carmilla - joseph sheridan le fanu

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J. Sheridan Le Fanu Traduo, reviso, formatao: Comunidade RTS ORKUT:

J. Sheridan Le Fanu

Carmilla Traduo, disponibilizao, reviso: JossiB Slavic Comunidade RTS (Orkut) Resumo: JossiB Slavic Laura, uma jovem e despreocupada moa, vive com seu pai numa regio afastada das grandes cidades, num antigo castelo. E quando vem a conhecer Carmilla uma lindssima moa, que veio morar em sua casa e tornou-se sua melhor amiga coisas estranhas comeam a acontecer com ela e com muitas outras pessoas do povoado prximo.... Que mistrios esconderia Carmilla, a mulher de beleza estonteante e hbitos estranhos? Que amores teria em seu corao, de onde viera, qual sua verdadeira natureza? E por qu1

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Laura passara a ter tantos e to inquietantes pesadelos, desde que Carmilla viera morar no castelo?

Vivamos na Estiria, em um castelo. No que nossa fortuna fosse principesca, mas naquele rinco do mundo era suficiente uma pequena renda anual para poder levar uma vida de grande senhorio. Em troca, em nosso pas e com nossos recursos s teramos levado uma existncia acomodada. Meu pai ingls e eu, naturalmente, tenho um sobrenome ingls, mas nunca vi a Inglaterra. Meu pai servia no exrcito austraco. Quando alcanou a idade do retiro, com seu reduzido patrimnio pde adquirir aquela pequena residncia feudal, rodeada de vrios hectares de terra. No acredito que exista nada mais pitoresco e solitrio. O castelo est situado sobre uma suave colina e domina um extenso bosque. Uma estrada estreita e abandonada passa por diante de nossa ponte levadia, que nunca vi levantar: em seu fosso nadam os cisnes entre as brancas corolas dos nenfares. Dominando este conjunto se levanta a ampla fachada do castelo com suas numerosas janelas, suas torres e sua capela gtica. Diante do castelo se estende o pitoresco bosque; direita, a estrada discorre ao longo de uma ponte gtica estendida sobre uma corrente que serpenteia atravs do bosque. Disse que um lugar muito solitrio. Julguem vocs mesmos se puderem ver. Olhando da porta de entrada para a estrada, o bosque que rodeia nosso castelo se estende quinze milhas direita e doze esquerda. O povoado habitado mais prximo est nessa ltima direo, a uma distncia aproximada de sete milhas. O castelo mais prximo e de certa notoriedade histrica do general Spieldorf, a umas vinte milhas direita.2

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Disse o povoado habitado mais prximo, porque a oeste, s a trs milhas, em direo ao castelo do general Spieldorf, h um povoadozinho em runas com sua igreja gtica tambm em runas; ali esto as tumbas, quase escondidas entre pedras e folhagem, da orgulhosa famlia Karstein, extinta faz tempo. A famlia Karstein possua antigamente o desolado castelo, que da espessura do bosque domina as silenciosas runas do povoado. H uma lenda que explica por que foi abandonado por seus habitantes esta estranha e melanclica paragem. Mas j falarei dela mais adiante. O nmero de habitantes de nosso castelo era muito exguo. Excluindo os criados e os habitantes dos edifcios anexos, estvamos somente meu pai, o homem mais simptico do mundo mas de idade bastante avanada, e eu, que na poca em que ocorreram tais fato ques vou narrar tinha somente dezenove anos. Meu pai e eu constituamos toda a famlia. Minha me, de uma famlia nobre da Estiria, morreu quando eu era ainda uma menina. Entretanto, tive uma inesquivcel ama, a senhora Perrodon, da Berna. Era terceiro a pessoa em nossa modesta mesa. A quarta era a senhorita Lafontaine, uma dama em toda a extenso da palavra, que exercia as funes de institutriz, para completar minha educao. Algumas moas amigas minhas vinham de vez em quando ao castelo e, algumas vezes, eu lhes devolvia a visita. Estas eram nossaos habituais relaes sociais. Naturalmente, tambm recebamos visitas imprevistas de vizinhos. Por vizinhos se entendem as pessoas que habitavam num raio de quatro ou cinco lguas. Posso lhes assegurar que, em geral era uma vida muito isolada. O primeiro acontecimento que me produziu uma terrvel impresso e que ainda agora segue gravado em minha mente, ao mesmo tempo um dos primeiros sucessos de minha vida que posso recordar. A nursery, como a chamvamos, embora era s para mim, estava em uma sala grandiosa do ltimo piso do castelo, e tinha o teto inclinado, com molduras de castanheira. Teria eu uns seis anos quando uma noite, despertando de improviso, olhei ao meu redor e no vi a ama de servio.3

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Acreditei que estava sozinha. No que tivesse medo... Pois era uma daquelas afortunadas meninas a quem se evitou expressamente as histrias de fantasmas e os contos de fadas, que deixam as crianas temerosas ante uma porta que chia ou ante a sombra danante que produz sobre a parede prxima a luz incerta de uma vela que se extingue. Se pus-se a chorar foi certamente porque me senti abandonada; mas, com grande surpresa, vi ao lado de minha cama um rosto muito belo que me contemplava com ar grave. Era uma jovem que estava ajoelhada e tinha suas mos sob minha manta. Observei-a com uma espcie de prazenteiro estupor, e cessei em minha choramingao. A jovem me acariciou, sentou-se na cama ao meu lado e me abraou, sorrindo. De repente, senti-me acalmada e contente, e dormi de novo. De sbito, despertei com a arrepiante sensao de que duas agulhas me atravessavam o peito profunda e simultaneamente. Dei um grito. A jovem deu um salto para trs, caindo ao cho, e me pareceu que se escondia debaixo da cama. Pela primeira vez, senti medo e me pus a gritar com todas minhas foras. A bab, a criada e a ama acudiram precipitadamente, mas quando lhes contei o que me tinha ocorrido estalaram em risadas, de uma vez que tratavam de me tranqilizar. Embora eu fosse uma menina, recordo seus rostos plidos e sua angstia mau dissimulada. Vi-as procurar debaixo da cama, por todos os cantos da habitao, no armrio e ouvi minha ama sussurrar bab: -Olhe! Algum se jogou na cama, junto menina, ainda est quente. Lembrana que a criada me acariciou e que as trs mulheres examinaram meu peito, no ponto onde eu havia sentido a pontada. Asseguraram-me que no se via nenhum sinal. O dia seguinte o passei em um contnuo estado de terror: no podia ficar s um instante, nem sequer a plena luz do dia. Recordo meu pai junto da minha cama, me falando em tom festivo, assim como perguntando bab e rindo-se de suas respostas. Logo fazia4

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caretas, abraava-me e me assegurava que tudo tinha sido um sonho sem importncia. Mas eu no estava tranqila, porque sabia que a visita daquela estranha criatura no tinha sido um sonho. Esqueci todas as minhas lembranas anteriores a este acontecimento, e muitos dos posteriores, mas a cena que acabo de descrever aparece vvida em minha mente como os quadros de uma fantasmagoria surgindo da escurido. Uma tarde de vero, particularmente aprazvel, meu pai me pediu que o acompanhasse a dar um passeio pelo maravilhoso bosque que se estende diante do castelo. -O general Sipeldorf no vir nos visitar, como espervamos me disse, durante o passeio. Nosso vizinho devia passar vrias semanas no castelo. Com ele devia vir tambm sua jovem sobrinha e pupila, a senhorita Reinfelt. Eu no conhecia a senhorita Reinfelt, mas me haviam descrito como uma jovem encantadora. Fiquei muito desiludida ante a notcia que acabava de me dar meu pai; muito mais do que possa imaginar algum que viva habitualmente na cidade. Aquela visita, e a nova amizade que certamente tinha que surgir dela, tinha sido objeto dirio de meus pensamentos durante muitas semanas. -Quando viro? perguntei. - No prximo outono. Dentro de um par de meses respondeu meu pai, e acrescentou: -Me alegro, querida, de que no tenha conhecido a senhorita Reinfelt. -Por que? inquiri, molesta e curiosa ao mesmo tempo. -Por que a pobre moa morreu. Fiquei extremamente impressionada. O general Spieldorf dizia em sua ltima carta, seis ou sete semanas antes, que sua sobrinha no se encontrava muito bem, mas nada fazia pensar na possibilidade, nem sequer remota, de um grave perigo. -Aqui tem a carta do general continuou meu pai, entregando-me o papel. Parece-me que est muito transtornado. Indubitavelmente, quando escreveu a carta se achava muito excitado.5

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Sentamo-nos em um banco de pedra, junto ao atalho dos tilos. O sol desaparecia com todo seu melanclico esplendor atrs do horizonte selvagem, e o riacho que corria junto a nossa manso refletia o colorido escarlate do cu, cada vez mais plido. A carta do general Spieldorf era to inslita e apaixonada, que a reli atentamente para compreender seu sentido. Possivelmente a dor tinha transtornado sua mente. Dizia assim: Perdi a minha querida sobrinha: queria-a como a uma filha. Perdi-a e somente agora sei tudo. Morreu na paz da inocncia e na f de um futuro bendito. O monstro que traiu nossa cega hospitalidade foi o culpado de tudo. Acreditei receber em minha casa a inocncia, a alegria, a uma companhia querida para minha Berta. Meu Deus! Que louco fui! Consagrarei os meus dias de vida caa e destruio do monstro. S me guia uma dbil luz. Amaldio minha cegueira e minha obstinao... tudo... muito tarde. Nestes momentos no posso escrever nem pensar com serenidade; estou muito transtornado. Assim que esteja melhor me dedicarei busca e irei possivelmente at Viena. Dentro de alguns meses, para o outono, irei visitarlhes, se que ainda estarei vivo. Em tempo lhes contarei o que agora no tenho foras para escrever. Adeus. Roguem por mim, queridos amigos. Aqui terminava a carta. Embora eu no tinha conhecido Berta Reinfelt, meus olhos se encheram de lgrimas. A notcia de sua morte me impressionou muitssimo. Devolvi a meu pai a carta do general. O sol se afundava cada vez mais no ocaso e a tarde era doce e clara. Passeando sob a morna luz do entardecer, entretivemos fazendo suposies sobre o possvel sentido das incoerentes e violentas afirmaes daquela carta. Na ponte levadia encontramos a senhorita Lafontaine e a senhora Perrodon, que tinham sado a admirar o magnfico claro da lua. Frente a ns se estendia o prado pelo qual tnhamos passeado. esquerda, o caminho discorria sob umas vulnerveis rvores e desaparecia na6

