coutinho - sonhos, angústia e alienação

10
53 Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009 Sonhos, angústia e alienação 1 Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho Resumo Embora Freud tenha inicialmente reconhecido em “Interpretação dos sonhos” que os sonhos de angústia pareciam contradizer sua formulação essencial de serem os sonhos realizações de dese- jos, esforçou-se teoricamente ao longo da obra em adequá-los à sua genial proposição fundamen- tal sem, contudo, satisfazer-se com suas próprias explicações e terminando por caracterizá-los como uma falha na produção onírica e como “um problema da angústia e não um problema dos sonhos”. O caráter enigmático dos sonhos de angústia tem, desde então, desafiado a Psicanálise a dar-lhes uma direção interpretativa que contemple simultaneamente a teoria dos sonhos e o conceito de angústia. Partindo das operações de alienação e separação que alicerçam a constitui- ção do sujeito, tal como Lacan propôs, apresenta-se neste trabalho a tese de que o sonho de angústia é, no sono, um equivalente clínico da experiência de desrealização na vigília. Palavras-chave Sonhos, Angústia, Sonho de angústia, Operação de alienação-separação, Constituição do sujei- to, Desejo, Aniquilamento, Desrealização. Ao longe, ao luar, No rio de uma vela, Serena a passar, Que será que me revela? Não sei, mas meu ser Tornou-se-me estranho E eu sonho sem ver Os sonhos que tenho. Que angústia me enlaça? Que amor não se explica? É a vela que passa Na noite que fica. (PESSOA, 1965:143) Há uma inquietante semelhança en- tre a bucólica paisagem do tranquilo mar azul e a serena fisionomia de alguém que dorme profundamente. Em ambas as situ- ações, por baixo daquela superfície sua- vemente ondulada ou no íntimo do sonho que este rosto não revela, podem existir perigos inimagináveis que apavoram o 1. Trabalho apresentado na XXVI Jornada do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, em outubro de 2008.

Upload: lalipredebon

Post on 10-Dec-2015

10 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

TRANSCRIPT

Page 1: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

53Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

Sonhos, angústia e alienação

Sonhos,angústia e alienação1

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

ResumoEmbora Freud tenha inicialmente reconhecido em “Interpretação dos sonhos” que os sonhos deangústia pareciam contradizer sua formulação essencial de serem os sonhos realizações de dese-jos, esforçou-se teoricamente ao longo da obra em adequá-los à sua genial proposição fundamen-tal sem, contudo, satisfazer-se com suas próprias explicações e terminando por caracterizá-loscomo uma falha na produção onírica e como “um problema da angústia e não um problema dossonhos”. O caráter enigmático dos sonhos de angústia tem, desde então, desafiado a Psicanálisea dar-lhes uma direção interpretativa que contemple simultaneamente a teoria dos sonhos e oconceito de angústia. Partindo das operações de alienação e separação que alicerçam a constitui-ção do sujeito, tal como Lacan propôs, apresenta-se neste trabalho a tese de que o sonho deangústia é, no sono, um equivalente clínico da experiência de desrealização na vigília.

Palavras-chaveSonhos, Angústia, Sonho de angústia, Operação de alienação-separação, Constituição do sujei-to, Desejo, Aniquilamento, Desrealização.

Ao longe, ao luar,No rio de uma vela,

Serena a passar,Que será que me revela?

Não sei, mas meu serTornou-se-me estranho

E eu sonho sem verOs sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?Que amor não se explica?

É a vela que passaNa noite que fica.(PESSOA, 1965:143)

Há uma inquietante semelhança en-tre a bucólica paisagem do tranquilo marazul e a serena fisionomia de alguém quedorme profundamente. Em ambas as situ-

ações, por baixo daquela superfície sua-vemente ondulada ou no íntimo do sonhoque este rosto não revela, podem existirperigos inimagináveis que apavoram o

1. Trabalho apresentado na XXVI Jornada do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, emoutubro de 2008.

Page 2: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

54 Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

mergulhador ou despertam subitamente osonhador. Este súbito despertar é o quecaracteriza o sonho de angústia e descri-ções desta vivência fazem parte da histó-ria da Psicanálise, desde “A Interpretaçãodos sonhos” (FREUD, 1900) até os famo-sos casos clínicos de Freud. Dentre estes,é no “Homem dos lobos” (FREUD, 1918)que esta vivência tem um papel central,já que todo o caso é construído a partir dadescrição de um sonho de angústia doanalisando, o qual foi retratado em umatela pelo próprio paciente, hoje expostano museu de Londres.

