inventário da loucura
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Livro do artista João Evangelista, que reúne 26 poemas sobre a loucura.TRANSCRIPT
Inventário da Loucura João Evangelista
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Sobre João Evangelista
Natural de Itapecerica, João Evangelista de Carvalho se formou na Escola
Estadual Padre Herculano Paz, em Itapecerica. Desde cedo apresenta
habilidade na escrita, mas somente a partir de 1999, quando participou do
concurso literário Arte de Viver e teve o seu texto publicado, que passou a
investir no desenvolvimento da habilidade da escrita com maior afinco.
Em 1996, mudou-se para BH para tratamento psiquiátrico. A partir de 1999 se
torna ativista do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Participa de três
edições da comissão organizadora do desfile de 18 de maio. De 1998 a 1999 é
vice-presidente da associação Verde Esperança – Associação dos Usuários,
Familiares e Amigos da Saúde Mental do Ipsemg. E em 2000 torna-se
presidente da entidade. Participa em 1999 do Encontro Nacional de Luta
Antimanicomial em Maceió.
Em 2000, participou da Oficina Loucura está no Ar, ministrada pela AIC. A
partir das atividades realizadas na oficina, João Evangelista passou a fazer
parte da Comissão de Memória e Cultura do Fórum Mineiro de Saúde Mental.
Já em 2003, João participa em Belo Horizonte como suplente na Comissão
Municipal de Reforma Psiquiátrica – do Conselho Municipal de Saúde, participa
do Fórum Social Brasileiro, é curador da Mostra Parabolinóica de Arte e
Loucura, organizada pela Associação Imagem Comunitária, no Centro Cultural
da UFMG.
No ano de 2010 passa a realizar atividades como bolsista da Rede
Parabolinóica de Arte e Loucura, da qual participa desde 2000, quando esta
era apenas série de oficinas de comunicação comunitária realizadas pela AIC,
em centros de convivência para pessoas com sofrimento mental. Além de
escrever prosa e poesia, João também fotografa e gosta muito de música.
Inventário da Loucura João Evangelista
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I
Eu estou esquecendo de ser
Eu existo sumindo
Eu estou por conveniência
Para não perder o costume
Tenho a ventura de esvaziar
Esmoreço de parar a pisada
Passa a vontade para perguntar
Esvai no sopro
Abstraí-me das rochas
A brisa
Flor colore
Pássaro é voar e cores
O espelho, eu derreto o desenho.
O desenho dissolve o traço
Gosto de conversa mole depois do almoço
Esboço trair os pulsos
Depois começo
Tento o desejo da argila
Vou indo em ignorar desígnios
Algo que a digestão tem de automático
Não iludo em desastres
A vida não desvaloriza
Oculto os cães e as garrafas de ter visita
Inventário da Loucura João Evangelista
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II
Vento gira em sol
Música conjuga em dó maior
Norte nevada
Noite velada
Veludo e almíscar
Em desmanchar frio
Para céu da boca
Para céu do vento
Vento, giro ao leste.
Compassou em sul
Está com sol
Lá se termina?
Está com sol
Lá se principia?
Movimentar cata-ventos
É de entender em confusão
Verdadeiro caminho é sem nome
Ir caminhando
É intenção para dividir vento
Tempo feito não gira vento
Gira sol
Ir caminhando desfaz tempo
Inventário da Loucura João Evangelista
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III
Precisar metabolizando clorofila
É a dúvida da folha
Achar verde dela sobrepõe na mata
Ourives é quem ignora verde
Ignora fruto
Fruto germina mistérios
Casca caroço e carne
Cuidado de ser transporte com sementes
Volta no chão, maduro.