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espessura do bosque. direita, a estrada passava sobre uma ponte severa e pitoresca de uma vez, junto qual se erguia uma torre em runas. No fundo do prado, uma ligeira neblina delimitava o horizonte com um vu transparente, e de quando em quando se viam brilhar as guas da corrente luz da lua. Tanto a meu pai quanto a mim, seduzia-nos o pitoresco e ficvamos contemplando em silncio a esplndida plancie que se estendia ante ns. As duas boas senhoras, a poucos passos, discutiam sobre a paisagem e falavam da lua. A senhora Perrodon era mais tranqila e via todas as coisas de um ponto de vista romntico. A senhorita Lafontaine pretendia ser psicloga e algo mstica. Aquela tarde afirmou que a intensa luminosidade da lua estava em relao direta com uma especial atividade espiritual. Os efeitos de uma lua cheia como aquela podiam ser mltiplos. Influa nos sonhos, na loucura, na gente nervosa e at nos fatos materiais. - Esta noite disse- a lua est cheia de influxos magnticos. Olhem como brilham as janelas com um resplendor prateado, como se mos invisveis tivessem iluminado as casas para receber hspedes espectrais. Naquele momento, o inslito rumor das rodas de uma carruagem e do galope de muitos cavalos sobre a estrada atraiu nossa ateno. Parecia aproximar-se descendo a colina que dominava a velha ponte, muito em breve, e uma pequena turba desembocou naquele ponto. Primeiro cruzaram a ponte dois cavalheiros, ento apareceu uma carruagem tirada por quatro corcis, e finalmente outros dois cavalheiros que fechavam o cortejo. Parecia o carro de uma pessoa de fila. Nossa ateno ficou presa naquele espetculo inusitado, que no demorou para fazer-se ainda mais interessante, porque, logo que chegaram na curva da ponte, um dos cavalos soltou-se da carruagem e, contagiando seu pnico aos outros, arrancou a todos com um galope desenfreado, irrompendo entre os cavalheiros que precediam carruagem, e avanando para ns com a violncia e a fria de um furaco. Naquele momento culminante, a cena adquiriu caracteres de tragdia, devido a gritos femininos procedentes do interior do veculo.7

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Meu pai permaneceu em silncio, enquanto ns lanvamos exclamaes de terror. O final no se fez esperar. O ponto de enlace da estrada com a ponte levadia estava delimitada a um lado por um soberbo tilo, e do outro por uma cruz de pedra. Os cavalos que partiam a uma velocidade vertiginosa, desviaram-se assustados ao ver a cruz, arrastando as rodas contra as razes salientes da rvore. Assustada pelo que podia ocorrer, tampei o rosto com as mos, no resistindo idia de ver como a limusine saa do caminho. Naquele mesmo instante ouvi o grito de minhas companheiras, que estavam um pouco mais adiantadas que eu. Abri os olhos, impulsionada pela curiosidade, e contemplei uma cena extremamente confusa. Dois cavalos jaziam no cho. A carruagem estava derrubada, apoiada sobre um de seus lados, com duas rodas ao ar. Os homens trabalhavam em excesso arrumando o veculo, de cujo interior tinha sado uma senhora de aspecto autoritrio, que retorcia nervosamente entre suas mos um leno. Ajudamos a sair da carruagem a uma jovem, que parecia deprimida. Meu pai se aproximou da senhora de mais idade, chapu na mo, lhe oferecendo ajuda e proteo no castelo. A senhora no parecia ouvir nada, e s tinha olhos para a frgil mocinha que tinha sido reclinada no respaldo de um banco. Aproximei-me. A jovem tinha perdido a conscincia, mas sem dvida estava com vida. Meu pai, que apreciava de ter alguns conhecimentos mdicos, tomou o pulso e assegurou senhora, que se tinha apresentado a si mesma como me da jovem, que a pulsao, embora dbil e irregular, era perceptvel. A senhora juntou suas mos e elevou os olhos ao cu, em um momentneo transporte de gratido; logo, repentinamente, desafogou-se fazendo gestos teatrais, que, entretanto, so espontneos em certo tipo de pessoas. Era uma mulher de boa aparncia, que em sua juventude deveu ter sido sedutora. Magra, embora no fraca, ia vestida de veludo negro. Sua plida fisionomia conservava uma expresso orgulhosa e autoritria, apesar da agitao do momento. -Oh, que desgraa a minha! exclamou, retorcendo as mos-. Estou em uma viagem que questo de vida ou morte. Um hora de atraso pode ter8

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conseqncias irreparveis. No possvel que minha filha possa restabelecer-se do golpe recebido e continuar uma viagem cuja durao no possvel prever. Deverei deix-la forosamente no trajeto. No quero correr o risco de chegar com atraso. A que distncia se encontra o povoado mais prximo? necessrio que a leve at ali, para recolh-la minha volta. E pensar que terei de passar ao menos trs meses sem ver minha querida filha, sem ter notcias delas! Atirei a meu pai um olhar e lhe sussurrei ao ouvido. -Pai, lhe diga que a deixe conosco... Eu gostaria de muito. Faa-o por mim. -Se a senhora quer confiar a sua filha aos nossos cuidados, meus e de nossa ama, a senhora Perrodon, se permitir que sua filha fique conosco, sob minha responsabilidade, at sua volta, consideraremo-lo como uma grande honra e prestaremos a ela os cuidados e a devoo que o dever da hospitalidade impem disse meu pai solenemente. -No posso aceit-lo respondeu a desconhecida com muita circunspeo- seria abusar muito de sua amabilidade. -Ao contrrio nos faria um grande favor. Precisamente deveria encher um inesperado vazio. Hoje mesmo, minha filha sofreu uma grande desiluso, devido notcia de que se frustrou uma visita que espervamos. Se confiar sua filha a nossos cuidados, ser seu melhor consolo. No aspecto e atitudes daquela senhora havia algo to especial e imponente, e em certo sentido fascinante, que, ainda prescindindo do squito que a acompanhava, dava a impresso de ser uma pessoa da nobreza. Enquanto isso, a carruagem e os cavalos, j acalmados, estavam de novo enganchados. A senhora dirigiu sua filha um olhar que no me pareceu afetuoso, como era de esperar depois da terrvel cena, e seguidamente chamou a meu pai com um gesto e se afastaram uns passos de ns. Enquanto falava, a senhora manteve um expresso fria e grave, muito pouco em acordo com sua anterior conduta.9

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Conversaram uns minutos; logo, a senhora retornou e deu uns passos para sua filha, que jazia entre os braos da senhora Perrodon. Ajoelhou-se a seu lado e lhe sussurrou algo ao ouvido. Beijou-a apressadamente e logo entrou precipitadamente na carruagem, fechando a portinhola, enquanto os condutores subiam bolia e os batedores esporeavam seus cavalos. Os condutores fizeram estalar seus ltegos e os cavalos se lanaram ao galope; a carruagem desapareceu entre uma nuvem de p, seguida dos dois cavalheiros que fechavam o cortejo. Seguimos com o olhar sua carreira at que desapareceu definitivamente entre a nvoa e deixou-se de ouvir o chiado de suas rodas e fragor dos cascos dos cavalos lanados ao galope. Para demonstrar que no tnhamos sido vtimas de uma alucinao ficava entre ns a moa, que precisamente naquele momento estava recuperando o sentido. No pude v-la, porque tinha o rosto voltado para a parte oposta ao lugar onde eu me encontrava, mas ouvi sua voz, muito doce, que perguntava em tom suplicante: -Onde est minha me? Onde estou? No vejo a carruagem... A senhora Perrodon respondeu suas perguntas o melhor que pde, e paulatinamente, a jovem foi recordando o que tinha acontecido. Ao inteirarse de que ningum tinha sofrido o menor dano, ficou muito aliviada. Mas quando lhe dissemos que a me a tinha deixado a nosso cuidado e que demoraria uns trs meses em vir procur-la, ps-se a chorar. Ia aproximarme dela para ajudar senhora Perrodon em seus esforos para consol-la, mas a senhorita Lafontaine me deteve, dizendo: -No se aproxime dela, senhorita. No estado em que se encontra, no poderia suportar mais de uma pessoa por vez. Pensei que poderia visit-la assim que a tivessem acomodado em seu quarto. Enquanto isso, meu pai tinha enviado em busca do mdico que vivia a umas duas lguas de distncia, e ordenou preparar um aposento para alojar moa.

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A desconhecida ficou em p e, apoiando-se no brao da senhora Perrodon, cruzou lentamente a ponte levadia e entrou em nosso jardim. A criada a acompanhou imediatamente ao quarto que lhe tinha sido destinado. Agrada-lhe nossa convidada? perguntei senhora Perrodon. Diga que .impresso lhe causou. Agrada-me muito respondeu. Acredito que a moa mais bonita que vi em toda minha vida. Tem aproximadamente a sua idade e verdadeiramente encantadora. No se deram conta de que na carruagem havia outra pessoa? interveio a senhorita Lafontaine. Uma mulher que nem sequer mostrou o rosto. No, no a tnhamos visto. A senhorita Lafontaine descreveu uma estranha personagem, vestido de negro, com um turbante vermelho na cabea, que olhava continuamente pela janela, fazendo gestos e caretas de desprezo em direo s duas mulheres. Tinha uns olhos saltados e seus dentes salientes pareciam os de uma harpia. -Notaram vocs o desagradvel aspecto que tinham os servos? perguntou a sua vez a senhora Perrodon. -Sim conveio meu pai, pareciam mastins. Nunca tinha visto tipos como esses. Espero que quando cruzarem o bosque no assaltem a senhora. Mas, devem ser uns patifes muito hbeis. Arrumaram tudo em um intante. Possivelmente estavam cansados da longa viagem disse a senhora Perrodon alm de seu aspecto pouco recomendvel, tinham a cara fechada e pareciam estar furiosos. Devo confessar que despertaram minha curiosidade, mas confio em que a moa nos explicar isso tudo amanh, quando se encontrar melhor. No acredito que o faa disse meu pai com um sorriso ambguo, como se soubesse mais do que dizia. Isto excitou minha curiosidade por saber o que a senhora vestida de negro havia dito a meu pai no curso da breve conversao que sustentaram. Apenas fiquei a ss com ele tentei lhe surrupiar. Meu pai no se fez rogar.11

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No h nenhum motivo para que lhe oculte isso. A senhora me disse que temia nos deixar sua filha, porque se trata de uma moa de sade delicada e tem os nervos alterados, embora no padea de ataques nem alucinaes. No lhe parece algo estranho que lhe dissesse isto? No tema nenhuma necessidade de esclarecer esse extremo... De qualquer maneira, isso foi o que me disse .interrompeu meu pai. Me explicou que est efetuando uma longa viagem, de vital importncia para ela. Est obrigada a viajar com a maior rapidez e discrio possveis. Dentro de trs meses dever recolher a sua filha. Enquanto isso, no deve dizer nada a respeito de sua personalidade e do lugar aonde se dirige Ao pronunciar a palavra discrio, sublinhou-a com uma pausa, me olhando nos olhos com certa dureza. - Acredito que importante. Viu a rapidez com que partiu? Espero no ter cometido uma tolice ao ter pena dessa moa. Embora o mdico no chegasse at a uma da madrugada, no pude ir cama. Quando o doutor retornou ao salo, seu .relatrio foi muito otimista. A paciente se levantou e sua pulsao era regular. No tinha nenhuma ferida e o trauma nervoso no tinha deixado rastro. Nada se opunha a que eu a visitasse, se ela quisesse. Em conseqncia, enviei-lhe recado por meio da criada, lhe perguntando se podia fazer-lhe uma breve visita. A criada retornou imediatamente, dizendo que a jovem se alegraria muito com minha visita. No perdi um s instante. Tnhamos agasalhado a nossa convidada em um dos aposentos mais formosos do castelo. A jovem estava recostada, luz dos candelabros, na cabeceira. Sua graciosa figura aparecia envolta em uma bata de seda recamada de flores e orlada com uma cinta que sua me lhe tinha jogado aos ps, quando ainda estava no cho. Mas, apenas me aproximei da cama para saud-la, algo me fez emudecer e retroceder uns passos. Tratarei de me explicar. O rosto que tinha ante mim era o mesmo que me tinha aparecido durante aquela terrvel noite de minha infncia, o rosto12

