corrupÇÃo na polÍtica: eleitor vÍtima ou cÚmplice?

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CORRUPÇÃO NA POLÍTICA: ELEITOR VÍTIMA OU CÚMPLICE? 2006 Silvia Cervellini, IBOPE Inteligência

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CORRUPÇÃO NA POLÍTICA: ELEITOR

VÍTIMA OU CÚMPLICE?

2006

Silvia Cervellini, IBOPE Inteligência

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1. Introdução O objetivo desse trabalho é retratar a sociedade brasileira no que diz respeito à ética, no contexto da crise política enfrentada pelo país a partir das denúncias do “mensalão” e de corrupção na administração federal, em 2005. Trata-se de analisar um conjunto de pesquisas do IBOPE Opinião para iluminar a questão tão bem levantada por João Ubaldo Ribeiro em crônica recente:

1 Iniciaremos analisando o resultado do Referendo do Comércio de Armas e Munições, ocorrido no ano passado, em que o eleitorado brasileiro demonstrou um forte apreço pela sua capacidade e pelo direito individual de decidir sobre sua própria segurança. A vitória do NÃO, no nosso entender, significou, entre outras coisas, um fenômeno de alteridade do eleitorado brasileiro em relação às suas lideranças, ou seja, uma crise de representatividade política, como se os cidadãos não se enxergassem nos seus representantes, projetando neles um retrato bem mais negativo do que a auto-imagem dos brasileiros. Usaremos a experiência do IBOPE Opinião durante essa campanha do Referendo também para mostrar como as pesquisas qualitativas são fundamentais em um processo de planejamento estratégico e como são de inequívoca ajuda na rápida tomada de decisões. A seguir, através da sistematização de pesquisas quantitativas ao longo dos últimos 15 anos, voltaremos a ilustrar o fenômeno de alteridade mencionado acima, especificamente apontando para um aparente paradoxo na opinião pública brasileira no que diz respeito aos temas da ética e da corrupção: o eleitorado sistematicamente indica repúdio aos atos ilícitos que atribui claramente à classe política brasileira, mas enxerga-se razoavelmente honesto, ao mesmo tempo em que pratica ou aceita uma diversidade de transgressões à lei no seu cotidiano.

1 Ribeiro, João Ubaldo; Jornal do Meio Ambiente, 14/11/2005.

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Finalmente, apresentaremos resultado de pesquisa quantitativa inédita, em que colocaremos mais luz sobre essa inconsistência, ao comparar e analisar as relações entre atitudes do eleitorado frente à corrupção na política e suas percepções e hábitos em termos de respeito à sociedade, através da obediência às leis e aos contratos. 2. O Referendo do Comércio de Armas e Munições: a vitória do direito individual. Quando fomos contratados pela “Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa”, para subsidiar o planejamento e fazer o acompanhamento da campanha do NÃO com pesquisas qualitativas, as pesquisas quantitativas já realizadas, incluindo uma do próprio IBOPE Opinião não divulgada, indicavam grande vantagem para o outro lado, do SIM. Nesse contexto fizemos a primeira qualitativa para diagnosticar a situação, explorar o terreno e levantar melhores alternativas de posicionamento estratégico para a campanha do NÃO. Como em qualquer diagnóstico pré-campanha em que o candidato está bem atrás nas quantitativas, tínhamos em mente inclusive a possibilidade de indicar caminhos para uma eventual “derrota honrosa”. O resultado final do Referendo, conforme quadro abaixo, provou que essa alternativa foi devidamente descartada, adotando-se um posicionamento claro para ganhar, através de uma campanha cuidadosa e competentemente planejada e desenvolvida por Chico Santa Rita e sua equipe.

Antes mesmo de iniciarmos qualquer pesquisa, na primeira reunião com os clientes, ficou claro o potencial de argumentação a favor do NÃO, cujo “pontapé inicial” era simplesmente tirar a opinião pública brasileira da inércia e fazer o eleitorado refletir sobre sua escolha, desmistificando o SIM como sinônimo de desarmamento e de diminuição da violência. Pautados por essas conversas, fomos para os grupos de discussão (12 grupos de discussão nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte,

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Porto Alegre e Caçapava do Sul, conduzidos em Agosto) e chegamos às principais conclusões (texto copiado do relatório final entregue ao cliente):

• A campanha do NÃO deve se posicionar claramente como a que vai contrapor fatos e dados ao sentimentalismo, ao sensacionalismo e aos “achismos” (tanto mais efetivo quanto mais a campanha do SIM adotar essas linhas equivocadas).

