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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 1100 CONSTITUIÇÃO TECHNO-THRILLER E DEMOCRACIA DIGITAL: A LEGITIMAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER NO ESTADO VIRTUAL 1144 Techno-thriller Constitution and digital democracy: The legitimation of power relations in the virtual state Rafael Zanlorenzi 1145 Resumo O presente artigo pretende analisar as implicações do emprego de mecanismos digitais de participação política para a continuidade das democracias de caráter constitucional na contemporaneidade. A formação histórica da democracia converge com aquela de um constitucionalismo de raízes oitocentistas (como informa ZAGREBELSKY 1146 ), lançando as bases formativas das relações de Estado contemporâneas. Através de tais circunstâncias, os regimes democráticos atravessam diversas condições modelares, as quais conduzem diferentes formas de participação política, notadamente no que diz respeito à compreensão e aplicação de garantias constitucionais em sentido específico. Com o advento de um modelo de participação digital, contudo, a construção de ordens tradicionais de formação da democracia se vê testada ao extremo, o que conduz, ao mesmo tempo, a ordem constitucional para um espaço de questionamentos profundos. Diante disso, dois problemas emergem: o primeiro deles concerne à possibilidade de continuidade histórica da leitura 1144 Artigo submetido em 04/04/2016, pareceres de aprovação em 19/04/2016, 04/05/2016 e 08/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016. 1145 Doutor e mestre em Direito pela UFPR; especialista em Direito Securitário e Empresarial pela UFPR; professor de Epistemologia, Filosofia Política e Teoria da Justiça da Universidade Positivo; professor de Ciência Política e Ciências Sociais das Faculdades Estacio. filosofiarafael@hotmail. com 1146 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1996.

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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 1100

CONSTITUIÇÃO TECHNO-THRILLER E DEMOCRACIA DIGITAL: A LEGITIMAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER NO ESTADO VIRTUAL1144

Techno-thriller Constitution and digital democracy: The legitimation of power relations in the virtual state

Rafael Zanlorenzi1145

Resumo

O presente artigo pretende analisar as implicações do emprego de mecanismos digitais de participação política para a continuidade das democracias de caráter constitucional na contemporaneidade. A formação histórica da democracia converge com aquela de um constitucionalismo de raízes oitocentistas (como informa ZAGREBELSKY1146), lançando as bases formativas das relações de Estado contemporâneas. Através de tais circunstâncias, os regimes democráticos atravessam diversas condições modelares, as quais conduzem diferentes formas de participação política, notadamente no que diz respeito à compreensão e aplicação de garantias constitucionais em sentido específico. Com o advento de um modelo de participação digital, contudo, a construção de ordens tradicionais de formação da democracia se vê testada ao extremo, o que conduz, ao mesmo tempo, a ordem constitucional para um espaço de questionamentos profundos. Diante disso, dois problemas emergem: o primeiro deles concerne à possibilidade de continuidade histórica da leitura

1144 Artigo submetido em 04/04/2016, pareceres de aprovação em 19/04/2016, 04/05/2016 e 08/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016.

1145 Doutor e mestre em Direito pela UFPR; especialista em Direito Securitário e Empresarial pela UFPR; professor de Epistemologia, Filosofia Política e Teoria da Justiça da Universidade Positivo; professor de Ciência Política e Ciências Sociais das Faculdades Estacio. [email protected]

1146 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1996.

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constitucional, problema esse proposto por CANOTILHO1147; em segundo lugar, a possibilidade de ampliação dos espaços de participação permite ao mesmo tempo a alteração estrutural da forma como tal participação é exercida, ameaçando a leitura democrático-constitucional por meio da massificação de opiniões e da ordem discursiva do daily me¸ limitado a um lugar argumentativo de doxa, ou mera opinião. Em última instância, os dois problemas se projetam para a questão central da manutenção de traços democráticos e constitucionais genuínos a despeito da desenfreada e por vezes tecnicamente deficitária capacidade interventiva direta dos meios virtuais de comunicação, em oposição à democratização da publicidade de ideias.

Abstract

The purpose of this paper is to analyze the impact of digital mechanisms of political participation on the continuation of constitutional democracies. The historical formation of democracy converges with the formation of a constitutionalism rooted in the 18th century (according to Zagrebelsky), laying the formative foundations for contemporary State relations. These circumstances led democratic regimes to go through certain conditions in terms of models, leading to different forms of political participation, particularly regarding the understanding and application of constitutional guarantees in a specific sense. With the advent of the digital participation model, however, the construction of traditional orders for the formation of democracy is tested to the extreme, leading the constitutional order to a space where it is seriously challenged. Thus, two problems emerge: The first one is related to the possibility of a historical continuity in the reading of the constitution, an issue proposed by Canotilho; secondly, the possibility of expanding the spaces of participation can lead to structural changes in the way this participation occurs, threatening the democratic-constitutional reading through the widespread dissemination of opinions and of the “daily me” discourse order, limited to the argumentative locus of doxa or mere opinion. Ultimately, both problems involve the central issue of maintaining genuine democratic and constitutional features in spite of the rampant and at times technically deficient ability of direct intervention by the virtual media, as opposed to the democratization of the publicnes of ideas.

PALAVRAS-CHAVE: Consenso. Constitucionalismo. Democracia digital. Escritura. Hermenêutica constitucional.

KEYWORDS: Consensus. Constitutionalism. Digital democracy. Writing. Constitutional hermeneutics.

IntroduçãoO modelo de uma “Constituição dúctil” apresentado por ZAGREBELSKY em

seu Diritto Mitte expõe um grau de abertura espantoso no que concerne à apresentação

1147 CANOTILHO, J.J. Gomes. “Brancosos” e Interconstitucionalidade – Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ed. Coimbra: Almedina, 2008.

