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A fim de pensar as relações entre saber médico e saber antropológico, na Bahia, do final do século XIX, o presente artigo busca compreender o pensamento médico de Raimundo Nina Rodrigues, tomando como fonte histórica a obra Os africanos no Brasil (1982). Atenta-se, especificamente, a forma como Nina Rodrigues se apropria do conceito de sobrevivência de E. B. Tylor para tecer uma análise da realidade social e cultural do Brasil, investigando três formas de sua manifestação: as festas populares, as crenças religiosas e o crime. Elementos estes entendidos como esferas problemáticas à civilização brasileira, e categorizados a partir do conceito de “sobrevivência”

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  • sculum - REVISTA DE HISTRIA [31]; Joo Pessoa, jul./dez. 2014. 81

    AS CRENAS E CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS COMO OBJETO DO SABER MDICO EM NINA

    RODRIGUES(BAHIA SCULO XIX)

    Vanda Fortuna Serafim1

    A fim de pensar as relaes entre saber mdico e saber antropolgico, na Bahia, do final do sculo XIX, o presente artigo busca compreender o pensamento mdico de Raimundo Nina Rodrigues, tomando como fonte histrica a obra Os africanos no Brasil (1982). Atenta-se, especificamente, a forma como Nina Rodrigues se apropria do conceito de sobrevivncia de E. B. Tylor para tecer uma anlise da realidade social e cultural do Brasil, investigando trs formas de sua manifestao: as festas populares, as crenas religiosas e o crime. Elementos estes entendidos como esferas problemticas civilizao brasileira, e categorizados a partir do conceito de sobrevivncia.

    Raimundo Nina Rodrigues nasceu em 4 de dezembro de 1862 em Vila da Manga, atualmente sede do Municpio de Vargem Grande no Maranho e faleceu em 17 de julho de 1906, em Paris. Filho do coronel Francisco Solano Rodrigues, um plantador e criador de gado na regio, cuja propriedade, um engenho, parece ter sido passada em grande parte para os descendentes de escravos da famlia, e de Luiza Rosa Nina Rodrigues, descendente de uma famlia serfadim que veio ao Brasil fugindo da perseguio de judeus na Pennsula Ibrica; o exerccio da medicina parece ter sido prtica comum a muitos de seus familiares2.

    Em 1882 Nina Rodrigues iniciou o curso de medicina na Faculdade de Medicina da Bahia, sendo que fez o quarto e o sexto ano na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em final de 1887 defendeu sua tese de doutorado, sobre trs casos de paralisia progressiva cujo ttulo era Das Amiotrofias de Origem Perifrica. Em 1888, Nina Rodrigues, clinicou em So Lus do Maranho e escreveu uma srie de artigos sobre higiene pblica com ateno especial para o regime alimentar inadequado da populao maranhense. Nesta ocasio, comeou a colaborar com a Gazeta Mdica da Bahia, mediante um conjunto de trabalhos acerca da lepra no Maranho. Nesse extenso trabalho introduziu um quadro classificatrio das raas no Brasil. Em 1889, prestou concurso para a Faculdade de Medicina da Bahia, tornando-se adjunto da 2 Cadeira de Clnica Mdica, cujo titular era o Conselheiro Jos Luiz de Almeida Couto, que viria a tornar-se sogro de Nina Rodrigues3.

    1 Doutora em Histria pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Adjunta do Departamento de Histria e do Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Estadual de Maring. Pesquisadora no Ncleo de Pesquisa em Histria Religiosa e das Religies (UEM/CNPq). Coordenadora do Ncleo Paran do Grupo de Trabalho Histria das Religies e das Religiosidades da ANPUH. E-mail: .

    2 CORRA, Mariza. As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2. ed. Bragana Paulista: EDUSF, 2001.

    3 CORRA, As iluses da liberdade...

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    Nina Rodrigues considerado iniciador dos estudos sobre os negros no Brasil e aps tornar-se professor da Faculdade de Medicina da Bahia que passa a se dedicar intensivamente aos estudos dos costumes de antigos escravos africanos e seus descendentes. Interessado especialmente por suas prticas religiosas, Nina Rodrigues desenvolveu duas obras especficas sobre a temtica: O animismo fetichista dos negros bahianos (1900) e Os africanos no Brasil (1932)4. Pensar as relaes entre o saber mdico em Nina Rodrigues e o estudo das crenas e cultura afro-brasileiras na Bahia do sculo XIX, implica, todavia, em reconhecer que este saber historicamente construdo, no se organizou revelia de outras reas do conhecimento tais como a Psicologia, o Direito, a Lingustica e a Etnografia5.

    Entendido como um agente singular do campo mdico que dedicou sua obteno da especializao da Medicina Legal6, Nina Rodrigues teve sua obra ora associada a uma inovao da cincia no Brasil7, ora associada a cpia de teorias estrangeiras8, buscando encaixar elas a nossa realidade. Optar por uma destas vertentes soa, todavia, desnecessrio, uma vez que todas essas chaves de leitura apontam para caractersticas da trajetria intelectual de Nina Rodrigues, e encar-las desta forma auxiliam a produo de um conhecimento mais completo. Mesmo as descries sobre a personalidade de Nina Rodrigues apontam como seus interesses e curiosidades acadmicas causavam certo incmodo em seu meio acadmico. Isto porque seu objeto primeiro de curiosidade eram os povos africanos e seus descendentes. Algumas indicaes a respeito disto esto nos escritos de Estcio de Lima, professor emrito da Faculdade de Medicina da Bahia:

    O talento produtivo no raro sofre muito. A mediocridade costuma ser desabusada. Umas tantas picuinhas foram levadas contra o mestre excelso: Nina est maluco! Frequenta candombls, deita-se com inhas, e come as comidas dos Orixs... [...] Cousas imprescindvel em qualquer laboratrio a agua corrente... Pois bem, cortaram e destruram os encanamentos que o levavam o precioso lquido ao seu laboratrio querido.9

    4 Segue as referncias completas: RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1935; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional; Braslia: Editora da UnB, 1982.

    5 SERAFIM, Vanda. Revisitando Nina Rodrigues: um estudo sobre as religies Afro-Brasileiras e o conhecimento cientfico no sculo XIX. Maring: EDUEM, 2013.

    6 Vide: MAIO, M. C. A medicina de Nina Rodrigues: anlise de uma trajetria cientifica. Cadernos de Sade Pblica, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 2, abr./jun. 1995, p. 226-237.