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que tanto me tinha impressionado e sobre cuja apario tinha refletido durante anos, me horrorizando em segredo. Era um rosto encantador, e sua expresso conservava a melanclica doura que tinha quando o vi pela primeira vez. De repente, iluminou-se com um sorriso, como se tambm a jovem acabasse de reconhecer a uma velha amiga. Produziu-se um silncio que durou uns instantes. Finalmente, a jovem falou: eu no podia faz-lo. Que estranho! exclamou. H alguns anos vi seu rosto em sonhos, e ento me obcecou de tal modo, que no pude esquec-lo. Sim, curioso falei, tratando de me sobrepor ao horror que me tinha impedido de pronunciar uma palavra at aquele momento. Tambm eu te vi h uns anos doze, exatamente, no sei se em um sonho ou na realidade. E tampouco pude esquecer seu rosto. Seu sorriso se fez mais doce e desapareceu o ar de curiosidade que tinha notado nos primeiros momentos na jovem. Senti-me mais confiante, e cumpri com meus deveres de anfitri, lhe dando as boas-vindas a nosso lar e lhe expressando a satisfao que a todos os da casa, e especialmente a mim, tinha-nos produzido sua imprevista chegada. Enquanto falava, agarrei-lhe a mo. Eu era algo tmida, feito muito compreensvel se se tiver em conta a solido em que vivia, mas aquela situao especial me fez eloqente, quase audaz. A jovem apertou sbitamente minha mo e a estreitou entre as suas, olhando-me com seus olhos brilhantes. Ruborizando-se, sorriu de novo e respondeu a minha saudao. Embora eu no me tivesse recuperado de todo minha primeira impresso, sentei a seu lado e a jovem me disse: Acima de tudo, necessrio que te conte como e onde te vi pela primeira vez. realmente extraordinrio que tenhamos sonhado mutuamente tal como somos agora, apesar de que o sonho teve lugar quando ramos crianas. Eu no tinha mais de seis anos. Despertei de repente de um sonho agitado e me pareceu me encontrar em uma sala muito diferente, uma casa cujas paredes estavam revestidas de madeira de cor escura e que aparecia cheia de camas, cadeiras e outros mveis. Lembrana que as camas estavam vazias e que no aposento no havia ningum mais que eu. Contemplei a sala13

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com grande curiosidade, admirando, entre outras coisas, um grande candelabro de ferro de dois braos que reconheceria entre mil se voltasse a v-lo. Logo subia a uma das camas para chegar at a janela, mas naquele mesmo instante ouvi um pranto procedente de uma das camas. Ento foi quando te vi. Foi tal como agora te vejo, uma moa muito bela, de cabelos dourados e enormes olhos azuis. Tambm seus lbios eram os mesmos. Seu modo de olhar me conquistou imediatamente. Saltei cama e a abracei; acredito que ficamos adormecidas durante um momento. Despertou um grito: tinha-a despertado e estava chorando. Assustei-me e ca ao cho, onde perdi a conscincia. Quando recuperei os sentidos me achava de novo em minha casa, em meu quarto. Nunca pude esquecer seu rosto. No possvel que tudo aquilo fosse um simples sonho. Realmente, a moa que vi voc. Contei-lhe ento minha viso, que suscitou em minha nova amiga uma admirao que no me pareceu simulada. No sei qual das duas se assustou mais disse, sorrindo Se no tivesse sido to encantadora, acredito que me teria assustado mais... No te parece que o melhor ser pensar que nos conhecemos h doze anos e que, portanto somos velhas amigas? Eu, pelo menos, acredito que desde nossa infncia estvamos predestinadas a s-lo. E por minha parte nunca tive uma verdadeira amiga. Encontrei-a agora? Suspirou e me olhou apaixonadamente com seus lindos olhos negros. Na realidade, aquela jovem me atraa de um modo inexplicvel, mas ao prprio tempo me .inspirava uma indefinvel repulso. Entretanto, face ao contraditrio de meus sentimentos, o que preponderava era a atrao. Aquela jovem desconhecida at certo ponto me interessava e me conquistava. Era to formosa e fascinante! Lembro que notei nela certo cansao e me apressei a lhe desejar as boa noite. Acrescentei: Ser melhor que esta noite durma uma criada com voc. Fora, no corredor, aguarda-me uma servial. muito sria e no te incomodar. . muito amvel respondeu a jovem mas se houver outra pessoa em meu quarto no posso dormir. No necessito ajuda e quero te confessar14

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uma pequena debilidade: tenho horror aos ladres. Em certa ocasio, minha casa foi roubada e assassinaram a duas criadas. Aps tenho o costume de fechar a porta com chave. Ter que me desculpar, mas no posso evit-lo. Durante um momento me reteve entre seus braos; logo me sussurrou ao ouvido: Boa noite, querida. Desagrada-me separar-me de ti, mas hora de descansar. At manh. No passaremos muitos momentos separadas. Deixou-se cair sobre o travesseiro, suspirando, enquanto seus belos olhos me contemplavam com expresso amorosa e melanclica. Suspirou de novo. Boa noite, amiga minha. Os jovens se apaixonam e afeioam ao primeiro impulso. Lisonjeava-me o evidente afeto que me demonstrava aquela jovem, embora me parecesse que eu no tinha feito nada para merec-lo. Eu adorei a confiana que me tinha demonstrado no primeiro momento. Parecia indubitvel que estvamos predestinadas a ser amigas ntimas. Chegou o dia seguinte, e voltamos a nos ver. Sua companhia me fazia feliz por muitas razes. luz de dia no tinha perdido seu encanto. Era, sem dvida, a mais formosa criatura, que jamais tinha visto, e a desagradvel lembrana que conservava de sua apario no curso de meu sonho infantil se permutou em uma prazenteira sensao. A jovem me confessou que tambm ela tinha tido um sobressalto ao me reconhecer, e o mesmo sentimento de repulso que se mesclava minha simpatia. As duas nos rimos de nosso assombro. Eu falei que havia nela muitas coisas que me fascinavam, mas tambm outras que me desagradavam. Comearei por descrev-la fisicamente: era de estatura mdia, magra, de forma muito harmoniosa. Alm de que, seus movimentos eram lnguidos verdadeiramente muito lnguidos-, nada em seu aspecto denotava que estivesse doente. Tinha uma tez rosada e luminosa, e suas faces eram15

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pequenas e corretas. Seus olhos eram negros e brilhantes, seus cabelos realmente esplndidos: no vi nunca uma cabeleira to longa e sedosa como a sua quando a soltava sobre seus ombros. Freqentemente inundava minha mo entre seus cabelos e ria ante o inslito de seu peso. Eram uns cabelos mrbidos e vivos, de cor castanha-escura com reflexos dourados. Eu gostava de senti-los em minha mo e logo solt-los enquanto minha amiga, sentada em uma poltrona, falava sem cessar. Eu gostava de retorc-los, entrela-los, brincar com eles. Cus!! Se soubesse de tudo! Assinalei que algumas de suas particularidades no me convenciam. Disse que a confiana que me tinha outorgado do primeiro momento me tinha conquistado. No obstante, tudo que fazia referncia a ela mesma, a sua me ou a qualquer aspecto de sua vida particular ou familiar, despertava na jovem uma estranha reticncia. Certamente, no era razovel de minha parte insistir nesses aspectos, e talvez no a agradasse. Minha obrigao era a de respeitar a solene ordem dada a meu pai pela senhora vestida de negro. Mas a curiosidade um sentimento que carece de escrpulos, e nenhuma moa suporta de bom grado ver-se desiludida ouvir o que lhe interessa: O que podia ter que mau no fato de minha amiga contar o que eu to ardentemente desejava saber? Acaso no tinha confiana em meu sentido da honra? Porqu no me acreditava quando lhe assegurava que jamais divulgaria uma s palavra do que me dissesse? Sua persistente negativa, acompanhada sempre de um sorriso, pareciame um atitude totalmente em desacordo com sua idade. No posso dizer que o fato fora motivo de discusses entre ns, porque era impossvel zangar-se com a jovem. Talvez o inconveniente, e inclusive descorts, fosse a minha insistncia, mas me sentia realmente apressada pela curiosidade. Suas explicaes no me esclareciam nada, ou pelo menos isso acreditava eu. Podem resumir-se entre vagas revelaes: A primeira era seu nome: Carmilla. A segunda, que os membros de sua famlia eram nobres ou intelectuais. A terceira, que sua casa estava situada ao ocidente da nossa.16

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No me disse seu sobrenome, nem seu ttulos nobiliquicos, nem o nome de suas propriedades, nem sequer a regio onde vivia. E no que eu a envenenasse continuamente com minhas perguntas: limitava-me, simplesmente, s intercalar sempre que a ocasio era propcia. Preferia as frmulas indiretas. uma ou duas vezes, em realidade, ataquei-a frontalmente. Mas, qualquer que fosse a ttica que empregava, o resultado era sempre o mesmo: um terminante fracasso. As recriminaes e as carcias no serviam de nada, embora deva confessar que ela sabia evitar as perguntas com muita destreza, e que parecia francamente desgostosa por no poder satisfazer minha curiosidade. Sempre que se expunha uma destas situaes, jogava os braos ao meu pescoo, estreitava-me contra seu peito e apoiava sua bochecha na minha, murmurando ao meu ouvido: Querida, sei que seu corao se sente ferido. No me julgue cruel: limito-me a obedecer uma lei que constitui minha fora e minha debilidade. Se seu corao est ferido, o meu sangra com o teu. Em mim h grande tristeza, vivo de sua exuberante vida, e voc morrer, morrer docemente pela minha. algo inevitvel. E assim como eu me aproximo de voc, voc, por sua vez, se aproximar de outros e aprender o xtase da crueldade, que uma forma do amor. No tente saber nada mais de mim nem de minha vida, mas tenha confiana com todo seu amor. E depois de ter falado com uma voz suave, estreitava-me entre seus braos, e seus lbios, me beijando meigamente, fazendo minha face arder. Aquela excitao e aquela linguagem me resultavam incompreensveis. Tentava evitar seus abraos, no muito freqentes, mas me faltavam energias. Suas palavras ressoavam em meus ouvidos como uma cano de bero e dominavam minha resistncia me inundando em uma espcie de torpor, do qual s despertava quando me liberava de seus braos. Aquelas incompreensveis expanses eu no gostava. Experimentava uma estranha e tumultuosa sensao que, embora em certo sentido me fosse agradvel, alagava-me ao mesmo tempo de temor e de repulso. Sempre que tinha lugar uma dessas cenas me sentia extremamente perturbada, e, ao tempo que17