Formigas em alegria
Sobre mel do fruto estocando
Inusitado ser acidente
Os ciclos que também se ignoram
Inventário da Loucura João Evangelista
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IV
Ser um estado de colorir
Amansar as feras
Concluir nada
Todo absoluto no errar
É um acerto de aprender espírito
Fendas iluminadas de fitar
Vê-se feno
Vestígio de amor
Evidências de sutileza na farta carne
Sente maciez
Todo é donzela, torre de castelo e fuga
Tudo esconderijo
Choupanas e bordados
Forjar o perfume é da botica
Da lógica com borboletas
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V
A condição mostrou absurdo
Apaixonar dúvida exige
Morre flor com itinerário de pássaro
Rio continua
Corre leito e água
Não entende coração
Brilha minha paisagem
Céu é metamorfose
Nuvem casulo de chuva
Cheiro brota no chão
Justificado tudo existe
Firmamento não desaba com ninguém
Lua fria legitima febre
O barco a vela
Pesca negrume
Parto amanhece
Estrela não derrama algodão doce
Inventário da Loucura João Evangelista
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VI
Intervalo ser continuar
Caminho e descanso
Foi água e pedra
Leito era deitar também correr
Natureza vive
Desenhada de morte
Desenhista e pílulas de palma da mão
Pintou, cantou, escreveu
Impune em existir
De inócua natureza
É viver que não pede
Licença de figurar
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VII
É orientação de pássaro
Entender tempo em vácuo
Asa é para romper
Prescinde céu e displicente,
Põe interrogação de ventania
Mistério de se viver
É também voar e planar
Afirma manobra que brisa fez
Procurar amor desventurado
Sendo desatino, tem maturação.
É semente de planta ao delírio
É falácia de prudência morrer
Prudência é castelo suntuoso
A servir para masmorra
Não percebe borboleta
Cercear que é sentimento mesquinho
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VIII
É também sentir chagas
No silêncio
Vou de experimentar silêncio
Gritar é ser de margem oposta
Experimentar o silêncio
É gritar em outro lado
Completude sem travessia
Vazio em plenitude, macio.
Assim o grito me diz
Longe lado de contrário
A litania é o ouvido
Ouvindo em longitude
Vou de experimentar reflexão de silêncio
Ir em procurar gritos recônditos
Inventário da Loucura João Evangelista
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IX
Vida seja dúvida mesmo
Morrer carece menos
Correnteza me trouxe
Passou arisca de dizer ais
Tempo foi pouco nos ouvidos
Subiu alta montanha
Desceu de visão no equívoco
Árvore é testemunha com galho
Chora folha, grita vento
Presença, sumidouro que alma leva.
Vai no entendimento de não ser
É explicação de não ir
Vida era uma curva na estrada
Morrer carecia
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X
Terra é também apetecimento com chuva
Chão pode ser semente dentro
Raiz é que é um trabalho nascendo fruto
Tronco é corpo que nasce
Com solo em viver
Em vigor
Árvore aceita desorientação com vento
Segue curso inerte
E vive interior
Galho range alquimia para exalar som
Solo ouve o timbre
Anunciar chover
Talvez água excita
Árvores com balançar
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XI
Divindade não é coisa maior
Que joaninha pousar no dedo
Pousar é descanso de asa
É em voar o desencanto
Dedo pede pouso melhor
Lá vai joaninha
Em certeza com outros pousos
Percebendo em bordados
Um ir de semelhanças
Percebendo em pé de pitanga
Um ir sem desencontro
Um ir de desatar
Lá vai joaninha
Em certeza com outros pousos
Inventário da Loucura João Evangelista
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XII
Oboé diverte os homens
É que diverte rãs também
Atrás do muro enxergando brejo
Som que bate a parede que é do vento
Divertimento de procurar seu caminho
Procurar em falta da alegria
Preencher em som de oboé
A tristeza que jazia silêncio
Silêncio encantado
Em levar o som em divertimento
Até outro lado do muro
Onde tem brejo enxergando
De um oboé que jaz cor
Onde som também
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XIII
Clarinete dorme inerte
Em som ausente
Em sono e sonhar
De timbre em diferença
Em cima de mobília
Vai esquartejado a sentir verniz
Uma parte pede outra
Com azeite de ajuntar
E que haja untar
Indo exalar cheiro
Em esperar dedo e lábio
Para libidinosa suavidade
Fazer movimento
Fazer presença
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XIV
Sino da igreja
Terra de nascimento
Truculência em víscera
Tímpano e badalo
Em reconhecimento
Signo de morte
Mofo de igreja
Paralelepípedo que sangra
Lua que sangra
Amargura na garganta
Lua que mingua
Pedra antiga
Sino, bronze de metal antigo.
