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CASEL, Odo – O mistério do culto no Cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2009. 121p. A primeira edição da obra aqui recenseada data de 1932 e foi escrita na língua materna do nosso autor, em alemão (Das christliche Kultmysterium). Odo Casel foi monge beneditino do mosteiro de Maria- Laach e contribuiu de modo particular para o desenvolvimento do Movimento Litúrgico na Alemanha que antecedeu a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. A sua reflexão enquadra-se num momento particular da história, como nos mostra no primeiro capítulo (A volta ao mistério), em que a moderna afirmação da autonomia absoluta do homem redundou no individualismo, que se entranhou em todas as dimensões da vida, incluindo a religiosa. Tal humanismo fracassou, decepcionando os anseios humanos, e, nesse fracasso, Odo Casel reconhece a necessidade de recuperar o mistério e de voltar a ele: «o Mistério divino apresenta-se novamente aos nossos olhos com tudo aquilo que tem de sedutor e atraente, de surpreendente e assustador.» (p.18) Para ele, o Mistério Divino, sendo um, apresenta-se sob três aspectos: o Mistério de Deus (Deus em si mesmo, na sua transcendência e infinitude, mas, ao mesmo tempo, por sua omnipresença, presente em todas as criaturas), Mistério de Cristo (a revelação de Deus em Cristo) e o Mistério do Culto (nos mistérios está presente Cristo, Senhor e Redentor). Para falar de O mistério do culto no cristianismo (capítulo segundo), identifica o quid proprium do cristianismo como sendo o mysterium Christi: o mistério da Encarnação de Deus, em Jesus Cristo, sua morte e ressurreição, para nossa salvação, e do seu Corpo místico, que é a

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Page 1: CASEL, Odo – O mistério do culto no Cristianismo-RECENSÃO.docx

CASEL, Odo – O mistério do culto no Cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2009. 121p.

A primeira edição da obra aqui recenseada data de 1932 e foi escrita na língua materna do

nosso autor, em alemão (Das christliche Kultmysterium). Odo Casel foi monge beneditino do

mosteiro de Maria-Laach e contribuiu de modo particular para o desenvolvimento do Movimento

Litúrgico na Alemanha que antecedeu a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

A sua reflexão enquadra-se num momento particular da história, como nos mostra no

primeiro capítulo (A volta ao mistério), em que a moderna afirmação da autonomia absoluta do

homem redundou no individualismo, que se entranhou em todas as dimensões da vida, incluindo a

religiosa. Tal humanismo fracassou, decepcionando os anseios humanos, e, nesse fracasso, Odo

Casel reconhece a necessidade de recuperar o mistério e de voltar a ele: «o Mistério divino

apresenta-se novamente aos nossos olhos com tudo aquilo que tem de sedutor e atraente, de

surpreendente e assustador.» (p.18) Para ele, o Mistério Divino, sendo um, apresenta-se sob três

aspectos: o Mistério de Deus (Deus em si mesmo, na sua transcendência e infinitude, mas, ao mesmo

tempo, por sua omnipresença, presente em todas as criaturas), Mistério de Cristo (a revelação de

Deus em Cristo) e o Mistério do Culto (nos mistérios está presente Cristo, Senhor e Redentor).

Para falar de O mistério do culto no cristianismo (capítulo segundo), identifica o quid

proprium do cristianismo como sendo o mysterium Christi: o mistério da Encarnação de Deus, em

Jesus Cristo, sua morte e ressurreição, para nossa salvação, e do seu Corpo místico, que é a Igreja.

«A noção do Mistério de Cristo compreende, portanto, ao mesmo tempo a Pessoa do Homem-Deus e

sua obra redentora para a salvação da Igreja» (p. 24).

Assim sendo, o cristianismo é, antes de mais, o acontecimento da revelação de Deus à

humanidade, redimida e congregada em Igreja, que actualiza continuamente o sacrifício de Cristo.

Mediante os mistérios do culto (sacramentos), instituídos por Cristo e realizados por Ele através dos

sacerdotes, todos tomam parte no mistério de Cristo, morrendo e ressuscitando n’Ele e com Ele (cf.

Rom 6, 3-11). Porém, embora o mistério de Cristo se realize em nós simbolicamente, não significa

que a nossa participação no seu mistério seja aparente. Como diz Casel:

«O Mistério de Cristo, que em Nosso Senhor cumpriu-se em toda sua realidade

histórica e física, realiza-se em nós simbolicamente, sob as formas representativas e

figurativas; estas, contudo, não são simples aparências, sinais puramente exteriores e vazios,

mas contêm para nós e nos comunicam a plena realidade da vida nova que nos oferece o

Cristo, nosso Mediador» (p.29).

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Deste modo, no próprio culto identifica-se o mistério, pois Cristo continua a comunicar a sua

vida à Igreja e esta, por sua vez, ao mesmo tempo que O acolhe, colabora com Ele, ao celebrar os

seus mistérios. A liturgia, por sua vez, enquanto acção do povo, expressa precisamente a participação

activa da Igreja na Redenção de Cristo. O mistério de Cristo insere-se assim nos próprios costumes

humanos, dando-lhes uma nova dignidade, e a própria liturgia revela uma riqueza nos vários

símbolos e nas suas diversas manifestações. Desta forma, toda a Igreja (clero e leigos) é convidada a

participar activamente na liturgia, porém, consoante uma ordem sagrada, respeitando a função de

cada um e segundo os graus de acesso ao Mistério.