• O primeiro passo é “desmontar” a associação Referendo = Desarmamento, levando posteriormente à inequívoca quebra de expectativas quanto aos efeitos concretos do Referendo na redução significativa da violência no Brasil. Para isso, é preciso explicar de forma muito clara o escopo da consulta popular, desmistificando esse momento como um “marco” nas políticas de segurança pública e controle de armas.

• No entanto, não basta convencer que o “SIM” é um voto ineficaz. É preciso também mostrar como o “SIM” pode ser prejudicial para, pelo menos, parte dos brasileiros. Aí entra a argumentação fundamental de que a proibição significará o definitivo desarmamento do cidadão de bem, enquanto o bandido continuará (muito bem) armado.

• Nesse contexto, a defesa do “direito individual” é um complemento importante para a campanha, desde que devidamente acompanhado desse perfil positivo do “comprador legal de armas” , com foco nas suas motivações respeitáveis e com informações completas e claras sobre as atuais condições exigidas para tal.”

Esse diagnóstico, portanto, ajudou a Campanha do NÃO a decidir por colocar toda a sua força na linha argumentativa de que a vitória do SIM representaria uma perda certa, definitiva e muito importante, a do direito individual à segurança, ao mesmo tempo em que os ganhos prometidos, como mais paz ou menos mortes, eram incertos e, algumas vezes, ilusórios. O acerto dessa estratégia ficou claro logo nas primeiras noites da propaganda eleitoral, com o resultado das discussões em grupo após os participantes assistirem ao vivo os programas de TV. A idéia do Direito Individual encontrava um respaldo surpreendente nos grupos, criava um eco forte e imediato!

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“Mostra que a pessoa tem o direto de não ter a arma, mas não pode

tirar o direito do outro ter. Livre arbítrio. Mostra os dois lados da

moeda.”

“Eu não tenho arma e nem quero, mas quero ter o direito de ter.”

“O NÃO é a favor da democracia, do direto do cidadão. Se votar sim,

você está dizendo não à democracia.”

“O problema não é o desarmar, é tirar o meu direito de ter a arma

quando eu quiser. Eu quero ter esse direito.”

Os desdobramentos e refinamentos da campanha, os momentos cruciais e os acertos que levaram o NÃO a uma “virada” e à vitória com larga vantagem são comentados no próximo tópico, em que mostraremos como a pesquisa qualitativa pode ajudar na tomada de decisão e no aprimoramento de estratégias de comunicação, considerando um processo complexo e “real time”, como é uma campanha eleitoral no Brasil. Para efeito dos objetivos do presente trabalho, porém, é importante mostrar como esse apego ao próprio direito de decidir sobre ter e usar uma arma para defesa pessoal, da família e do patrimônio baseia-se numa auto-imagem positiva do eleitor brasileiro, sobretudo se contraposta à imagem projetada sobre as elites dirigentes do país. Ficou claro, portanto, que a vitória do NÃO, embasada no conceito de direito individual, significou que a maioria dos brasileiros acredita ser mais capaz de decidir e agir em prol de sua segurança pessoal do que os seus representantes políticos, legisladores e governantes.

“O governo quer tirar seu direito. Já invadiu sua privacidade e não vai

trazer solução.”

3. Discussão em grupo e campanhas eleitorais: exemplo de bom uso.

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2 “‘Tipping Point’ guru takes on focus groups”; by Thompson, Stephanie, Halliday, Jean;Advertising Age; 00018899; 1/24/2005; Vol. 76; Issue 4.

