nos remdios, sem os quais no conseguia
mais dormir. Bem, nas vrias conversas que tivemos, d. Maria sempre me
falou de sua pena e sempre se referiu ao MJ como uma priso ou
cadeia. Porm, por uma vez, matizou sua identidade de presa. Falva-
mos do caso do internamento para exames da j citada psicloga de classe
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39O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
mdia, acusada de envolvimento no trfico de drogas. Segundo d. Maria,
as outras internas se sentiam menosprezadas pelo comportamento da psi-
cloga: ...ela nem bebe a gua que todos bebem..., contava d. Maria.
Dentro desse contexto, ela dizia que a psicloga no era como todos, ou
seja, que ela no era doente, nem artigo vinte e dois.9 Segundo d.
Maria, o que a psicloga tinha era dinheiro e um bom advogado que
tentava livr-la de uma merecida cadeia. Neste sentido, d. Maria se
inocentava, pois, enquanto doente, no merecia ser punida.
Assim, parece, no so somente os terapeutas os atingidos pela
ambigidade da posio institucional dos internos. Estes se mostram igual-
mente confusos quanto sua posio. exatamente o que tambm notou
Szasz em relao aos hospcios-prises americanos. Referindo-se aos in-
ternos, diz Szasz:
Os doentes mentais so os mais confusos, pois no sabem se so pacientes ou
criminosos. Se desejssemos deliberadamente fazer mal aos doentes mentais,
cujo maior problema sua total incompreenso de qual seja seu papel na
vida, no poderamos criar um sistema patognico mais eficaz que a atual
definio jurdico-social de seu estatuto. Os psiquiatras, por seu lado, no
esto menos confusos. Por fim, mas no menos importante, os juristas e
legisladores perderam completamente de vista o que distingue a doena mental
da criminalidade.10 (SZASZ, 1977:181).
Ainda do ponto de vista dos internos com quem pude conversar,
importante salientar a maneira como se classificavam a si prprios en-
quanto populao internada. Para d. Maria, por exemplo, alm dos
_____________
9 Refere-se aqui ao nmero do artigo que, no Cdigo Penal vigente at 1985, isentava de respon-sabilidade penal os doentes mentais e congneres.
10 Quant aux malades mentaux, ce sont eux les plus confus, car ils ne savent pas sils sont des patientsou des criminels. Si nous voulions dlibrment faire du mal aux malades mentaux, dont les problmesmajeurs rsident dans leurs total incomprhension de ce quest leur role dans la vie, nous ne pourrionspas inventer de systme pathogne plus efficace que lactuelle dfinition juridico-sociale de leur statut.Les psychiatres, pour leur compte, ne sont pas moins confus. Enfin, et non des moindres, les juristeset les legislateurs ont compltement perdu de vue ce qui distingue la maladie mentale de lacr iminal i t .
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40 SRGIO CARRARA
doidinhos, o MJ agregava ainda os bons e/ou colaboradores e/ou
pepezes. Embora estas ltimas categorias se remetam a nveis distintos
de avaliao, elas poderiam incidir sobre um mesmo indivduo, tornando-
se praticamente sinnimas. sumamente importante que eu faa desde j
uma referncia a esses no-doidinhos, geralmente classificados de
pepezes, pois, como veremos a partir dos dados histricos, eles esto
visceralmente implicados com os manicmios judicirios, alm de represen-
tarem uma nova face da identidade paciente-delinqente. Quem seriam
eles?
Vale a pena contar a histria de uma das figuras com quem tive
contato mais direto na prpria biblioteca do MJ. Enquanto trabalhava nos
Archivos, ele se ocupava, por vrias horas, com delicados tranados que
fazia com linhas de mltiplas cores revestindo canetas Bic ou confeccio-
nando pulseiras. Valtair trabalhava como faxina no prdio da admi-
nistrao, tinha ento cerca de trinta e cinco anos e j estava h quatro no
MJ. Desde as minhas primeiras visitas ele me chamou a ateno por seu
ar um tanto altivo e desdenhoso. Aos poucos foi me contando sua his-
tria.