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aumentava o prazer que me produzia, aumentava tambm minha repugnncia. Sei que o que acabo de explicar poder parecer paradoxal, mas no posso expressar de outra forma o que sentia. Transcorreram dez anos desde que tiveram lugar aqueles fatos, e a mo me treme ainda ao escrever a respeito da situao em que inconscientemente me vi envolta. s vezes, depois de um longo perodo de indiferena, minha estranha e muito bela amiga me agarrava sbitamente a mo, estreitando-a com paixo. Ruborizava-se e me olhava com olhos ora lnguidos, ora em fogo. Sua conduta era to semelhante a de um apaixonado, que me produzia um intenso desassossego. Desejava evit-la, e ao mesmo tempo me deixava dominar. Carmilla me agarrava entre seus braos, olhava-me intensamente nos olhos, seus lbios ardentes 'percorriam minhas faces com mil beijos e, com um sussurro apenas audvel, dizia-me: -Ser minha... deve ser minha... Voc e eu devemos ser uma s coisa, e para sempre. Depois voltava para trs, apoiando-se no respaldo da poltrona, cobrindo os olhos com as mos; e eu me sentia transtornada no mais profundo de meu ser. -O que quer dizer com suas palavras? tentava saber-. Recordo-lhe, por acaso alguma pessoa a que amou muito? Eu no gosto que me fale assim. Quando o faz no parece a mesma. E tampouco eu me reconheo quando me olha e me fala deste modo. No achava uma explicao satisfatria para aquelas efuses. Entretanto, no pareciam afetadas, nem falsas. Indubitavelmente, tratava-se de uma exploso espontnea de um instinto ou sentimento reprimido. Acaso Carmilla sofria alucinaes? Estaria louca, apesar do que afirmou sua me antes de partir? Ou se tratava, simplesmente, de uma argcia romntica? Em mais de uma ocasio tinha lido a histria de um jovem que se introduzia na casa de sua amada vestido de mulher e com a ajuda de uma18

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aventureira... Seria este o caso? A hiptese lisonjeava minha vaidade, mas no tinha a menor consistncia. Durante longos perodos de tempo, eu no representava absolutamente nada para Carmilla, a qual se limitava a me dirigir alguma olhar ardente, isso sim. E alm daqueles fugazes momentos de excitao, suas maneiras eram absolutamente femininas. Seus costumes, por outra parte, eram bastante estranhos. Geralmente, levantava-se muito tarde, nunca antes do meio-dia. Ento tomava unicamente uma taa de chocolate, muito quente. A seguir passevamos juntas um momento, muito curto, j que no demorava para sentir-se fatigada; retornvamos ao castelo ou nos sentvamos em um banco, debaixo das rvores. O mais curioso era que sua frouxido fsica no era nunca acompanhada de prostrao mental. Sua conversao era sempre faiscante e vivaz. De quando em quando fazia alguma vaga aluso a seu lar, a sua infncia ou a alguma lembrana de sua existncia, e atravs de suas palavras se adivinhava que seus hbitos e costumes eram muito dspares aos nossos. Dessas ocasionais aluses cheguei a coligir que seu pas natal estava muito mais longe do que tinha acreditado no princpio. Uma tarde em que nos achvamos sentadas sob as rvores, desfilou ante ns um cortejo fnebre. Tratava-se do enterro de uma moa muito bonita e a qual eu conhecia porque era filha do guarda florestal. O pobre homem partia atrs do fretro que continha os restos de sua querida e nica filha e parecia ter o corao destroado. Seguiam-lhe alguns aldees, cantando um hino funerrio. Quando o cortejo passou diante de ns, me pus em p em sinal de respeito, e uni minha voz s suas. Meu amiga me puxou rudamente o vestido e eu me voltei, surpreendida. Em tom irritado, disse-me: - No percebe o desafinado de suas vozes? - Pois me parece um canto muito doce respondi, irritada por aquela inoportuna intromisso, e porque temia que os acompanhantes do enterro observassem nossa discusso. O canto continuou.19

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-Destroam-me os tmpanos! exclamou Carmilla em tom raivoso, tampando os ouvidos com as mos-. Detesto os enterros e os funerais. Quantas coisas inteis! Porque voc tem que morrer, todos tm que morrer, e todos, depois da morte, so muito mais felizes. Retornemos paraa casa! _ Meu pai foi tambm ao cemitrio. Sabia? _ No, no me importa. Nem sequer sei quem o morto replicou enquanto seus olhos cintilavam. _Trata-se daquela moa que h uns quinze dias acreditou ter visto um fantasma. Depois foi piorando, e ontem pela manh faleceu. _ No me fale de fantasmas: esta noite no poderia dormir. _Espero que no haja uma epidemia por estes arredores. Existem alguns sintomas continuei. A mulher do pastor morreu h uma semana, e tambm disse que tinha notado uma estranha opresso no pescoo, como se algum tentasse afog-la. Meu pai diz que essas alucinaes so freqentes nos casos de febres epidmicas. A mulher se achava perfeitamente bem no dia anterior, mas depois daquela noite se debilitou inesperadamente e ao cabo de uma semana faleceu. _Bem, suponho que j tenham terminado os cantos fnebres. Nossos ouvidos j no se vero torturados. de novo. Todas estas coisas me pem nervosa. Sente-se a meu lado, mais perto. Segure minha mo. Aperte-a forte, mais forte... Tnhamo-nos retirado uns passos e Carmilla se sentou em um banco. Seu semblante se transformou de tal modo, que me assustei. Havia ficado plida. Seus dentes chiavam e apertava os lbios, sacudida por um contnuo calafrio. Todas suas energias pareciam empenhadas em lutar contra aquele ataque. Finalmente, proferiu um grito e tranqilizou-se paulatinamente, superada a crise de histeria. _Isto acontece quando se torturam as pessoas com hinos funerrios disse. No me solte, sinto-me j muito melhor. Talvez para desvanecer a profunda impresso que me tinha produzido o v-la sumida naquela crise, enquanto retornvamos para casa se mostrou muito animada e faladora.20

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Aquilo passou como uma nuvem do vero. Mas ainda tive ocasio de assistir a uma nova exploso de clera de Carmilla. Certo dia estvamos contemplando a paisagem de uma das grandes janelas do salo, quando vimos um vagabundo que cruzava a ponte levadia, encaminhando-se para o ptio do castelo. Conhecia-o perfeitamente. Cada seis meses vinha ao castelo. Era um aleijado, e seu rosto tinha a expresso mordaz que est acostumado a ver-se nos homens que so vtimas de uma deformidade fsica. Tinha uma barbicha escura e bicuda e ao sorrir abria a boca de orelha a orelha, mostrando uns dentes blanqusimos. Vestia com uma camisa de pele de bfalo, adornada com numerosas cintas e campainhas. De suas costas penduravam-se uma lanterna e duas caixas cujo contedo me era j conhecido: em uma delas guardava uma salamandra, e na outra uma mandrgora. Levava tambm um violino, uma caixa de amuletos contra o mal olhado e vrios estojos de contedo diverso. Apoiava-se em uma bengala de madeira negra, com uma ponteira de cobre. Ia acompanhado de um co esqueltico que lhe seguia fielmente a todas partes. Mas o animal parou no meio da ponte levadia, arrepiou o plo e prorrompeu em lgubres uivos, negando-se a avanar. Enquanto isso, o vagabundo tinha chegado ao centro do ptio e, tirando o grotesco chapu, inclinou-se em uma cmica reverncia. Logo empunhou o violino e comeou a tocar uma alegre melodia, acompanhando-a com um canto to desafinado e uns passos de dana to cmicos, que pus-me a rir apesar do muito que me tinham impressionado os sinistros uivos do co. Desejam as senhoritas comprar um amuleto contra o vampiro, que conforme ouvi dizer ronda por estes arredores como um lobo? disse o vagabundo, deixando cair o chapu ao cho. A gente morre em qualquer parte, mas eu tenho um talism que no falha; s ter que costur-lo ao travesseiro, e quando o vampiro se apresentar pode rir dele em suas prprias barbas. Os amuletos consistiam em umas cintas de papel transparente, com cifras e desenhos cabalsticos.21

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Improvisadamente, Carmilla comprou um talism e eu a imitei. O vagabundo nos observava e ns sorramos divertidas; ao menos eu. Mas, de repente, enquanto nos olhava, os olhos do vagabundo uns avermelhados olhos azuis pareceram descobrir algo que por um .instante atraiu sua ateno. Imediatamente tirou um estojo de couro repleto de toda classe de pequenos instrumentos de ao. Olhe, senhorita me disse, me mostrando o estojo alm de algumas atividades menos teis, pratico a de dentista. Quer te calar de uma vez, animalucho? Se no parar de uivar, a senhorita no ouvir o que lhe digo. Como ia dizendo, sou dentista, e sua amiga tem os dentes mais afiados que vi em minha vida; compridos, afiados, bicudos como uma lana, como um alfinete. Sim, vi-os perfeitamente: so uns dentes perigosos. Eu entendo destas coisas, e aqui estou com minha lima, minha puno e minhas pinas. Os deixarei arredondados e bonitos. Se a senhorita consentir em vez de dentes de peixe ter uma dentadura digna de sua beleza. Zangou-se a senhorita? Fui muito atrevido? Ofendi-a? Carmilla, com efeito, olhava-o com uma expresso de dio. Saiu da janela, me acusando: _E permite que esse enganador me insulte desse modo? Onde est seu pai? Quero lhe pedir que o escorrace do castelo. Seu pai devia ter ordenado que lhe espancassem, para queim-lo logo vivo. Entretanto, assim que no teve diante dos olhos o homem que a tinha insultado, sua clera desapareceu to rapidamente como tinha surgido; ao cabo de uns instantes tinha esquecido do aleijado e suas extravagantes palavras. Aquela mesma tarde, meu pai chegou muito excitado. Contou-nos que se apresentou outro caso parecido aos anteriores e dos quais j falei. A irm de um colono de nosso imvel, que vivia a uma milha de distncia de nosso castelo, tinha adoecido repentinamente. Dizia que tinha sido atacada por um ser monstruoso, e seu estado se agravava, lenta mas inexoravelmente.