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3 As afirmações acima ilustram uma corrente, cada vez mais forte nos meios de marketing, que questiona o valor da informação obtida atualmente através da pesquisa qualitativa, sobretudo para projetos de comunicação e de desenvolvimento de produtos. Sem entrar na discussão teórica e metodológica envolvida (o que exigiria um trabalho inteiro a respeito), achamos importante aproveitar essa oportunidade para testemunhar em defesa das qualitativas e, mais particularmente, dos “focus groups”, usando como contexto campanhas políticas no Brasil. Em primeiro lugar, por mais óbvio que possa parecer, é preciso registrar duas premissas do que consideramos um bom uso das pesquisas qualitativas no contexto das campanhas eleitorais brasileiras: a) Nem o eleitor pesquisado e muito menos o pesquisador, são “donos da verdade” b) Vale o velho ditado “para bom entendedor meia palavra basta”, ou seja, os “insights” só acontecem se há do lado do cliente uma interlocução disponível, de mente aberta e criativa. Conforme já mencionado, o IBOPE Opinião trabalhou para a campanha do NÃO no Referendo do Comércio de Armas e Munições, com acompanhamento dos programas gratuitos de televisão. Realizamos dois grupos de discussão por noite em São Paulo, após os convidados assistirem na própria sala, ao vivo, o programa daquela noite. Ao final da avaliação do programa um comercial era testado. Os convidados chegavam no local da pesquisa por volta das 19:30 e saíam no máximo às 22:00. Os resultados eram transmitidos ao cliente por telefone na própria noite e na manhã seguinte enviávamos um relatório sintético, de até 5 páginas, incluindo textuais.

3 “Naked in the pursuit of truth is a Finn way to do focus groups”, by Lain Murray;Marketing Week, 14/07/05; Vol. 28; No 28.

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Abaixo selecionamos alguns momentos da campanha em que a informação da pesquisa qualitativa foi bastante valiosa para a tomada de decisões e adequação da comunicação.

• Programa de 1/10/2005: sobre a Presença de Artistas na campanha do SIM

Ficou imediatamente claro que o NÃO ganharia pontos ao não trazer celebridades para sua campanha, conforme trecho do relatório sobre o programa do SIM: “Utilização de artistas soa como manipulação, uma

jogada de marketing e, além disso, artistas não servem como exemplo para

a discussão em questão, pois ‘não correm os riscos que a gente corre’.”

• Programa de 2/10/2005: teste de uma “matéria” para o próximo programa

Indicação foi de usar, porque surtiu o efeito desejado, mas com correções no “tom”, conforme trecho do relatório: “Risco – acham que pode acirrar os

ânimos e gerar uma guerrinha típica de campanhas eleitorais, com um lado

desqualificando o outro, até “baixar o nível” > Ideal é refazer o bloco, com

um texto mais sério e focado na intenção de dar ao eleitor os “números

verdadeiros”, ou “explicar algo que esteja confuso”. Deve-se evitar

provocações, insinuações e personalizações.’Mostra que SIM está maquiando os números.’”

• Consistência e equilíbrio da campanha do NÃO Era preciso reforçar sempre o argumento do Direito à Defesa, com base lógica, mas “recheá-lo” de conteúdos emocionais como o “lado humano do NÃO” (depoimentos de quem precisa de uma arma) e sentimentos como Liberdade e Responsabilidade do Cidadão. A avaliação disso era sinteticamente transmitida ao cliente com um quadro, explicação se necessário e textuais.

“O NÃO se deu bem, o SIM ficou no ritmo de festa. Ele explicou o que é

NÃO. O SIM colocou no geral. Ele não foi preciso e específico”

Nesses poucos exemplos, constata-se que os grupos em nenhum momento “bombaram” a comunicação, porque sempre entendemos que esse não é o