Valtair fora preso pela primeira vez ainda adolescente por
envolvimento com trfico de drogas e por um assassinato. Depois de
atingir a maioridade, foi libertado, mas, segundo contou, continuou no
crime. Aos vinte e quatro anos, foi preso novamente: outro assassinato
envolvendo quadrilhas de traficantes. Nessa poca, segundo ele, era con-
siderado fera e me considerava fera. A partir da, no interior do presdio,
Valtair iniciou sua carreira como um dos chefes da Falange do Jacar,
organizao que controlava o trfico de drogas e o jogo no interior do
sistema penitencirio carioca. J empreendera vrias fugas e conhecia todos
os presdios do Rio. Alm dos processos penais ainda em andamento,
se somadas, suas sentenas j lhe prescreviam cinqenta e oito anos de
recluso. Por uma grande sorte, Valtair sobreviveu derrocada da Falange
do Jacar e ascenso da Falange Vermelha. Saiu do conflito com ferimentos
de dezenas de facadas e ficou hospitalizado durante quatro meses. Depois
disso, entretanto, Valtair no tinha mais para onde ir. Em qualquer pre-
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41O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
sdio carioca seria morto pelos membros da Falange Vermelha. Assim,
atravs de uma advogada, teria conseguido se internar no MJ. Dizia que
somente no MJ poderia estar seguro, uma vez que l no havia falangistas,
por serem os internos, em sua maioria, maluquinhos. Distinguindo-se
destes, Valtair se dizia apenas um colaborador11, pois no era artigo
vinte e dois, estando no MJ por uma espcie de seguro de vida. Porm,
alguns terapeutas o apontavam como um perigoso pepezo.
Os pepezes podiam preencher as funes de colaboradores
porque eram considerados bons, ou seja, no apresentavam qualquer
comportamento que pudesse ser percebido enquanto distrbio da inteli-
gncia ou conscincia, embora fossem considerados perversos, ruins e
naturalmente indisciplinados. Os terapeutas identificavam nos colabora-
dores e pepezes a causa de vrios problemas da instituio, pois eles eram
os aliados naturais dos guardas, manipuladores dos internos, responsveis
pelos desvios de comida, etc.
Alm disso, os pepezes podiam se transformar em lderes dos
internos. Em uma das reunies exclusivas da equipe teraputica, quando
se comentava o esvaziamento da assemblia geral dos internos, um dos
terapeutas comentou: Daqui a pouco s vo aparecer os pepezes. Du-
rante uma das assemblias gerais, pude presenciar a atuao de um interno
considerado pepezo pela equipe teraputica, o Comprido. Presidindo a
assemblia, um psiquiatra colocou em discusso o primeiro ponto da pauta:
a festa de Natal do MJ. Interrompendo a fala do psiquiatra, Comprido
levantou-se e disse, em tom de irritao, que os internos no precisavam
de festa de Natal. Contrariado, dizia que o importante era resolverem a
sujeira e a falta de botes nas roupas dos presos, a qualidade da comida,
a ausncia de talheres, etc. Afirmava ainda que quem mandava naquela
cadeia eram os colaboradores e que havia panelinhas de faxinas de
bons monopolizando algumas atividades, como o jogo de futebol. Disse
tudo isso e saiu indignado, enquanto uma terapeuta me informava que se
tratava de outro perigoso pepezo._____________
11 Em tese, o colaborador o detento deslocado de outras unidades do sistema penal para traba-lhar no MJ, no sendo, portanto, um louco-criminoso.
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42 SRGIO CARRARA
Pepezo o sinnimo vulgar de personalidade-psicoptica.
poca de minhas observaes, pude conseguir uma definio sumria da
categoria atravs de um texto traduzido do Handbook for psychiatric aides
e que era utilizado ento no treinamento de enfermeiros e dos guardas
locais. Assim explicava o manual:
Este ltimo grupo [das personalidades-psicopticas] integrado por pessoas
com distrbios de conduta, que por vezes necessitam de tratamento hospita-
lar. As personalidades psicopticas constituem grave problema para o
hospital, dadas suas perverses, irregularidade, falta de senso tico-
moral, tendncia mentira e mltiplas desordens de condutas. So
pacientes indisciplinados, agressivos e insaciveis. Em geral no apresen-
tam distrbio da conscincia e da inteligncia, preciso muito tato, bom
senso e pacincia no trato com eles. Como esses pacientes necessitam de tra-
tamento muito individualizado, no poderemos sugerir cuidados especiais
(Handbook for Psychiatric Aides, 1977:26, grifos meus).