A angústia sempre foi um tema am-plamente abordado pelas diversas expres-sões artísticas. Há uma famosa pintura deEduard Munch intitulada “O grito”, co-mumente considerada a imagem da angús-tia, que retrata em primeiro plano uma fi-gura humana gritando em desespero. Con-firmando o postulado freudiano de que oartista antecipa o psicanalista, entretan-to, o mesmo pintor deu o título de “An-gústia” a outra tela na qual todas as pesso-as parecem estar em absoluto silêncio. Écom esta imagem ou com a de um gritocontido e sufocado, seja em pintura ou emescultura, que a angústia é invariavelmen-te retratada pelos artistas. O mesmo as-pecto é, obviamente, expresso em pala-vras, como:

Tenho mais almas que uma.Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia indiferente a todos.Faço-os calar...

(PESSOA, 1965)

Mas talvez uma das formas mais con-cisas e precisas de, poeticamente, descre-ver este sentimento é a de Ana CristinaCésar quando diz que “angústia é fala en-tupida”. É revelador observar que, embo-ra entupida, a angústia é fala que precisaser bem escutada.

Sonhos e angústiaÉ redundante enfatizar a importância

central que “A Interpretação dos sonhos”,grande obra inaugural da Psicanálise, tevena descoberta do inconsciente e na des-crição dos processos envolvidos na pro-dução de sua principal manifestação: osonho. Prova de que este era o entendi-mento de Freud, que protelou por um anoa publicação da obra para, significativa-mente, celebrar com ela o início de umnovo século, é a central formulação de que“o sonho é a via régia do inconsciente”(FREUD, 1900). Porém, a obra encerra,em meio a outras inúmeras valiosas indi-cações clínicas, uma que, embora funda-mental, frequentemente passa desperce-bida: a de que “o sonho é apenas uma formade pensar” (IDEM). Esta perspicaz obser-vação é essencial na construção da teseaqui defendida, porque ela alerta para ofato, óbvio mas comumente subestimado,de que sono e vigília são estados mentaisde um mesmo sujeito, com diferentes ex-pressões do inconsciente.

Porém, a formulação revolucionáriaque sintetiza a ideia central defendida porFreud na obra é a de que “o sonho é a rea-lização de um desejo inconsciente” (IBIDEM)e são numerosos os exemplos que ele dácomo evidências desta sua afirmação clí-nica. Mas, corroborando o dito popularque reza que “toda regra tem uma exce-ção”, Freud se depara com um impasse e,embora tenha inicialmente reconhecidoem “Interpretação dos Sonhos” que os so-nhos de angústia pareciam contradizer suaformulação essencial de serem os sonhosrealizações de desejos, esforçou-se teori-camente ao longo da obra em adequá-losà sua genial proposição fundamental sem,contudo, satisfazer-se com as próprias ex-plicações. Registros desta frustração seencontram em diferentes passagens, como“parece que os sonhos de angústia tornamimpossível asseverar a fórmula geral de queos sonhos são realizações de desejos”, ou “so-nhos de angústia estão fora do marco psico-

Page 3: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

55Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

Sonhos, angústia e alienação

lógico da formação dos sonhos”, chegando aconfessar que ele gostaria de “omitir toda adiscussão sobre os sonhos de angústia, evitara necessidade de penetrar em todas as obscu-ridades que os rodeiam” (IDEM). Numa re-visão da obra feita em 1911, Freud termi-na por caracterizar os sonhos de angústiacomo uma falha na produção onírica eacrescenta a intrigante afirmação de que“a angústia nos sonhos, insisto, é um proble-ma da angústia e não um problema dos so-nhos” (IBIDEM, 1911). O caráter enigmá-tico dos sonhos de angústia tem, desdeentão, desafiado a Psicanálise a dar-lhesuma direção interpretativa que contem-ple simultaneamente teoria dos sonhos econceito de angústia.