    7 Vide: CORRA, As iluses da liberdade...; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930). So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

    8 Vide: DEGLER, Carl N. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos EUA. Traduo de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil,1976; SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Traduo de Raul de S Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

    9 LIMA, Estcio. Velho e Novo Nina. Bahia: Instituto Mdico-Legal Nina Rodrigues, 1979, p. 52.

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    Esse carter complexo de Nina Rodrigues no rendeu apenas questionamentos acerca de sua obra, ora rendia-lhe a apreciao enquanto feiticeiro por parte dos colegas da Faculdade; ora era usado como explicao para sua morte prematura. Reza a lenda que, os curiosos que frequentavam Candombls sem a crena seriam esmagados pelos Orixs morrendo muito cedo. Mas no apenas suas atitudes no que concerne a vivncias religiosas eram questionadas, h indicativos de que suas prticas cientficas tambm o eram:

    Nina amava aquilo tudo, e mais o seu pequenino Museu de Antropologia Criminal, em formao. Algumas coisas inestimveis estavam ali, inclusive, sabidamente, caveiras de delinquentes famigerados, o crnio de Lucas da Feira e a prpria cabea do pobre e malsinado Antnio Conselheiro, trazida de Canudos por um Pond ilustre, ou major combatente, e oferecida ao ncleo do Museu de Antropologia criminal, criado por Nina Rodrigues. Souberam Afrnio Peixoto, irrequieto e notvel professor universitrio, creio que, tambm, Costa Pinto, depois catedrtico de Higiene, souberam estes e outros estudantes, que iriam inimigos da cultura arrancar do pobre Museu pequenino de Nina, as cabeas humanas, os crnio delinquentes famosos, e nem sei que mais... para jogarem fora. Reuniram-se cinco ou seis alunos da Faculdade, franio frente, confessou-me ele prprio, um dia, e, em certa noite, mesmo correndo srio perigo, pularam os muros e arrombaram as portas esses rapazes dignssimos e roubaram as preciosas peas de Antropologia Criminal, patrimnio da Cadeira de Medicina Legal e as esconderam numa pequenina fazenda, em Brotas... Os coveiros da Cultura, muito cedinho, quando foram buscar as peas humanas, acharam o vazio... At que a campanha serenou, voltando tudo s mos de Nina quem, todavia, o futuro no distante, haveria de ferir, nesse mesmo mbito, s custas de outra fatalidade: o incndio...10

    Apesar do carinho escancarado pelas faanhas de Nina Rodrigues, a fala acima, nos ajuda a perceber que algumas das metodologias de trabalho de Nina Rodrigues j no eram bem aceitas em sua poca, ou seja, o fato de alguns cientistas do sculo XIX operarem a craniometria no a torna aceitvel totalmente para o contexto histrico de Nina Rodrigues, mas a torna compreensvel. Nesse sentido, pensar as crenas e culturas afro-brasileiras como objeto do saber mdico em Nina Rodrigues, na Bahia do sculo XIX, implica em reconhecer dois elementos em construo: a prtica mdica e a cultura africana enquanto objeto de cincia.

    10 LIMA, Velho e Novo Nina, p. 55.

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    Saber mdico e saber antropolgico

    Para a finalidade deste artigo gostaria me ater a trs elementos tratados por Nina Rodrigues em consonncia com a cultura afro-brasileira, em sua obra Os africanos no Brasil (1982), aqui tomada enquanto fonte histrica. So eles: as festas populares, as crenas religiosas e o crime. Assumidos como trs esferas problemticas civilizao brasileiras, sero categorizadas a partir do conceito de sobrevivncia.

    fundamental a compreenso da leitura social realizada por Nina Rodrigues a noo de survival in cultural, do antroplogo ingls Edward Burnnet Tylor11, de quem Nina Rodrigues toma o termo a emprstimo. A noo de sobrevivncia seria definida pelos costumes, referindo-se aos hbitos caractersticos de uma determinada sociedade histrica do passado, que se manteria em uma sociedade posterior, de modo irrelevante, sem ter bases explicativas ou lgicas para isto, como mera sobrevivncia. Mas sobrevivncia de qu? De um processo evolutivo que deveria t-la eliminado. Permanecendo de forma residual e incmoda, antiquada e ultrapassada em um mundo ao qual no pertence12.

    J o termo cultura, logo no primeiro volume de Primitive Culture13 de 1871, E. B. Tylor situa sua primeira definio acerca de cultura enquanto sinnimo de civilizao.

    Cultura ou civilizao, tomada em seu sentido etnogrfico amplo, este todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade, condio de cultura entre as diversas sociedades da humanidade, na medida em que ele capaz de ser investigado sobre os princpios gerais, um assunto apto para o estudo das leis do pensamento e da ao humana.14

    Esta definio aponta para forma como estaro organizados os dois volumes que compem a obra, tanto na verso inglesa, quanto francesa15, a qual Nina Rodrigues

    11 SERAFIM, Vanda Fortuna. Edward Burnnet Tylor e a contribuio inglesa ao estudo das religies. Revista Brasileira de Histria das Religies, vol. 06, 2013, p. 173-198.

    12 Haveria dessa forma exemplos de sobrevivncias selvagens na educada Europa Moderna. Estes seriam para Tylor prticas cotidianas e do senso comum, as quais no teriam um significado emprico e racional. A mente evoluda deveria ser capaz de questionar e abandonar estes hbitos. O termo sobrevivncia quase sempre utilizado como sinnimo de superstio.

    13 TYLOR, Edward Burnett. Primitive culture: researches into the development on mythology, philosophy, religion, language, art, and custom Vol. I. 6. ed. Londres: John Murray, 1920; TYLOR, Edward Burnett. Primitive culture: researches into the development os mythology, philosophy, religion, language, art, and custom Vol. II. 4. ed. Londres: John Murray, 1903.

    14 Segue o texto original: CULTURE or Civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society. The condition of culture among the various societies of mankind, in so far as it is capable of being investigated on general principles, is a subject apt for the study of laws of human thought and action. TYLOR, Primitive culture, vol. I, p. 01.

    15 TYLOR, Edward B. La civilisation primitive Tome Premire. Traduo de M. Ed. Barbier. Paris:

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    teve acesso. A partir dela sero delineadas as divises em captulos ao estudo das crenas, arte, moral, tica, leis, hbitos e costumes dos ditos povos primitivos, atentando a aspectos especficos de cada um destes elementos constituintes da cultura ou civilizao humana.

    A ideia que rege todo o trabalho de Tylor a de uma humanidade singular que representa um todo homogneo, formada por diferentes partes, heterogneas, mas mesmo assim, ligadas entre si, que seriam as diversas sociedades histricas. A busca por leis de pensamento e ao humana pressuporia a existncia de um fio condutor, que perpassaria estas sociedades heterogneas, possibilitando identificar aspectos comuns humanidade, que seriam encontrados em diferentes tempos e espaos geogrficos. Todavia, por aspectos comuns, no se deve entender elementos comuns, que se repetem ou permanecem imutveis, mas elementos que nos permitam perceber o desenvolvimento e a evoluo humana. Estes se dariam de forma desigual nas diversas sociedades histricas, o que acaba sendo positivo medida que nos permitiria encontrar ainda no sculo XIX, povos com organizaes distintas da sociedade moderna, que possibilitariam compreender o processo de organizao desta.

    Segundo Celso Castro16, E. B. Tylor propiciava, ainda no sculo XIX, pensar cultura ou civilizao, tomada em seu mais amplo sentido etnogrfico, como aquele todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem na condio de membro da sociedade17. Apropriado18 por Nina Rodrigues, o pensamento evolutivo de E. B. Tylor de que as diferentes sociedades histricas evoluiriam em velocidades diferentes, sendo, portanto, possvel localizar nas sociedades modernas sobrevivncias primitivas selvagens era possvel compreender como a Repblica brasileira recm-instaurada e suas noes de sociedade e cidadania contemplavam vises de mundo19 consideradas por Nina Rodrigues como atrasadas. Estando em sua em sua formao tanto o europeu civilizado quanto o africano brbaro e primitivo, o ideal de civilizao brasileira levaria muito tempo para se tornar homogneo. Restando apenas ao saber mdico identificar os entraves ao progresso.

    C. Reinwald et C, Libraires-diteurs, 1878; TYLOR, Edward B. La civilisation primitive Tome Second. Traduo de M. Ed. Barbier. Paris: C. Reinwald et C, Libraires-diteurs, 1878.