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conceitual do Estado de Direitos, permitindo ao problema central de sua definição um realinhamento estratégico de grande relevância. Nele, a maleabilidade desse modelo exige que, em certa medida, haja um reencontro de esferas hermenêuticas propriamente ditas, capazes de permitir uma implementação aberta da ordem constitucional segundo os parâmetros de revisão da participação popular e dos limites próprios da soberania. Esse modelo se vê profundamente agravado pela disponibilidade de mecanismos de participação virtual, capazes de revolucionar o modelo de legitimação democrática das relações jurídicas para traçados que em muito transcendem as circunstâncias formativas de modelos de determinação da força de lei em anterioridade às ordens de gestão de interesses privados tornados universais (KANT, desde a leitura de sua Crítica do Juízo, mencionado também por ZAGREBELSKY como potencial modelo de interpretação de ordens normativas nativas do Estado de Direitos). Assim, com a intensificação da participação popular na vida política sem um estado de formação primordial da linguagem estruturante de tais interesses, passa-se a uma coleção de dilemas que, a seu modo, jogam com as fronteiras éticas e excepcionais da formação do Estado (AGAMBEN), no momento em que pretendem a implementação definitiva das relações democráticas através da participação plena de cidadãos nos debates políticos, sem contudo conferir garantias limitantes à determinação ancestral de que a lei deve se sobrepor aos modelos propriamente ditos de determinação política aberta. Demonstração disso reside sobretudo na formação de uma nova linha de corte participativo, superadora das limitações sutis da comunidade de falantes de HABERMAS para a determinação de uma constelação de comunidades de debate online, das quais nem todos participam (movimento esse análogo àquele determinado pela potencial implementação de grupos de inclusão de representantes de movimentos sociais nos quadros políticos ortodoxos, os quais terminam por excluir qualquer cidadão que não exponha uma dimensão de pertença a um desses grupos).

1. Heterogeneidade de interesses, direito e constituição

Se a composição do Estado determina a necessidade de uma universalização de interesses particulares em razão de traços ideológicos dirigistas (KANT, ROUSSEAU), então a eclosão de modelos que permitem debater, expressar, vigiar e contrapor abertamente as escolhas feitas representam o choque fundamental para a transformação de paradigmas amplos de formação do Estado. ZAGREBELSKY1148 afirma que o Estado Liberal de Direitos teve como ordens fundamentais de estruturação a preocupação específica de produção de certas leis que contrapunham a razão de uma liberdade da população (lida efetivamente como a sociedade civil, do arco conceitual que viceja entre ROUSSEAU e HEGEL), bem como a limitação de traços administrativos em virtude de tais princípios.

Nesse modelo, a exposição da legislação tinha como caráter hereditário das ordens representativas a preocupação de permitir a ativação de direitos perante um

1148 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1996.

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Estado que, supõe-se, de outro modo seria capaz de superá-los em nome de razões da esfera prática, abandonando-os de pronto sem quaisquer modelos instrumentais de resposta. Igualmente, os movimentos que permitiriam a um cidadão alçar o vôo de desagregação de atos lesivos a tais liberdades (antes de tudo, liberdades de cunho proprietário, como o próprio autor nos informa) permitiria apenas através de mecanismos intra-sistêmicos a oferta de uma retratação. Disso seria aduzida, por exemplo, a necessidade de delegação de certos poderes (KELSEN) para os cidadãos, capacitados então para exigir a atuação do Estado sobre certa ordem de casos, por meio de acionamento processual. Note-se, então, que ZAGREBELSKY insiste na organização de tais modelos em razão de uma rigidez do Direito, traduzida na sedimentação de leis como agentes inflexíveis de uma conduta limitadora das ações do próprio Estado (que o autor recuperará pelos traços descritivos fundamentais da força de lei no âmbito continental e da rule of law no campo da common law).

Essas condições invariavelmente acertadas para a demonstração da força normativa reiteram o aspecto rigoroso da exposição de garantias que contaminam a Constituição através de uma flexibilização de suas alterações mediante norma. Nesse ponto, o tráfego ideológico se tornaria mais intenso, eis que a lei poderia, afinal, traduzir interesses ao invés de uma vontade geral (ROUSSEAU) ou de uma máxima (KANT), agregando dessa forma um modelo viciado de produção normativa.

Há que se dissecar as observações do autor, contudo.

Isso porque, sob uma análise cuidadosa de suas observações, é possível perceber que a imposição de rigores específicos para a limitação da atividade administrativa através da lei, a rigidez obtida, muito embora tracejada pelos rumorejos de atividades oligárquicas ou de interesses paritários, ainda assim permitia a esfera de arquiteturas conflitivas dentro de tais meios. É certo, contudo, que não se poderia afirmar ali uma presença genuína de um Estado Democrático, eis que a apropriação meticulosa do texto seria bastante para operacionalizar debates limitados a uma esfera de condições de possibilidade materiais e hierárquicas de participação política. Significa dizer, portanto, que a atividade específica de compreensão e aplicação das normas, nomeadamente de normas constitucionais, estava antes de tudo circunscrita aos limites do interesse material e à condição vital de agregação de interesses produtivos àqueles pertinentes à administração, gerando-se assim uma especificação contundente de modelos de soberania que só se prestariam à garantia de extensões de debates sobre malhas de disputa internas (como o próprio ZAGREBELSKY1149 colocou).

Pretende-se com isso demonstrar que, ainda que o autor destaque a noção de um Estado que se vê parcialmente subjugado pelas demandas da lei, o que em verdade se coloca diante de sua exposição é que o trabalho de rigidez jurídica,

1149 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1996. Passim.