O impasse teórico de Freud em con-ciliar sonhos – realizações de desejos – comsonhos de angústia pode ser resumido emsua afirmação de que “a angústia é o opos-to direto do desejo” (FREUD, 1916). Apósa assim chamada “primeira teoria da an-gústia”, em que Freud associa o surgimen-to da angústia à sexualidade e ao recalquee, portanto, ao desejo, ele aprofunda suainvestigação sobre o tema e conclui suaconcepção sobre o assunto em “Inibição,sintoma e angústia” (FREUD, 1926). Em-bora nesta obra Freud ainda afirme que “aangústia de castração é a angústia por ex-celência” (IDEM), nela ele introduz abor-dagem radicalmente nova sobre a angús-tia, que pode ser sintetizada assim: “...con-cepção da angústia como anterior ao recal-que e inextricavelmente ligada, não à sexua-lidade, mas ao desamparo. É, na verdade, talcomo na proposta de Rank do trauma do nas-cimento, basicamente angústia de separaçãoe de desproteção, da qual a angústia de cas-tração é apenas uma das versões. A partir deentão é angústia de aniquilamento” (RUD-GE, 2005).

Diante desta nova perspectiva, o so-nho de angústia pode adquirir um signifi-cado novo, que é inclusive consonantecom a visão médica do que ela define comopesadelo ou transtorno de angústia ligada ao

sonho: “sonho carregado de ansiedade oude medo intensos, acompanhado por lem-brança detalhada de seu conteúdo, geral-mente associado a ameaças à existência, àsegurança ou à autoestima, tendendo a serepetir. Tipicamente comportam certograu de hiperatividade neurovegetativa. Aoacordar o sujeito está bem orientado”(CID 10, 2003) (os grifos são meus). Soba ótica psicanalítica, sonho de angústiatalvez possa ser definido como aquele cujoconteúdo manifesto ou latente provoca osúbito despertar por uma crise de angús-tia, comumente associada a manifestaçõescorporais. É no corpo que a angústia semanifesta, porque ela “aponta para algo quesinaliza a verdade do sujeito. Verdade quetoma corpo, literalmente” (RODRIGUES,2007).

Se é complexo teorizar sobre os so-nhos, desafio maior é conceituar a angús-tia, já que ela “não pode ser, de modo al-gum, objeto de conceito. Entretanto, aomesmo tempo, ela é o fundamento nãoconceitual de todos os conceitos” (IDEM).Jean Paul Sartre diz que “a angústia é umfalso conceito, é um ponto de universalizaçãodo singular.” Diante deste desafio, Lacanfaz no seminário da angústia a surpreen-dente afirmação de que “a verdade vemde Kierkegaard através da angústia” (LA-CAN, 1963). Sören Kierkegaard (1813-1855), teólogo e filósofo dinamarquês, éconsiderado “o pai do existencialismo” epublicou um livro intitulado “O conceitode angústia” (KIERKEGAARD, 1844),que é fonte de diversos comentários deLacan em seu seminário sobre o tema. Notópico que tem o mesmo título do livro, érevelador observar que por várias vezes oautor se refere a sonhos, traçando íntimarelação entre eles e a angústia: “A inocên-cia é a ignorância ... Neste estado existecalma e descanso; mas existe, ao mesmotempo, outra coisa ... Nada. Que efeitoproduz este nada? Este nada dá nascimentoà angústia. Aí está o mistério profundo davida: é ao mesmo tempo angústia. Sonha-

Page 4: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

56 Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

dor, o espírito projeta sua própria realidadeque é um átimo e a inocência vê semprediante de si o nada” (IDEM). Noutro tre-cho o autor diz que “a angústia é determi-nação do espírito sonhador e, a tal respei-to, ocupa lugar na Psicologia. A vigília es-tabelece diferença entre mim mesmo e o ou-tro-em-mim, o sono deixa-a suspensa, o so-nho traz a sugestão dela como um vago nada.A realidade espiritual aparece sempre comoalgo que tenta sua possibilidade, porém someassim que a desejamos captar” (IBIDEM).Mais à frente Kierkegaard diz que “se for-mos analisar caracteres dialéticos da angús-tia, acharemos a ambiguidade psicológica. Aangústia é antipatia simpatizante e simpatiaantipatizante” porque “... fugir à angústia nãoé possível porque a ama; porém, amá-la real-mente, também não, pois foge dela” (IDEM).O autor conclui que “o surgimento da an-gústia condensa o fulcro de toda a questão.O ser humano é uma síntese de alma e cor-po; mas esta se torna inimaginável se ambosos elementos não se fundirem num terceiro: oespírito. O espírito já está presente ainda queem estado de imediatidade, de sonho. Qual arelação do homem com o espírito? A relaçãoé a angústia” (IBIDEM) (os grifos sãomeus). É surpreendente perceber nestesgrifos não só a íntima relação entre vazioe angústia, mas também como podemosintuir a própria definição do sonho de an-gústia, onde a verdade do sujeito aparececomo “algo que tenta sua possibilidade, po-rém some assim que a desejamos captar” edespertamos!