    16 CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Seleo, apresentao e reviso dos textos de Celso Castro. Traduo de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

    17 Segue o texto original: Culture or Civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society. TYLOR, Primitive culture, vol. I, p. 01.

    18 Pensar apropriao possibilitaria uma histria social das interpretaes remetida para as suas determinaes fundamentais (que so sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas prticas especficas que as produzem. CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Traduo de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

    19 O termo viso de mundo permite fazer uma tripla operao: atribuir um significado e uma posio social aos textos literrios e filosficos; compreender os parentescos existentes entre obras de forma e natureza opostas e; discriminar no interior de uma obra individual os textos essenciais, constitudos como um todo coerente, com o qual cada obra singular deve ser relacionada. CHARTIER, A histria cultural...

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    Estes so representados20 na obra de Nina Rodrigues em trs momentos, primeiro ao tratar das sobrevivncias totmicas, festas populares e folclore , em seguida ao tratar das sobrevivncias religiosas e por fim nas sobrevivncias criminais. Atentemos a cada uma delas.

    Sobrevivncias totmicas, festas populares e folclore

    Nina Rodrigues alerta que seria revelar ignorncia das condies sociais em que se constitui o regime totmico, se pretendssemos encontr-lo organizado entre os nossos negros. O autor refere-se ao modo como a escravido teria impossibilitado laos familiares segundo o parentesco sanguneo, obrigando o negro africano a buscar outras formas de reestabelecer estes laos.

    O totemismo , antes de tudo, nos povos selvagens, uma relao de parentesco sobre que descansa a organizao da sua vida civil. Supe necessariamente plena liberdade de direo e governo. Subordinados a governos constitudos como se acharam sempre os negros no Brasil, regidos por leis e costumes que lhe foram impostos, era material pra eles a impossibilidade de se disporem em tribos ou classes organizadas sob o regime dos totens.21

    Uma vez que o parentesco fora impossibilitado pela escravido, no se deveria concluir que a organizao social em totens no teria subsistido e pudesse se manifestar sob outras formas, a prpria organizao da hierarquia dos candombls poderia ser pensada como uma tentativa de reconstituio destes laos, por meio da famlia do santo22. Nina Rodrigues afirmou que os negros importados para o Brasil eram todos povos totmicos, e a simples introduo neste pas, que no modificou essencialmente a crena dos negros, no teria suprimido neles a disposio mental ao totemismo: Resta apenas buscar sob que formas e aspectos ela se disfara e se revela na nossa vida ordinria23. Nina Rodrigues acreditava que tais aspectos poderiam ser encontrados em elementos sobreviventes em nossas festas populares, atm-se, portanto, em descrever Rancho de Reis, que teria encarnado na Bahia a veia totmica dos negros.

    20 A opo pelo conceito de representao porque este nos permite articular trs modalidades de relao com o mundo social: o trabalho de classificao e de delimitao que produz as configuraes intelectuais mltiplas; as prticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, e as formas institucionalizadas e objetivadas graas s quais uns representantes marcam de forma visvel e perpetuada a existncia do grupo. CHARTIER, Roger. A histria cultural...

    21 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional; Braslia: Editora da UnB, 1982, p. 173.

    22 Essa reflexo se aproxima muito da realizada por Manolo Florentino e Jos Roberto Ges, onde os autores, ao tratar da escravido na Amrica Portuguesa partindo dos estudos de Marshall Sahlins sobre a vida tribal na frica, explicam que um plantel no era a principal traduo de um ns. Reunio forada e penosa de singularidades e dessemelhana, eis como melhor se poderia caracteriz-los. FLORENTINO, Manolo; GES, Jos Roberto. A paz das senzalas: famlias escravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro, c. 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997.

    23 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 174.

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    O rancho prima pela variedade de vestimentas vistosas, ouropis e lentejoulas, a sua msica o violo, a viola, o cavaquinho, o canz, o prato e s vezes uma flauta; cantam os seus pastores e pastoras por toda a rua, chulas prprias da ocasio, as personagens variam e vestem-se de diferentes cores conforme o bicho, planta ou mesmo objeto inanimado que os pastores levam Lapinha.24

    Nina Rodrigues afirmava no importar a distino que estabelecida por Frazer entre as danas totmicas, as danas de iniciao da puberdade e as danas de caa, pois em todas elas dominariam a mesma situao mental: a inteno propiciatria que denuncia a crena no parentesco, superioridade ou inteligncia do animal.

    natural que, nas suas revelaes entre ns, todos estes estados mentais se associem para a transmisso atvica aos descendentes dos selvagens e brbaros. Seria, de fato, erro manifesto acreditar que, nestas sobrevivncias, se possa encontrar a verdadeira instituio totmica e no, simplesmente, em festas populares brasileiras, manifestaes equivalentes do mesmo estado mental ancestral. ainda por esse motivo que no nos preocupa a discriminao das diversas variedades de totens, posto que j tenhamos mostrado algures que o tabu ou proibio religiosa de comer a carne de certos animais, imposta s confrarias de determinados orixs iorubanos, tem manifesta procedncia de um remoto totemismo religioso. H, na nossa populao inculta, prticas correntes que, originando-se evidentemente destas idias, j de muito perderam, todavia, a lembrana da sua conexo e s se conservam pela tradio local e o exemplo. Est neste caso o costume de usar dentes pontiagudos como de certos animais, os chamados dentes limados, mas que so, de fato, cortados a navalha ou a faca. Modernos estudos etnogrficos mostraram que este costume extremamente generalizado por todo o mundo, e se inspira claramente em uma idia totmica. A inteno deliberada de imitar assim certos animais ainda hoje conservada em alguns povos negros. Os manganijas, escreve Frazer, limam os dentes de modo a se parecerem com o gato ou o crocodilo.25

    Ao discutir as festas populares, Nina Rodrigues afirmaria que no s a inteno totmica que encontramos como legado africano nas nossas festas populares. O fenmeno psicolgico tomaria duas feies distintas: ou a festa brasileira seria a

    24 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 176.25 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 178-179.

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    ocasio de verdadeiras prticas africanas que os negros adicionam a ela como suas equivalentes; ou essas prticas j se revelariam incorporadas ou integradas s nossas festas como simples tradio ou lembrana. Rodrigues explica que na primeira hiptese, trata-se de manifestaes de uma crena, de uma prtica, costume ou festa africana, atualmente ainda viva na Bahia; na segunda, da tradio ou recordao de sentimentos que s existiram em atividade nos seus maiores. Haveria, tambm, casos intermedirios ou de transio: a usana africana participaria, ao mesmo tempo, da tradio e de uma instituio ainda viva a sua poca: seria o caso dos clubes carnavalescos africanos da Bahia. As festas carnavalescas da Bahia se reduziriam ultimamente, explica Rodrigues, quase que a clubes africanos organizados por alguns africanos, negros crioulos e mestios.

    Nuns, como a Embaixada Africana, a idia dominante dos negros mais inteligentes ou melhor adaptados, a celebrao de uma sobrevivncia, de uma tradio. Os personagens e o motivo so tomados aos povos cultos da frica, egpcios, abissnios, etc. Nos outros, se, da parte dos diretores, h por vezes a inteno de reviver tradies, o seu sucesso popular est em constiturem eles verdadeiras festas populares africanas. O tema a frica inculta que veio escravizada para o Brasil.26

    Fica ntida nesta reflexo de Nina Rodrigues, sua tentativa de perceber a forma pela qual a sobrevivncia operava na sociedade baiana, sendo apreendida e vivida de modo diverso pelas diferentes tribos.