Como se v pelo trecho acima, no se d uma definio clara da
natureza do mal que afligiria as personalidades-psicopticas, no se indi-
ca qualquer tratamento, nem tampouco afirma-se explicitamente que seu
destino deva ser o hospcio (por vezes necessitam de tratamento hospi-
talar...). Atravs de outro pequeno texto, a que tive acesso na poca e que
tambm tratava dos pepezes, fiquei sabendo que a psiquiatria moderna
(inspirada por Kurt Schneider) os considerava psiquicamente anormais
sem, entretanto, coloc-los nos quadros dos fenmenos mrbidos. Deles,
diz a autora:
Anormal, porm no doente; merecedor de um rtulo dado como
irrecupervel, a personalidade psicoptica assim definida de maneira con-
traditria (PEREIRA, 1979:47, grifos meus).
Para a autora desse trabalho, a psiquiatria utilizaria tal rtulo para
desqualificar politicamente a resistncia demonstrada por alguns indivduos
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43O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
asilados frente ao poder mdico. Seriam os indisciplinados que os asilos
tenderiam atualmente a no aceitar e a enviar s prises, no caso de serem
criminosos. Esta era, alis, a posio da equipe teraputica do MJ, que
advogava a retirada dos colaboradores e pepezes do estabelecimento. No
MJ, deveriam apenas permanecer os doentes, os doidinhos ou maluquinhos,
como diziam.
Desde logo possvel perceber uma espcie de adequao formal
entre a estrutura institucional que descrevo, eivada de contradies, e a
tambm contraditria e ambgua figura do pepezo. Porm, s mais tarde
iria perceber o fato de as personalidades-psicopticas estarem ligadas
problemtica dos manicmios judicirios por inmeros laos, e ser mais
tarde, neste trabalho, que voltarei a elas. Por ora, desejo enfatizar apenas
que os internos, alm de poderem individualmente manipular sua identi-
dade institucional dentro do eixo que ope delinqncia loucura, esto,
eles mesmos, classificados em dois grupos. O primeiro seria composto por
indivduos percebidos enquanto doentes, ou mais doentes (os
doidinhos), e o segundo, por indivduos percebidos como mais delin-
qentes. Membros deste ltimo grupo, os pepezes, apesar de anormais
psquicos, deveriam ir preferencialmente para a priso, sendo qualificados
atravs de avaliaes eminentemente morais: calculistas, frios, traioeiros,
malvados, mentirosos, perigosos, etc.
Alm da oposio entre doidinhos e pepezes, havia ainda, como
vimos, a recusa dos internos a qualificarem o MJ como hospital ou
hospcio ou se autodenominarem doentes. Assim, a maioria dos in-
ternos com quem pude conversar se considerava boa, cumprindo pena
em uma cadeia e reivindicando certos direitos bsicos: caixa de correio,
telefone pblico, roupas limpas, parlatrio, comida razovel, trabalho
remunerado.
A PROPOSTA DE PESQUISA
Neste momento, espero que a linha a que me referi pargrafos
acima e que torna o MJ uma instituio ambgua j esteja ao menos
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44 SRGIO CARRARA
esboada, bem como apontados alguns dos problemas que instaura. Ao
que parece, essa linha constitui-se a partir da existncia de duas definies
diferentes e, em certo nvel, contraditrias, a respeito de um mesmo espa-
o social, o hospcio-priso. Conforme tentei demonstrar, a existncia
dessas duas definies e de sua articulao problemtica se revela ao menos
em dois planos: no plano legal e no institucional.
importante ressaltar ainda que essa fronteira que perpassa todo
o MJ em si mesma inglria. No distingue o sagrado do profano, o
positivo do negativo, o que seria melhor do que seria pior. Os in-
ternos se vem ento colocados frente a uma estranha encruzilhada: ino-
centes mas tutelados e sem direitos de um lado; culpados mas sujeitos
de certos direitos e deveres de outro. Um perodo de interdio menor
mas que pode se estender por toda a vida, de um lado, um perodo de
interdio legal maior mas com sada certa, de outro. Em seu livro j
citado, Szasz no deixa de apontar para a mesma iniqidade:
um jogo perverso. O tribunal joga segundo a regra coroa eu ganho, cara
voc perde. Se culpado, o acusado vai para a priso; se no culpado mas
louco, enviado a um hospital para loucos-criminosos. Por que acho este
jogo perverso? Porque, se a inteno do tribunal ou da sociedade fosse real-
mente oferecer tratamento psiquitrico a certos delinqentes, isso poderia
muito bem ser feito na priso. O fato de que dispomos assim dos delinqen-
tes, abandonando-os psiquiatria, me parece uma fraude monumental. Para
o paciente delinqente no existe nem absolvio para sua culpa, nem
tratamento. Isso no mais que um mtodo cmodo para se livrar dos
indivduos que apresentam comportamentos anti-sociais12 (SZASZ, 1977:148,
grifo meu)._____________
12 Cest un jeu mchant. Le tribunal joue selon les rgles: pile-je-gagne, face-tu-perds. Sil est coupable,laccus ira en prison; sil nest pas coupable mais fou, on lenvoie dans un hpital rserv aux fouscriminels. Pourquoi est-ce que je pense quun tel jeu est mchant? Parce que, si lintention de la courou de la socit tait vraiment de faire soigner psychiatriquement certains dlinquants, on pourraitfort bien le faire en prison. Le fait quon dispose ainsi des dlinquants en les abandonnant lapsychiatrie, me semble une escroquerie monumentale. Pour le patient-dlinquant, il ny a ni absolutionpour sa culpabilit, ni traitement. Ce nest rien dautre quune mthode commode pour se dbarasserdes individus qui trahissent certains comportaments asociaux.