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notadamente estabelecido por uma apreciação constitucional estruturante de forças de Estado, menos preocupada inicialmente com contextos garantidores de direitos individuais, anseia pela busca de um argumento protetivo contra as influências externas, permitindo assim a liberdade relativa de tensões internas entre facções interessadas em modelos de desenvolvimento diversos.

Nesse caso, explica-se de maneira mais vertical a presunção apresentada pelo autor em sua obra1150. De fato, quando afirma francamente que a Constituição assume, depois de um elenco de tradições positivistas, papel de unificação de um ordenamento de outro modo fluido, aberto e condicionado a várias opiniões, com grande amadurecimento mostra a presunção de uma unidade anterior. Esse ponto é crucial para a revisão da obra, já que o autor persiste na imposição de um traçado unificador a título de instrumentalização de seu argumento posterior.

Pondere-se por exemplo os modelos de produção jurídica elencados anteriormente pelo autor. Identificam-se pelo menos dois estágios anteriores, considerados mais solidamente, que permitem falar nessa “unidade pressuposta” do Estado. No primeiro caso, dentro do regime absolutista, tem-se o emprego direto da força em nome da unificação do Estado. A observação de ZAGREBELSKY é muito semelhante, nesse caso, àquela encontrada em COMTE, quando afirma que as condições metafísicas de formação do Estado só podem ser consideradas válidas em virtude da imposição de tais ideias através da presença de modelos hierárquicos sustentados por uma ordem de tons militares.

No segundo estágio, já mencionado como a ordenação de um Estado Liberal, a unidade surgiria em razão de um determinismo de traços ideológicos, atendendo a interesses limitados dentro de contextos de aplicação e interpretação da lei. O eixo ideológico em questão estaria representado pela presença de normas limitantes das condições de atuação da administração pública.

Em acréscimo às colocações do autor, pode-se revisitar a tradição constitutiva da ordem pública em ciclos anteriores, coisa que não deve ser feita com leniência, todavia.

Pretende-se, com isso, uma recuperação mais completa do termo empregado por CANOTILHO1151 ao dissertar sobre o tema da renovação virtual da democracia, momento em que inquire a respeito da possibilidade de continuação de uma história da Constituição. Nesse caso, a exploração proposta não pretende ser a da realização de um objeto de estudo contínuo e ontologicamente dirigido para a democracia e para o constitucionalismo, mas retorna ao contexto de uma ordem constituinte que transcende os modelos de organização do texto constitucional do século XIX.

1150 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1996, p. 38.

1151 CANOTILHO, J.J. Gomes. “Brancosos” e Interconstitucionalidade – Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ed. Coimbra: Almedina, 2008.

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Busque-se inicialmente tão somente a ordem político-constitutiva da Antiguidade. Nela, dois textos se destacam, quais sejam, a Constituição de Atenas e a Constituição de Licurgo. Em ambos os casos dificilmente os textos podem ser considerados segundo parâmetros dignos do oitocentismo unificador de ZAGREBELSKY1152. Ao contrário, a relação de exposições em ambos os textos pretendem ser uma referência mais específica aos estágios de formação histórica dos modelos políticos contemplados no âmago das estruturas antigas.

Sabe-se, por exemplo, que entre a ordem popular ateniense (a de sua democracia radical, centrada na Eclésia e na ordem de participação de todos os cidadãos homens e adultos da cidade-estado) e o modelo de Licurgo

Centrado na formação de um conselho de anciãos, um corpo de sacerdotes e uma coroa militar) há diferenças estrondosas de organização. Enquanto o primeiro modelo representa traços de composição ampla e alianças, o segundo se viu historicamente sustentado desde o plano das conquistas, o exercício da expansão de fronteiras e o desfrute da produção dos hilotas conquistados, como nos informa ARISTÓTELES.

Não é insuficiente, por conseguinte, entender que a constituição de tais cidades-estado ou mesmo reinados não guardaria qualquer familiaridade com a unificação oitocentista, centrada no governo da lei. As instituições, contudo, eram cruciais para a sustentabilidade e regeneração de tais modelos políticos, como referiria, anos mais tarde, o próprio MAQUIAVEL1153, em remissão a TITO LÍVIO e ao modelo da República Romana.

Sob a perspectiva dos modelos prestados na Antiguidade tem-se a parametrização fundante de uma potência constituinte, incorporada ao campo das expressões políticas através da consolidação institucional resultante. Em outras palavras, em cada uma dessas realidades tem-se que a possibilidade de constituir um Estado surge, em sentido próprio, de medidas unificadoras precárias de organização e harmonização. Atenas, por exemplo, demandou mais de trinta e nove tiranos ao longo de sua história livre conhecida para manter a unidade da cidade-estado, que de outra forma teria sido engolida por conflitos de facções políticas, caracterizadas por seus interesses divergentes. Movimento análogo teria demonstrado a mesma dificuldade no período da alta diarquia espartana, quando conflitos internos levaram a incursão dos séculos IX e VIII a.C. contra Atenas ao fracasso, em razão de uma discordância entre os diarcas, então em campanha. Do dissenso a cisão inevitável do exército teria levado ao retorno de metade das forças espartanas para o sul, com a continuação da malfadada campanha com forças limitadas.

1152 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1996.

1153 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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Em Roma, espírito análogo teria atingido os cidadãos ao longo de toda a história, tendo adquirido maior notoriedade o circuito das constantes disputas entre patrícios e plebeus ao longo dos séculos IV e III a.C., definidores do que viria a ser a participação popular sob o escopo da lei romana.

A potência da locução “unidade presumida’ ganha tons mais contrastados em ZAGREBELSKY1154, diante de todo o processo histórico apresentado. É importante, contudo, regressar a esse tópico, eis que a sua revisão permite entender que é apenas por meio de um delicado e dinâmico labor que se pode sustentar a integridade de um Estado, seja qual for a forma de governo ou o regime que assuma. E isso acontece sobretudo porque não há, em sentido próprio, uma união de interesses, estando todos eles desde sempre lançados em um meio que encontra recursos pragmáticos para a realização de unidades presumíveis.