Umbigo e goelaCertamente não foi de forma ingênua

que Freud escolheu a palavra umbigo para,na “Interpretação dos sonhos”, referir-sea um momento crucial do conteúdo ma-nifesto dos sonhos. Derivada do latimumbilicus, ela significa “saliência em umasuperfície” e é também usada como refe-rência ao “elo biológico que liga o filho à mãe;indica relação de dependência entre uma vida

e outra; ponto central de algo” (WIKIPE-DIA, 2008). Ao referir-se ao “umbigo dosonho”, Freud magistralmente o definecomo “esse ponto onde o sonho é insondável,onde se interrompe o sentido ou toda a possi-bilidade de sentido” (FREUD, 1900). Paraesse ponto ele escolheu uma palavra quese refere à fundamental relação entre mãee filho, da qual todo ser humano leva nocorpo uma cicatriz indelével.

Se o simbólico refere-se ao duplo sen-tido e o imaginário à produção de senti-do, para Lacan esta ausência de sentidoou sua impossibilidade que caracteriza oumbigo do sonho recebe, no Seminário 11,a denominação de real (LACAN, 1964).“É nesse ponto de falha na malha constituti-va do sonho, correlato ao ponto em torno doqual constitui-se a fantasia fundamental dosujeito, que vamos ver nascer um novo saberque recoloca esse sujeito diante do real que oconstitui” (LIMA, 2003). Assim, despertardurante um sonho de angústia é deparar-se com o insuportável que seu umbigoanuncia e recusar-se a enfrentar a verda-de que o sujeito não está pronto para re-velar sobre si mesmo. Sobre o dormir e osonhar, Lacan fez três indicações que sãovaliosas para a nossa construção. Em “Unepratique de bavardage” (1977), define que“o inconsciente é muito exatamente a hipóte-se de que não sonhamos apenas quando dor-mimos.” De fato, as fantasias e os devanei-os da vigília expressam os mesmos dese-jos, conscientes ou não, que podem vir asurgir nos sonhos durante o sono. No Se-minário 17, Lacan faz duas outras afirma-ções. A primeira é tão enigmática quantoseu próprio conteúdo: “o desejo de dormiré, de fato, o maior enigma” (LACAN, 1969-70), já que ele não se refere à necessidadede dormir e sim ao desejo de fazê-lo. Masa terceira destas indicações que é particu-larmente valiosa para nosso tema, porqueao referir-se ao sonho de angústia, Lacanaponta com precisão que “... só desperta-mos para continuar sonhando” (IDEM) (ogrifo é meu). O sujeito desperta durante

Page 5: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

57Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

Sonhos, angústia e alienação

um sonho de angústia para continuar dor-mindo em relação ao real e à verdade queo constitui, por não estar psiquicamenteapto a revelá-la a si mesmo.

Neste sentido, a angústia no sonhotem o papel de evitar que o sujeito enfrentealgo para o que não está preparado, o quenos permite fazer uma analogia com aqueledesempenhado pelas pulsões de autocon-servação em promover a necessária tran-sição do princípio de prazer ao princípiode realidade, tal como Freud postulou em“Além do princípio de prazer” (FREUD,1920). Permanecer indefinidamente sobo princípio de prazer pode ser ameaçadorà vida biológica, sendo imperativo que elase conserve sob a ação do princípio de re-alidade, imposto por intervenção de pul-sões de autoconservação. No sonho, aangústia exerceria função de autoconser-vação psíquica, na medida em que o súbi-to “despertar” por ela causado evita que osujeito se encontre com algo ameaçador epsiquicamente intolerável, sinalizado peloumbigo do sonho. Esquematicamente se-ria:

Pulsões de autoconservação

Princípio de prazer Princípio de realidade

“Despertar”Umbigo do sonho

ANGÚSTIA

Da mesma forma, não foi ingenua-mente que Lacan selecionou a aterrorizan-te imagem da boca do crocodilo para re-ferir-se ao insaciável desejo da mãe emrelação ao filho, ao descrever o estádio doespelho e apontar a importância capitaldas operações de alienação e de separa-ção na constituição do sujeito (LACAN,1949). Neste fundamental trabalho, La-can usa a imagem de uma estaca de paupara representar a Lei do Pai, única formade impedir que a bocarra do desejo ma-

terno se feche irremediavelmente sobre ofilho e o devore goela abaixo, impossibili-tando ou em muito dificultando que elevenha a se constituir como sujeito dese-jante. O espectro clínico deste devora-mento subjetivo é amplo, indo desde difi-culdades sexuais diversas ou insegurançaneurótica na tomada de decisões até mes-mo a psicose.

