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Carolina Maria de Jesus: literatura e cidade em dissenso FERNANDA R. MIRANDA COLEÇÃO OUTRAS — PALAVRAS VOLUME 4

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FERNANDA R. MIRANDA

COLEÇÃO OUTRAS — PALAVRASVOLUME 4

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Carolina Mariade Jesus:

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MUITAS “TURAS”

Em visita recente à Escola da Cidade, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha lembrou aos presentes que a arquitetura é um saber solicitante. Seu discurso evocava fortemente uma fórmula feliz, encontrada há certo tempo por Bernard Tschumi para exprimir semelhante ideia por meio de um jogo de palavras. “A arquitetura”, dissera Tschumi, “não a vejo como conhecimento da forma, mas sim como forma de conhecimento”1. Uma forma de conhecimento do mundo que, por sua natureza, exige o recurso permanente a saberes e domínios que ingenuamente podemos tratar como “extra-arquitetônicos”, mas que, na verdade, não o são. O saber solicitante a que se refere Paulo Mendes é esse espinhoso terreno em que se concentram as mais delicadas sínteses. São sínteses tênues, mas inevitáveis para o exercício de uma profissão cujo escopo é o manejo do cotidiano em si, em suas formas mais complexas, isto é, coletivas e imaginárias.

Essa ideia, por mais contemporânea que seja, representa a afirmação pura e simples de alguns fundamentos filosóficos e epistemológicos, mais do que antigos, ancestrais. Vitrúvio já tratava dessas solicitações

1. TSCHUMI, Bernard (2008). “L’architecture n’est pas una connaissance de la forme mais une forme de connaissance”, in: Lengereau, Éric (org). Architecture et construction des savoirs. Paris: Recherches, 2008, p. 212.

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ao lembrar seus leitores – com o dedo vertical da norma culta – que a “ciência do arquiteto é ornada de vários saberes e muitas disciplinas”2. Muito embora ancorasse o argumento numa apologia da razão prática – que a alta modernidade tratou de complicar –, Vitrúvio enunciou e inseriu tais disciplinas num conjunto coerente de deveres formativos e cognitivos aos quais nos mantemos ligados. Isto é, parafraseando e tencionando o romano, sabe-se que o arquiteto hoje deve buscar e construir-se em uma quase infinidade de perspectivas, prestando inclusive atenção a chamados que não têm relação evidente de utilidade com a prática projetual, mas se revelam capazes de lhe garantir a decantação de uma consciência armada, aberta e alerta, permitindo-lhe interpretar forças enigmáticas e intrigantes tanto da natureza quanto da cultura. São saberes que permitem honrar o conselho vivo de Drummond aos jovens, num momento em que o mundo parecia debruçado sobre o abismo da tecnologia embestada: “Inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar para merecerem o espetáculo novo de que estão participando”3. Como inventar esses olhos sem a franca disposição de reconhecer as limitações do estudo disciplinar ou departamentalizado?

2. VITRÚVIO (c. I a.C). Tratado de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 61.

3. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos (1944). “Prefácio para Confissões de Minas”. in: Obra completa em um volume. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964, p. 506.

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São questões desse tipo que esta iniciativa editorial procura enfrentar ou, no mínimo, tangenciar. As “outras palavras” às quais nos referimos são as múltiplas palavras que sempre tiveram espaço na Escola da Cidade, desde a sua fundação, preocupada que é essa escola com a sólida e ampla formação humanista de seus estudantes, professores e colaboradores. Noutras palavras, são também as outras “turas” de que fala Cortázar, na alta intensidade de seu fraseado dançante, no jogo tramado de seus cacos significativos:

A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas.4

Juntar essas pontas é uma utopia? Esperamos que “turas” e leituras multipliquem-se no tempo, nas mãos e no pensamento de nossos leitores. Por isso, trazemos a público esses livros, essas reflexões recolhidas.

José Guilherme Pereira LeiteProfessor da Escola da CidadeCoordenador do Seminário de Cultura e Realidade Contemporânea

4. CORTÁZAR, Julio (1963). O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 443.

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FOTO DA PÁGINA ANTERIOR: Acervo iconográfico do Jornal Última Hora Arquivo Público do Estado de São Paulo

SUMÁRIO

08 Conceitos16 A cidade e seus discursos – contexto da voz28 Favela: quarto de despejo da cidade & da palavra37 A literatura como território de pertencimento45 Territórios da voz periférica: heranças e pertencimentos do presente62 Referências bibliográficas66 Sobre a autora

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FOTO: Acervo iconográfico do Jornal Última Hora Arquivo Público do Estado de São Paulo

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CONCEITOS

Carolina Maria de Jesus foi uma mulher negra brasileira nascida na cidade de Sacramento, em Minas Gerais, no primeiro decênio do século xx, em 1914. Poeta, prosadora, dramaturga, memorialista, compositora, cantora, cronista. Fez escrita de si através de linhas dissonantes. Em uma sintaxe que espelha os desconcertos do mundo, escreveu a cidade: seus dissensos e suas faíscas.

Sua mãe nasceu durante a época em que regia no Brasil a Lei do Ventre Livre; já seu avô, um cabinda por ela apelidado “Sócrates Africano”, fora escravizado e lhe contou muitas histórias sobre a escravidão. A escravidão negra – base social, econômica e política do Brasil durante séculos – havia sido abolida na letra da lei há exatos vinte e seis anos quando Carolina veio ao mundo. “Em Sacramento, chamavam a casa de senzala, mas a escravidão acabara há tanto tempo que ninguém podia falar dela com autoridade” (SANTOS, 2009: 11).

Chegou a São Paulo acompanhando uma família que a contratara para serviços domésticos, num período em que essa cidade era o destino privilegiado dos migrantes de todo o país. Mas Carolina nunca se adaptou às regras do trabalho doméstico, considerado por ela semicolonial, e logo abriu mão de tal ocupação, pois era “muito independente para passar a vida limpando as bagunças alheias”.

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[Foi] faxineira de hotel, vendedora de cerveja, cozinheira, passadeira, arrumadeira, lavadeira. Trabalhou para famílias ricas de advogados, médicos, juízes, políticos, dentistas. Lavou chão e pratos em restaurantes. Tomou conta de crianças. Quando aparecia um circo, apresentava-se como artista, cantora, declamadora, dançarina, malaba-rista, o que viesse...

(CASTRO & MACHADO, 2007: 28).

Por fim, tornou-se catadora, função que lhe dava pouquíssimo dinheiro, mas a autonomia de caminhar pelas ruas da cidade: “Dei-me bem catando papel porque estou sempre andando” (JESUS, 1996: 84), ela dizia. Essa atividade lhe garantia ainda o suporte da escrita, pois era no descarte que ela recolhia cadernos para escrever. Mas era um trabalho pesado, desgastante. Para desempenhá-lo, Carolina acessava um de seus lugares seguros: a ficção. “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando” (JESUS, 1960: 30).

Na pauliceia desigual, morou em cortiços, em pensões, embaixo de viadutos, em albergues. Depois, não encontrou alternativa senão a Canindé, uma favela situada às margens do rio Tietê – nessa época de águas ainda cristalinas, nas quais as mulheres lavavam roupas e as crianças nadavam. A favela do Canindé, onde

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Carolina residiu, era povoada principalmente por migrantes que começaram a chegar à cidade da indústria, que prometia oportunidades de trabalho para todos. Na transição da década de 1940 para a de 1950, estima-se que 50 mil pessoas vivessem em um total de sete favelas espalhadas pela cidade. Para estabelecer uma comparação, o Rio de Janeiro, no mesmo período, bem menos industrializado que São Paulo, possuía duzentas favelas habitadas por pelo menos 337 mil moradores (MEIHY & LEVINE, 1994: 49)

Em 1948, Carolina Maria de Jesus construiu comas próprias mãos, à beira do oitavo mês de gravidez, obarraco que iria a abrigaria junto ao seu primogênito e aos dois filhos que viriam mais tarde.

Para ter “um teto todo seu”1 , precisou carregar tábuas na cabeça, sem qualquer ajuda, sem nenhum respaldo. Os vizinhos, observando seu esforço, murmuravam: “Ela é sozinha. Deve ser alguma vagabunda”. Comentários preconceituosos que Carolina Maria de Jesus conhecia muito bem, pois integra(va)m a ordem social historicamente racista e sexista que oprime as mulheres negras.

1 No começo do século XX, Virginia Woolf discutia as dificuldades emser escritora em Um teto todo seu, célebre ensaio de 1929, em que a romancista inglesa reclama as barreiras para a mulher que escreve às condições sociais desiguais, expressas na divisão sexista das atividades domésticas, na falta de tempo e espaço para o cultivo da privacidade e da independência feminina e, consequentemente, de seu trabalho intelectual.