As mesmas circunstâncias podem ser encontradas em momentos posteriores da história, nos quais unidades políticas vieram à tona em razão do emprego de agentes de unificação forçosa. Exemplo vívido pode ser encontrado entre os escritos de GREGÓRIO DE TOURS1155, ao descrever a unificação das tribos francas com a posterior dominação dos galo-romanos. Aqui, a narrativa de Clóvis se destaca por duas forças motivadoras fundamentais: a conquista por força das terras que seriam mais tarde o coração do reinado dos merovíngios e dos carolíngios e a consolidação de uma lei escrita para assimilação facilitada da comunidade galo-romana. Segundo o exercício de formação das dinastias francas, percebe-se o exercício de constituição política de um império que se iniciara sob a presença visível de vários interesses legitimadores diversos, incorporados inclusive a interesses diversos de governança. Note-se, aliás, que os galo-romanos preferiram em várias ocasiões a assimilação aos francos em virtude de seus modelos de produção, ligados ao cultivo da terra e dependentes de momentos de paz, coisa que não seria obtida sob domínio continuado de uma força romana que decrescia na região com o passar dos anos. Quando da insurreição galo-romana na região, por sinal, a busca de emancipação vigorou para a formação de um governo apartado do velho império, e mesmo assim, após a conquista pelas mãos dos francos, resolveu-se a situação pela absorção da presença galo-romana através de sua enunciação sob tópicos específicos da própria Lei Sálica, tradicional corpo de fundamentos jurídicos dos francos sálicos.

A Modernidade não foi diferente. Pela sedimentação de reinados absolutos, o poder só seria mantido diante do delicado equilíbrio de interesses internos e externos, o que levava a constantes alianças com famílias e coroas estrangeiras. Mais que isso, o modelo do Leviatã hobbesiano teve dois fundamentos irrefutáveis, os quais geraram ruído na uniformidade de suas teses (potencialmente levando à erosão política de seus textos que, somando-se à revolução parlamentarista e às apologias de LOCKE,

1154 CANOTILHO, J.J. Gomes. “Brancosos” e Interconstitucionalidade – Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ed. Coimbra: Almedina, 2008.

1155 GREGORY OF TOURS. The History of the Franks. Rosebank: Penguin Books Ltd., [S.d]

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deixa-lo-iam em segundo plano perante o teórico mais jovem): primeiramente, o Leviatã residia num plano conceitual, persistindo como agente de pacificação plenamente aplicável aos

traços interiores de leitura e agregação das fronteiras de uma nação, demonstrando falibilidade quando as relações materiais exibiam a potência de ameaças externas, antes ligadas ao estado natural de guerra de todos contra todos; em segundo lugar, essa relação e tantas outras, como nos coloca AGAMBEN1156, seria apenas o resultado de um equilíbrio semiótico, perpetrado pela construção de uma filosofia da linguagem legatária de traços do nominalismo medieval, mas exercida para a refutação direta de suas condições metafísicas mais elevadas (em razão do empirismo de fundo do pensamento de HOBBES).

Quando AGAMBEN posiciona o problema sobre os fundamentos linguísticos do pensamento de HOBBES, sua colocação se alinha com a noção de uma unidade presumida, que extraímos de ZAGREBELSKY. Contudo, enquanto este autor insiste na noção de uma Constituição unificadora, AGAMBEN ressalta que, em um modelo absolutista, a linguagem pode ser, por sua harmonização convencional, o modelo de determinação fundamental de categorias inteiras para a formulação das dezesseis leis do Direito Natural de HOBBES, bem como de suas teses sobre o Estado.

O acerto em questão determina, sob o signo do Absolutismo, uma harmonização geral de interesses que são traduzidos pelas bases contratualistas. É o caso ressaltar que a presença de uma linguagem uniformizada em suas qualidades mais instrumentais atende a uma necessidade legitimadora ancestral, qual seja, a de transcender os limites de exceção propriamente dita (no sentido em que AGAMBEN emprega o termo) através da instauração de condições comunicacionais. O mesmo princípio de exploração da linguagem visível em HEGEL, qual seja, o de que a linguagem é letal para o presente e para suas condições vivenciais, emerge antes em HOBBES. Contudo, a letalização vivencial de que trata o autor do Absolutismo pretende letalizar o estado de exceção constante em que existiria, segundo suas digressões, a própria humanidade, resguardada que estivesse da possibilidade de formar uma sociedade organizada e protegida por um Estado-Nação protetor.

A implicação imediata dessa mesma preocupação, notadamente em virtude da presença de traços garantidores no sucessor LOCKE, surge quando a linguagem passa a se imiscuir em sentido letalizador e mais apropriadamente uniforme desde as já mencionadas relações unificadoras de ZAGREBELSKY. A primeira delas existiria na presença de um traço alarmante de deposição objetiva de limites de administração por meio de exercícios positivistas, a qual seria seguida pela presença de uma qualidade genuinamente escritural no trato constitucional, instituindo assim o dilema

1156 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2 ed. Belo Horizonte: UFMG,2002.

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da ampliação da linguagem constitucional a partir do constitucionalismo oitocentista. Seja como for, a possibilidade de ampliação de interesses ainda persiste, eis que a apropriação do texto se dá apenas segundo um conjunto de medidas prêtes à porter (empregando a expressão de LIPOVETSKI1157), as quais moralizam discursivamente as diversas posições estratégicas no âmbito da sociedade civil, limitando-as e submetendo-as a uma unidade legislativa legitimada desde as fronteiras da exceção e da civilização.