O que ocupa o centro deste embatepela sobrevivência psíquica é o desejo, quebascula para o lado da mãe na operaçãode alienação, fase indispensável na cons-trução de um patrimônio afetivo e na libi-dinização da criança, mas que deve cederespaço para que o desejo do sujeito seconstitua por força da operação de sepa-ração. Ainda alienada, a criança encon-tra na mãe a completude, pois essa tudosupre e não permite que a falta se instale:a criança experimenta a “falta da falta”,uma das formas como Lacan define a an-gústia em seu seminário sobre o tema (LA-CAN, 1963). Assim, o sujeito ali-é-nada.É oportuno lembrar-nos de Kierkegaard,quando ele diz que “este nada dá nascimentoà angústia” (KIERKEGAARD, 1844).Caso a operação de separação seja eficaz,o desejo bascula para o lado do sujeito queestá em formação, que passa a vivenciar afalta e de “nada” transita à sua posição de“não-todo”. Esquematicamente, indicarí-amos assim:

Sujeito

“Não-todo”Nada

Falta“Falta da falta”

Mãe (“crocodilo”)

ALIENAÇÃO SEPARAÇÃO

DESEJO

Neste ponto, aplicando novamente ojá mencionado postulado freudiano de queo artista antecipa o psicanalista, recorro aWilliam Shakespeare no famoso monólo-go de Hamlet (~ 1600) para ilustrar asconsequências da operação de separação

Page 6: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

58 Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

incompleta na vida do sujeito e reintro-duzir neste contexto a questão do sonhode angústia:

“Ser ou não ser, eis a questão.O que é mais nobre? Sofrer na almaas flechas da fortuna ultrajanteou pegar em armas contra um mar dedores pondo-lhes um fim?Morrer, dormir, nada mais; e pelo sonopôr ponto final aos males do coração...Morrer! Dormir; dormir, sonhar talvez:mas aqui está o ponto de interrogação;porque no sono da morte, que sonhospodem assaltar-nosuma vez fora da con-fusão da vida? (aescansão, obviamente, é minha)É isso que nos obriga a refletir, é esserespeito que nos faz suportar por tan-to tempo uma vida de agruras.... Quem tais fardos suportaria, prefe-rindo gemer e suar sob uma vida fati-gante,a não pelo medo de algo depois da mor-te, país desconhecido de cujos camposnenhum viajante retornou ...Assim a consciência nos faz a todos co-vardes e as cores nascentes da resolu-çãoempalidecem frente ao frouxo clarãodo pensamento.E os planos de grande alcance e atua-lidade nesta perspectiva mudam desentidoe saem do campo da ação” (BRADLEY,1904 – os grifos são meus).

Seria pretencioso tentar esgotar asinúmeras formas pelas quais este célebretexto pode ser abordado. Sob o prisma dotema deste trabalho – sonhos, angústia ealienação –, entretanto, este monólogoretrata de forma magistral a vacilação dosujeito diante de sua possibilidade de es-colher entre permanecer no sofrimentoneurótico, “preferindo gemer e suar sobuma vida fatigante”, ou se conduzir pelas“cores nascentes da resolução” e vir a con-

cretizar seus “planos de grande alcance eatualidade”. Ser ou não ser sujeito, eis aquestão! E o que impede que este sujeitovacilante escolha deixar todo seu sofri-mento? O “medo de algo depois da mor-te, um país desconhecido... que nos bara-lha a vontade e nos faz suportar os malesque temos...”. Este é o ponto de conver-gência com o tema do presente trabalho,se entendermos aqui a palavra morte comoo sono e sua consequente entrada no rei-no dos sonhos. Esta proximidade entre odormir e a morte é literalmente apontadapelo próprio texto de forma insistente, masdiante da possibilidade de sonhar, surge “oponto de interrogação”: “que sonhos po-dem assaltar-nos fora da confusão davida?” É extremamente ameaçador paraeste sujeito vacilante se descobrir sem astravas que a con-fusão com o Outro im-põem ao seu desejo, limitando e empobre-cendo a sua vida. Diante do medo deadentrar o “país desconhecido” dos sonhose correr o risco de defrontar-se com suaprópria verdade e seu desejo, o sujeitodesperta de um sonho de angústia e retor-na à consciência que “nos faz a todos co-vardes e as cores nascentes de resolução em-palidecem frente ao frouxo clarão do pensa-mento”. Há ainda um detalhe particular-mente valioso no texto que ilustra bem aconcepção do sonho de angústia aquiapresentada: diante deste medo os dese-jos “mudam de sentido e saem do reino daação”. Durante um sonho de angústia, ovetor dos conteúdos manifestos e/ou la-tentes aponta na direção da separação, atéo ponto em que ele se depara com o um-bigo do sonho e ocorre uma inversão desentido e o retorno à posição de aliena-ção. Mas retornar a esta posição significaaceitar o “nada” ao qual o sujeito é redu-zido na alienação, o que equivale a umangustiante risco iminente de aniquila-mento subjetivo: neste momento ele “des-perta” e sai do “reino da ação”. É revela-dor observar que o monólogo se inicia coma palavra ser e termina com a palavra ação.