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É crença generalizada que as pretas do Brasil são vagabundas. Mas eu nunca impressionei-me com o que pensam ao meu respeito. Quando os engraçadinhos quiseram dizer-me graçolas, eu disse: – Eu sou poetisa. Peço respeitar-me mais um pouco. (JESUS, 2014: 26).

Um teto seguro – em termos de matéria, em termos de metáfora – para sob ele se abrigar e escrever foi uma reivindicação para Carolina Maria de Jesus.

Sonhou ser atriz e desejou representar a própria história no teatro.2 Gostava de bailes, altaneira. Certa vez, fabricou para si uma fantasia toda feita de penas de galinha para pular carnaval. Feita a fantasia para o corpo, não espantaria se alguém sugerisse que se estava costurando também uma metáfora para a escritora: capturando na penosa a imagem da tecnologia das asas de uma ave que não domina a engrenagem do voo. Mas, se a fantasia coube no corpo, seguramente a metáfora jamais caberia na escritora, pois Carolina Maria de

2. No ano seguinte ao lançamento de Quarto de Despejo, 1961, CarolinaMaria de Jesus teve seu livro adaptado para o teatro. A peça “Quarto dedespejo” estreou no dia 27 de abril de 1961, no Teatro Bela Vista, em SãoPaulo. O espetáculo foi dirigido por Amir Haddad e a adaptação para opalco foi feita por Edy Lima. A cenografia esteve a cargo de Cyro del Neroe Nydia Licia foi responsável pela produção. O elenco contou com cercade quarenta atores. Ruth de Souza representou Carolina.

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Jesus, sabendo ou não os códigos dessas engrenagens, voava alto – e até hoje dá rasante. Hoje, ela tem pouso certo no território de muitos corações e pensamentos, pois conta com um público leitor atento e sensível à potência de sua escrita.

A escritora viajou para fora do país para falar de seu trabalho e sua obra viaja por muitos países do mundo, em muitas traduções. Sua obra, em suma, demarca um momento único para o século XX. A experiência da escrita gestando um texto que tece a escrita da experiência. Grafias de uma mulher negra, migrante, que foi moradora do interior rural, moradora de favela, moradora de bairro da elite paulistana, mãe de três, senhora de si e dona de palavras marcadas a ferro e fogo: “Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis” (JESUS, 1960: 49).

Seu primeiro livro publicado foi um marco no mercado editorial nacional: já nos três primeiros dias após o lançamento foram vendidos 10 mil exemplares. Na tarde de autógrafos 600 exemplares. A primeira tiragem, que inicialmente seria de 3 mil livros, passou a 30 mil, esgotada em três meses em São Paulo. As traduções de Quarto de despejo começaram a circular menos de um ano depois de seu lançamento no Brasil, em edições produzidas na Dinamarca, na Holanda e na Argentina (1961); na França, na Alemanha (Ocidental

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e Oriental), na Suécia, na Itália, na Tchecoslováquia, na Romênia, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Japão (1962); na Polônia (1963); na Hungria (1964); em Cuba (1965), e entre 1962 e 1963, na então União Soviética.

Um sucesso notável, impactante. Digno de uma figura autêntica, altiva. Carolina, segundo ela própria, “exaltava no falar não por exibicionismo”, mas porque tinha “voz estentórea” (JESUS, 1996A: 217). A voz – sobretudo a voz – era seu agasalho vital. Num dia frio paulistano, escreveu no seu diário: “Hoje estou com frio. Frio interno e externo. Eu estava sentada ao sol escrevendo e supliquei, oh, meu Deus! Preciso de voz” (JESUS, 1996: 152). Seu pedido foi atendido, pois Carolina Maria de Jesus jamais se deixou silenciar.

Uma mulher intensa, imperfeita e contraditória – características refletidas em sua obra. De tudo o que escreveu, ainda pouco está publicado – três diários: Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960); Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961) e Meu estranho diário (1996); dois romances: Pedaços da fome (1963) e Diário de Bitita (1986); uma coletânea de poemas: Antologia Pessoal (1996); e uma compilação de pensamentos intitulada Provérbios (1963). Em 2014, a editora Me Parió Revolução lançou Onde estaes felicidade, que traz contos que permaneciam inéditos.

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A força da escrita foi tão definitiva em Carolina Maria de Jesus que reverberou em toda sua trajetória – a escrita fazia a mediação entre ela e o mundo, qualquer mundo que fosse. Mas a escrita gerou também a incompreensão dos que eram dela mais próximos, pois o conhecimento das letras causava choques constantes, em um contexto social em que o analfabetismo da população permanecia sendo a regra. Lemos em Quarto de despejo passagens que mostram que os conflitos entre a autora e os moradores da Canindé eram frequentes.

Aqui, todas implicam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. [...] Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

(JESUS, 1960: 24, colchetes do original.)

Segundo a narrativa da autora sobre sua própria trajetória, essa relação com os livros também pesou no seu gesto primeiro de migrar, quando saiu de sua casa em Minas Gerais, num episódio que lemos em Diário de Bitita e que diz muito sobre o Brasil pós-abolição: os vizinhos chamaram a polícia ao observarem a jovem Carolina lendo o dicionário prosódico de João de Deus (um livro de grandes dimensões), que pensaram ser

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um manual de bruxarias. O acontecimento evidencia a falta de acesso ao objeto cultural livro na vida de todos, principalmente o quanto o domínio a esse objeto era algo controlado – exatamente como ocorre hoje: o conhecimento, quando em posse de uma mulher negra, gerava incômodo, atrito, pavor, punição – Em decorrência da denúncia dos vizinhos, Carolina Maria de Jesus foi presa junto com a mãe, que tentou defendê-la. Ambas apanharam muito na prisão, passaram fome e todo tipo de humilhações.

Por fim, a escrita mediando a relação entre Carolina Maria de Jesus e o mundo ganhou outro patamar com seu livro publicado, quando a autora passou a acessar alguns lugares de circulação do literário: editoras, livrarias, salões, mesas de debate, lançamentos, festas etc. Nesses lugares, sua relação com a escrita é colocada outra vez no campo do estranho, do exótico, de algo “fora de lugar”, no campo em que silenciosa ou explícita, subjaz perene a pergunta: quem pode escrever?

A escrita no Brasil historicamente foi e ainda hoje é um privilégio sustentado em hierarquias raciais, sociais, de gênero. A escrita de mulheres negras é constantemente silenciada. Para Carolina Maria de Jesus, apropriar-se da escrita foi elemento central de sua constituição subjetiva e de sua forma de existir/reagir no mundo de forma viva.

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A CIDADE E SEUS DISCURSOS – CONTEXTO DA VOZ

Poucas são as informações factuais sobre o percurso da autora até chegar à cidade de São Paulo. Segundo suas biógrafas, Carolina Maria de Jesus teria peregrinado por diversas cidades de Minas Gerais e do estado paulista até chegar à capital, em janeiro de 1937, quando teria então 33 anos. Viveu até os 62. Passou, portanto, mais da metade da sua trajetória no interior. Mas a chegada a São Paulo foi um acontecimento de tanta magnitude que ela o descreveu dizendo que “tinha a impressão de estar transferindo-[se] de um planeta para outro” (MEIHY & LEVINE, 1994: 185). Em São Paulo, Carolina Maria de Jesus permaneceu o restante de sua vida, transitando entre espacialidades diferentes e complementares da topografia urbana da metrópole: da favela do Canindé para a área nobre de Santana e, depois para o sítio na periferia extrema em Parelheiros, onde passou seus últimos dias.

O período que abrange as décadas de 1950 e 1960 é comumente apontado, por estudiosos do processo de urbanização de São Paulo, como etapa decisiva na sua trajetória de cidade à metrópole.

(MEYER, 1991).

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Carolina na construção da sua casa de alvenaria em Parelheiros.

FOTO: Acervo iconográfico do Jornal Última Hora Arquivo Público do Estado de São Paulo

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A favela do Canindé estava no meio do desen-volvimentismo e das ideias de progresso efervescentes na década de 1950. Sua origem está ligada às co-memorações do quarto centenário da cidade, que teve a construção do Parque do Ibirapuera como um dos principais marcos. Sua existência foi curta: de 1948 a 1961. A favela do Canindé tornou-se destino para Carolina Maria de Jesus por duas razões específicas: primeiro, devido às dificuldades de aceitação nos empregos em casa de família que a maternidade ocasionara; segundo, pelo contexto de negação ao direito à moradia de que a população negra pobre paulistana de forma estrutural era (e é) vítima.