    Sobrevivncias religiosas: religio, mitologia e culto

    Nina Rodrigues parte de uma comparao entre as religies africanas no Brasil e na frica a fim de demonstrar que, dentre as sobrevivncias africanas, as prticas religiosas foram as que melhor se teriam conservado no Brasil, ainda que no se mantivessem como eram na frica.

    Mas, mesmo ento, de prever, na influncia recproca que exerceram uns sobre os outros os diversos povos negros acidentalmente reunidos na Amrica pelo trfico, se havia de fazer sentir poderosa a ao absorvente das divindades de culto mais generalizado sobre as de culto mais restrito, a qual, nestes casos, se manifesta como lei fundamental da difuso religiosa.27

    26 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 180;27 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 214-215.

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    Afirma que no seria fcil dizer o que foram as prticas fetichistas28 e a religio dos africanos enquanto durou o trfico, e nem depois dele, quando se estancou a chegada de novos africanos. Seria, todavia, lcito dizer que as prticas religiosas podiam se manter relativamente puras e extremadas de influncias estranhas. De justaposio e fuso, o termo norteador agora passaria a ser difuso religiosa:

    Esta lei assim exemplificada e posta em evidncia por A. Ellis para os povos negros da Costa dos Escravos d a razo psicolgica da preponderncia adquirida no Brasil pela mitologia e culto dos jejes e iorubanos, a ponto de, absorvendo todos os outros, prevalecer este culto quase que como a nica forma ritual organizada dos nossos negros fetichistas. Este fato me havia impressionado e, consignando-o, em 1896 eu o atribu ao grande predomnio numrico dos nags sobre todos os outros africanos. Reconheo hoje que no era de todo justa a explicao, pois to numerosos como os nags foram os colonos de outras procedncias, sobretudo os angolas. A sugesto coletiva exemplificada na lei de Elis, servida pela melhor organizao do sacerdcio e pela difuso da lngua nag entre os negros africanos e crioulos, sem excluir a importncia do fator numrico, explica de modo completo o fenmeno observado, atestando em todo o caso a ascendncia espiritual ou cultural deste povo.29

    O termo difuso religiosa operaria no apenas uma predominncia numrica, mas uma predominncia intelectual. Se em O animismo fetichista dos negros bahianos poderia se indicar certo pessimismo em Nina Rodrigues por conta da prevalncia numrica das crenas fetichistas, em Os africanos no Brasil ele passa a defender que deveriam permanecer no Novo Mundo apenas as prticas mais complexas dos povos negros que, ao tempo do trfico, se achavam mais avanados na evoluo religiosa, essas prticas e cultos seriam foradas a impregnar-se da contribuio de todas as concepes religiosas mais acanhadas, as divindades ou fetiches individuais, as de tribos, cls ou aldeias, dos negros no convertidos. Traduzida em termos nitidamente evolucionistas e pautados na teoria do desenvolvimento de Tylor, Nina Rodrigues nos fornece o que entende ser a escala de medidas da evoluo religiosa no Brasil.

    este um espetculo ainda vivo, que, em sua estratificao psicolgica, o momento atual da evoluo religiosa no Brasil pe em notvel evidncia. Aqui na Bahia, melhor discrimina das que por todo alhures, a anlise psicolgica facilmente a decompe em zonas superpostas. Na

    28 SERAFIM, Vanda Fortuna. Nina Rodrigues e a formalidade das prticas catlicas no estudo comparado das religies (Bahia - Sculo XIX). Dilogos, Maring, vol. 17, 2013, p. 1033-1067.

    29 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 215.

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    primeira, a mais elevada mas extremamente tnue, est o monotesmo catlico, se por poucos compreendido, por menos ainda sentido e praticado. A segunda, espessa e larga, da idolatria e mitologia catlica dos santos profissionais, para empregar a frase de Taylor, abrange a massa da populao, a compreendendo brancos, mestios e negros mais inteligentes e cultos. Na terceira est, como sntese do animismo superior do negro, a mitologia jeje-iorubana, que a equivalncia dos orixs africanos com os santos catlicos, por ns largamente descrita e documentada, est derramando na converso crist dos negros crioulos. Vem finalmente o fetichismo estreito e inconvertido dos africanos das tribos mais atrasadas, dos ndios, dos negros crioulos e dos mestios do mesmo nvel intelectual. Naturalmente estas camadas espirituais no tm seno os limites que lhes impem a abstrao e a anlise e por toda parte se fundem e se penetram.30

    Nina Rodrigues explicaria ainda que, meio sculo aps a total extino do trfico, o fetichismo africano constitudo em culto ter-se-ia reduzido ao da mitologia jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, hausss, entre outros, que conservavam as suas divindades africanas, (assim como os negros crioulos, mulatos e caboclos fetichistas) possuam todos, moda dos nags, terreiros e candombls em que as suas divindades ou fetiches particulares recebiam, ao lado dos orixs iorubanos e dos santos catlicos, um culto externo mais ou menos copiado das prticas nags. Nina Rodrigues pondera que quando publicou os primeiros estudos sobre o animismo dos negros baianos, possua conhecimento insuficiente da mitologia iorubana na frica. Agora, porm poderia discutir a mitologia yorubana e apresentar seus estgios evolutivos. Dessa forma atribuda aos negros nags ou iorubanos uma verdadeira mitologia, j bem complexa, com divinizao dos elementos naturais e fenmenos meteorolgicos. Nesta ordem de idias, a concepo mais elevada, aquela em que mais alta se revela a sua capacidade de abstrao religiosa, a divinizao do firmamento ou abbada celeste31.

    Olorum, o Cu-Deus, satisfazendo dificilmente a condio de objeto concreto de culto, que reclama a atividade do sentimento religioso inferior do negro, apenas a representao da mais alta aptido da raa para generalizar. Concepo da minoria inteligente, a divindade no penetrou a massa popular, no lhe desperta, no lhe fala ao sentimento religioso, e Olorum representa assim uma

    30 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 215.31 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 217.

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    divindade singular que no tem culto organizado, que no possui sacerdcio, que no tem adoradores.32

    Impressionado com a confuso que os missionrios j tm feito de Nyankupan, Nyant, Maw e Olorum, com o Jeov dos cristos, no s traduzindo esses nomes por Deus como vendo neles uma sobrevivncia da revelao divina do Paraso, o Coronel Ellis empenhou-se em mostrar que Olorum no passava de uma personificao do firmamento, com funes puramente metericas, um verdadeiro nature-god a quem ele nega todo e qualquer sentido, noo ou ideia de um ser onipotente. Essa mesma premissa pode ser encontrada nos escritos de E. B. Tylor. Nina Rodrigues, todavia, ainda guiado pela pretenso patolgica em explicar as religies africanas, simplesmente a associou a ausncia de culto Olorum, em O animismo fetichista dos negros bahianos, ignorncia por parte dos africanos.

    Em Os africanos no Brasil busca justificar que a divinizao mtica do Firmamento, divindade abstrata, sem interferncia nas naes humanas, no exigindo culto nem possuindo adoradores, habilita sem dvida os nags a encontrar nas suas crenas uma concepo similar a que referir a do Senhor Onipresente e Onipotente da catequese crist dos missionrios. No seria impossvel, por isso, que os prprios negros induzissem os missionrios a um erro a que j os predispunha a natural tendncia do seu esprito e educao.