Signo de morte
Terra de nascimento
Inventário da Loucura João Evangelista
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XV
Lua está de brilhar
Com céu em obscuridade
Noite amansou os homens
Entorpece pensar
Em cantos longes achar
Lugares todos
Mesma lua
Mesmo céu
Toda noite
Escondendo faros e feras
Em testar intuições
Noite encontra calma e para
Cessa filosofias
Adormece
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XVI
Em nome do pai
Do filho
Em nome do divórcio
Em nome do aborto
Dos males necessários
Em nome da discórdia
Em nome da diáspora
Do fim irremediável
Em nome do holocausto
Esqueçam tudo
Ou anulem-se todos
Amem
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XVII
Pegar com fé
Pegar o jeito
No improviso
É sabido da demora
Observar beija flor reagir
Empirismo na carência de esperar
Fruta em estação
Não ensaia pra nascer
Não presta vestibular
Acontecem de manifesto
Semelhança é plantar árvore
Em ato solene
Palma da mão reconhecer
Terra macia
Óleo hidratante
Óleo de unção
Enfermidade de desconhecer
A chaga do chão
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XVIII
Cachoeira
Cortina d´água
Atrás o encanto
Que menina seis anos
Foi descobrir
Voltou com missão de nobreza
Crescer inocente
E vencer o mundo com simples sabedoria
Sabedoria da formiga, do caramujo
Da codorna chocando
Cachoeira mostrou
Planta crescer, maracujá madurar.
Rolar na grama sempre que possível
E colorir céu com pipas
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XIX
Cantos distantes
De quilombos libertários
Ilhas ancestrais
Alcançando até pomar em laranjeiras
Em breu tudo vira próprio aos animais
Não assombram com madrugadas
Ouvem tambores
Quem sabe reconhecem
De ser tudo natural
Longe do afeto de gente
Sentimento de bicho espera para ser
Tambor, pomar, cio.
Sentido em ser
Não interroga
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XX
Sonho ocupa narina de respirar
Boca entretêm de histórias passadas
Águas passadas são mover moinhos
Em invenção
Ajuda labutar a construção
De se erguer em afirmar
Sonho conhece a fermentação dos bolos
Olho vendo bolo
Vendo montanhas
Vendo silêncio
É poesia que não termina não
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XXI
Ignorar
Passar a vida
Sem consentimento
É do viver
Escapar vida
Não tem jeito
Sem escorrer de dedos
Sem senso de palavra medida
Notar pelos brancos
Repentinamente
Descobrir absurdo irreparável
Saber sem escolha
Dói essa falta
De conviver em dívida impagável
Esquecer é o melhor engano
Inventário da Loucura João Evangelista
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XXII
Atado em engano necessário
Sou eu e caixa de analgésico
Efeito já é justificativa
Dormir melhor em domingos
Buscar gesto de ânimo
Prestar atenção a mais
E a importância justa
É efeito de não iludir
Iludir da ilusão
Verificar papel velho em gaveta
Indeciso de finalidade e fim
E alheio às roupas de cama do armário
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XXIII
Meio fora dos eixos
Às vezes é bom
Falar o bem entender
É desentender com outros
Preparar do mal entender
É tirar da janela o rosto
Se verão desespera roupa
Outono desespera a nudez
Se inverno desespera a aguardente
Primavera desatina a cor
Não porque espero ou desespero
O relógio na meia noite
É tempo que resvala na paisagem
De bem ou mal entender
De bem ou mal me quer
Inventário da Loucura João Evangelista
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XXIV
Entorpecência
De ir amalgamando cores
Percebe a loucura
Vim para entender amor
O quê mais além
Seria amor?
Amor de manifesto em incongruência
Vim entender amor
Em mesmo intento
Entender inerente da única saída
Beco sem saída
Natural estupidez
Inventário da Loucura João Evangelista
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XXV
Sol aprende que tempo
É girar de esferas
Hora de mariposas na lâmpada
Foi outra
Sol conhece ser intercalado
Em nuvens
Calado de perfurar atmosferas
É onde vem nítido ver
E caminhar de praça e árvore
É tempo de experimentar
Cômodos em casa que vento veio
Prostrar de um almoço em domingo
O sol de operário
O sol de camponês
O sol de errantes
O sol de amantes