Quando a escritora mudou-se para a tão sonhada casa de alvenaria, em meados dos anos 1960, a favela do Canindé já havia sido extinta para dar lugar à marginal Tietê, cuja construção começou nos anos 1950 e terminou nos anos 1970.

A favela foi projetada pelo estado para “abrigar” aqueles que o progresso moderno preferia manter a distância.3 Situada em terreno público, foi originada

3 A assistente social Marta Teresinha Godinho, diversas vezes citada em Quarto de despejo, é autora de um dos primeiros estudos sobre favelas paulistanas. Em 1955, ela recolheu dados, até então dispersos, sobre o problema na capital para seu trabalho de conclusão de curso em serviço social. De acordo com os dados de Godinho, o estímulo oficial da prefeitura de São Paulo está presente em quase todos os processos iniciais de surgimento de favelas no município. (Godinho, 1955, p. 10. In: Paulino,

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por estímulo da própria prefeitura, que concedeu a área para o assentamento de 99 famílias desalojadas da ocupação de um terreno particular.

Pelo texto “Favela”, publicado no livro Onde estaes felicidade? (2014), ficamos sabendo de muitas passagens da experiência da autora na cidade que não estão nas páginas de Quarto de despejo.

Era o fim de 1948, surgiu o dono do terreno da rua Antonio de Barros onde estava localizada a favela. Os donos exigiram e apelaram, queriam o terreno vago no prazo de 60 dias. Os favelados agitavam-se. Não tinham dinheiro. Os que podiam sair ou comprar terreno saiam. Mas, era a minoria que estava em condições de sair. A maioria não tinha recursos. Estavam todos apreensivos. Os policiais percorria a favela insistindo com os

2007, p. 80). No livro Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus (Meihy & Levine, 1994), registra-se seu depoimento sobre a favela onde Carolina viveu: “Conheci Carolina de Jesus na favela do Canindé. Trabalhando como assistente social para a prefeitura do município, minha função era preparar os moradores para uma remoção. Aquele não era um lugar apropriado para habitação, principalmente por causa da fraca infraestrutura: sem canalização de esgoto nem de água potável. As famílias e, em especial, as crianças viviam expostas a doenças em consequência das inundações frequentes. O rio Tietê enchia e transbordava para as margens todos os anos, e então a favela ficava inundada. Era prefeito, na ocasião, Adhemar de Barros, e depois foi Prestes Maia” (Meihy & Levine, 1994, p. 11).

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favelados para sair. Só se ouvia dizer: o que será de nós? São Paulo modernizava-se. Estava destruindo as casas antigas para construir aranha céus. Não havia mais porões para o proletário. Os favelados falavam, e pensavam. E vice-versa. Ate que alguém sugeriu. — Vamos falar com O dr. Adhemar de Barros. Ele é um bom homem. E assim os favelados acalmaram. E dormiram tranquilos. Ainda não tinham ido falar com o dr. Adhemar de Barros. Eles confiavam neste grande líder. Reuniram e foram. E foram bem recebidos pelo dr. Adhemar que não faz seleção. E abria as portas do palácio para a turba. Foi por intermédio do dr. Adhemar de Barros que o Zé povinho conheceu as dependências dos campos Elíseos. Citaram ao dr. Adhemar os seus problemas angustioso. — Dentro de 3 dias eu arranjo lugar para vocês. E o dr. Adhemar que não decepciona e tem noção de responsabilidade das palavras conferenciou com o dr. Paulo Lauro, que era o nobre perfeito de S. Paulo. E resolveram instalar os favelados as margens do Rio Tietê, novo bairro do Canindé. E ficou ao cargo do patrimônio colocar os favelados. E começou a transferência. E os favelados, mais de mil pessoas só falavam no dr. Adhemar. Os terrenos eram medido por um fiscal. 6 de frente, 12 de fundos. Uns ficava contente, outros achava que era pouco.

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O grave problema: a água para beber. Para lavar usávamos o Tietê. Os visinhos não queriam dar água. Quem tinha torneira no jardim chegaram até arrancar o cano para não nos dar água. Nos estávamos com sorte. Os cargos políticos eram ocupados pelo Partido Social Progressista. Já denominado o Partido de Deus. Surgiu o dr. Armando de Arruda Pereira parece que ele foi vacinado com o sangue de São Vicente de Paula. Era filantrópico, compreensível, isento de orgulho. Mandou instalar uma caixa d’água para os favelados. Que bom quando vimos a água jorrar. Quantas pessoas que moravam em casas de tijolos invejava os favelados, dizia que nós éramos favorecidos pelo políticos. No inicio isto aqui era um primor. Todos os dias, chegava um barracão. Não havia divergência. Reuniram, cotizavam e estalavam a luz. As vezes eu empregava, dormia nos empregos. Não procurava quartos. Era a crise de habitações. E quando eu não tinha dinheiro dormia no albergue noturno. Nem sempre os bons ventos me favorecia. Resolvi ir no patrimônio pedir um lugar aqui na favela, eu ia ser mãe. E conhecia a vida infausta das mulheres com filhos e sem lar. Vi muitas crianças morrer ao relento nos braços das mães. Eu queria fazer o meu barracão e não tinha dinheiro para comprar tabuas. Estavam construindo a Igreja Nossa Senhora do Brasil. Eu resolvi pedir

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umas tabuas para monsenhor carvalho. Ele deu-me e eu não tinha dinheiro para pagar condução. Carreguei as tabuas na cabeça da Avenida Brasil ate o ponto final do Canindé. Os visinhos murmurava: ela é sozinha. Deve ser alguma vagabunda. É crença generalizada que as pretas do Brasil são vagabundas. Mas eu nunca impressionei-me com o que pensam ao meu respeito. Quando os engraçadinhos quiseram dizer-me graçolas, eu disse: – Eu sou poetisa. Peço respeitar-me mais um pouco. (JESUS, 2014: 26)

Quando o nome de Carolina Maria de Jesus perfurou o edifício literário, a favela era um acon-tecimento recente em São Paulo. Consequentemente, em 1960, quando Quarto de despejo foi publicado, o campo de onde emergia sua voz naquele momento – a favela – não fazia parte do imaginário social amplo, como hoje.

Diferente do que passava no Rio de Janeiro, na cidade de São Paulo as primeiras favelas estavam surgindo quando o livro chegou às livrarias. Contudo, os subespaços urbanos já eram tema constante nas letras dos sambas e da música popular, principalmente do samba dos salões, que cantava a beleza idílica dos barracões de zinco, reservando aos moradores do morro um lugar “pertinho do céu”. Essa imagética da favela fabricada pelas canções teve um papel importante na

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constituição do imaginário social nacional sobre a pobreza à altura daqueles “anos dourados”, pois nas letras desses sambas – “reduto indisputado de uma favela lírica e apaziguadora de consciências” (LAJOLO, 1995: 12) – o morro era, basicamente, um ótimo lugar para viver. Marisa Lajolo chamou justamente de “favela cartão-postal” (LAJOLO, 1996: 39) as paisagens que o samba carioca criava, àquelas em que o morro aparecia como a sala de estar de Deus.

A favela de cartão-postal foi consagrada por Herivelto Martins em “Ave-Maria”, gravada pela primeira vez em 1942.

Barracão de zinco sem telhado sem pinturaLá no morro Barracão é bangalôLá não existe felicidade de arranha-céuPois quem mora lá no morroJá vive pertinho do céu.

O morro dos poetas nada tinha em comum com os escritos pautados na experiência vivida em uma favela real, à beira do rio, em São Paulo. Na passagem a seguir, de Casa de alvenaria, é evidente a surpresa do motorista do táxi – alguém que, por ofício, circulava pela cidade, mas cujo olhar era justamente o de quem consumia a imagem da favela que as canções criavam – e a sua reação ao constatar a paisagem mais complexa da favela real.

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Quando chegamos na favela o motorista ficou horrorizado! O seu olhar percorria de um local ao outro – Exclamou: – Credo! Que lugar! Então é isto que é favela! É a primeira vez que vejo favela. Eu pensava que favela era um lugar bonito por causa daquele samba: Favela, oi, favela. Favela que trago no meu coração... Mas haverá alguém que traz um lugar desse no coração? Enquanto o motorista fitava a favela eu pensava: com certeza o compositor do samba tinha uma mulher boa na favela. [...] O motorista condoeu-se vendo o aspecto infausto que a favela representa. É que eles estão habituados a ver a bela viola que é a cidade. Não conhecem os pães bolorentos do país – as favelas.

(JESUS, 1961: 21).