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45O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
Embora Szasz veja o problema e possa mesmo me ajudar a
apresent-lo, no creio que o compreenda em toda a sua amplitude.
claro que estamos frente a uma iniqidade e a um atentado a alguns dos
direitos bsicos do cidado (como o direito de ser julgado), porm, quer
seja dos tribunais ou da abstrata psiquiatria, a maldade no pode dar
conta do jogo que o prprio autor aponta e cujo perfil acabei de descre-
ver. certo que em outro momento de seu trabalho13 Szasz lanar uma
outra hiptese para explicar a presena dos peritos psiquiatras nos tribu-
nais e a existncia de manicmios criminais. Segundo o autor, esses fatos
se explicariam atravs do sentimento de culpa que assolaria os juzes
quando eles se vem frente a casos duvidosos nos quais a desconfiana
quanto sanidade mental do acusado no tem o poder de impedir que
alguma forma de punio lhe seja endereada. Embora no duvide que
uma das funes da presena da psiquiatria nos tribunais seja essa, no
posso deixar de observar que essa razo psicossociolgica no explica
nem a existncia dos manicmios judicirios nem tampouco a forma es-
pecfica atravs da qual se d a interferncia dos psiquiatras nas questes
legais. Por que a justia no faz internar os indivduos delinqentes con-
siderados loucos em sees especiais dos hospcios comuns ou os faz tratar
nos prprios presdios, como prope Szasz? De uma das duas maneiras,
estaria resolvido o sentimento de culpa dos juzes... Por outro lado,
claro que estamos frente excluso de comportamentos associais, mas o
que interessa justamente explicar a modalidade especfica dessa excluso.
Assim, o que importa perguntar : por que tal jogo maldoso da
maneira que , e no de uma outra maneira qualquer?
Pelo que pude compreender, o problema bsico da abordagem de
Szasz reside no fato de enfatizar sobretudo os nveis em que o papel e a
atuao do psiquiatra se mostram complementares ou funcionalmente ade-
quados aos do juiz. Por exemplo, no absolutamente correto dizer (como
faz Szasz no trecho acima) que a justia abandona nas mos dos psi-
_____________
13 SZASZ, 1977, especialmente cap. 9.
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46 SRGIO CARRARA
quiatras certos delinqentes, e isso tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos
(ao menos o que se percebe atravs dos dados apresentados pelo prprio
Szasz). Na verdade, a maldade desse jogo, sua face singular, reside jus-
tamente no fato de a justia no o fazer plenamente14. Atravs dos dados
que j apresentei at agora, espero ter ficado claro que o que se encontra,
tanto na legislao referente aos loucos-criminosos quanto no destino social
que lhes reservado, justamente a superposio complexa de dois mo-
delos de interveno social: o modelo jurdico-punitivo e o modelo psi-
quitrico-teraputico. Superposio e no justaposio, pois, como vi-
mos, o modelo jurdico-punitivo parece englobar o modelo psiquitrico-
teraputico, impondo limites mais ou menos precisos ao poder de inter-
veno dos psiquiatras. Desta maneira, mais justo seria pensar o manic-
mio judicirio como soluo final de um conflito histrico de com-
petncias, de projetos e de representaes sociais mais abrangentes e no,
simplesmente, como um acordo entre funes sociais complementares.