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papel da pesquisa, mas sim apontar e medir riscos, assim como indicar caminhos de correção. Também procuramos mostrar, com esses casos, como rapidez e simplicidade da informação fornecida não precisa de forma nenhuma implicar em superficialidade ou falta de foco estratégico. 4. Retratos do Cidadão brasileiro: ética e individualismo no dia-a-dia. O longo histórico do IBOPE Opinião, no levantamento de atitudes, opiniões e comportamentos declarados dos brasileiros nas mais diversas esferas da vida em sociedade, nos propicia uma visão bastante ampla sobre os fenômenos da opinião pública brasileira. Assim, com o intuito de investigar o impacto da crise que abalou novamente as instituições políticas brasileiras em 2005, com as denúncias do “Mensalão”, levantamos alguns dados sobre hábitos e atitudes na vida cotidiana. Conforme já mencionado no contexto do Referendo, percebíamos falta de sintonia entre a auto-imagem do povo brasileiro, com tendência mais positiva do que negativa, e a imagem de seus representantes e líderes políticos, totalmente negativa. Sob o ponto de vista de comportamento e valores éticos, esse “gap” revelou-se especialmente preocupante, comprovando a existência de um aparente paradoxo da opinião pública brasileira. Com base em nosso banco de dados de pesquisas dos últimos 15 anos (considerando como marco passado o Governo Collor),:constamos que de um lado, os brasileiros demonstram há anos insatisfação e rejeição frente aos níveis de corrupção no ambiente político-governamental do nosso país, com agravamento em momentos de denúncias e CPI’s. Por outro lado, parcela significativa do eleitorado apresenta desvios de conduta ética em seu dia-a-dia, sem notar qualquer relação com o comportamento dos políticos que a representam.

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4.1 – Uma visão negativa sobre a política e os políticos A visão da população brasileira sobre a classe política no geral é muito ruim. A corrupção é percebida como um problema crônico do país, arraigado em todas as esferas públicas sem exceção (seja em cargos executivos ou legislativos, seja nos níveis federal, estadual ou municipal, seja nas suas instituições – partidos, Congresso etc). É um motivo de preocupação para os brasileiros uma vez que é vista como um problema que afeta diretamente e de forma perniciosa a vida da população. De uma maneira geral, pode-se dizer que a confiança da população nos políticos e nas instituições políticas é muito pequena, reduzindo-se fortemente nos momentos de crise. Além de corruptos, há a idéia de que nossos representantes estão distantes dos interesses do povo, ocupando-se mais em conseguir benefícios para si próprios, para seus parentes, amigos etc. A falta de honestidade atribuída aos nossos políticos, não é um problema recente na percepção da população. Vem de longa data, atravessando governos e mais governos sem exceção, variando apenas o seu grau, avaliado sobretudo em função da divulgação dos fatos. Isso está refletido na queda gradual da confiança nas instituições políticas e ilustrado pelo aumento de exposição a notícias sobre corrupção, ao longo dos últimos anos, conforme séries históricas apresentadas abaixo.

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Outras informações pontuais colhidas do banco de dados de pesquisas realizadas pelo IBOPE Opinião junto a amostras nacionais do eleitorado ao longo dos últimos 15 anos, reiteram a imagem claramente negativa que os brasileiros projetam sobre suas lideranças políticas em termos éticos, culminando em resultados especialmente críticos obtidos na nossa pesquisa inédita de Janeiro desse ano.

Ao compararmos os dados da pesquisa deste ano com aqueles obtidos em 1992, verificamos que a esperança da população de que o Brasil se torne um país mais honesto diminui consideravelmente (de 44% para 28%), a despeito das inúmeras CPI’s ocorridas no período analisado.

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4.2 – E o povo brasileiro... Se o eleitorado tem bastante clareza quanto à falta de honestidade dos políticos brasileiros, não se pode dizer o mesmo em relação à sua própria imagem como “povo brasileiro”. Isto pode ser um reflexo do aclamado “jeitinho brasileiro”, ora motivo de orgulho, ora de vergonha, sinônimo de “jogo de cintura” em alguns momentos, em outros de maucaratismo.

De qualquer forma, fica claro que há problemas tanto quando se fala de honestidade de uma forma genérica, como quando há abordagem específica de comportamentos antiéticos, alguns ilegais: a “caixinha” para o guarda não multar, a sonegação de impostos, a compra de produtos piratas, as fraudes no seguro, entre outros. A questão que está posta aqui é que a população parece não relacionar seus “pequenos desvios” com o comportamento desonesto atribuído aos políticos. Além disso, observa-se um posicionamento ambíguo em relação aos próprios políticos: ao mesmo tempo em que dizem ter vergonha de seus representantes pela forma que tratam a coisa pública, alguns admitem que votariam em candidatos que lhes oferecessem vantagens pessoais. Além dos dados advindos de pesquisas quantitativas (apresentados a seguir), também encontramos nos últimos meses vários indícios qualitativos de que o cidadão brasileiro é ambíguo em relação às acusações de enriquecimento ilícito de governantes, criticando os acusados, mas ao mesmo tempo identificando-se com eles:

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5. Corrupção na Política: eleitor vítima ou cúmplice? Para “desvendar” esse aparente paradoxo era necessário abordar de forma mais conclusiva a questão sobre até que ponto os problemas éticos enfrentados pela sociedade brasileira estão mais concentrados nas suas elites e lideranças ou se trata de uma prática social disseminada em todas as camadas e grupos de nossa sociedade. A questão nos parece importante na medida em que as conclusões podem ajudar todos aqueles que se dedicam a aumentar os níveis éticos no nosso país.