O imaginário dessa favela cartão-postal é completamente desmantelado por Carolina Maria de Jesus. Sua obra era algo original do ponto de vista da forma e do conteúdo, pois os sentidos que sua escrita criava não estavam em harmonia com os programas de verdade articulados entre produtores e reprodutores de imagens que projetavam a favela em signos idílicos.

A favela do Canindé, tanto para o poder público que gerenciava as modificações na estrutura urbana quanto para seus moradores, era um espaço de transitoriedade. Segundo os depoimentos que José

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Carlos Sebe Bom Meihy colheu para o livro Cinderela negra,

É fundamental que se diga que, na percepção de todos os depoentes, a favela era um estágio que logo seria superado. A noção de transitoriedade é uma constante. Os narradores demonstram que a vida favelada correspondia a uma fase de adaptação entre o passado de migrantes e imigrantes e o futuro como trabalhadores adaptados ao progresso. (MEIHY & LEVINE, 1994: 124).

A favela era um lugar de passagem, mas o rótulo de “escritora favelada” foi definitivamente cravado na carne da palavra caroliniana. Quarto de despejo: diário de uma favelada é, ainda hoje, seu livro de maior visibilidade, tanto em termos editoriais quanto de interesse acadêmico. O título, Quarto de despejo, escolhido pelo editor, faz referência a uma expressão frequentemente usada pela autora para significar o lugar da população negra e pobre dentro dos projetos de modernização e progresso almejados pela cidade naquele tempo: no quarto de despejo joga-se aquilo que não se quer mais, que não tem valor algum. Já o subtítulo, diário de uma favelada, traz a inscrição de um ponto de vista mais voltado ao potencial “mercadológico” da obra, que ao definir a autora nesses termos, a circunscreveu, antecipando uma categorização que iria acompanhá-la

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até o fim da vida, pois mesmo quando saiu do espaço da favela permaneceu identificada como “a escritora favelada”.

De um lado, a favela representava para Carolina Maria de Jesus uma negação à sua condição de sujeito.

As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustresde cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (JESUS, 1960: 35)

Por outro lado, a escritora problematiza em sua narrativa a visão social preconceituosa que os moradores da “cidade de cetim” nutriam sobre a vida na favela, onde habitavam pessoas que a sociedade paulistana considerava marginais.

Nós somos pobres, viemos para as margens do rio.As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais.Não mais se vê os corvos voando as margens dos rios, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos. (JESUS, 1960: 55)

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Quem morava na favela era colocado fora da própria condição humana.

Passou um senhor, parou e nos olhou. E disse perceptível: será que este povo é deste mundo? Eu achei graça e respondi: nós somos feios e mal vestidos, mas somos deste mundo. Passei o olhar naquele povo para ver se apresentava aspecto humano ou aspecto de fantasma. (JESUS, 1960: 140)

Como fica expresso nesses fragmentos, além da autora, o próprio contexto da época percebia a favela como o “quarto de despejo” da cidade. Partindo desse ponto, qual valoração poderia ter àquela altura a escrita de alguém inserida na engrenagem literária como “escritora favelada”? E no momento presente? Quando pensamos em Carolina Maria de Jesus hoje, concebemos que sua produção escrita ultrapassa os enquadramentos prescritivos que a emparedam em um lugar fixo e limitado de enunciação e de valoração literária? Sub-reptício, um discurso que mantém a escritora numa condição fixa de subalternidade é captável, por exemplo, em suas representações imagéticas, em geral construídas exclusivamente a partir do lenço na cabeça, na feição triste ou revoltada. Embora sua trajetória tenha sido múltipla, diversa, vitoriosa em diversos momentos, raras são as representações contemporâneas da escritora sorrindo, com os cabelos visíveis, protagonizando momentos de felicidade.

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FAVELA: QUARTO DE DESPEJO DA CIDADE & DA PALAVRA

O impacto que Quarto de despejo tem causado ressalta as dificuldades inerentes ao processo de reconhecimento de autores e obras situados à margem da dinâmica habitual de circulação de discursos literários. No caso de Carolina Maria de Jesus, a crítica atentou principalmente para as incorreções gramaticais de sua narrativa, reduzindo seu valor devido às rupturas com a norma culta da língua e, ao mesmo tempo, condicionando o valor do texto ao testemunho e ao documento e, consequentemente, às condições sociais – de gênero, de classe, de raça – da autora.

De fato, na época de lançamento, sua obra foi lida como documento de elevada importância sociológica, retirando-lhe a dimensão estética e artística, próprias ao campo do literário.

Eu disse: o meu sonho é escrever!Responde o branco: ela é louca.O que as negras devem fazer...É ir pro tanque lavar roupa(JESUS, 1996B: 43).

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O prefácio de Quarto de despejo, escrito pelo editor Audálio Dantas, destila um dispositivo de leitura que compreende o livro exclusivamente pela ótica do documento porta-voz. A partir desse dispositivo, antecipa-se um lugar fixo para a leitura de Carolina Maria de Jesus como a “escritora favelada”, cuja construção textual é deixada de lado, trazendo implicações em sua trajetória como autora. Em suma, esse dispositivo de leitura funcionaria como um alerta para os leitores, como quem diz “não se preocupem, não estamos querendo dizer que isto seja literatura”, como bem elaborou a professora Regina Dalcastagnè:

Vista de dentro da favela, Carolina Maria de Jesus ascende como escritora; vista do lado de fora, ela permanece como uma voz subalterna, como a favelada que escreveu um diário. Portanto, ao lado da discussão sobre o lugar da fala seria preciso incluir o problema do lugar de onde se ouve. Afinal, é daí que a literatura recebe sua valoração. (DALCASTAGNÈ, 2005: 72).

As diversas edições de Quarto de despejo reiteram em seus elementos pré-textuais esse enquadramento, comprometendo a constituição autoral ao subtrair tanto a individualidade da voz quanto a inventividade da escrita. Leia-se na orelha de Casa de alvenaria, na qual reúnem opiniões sobre Quarto de despejo, um exemplo desse aspecto:

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“Não é obra literária; não é simples depoimento; não é mera denúncia. É um documento. E como tal, tem que ser levado a sério.” (IN: JESUS, 1961, S/N).

Os textos de apresentação que acompanham as diversas edições do diário seguem a mesma perspectiva – comprometem a voz particular da autora ao qualificar seu discurso exclusivamente como “porta-voz da favela”, como relato documental de quem

“(...) ultrapassou os limites individuais e deu voz à coletividade miserável e anônima que habita os barracos e os vãos das pontes nas grandes cidades brasileiras” (JESUS, 1994: 169).

Os “limites individuais”, no entanto, não são “ultrapassados”, posto que nem sequer sejam, implica uma negatividade, já que sofrem de antemão um apagamento arbitrário, diluídos em uma coletividade anônima, retratada pela ótica do exotismo e da espetacularização, como mostra a edição lançada em Ática de 2007, cujo prefácio apresenta em destaque os dizeres: “Não perca! A vida na favela do ponto de vista de quem mora nela. O retrato trágico da fome e da miséria!” (JESUS, 2007).

Assim, o olhar crítico e muitas vezes ácido de Carolina Maria de Jesus para a favela não costumava ser mencionado

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nos textos que a apresentavam ao público, pois interessava naquele momento acentuar justamente o pertencimento da autora ao espaço geográfico da favela e à marca diferencial de sua extração social, o que acarretou na diluição da voz autoral em uma identidade grupal – algo, naquele contexto, profundamente questionável, pois, como mostrei antes, a favela era um lugar provisório e de transição para quem vivia nela, e a favela como identidade coletiva era algo, como o caso Carolina mostra, forçado intrinsecamente de fora para dentro.

Sob essa conjuntura, considerando que a favela não constituía uma comunidade de pertencimento para a autora à altura que compôs Quarto de despejo, por meio da escrita ela conquistara as condições materiais necessárias para sair de lá e que pela própria escrita ela ultrapassara lugares de subalternidade ao constituir na linguagem sua subjetividade, o rótulo de “escritora favelada” não condiz com a construção literária de Carolina Maria de Jesus, pois restringe seu campo discursivo a um universo fixo, do qual ela mesma buscou afastar-se.