    Mas isto no justifica que, reduzido o fenmeno mental s condies do seu determinismo bio-sociolgico, se pretenda diminuir-lhe o valor, desconhecendo o seu alcance como sinal de incontestvel progresso na evoluo do pensamento e do sentimento religioso dos nags. Precisamente necessrio ser um crente como os missionrios para desconhecer a escala em que se prendem e concatenam desde os mais baixos e humildes elos da concepo religiosa at os mais elevados e grandiosos.33

    Buscando justificar sua imposio autoritria, Nina Rodrigues acusa os missionrios que desconheceriam a escala em que se prendem e concatenam os elos da concepo religiosa dos povos inferiores aos superiores, deixando claro sua apropriao da ideia de Tylor da filosofia animista enquanto elo da evoluo humana, que permitiria encontrar similitudes em povos distintos. Nina Rodrigues explicaria ainda que para os nags, Olorum teria descansado e dividido as tarefas com os outros orixs:

    Nos nags, no s as funes do raio e do trovo cabem a um orix poderoso e antropomorfo, Xang, como outras funes de Olorum esto sendo distribu das por divindades multiplas, reservando-se apenas para ele a

    32 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 217.33 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 217.

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    idia vaga de uma entidade superior e quase inacessvel ao tratamento comum dos mortais. em todo o caso a essa divindade que se atribui, nos nags, a origem das coisas, dos homens e dos orixs, que imediatamente os atendem. E se pressente assim a discriminao entre um princpio organizador e supremo e divindades subalternas, imiscudas com a gesto dos negcios humanos e a eles propostas.34

    Essa sistematizao importante para demonstrar que, embora operem os mesmos princpios, o Deus catlico no poderia ser posto no mesmo patamar de Olorum, corroborando a ideia de Tylor acerca de uma divindade suprema caracterizada como se fosse uma alma do mundo, um formador, animador, chefe do universo; adentrando assim, nas regies da teologia transcendental, na qual as almas humanas, os subordinados espritos da natureza, e os grandes deuses politestas da natureza, carregariam funes especiais definidas que realizariam para algum personagem definido com uma mistura de funo dentro do infinito e universal pensamento da divindade suprema. Rodrigues justifica que o negro tende ao tesmo, como em seu entendimento teria dito com razo E. B. Tylor, e completa que tenderia tambm ao monotesmo. Isto seria observvel na tendncia da mitologia nag elevao e ao aperfeioamento. No entanto ainda no era monotesta, estaria a caminho de ser, como demonstraria o que chamou de, a valiosa corroborao prestada a este conceito a concepo de Obatal e Odudua.

    Obatal por excelncia o rei dos orixs, pelo menos o mais influente deles. ainda o Cu-Deus, mas o Cu-Deus a que esto confiadas as interferncias imediatas nas aes humanas. Se nos desdobramentos, se nas simplificaes da concepo de Olorum, tocou a Xang manejar o raio e o trovo, a Obatal coube promover a fecundidade. Obatal rigorosamente uma divindade ctoniana. A crena de que o Obatal e Odudua constituem uma divindade andrgina no pode ser to restrita como o supe Ellis. Podemos afirmar que a concepo corrente entre os nags brasileiros que indiferentemente se servem dos dois nomes para designar o mesmo orix. A representao desta divindade, j por um ser humano provido de brao e perna e terminando em cauda por uma esfera; j por duas meias cabaas cortadas em forma de prato ou de cuia rasa, e superpostas uma outra para simbolizar o Cu, Obatal, e a Terra, Odudua, tocando-se no horizonte; j pela justaposio dos dois rgos da gerao em funcionamento, so outras tantas provas desta interpretao. E todas estas representaes que Ellis

    34 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 218.

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    mencionava na Costa dos Escravos, eu as encontro aqui na Bahia, onde de ordinrio as cuias ou pratos de cabaa pintadas de branco so substitudas por uma tigela de loua branca, de tampa, contendo, como descrevi, limo da Costa, vindo da frica, cawries e um arco de metal.35

    Os deuses aqui j estariam se antropomorfizando para, a partir disto, se tornarem concepes abstratas. Nina Rodrigues chega a argumentar que achava estranho que Ellis que teria to bem estudado o desenvolvimento da mitologia iorubana, no tivesse percebido a brilhante confirmao que ela d, neste ponto, teoria geral da evoluo ctoniana. Para Rodrigues seria evidente que houve uma poca na mitologia iorubana correspondente quela em que se achariam agora os tshis em que a fecundidade foi o predicado de um orix de funes complexas e pouco discriminadas, como Olorum, que era ao mesmo tempo o cu, a terra, o trovo, o raio, etc. Rodrigues explicaria que com o desenvolvimento progressivo desta concepo mitolgica, destacaram-se de O1orum: Xang, a quem coube a direo do raio e do trovo, e Odudua, a Terra, a quem coube dirigir as funes da fecundao e reproduo. Na evoluo do ctonismo iorubano este seria o primeiro passo, o perodo da virgem-me, em que a reproduo se daria sem a interveno de sexos diferentes. Odudua , pois, um nome a mais que se inscreveria na lista, j to numerosa, das virgens-mes de todos os grandes credos religiosos. interessante como, na medida em que Nina Rodrigues consegue traar paralelos da crena iorubana com o monotesmo cristo, estes se tornam para ele elementos empricos que atestariam a ascenso iorubana na escala evolutiva da religio na Bahia, por ele mesmo traada.

    Melhor instrudos das condies orgnicas da funo reprodutora, os nags sentiriam mais tarde a necessidade da interveno do elemento fecundador ou masculino e naturalmente, explicava Nina Rodrigues, se voltaram para o Cu, que, em dignidade de elemento natural, seria o equivalente e oposto a Terra. Mas Olorum era uma divindade que cada vez se afastava mais da interveno nas coisas terrenas, aparecendo ento Obatal, um Cu-Deus ainda, mas Cu-Deus mais antropomrfico, a quem Olorum, recolhendo-se inao e ao repouso suprema aspirao dos negros confiava misso de dirigir o mundo. Percebe-se que ao discutir o cu-deus, Nina Rodrigues est recorrendo s discusses de Tylor acerca das divindades superiores do animismo, estgio no qual as caractersticas humanas so aplicadas aos deuses, criando-se uma hierarquia espiritual. O politesmo estaria no curso de desenvolvimento da cultura inferior para a superior, e, em virtude disto, se tornaria necessrio evidenciar os princpios da sua investigao, classificao das deidades de acordo com concepes centrais do seu significado e funo. E exatamente isto que Rodrigues buscou fazer.

    Obatal, explica Nina Rodrigues, veio partilhar com Odudua a funo da reproduo e no se limitou a fazer de barro amassado o primeiro casal humano, mas preside formao da criana no tero materno. O casamento do Cu, Obatal, com a Terra, Odudua, devia forosamente trazer a concepo andrgina em que se

    35 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 219.

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    acham os nags, pelos menos os que vieram para o Brasil. o segundo estgio do ctonismo iorubano, o perodo do hermafroditismo, Odudua-Obatal pode figurar na lista no menos longa dos deuses andrginos, dos Baal-Berite Astart, Afrodite, etc. Mas j se poderia afirmar que o ctonismo iorubano marchava francamente para o terceiro perodo, o heterismo. Obatal iria se tornando apenas o esposo de Odudua e estas divindades se cindem, se apartam, se individualizam. A Obatal continua a pertencer capacidade fecundante, mas somente na qualidade de elemento masculino ou flico; Odudua toca o papel feminino e ela preside ao amor. Daqui por diante, conclui Rodrigues, Odudua seria Vnus. E assim se deveriam entender algumas lendas em que se celebram as suas aventuras amorosas.