• Nossas hipóteses

Para responder essa questão tão ampla, foi preciso desdobrá-la em algumas hipóteses simples, a saber:

Essa hipótese, se comprovada, demonstra que a transgressão de leis e regras, para benefício próprio, em detrimento do coletivo ou de outra parte individual, é uma prática disseminada em todas as camadas da nossa sociedade.

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Essa hipótese, se comprovada, demonstra que o “discurso” da opinião pública brasileira sobre corrupção política, com rejeição declarada aos que a praticam, não corresponde totalmente às atitudes (e provavelmente às motivações do voto) do eleitorado brasileiro.

Finalmente, mesmo não sendo uma hipótese, por não ser possível testá-la através de uma pesquisa desse tipo, queríamos também comparar os níveis de corrupção atribuídos aos políticos e os níveis de ilegalidade assumidos pelos eleitores no nosso país, partindo da suposição que os patamares seriam muito semelhantes. A operacionalização de nosso teste de hipóteses percorreu três etapas, descritas resumidamente a seguir. 1º) ELABORAÇÃO E VALIDAÇÃO DE MEDIDAS O fundamental era levantar, da melhor forma possível em uma pesquisa de opinião, as seguintes informações:

Um questionário foi elaborado composto basicamente de duas baterias de questões. A primeira listava uma série de práticas ilegais passíveis de serem cometidas por pessoas comuns. Partindo dos pressupostos da teoria

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do “Third-Person Effect”4, optou-se por perguntar para cada um desses itens qual a incidência de cada comportamento entre os brasileiros, depois entre as pessoas que o entrevistado conhece e finalmente a freqüência com que o próprio praticou cada um. Sabíamos que as respostas do eleitor sobre os outros, quanto mais distantes esses fossem, tenderiam a ser mais negativas do que as declarações sobre o próprio comportamento. Entre os diversos itens levantados, incluímos alguns já medidos em pesquisas passadas, mesmo que não em âmbito nacional, por termos segurança de que seriam ilegalidades passíveis de serem assumidas pelo entrevistado numa abordagem face a face. A segunda bateria trazia uma lista de atos de corrupção política, nas esferas Executiva e Legislativa, comumente citados em denúncias, tanto em meio à crise do “Mensalão”, como em outros momentos da história recente do país. Para cada item perguntava-se com que incidência os políticos brasileiros praticam tal ato, depois a incidência com que os brasileiros em geral praticariam esse ato caso tivessem oportunidade e a freqüência com que o próprio eleitor o faria caso tivesse a oportunidade. Por último, perguntávamos se o entrevistado considerava aquele ato “leve”, “médio” ou “grave” e se seria “aceitável” ou “inaceitável”. Numa primeira revisão interna do questionário, consideramos necessário aplicar essas duas últimas perguntas finais da bateria sobre corrupção política também para os itens da bateria de ilegalidades do cotidiano. Esse dado seria usado para ajudar na comparação dos patamares de práticas ilegais entre os eleitores e práticas de corrupção entre os políticos, segundo a percepção dos eleitores, pois poderíamos encontrar algumas transgressões do dia-a-dia tão comuns e já “legitimadas” na nossa cultura que talvez nem pudessem ser comparadas aos atos de corrupção entre governantes e representantes. O pré-teste (20 entrevistas em São Paulo) foi realizado e ajudou na exclusão de alguns itens de difícil compreensão, reformulação de outros e ordenação e formatação das perguntas (por exemplo, aplicação horizontal ou vertical das baterias) que facilitaram o fluxo da entrevista. Além disso, foi necessário reformular os pontos extremos da escala de incidência de práticas ilegais, pois constatamos que os entrevistados recusavam dizer que “todos” ou “nenhum” dos brasileiros ou de seus conhecidos fazem cada

4 Willnat, He, Takeshita e López-Escobar; “Perceptions of foreign media influence in Asia and Europe: the third-person effect and media imperialism.”; International Journal of Public Opinion Research, Vol. 14, No 2, 2002.