Page 7: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

59Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

Sonhos, angústia e alienação

O ser sujeito implica em habitar o campoda ação, o que só é possível se a separaçãodo Outro se completa. Assim, para que seconstitua como ser desejante, a vida hu-mana impõe ao sujeito um imperativo ca-tegórico: sê-para-ação!

Podemos, portanto, esquematicamen-te sintetizar os destinos do sonho assim:

Sujeito

Desejo

“Desperta”UMBIGO

UMBIGO

UM

SEPARAÇÃOALIENAÇÃO

NADA

Assim, quando a separação do Outrose concluiu e existe realmente UM sujei-to, o destino do sonho é, tal como Freuddeterminou, a realização do desejo incons-ciente. A separação pode não ter sido com-pletamente efetivada mas, diante do um-bigo do sonho, o sonhador tolera psiqui-camente permanecer dormindo, o que lhedá a oportunidade de haver-se com o reale com a verdade que o constitui como su-jeito. Se o sonhador porém, diante desteumbigo, “desperta” com uma crise de an-gústia, é porque ele experimenta a amea-ça inconsciente do aniquilamento subje-tivo que a inversão do vetor do sonho gera,ao apontar-lhe o “nada” que o retorno àalienação ao desejo do Outro implica.Usando a imagem criada por Lacan, o so-nhador veria diante de si o horror da goe-la do crocodilo. Este terceiro destino é oque caracteriza, na presente construção,o sonho de angústia, o qual pode ser en-tão esquematicamente representado daseguinte forma:

“DESPERTA”

SONHO DE ANGÚSTIA

UMBIGO(ELA)

SEPARAÇÃOALIENAÇÃO

NADA

Logo, o conceito central desta cons-trução é o de angústia de aniquilamento,

tal como Freud definiu em sua concepçãofinal sobre o tema, como já citado. É im-portante notar que a ameaça de aniquila-mento será experimentada em pólos opos-tos em relação à dialética alienação-sepa-ração, já que antes de existir um sujeitoela será precipitada pela separação e apósa constituição ao menos parcial da subje-tividade, esta ameaça é vivida pelo riscoiminente do retorno à alienação ao desejodo Outro. Esquematicamente seria:

PRÉ-SUJEITO “SUJEITO”

ANGÚSTIA DE ANIQUILAMENTO

AlienaçãoSeparação

A respeito do “despertar” súbito típi-co de um sonho de angústia, é interessan-te notar que na “Interpretação dos sonhos”Freud sentenciou que “a função do sonho éa de guardião do sono” (FREUD, 1900). Umano mais tarde, em trabalho intitulado“Sobre os sonhos”, ele faz a significativaressalva de que “essa visão não se contradizpelo fato de haver casos marginais em que osonho – como ocorre nos sonhos de angús-tia – já não pode cumprir sua função de im-pedir a interrupção do sono e assume, em vezdisso, a outra função de fazê-lo cessar pron-tamente... quando as causas da perturba-ção lhe parecem graves, de um tipo que nãopode enfrentar sozinho” (FREUD, 1901 –os grifos são meus). Esta passagem é con-sonante com a construção aqui defendidasobre sonhos de angústia e é útil para en-fatizar algo fundamental: que a constitui-ção plena do sujeito é um processo longoque se inicia nas operações de alienação eseparação e se prolonga por extenso ca-minho até sua conclusão. Análise pessoalpode ser indispensável para que o percur-so chegue ao fim, propiciando um verda-deiro despertar.