No livro X da República, Platão expulsou o poeta da pólis. Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra e pobre que ousou ocupar a torre de marfim das letras, ainda hoje é expulsa da literatura. Pois, no Brasil a literatura não é coisa pública; ao contrário, é uma comunidade (ainda) fechada, altamente elitista. Por

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isso, para muitos, a palavra caroliniana deveria ficar restrita à favela e fora do espaço de formulação subjetiva, cabendo-lhe apenas documentar o lado invisível da cidade. Como disse a autora em uma de suas recorrentes reflexões sobre a própria vida: “A favela é o quarto de despejo de São Paulo. E eu sou uma despejada” (JESUS,

1960: 141). Despejada da cidade, despejada da literatura? Não obstante, Carolina Maria de Jesus desafiou

todos os lugares-comuns em que tentaram encaixá-la: “Não me adapto a ser teleguiada” (JESUS, 1996A: 136), dizia. O conjunto de sua escrita, de teor largamente autorreferencial – em que a vida e a obra não são instâncias separadas – traz uma voz autoral que problematiza tanto as categorias em torno de quem fala quanto os pressupostos em torno de quem ouve.

Em suma, De Jesus se entendia e se afirmava poeta. Ser poeta, do ponto de vista de Carolina, era – para além de escrever poemas – vocação, convicção, munição e destino. Contudo, os valores atribuídos ao seu texto negavam a possibilidade de sê-lo.

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QUARTO DE DESPEJO

Quando infiltrei na literaturaSonhava só com a venturaMinhalma estava cheia de hiantoEu não previa o pranto.Ao publicar o Quarto de despejoConcretizava assim o meu desejo.Que vida. Que alegria.E agora... Casa de alvenaria.Outro livro que vai circularAs tristezas vão duplicar.Os que pedem para eu auxiliarA concretizar os teus desejosPenso: eu devia publicar...– só o Quarto de despejo.

No inicio veio a admiraçãoO meu nome circulou a Nação.Surgiu uma escritora favelada.Chama: Carolina Maria de Jesus.E as obras que ela produzDeixou a humanidade abismadaNo inicio eu fiquei confusa.Parece que estava oclusaNum estojo de marfim.

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Eu era solicitadaEra bajulada.Como um querubim.

Depois começaram a me invejar.Diziam: você, deve darOs teus bens, para um asiloOs que assim me falavaNão pensavaNos meus filhos.

As damas da alta sociedade.Dizia: praticai a caridade.Dando aos pobres agasalhos.Mas o dinheiro da alta sociedadeNão é destinado a caridadeÉ para os prados, e os baralhos.

E assim, eu fui desiludindoO meu ideal foi regredindoIgual um corpo envelhecendo.Fui enrugando, enrugando...Pétalas de rosa, murchando, murchandoE... estou morrendo!

Na campa silente e friaHei de repousar um dia...

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Não levo nenhuma ilusãoPorque a escritora faveladaFoi rosa despetalada.

Quantos espinhos em meu coração.Dizem que sou ambiciosa.Que não sou caridosa.Incluíram-me entre os usuráriosPorque não criticam os industriaisQue tratam como animais– Os operários...(JESUS, 1996A: 150-152)

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O poema transcrito está publicado em Meu estranho diário (1996), livro organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine a partir dos manuscritos de Carolina Maria de Jesus que permaneciam inéditos. A narratividade permeada de índices autobiográficos do poema permite que se depreenda a reflexão da autora acerca de seu itinerário pela literatura. Itinerário inscrito, logo no primeiro verso, com a deflagração da sua condição de “infiltrada”. Infiltrar, no sentido de dicionário, diz respeito a algo que se faz entrar ou penetrar, como através de um filtro. Em sua forma substantiva – infiltração – , denomina a “passagem de um líquido através dos interstícios” (Aurélio). Uma infiltração inesperada pode corroer as paredes de um edifício – o literário, por exemplo. No poema, observamos a desilusão que a autora experimentou depois do sucesso angariado com a publicação de seu primeiro livro, a forma violenta com que o sistema respondeu à sua visibilidade. A conclusão desse processo também está bem articulada no poema: uma mulher negra, de posse da escrita, incomoda – de posse da escrita literária, incomoda muito mais.

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A LITERATURA COMO TERRITÓRIO DE PERTENCIMENTO

A escrita de Carolina Maria de Jesus caracteriza-se por sua expressão mimética: trata-se de uma trama literária cuja textura rebenta da própria vida. Uma mulher negra, pobre, migrante, escritora do próprio cotidiano. Seu lugar de fala perpassa sua pele negra e sua força motriz feminina, dando forma ao corpo textual que inscreve um corpo histórico – suas dores, seus afetos e suas guerras. Sua arte literária é corpórea, irrompe em narrativas que atravessam o corpo negro em seus movimentos pela cidade, revelando, inclusive, o olhar que a cidade sobre ele lançava.

Não fiquei revoltada com a observação do homem desconhecido referindo-se a minha sujeira. Creio que devo andar com um cartaz nas costas: Se estou suja é porque não tenho sabão (JESUS, 1960: 97).

O corpo com apetite; ideias apertando o cérebro; cabelos rústicos; tranquila e irônica, ouvindo valsas vienenses. Corpo que canta e dança carnaval; vai a jantares com a elite paulistana; que resiste pela fala; se apaixona. A acima de tudo, o texto releva as nuances de uma mulher que se nutre da arte, que anseia o belo, que sustenta afetos. Para quem saciar a carência do estômago não basta, pois há outras fomes.

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15 DE JULHO DE 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açúcar e seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se. [...] Esperei até as 11 horas um certo alguém. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslizava no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: Vai buscar água mamãe! (JESUS, 1960: 13).

Como mostra o fragmento citado que abre a narrativa de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus escreve seus contornos de mulher destacando os traços fundamentais do lugar de mãe. E assim inaugura seu diário dizendo da violência que é não poder calçar os pés da filha no dia do aniversário dela, e nem nos demais dias do ano. Observamos mesmo nesse pequeno excerto que os elementos imediatos da experiência cotidiana concreta abrigam também novos sentidos, migrando

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para o campo poético. Os pés de Vera Eunice, por exemplo, não poderiam ficar desprotegidos; então, para resolver o problema, Carolina recicla sapatos encontrados no lixo, que, ao passar pelo cuidado e pela técnica do remendo, resultam num terceiro objeto – já não são os sapatos que um dia foram novos, tampouco são os que estavam no lixo: agora são os sapatos de Vera Eunice, reconstruídos para ela. Da mesma forma, uma terceira margem também se instaura no texto.

Comprei um pão as 2 horas. É 5 horas, fui partirum pedaço o pão já está duro. O pão atual fez umadupla com o coração dos políticos. Duro, diante doclamor público. (JESUS, 1960: 54)

Nascedouro de metáforas inauditas, a escrita reelabora os materiais da experiência concreta, confeccionando sentidos novos sobre o que se descartava: o sapato reciclado, o pão duro, o clamor público. Assim, reciclando matérias-primas que deixam de ser descartáveis para guardar a escrita irredutível da vida, Carolina vai tecendo sua poética, alimentada pelo seu ideal de poeta.

A terceira margem que a grafia de Carolina instaura coloca diante de nós outra gramática das relações sociais urbanas: a autoria, constituída de um caminhar migrante por diversos lugares e discursos, dá voz, no texto, aos limites da alteridade.

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Eu disse para a Dona Maria que ia para a televisão. Que estava tão nervosa e apreensiva. As pessoas que estavam no bonde olhavam-me e perguntavam-me: é a senhora quem escreve?Sou eu.– Eu ouvi falar.Ela é a escritora vira-lata. Disse a Dona Maria, mãe do Ditão. Contei-lhes que um dia uma jovem bem vestida vinha na minha frente, um senhor disse:– Olha a escritora!O outro ajeitou a gravata e olhou a loira. Assim queeu passei fui apresentada.– Ele olhou-me e disse-me:– É isto?E olhou-me com cara de nojo. Sorri, achando graça. Os passageiros sorriram. E repetiam. Escritora vira-lata. (IN: PERPÉTUA, 2000: 332).

O texto de Carolina não anula o outro. Ao contrário, abre espaço, na própria narrativa, para que vejamos os preconceitos entranhados do olhar de quem a via como o outro. Assim, ela demarca na escrita pontos de vista daqueles receptores imediatos, resistentes à ideia de reconhecer na figura duma mulher negra pobre uma escritora, leitores que estavam prontos a identificá-la apenas no lugar do riso de escárnio, de vira-lata, de exotismo.

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Em seu texto, Carolina Maria de Jesus explicita o ponto de vista do outro, mostra a reação e a recepção dos outros à sua obra, conversa com a imagem de “escritora favelada”, que muito a incomodava, e apresenta os seus mecanismos de defesa, amparados justamente no lugar de poder que o papel social de escritora a garantia.