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_Em rigor disse meu pai, tudo isto pode ser atribudo a causas naturais. Esses infelizes se sugestionam com narraes inverossmeis, e deste modo provocam suas alucinaes. No deixa de ser uma coisa terrvel observo Carmilla. Certamente assentiu meu pai. Assusta-me pensar que posso ser vtima de uma alucinao semelhante. Embora s fora uma alucinao, deve ser to horrvel como se se tratasse de um fato real. Estamos nas mos de Deus afirmou meu pai. Nada pode ocorrer sem seu consentimento, e tudo terminar bem para aqueles que lhe amam. nosso Criador. Ele cuidar de ns. _Eu acredito replicou Carmilla que todas as coisas acontecem por imperativo da natureza. E que a enfermidade que se propaga pela comarca tambm coisa da natureza. No lhe parece? Hoje vir o mdico disse meu pai, evitando responder pergunta da moa. Eu gostarei de saber a opinio do doutor sobre este fenmeno, e o que nos aconselha. Os mdicos nunca me serviram para nada replicou Carmilla. Esteve doente? perguntei-lhe. -Mais doente do que voc tenha estado jamais. Faz muito tempo? _ Sim, muito: j esqueci tudo, exceto a dor e a debilidade. Ento, seria muito jovem... _ Acredito que sim. Mas, no falemos mais disto. No queira fazer sofrer sua amiga. Olhou-me languidamente nos olhos e, me segurando pela cintura, tiroume da sala. Por que se diverte tanto seu pai me assustando? perguntou-me, quando samos, tremendo ligeiramente. _ No pense isso, querida, no essa sua inteno. E voc, est assustada?23

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Estaria se pensasse que tambm ns corremos o mesmo perigo que essa pobre gente. _ Assusta-a a idia da morte? _Certamente, a todo mundo assusta essa idia. _Creia por exemplo, que espantoso morrer enquanto se ama? Dois amantes que morrem juntos... e .deste modo podem viver juntos para sempre... As moas no so mais que larvas e s se transformam em mariposas quando chega o vero. Enquanto isso, so larvas e larvas, cada uma com suas formas e inclinaes particulares. H um certo senhor Buffon que assim o conta. De noite veio o mdico e se fechou com meu pai em seu escritrio, onde permaneceram durante comprido momento. Era um mdico com muita experincia, de uns sessenta anos. Seu rosto barbeado aparecia to liso como a superfcie de uma cabaa. Quando saam do despacho, ouvi que meu pai dizia, rindo: - Admira-me ouvir essas palavras na boca de um homem to sensato como voc. O que opina, ento, dois hipogrifos e dois drages? Tambm o mdico ria, sacudindo a cabea. Em todo caso, a vida e a morte foram sempre um mistrio e sabemos muito pouco a respeito do que pode acontecer. Afastaram-se conversando e j no pude ouvir nada mais. Naquele momento ignorava quais tinham sido as hiptese aventuradas pelo doutor, mas agora acho que posso adivinhar. Uma tarde chegou de Grantz o filho do restaurador de quadros, transportando em seu carro duas grandes caixas cheias de quadros. Sua chegada constituiu um verdadeiro acontecimento. As caixas ficaram no trio; os criados se encarregaram do jovem e o acompanharam cozinha para que lhe dessem de jantar. Logo se uniu a ns no trio grande onde nos tnhamos reunido previamente para abrir as caixas.24

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Carmilla estava sentada e olhava distradamente os velhos quadros, quase todos retratos, que tinham sido enviados a restaurar. Minha me pertencia a uma antiga famlia hngara, e a maior parte dos quadros procediam de minha famlia materna. Meu pai lia em uma lista os ttulos dos quadros, e o arteso ia tirando-os das caixas. Ignoro o valor que podiam ter, embora fossem antigos e alguns muito curiosos. Eu os via pela primeira vez em minha vida, j que a umidade e o p tinham oculto os tecidos durante muito tempo. _No tinha visto este quadro comentou meu pai, apontando o tecido que o restaurador tinha na mo-. Aqui, em um ngulo, figura o nome, que pude decifrar antes de envi-lo ao restaurador: Marcia Karstein. Leva a data de 1768. Ser interessante ver o que surgiu agora... Lembrei-me daquele quadro. Tratava-se de um pequeno tecido, sem marco, de forma quadrangular e to enegrecida pelo passado do tempo que jamais pudemos contemplar a aquela Marcia Karstein, se que se tratava de seu retrato. O restaurador exibiu o tecido com evidente orgulho. Era uma jovem de rosto muito formoso, e fiquei assombrada pela viveza de sua expresso. Mas o que mais me assombrou foi sua extraordinria semelhana com Carmilla. _Notou, querida? perguntei-lhe-. Isto um verdadeiro milagre. voc mesma, viva e sorrindo. S lhe falta falar. No lhe parece extraordinrio? Olhe, papai! Tem tambm um pequeno lunar na garganta.... Meu pai esboou um sorriso e disse: _Realmente, de uma semelhana extraordinria. Mas, ante minha surpresa, no emprestou maior ateno ao feito e continuou sua tarefa com o restaurador. Por minha parte, sentia aumentar minha admirao medida que contemplava o retrato. _Permite-me que o pendure em meu quarto, papai? pedi a meu pai. _Certamente, querida disse-. Alegra-me que voc goste. Deve ser mais formoso do que eu acreditava, se que se parece tanto com sua amiga.

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Carmilla no pareceu ter ouvido nada. Estava empoleirada em uma poltrona e me contemplava fixamente com seus formosos olhos, com a boca ligeiramente entreabierta e sorrindo como em xtase. _Agora sim que pode ler-se bem o nome disse-. No Marcia. Parece escrito com letras de ouro. O nome Mircalla, condessa de Karstein. Em cima do nome h uma pequena coroa, e debaixo uma inscrio: Anno Domini 1698. Eu descendo dos Karstein. _Ah! exclamou languidamente Carmilla-. Tambm eu acredito que sou uma descendente longnqua dessa famlia. Vivem ainda alguns de seus membros? No acredito que exista ningum que leve o sobrenome. A famlia ficou extinta como resultado da guerra civil, h muitssimo tempo. As runas do castelo se encontram a apenas algumas lguas daqui. Muito interessante murmurou distradamente Carmilla. Mas, olhe que formoso luar temos hoje. Olhou atravs da entreabrida porta. E se fssemos dar um. passeio? Esta noite me recorda a de sua chegada disse. Carmilla suspirou, esboando um sorriso. Ficou em p e samos ao ptio enlaadas pela cintura. Andamos lentamente e em silencio at a ponte levadia. Ante nossos olhos se estendia uma linda plancie, banhada pela luz da lua. .Ento recorda ainda o dia de minha chegada? sussurrou-me Carmilla ao ouvido. Est feliz por me ter aqui? Sou muito feliz, querida Carmilla respondi. E pediu que lhe deixassem pendurar aquele quadro em seu quarto murmurou ela com um suspiro. Logo me apertou mais estreitamente com o brao que rodeava meu talhe e apoiou sua cabea em meu ombro. Que romntica , Carmilla! exclamei. Quando me contar a histria de sua vida, estou segura de que ser como se me lesse um romance de amor. Beijou-me silenciosamente.26

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Estou convencida, Carmilla, de que voc estava apaixonada prossegui. E me atreveria a afirmar que continua preocupada com algum assunto amoroso. _Nunca me apaixonei, e nunca me apaixonarei -afirmou Carmilla. A no ser que me apaixone por voc... luz da lua, aparecia mais linda do que nunca Depois de me dirigir um estranho e tmido olhar, ocultou o rosto em meu pescoo, entre meus cabelos, respirando agitadamente;. parecia a ponto de estalar em soluos e me apertava a mo, tremendo. Sua mrbida face queimava contra a minha. Murmurou: Querida! Eu vivo em voc, e voc morrer em mim Te quero tanto!. Separei-me dela. Carmilla me olhava agora com uns olhos dos quais tinham desaparecido o fogo e a vida. E como se sasse de um sonho, acrescentou: Retornemos. Vamos para casa. Parece-me que est doente, Carmilla; deveria tomar um clice de vinho lhe disse. Sim, acredito que sim. Agora me encontro muito melhor e dentro de uns minutos estarei completamente bem. Sim, tomarei um copo de vinho. E, aproximando-se da porta, acrescentou: me deixe olhar um instante; possivelmente seja a ltima vez que vejo a lua com voc. Tem certeza de que se sente melhor, Carmilla? perguntei. Por um instante, temi que estivesse contagiada daquela estranha epidemia que aoitava a comarca. Papai ficarai muito penalizado se soubesse que voc est doente e no conta. Nosso mdico um homem muito inteligente. Todos so excessivamente bons comigo. Mas o que eu tenho no coisa de mdicos. No estou doente a no ser somente um pouco fraca. O menor esforo me deixa esgotada Mas me recupero muito facilmente. V? J estou bem27

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Assim o parecia. Seguimos conversando durante um momento e Carmilla se mostrou muito animada. O resto daquela tarde transcorreu sem que se produzisse nenhuma recada no que eu chamava sua exaltao. Os ardentes olhares da Carmilla, seu modo absurdo de expressar-se, assustavam-me s vezes, confesso-o. Mas aquela noite ocorreu algo que devia provocar uma mudana radical no curso de meus pensamentos. Acompanhei Carmilla a seu quarto, como de costume, e fiquei conversando com ela enquanto se preparava para deitar-se. Acredito que chegar um dia disse em que ter uma absoluta confiana em mim. voltou-se, sorridente, mas no respondeu. No responda lhe disse, porque no pode me dar uma resposta satisfatria, no mesmo? No deveria haver lhe sugerido isso... Tem perfeito direito em faz-lo replicou Carmilla. Gosto muito de voc, e te considero merecedora de receber todas minhas confidncias, pode acredit-lo. Mas estou atada a uma promessa, mais atada que uma religiosa a seus votos, e no posso falar de mim, nem sequer contigo. Mas se aproxima o momento em que saber tudo. Julgar-me cruel e egosta, muito egosta, mas lembre que o amor sempre assim. Quanto mais imensa a paixo, mais egosta resulta. No pode imaginar quo ciumenta estou de voc. Voc tem que vir comigo; tem que me querer at a morte. Ou pode me odiar, d no mesmo. Mas venha comigo e me odeie atravs da morte e do mais frente. Em meu vocabulrio no existe a palavra indiferena. _ J est outra vez dizendo coisas que no tm sentido objetei. Sou extravagante, tola e caprichosa. Mas se tranqilize: de agora em diante falarei sensatamente. Danou alguma vez? No. Deve ser encantador, no ? Quase esqueci. Faz tantos anos... Pus-se a rir. _No to velha assim ... No pode ter esquecido ainda seu primeiro baile.28

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S fazendo um grande esforo posso record-lo. Vejo tudo atravs de algo que se .interpe entre a lembrana e eu, como uma cortina e, ao mesmo tempo, transparente. Aquela noite estava como morta em minha cama. Feriram-me aqui tocou o peito e nunca tornei a ser a mesma. Voc esteve a ponto de morrer? Sim. Um amor cruel, um amor caprichoso tinha invadido minha vida. O amor exige sacrifcios. E nos sacrifcios corre o sangue. Agora deixe que me abandone ao sono. Estou muito cansada. Como poderei me levantar fechar a porta com chave? Dei-lhe boa noite e sa do aposento com uma sensao de inquietao. Os delrios das pessoas nervosas so contagiosos, e quase sempre acabam por ser imitadas pelos que tm um temperamento afim. Tambm eu tinha adotado os costumes da Carmilla; fechava com chave a porta de meu quarto, sugestionada por seu fantstico medo a uns hipotticos agressores noturnos, assassinos ou ladres. Tambm, como Carmilla, inspecionava minuciosamente meu quarto cada noite, antes de me deitar, para me assegurar de que no havia ningum escondido nele. Depois de tomar todas aquelas prudentes medidas, deitei-me e adormeci quase imediatamente. Tinha uma luz acesa em meu quarto. Era um antigo costume, de cuja inutilidade ningum tinha podido me convencer. S assim podia descansar tranqila. Mas os sonhos atravessam os muros de pedra, .iluminam as habitaes vazias e obscurecem as iluminadas, e os personagens que intervm no sonho entram e saem a prazer, burlando-se dos ferrolhos. Aquela noite tive uma sonho que foi o comeo de uma estranha angstia. No poderia cham-lo uma obsesso, porque tinha a certeza de que estava adormecida, de que me achava em meu quarto e jazia em minha cama. Vi, ou acreditei ver, o quarto com seus mveis de sempre, mas mais s escuras; aos ps de minha cama se movia algo escorregadio, que no pude distinguir claramente. De repente, dava-me conta de que se tratava de um animal grande e negro, como fuligem. Parecia um monstruoso gato. Teria aproximadamente um metro e meio de altura, e o deduzi porque quando passeava ao pe da cama ocupava toda sua largura. Passava como uma fera29