Desejo e des-ejoÉ curioso e revelador observar que, se

dividida ao meio, a palavra desejo passa a

Page 8: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

60 Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

ser formada por dois elementos que, isola-damente, apontam para sua total anula-ção: o prefixo des que indica ação contrá-ria ou negação (como em desfazer, desa-tar) e o sufixo ejo que se presta a reduzirou diminuir (como em vilarejo, lugarejo)(AURÉLIO, 1986). Por outro lado, é per-tinente lembrar que ao se referir à angús-tia, Kierkegaard a definiu como “antipa-tia simpatizante e simpatia antipatizante”(KIERKEGAARD, 1844), figura grama-tical denominada oxímoro, “que consiste emreunir palavras que se contradizem; parado-xismo (como em ‘silêncio eloquente’)” (AU-RÉLIO, 1986). A construção sobre o so-nho de angústia aqui defendida nos suge-re que o súbito “despertar” que o caracte-riza é precipitado pela abdicação incons-ciente do “sujeito” ao próprio desejo, namedida em que seu vetor retorna à dire-ção oposta e aponta para a alienação aodesejo do Outro, que é vivenciada duran-te o sono como uma angustiante ameaçade aniquilamento subjetivo. Assim, pode-ríamos dizer que no sonho de angústia odesejo do “sujeito” é um oxímoro: desejoalienante. Ou, mais precisamente, talvezele possa ser definido como um des-ejo.

Sono e desrealizaçãoChegamos ao cerne da proposta des-

te trabalho. Para explicitá-lo é necessárioque lembremos o conceito psiquiátrico dasvivências de desrealização e despersonali-zação: “transtorno dissociativo (palavras-chave: histérico, conversivo, neurótico) ca-racterizado por sensação de estranheza oudesligamento em relação aos pensamentos, aocorpo e mundo real, que são percebidos comoirreais, longínquos ou ‘robotizados’, sem pre-juízo das faculdades sensoriais. Pode seracompanhado de crises de ansiedade e ou-tros sintomas” (CID 10, 2003 – os grifossão meus). Por tudo o que foi exposto atéaqui, não é difícil perceber a semelhançaentre esta descrição de uma vivência dis-sociativa na vigília e a ameaçadora expe-

riência de um sonho de angústia. Não pa-rece absurdo conjecturar que o mesmosofrimento psíquico responsável pela des-realização experimentada na vigília possaser reeditado durante o sono, se aceitar-mos a premissa aqui defendida de que osonho de angústia representa uma vivên-cia de alienação, acompanhada de senti-mentos intensos de ameaça de aniquila-mento subjetivo. Para dar sustentação aesta construção teórica, recorro novamen-te a Freud e volto a chamar a atenção parao aspecto de capital importância que nospermite defender esta tese: “é excessiva-mente fácil esquecer que o sonho é um pen-samento como outro qualquer” (FREUD,1923 – o grifo é meu). É digno de notaque este valioso alerta de Freud foi feito23 anos após ele ter afirmado a mesmaideia na “Interpretação dos sonhos”, o queindica claramente sua convicção sobre ela.A mesma motivação inconsciente quegera a desrealização na vigília está, a nos-so ver, na base do que é vivenciado du-rante um sonho de angústia, o que signifi-ca dizer que ambas as experiências refle-tem um mesmo estado psíquico e se equi-valem clinicamente.

ConclusãoO sonho de angústia está, para o su-

jeito, a serviço do “não saber” sobre a suaverdade. A angústia é da ordem do indizí-vel: ela não fala, ela cala. E mesmo duran-te o sono ela cumpre esta função: ela calao discurso do sujeito do inconsciente queencontra no sonho sua via privilegiada,forçando súbito “despertar” para a reali-dade, que mantém o sujeito dormindo parao real que o constitui. Indizível, a angús-tia deve remontar sua origem a uma épo-ca anterior à capacidade de simbolizaçãodo sujeito, podendo apenas ser presentifi-cada pela vivência corporal. Pela intensi-dade desta vivência experimentada duran-te o sonho de angústia e pelo caráter pri-mitivo de suas manifestações – taquicar-

Page 9: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

61Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

Sonhos, angústia e alienação

dia, dispnéia, sudorese –, ela aponta paraa sensação iminente de aniquilamento,síntese da teoria freudiana sobre a angús-tia. Se para o bebê separação é ameaça deaniquilamento, para o sujeito a alienaçãoao desejo do Outro, que pode traduzir-sepela vivência de desrealização, é que de-flagra estas intensas manifestações. O so-nho de angústia é, sob esta perspectiva,uma vivência de desrealização durante osono.