    Para Nina Rodrigues, o exposto revelaria a incontestvel superioridade em que a concepo religiosa dos negros iorubanos se encontrava em relao s demais tribos africanas e aos grupos indgenas presentes no Brasil. A concepo religiosa dos nags seria abordada por Rodrigues como mais elevada.

    No , todavia, somente nas concepes de Olorum e Obatal-Odudua, que se revela, da parte dos nags, esta tendncia a uma concepo religiosa mais elevada. So manifestos os seus esforos no sentido de substituir seus antigos fetiches, as suas divindades isoladas e independentes por um sistema teognico coordenado, em que tudo se encadeie e subordine, numa elaborao inconsciente de concepo religiosa unitria e mais generalizada. No mais complexo dos seus mitos, a lenda enfeixa numa explicao unitria, que no inferior dos estdios mentais correspondentes de raas mais cultas, a origem de quase todas as divindades secundrias.36

    Interessante que o critrio desta superioridade a capacidade de formulao de um deus abstrato e longnquo, tal como entendia o deus catlico. Todavia, apesar de inseridos em territrio brasileiro, as narrativas mitolgicas servem para ilustrar como os africanos mantiveram suas sobrevivncias culturais, no conseguindo se adaptar facilmente as noes dos europeus que colonizaram o pas. Rodrigues assume que, apesar da violncia dos senhores, as prticas religiosas dos negros persistiriam no Brasil. E elas se mostrariam cada vez mais se alastradas e se difundindo entre populao de cor, do Estado da Bahia pelo menos, sobrevivendo apesar da violncia dos senhores e das tentativas de converso catlicas, que eram antes de tudo, atos violentos, arbitrrios e ilegais. Rodrigues indicava que o intuito de seu estudo era demonstrar que, corroborado pelos estudos realizados na frica, o culto jeje-nag tratar-se-ia de uma verdadeira religio37 na qual o perodo puramente fetichista estava quase transposto, tocando s razes do franco politesmo. Dessa forma Os nossos candombls as prticas religiosas dos nossos negros podem, pois, ser capitulados de um erro, do ponto de vista teolgico e

    36 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 222.37 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 238.

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    como tais reclamar a converso dos seus adeptos. Absolutamente elas no so um crime, e no justificam as agresses brutais da polcia, de que so vtimas38.

    A sobrevivncia psquica na criminalidade dos negros no Brasil

    Ao se questionar acerca do valor social dos negros africanos e seus descendentes, Nina Rodrigues indagava em que os africanos e seus descendentes influem na formao social do povo brasileiro. Por entender a inferioridade da raa negra como algo evidente, o ponto fraco da civilizao negra residiria na morosidade e a nica forma mais vivel de integrao negra com a civilizao brasileira estaria na mestiagem, porm, por meio desta os brancos receberiam e incorporariam em sua formao tnica doses colossais de sangue negro.

    Rodrigues apontava que no era a realidade da inferioridade social dos negros que estava em discusso, pois ningum haveria lembrado ainda de contest-la. A questo seria sobre os que reputam essa inferioridade como inerente constituio orgnica da raa e, por isso, definitiva e irreparvel, com aqueles que a consideram transitria e remedivel. Sobre os que a veem como inerente afirma

    Para os primeiros, a constituio orgnica do negro modelada pelo habitat fsico e moral em que se desenvolveu, no comporta uma adaptao civilizao das raas superiores, produtos de meio fsico e cultural diferente. Tratar-se-ia mesmo de uma incapacidade orgnica ou morfolgica. Para alguns autores, e Keane esposa esta explicao, seria a ossificao precoce das suturas cranianas que, obstando o desenvolvimento d crebro, se tornaria responsvel por aquela conseqncia. E a permanncia irreparvel deste vcio a se est a atestar na incapacidade revelada pelos negros, em todo o decurso do perodo histrico, no s para assimilar a civilizao dos diversos povos com que estiveram em contato, como ainda para criar cultura prpria.39

    Para Rodrigues, essas razes so pouco valiosas e procedentes. O autor explica que a ossificao precoce das suturas cranianas, excludo o caso patolgico aqui inadmissvel, h de ser um produto da evoluo morfolgica, proporcional e paralela evoluo funcional, de que um caso apenas o desenvolvimento fsico ou mental. Impossvel, pois, tornar uma responsvel pela outra. A ossificao ser precoce, mas no prematura, pois ocorre em tempo e de harmonia com o reduzido desenvolvimento mental de que os povos negros so dotados.

    Recentemente a experincia clnica desfez uma iluso fundada em erro anlogo, por um momento triunfante em

    38 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 246.39 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 262.

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    neuropatologia. A suspeita ou a crena de que a ossificao precoce das suturas cranianas fosse a causa do atraso no desenvolvimento mental dos idiotas e imbecis, em virtude da insuficincia do espao oferecido ao desenvolvimento cerebral, acham o seu corolrio prtico no preconcio da cranioctomia, interveno cirrgica destinada a remediar aquele defeito. Mas a experincia frustrou as generosas esperanas depostas nesta interveno, demonstrando, como era de esperar, que atraso cerebral e precocidade craniana se subordinavam ao mesmo vcio degenerativo, tinham a sua causa comum na mesma anomalia evolutiva, e no se ligavam entre si por laos diretos de interdependncia gentica.40

    Rodrigues enfatizaria a necessidade de se considerar que seria demasiadamente escasso e curto o espao de perodo histrico para nele se fundar a afirmao categrica de uma impossibilidade futura de civilizao do negro. A explicao evolutiva ensinaria que se devem contar as aquisies lentas e progressivas do aperfeioamento humano, assim, no seria argumentando com o que nos ensina o curto perodo do conhecimento histrico dos povos, que se pode lavrar a condenao do negro a uma estagnao eterna na selvageria. No entanto, Rodrigues argumentaria que seriam tambm exageradas as pretenses otimistas. A alegao de que por largo prazo teria vivido a raa branca, a mais culta das sees do gnero humano, em condies no menos precrias de atraso e barbaria; o fato de que muitos povos negros j andam bem prximos do que foram os brancos no limiar do perodo histrico; mais ainda, a crena de que os povos negros mais cultos repetem na frica a fase da organizao poltica medieval das modernas naes europeias, no justificariam as esperanas de que os negros possam herdar a civilizao europeia e, menos ainda, possam atingir a maioridade social no convvio dos povos cultos.

    Sendo assim, Rodrigues explicaria que no a concepo terica, toda especulativa e no demonstrada, de uma incapacidade absoluta de cultura dos negros, que mereceria preocupar povos, como o brasileiro, que, com a escravido africana, receberam e incorporaram em sua formao tnica doses colossais de sangue negro. O que deveria importar ao Brasil seria determinar o quanto de inferioridade lhe advm da dificuldade de civilizar-se por parte da populao negra que possui e se, de todo, fica essa inferioridade compensada pela mestiagem, tida com o processo natural pelo qual os negros estariam integrando o povo brasileiro, para a grande massa da sua populao de cor. Seria necessrio, portanto, identificar: a capacidade cultural dos negros brasileiros; os meios de promov-la ou compens-la; o valor sociolgico e social do mestio rio-africano; a necessidade do seu concurso para a aclimatao dos brancos na zona intertropical; a convenincia de dilu-los ou compens-los por um excedente de populao branca, que assumiria a direo do pas.

    40 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 263.