Como, então, é possível considerar a continuidade dessa narrativa constitucional segundo o critério de formação da democracia digital, a qual retoma as qualidades essenciais das relações pontuais de formação de posicionamentos múltiplos, quer em termos políticos, quer em termos hermenêutico-constitucionais?

2. Democracia digital e a reconstituição da narrativa histórico-constitucional

Para além das fronteiras da história democrático-constitucional até aqui brevemente relatada, é possível repensar as condições de produção do pensamento a respeito do tema em pelo menos três frentes. A mais evidente, que pretende-se alcançar prontamente, é a da superação dos modelos rígidos de aplicação do Direito e da recuperação da ductibilidade constitucional através da aceitação de traços hermenêuticos que permitam absorver as mais diversas perspectivas cabíveis ao texto. A segunda frente diz respeito às condições narrativas de formação do modelo constitucional, as quais parecem enfrentar, desde o momento de uma instauração mais rigorosa de uma hermenêutica constitucional, uma transformação maciça, a qual bem pode levar ao fim da tradição histórico-constitucional típica. Por fim, a transformação mais brutal ocorre na própria força que configura a alteração da rotina histórico-metodológica do Direito, expandindo-o para além de suas fronteiras em razão do questionamento contrametodológico da hermenêutica, que desde GADAMER pretende refutar as limitações de uma tradição histórica, mas que ao mesmo tempo catalisa a alteração final do processo histórico sob perspectivas culturais (sob o resultado mais agudo dos movimentos investidos de espírito transformador, desde BRAUDEL até GINZBURG), ao ponto de transformar o modelo da microhistória em um conjunto de circunstâncias propriamente narrativas.

Considere-se por exemplo a instauração de uma perspectiva hermenêutica a partir do binômio autoral de GADAMER e BETTI. A questão mais acentuada nesses casos reside em primeiro lugar no encerramento de um circuito de inversões da applicatio. O eixo gravitacional da exposição casuística do Direito abandona os traços de uma norma anterior centralizadora, expandindo seus recursos para o limiar da constituição decisional, e chegando mesmo ao ponto de reformar a norma

1157 LIPOVETSKI, Gilles. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005.

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constitucional como sendo uma tradição decisional de caráter abstrato e amplo, como um jogo contextualizado de estratégias e opções realizadas em nome da condição interna de confecção da exceção do Estado. Para a auferição central de uma hermenêutica constitucional capaz de atingir um grau de elevação tão peculiar, será necessário considerar que as decisões de caráter hermenêutico apresentadas sob a perspectiva em questão referem-se especificamente ao caráter de abertura constitucional progressiva, abertura essa que enseja uma mitigação das decisões originais em traços de uma reelaçboração mais ampla. Tome-se como exemplo a expansão da aplicação dos direitos fundamentais, incluindo quaisquer pessoas presentes em território nacional, ainda que não tenham outros modelos de proteção jurídica, por qualquer razão que seja. Da mesma maneira, a absorção, desde ordenamentos de direitos humanos, de certas cartas protetivas, seja em nível constitucional, seja por reinterpretação direta do texto constitucional, também mostra a relevância dessa concepção hermenêutica da materialidade constitucional apresentada.

Nesse ciclo, o principal modelo polêmico apresentado entre os dois autores diria respeito especificamente à natureza do binômio compreensão-decisão. Para GADAMER, a imposição do binômio representava um traço aporético, eis que a compreensão demanda tempo longo e a decisão exige sua redução. BETTI, por seu turno, tendeu para uma compreensão fenomênica dos traços hermenêuticos relacionados, assumindo as características precárias das decisões compreendidas dentro das limitações temporais oferecidas ao julgador, aceitando por conseguinte sua possibilidade de alteração segundo traços temporalizados de integração decisional ao longo de anos de história de julgametnos em tribunais.

O problema é que as decisões integradas a um esquema de relações constitucionais derivam de si mesmos um traçado excepcional, que se repete a cada momento em que uma corte constitucional se dispõe a reinterpretar normas segundo critérios compreensivos de fronteira. Assim sendo, cada modelo específico de compreensão poderia representar uma capacidade de revisão dos traços excepcionais de investimento do poder do Estado, inclusive alterando as limitações ao campo da administração, dedicados a certos moldes desde a exploração primordial do Estado Liberal, e não abandonadas nos modelos posteriores. Exemplo disso se encontra em decisão recente de nossa própria Suprema Corte, que pretendeu a aceitação de prisão de acusado antes de trânsito em julgado de decisão judicial terminativa. No caso, a relação que sofreu revisão dizia respeito ao princípio da presunção de inocência, e muitos poderiam alegar que a questão é impertinente aos critérios de concretização da democracia. Contudo, aqueles engajados na percepção do legado de um Estado de direitos poderão se adiantar ao dizer que o princípio democrático não se resume à concepção de um regime em meio ao traçado de potenciais cláusulas pétreas de um texto constitucional, ampliando-se para o contexto de possibilidades pontuais capazes de permitir sua implementação, defesa, garantia institucional e instrumental e irrevocabilidade material. Desse modo, romper a presunção de inocência significa

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atacar direitos por meros traços denuncistas, no sentido amplo do termo, condição essa mais afeita à ordem de regimes autoritários e totalitários.

Sob tais condições, o próprio modelo hermenêutico representou a um tempo esperança de concretização total da norma constitucional referente à capacidade de implementação pontual dos valores fundantes do Estado democrático de direitos, mas ao mesmo tempo solicitou o processo efetivo de sua ameaça maior, abrindo condições de referência pontual, in casu, para ordens específicas de traços excepcionais, agora mitigados em julgamentos de supremas cortes passíveis de adoção do mencionado contramétodo.