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uma das práticas. A escala, portanto, ficou com “quase todos” e “quase nenhum” nos extremos. Ainda pensando em facilitar a aplicação, mas também a análise dos resultados, utilizou-se o mesmo número de itens nas duas baterias (15), assim como procuramos manter a comparabilidade das escalas o máximo possível, mas não pudemos usar as mesmas escalas em todas as perguntas, já que cada variável exigia (conforme indicações do pré-teste) alguma adaptação. Cabe mencionar que, a fim de evitar o viés de repetição das respostas nas baterias, incluímos a cada 4 itens negativos (atos ilegais/de corrupção) 1 item totalmente positivo do ponto de vista ético. O pré-teste indicou que esse procedimento funcionou bem, fazendo o entrevistado parar para pensar antes de responder. O questionário final ficou razoavelmente simples com aplicação, face a face e domiciliar, em torno de 30 a 40 minutos. O questionário completo encontra-se em anexo. Os trabalhos de campo ocorreram em Janeiro de 2006, junto a uma amostra nacional representativa do eleitorado brasileiro, com 2001 entrevistas. A validação estatística das medidas foi feita com base no índice de confiabilidade (“reliability”) Alfa de Cronbach, com os seguintes resultados:

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2º) CRIAÇÃO DE INDICADORES Para facilitar a análise e a apresentação dos resultados, decidimos criar indicadores sintéticos para cada uma das variáveis referenciadas em nossas hipóteses.

• Indicador de Ilegalidade no Cotidiano do Eleitorado (IICE) O fato de ter obtido o menor índice de confiabilidade (mesmo estando acima dos mínimos aceitáveis) fez com que analisássemos melhor a validade da bateria sobre prática de ilegalidades no cotidiano declarada pelo próprio entrevistado. Conforme quadro de resultados abaixo, duas práticas apresentam incidências significativamente maiores: “Caixinha ou gorjeta para se livrar de multa” e “Comprar produtos pirata”. Os onze itens restantes obtêm incidências residuais, com o “nunca fez” ultrapassando os 90%. Por outro lado, ao opinarem sobre as pessoas que conhecem, ainda que esses mesmos dois itens mantenham destaque, a incidência nos outros sobe de patamar, com o ponto mais baixo da escala, “quase nenhum”, permanecendo entre 40% e 50% e caindo para 25% no caso do suborno para livrar-se de multa e para 11% no caso de consumo de pirataria. É impressionante, também, verificar a intensidade do “third-person effect”, pela projeção altamente negativa que os eleitores fazem sobre seus pares, os brasileiros em geral, com percentuais bem baixos opinando que quase nenhum brasileiro comete cada transgressão avaliada.

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Conforme mencionado antes, era preciso avaliar se todos os itens deveriam mesmo ser considerados “ilegalidades” do ponto de vista da opinião pública brasileira (já que estamos usando uma pesquisa de opinião e não registros concretos de descumprimento da lei). Para isso, analisamos o resultado das perguntas finais dessa bateria, sobre o quanto cada ação era considerada “leve/média/grave” e “aceitável/inaceitável”. Com exceção do item “Compra produtos que copiam os originais de marcas

famosas sabendo que são piratas ou falsificados”, com 51% de “grave” e 57% de “inaceitável”, todas as outras práticas foram consideradas graves por mais de 70% da amostra e inaceitáveis por mais de 80%. A homogeneidade e concentração dos resultados ao longo dessa bateria desaconselharam qualquer procedimento de diferenciação entre os itens na criação do indicador. Sendo assim, não foi utilizada nenhuma forma de ponderação nem excluído qualquer item entre as 13 “ilegalidades” avaliadas. O Indicador de Ilegalidade no Cotidiano do Eleitorado (IICE) foi criado, portanto, com base na bateria de percepção sobre práticas das Pessoas Conhecidas. Foi feita uma somatória simples de pontos, excluindo os casos que deixaram de responder algum dos itens e considerando os seguintes valores para cada alternativa da escala de resposta:

Como é composto de 13 itens, o IICE poderia variar entre 0 e 39 pontos. Os quadros abaixo apresentam a distribuição do IICE no total do eleitorado brasileiro, bem como nos principais segmentos sócio-demográficos e geográficos do país.