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    Rodrigues argumenta que, por mais instrutivo que seja o conhecimento desta desigualdade na capacidade evolutiva e civilizadora de negros e brancos, ela no esgota hoje a questo dos negros no Brasil.

    Dada a sua absoro na populao compsita do pas, e por outro lado dadas as diferenas de capacidade e graus de cultura entre os povos negros importados, est claro que a influncia por eles exercida sobre o povo americano que ajudaram a formar ser tanto mais nociva quanto mais inferior e degradado tiver sido o elemento africano introduzido pelo trfico. Ora, os nossos estudos demonstram que, ao contrrio do que se supe geralmente, os escravos negros introduzidos no Brasil no pertenciam exclusivamente aos povos africanos mais degradados, brutais ou selvagens. Aqui introduziu o trfico poucos negros dos mais adiantados e mais do que isso mestios camitas convertidos ao islamismo e provenientes de estados africanos brbaros sim, porm dos mais adiantados.41

    A expectativa positiva de Nina Rodrigues seria ento baseada em sua percepo de que dentre os povos africanos trazidos ao Brasil para serem escravizados, eles pertenceriam em sua maioria aos povos num estgio superior, biolgica e intelectualmente, o que torna compreensvel sua preocupao em demonstrar porque os sudaneses, tidos como negros superiores; teriam sido mais influentes que os bantos, tidos como inferiores.

    A partir dessas discusses sobre o valor social do negro, Rodrigues encerraria sua reflexo analisando o que chamou de expresses de criminalidade na mentalidade do negro. Ele traria o olhar etnolgico para esclarecer questes tidas distintamente como jurdicas ao explicitar que a criminalidade do negro poderia ser expressa por duas vias: o atavismo ou a sobrevivncia.

    O atavismo um fenmeno mais orgnico, do domnio da acumulao hereditria, que pressupe uma descontinuidade na transmisso, pela herana, de certas qualidades dos antepassados, saltando uma ou algumas geraes. A sobrevivncia um fenmeno antes do domnio social, e se distingue do primeiro pela continuidade que ele pressupe: representa os resqucios de temperamentos ou qualidades morais, que se acham ou se devem supor em via de extino gradual, mas que continuam a viver ao lado, ou associados aos novos hbitos, s novas aquisies morais ou intelectuais.42

    41 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 268.42 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 272.

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    Rodrigues considerava que a reverso atvica seria uma modalidade da degenerao psquica, da anormalidade orgnica que, quando corporizada na inadaptao do indivduo ordem social adotada pela gerao a que ele pertenceria, ou, servindo-se de uma expresso de Tobias Barreto43, quando se corporizou na inadaptao s condies existenciais de uma sociedade, que a sua, constitui a criminalidade normal ou ordinria. A sobrevivncia criminal seria, ao contrrio, um caso especial de criminalidade, aquele que se poderia chamar de criminalidade tnica, resultante da coexistncia, numa mesma sociedade, de povos ou raas em fases diversas de evoluo moral e jurdica.

    A contribuio dos negros a esta espcie de criminalidade seria das mais elevadas. Na sua forma, esses atos procederiam, uns do estgio da sua evoluo jurdica, e outros do das suas crenas religiosas. A persistncia das ideias do talio (sofrer pela parte que pecou) explicaria um grande nmero de crimes da populao negra e mestia. Rodrigues apresentaria quatro exemplos de casos: o primeiro, o de um menino a quem a sua av meteu ambas as mos em uma panela dgua fervendo, para puni-lo de haver furtado comida de uma marmita colocada no fogo; o segundo, da menina a quem a amante de seu pai meteu igualmente as mos em gua fervendo, para puni-la de ter roubado, sendo que a queimadura causou a morte da criana; o terceiro refere-se mo de um negro arrancada pelo mesmo motivo. E o quarto, seria o de uma criancinha de dois anos, cuja av, africana, lhe aplicou sobre os lbios uma colher de metal muito quente, a fim de puni-la, pela queimadura da boca, da indiscrio infantil de ter dito a um cobrador, de quem se ocultava a velha, que esta se achava em casa. Todas estas prticas que deveriam, para Nina Rodrigues, ter sido historicamente abandonadas, persistiam na cultura baiana e consistiam em formas de sobrevivncias.

    Consideraes finais

    Nina Rodrigues buscou defender a existncia de cdigos penais separados para negros e brancos em As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil44 e buscou respaldo na alienao mental para tal segregao em As coletividades anormais45 e O alienado no direito civil brasileira46; em Animismo fetichista dos negros bahianos, transitou entre a psiquiatria e sociologia para demonstrar, por meio do exemplo especfico da religio, como a raa negra estaria inserida em um estgio diferente do desenvolvimento humano, para por fim, em Os africanos no Brasil, esforar-se em demonstrar como os negros estariam abrigados e protegidos dentro da legislao brasileiras desde que respeitadas peculiaridade suas prticas. Essas ideias certamente abrem um leque de possibilidades s quais no se assumir a pretenso de elucidar, mas de destacar as mudanas histricas que a obra de

    43 Jurista brasileiro e integrante da Escola de Recife a quem Nina Rodrigues j havia lanado crticas sobre a concepo de livre-arbtrio em As raas Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil.

    44 RODRIGUES, Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 4. ed. Salvador: Livraria Progresso, 1957.

    45 RODRIGUES, Nina. As collectividades anormaes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1939.46 RODRIGUES, Nina. O alienado no Direito Civil brasileiro. Bahia: Prudencio de Carvalho Editor,

    1901.

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    Nina Rodrigues contempla acerca do modo como o negro foi pensado. Da primeira ultima obra, acima indicadas em ordem cronolgica de produo, evidencia-se a modificao em sua postura intelectual para com a presena dos africanos no Brasil.

    Utilizando-se do texto da Constituio de 1891 e afirmando ser este claro e determinante, Nina Rodrigues argumentaria, em Os africanos no Brasil, que a todos os habitantes deste pas, ela garantiria plena liberdade de conscincia e de culto. O Cdigo Penal da Repblica qualificaria os crimes de violncia contra a liberdade de cultos lhes atribuiria penalidades. Rodrigues indaga, portanto, em que direito se baseavam a constante interveno da polcia na abusiva violao dos templos ou terreiros africanos, na destruio dos seus dolos e imagens, na priso, sem formalidades legais, dos pais-de-terreiro e diretores de candombls?

    Rodrigues responderia que se basearia na estratificao das sobrevivncias morais africanas. Nestas se descobriria de um modo positivo e em estado de admirvel pureza esses atos, que no poderiam deixar de revoltar os espritos educados no sentimento da justia, da liberdade de conscincia e do respeito dignidade humana. E que mesmo nas suas formas mais rudimentares e humildes, revelariam apenas um estado rudimentar do senso jurdico, tomado diretamente s raas inferiores que colonizaram o Brasil, cujo sangue correria ainda quente e abundante nas veias de muitos dos executores de tais violncias.