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enjaulada. Senti-me to aterrorizada, que no tinha foras nem para gritar. Os passos do animal eram cada vez mais rpidos, e o ambiente se obscurecia por momentos. Notei que algo se encarapitava na minha cama. Uns olhos enormes se aproximaram dos meus e de repente senti uma penetrante dor no peito, como se me tivessem penetrado dois alfinetes. Despertei com um grito. O local estava iluminado pela luz que deixava acesa cada noite, e aos ps de minha cama havia uma figura, feminina vestida de negro e com a cabeleira caida em cascata sobre os ombros. Estava imvel como uma esttua. No se ouvia nenhum rumor, nem sequer o de sua respirao. Olhei-a e a figura pareceu mover-se; deslizou at a porta, que estava aberta, e desapareceu. Imediatamente, senti-me como liberada de um grande peso e pude me mover e respirar Meu primeiro pensamento foi que Carmilla tinha querido me gastar uma brincadeira e que eu me tinha esquecido de fechar a porta. Mas me levantei e a encontrei fechada por dentro como sempre. A idia de abri-la me aterrorizava. Voltei a me deitar e escondi a cabea debaixo dos lenis, mais morta que viva. No dia seguinte no quis ficar s nem um momento. Devia ter contado tudo a meu pai, mas no o fiz por dois motivos opostos. Primeiro, porque temi que se risse de minha histria e me magoavam suas brincadeiras; e, segundo, porque temi que acreditasse que tambm eu era vtima daquela misteriosa enfermidade que se propagava pela comarca. Meu pai tinha o corao dbil e no queria assust-lo. Mas contei tudo senhora Perrodon e senhorita Lafontaine. As duas se deram conta de que eu me achava em um estado de anormal excitao. A senhorita Lafontaine ps-se a rir, mas vi que a senhora Perrodon me olhava preocupada. A propsito disse a senhorita Lafontaine, rindo-no caminho dos tilos, detrs do quarto da senhorita Carmilla, h fantasmas. _Tolices! exclamou a senhora Perrodon, a qual deveria achar inoportuna aquela associao de idias. Quem lhe contou essa histria, querida?30

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Martin diz que foi duas vezes a reparar a velha balaustrada antes do amanhecer, e sempre viu a mesma figura de mulher andando pelo caminho dos tilos. No diga nada a Carmilla supliquei. Sua janela d ao caminho, e mais impressionvel ainda que eu. Aquele dia Carmilla se levantou mais tarde que de costume. ' Esta noite me assustei muito disse. Estou certa de ter visto algo horrvel. Menos mal que tinha o amuleto que comprei ao pobre aleijado. E pensar que o tratei to mal! Sonhei que uma coisa negra se aproximava de minha cama, e despertei aterrorizada. Durante uns segundos, vi realmente uma figura negra ao lado da chamin, mas achei o amuleto que guardo debaixo do travesseiro e a figura desapareceu. Estou convencida de que, se tivesse se aproximado mais, teria terminado degolada como aquelas pobres mulheres... Bem, escute o que vou contar ... Contei-lhe minha aventura noturna. Pareceu assustar-se. E tinha o amuleto com voc? perguntou-me. No. Meti-o em um vaso de porcelana do salo, mas esta noite o levarei junto, j que voc acredita tanto em sua eficcia. Depois de tanto tempo, no acerto a compreender como pude dominar meu terror e dormir sozinha em meu quarto aquela noite. Lembro perfeitamente que pus o amuleto debaixo de meu travesseiro e que quase imediatamente adormeci com um sono muito mais profundo que na noite anterior. Tambm a noite seguinte foi tranqila. Dormi profundamente e sem sonhos, mas despertei cansada e melanclica; embora no possa dizer que fosse uma sensao desagradvel. Tambm eu passei uma noite magnfica me disse Carmilla pela manh. costurei o amuleto na minha camisola. A noite anterior o tinha31

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muito longe. Estou segura de que tudo pura imaginao. Acreditava que os sonhos eram engendrados em ns pelo esprito do mal mas o mdico me disse que no certo. Trata-se de uma febre ou uma enfermidade que bate na porta, e deixa aquele sinal de alarme. E por que cr na eficcia do amuleto? Suponho que est empapado em alguma droga que serve de antdoto contra a malria. Mas, atua somente sobre o corpo? Certamente. Acredita que os espritos malficos se assustariam de umas cintas coloridas ou de um pouco de perfume barato? No, claro que no. Esses males flutuam no ar, atacam primeiro aos nervos e logo infectam o crebro, mas antes que possam .instalar-se definitivamente o antdoto entra em ao e os destri. Estou convencida de que esse foi o efeito do amuleto. No se trata de magia, mas sim de um remdio natural. Durante algumas noites mais dormi perfeitamente. Mas cada manh sentia o mesmo cansao, e todo o dia estava dominada pela mesma sensao de frouxido. Parecia-me ter mudado. Uma estranha melancolia se apoderava de mim. A idia da morte abria caminho em minha mente O estado em que me achava sumida era triste, mas tambm doce. E de todos os modos, fosse o que fosse, minha alma o aceitava. No queria admitir que estava doente, nem dizer a meu pai; nem chamar o mdico. Durante aqueles dias, Carmilla me prodigalizou seus cuidados muito mais que antes e seus momentos de exaltao foram tambm mais freqentes. Sem me dar conta a enfermidade se alastrou em mim, a enfermidade mais estranha que jamais tinha afetado um ser mortal. Acostumava-me cada vez mais sensao de impotncia que invadia todo meu ser. A primeira transformao que descobri em mim era quase prazenteira, um pouco parecido curva que inicia a descida ao inferno. Enquanto dormia experimentava uma vaga e curiosa sensao. Geralmente era um sbito tremor, agradvel, gelado, como o que se experimenta quando se banha em um rio e nada contra a corrente. Uma srie de sonhos que pareciam32

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interminveis seguiam ao tremor, mas eram sonhos to confusos que nunca conseguia recordar, depois, nem o cenrio, nem os personagens, nem seus atos. Deixavam-me uma sensao de terror e de cansao, como se acabasse de realizar um grande esforo mental ou de correr um grave perigo. As nicas lembranas que ficavam de todos esses sonhos eram a sensao de ter permanecido em um lugar tenebroso, de ter conversado com gente que no podia ver e o eco de uma voz feminina to profunda que parecia me falar desde muito longe: uma voz que me intimidava e me subjugava sempre. s vezes sentia o roar de uma mo que me acariciava as faces; outras, a presso de uns lbios ardentes que me beijavam, mais apaixonadamente medida que os beijos desciam para minha garganta. Ali sentia o ltimo beijo. Meu corao pulsava mais de pressa, minha respirao se fazia mais entrecortada. Logo experimentava uma sensao de sufoco e, em meio de uma terrvel convulso, perdia a consciencia. Estes terrveis feitos me aconteciam agora trs vezes por semana e deixavam em mim um profundo rastro. Estava plida, o crculo arroxeado que rodeava meus olhos era cada vez mais visvel e minha frouxido aumentava dia a dia. Meu pai me perguntava freqentemente se me encontrava mal, mas com uma obstinao que agora me parece inexplicvel, assegurava-lhe uma e outra vez que estava perfeitamente bem. Em certo sentido, era verdade. No sentia dor algum nem podia me queixar de nenhum mal-estar fsico. Minha doena me parecia imaginria e, por penosos que fossem meus sofrimentos, cultivava-os amorosamente e em segredo. Carmilla se queixava de sonhos e de sensaes febris parecidas com as minhas, embora menos alarmantes. Se tivesse sido capaz de compreender minha situao, teria pedido ajuda e conselho de joelhos. Mas o narctico de uma influncia insuspeitada obrava em mim e meus sentidos estavam embotados. Falarei agora de um sonho que conduziu a uma estranha descoberta.33

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Uma noite, em vez da solitria voz que ouvia no vazio, ouvi outra voz mais doce e mais terna, e ao mesmo tempo mais terrvel, que dizia: Sua me te adverte que tome cuidado com o assassino. No mesmo instante apareceu inesperadamente uma luz e vi Carmilla de p perto de minha cama, embutida em sua branca camisola completamente manchada .de sangue. Despertei sobressaltada, convencida de que Carmilla tinha sido assassinada. Saltei da cama pedindo socorro. A senhora Perrodon e a senhorita Lafontaine saram de seus quartos, alarmadsimas e acenderam um abajur do patamar da escada. Contou-lhes o que me tinha acontecido e insisti em ver Carmilla. Fomos ao seu quarto e a chamamos atravs da porta. No respondeu, apesar de nossos gritos, e o fato alarmou a todas, j que a porta estava fechada por dentro. Retornamos ao meu quarto e agitamos furiosamente a campainha que havia cabeceira de minha cama. Se meu pai tivesse dormido em nosso andar lhe teramos chamado imediatamente, mas dormia no andar de baixo, fora do alcance de nossas vozes, e para chegar at seu quarto era necessrio organizar uma expedio para a qual nenhuma de ns se sentia com foras. Os criados chegaram correndo. Enquanto isso, tnhamo-nos posto uma bata e calado umas sapatilhas. Voltamos para a habitao da Carmilla, e, depois de cham-la de novo repetidas vezes, ordenei a quo criados forassem a porta. Uma vez aberta, penetramos no dormitrio: tudo estava em ordem, tal como o tinha visto o dar as boa noite a Carmilla. Mas minha amiga tinha desaparecido. Ao ver que o nico sinal de desordem no qaurto era a produzida por nossa irrupo, tranqilizamo-nos um pouco e no demoramos para recuperar o bom senso e em se despedir dos criados. A senhorita Lafontaine aventurou a opinio de que Carmilla, despertada repentinamente ao sentir que foravam a porta, assustou-se e se escondeu debaixo da cama ou dentro do armrio: era natural que no sasse enquanto o mordomo e os criados se achassem no aposento. Chamamo-la de novo, mas no respondeu. Isso aumentou nossa perplexidade. Examinamos as janelas, mas estavam fechadas. Supliquei a Carmilla, se estava escondida, que no prolongasse por mais tempo aquela brincadeira e acabasse com nossa ansiedade, saindo de seu34