Para Casel, há uma forte relação entre Mistérios antigos e mistérios cristãos (terceiro

capítulo). Nos mistérios helénicos, segundo as descrições que chegaram até nós, a oração e o

sacrifício dirigidos a um deus procuram reavivar uma obra salvífica passada, a fim de que a

sociedade religiosa se possa unir à divindade. Casel define assim mistério: «uma ação sagrada e

cultual na qual uma obra redentora do passado torna-se presente sob um determinado rito; cumprindo

esse rido sagrado, a comunidade cultual participa do fato redentor evocado e adquire assim sua

própria salvação» (p.73).

A própria palavra mistério, na antiguidade, adquiriu vários sentidos. Começou por designar

os cultos de iniciação e acções mistéricas, designando depois elementos específicos desses mistérios.

Na filosofia, a terminologia mistérica referia-se à concepções do divino. Os romanos, por sua vez,

não tinham uma definição de mistério. Em contrapartida, tinham uma consagração à divindade, que

se expressava num juramento (sobretudo militar), denominada sacramento. Tal juramento facilmente

se tornava numa espécie de mistério. Na versão dos LXX, os cristãos traduziram mysterium por

sacramentum. «Deste forma, todo o significado da expressão grega mysterium (com caracteres

gregos) passou para a palavra sacramentum (p. 77).

Os mistérios antigos alcançam a sua realização plena no mistério de Cristo, morto e

ressuscitado, tal como haviam dito os Padres da Igreja. «Na verdade, a vinda de Cristo realizou

maravilhosamente aquilo que a Antiguidade tinha desejado, aquilo que ela esperava de maneira

confusa, como a sombra do futuro que viria» (p. 81).

Ainda que acessível nos sacramentos, é necessário assimilar o seu conteúdo, o que acontece

progressivamente. Daí, o sentido do Ano Litúrgico (capítulo quarto: O mistério do ano litúrgico), no

qual são vividas em uníssono a dimensão histórica e a dimensão divina, inerentes a Cristo. «Essa

vida do Christus-Kyrios, esse itinerário gigantesco que vai do seio da Virgem e da manjedoura até o

trono da Majestade divina: eis o mistério que nos cabe viver no ano litúrgico.» (p. 89).

Consequentemente, os mistérios de Cristo celebrados em Igreja não se circunscrevem apenas ao aqui

e agora, mas pronunciam a plenitude da vida futura.

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Também o próprio dia apresenta a mesma imagem capaz de simbolizar o mistério de Cristo.

A missa ocupa um lugar central. Nela, a oração e o sacrifício alcançam a sua concretização máxima,

pois a acção de Deus se une à acção do homem, por meio de Cristo. À volta da Eucaristia, o

«mistério sacramental do sacrifício» (p. 98), gravita o Ofício Divino (Liturgia das Horas), a oração

da Igreja. Apesar de exigir uma participação pessoal, viva e activa, não se trata de uma oração

individual, pois é a Igreja, os membros do Corpo místico congregados, que ora à luz do mistério de

Cristo. Assim, a Igreja, juntamente com Cristo, é o conteúdo de toda a liturgia, mas também o

sujeito, na medida em que é ela que ora. Por isso, o Ofício Litúrgico deve «ser realizado

publicamente; sua execução deve naturalmente ser oral, com um tom elevado e solene» (p. 103). Tais

critérios deverão estar presentes em todos os seus elementos, como a música, o canto ou a língua.

Esta obra, considerada a obra de referência de Odo Casel, foi muito contestada no seu tempo

e obrigou o autor a clarificar as suas considerações até à sua morte, sobretudo no que se refere à

relação entre mistérios pagãos e mistérios cristãos. Não obstante tal debate, ela representa um marco

importante do Movimento Litúrgico que se difundia então. Neste sentido, a obra reflecte claramente

o desejo de purificar a liturgia, recuperando o seu papel nuclear na vida da Igreja e no ser cristão, a

partir das suas raízes mais profundas: Sagrada Escritura, Padres da Igreja e cultura greco-romana.

A par disso, é bem notória a percepção que o próprio autor tem sobre o tempo em que vive:

um tempo de revalorização de Deus, em oposição ao antropocentrismo individualista (cf. pp. 17, 52,

69-70). Nesta revalorização do divino, o mistério assume-se como categoria fundamental, pela qual

se compreende a presença de Deus na história: primeiro, como revelação histórica do próprio Deus

na encarnação do Logos em Jesus Cristo, sua morte e ressurreição, depois, como presença constante

na história, através dos sacramentos instituídos por Cristo e confiados à Igreja. Na mesma linha, três

décadas depois, o Concílio Vaticano II haveria de falar do mistério pascal (Paixão, Ressurreição e

Ascensão) como mistério central da obra de redenção de Cristo.

Por fim, destacamos um aspecto que nos chamou a atenção: o carácter dialético da liturgia, na

medida em que ela própria revela um diálogo constante: entre Deus e homem, Cristo e Igreja,

Sacerdote e Fiéis, religião e cultura. No nosso humilde parecer, poderá ser uma categoria muito feliz

na compreensão actual da liturgia e na sua própria vivência, sobretudo no que toca a questões como a

inculturação religiosa que implica sempre uma inculturação litúrgica.

Duarte Costa