    Delas, o mvel imediato o estpido terror do feitio e das prticas cabalsticas; mas a forma do atentado, essa nasce da incapacidade em que est a nossa polcia judiciria de sentir o respeito aos direitos individuais e do seu menosprezo inconsciente pelas formas reguladoras do processo que, nos povos civilizados, despoja a interveno da lei, dos caracteres de unia violncia pessoal dos seus executores, como ela ainda se conserva nas gentes incultas. Em tais casos, pelos mveis a que obedece como pela forma por que procede, a ao da nossa polcia no faz mais do que reproduzir com todo o rigor a prepotncia cega, apaixonada e violenta dos pequenos potentados e rgulos africanos.47

    notvel aqui toda a reelaborao discursiva de Nina Rodrigues em relao s posturas defendidas anteriormente. Por meio de Tylor, ele escancara o que o sculo XIX buscava esconder: o Brasil um pas mestio de corpo e de mente. Por meio dos estgios apresentados por Tylor, ele define, que nos nveis superiores estariam aqueles capazes de compreender seu raciocnio, legitimado enquanto um discurso mdico-cientfico, e que nos nveis inferiores estariam os africanos, aos quais por conta das limitaes biolgicas e mentais eram quase inacessveis tais compreenses; e no estgio intermedirio estariam aqueles que apesar de terem tido acesso s possibilidades do meio da raa e da educao, ainda no teriam se

    47 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 247.

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    livrado das supersties primitivas, do medo do feitio, ou seja, tanto legisladores quanto policiais e jornalista baianos, que para combater as prticas frico-baianas, desceriam ao nvel intelectuais destas.

    A falta de compostura de autoridades, incapazes de sentir que esto rebaixando o decoro e a majestade da lei, em cujo nome devem agir, expondo a respeitabilidade do cargo, de envolta com as pessoas sagradas dos prisioneiros, ao escrnio pblico de uma procisso carnavalesca, mais deprimente dos nossos foros de povo civilizado do que as prticas religiosas dos pobres negros, apenas demonstra para Nina Rodrigues, que elas no fazem mais do que copiar o modo de proceder dos rgulos e chefes africanos. Isso deveria, segundo o autor, a uma impulso atvica.48

    No crculo das suas relaes pessoais, Rodrigues afirmaria ter buscado uma justificativa da legalidade de tais violncias. O autor alegaria tambm ter apurado o mero desprezo para com a raa negra, a qual ironicamente no se poderia qualificar, em boa inteno, de inferior, sem provocar protestos inflamados; e mais do que isso a falta de senso jurdico das classes dirigentes. evidente a tentativa de distino feita por Nina Rodrigues entre racismo cientfico e preconceito racial.

    So os candombls focos e ocasies de devassides, alegam. Alegao idntica se tem feito contra os conventos, seminrios, colgios e outras instituies anlogas de carter religioso. Mas, se, mesmo entre ns, quando verdadeiras, essas alegaes deram lugar a um procedimento criminal em regra, jamais constituram motivo para agresses brutais, destruidores e sem forma de processo. Concedamos que haja devassides nos candombls. Esses atos nem constituem todo o culto, nem mesmo a essncia do culto jeje-nag. A misso da polcia no podia ser, pois, outra seno a de vigiar para preveni-los ou para promover-lhes a punio quando chegassem a realizar-se. Mas como que a polcia, estando todos os dias a suprimir templos, destruir dolos e altares, a prender os diretores de candombl, no chegou at hoje a promover a punio legal de um s desses crimes, categorizando-os e aplicando-lhes as penas do Cdigo?49

    Para as alegaes de que os feiticeiros dos candombls seriam verdadeiros charlates explorando a credulidade pblica e exercendo ilegalmente a medicina, Rodrigues argumentaria que deste item apenas seria verdadeiro o exerccio ilegal

    48 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 249.49 RODRIGUES, Os africanos no Brasil, p. 251.

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    da medicina, que de fato, seria um crime segundo a legislao brasileira. Porm, a clientela, que frequentava os terreiros e buscava auxlio com os feiticeiros no seria constituda de menores e mentecaptos50, nem os feiticeiros vo arranc-la s suas casas. Seria assim uma inpcia da lei pretender proteger quem cientemente se deixa explorar; mais do que isso, a feitiaria assim organizada pressupe a mesma participao, na responsabilidade social, dos feiticeiros e da sua clientela. A alegao poderia ser mesmo mais completa, pois o art. 157 do Cdigo Penal indicava: Praticar o espiritismo, a magia e sortilgios, usar de talism e cartomancia para despertar sentimentos de dio ou amor, inculcar cura de molstias curveis ou incurveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pblica: Penas de priso celular por um a seis meses e multa de 100$000 a 500$000. Rodrigues entendia essa lei como um retrocesso, pois no existia no Cdigo de 1830. Ela no seria mais do que a traduo na lei do estado de esprito que, partindo das classes inferiores da nossa populao, vem conquistando para as suas preocupaes supersticiosas mesmo as classes dirigentes e mais cultas. Ou seja, seria sobrevivncia de um estgio primitivo que cr no feitio.

    Mesmo esse anacronismo do Cdigo, protesta Nina Rodrigues, em nada justificaria a postura da polcia baiana. A pena prescrita pelo Cdigo de priso celular e multa naturalmente aplicada com as formas de um processo regular, e no a violao do domiclio, a destruio dos dolos e altares, a priso arbitrria do cidado sob a alegao de que os candombls seriam prticas brbaras e religiosas que deprimiriam os costumes e envergonhariam a civilizao. E nisto estaria uma das mais fortes razes para ser sancionada e concedida pelos espritos melhor educados a essas violncias e arbitrariedades policiais. Rodrigues ironiza que nisto se revelaria claramente apregoada igualdade de direitos e das qualidades dos negros existente no Brasil.

    Finalizando, compreender o uso do termo sobrevivncia feito por Nina Rodrigues, nos auxilia a compreender os dilogos culturais e antropolgicos travados pelos saberes mdicos no final do sculo XIX e como estes no se constituam a revelia dos diversos interesses polticos, legais, raciais, sociais e das discusses de cidadania e secularidade operantes no incio do contexto republicano. Implica, ainda, reconhecer que o saber cientfico, mdico e intelectual uma construo histrica carregada das tenses e embates sociais de sua poca, seja pelas problemticas abordadas ou pelos indicativos criados. O saber mdico constitui-se, portanto, ao mesmo tempo como produto/produtor da realidade social qual pertence e representa.

    50 Embora tenha anteriormente defendido que o fossem.

  • 102 sculum - REVISTA DE HISTRIA [31]; Joo Pessoa, jul./dez. 2014.

    RESUMO

    A fim de pensar as relaes entre saber mdico e saber antropolgico, na Bahia, do final do sculo XIX, o presente artigo busca compreender o pensamento mdico de Raimundo Nina Rodrigues, tomando como fonte histrica a obra Os africanos no Brasil (1982). Atenta-se, especificamente, a forma como Nina Rodrigues se apropria do conceito de sobrevivncia de E. B. Tylor para tecer uma anlise da realidade social e cultural do Brasil, investigando trs formas de sua manifestao: as festas populares, as crenas religiosas e o crime. Elementos estes entendidos como esferas problemticas civilizao brasileira, e categorizados a partir do conceito de sobrevivncia.

    Palavras Chave: Nina Rodrigues; Medicina; Antropologia.

    Artigo recebido em 14 set. 2014.Aprovado em 22 nov. 2014.

    ABSTRACT

    In order to think about the relationships between medical knowledge and anthropological knowledge, in Bahia, in the late Nineteenth Century, this article seeks to understand the doctor thought of Raimundo Nina Rodrigues, using as historical source, Os africanos no Brasil (1982). It is careful, especially, how Nina Rodrigues has appropriates the concept of survival from E. B. Tylor, to study social and cultural reality of Brazil, investigating three forms of their manifestation: folk festivals, religious beliefs and crime. These elements perceived as problematic spheres of Brazilian civilization, and categorized based on the concept of survival.

    Keywords: Nina Rodrigues; Medicine; Anthropology.