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esconderijo. Mas tudo foi em vo. Era evidente que no estava no dormitrio, nem no quarto de vestir. Eu estava intrigadsima. Talvez Carmilla tinha descoberto uma passagem secreta... O velho guarda dizia que existia uma no castelo, mas ningum recordava onde, exatamente. O mistrio se esclareceria, indubitavelmente, mas de momento estvamos perplexas. Eram quatro da madrugada e preferi passar o resto da noite no quarto da senhora Perrodon. Mas a luz do dia no trouxe a soluo ao enigma: Carmilla tinha desaparecido. Meu pai estava desesperado, pensando no que ia ocorrer quando retornasse a me da moa... Eu tambm estava se desesperada, mas meu desespero tinha outras causas. Transcorreu a manh em meio da maior alarma e agitao. Falou-se inclusive de rastrear o rio. Chegou o meio-dia e a situao no tinha mudado. Por volta da uma da tarde me ocorreu dar outra olhada ao quarto de Carmilla. Cheguei ali e meu assombro no teve limites: Carmilla estava em seu quarto, olhando-se ao espelho! No podia acreditar no que estavam vendo meus olhos. Ela me chamou com um gesto. Em seu rosto se lia o medo. Corri para ela, abracei-a e beijei repetidas vezes, e logo me precipitei para a campainha e a agitei desesperadamente para que acudissem todos e se tranqilizassem. Querido Carmilla! exclamei. O que lhe aconteceu? Onde esteve? Foi uma noite prodigiosa me respondeu. Depois de fechar a porta do dormitrio, como de costume, deitei-me. Dormi sem interrupo e sem sonhos, mas ao despertar encontrei sobre o div do penteadeira, com sua porta aberta e a do quarto forada. Como que no despertei? Tem que haver-se produzido um grande alvoroo, e eu tenho o sono muito leve... Como pode ser que me tenha encontrado fora de minha cama sem me haver informado de nada? Enquanto isso, tinham chegado meu pai, a senhora Perrodon, a senhorita Lafontaine e vrios criados. Naturalmente, Carmilla foi assediada com perguntas, mas sua resposta foi sempre a mesma. Meu pai dava voltas35

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pelo quarto, sumido, ao parecer, em fundas reflexes. Vi que Carmilla o seguia com o olhar, e em seus olhos havia uma expresso preocupada. Finalmente, meu pai se despediu dos criados, aproximou-se dela e, segurando-a delicadamente pela mo, conduziu-a at o div, onde se sentaram. Permite-me que lhe faa uma pergunta, querida? inquiriu meu pai. Certamente. O senhor tem direito a perguntar o que quiser, sempre que no transpasse os limites impostos por minha me. Bem, querida, no falaremos do que sua me me proibiu, mas sim do ocorrido esta noite. Voc levantou-se da cama e saiu do quarto, sem despertar. E tudo isto com portas e janelas fechadas por dentro. Tenho uma teoria, mas antes quero lhe fazer uma pergunta. Todos contnhamos a respirao. Voc sonmbula? No, agora no. Mas fui em minha infncia. Sim... E, naquela poca, levantava-se com freqncia da cama em sonhos? Sim. Pelo menos, assim me dizia isso minha bab. Meu pai sorriu, assentindo. O ocorrido tem uma fcil explicao. Carmilla sonmbula; abre a porta e no deixa, como de costume, a chave na fechadura, mas sim, sempre em sonhos, fecha pela parte de fora e leva a chave. Depois percorre os vinte e cinco aposentos deste andar, e possivelmente tambm as dos outros andares. Esta casa est cheia de esconderijos, de desvos e de trastes velhos. Deemoraria uma semana em explor-la a fundo. Entende o que quero dizer? Sim, mas no de todo respondeu Carmilla. E como explica, papai, que ela tenha despertado no quarto de vestir, que eu tinha examinado minuciosamente? Carmilla retornou quando vocs haviam j saido. Retornou adormecida, naturalmente, e ao despertar assombrou-se de encontrar-se ali. Oxal todos os mistrios tivessem uma explicao to singela como este, Carmilla acrescentou meu pai, satisfeito.36

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Naquele momento, Carmilla estava mais bonita que nunca. Acredito que foi ento que meu pai comparou seu aspecto com o meu, porque sbitamente disse: Voc tem uma aparncia ruim, Laura. Como Carmilla no queria que nenhuma criada passasse a noite em seu quarto, meu pai ordenou que um dos criados dormisse diante da porta de seu dormitrio, a fim de que a moa no pudesse sair sem ser vista por ningum. Aquela noite transcorreu tranqila, e manh seguinte, o mdico, que meu pai tinha enviado a procurar sem eu sab-lo, veio me visitar. A senhora Perrodon me acompanhou biblioteca, onde me aguardava o doutor. Expliquei-lhe o que me acontecia de uns tempos para c, e enquanto avanava em meu relato notei que seu aspecto se fazia mais pensativo. Achvamo-nos ante uma janela, um ao lado do outro. Quando terminei de falar, ele se apoiou na parede e me olhou com um interesse que deixava trasluzir certo horror. Depois de meditar uns instantes, mandou chamar meu pai. Este chegou sorrindo, mas seu sorriso desapareceu ao ver a expresso preocupada do mdico. Imediatamente se meteram em uma conversao que sustentaram em voz baixa, como se temendo que a senhora Perrodon ou eu, que nos mantnhamos afastadas, pudssemos ouvir o que falavam. De repente, meu pai voltou os olhos para mim. Estava plido e parecia intensamente preocupado. Laura, querida, se aproxime. Obedeci, me sentindo alarmada pela primeira vez, j que apesar de minha crescente debilidade no acreditava estar doente. Voc me disse antes que teve a sensao que lhe cravavam dois alfinetes no pescoo, na noite em que sofreu aquele pesadelo me disse o mdico . Di-lhe ainda no lugar onde sentiu as espetadas? No, absolutamente respondi. Pode me apontar com o dedo o local exato? Debaixo da garganta, aqui respondi.37

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Usava um vestido de pescoo alto, que cobria a parte marcada. Quer pedir a seu pai, por favor, que lhe desabotoe a gola? necessrio que conhea todos os sintomas. Obedeci: o ponto famoso estava umas duas polegadas mais abaixo do pescoo. Meu Deus! exclamou meu pai, empalidecendo. Voc percebe? inquiriu o mdico, com expresso de triunfo. O que acontece? perguntei, alarmada. Nada, senhorita, no h mais alm de uma pequena marca azulada, to diminuta como uma cabea de alfinete disse o mdico. E, voltando-se para mim pai, acrescentou: Veremos o que se pode fazer. perigoso? insisti, angustiada. No acredito respondeu o mdico. Estou convencido de que melhorar rapidamente. _Queria falar com a senhora Perrodon acrescentou, dirigindo-se a meu pai. Meu pai chamou a senhora Perrodon. A senhorita Laura no se encontra to bem como seria de desejar disse-lhe o mdico.No acredito que seja nada demais. Entretanto, ter que adotar certas precaues, em benefcio dela. indispensvel que no a deixe sozinha nem um s instante. Por ora, o nico remdio que posso prescrever, mas desejo que cumpra minhas instrues ao p da letra. Entendido? Meu pai saiu para acompanhar o mdico. Vi-os cruzar a ponte levadia, absortos em uma animada discusso. Logo vi como o mdico montava a cavalo, saudava meu pai e se afastava para o oriente. Quase ao mesmo tempo chegou o correio do Dranfeld, com um pacote de correspondncia para meu pai. Meia hora depois, meu pai se reuniu comigo: tinha uma carta na mo.38

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do general Spieldorf disse. Chegar amanh, ou possivelmente hoje mesmo. Entregou-me a carta aberta, mas no parecia satisfeito como de costume quando um hspede, especialmente um bom amigo como o general, vinha visitar-nos. Parecia estar me ocultando algo. Querido papai, me quer explicar isso tudo? disse-lhe, segurando-o no brao e lhe olhando com expresso suplicante. O que lhe disse o mdico? Encontrou-me muito doente? No, querida. Diz que sarar logo. Mas seu tom era seco. De qualquer jeito, preferiria que nosso amigo o general tivesse escolhido outro momento para sua visita. Mas... me diga, papai, que enfermidade eu tenho? Nenhuma. No me atormente com suas perguntas respondeu. Nunca tinha dado amostras de tanta irritao ao falar comigo. Depois se deu conta de que me tinha magoado, e acrescentou: Saber tudo dentro de alguns dias, quer dizer, saber o que sei eu. Enquanto isso, no me faa perguntas. Deu meia volta, disposto a partir, mas ento, antes que eu tivesse tempo de parar para pensar em quo estranho era tudo o que estava acontecendo, voltou sobre seus passos para me dizer que queria ir ao Karstein e que tinha feito preparar a carruagem para as doze. A senhora Perrodon e eu o acompanharamos. Queria visitar o sacerdote que vivia naquele lugar, e, dado que Carmilla no o conhecia, podia reunir-se conosco mais tarde, quando se levantasse. Podia vir em companhia da senhorita Lafontaine, a qual levaria tambm o necessrio para um almoo nas runas do castelo. s doze em ponto nos pusemos em marcha. Passando a ponte levadia viramos direita e tomamos o caminho que conduzia ao povoado desabitado e s runas do castelo de Karstein. Devido ao acidentado do terreno, a estrada d muitas voltas e serpenteia ora junto a um precipcio, ora pela ladeira de uma colina, em uma inesgotvel variedade de paisagens. Em uma das inumerveis voltas do caminho, nos encontramos inesperadamente em39

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presena de nosso amigo o general, que avanava a cavalo para ns, seguido de seu criado, tambm a cavalo. Depois das cordiais efuses de boas-vindas, passou a ocupar o lugar que ficava livre em nossa carruagem e enviou o cavalo ao castelo com seu criado. Tinham transcorrido somente dez meses da ltima vez que lhe tnhamos visto, mas seu aspecto tinha mudado como se tivessem passado dez anos. Uma expresso angustiada tinha substitudo a sua habitual de tranqila serenidade. No era s a transformao que cabe esperar em uma pessoa que sofreu uma grande dor: uma espcie de furor apaixonado parecia ter contribudo a lhe levar a atual situao. Apenas reemprendemos a marcha, o general comeou a nos contar o engano segundo sua prpria expresso que tinha conduzido morte a sua jovem sobrinha. De repente se deixou arrastar por uma onda de furor e de amargura, proferindo invectivas contra as artes diablicas de que tinha sido vtima. Meu pai, compreendendo que deviam existir motivos extraordinrios para que o equnime general se expressasse naqueles termos, pediu-lhe que nos contasse, se no lhe fosse muito penoso, que feitos justificavam to violentas expresses. _Com muito gosto replicou o general. Mas no vo acreditar. E por que no? inquiriu meu pai. Porque voc, meu amigo, s acredita no que responde a seus juzos e s suas iluses. Tambm eu era como voc. Mas agora aprendi algo mais. Me ponha prova -insistiu meu pai. Sou menos dogmtico do que voc acredita. Alm disso, consta-me que voc apia sempre suas opinies em provas, e portanto estou disposto a respeitar suas concluses. Tem voc razo: se tiver chegado a acreditar na existncia de feitos prodigiosos, no foi toa. E posso lhe assegurar que fui vtima de uma verdadeira conspirao sobrenatural. Vi que meu pai, apesar de sua promessa, olhava o general com olhos que refletiam evidentes duvidas a respeito da sanidade mental de seu velho amigo. Felizmente, o general no se deu conta. Olhou com olhos impregnados de tristeza a paisagem selvagem que se estendia ante ns.40