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Os 0 pontos atribuídos a 2% da amostra corresponderiam a um comportamento totalmente ético, ao significar que “quase nenhuma” das pessoas conhecidas do entrevistado, segundo ele, praticam os treze itens da bateria. Sendo assim, para 98% do eleitorado brasileiro, seus conhecidos praticam pelo menos uma dessas ilegalidades.

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Observa-se que essa distribuição mantém-se em todos os segmentos analisados. Por outro lado, praticamente três quartos (73%) ficam no intervalo de 0 a 14, numa escala de 37 pontos, indicando que o nível de ilegalidade no dia-a-dia dos brasileiros é moderado, sem uma combinação de alta diversidade (número de ilegalidades cometidas) com alta incidência (número de pessoas que cometem). Ao computarmos as respostas de outra forma, tomando a quantidade total de ilegalidades que cada entrevistado acredita ser cometida por seus conhecidos, temos 42% do eleitorado atribuindo aos seus conhecidos mais da metade (8 ou mais) das práticas ilegais avaliadas, sendo que 8% acreditam que as pessoas que conhecem, ainda que seja uma minoria delas, cometem todas as treze transgressões.

• Indicador de Tolerância à Corrupção Política (ITCP) Para a criação desse indicador, duas variáveis eram potencialmente boas medidas de atitude mais ou menos tolerante do eleitor em relação a práticas de corrupção por políticos, sejam eles governantes ou legisladores. A primeira corresponderia às opiniões sobre se cada item da bateria é

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“leve/médio/grave” e se é “aceitável/inaceitável”. Os resultados dessas perguntas apresentaram alta concentração nas respostas “grave” e “inaceitável”, com duas exceções, conforme ilustrado abaixo: Assim, descartamos essas perguntas de percepção de gravidade/aceitabilidade como bases para o ITCP, pois resultariam num indicador muito concentrado e pouco discriminante no eleitorado brasileiro. A outra variável que tínhamos no questionário é uma medida indireta de tolerância frente à corrupção, qual seja, a resposta do eleitor sobre sua própria probabilidade de cometer aquele ato ilícito se tivesse uma oportunidade. O Indicador de Tolerância à Corrupção Política (ITCP) foi criado com base nessa bateria sobre a freqüência com que o entrevistado cometeria cada ato de corrupção, caso tivesse oportunidade. Foi feita uma somatória simples de pontos, excluindo os casos que deixaram de responder algum item e considerando os seguintes valores para cada alternativa da escala de resposta:

Como o IICE, o ITCP poderia variar entre 0 e 39 pontos. O quadro abaixo apresenta a distribuição do ITCP no total do eleitorado brasileiro, bem como nos principais segmentos sócio-demográficos e geográficos do país.

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No caso do ITCP a pontuação nula, de 0 pontos, corresponde a um quarto do eleitorado brasileiro, ou seja, 25% demonstram intolerância radical à corrupção política, uma vez que rejeitam a hipótese de cometerem qualquer desses treze atos, caso tenham uma oportunidade. Há, no entanto, diferenças significativas se considerarmos o perfil sócio-demográfico do entrevistado. Além das mulheres, quanto mais velho e menos escolarizado o eleitor, menor o nível de tolerância à corrupção. A distribuição desse indicador traz níveis mais baixos de tolerância à corrupção política do que os observados no indicador de ilegalidades no cotidiano, pois quase três quartos (72%) dos entrevistados somam até 8 pontos, do total dos 39 possíveis. 3º) TESTANDO AS HIPÓTESES

HIPÓTESE 1: A maioria dos eleitores brasileiros já transgrediu alguma lei ou descumpriu alguma regra contratual, para obter benefícios materiais, de forma consciente e intencional.