É curioso, aliás, imaginar como esse modelo de ductibilidade súbita permitiu uma exposição maior de todos os contextos formativos das democracias contemporâneas, resguardados os elementos de fronteira e contraste diante das relações nuas de poder, denunciadas por ARENDT, AGAMBEN, NEGRI e tantos outros. A condição dessa ductibilidade seria suficiente para contrastar com a resistência do regime democrático sob condições formais e materiais de uma Constituição, mas ao mesmo tempo permitiria abrir precedentes curiosos no que diz respeito às armações institucionais passíveis de sustentar tal regime. A noção de consulta popular sob tantos aspectos particulares de implementação de valores específicos da democracia, e a modaização de suas forças e tensões interiores, mostrou suficiente razão para permitir, através da inserção de avanços tecnológicos suficientemente disseminados, a reconstituição dos atores políticos em nome de uma participação mais ativa da população em decisões cruciais, ao ponto de se cogitar a ideia de uma democracia digital direta (o que traria uma nova ordem de problematizações excepcionais, previstas talvez por LYOTARD e DERRIDA, quando comentam os problemas de segurança inerentes às tecnologias codificadas e criptografadas).

A Constituição informacional aceita todas as alterações mencionadas acima, convergindo sua ductibilidade com a noção de avanços tecnológicos que precisam ser cada vez mais especificados, descritos, debatidos, compreendidos e vividos. Abre-se uma nova série linguística, capaz de rever os modelos narrativos que construíram ao longo dos últimos dois séculos, o constitucionalismo, emancipando-o das esferas representativas, ligadas a uma oligarquia técnico-jurídica, mas entregando suas forças à vitimização popular da democracia da escrita rápida e da possibilidade de manipulação em razão das tecnocracias virtuais.

Ao debater essas transformações, CANOTILHO expõe a ameaça que esse novo movimento representa à velha história constitucional, perguntando-se se ainda haverá lugar para uma história do constitucionalismo e das Constituições. A chave de suas dúvidas está resumida em republic.com, obra de SUNSTEIN1158 que suscita a série de problemas advindos de uma maleabilização das esferas de comunicação,

1158 SUNSTEIN, Cass. Republic.com. Princeton: Princeton University Press, 2001.

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opinião política e decisão por meio de instrumentos multilaterais de comunicação virtual (notadamente refinados após a segunda revolução das redes sociais). Nasceria com isso uma versão menos verticalizada de participação, excedente dos limites de composição hermenêutica e contrametodológica do ciclo anterior. A fugacidade de tais movimentos políticos foi resumida por CANOTILHO na aparição cômica do “partido dos brancosos”, um grupo de protesto virtual que apregoaria a expressão de posicionamentos políticos demonstrativos de insatisfação universal com as opções sistêmicas através da apresentação perene de votos em branco. Ressalta-se por tais instrumentos a fugacidade dos movimentos de participação democrática, como o próprio CANOTILHO insinua, para uma espécie de qualidade reativa não aprofundada.

Morbidamente, esse modelo se aproxima demarcadamente do desconstrucionismo de posições e espaços outrora discutido por BAUDRILLARD. Ao discutir os lineamentos gerais de uma sociologia das massas, o autor insistiu na apreensão de tais modelos sob a metáfora aterrorizante da população em geral como um buraco negro na constelação das decisões políticas e sociais. Através do reengajamento das novas mídias, a massa populacional teria se tornado o local de perda total de relevância e sentido, como que a se dizer que a opinião pública simplesmente engoliria todos os temas relevantes, contundentes e escandalosos, fazendo-os perderem-se numa eterna escuridão que tudo draga e nada retorna. A massa seria, então, passiva entidade de entropia e perdição de todas as questões relevantes, transcendendo inclusive a inação que ARENDT afirmou outrora representar o maior perigo para a ascensão dos totalitarismos.

Muito embora CANOTILHO admita que a sua intervenção é ensaística e mesmo um pouco cômica, a preocupação que reside para além de sua extensão apresenta uma preocupação severa para os limites de um constitucionalismo solidamente informado. Se seguirmos a tradição mais ortodoxa de organização da história de uma potência constituinte, veremos que ela pretende traduzir sob várias constelações políticas diferentes uma mesma intenção central, qual seja, a de sustentabilidade institucional da ordem política em questão. A proposta lúdica de CANOTILHO deixa, então, de conter aqueles traços ensaísticos a que se propôs, simplesmente pela pergunta que projeta em seu final, qual seja, a de se ainda há espaço para uma história constitucional em esferas de debate abertas, que mesclam modelos narrativos a seu bel-prazer, diluindo a apropriação da história por forças detentoras de uma voz representativa, costumeiramente estabelecidas sob o signo do poder constituinte.

A questão proposta no presente modelo não deixa de demonstrar a condição de um meta-discurso histórico dos movimentos de constituição das esferas institucionais, o qual tem sido alterado grandemente a depender da posição histórica que consideramos como modelo de relevância interna na organização de traços de precisão e na composição de noções de um passado político.

O risco que CANOTILHO tanto observa a partir dessa potencial diluição histórica não é sem razão. Longamente, o constitucionalismo oitocentista se sustentou

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em razão de um caráter escritural para sua ordem textual (no sentido da teoria da escritura, erigida pelo eixo tríplice de CONDILLAC, ROUSSEAU e DERRIDA). Assim, segundo um conjunto de armações simbólicas, a ordem constitucional pretendeu, em seu surgimento, não apenas uma unidade, mas sobretudo uma condição de perenidade, estipulada por uma permanência dinâmica de seu texto, que ainda assim aceitava discutir rigidez ou semi-rigidez como atributos viáveis, ainda que a própria natureza da linguagem devesse, em algum ponto, ser negada para permitir a inversão da flexibilidade ampla desse corpo de dispositivos principiológicos.