Concluindo, retorno à genial propo-sição freudiana de que “sonho é a realiza-ção de um desejo inconsciente” (FREUD,1900). Diante do que foi exposto nestetrabalho, talvez possamos propor as seguin-tes formulações sobre o sonho de angús-tia:

O sonho de angústia é a realização deum des-ejo.O sonho de angústia realiza um desejoalienante.O sonho de angústia é vivência dedesrealização. ϕ

DREAMS, ANGUISHAND ALIENATION

AbstractAlthough Freud, in “Interpretation ofdreams”, inicially realized that anguisheddreams opposed his central proposition thatdreams were the fulfillments of unconsciousdesires, he tried hard to fit them into hisformula, however, he could not becomesatisfied with his own explanations. He finallydefined them as failures in oniric productionand as “a problem concerning anguish andnot concerning dreams”. Since then, theenigmatic character of anguished dreams haschallenged Psychoanalysis to give them adirection of interpretation that contemplatesboth the dream theory and the concept ofanguish. Stemming from the operations ofalienation and separation that sustain egoconstruction, according to Lacan’sproposition, our thesis herein presented is thatanguished dreams are, during sleep, theclinical equivalent to the experiences ofunrealization that occur while being awake.

KeywordsDreams, Anguish, Anguished dreams,Alienation-separation operations, Egoconstruction, Desire, Annihilation,Unrealization.

Page 10: Coutinho - Sonhos, angústia e alienação

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

62 Reverso • Belo Horizonte • ano 31 • n. 58 • p. 53 - 62 • Set. 2009

BibliografiaAURÉLIO. Novo dicionário da língua portuguesa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 1838 p.

BRADLEY, A.C. (1904) A tragédia shakesperiana -Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth. São Paulo: Mar-tins Fontes, 2006. 536 p.

CID 10. Classificação estatística internacional dedoenças e problemas relacionados à saúde, décimarevisão. São Paulo: EDUSP, 2003. 1191 p.

FREUD, S. (1900) A interpretação dos sonhos.ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.4, 1996.

FREUD, S. (1901) Sobre os sonhos. ESB. Rio deJaneiro: Imago, v.5, 1996.

FREUD, S. (1916) XIV Conferência introdutóriasobre psicanálise: realização de desejo. ESB. Riode Janeiro: Imago, v.15, 1996.

FREUD, S. (1918) História de uma neurose in-fantil. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.17, 1996.

FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer.ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.18, 1996.

FREUD, S. (1923) Observações sobre a teoria eprática da interpretação de sonhos. ESB. Rio deJaneiro: Imago, v.19. 1996.

FREUD, S. (1926) Inibição, sintoma e angústia.ESB. Rio de Janeiro: Imago, v. 20, 1996.

GONTIJO, T. A arte de sonhar. Epistemo-somáti-ca, v.3, n.2, Belo Horizonte, 2006.

JORGE, M.A.C. As quatro dimensões do desper-tar – sonho, delírio, fantasia, ilusão. Ágora, v.8, n.2,Rio de Janeiro, 2005.

KIERKEGAARD, S. (1844) O conceito de angús-tia. São Paulo: Hemus, 1968. 164 p.

LACAN, J. (1962-3) O seminário, livro 10: a an-gústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 366 p.

LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como for-mador da função do eu. Escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatroconceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 1998. 379 p.

LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: o avessoda psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.398 p.

LIMA, C.R. De onde vêm os analistas? Do umbi-go do sonho! O dispositivo do passe. AMP, SãoPaulo, 2003.

PESSOA, F. (1965) Obra poética. Rio de Janeiro:Aguilar, 1981. 772 p.

RODRIGUES, G.V. Percursos na transmissão dapsicanálise. Belo Horizonte: Ophicina de Arte &Prosa, 2007. 336 p.

RUDGE, A.M. Angústia e pensamento. Psychê, v.9,n.15, São Paulo, 2005.

RECEBIDO EM: 30/06/2009APROVADO EM: 24/08/2009

SOBRE O AUTOR

Alberto Henrique Soares de Azeredo CoutinhoMédico. Psicanalista. Sócio e membroda atual diretoria do Círculo Psicanalíticode Minas Gerais.

Endereço para correspondência:Rua Antônio de Albuquerque,1288/500 - Lourdes30122-011 - BELO HORIZONTE/MGTel.: (31) 3224-7125E-mail: [email protected]