Genericamente, o que transforma o MJ em um espao social paradoxal
justamente o fato de combinar dois conjuntos de representaes e de
prticas sociais que se fundam em concepes distintas e opostas sobre a
pessoa humana sem que nenhum deles prevalea plenamente. De um lado,
h a verso que poderia ser chamada jurdico-racionalista e que v o
indivduo como sujeito de direitos e de deveres, capaz de adaptar livre-
mente seu comportamento s leis e normas sociais, capaz de escolher
transgredi-las ou respeit-las, capaz, enfim, de ser moral e penalmente
responsabilizado por suas aes. De outro lado, h a verso que poderia
ser denominada psicolgico-determinista, que v o indivduo (principal-
mente o indivduo alienado) no enquanto sujeito, mas enquanto objeto
de seus impulsos, pulses, fobias, paixes e desejos. Nessa ltima verso,
as estruturas determinantes do comportamento, estando aqum da cons-
_____________
14 Evidentemente, no quero dizer com isso que a justia deveria faz-lo, apenas sublinho o fato dea combinao dos modelos de interveno mdico e legal acarretar conseqncias mais nefastas doque aquelas a que j so submetidos os indivduos atingidos por uma das duas espcies de inter-veno tomadas isoladamente.
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47O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO
cincia e da vontade, no permitem que o indivduo seja moralmente
responsabilizado no sentido do modelo anterior, no sendo, portanto,
passvel de punio.
Por coloc-los muito prximos, combinando-os de maneira con-
traditria, o MJ no deixa de chamar a ateno para a existncia simult-
nea, em nossa sociedade, desses dois cdigos incompatveis de compreen-
so das aes humanas e da responsabilidade individual. Ainda sob outras
formas, tais cdigos esto presentes em nossas avaliaes mais cotidianas
e so atualizados segundo situaes muito concretas. Vivemos em socieda-
des que conseguiram (e seria muito importante saber como concretamente
o fizeram) articular duas concepes conflitantes da pessoa humana: uma
moral e axiomtica; a outra objetiva e objetivante, cientfica. Apren-
demos a lidar com estes dois cdigos distintos e, a partir deles, qualquer
comportamento pode ser apreendido tanto em termos morais (culpado
versus no-culpado; responsvel versus irresponsvel) quanto em termos
mdico-psicolgicos, ou seja, como resultante de doenas, desequilbrios
nervosos, traumas e socializao problemtica. Como bem notou Evans-
Pritchard em seu clssico estudo sobre bruxaria africana, no so apenas
os primitivos que no do grande importncia contradio existente
entre os diferentes cdigos simblicos que acionam para tornar compre-
ensveis os infortnios que atingem os homens. Tambm ns, diz ele,
...aceitamos explicaes cientficas das causas das doenas e mesmo da lou-
cura, mas negamos essas explicaes nos casos de crime e de pecado, porque
aqui elas entram em contradio com a lei e a moral que so axiomticas
(EVANS-PRITCHARD, 1978:66).
A partir de minha experincia no MJ e da percepo da instituio
que obtive atravs dela, a questo que me coloquei inicialmente foi a de
saber como tal estrutura institucional teria emergido historicamente. Tal
questo poderia ainda ser formulada de outro modo: como, historicamen-
te, surgiu a figura do louco-criminoso implicando o aparecimento de
uma estrutura institucional especialmente voltada a seu tratamento
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48 SRGIO CARRARA
ou conteno? Porm, se aceitarmos (como eu mesmo aceito) que a lou-
cura foi (e continua sendo) em grande medida uma linguagem ampla-
mente utilizada em nossa sociedade para controlar, gerir e, em alguma
medida, neutralizar comportamentos que transgridem suas normas, valo-
res e regras, a questo acima colocada merece ainda um enunciado diferen-
te, mais largo e abrangente. O problema poderia ser colocado ento da
seguinte forma: a partir de que relaes significativas entre representa-
es e prticas que se ocupam da transgresso s normas e valores
sociais foi possvel surgir a figura do louco-criminoso e a instituio
que dele se ocupa?15. Tal enunciado mais satisfatrio porque coloca em
foco o que julgo ser fundamental para a compreenso do surgimento do
manicmio judicirio, ou seja, a maneira como se constitui o significado
social do crime ou da transgresso a partir dos diversos discursos e prticas
que os tomaram enquanto objetos de reflexo e de interveno, particu-
larmente do discurso e prtica da medicina mental.
Assim, pensei (e julgo, com acerto) que somente poderia entender
a figura do louco-criminoso e a problemtica dos manicmios judicirios
se os recolocassem, ainda que limitadamente, no contexto da ampla dis-
cusso que, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, se articulou em
torno do crime e da transgresso. Esse momento histrico no somente
assistiu ao ap