O problema de CANOTILHO surge porque essa condição escritural sofreu em si e por si, e diante da transformação metodológica da história, a absorção do ludismo como mecanismo criativo da linguagem, coisa que teria sido recusada desde a sedimentação dos alicerces políticos da República de PLATÃO1159. Se a República ideal é refratária a atos criadores, então o aedo e o rapsodo em suas diversas exposições individuais não são bem-vindos. Inimigos da República, merecem antes o banimento, exceto nos momentos em que respeitam as tradições representativas e simbólicas do percurso de deposição política que o próprio PLATÃO ensejou. Como, contudo, negar a condição de expressões criativas de crivo individual depois da travessia dos anos 90, em que a ansiedade criadora buscava, em traçados melancólicos da arte pictórica pós-moderna, da filmografia independente, da música grunge e das expressões ardentes contra a industrialização das linguagens, sua emancipação? O advento de modelos de expressão abertos (desde os blogs até os portfolios globalmente acessíveis do deviantart) tornou impossível ignorar a opinião política dessa massa de produção individual e artisticamente inclinada, que logo atingiria toda a população através da inserção de videologs, diários online e canais particulares de transmissão. Se outrora a arte particular e desvinculada de academicismos técnicos estava restrita a iniciativas como a Internacional Situacionista, com resultados de criminalização e marginalização, agora a expressão particular e única é a nota do dia, dedicada que está à construção de nichos de opinião, apreciação e diálogo.

E a Constituição não saiu ilesa.

Sua acepção geral é a de um texto que não tem história porque se apropriou criativa e materialmente de sua historicidade, ganhando os espaços de protesto, as fisionomias de massa e as esferas virtuais. A história da Constituição e do constitucionalismo não pode mais ser dissociada de uma história da tecnologia, com toda a riqueza de detalhes e com todo o domínio técnico necessários à compreensão do papel dos códigos e dos elétrons nas relações humanas de hoje. O Techno-Thriller constitucional abriu asas: um estilo literário só seu, apropriou-se das distorções narrativas particularistas da microhistória mais dinâmica, abraçando a natureza obsessiva do estilo de novelas rápidas que atendem ao sabor de seus leitores com excessos detalhados a respeito de tecnologias, técnicas, práticas computacionais e

1159 PLATÃO. A República. 12ª ed. Lisboa: Calouste Goulbenkian, 2010.

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códigos. Para completar o quadro em questão, a sobreposição aterrorizante do Techno-Thriller e da literatura apocalíptica vem se insinuando, quando fala sobre a tomada abrupta dos meios de posicionamento e opinião pelo mapeamento de endereços de IP, do assalto a bancos de dados, dos denial-of-service attacks e da inviabilização da vida cotidiana pela destruição das dimensões virtuais de comunicação. Ou estamos às portas de uma aniquilação criptográfica (a exemplo da aniquilação nuclear da Guerra Fria) ou estamos às portas de um processo de fraternidade universal integradora, como nos dizia o agora falecido Umberto ECO, em seu Apocalípticos e Integrados, talvez antecipando o movimento de culturas que carregaria de novos tons as colocações gerais a respeito dos limites do Estado.

Para a capacitação de tal modelo de atuação democrática em nome de seus potenciais bons frutos, contudo, será necessária a proliferação do acesso aos instrumentos de tráfego de informação, de modo a perpetuar as condições mais específicas de produção e partilha de opiniões. Uma estratégia peculiar para a limitação de tais recursos advém da possibilidade de restrição comercial de acesso a determinados sistemas e redes através do aumento exponencial de custos, o que impossibilita a prática reiterada de emprego e hábito de mecanismos de informação e emissão de opiniões de forma mais célere e corriqueira. A crise a que se expõe o modelo de estruturação do Direito é tão violenta que até mesmo as características gerais da relação indivíduo-Estado desaparecem, numa nova maneira de emprego do setor privado para controle e direcionamento dos traços gerais da opinião pública.

O contra-golpe advém de situações similares àquelas vistas no Caso Kony, em que o movimento Invisible Children decidiu dar publicidade, através de instrumentos virtuais, às atrocidades cometidas em Uganda pelo movimento LRA, liderado por Joseph Kony. Pretendeu o movimento a responsabilização dos líderes da LRA por seus crimes, notadamente contra crianças, agenciadas para o combate, bem como a intervenção internacional (norte-americana, sobretudo) de modo a conferir efetividade a uma série de direitos abertamente ignorados sob o domínio de Kony. A exemplo da análise de CASTELLS1160 sobre a superação de formas tradicionais de construção social, percebe-se a configuração de modelos de efetivação mediante o tráfego informacional em nós de uma rede ilimitada, os quais empregam antes de tudo as mesmas estratégias outrora dissecadas e edificadas no campo da propaganda por MCLUHAN.

Essas alterações materiais não estão contempladas em espaços de debate em razão de sua relação mais íntima com traços estratégicos e com a obtenção de resultados no que concerne ao atingimento de finalidades dispostas pelos envolvidos. Contudo, os modelos democráticos havidos de tais propostas emergem crivados de novas disposições. A tentativa de substituição de uma democracia representativa por uma democracia direta através de tais mecanismos é debatida, muito embora pareça

1160 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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inviável. Por seu turno, o modelo estratégico empregado no caso de uma democracia líquida representa forma mínima de equilíbrio entre a presença de um votante por procuração com a manutenção de traços específicos de voto direto. Todas essas expectativas fenecem, contudo, quando o tema é elevado à discussão da segurança e legitimidade de tais meios, consideravelmente mais fluidos e passíveis de alteração que todos os mecanismos tradicionais de determinação de escolhas, votação e estruturação de normas.