14 DE NOVEMBRO DE 1959. Agradeci e voltei para fechar a porta e pegar a revista O Cruzeiro para mostrar ao farmacêutico, o senhor Jesus, atual dono da farmácia jaruá. Porque ele está duvidando da minha sanidade. Devido eu falar o clássico e andar tão suja. Vou mostrar-lhe a revista para desfazer as duvidas. É por isso que eu digo que o jornal favorece. Fui na farmácia, comprei os remédios e mostrei-lhe a revista. Ficaram admirados. [...] Parei para conversar com uma senhora que reside na esquina na rua Araguaia e mostrei-lhe a reportagem do Audálio e a reportagem do senhor Moacir Jorge no Diário. Ela admirou. Disse-me que ouviu dizer que escrevo mas, não acreditou porque eles pensam que quem escreve e só as pessoas bem vestidas. Na minha opinião, escreve quem quer. (IN: PERPÉTUA, 2000: 328).

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Porque queria escrever, Carolina escrevia. Escrever era o seu ideal. “Todos tem um ideal, que é o combustível da alma” (JESUS, 1986: 19). O ideal de poeta da autora encerra uma racionalidade que, em suma, representa uma possibilidade de organização de si, de sua existência social num contexto cotidianamente atribulado. Trata-se, em última instância, de uma forma de entendimento do mundo que auxilia a autora a movimentar-se melhor nele.

Vasculhei as gavetas, procurando qualquer coisa para eu ler. Uma vizinha, emprestou-me um romance, Escrava Isaura. Compreendi tão bem o romance que chorei com dó da escrava e agradeci a Deus, pôr não ter nascido escrava. Compreendi que naquela época os escravos, e os escravizadores eram ignorantes, tipos de homens que viam apenas o presente, e não viam o futuro porque, quem é culto não escraviza e quem é culto não aceita ser escravizado. (...) e assim foi duplicando o meu interesse pelos livros. Não mais deixei de ler. Passei a ser uma das primeiras da classe (...) e fui ficando vaidosa, e com dó dos pretos que não sabiam ler. Compreendo que os que sabem ler têm mais possibilidades para viver melhor (MEIHY &

LEVINE, 1994: 175).

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Da percepção de que os que sabem ler têm mais possibilidades para viver melhor à costura do ideal de poeta que a autora desenvolveu ao longo do tempo em suas narrativas, revelam-se o lugar de relevo que a leitura como compreensão do mundo e a escrita como experiência do mundo representam para o sujeito Carolina Maria de Jesus. Experiência, em suma, de insubordinação, como nos diz Conceição Evaristo ao tratar da inscrição literária das mulheres negras.

O que levaria determinadas mulheres, nascidas ecriadas em ambientes não letrados e, quando muito,semialfabetizados, a romper com a passividade daleitura e buscar o movimento da escrita? Talvez essasmulheres (como eu) tenham percebido que, se o atode ler oferece a apreensão do mundo, o de escreverultrapassa os limites de uma percepção de vida. (...)Em se tratando de um ato empreendido por mulheresnegras, que historicamente transitam por espaçosculturais diferenciados dos lugares ocupados pelacultura dominante, escrever adquire um sentido deinsubordinação. (EVARISTO, 2007: 20-21)

FOTOS NA PÁGINA ANTERIOR: No sentido de leitura, as obras de Carolina em ordem cronológica durante vida: Quarto de despejo (1960), Casa de alvenaria (1961), Provérbios (1963), Pedaços da fome (1963); e obras póstumas: Diário de bitita (1982), Meu estranho diário (1996), Antologia pessoal (1996)

e Onde estaes felicidade (2014).

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TERRITÓRIOS DA VOZ PERIFÉRICA: HERANÇAS E PERTENCIMENTOS DO PRESENTE

O lugar de fala de Carolina Maria de Jesus se constituiu à margem do centro. Estar à margem não é estar fora. Ao contrário, a narrativa caroliniana é completamente contemporânea às centralidades do nosso tempo e dialoga com ele. A margem de onde brota a experiência é política, pois Carolina Maria de Jesus viveu, como milhares, à margem das “benesses” do desenvolvi-mentismo e do progresso e, mesmo quando passou a circular pelos espaços centrais citadinos, devido ao poder aquisitivo e à fama que conquistara, era mantida como outro, como margem. A margem é social, pois sendo ela mulher negra de pouca escolaridade – no meio da intersecção de raça, gênero e classe – não passou ilesa pelas estruturas racistas de nossa sociedade. Ciente de que o poder tem cor e da matriz racial da desigualdade, afirmou: “Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações” (JESUS, 1960: 70). A margem também é literária: se a autora angariou um sucesso editorial fantástico no início de seu percurso para depois ser esquecida pelo mesmo público leitor que devorou seu primeiro livro, isso remete à perversidade do sistema, que a incorporou para marginalizá-la, e à enorme curiosidade que a elite nutria sobre o outro, constituindo

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Carolina observa fotos suas na favela do Canindé para reportagem de M. Antônio no jornal Última Hora.

FOTO: Acervo iconográfico do jornal Última HoraArquivo Público do Estado de São Paulo

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suas premissas, conforme as palavras de Achille Mbembe,

Praticando o alterocídio, isto é, constituindo o Outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir, devido a não conseguir assegurar o seu controle total. (MBEMBE, 2014: 16).

Sendo margem, as opiniões sobre sua escrita ser ou não literatura ainda surge nos debates contemporâneos, reafirmando o mesmo preconceito do século passado. Exemplo preciso disso foi-nos dado em abril de 2017, quando a Academia Carioca de Letras organizou uma homenagem para Carolina Maria de Jesus, e a efeméride acabou novamente sendo palco para embate, pois o professor de literatura Ivan Cavalcanti Proença, que compunha a mesa de homenagem junto com a poeta Elisa Lucinda, afirmou categoricamente que a obra de Carolina não pode ser considerada literatura. Em defesa da homenageada (que estava sendo deslegitimada como autora de literatura dentro do ato que deveria celebrá-la), Elisa Lucinda respondeu: “Desculpe, Ivan, mas é literatura, sim! Eu não gosto de música sertaneja, mas não posso dizer que não é música”. O debate recente evidencia

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que a ideia de valor literário e o pertencimento ou não de um autor à literatura é questão de disputa, revelando os mesmos pressupostos eurocêntricos que tornam a literatura uma das linguagens mais elitistas do Brasil.

A margem de onde brota a experiência caroliniana nada tem a ver com aquela que ficara conhecida pela frase de Oiticica: “Seja marginal, seja herói”. Para nossa autora, heróis são os que vivem até a hora da morte (SANTOS, 1996). Esse sentido de margem também não é o mesmo daquele veiculado na literatura contemporânea produzida por autores oriundos das periferias urbanas. Pois os sentidos de pertencimento ao espaço da favela presentes no texto de Carolina Maria de Jesus são bem distintos da ideia de perten-cimento presente na produção literária periférica contemporânea. Não havia, absolutamente, na favela do Canindé, onde a autora viveu, a ideia de pertença a uma comunidade, tão forte nos discursos mais contemporâneos acerca da vivência nas periferias – com destaque para o hip hop, o movimento dos saraus e as diversas práticas culturais das periferias. Toda a luta da autora migrante – e de outros sujeitos cujas histórias são narradas por ela – era para sair da favela, espaço que violentava sua dignidade. Vitoriosa, ela conseguiu, por meio da publicação de seu livro, realizar tal desejo.

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Quando Carolina Maria de Jesus surgiu nos anos 1960, o contexto social/político/cultural de circulação de discursos pautou a necessidade de uma mediação para sua voz – mediação que também opinou sobre a pertença da autora ao campo literário: “Guarde aquelas poesias, aqueles contos e aqueles romances que você escreveu”, disse seu editor no prefácio de seu segundo livro, Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada.

De fato, as décadas de história que separam a narrativa de Carolina Maria de Jesus da literatura periférica contemporânea – cujo manifesto diz: “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor” – representam um tempo muito significativopara não ser considerado. A periferia hoje constitui seu próprio público leitor, que compartilha os mesmos códigos e que não busca, a priori, o aval da academia ou das grandes editoras. Saraus e feiras literárias, editoras e selos alternativos possibilitam a circulação dos textos, sem a necessidade primária de legitimação pelas vias “oficiais” do circuito literário. Esse dado altera radicalmente o cenário, pois tal realidade não existia quando Quarto de despejo foi lançado.

Carolina Maria de Jesus migrou de todos os lu- gares em que tentaram circunscrevê-la. De sacramento, da favela, das luzes falsas da cidade. Só nunca migrou da escrita, que sempre foi seu verdadeiro lugar de pertencimento. Escrevia porque apenas o básico não é

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o suficiente para viver. Por isso, mais importante que tudo, era o seu ideal de poeta. Entre a luta incessante por mais um dia de sobrevivência – estando ela no espaço de semiescravidão em que passara a infância e juventude; na favela do Canindé; na casa de alvenaria em Santana ou no sítio afastado em Parelheiros, transgride as fronteiras do imponderável para afirmarse e constituir-se humana. Sua arma: sua palavra. Que outra poderia caber-lhe, senão a literária?