O IICE mostra que, segundo a percepção dos brasileiros sobre seus próprios conhecidos, 98% do eleitorado comete algum ato ilegal no seu dia-a-dia. Mesmo se utilizássemos a pergunta direta sobre comportamento do entrevistado, teríamos 69% do eleitorado assumindo ter cometido pelo menos uma dessas ilegalidades até aquele momento. Essa hipótese, portanto, está comprovada.

HIPÓTESE 2: A maioria dos eleitores brasileiros tolera algum tipo de corrupção por parte de seus representantes ou governantes eleitos.

O ITCP mostra que 75% dos eleitores brasileiros acreditam que cometeriam pelo menos um dos atos de corrupção avaliados, caso tivessem a oportunidade, ou seja, se estivessem no lugar e nas mesmas condições dos políticos brasileiros denunciados por esses crimes. Consideramos esse dado suficiente para comprovar nossa segunda hipótese, uma vez que ao imaginar que poderia cometer um desses atos, o eleitor provavelmente será tolerante com o político que o fizer.

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É claro que os níveis de tolerância variam de um ato para outro, com a maior “aceitação” (menores percentuais de “não faria de jeito nenhum”) naqueles atos de corrupção cujos beneficiados diretos seriam os familiares/amigos e não o próprio entrevistado, conforme ilustrado no quadro a seguir.

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Os resultados dessa bateria sobre prática de corrupção na política também permitem concluir que, com exceção do ato de “Escolher familiares ou

pessoas conhecidas para cargos de confiança”, a opinião pública brasileira atribui às nossas lideranças políticas um perfil mais corrupto do que a imagem projetada para o povo brasileiro em geral. Em todos os demais itens os patamares de “Todos+Maioria” ficam em torno de 80% ao falarem dos “políticos e governantes” e caem para cerca de 50% a 60% ao falarem dos brasileiros”. No entanto, se considerarmos que a questão ética é absoluta e não relativa, ou seja, a diferença real é entre quem faz e quem não faz, sem levar em conta a freqüência ou o tipo de corrupção cometido, podemos estabelecer o seguinte quadro comparativo:

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Mesmo se considerarmos o percentual mais conservador, correspondente à declaração do próprio entrevistado sobre seu comportamento real e potencial, verifica-se, conforme esperávamos, que os níveis de corrupção atribuídos aos políticos, os níveis de ilegalidade assumidos pelos eleitores e também os níveis de corrupção provável assumidos pelos eleitores apresentam patamares semelhantes. Os dados acima ilustram, numericamente, o chavão nacional de que “todos os políticos brasileiros são corruptos”, mas infelizmente também parecem indicar que a falta de ética não atinge de forma grave somente a classe política brasileira.

HIPÓTESE 3: Assim como é atribuído às classes políticas brasileiras, há no eleitorado uma gradação tanto na prática antiética no dia-a-dia quanto na tolerância à corrupção política e essas duas variáveis estão correlacionadas fortemente, ou seja, quanto mais ético no dia-a-dia, menos tolerante com a corrupção tende a ser o eleitor.

A forma mais direta de testar essa hipótese é através de medidas de correlação entre o IICE e o ITCP, começando pela Correlação de Pearson, por ser a mais apropriada para variáveis numéricas.

Apesar de estatisticamente significativo, o coeficiente de correlação ficou abaixo do que esperávamos, então usamos outra maneira de verificar a associação entre a incidência de ilegalidades cometidas pelo eleitor e sua disposição de tolerar atos de corrupção política, através da análise do

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cruzamento entre os dois Indicadores. Para isso criamos 4 faixas correspondentes aos “quartis” (cerca de 25%) da distribuição em cada Indicador.

Como a tabela permite visualizar associação entre os dois indicadores, buscamos outra medida de correlação, mais apropriada para esse tipo de variável categorizada, tentando traduzir tais variações percentuais em um coeficiente, no caso o Kendall’s Tau b, bastante conservador e mais apropriado para variáveis ordinais.

Novamente obtivemos um coeficiente estatisticamente significativo, mas abaixo do esperado. Podemos dizer, portanto, que a nossa terceira hipótese está comprovada, pois há uma associação entre prática de ilegalidades no cotidiano e tolerância à corrupção política, mas não com a força esperada. Nesse sentido, essa terceira linha de investigação merece um aprofundamento de análise desses e de novos dados a serem coletados ao longo desse ano eleitoral.