Nos casos de um direcionamento mais imediato da participação popular nos quadros de produção normativa (o que resguardaria traços de democracias procedimentais) o déficit técnico apresentado nos modelos de expressão online chamados daily me (estilo de jornal personalizado para o gosto de seu leitor, apresentado online como produto de um modelo de negócios que vende informações direcionadas) cria limitações severas à possibilidade de intervenções mais verticais e relevantes. As últimas “primaveras dos povos”, assim chamadas, resultaram de criações midiáticas distais que observaram expressões pontuais de décadas de trabalho de amadurecimento político. Mais que isso, seus debates resultaram em ações que correram sério risco de desagregação imediata, tendo sido, por exemplo, um modelo de distanciamento entre os movimentos de redes sociais presentificados em território brasileiro em oposição a tantos outros, como a erroneamente chamada primavera dos povos árabes (movimento que, sob o ponto de vista de ZIZEK, teria se iniciado há mais de dois séculos, com as revoltas contra colonização europeia), o movimento da juventude egípcia ou mesmo o escalonamento dos protestos na praça Taksim (Turquia).

Sob todas essas perspectivas, o movimento que prolifera, por meio de chamamentos de resistência através de recursos online, representa apenas o uso distal de instrumentos de agregação maciça depois de uma série de debates que podem agregar décadas de avanços e retrocessos. Aqui, a aparição dos processos de apreensão e determinação de movimentos ativos nas ruas representam apenas a possibilidade de expressão ampla de anseios populacionais, os quais são facilmente perdidos, caso não haja uma consciência reflexiva mais profunda no que concerne aos dados oferecidos sobre a questão específica dos debates políticos propostos.

Para uma percepção mais específica dos fundamentos apresentados a respeito do problema em questão será preciso, contudo, elastecer os limites da discussão como é apresentada contemporaneamente. Em CANOTILHO, a tradição determinada pela formação mais ortodoxa da Constituição deriva de uma zona de instâncias de caráter abstrato que eventualmente se vêem sob o signo da materialidade propriamente dita por meio de uma expressão hermenêutico-aplicativa do texto. Essa condição praxística, apresentada pelo autor, ainda sob uma perspectiva clássica, representa a possiblidade de cisão da Constituição, segundo a leitura teórica mais típica, entre o universo do formal e o do material. Em sua materialização, esse texto pode atender a uma abertura considerada fundamental para a ativação do princípio democrático, o

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qual de outro modo não poderia ter sido considerado senão como medida meramente contemplada em condição específica de formação de cláusulas imutáveis (no caso da Constituição da República Federativa do Brasil, uma cláusula pétrea). Só pode ser conferido sentido próprio ao modelo constante da Constituição, contudo, se for considerada a elaboração total de seu modelo de sustentabilidade interna, qual seja, o de um Estado Democrático de Direitos, o que nos projeta para duas referências centrais, quais sejam: a da presença de uma máquina estatal de caráter representativo, por meio de traços majoritaristas, e o acesso a esquemas de proteção e garantia de direitos, atendidos tanto em sentido material quanto processual.

Em ambas as situações, será preciso compreender então que os modelos hermenêuticos aplicados à Constituição são forças de garantia de ativação de seus modelos democráticos, os quais exigem ao mesmo tempo uma comunicação intensa entre grupos de interesse (chamados por HÄBERLE de grupos de intérpretes) e forças de alteração e detalhamento de tramas constitucionais específicas. É o caso dizer, contudo, que as influências tradicionais, visualizadas pelo modelo de sociedade aberta preconizado por HÄBERLE e POPPER, alcança seu potencial em meio a círculos privilegiados de participação.

O que torna a situação ainda mais sensível é que a potencialidade de tal modelo representa um salto no que concerne à tradição de exposição de modelos excepcionais de deposição dos limites de atuação do Estado. Nesse caso, os aspectos materiais de disseminação de direitos e armação estrutural da democracia em suas virtudes constitucionais representam uma apropriação direta dos instrumentos de organização da excepcionalidade por uma massa populacional dedicada a discussões setorizadas, temáticas e imediatistas, as quais não atendem num primeiro momento a uma apropriada reflexão ética e política dos volumes de aplicação do poder. Por conseguinte, formas diversas de radicalismo político, nocivas ao traçado de encargos necessários e caracterizadores da democracia, são visíveis em meio a iniciativas legítimas. Ao lado de atos de defesa genuína dos direitos de minorias, vê-se a proliferação de movimentos de caráter totalitário e extremista; enquanto extremos defendem a possibilidade – e necessidade de diálogo – total a respeito das condições de formação de uma democracia que interliga seus temas particulares, outros setores da malha virtual se dedicam a um exagero na defesa de traçados individualistas, transcendendo os limites da responsabilidade e reiterando aspectos fragmentários de discussões de nicho. Nesses casos, a incompreensão vertical dos modelos democráticos prejudica uma aplicação ampla e aberta dos modelos de organização constitucional, degradando as condições de debate político em sentido geral.

Conclusões

Diante de todas as condições expostas, é possível perceber os tons experimentais que ainda permeiam o tema. Entende-se, contudo, que a discussão assume três focos principais, a serem endereçados, quais sejam, o da conciliação de

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compreensão técnica adequada e o exercício pleno da liberdade de expressão, o da oposição entre condições excepcionais de Estado em transição e consolidação de modelos privatísticos de limitação das ações e a questão da segurança e confiabilidade dos posicionamentos políticos produzidos em meio às esferas de agregação política no campo virtual. Esses três modelos de apreensão da experiência do constitucionalismo virtual e da democracia digital serão inevitavelmente resolvidos a título de soluções de continuidade históricas (LE GOFF) caso não sejam debatidos e conduzidos pela própria condição geral de decisão dos envolvidos no processo, o que aniquilará em sentido técnico a possibilidade de exercício de uma democracia complexa e mais consistente, a despeito dos avanços pertinentes aos meios de sua concretização.

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