Quem pode escrever? Eis a pergunta que demarca a trajetória de Carolina Maria de Jesus. E ela respondeu com todas as letras: “Na minha opinião, escreve quem quer”. Todos podem escrever, eis a perspectiva sustentada pela literatura periférica. Um agenciamento coletivo de enunciação, como disse Deleuze, que vem tomando o literário como seu território de pertencimento, território reivindicado, ocupado. Materializando em ato o gesto literário que Carolina primeiro enunciou.

A nós, leitores do presente, fica uma urgência: descolonizar o olhar sobre Carolina Maria de Jesus, isto é, não a emparedar mais ao rótulo de escritora favelada, observando os sentidos que essa classificação representava no contexto em que foi forjada e como ela repercute agora. Isso posto, realçar os encontros, os reconhecimentos e a herança que sua dicção representa para a literatura periférica hoje: campo de fertilidade, de colheita.

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Grafite em Guarulhos, São Paulo.FOTO: Carlos Alberto Moreira de Souza

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A literatura é um território de dissenso e um campo de disputa, assim como a cidade. A literatura periférica pulsa. Em cada viela, um centro. Cartografias sensíveis da cidade complexa. Cidade refletida, experimentada, amada e odiada por vozes múltiplas e heterogêneas: partilhas. Teias costuradas no texto de forma tão visível,que não é possível – nem aceitável – falar sobre literatura urbana contemporânea e não observar os textos pulsantes das margens, constituindo múltiplos centros.

Vozes autorais e coletivos literários com suas produções e seus materiais alinhavam um corpus despolarizado, des-centralizado, polimórfico, excêntrico, plural, que cresce, pelo menos desde os anos 2000, com as três edições “Literatura marginal”, da revista Caros Amigos, que aglutinou 48 autores; a publicação de Memórias de um sobrevivente , de Luiz Alberto Mendes, lançado em 2001 pela Companhia das Letras, que narra parte de sua experiência no cárcere; do livro Capão Pecado, de Ferréz; entre outros. E a partir de 2005, com a ascensão dos saraus demarcando a literatura periférica, como Sarau da Cooperifa, que publicou sua antologia em 2005. Centenas de livros coletivos e individuais foram lançados desde então, demarcando a potência do movimento cultural literário periférico.

A literatura periférica constitui um espaço novo diante da produção literária hegemônica. A prática literária é articulada à própria experiência urbana, o que

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torna essa produção, além de repertório de técnicas literárias, ferramenta para a interlocução social e para entendimento e organização subjetiva. Desse lugar, as reverberações não se restringem ao campo do estético, visto que a literatura é signifi cada também como uma forma de articular a experiência social histórica, da ponte pra cá e de cá pra lá.

A geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa em que a história cultural “ocorre”, mas uma força ativa, que impregna o campo literário e o conforma em profundidade. Tornar explícita a ligação entre geografia e literatura, portanto – mapeá-la: porque um mapa é exatamente isso, uma ligação que se torna visível –, nos permitirá ver algumas relações significativas que até agora nos escaparam. (MORETTI, 2003: 13)

SOU UMA CAROLINA

Trabalhei desde meninaNa infância lavei, passei, engraxei…Filhos dos outros embaleiSou negra escritora que virou notícias nos jornaisFoi do Quarto do Despejo aos programas de TVSou uma CarolinaEscrevo desde menina

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Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteadosForam tantos beliscõesPelas bandas lá de MinasEu sou de Minas GeraisFugi da casa da patroaVassoura não quero ver maisA caneta é meu troféuBorda as palavras no papelÉ tudo o que quero dizerSou uma CarolinaFeminino e poesiaA negra escritora que foi do Quarto do DespejoAos programas na TVHoje uso salto altoVestido decotado, meio curto e com babadosEstou na sala de estarNo meu sofá aveludadoPorque…Sou uma CarolinaFeminino e poesiaPobreza não quero maisA caneta é meu troféuBorda as palavras no papelÉ tudo o que quero dizer…Carolina…

TULA PILAR FERREIRA

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Tula Pilar FerreiraFOTO: Vanderlei Yuib.

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Tula Pilar Ferreira, autora do poema citado, é uma das vozes contemporâneas que se constitui na prática literária dos saraus. Tem poemas publicados em diversas antologias e é autora do livro Palavras inacadêmicas, publicado de forma independente. Desde 2014, Tula Pilar apresenta a performance poética Sou uma Carolina em diversos saraus da cidade. Carolina Maria de Jesus e Tula Pilar saíram de Minas Gerais para o serviço de doméstica em São Paulo, mas a literatura era para ambas o ofício desejado e, sendo seu território natural, ocuparam-no.

Entre Carolina e Pilar, duas trajetórias irmãs. Nas vias do texto, a herança da mais velha que a mais a nova toma para si.

A matéria viva da literatura formada por afetos, heranças, sujeitos e experiências em grafias que conversam. Literatura periférica é uma terminologia que engloba um conjunto muito heterogêneo de autorias, que tomam a literatura em ato. Uma tomada de posse da palavra, que, por sua vez, cria espaços de pensa-mentos e de afetos com a cidade.

As ruas são um território de direito, assim como é a literatura. Por isso o verbo ocupar é tão pertinente ao tempo presente: ocupar inclusive os sistemas que formulam as políticas do imaginário. Os espaços não são concedidos, e sim tomados, reivindicados em campos de disputa. É o que nos conta o poema de Jenyffer Nascimento:

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Ando ziguezagueando pelas ruas da cidadeComo se estivesse à procura de algoQue não sei exatamente o que éMas almejo encontrarIncessantementeTalvez seja a própria alma das ruasQue me fisga

Da Augusta pra Rego FreitasDa Rego Freitas pra Santa CecíliaDa Santa Cecília ao GrajaúDo Grajaú ao CapãoEnredo de uma trama entremeadaDe Cinza-inverno-ameaçadoraCom laranja-verão-esperançosa

PerambulandoDe bar em barDe mesa em mesaAtenta a cada flerte possívelCom quem passa, com quem ficaAfinal somos 12 milhões de ciudadanosE, se não existe amor em SP,Lambe-lambe sempre há de ter(dizem as más e boas línguas)Nos postes, muros e quartos da vida

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Só peço a deusas e deuses da boemiaQue me livre dos caretasDos machistas bêbados de boteco perdendo a linhaDas pessoas que falam muito e transam poucoE da cerveja quente no final da noite

Na porta da Love StoryDe por que me apaixonei pelas ruas?Porque não há respostas prontasPorque o acaso é a lei onde não existe leiPorque as luzes amareladas do viaduto do CháSão cenário de um filme noturnoOnde eu sou a protagonistaEntre a sanidade e a loucuraEu fico com a faísca

Eu seiEssa cidadeNão foi feita para todosMenos ainda para nós mulheresHá perigos im(ex)plícitos em todas as partesNão posso ser ingênua e negá-losMas não posso me acovardarPorque a vida pulsa em mim todos os diasNão me convém viver a vida estritamente privadaAs ruas são meu território por direito

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Por isso eu ocupo, ocupo e ocupo!Sem nenhuma culpa

Sabe MendonçaAqui também existe um som ao redorContínuo e enlouquecedorMas nem todos podem ouvi-loNão se trata de buzinas ou sirenesÉ outra paradaSó quem ouve e sente sabeDesse mal-estarAssim como correr do choqueEm meio a balas de borracha e gás lacrimogêneoNas manifestaçõesAssim como o silêncio da volta pra casaCheio de significado e dorAssim como carregar na cor e no semblanteUma única sentença: culpado

São PauloGarganta profunda que tenta me engolirdiariamentePorque falo na gíria e gosto de pichaçãoPorque não carrego essa pele pálidaNem o sobrenome de herdeira dos barões do caféPorque sou da diáspora nordestina

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AceitaAgora sou eu que te lambo e te cuspoTe manuseio com a planta dos pésTe falo poesia ao pé do ouvidoTe devoroSoberana city

De por que me apaixonei pelas ruas?Te conto lá foraTopa?

JENYFFER NASCIMENTO

Onde é o “lá fora”? Fora da poesia, na vida. Fora do óbvio, um convite. Fora do fim, no diálogo. Lá fora – lugar tecido no texto e que dele escapa. Pertencimento à vida, ao movimento luminoso da cidade, gestado dentro da palavra e irrompendo fora dela, em sinapses.

As autorias e os textos que se aproximam do termo “literatura periférica” são instrumentos cognitivos preciosos para nos guiar nos caminhos bifurcados que compõem os sentidos de cidade hoje. Mostram que a periferia agencia de forma própria os significados da geografia urbana, fazendo dela açude e arame, protesto e colo, começo e meio. Mostram que a realidade citadina permanece tão violenta e desigual quanto o momento em que as primeiras favelas surgiram em São Paulo,

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porém agora os silenciamentos historicamente impostos são confrontados por autoras e autores armados de versos até os dentes. A literatura em ato vivifica o receptor e o destinatário, pois a mensagem brota dos becos e das vielas da vida, sangue nos olhos e amor na trajetória – onde a matéria poética corre fora das engrenagens engessadas e arcaicas da arte elitista, ainda majoritária no cenário literário nacional.

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OBRAS DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Antologia pessoal. José Carlos Sebe Bom Meihy (org.).Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996b.

Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo:Francisco Alves, 1961.

Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Meu estranho diário. José Carlos Sebe Bom Meihy eCarlos Levine (orgs.). São Paulo: Xamã, 1996a.

Onde estaes felicidade? São Paulo: Me Parió Revolução,2014.

Pedaços da fome. São Paulo: Áquila, 1963.

Provérbios. São Paulo: Luzes, 1963.

Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo(1888-1988). São Paulo: Edusc, 1998.

CASTRO, Eliana de Moura; MACHADO, Marília Novais de Mata. Muito bem, Carolina! Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.

DALCASTAGNÈ, Regina. Entre fronteiras e cercado de armadilhas. Problemas da representação na narrativa contemporânea brasileira. Brasília: Editora da Unb: 2005.

EVARISTO, Conceição. “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

FERRÉZ. “Manifesto de abertura: literatura marginal”.Caros Amigos (suplemento literário) Literatura marginal: a cultura da periferia: ato I, São Paulo, 2001.

LAJOLO, Marisa. “A leitora no quarto dos fundos”. Leitura: teoria e prática. Campinas, Mercado Aberto, ano 14, nº. 25, 1995.

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______. “Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina”. In: MEIHY, José Carlos Sebe Bom (org.). Antologia pessoal, poemas de Carolina de Jesus. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; LEVINE, Robert (orgs.). Cinderela negra: a saga de Carolina de Jesus. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.

MEYER, Regina Maria Prosperi. Metrópole e urbanismo São Paulo anos 50. Tese de doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1991.

MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu. (1800-1900). São Paulo: Boitempo, 2003.

MOSER, Benjamin. Clarice. Trad. Joé Geraldo Cortes. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.

NASCIMENTO, Érica Peçanha do. “Literatura marginal”: Os escritores da periferia entram em cena. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 2006.

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PAULINO, Jorge. O pensamento sobre a favela em São Paulo: uma história concisa das favelas paulistanas. Dissertação de mestrado. São Paulo: FAU-USP, 2007.

PERPÉTUA, Elzira Divina. Traços de Carolina Maria de Jesus: gênese, tradução e recepção de Quarto de despejo. Tese de doutorado não publicada, Faculdade de Letras da UFMG, 2000.

SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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SOBRE A AUTORA

FERNANDA MIRANDA é professora e pesquisa sobre romancistas negras brasileiras. Possui bacharelado em Letras pela Universidade de São Paulo e mestrado e doutorado na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma universidade. É autora da dissertação Carolina Maria de Jesus: experiência marginal e construção estética (2013) e da tese Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da história e colonialidade nacional confrontada (2019). Dá cursos de formação, palestras e oficinas sobre literatura negra, autoria feminina, sistema literário e racismo, (in)visibilidade de autoras negras e políticas de silenciamento do cânone. Em 2019 lançou o livro Silêncios prescritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006), da Editora Malê.

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COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAS

Viver a cidade, transformar a vida urbanaANTONIO RISÉRIO

Inventar outros espaços, criar subjetividades libertáriasMARGARETH RAGO

Conciliação, regressão e cidadeTALES AB’SABER Carolina Maria de Jesus: literatura e cidade em dissenso FERNANDA R. MIRANDA Rizoma temporal PETER PÁL PELBART

Da metrópole à aldeia: um trajeto de Antropologia UrbanaJOSÉ GUILHERME C. MAGNANI

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Este texto foi produzido a partir de um debate entre Fernanda R. Miranda e Gabriela Leandro Pereira no dia 23 de maio de 2017, na aula de Fundamentos Socio-econômicos do professor Pedro Lopes na Escola da Cidade e contou com a mediação do estudante Arthur Santoro.

autora FERNANDA R. MIRANDAtexto de apresentação JOSÉ GUILHERME PEREIRA LEITErevisão THAIS RIMKUSprojeto gráfico TRÊS DESIGNdiagramação EDITORA ESCOLA DA CIDADEdesenho da capa DÉBORA FILIPPINIagradecimentos ARTHUR SANTORO, CARLOS ALBERTO MOREIRA DE SOUZA, VANDERLEI YUIB.

COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAScoordenação JOSÉ GUILHERME PEREIRA LEITE E FABIO VALENTIM

ASSOCIAÇÃO ESCOLA DA CIDADE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO Rua General Jardim, 65 - Vila Buarque 01223-011 São Paulo SP T +55 11 3258 8108 [email protected]

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ASSOCIAÇÃO ESCOLA DA CIDADEpresidência ALVARO LUÍS PUNTONI, FERNANDO FELIPPE VIÉGAS E MARTA MOREIRA

CONSELHO ESCOLAdiretoria CRISTIANE MUNIZ E MAIRA RIOS

CONSELHO CIENTÍFICOdiretoria ANÁLIA M. M. DE C. AMORIM E MARIANNA BOGHOSIAN AL ASSAL CONSELHO TÉCNICO diretoria GUILHERME PAOLIELLO

CONSELHO HUMANIDADES diretoria CIRO PIRONDI

CONSELHO SOCIALdiretoria ANDERSON FABIANO FREITAS

EDITORA ESCOLA DA CIDADEcoordenação FABIO VALENTIMMARINA RAGO MOREIRA, THAIS ALBUQUERQUE, ALEXANDRE BASSANI E RICARDO KALIL

NÚCLEO DE DESIGNcoordenação CELSO LONGO E DANIEL TRENCHDÉBORA FILIPPINI, BEATRIZ OLIVEIRA E GABRIEL DUTRA

MEIOS DIGITAIS E AUDIOVISUALcoordenação ALEXANDRE BENOITcoordenação baú CLARISSA MOHANYFERNANDA TEIXEIRA, LUISA MARINHO E LÚMINA KIKUCHI

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

Catalogação elaborada por Edina R. F. Assis – CRB 8/6900

MIRANDA, Fernanda R. Carolina Maria de Jesus: literatura e cidade em dissenso/ Fernanda R. Miranda. – São Paulo: ECidade, 2020. 70 p.; Digital. – (Outras Palavras; v.4). ISBN: 9978-65-86368-08-6

1. Carolina Maria de Jesus. 2.Literatura Brasileira. 3. Escritoras - Brasil. 4. Mulheres - Brasil - Condições. I. Título. II. Série.

CDD 869.5

fontes Adobe Caslon Pro e Glacial Indifference

Primeira edição impressa em novembro de 2017.Edição digital distribuída gratuitamente.São Paulo, julho de 2020.

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COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAS

As “outras palavras” [...] são as múltiplas palavras que sempre tiveram espaço na Escola da Cidade, desde a sua fundação, preocupada que é esta Escola com a sólida e ampla formação humanista de seus estudan-tes, professores e colaboradores. Noutras palavras, são também as outras “turas” de que fala Cortázar, na alta intensidade de seu fraseado dançante, no jogo tramado de seus cacos significativos: “A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, litera-tura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a san-tidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas”. Juntar essas pontas é uma utopia? Esperamos que essas “turas” e leituras multipliquem-se no tempo, nas mãos e no pensa-mento de nossos leitores. Por isso, trazemos a público esses livros, essas reflexões recolhidas.

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FERNANDA R. MIRANDA

O impacto que Quarto de despejo tem causado ressalta as dificuldades inerentes ao processo de reconhecimento de autores e obras situados à margem da dinâmica habitual de circulação de discursos literários. No caso de Carolina Maria de Jesus, a crítica atentou principalmente para as incorreções gramaticais de sua narrativa, reduzindo seu valor devido às rupturas com a norma culta da língua e, ao mesmo tempo, condicionando o valor do texto ao testemunho e ao documento e, consequentemente, às condições sociais – de

gênero, de classe, de raça – da autora.