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Vo vocs s runas de Karstein? perguntou. Curiosa coincidncia... Precisamente queria lhes pedir que me acompanhassem ali. Quero examin-las atentamente. certo que h uma capela em runas com numerosas tumbas daquela extinta famlia? Sim, e so muito interessantes respondeu meu pai. Se prope voc, possivelmente, reivindicar sua propriedade? Meu pai fez aquela pergunta em tom de brincadeira, mas o general respondeu completamente a srio. De modo algum exclamou secamente. Tenho a inteno de exumar alguns exemplares daquela formosa raa. Espero, com a ajuda de Deus, levar a cabo um piedoso sacrilgio que libertar a terra de alguns monstros e permitir dormir tranqilamente pessoas de bem que tm direito a deitar-se em paz, sem que sobre suas cabeas pese a ameaa de assassinos malditos. Meu pai olhou-o de novo. Mas desta vez no havia desconfiana em seu olhar, mas sim tratava de ser penetrante e perspicaz. A estirpe dos Karstein disse se extinguiu h muito tempo. Cem anos, pelo menos. Minha mulher descendia dos Karstein por linha materna. Mas o sobrenome e o ttulo desapareceram h quase um sculo. O castelo est em runas e o povoado desabitado; faz mais de cinqenta anos que no sai fumaa por suas chamins. Isso o que me contaram, exatamente. E outras coisas que o assombraro. Mas ser melhor que o conte seguindo uma ordem lgica. Lembra voc a minha sobrinha? Era a moa mais linda do mundo, e h apenas trs meses estava ainda viva. Meu pai apertou afetuosamente a mo do general. As lgrimas encheram os olhos do ancio, que no as quis ocultar. Minha sobrinha era o consolo de minha velhice. E agora, tudo terminou. No fica muito tempo de vida, mas, com a ajuda de Deus, confio em que antes de morrer poderei emprestar um grande servio ao gnero humano.41

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A coisa comeou assim: minha sobrinha se preparava com impacincia para visitar vocs. No curso daqueles preparativos, fomos convidados a uma festa oferecida por meu velho amigo, o conde do Carlofed, cujo castelo dista umas seis lguas do Karstein. A noite em que comeou minha desgraa se celebrou um fastuoso baile de mscaras. O parque do castelo estava .iluminado com farizinhos de cores, e os foguetes foram de uma magnificncia nunca vista. E que msica! Voc j sabe que a msica minha fraqueza. As melhores orquestra do mundo, e os melhores cantores de pera europeus. Nunca tinha assistido uma festa to brilhante, nem sequer em Paris. Minha querida sobrinha estava muito linda. No ia disfarada. A emoo e a alegria punham em seu rosto um encanto indefinvel. Dava-me conta de que outra jovem, que vestia-se luxuosamente e levava uma mscara, olhava a minha sobrinha com especial interesse. Tinha-a visto j ao comeo da festa, no terrao do castelo: estava perto de ns e sua atitude demonstrava um vivo interesse. Acompanhava-a uma dama, vestida com o mesmo luxo e tambm coberta com uma mscara, que tinha o ar autoritrio de uma pessoa de estirpe. Naquele momento estvamos em um salo. Minha pobre sobrinha tinha danado muito e descansava sentada em uma cadeira, perto da porta. Eu estava sentado junto dela. As duas damas se aproximaram de ns e a mais jovem ocupou uma cadeira vazia ao lado de minha sobrinha enquanto que a de mais idade vinha a sentar-se junto a mim. Comeou falando consigo mesma, como se estivesse resmungando. Logo, aproveitando-se da impunidade que lhe conferia a mscara, dirigiu-se a mim no tom de uma antiga amiga, me chamando por meu nome. Suas palavras excitaram minha curiosidade. Referiu-se s numerosas ocasies em que nos tnhamos encontrado, na Corte ou em alguma casa elegante. Fez aluso a incidentes que eu no recordava, mas que ao serem citados por ela acudiram de novo minha memria. Senti que minha curiosidade ia aumentando. Desejava ardentemente saber quem se escondia detrs daquela mscara, enquanto a dama parecia divertir-se com o jogo. Enquanto isso, a jovem, a qual a dama de mais idade42

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chamava com o estranho nome da Millarca, tinha travado conversao com minha sobrinha. Apresentou-se a si mesma dizendo que sua me era uma antiga amiga minha, elogiou o vestido que minha sobrinha usava e elogiou discretamente sua beleza. Divertiu-a com suas agudas observaes a respeito da gente que se apinhava no salo, e em um momento conversavam como se se conhecessem de toda a vida. Logo, a jovem desconhecida tirou a mscara: tinha um rosto muito belo, de feies to agradveis e sedutoras que era impossvel escapar a seu atrativo. Minha pobre sobrinha ficou seduzida imediatamente. Tambm a desconhecida parecia ter sido fascinada por minha sobrinha. De minha parte, me valendo da familiaridade que permite um baile de disfarces, dirigi algumas pergunta pessoais a minha interlocutora. Voc me ps em um aperto confessei, riendo_. Quer ser clemente comigo agora? Por que no me faz a honra de tirar a mscara, como sua filha? uma petio descabida respondeu. Pedir a uma dama que renuncie a um privilegio! Por outra parte, no poderia voc me reconhecer: passaram-se muitos anos desde que me viu pela primeira vez. Olhe a minha filha Millarca e compreender que j no posso ser jovem. Prefiro que voc no possa me comparar com a imagem que conserva de mim. Alm disso, voc no usa mscara e no pode me oferecer nada em troca. Recorro a sua clemncia disse. _E eu sua replicou. Pelo menos, j que me honrou com sua conversao, rogo-lhe que me diga seu nome. Devo cham-la Senhora Condessa? Ps-se a rir de boa vontade e sem dvida se tivesse encontrado o meio de evitar minha pretenso, de no haver-se produzido um fato fortuito... embora agora estou convencido de que tudo tinha sido planejado minuciosamente Olhe... comeou a dizer, mas se viu interrompida pela presena de um cavalheiro vestido de negro, de estranha aparncia e rosto exangue como o de um cadver, tampouco estava mascarado. Inclinou-se cortesmente ante minha companheira e disse:43

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Permite-me a senhora condessa umas palavras em particular.? Minha interlocutora se voltou imediatamente para o recm-chegado, levando um dedo aos lbios para lhe indicar silencio Logo, dirigindo-se a mim, desculpou-se: _Rogo-lhe que me guarde o assento, general: retornarei em seguida. Afastou-se em companhia do cavalheiro vestido de negro. Vi como falavam animadamente, antes de desaparecer entre a multido. Enquanto me torturava tratando de identificar a dama que to amavelmente parecia me recordar, ela retorno acompanhada do mesmo cavalheiro de rosto cadavrico. Ouvi que este ltimo lhe dizia: Advirto-lhe, condessa que a carruagem espera na porta". E, depois de inclinar-se profundamente, desapareceu. -De modo que a perdemos, senhora condessa? Espero que seja por pouco tempo -aventurei. E inclinei-me diante dela. -Sim, tenho que partir respondeu-. E possvel que minha ausncia se prolongue umas semanas. Acabo de receber notcias muito desagradveis... E voc, recordou j quem sou? J lhe disse que no. Saber, fique calmo. Mas no agora. Somos amigos, mais ntimos e mais antigos do que voc suspeita. Mas agora no lhe posso revelar minha identidade. Dentro de trs semanas passarei por seu castelo. Ento terei muito gosto em que reatemos nossa velha amizade. De momento, estou muito preocupada com a notcia que acabam de me dar. Tenho que percorrer mais de cem milhas com a maior rapidez possvel. E se no fosse pela reserva que me vejo obrigada a guardar a respeito de minha identidade, pediria-lhe um favor... Minha pobre filha caiu do cavalo durante uma caada e foi arrastada pelo animal mais de uma milha. Ficou com os nervos destroados e nosso mdico lhe recomendou descanso absoluto. Eu terei que viajar dia e noite, sem interrupo. Est em jogo uma vida... mas lhe falarei disso da prxima vez que nos vermos.44

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E a seguir me pediu o favor a que tinha aludido. Tratava-se de alojar a sua filha em minha casa durante sua ausncia. Era uma petio um pouco estranha, por no dizer atrevida. A condessa me desconcertou adiantando-se a todas meus possveis receios, me dizendo que compreendia o incorreto de seu proceder, mas que, me conhecendo como me conhecia, sabia que eu me faria cargo do inslito das circunstncias que a obrigavam a comportar-se daquele modo. E naquele mesmo instante, por uma fatalidade que devia ser to premeditada como tudo o que estava acontecendo, aproximou-se minha sobrinha, pedindo que convidasse a sua nova amiga Millarca a passar uns dias em nossa casa. Em qualquer outra ocasio, eu teria sado do passo lhe dizendo que aguardasse at que pudssemos nos inteirar da identidade daquelas damas. Mas devo confessar que as feies delicadas da jovem desconhecida, com seu extraordinrio poder de fascinao, tinham-me conquistado. De modo que consenti estupidamente em me fazer responsvel pela moa enquanto durasse a ausncia de sua me. E cavalheiro vestido de negro retornou em busca de minha interlocutora. A ltima coisa que me pediu a dama foi que no tratasse de averiguar a identidade da jovem at sua volta. Ento sussurrou algumas palavras ao ouvido de sua filha; abraou-a framente e se afastou acompanhada do fnebre personagem. Na manh seguinte Millarca se instalou em nossa casa. No fundo, sentiame satisfeito de ter encontrado uma jovem to agradvel para que fizesse companhia minha sobrinha. Mas no demorou para surgir o reverso da medalha. A princpio, Millarca se queixava de uma grande debilidade; estava ainda convalescendo do acidente que tinha sofrido, e no saa de seus aposentos antes do meio-dia. Logo descobrimos de um modo casual que, apesar de que fechava sempre a porta de seu quarto com chave, no estava nela todas as horas que acreditvamos ali. Um dia, de madrugada, vi-a andar sob as rvores, em direo ao leste: olhava como uma pessoa em transe. Pensei que era sonmbula. Mas esta hiptese no resolvia as dvidas que me tinham45

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exposto. Como saa do quarto, se estava fechada por dentro? Como saa da casa sem abrir portas nem janelas? Enquanto me debatia nesta situao contraditria, me apresentou uma preocupao mais grave. Minha sobrinha adoecia de um modo misterioso. Comeou por ter espantosos pesadelos, logo disse que recebia a visita de um espectro que s vezes se parecia com Millarca e outras tinha o aspecto de uma besta que dava voltas ao redor de sua cama. No demoraram para apresentar-se outros sintomas: uma sensao dolorosa debaixo da garganta, como se a cravassem com dois alfinetes, a impresso de que se afogava e uma subseqente perda de conscincia... Qual no seria minha emoo para ouvir descrever os sintomas que eu mesma tinha experimentado! Especialmente de ter ouvido a descrio dos costumes e caractersticas de nossa formosa convidada, Carmilla. Tnhamos chegado ao trmino de nossa viagem. Diante ns se estendiam as runas de um povoado, entre gigantescas rvores. Descemos em silncio da carruagem; todos estvamos absortos em nossos pensamentos. Subimos uma levantada costa e nos encontramos diante do castelo de Karstein. _Eis aqui seu palcio disse o general-. Era uma estirpe maligna. difcil acreditar que mesmo depois de mortos possam continuar infectando a humanidade com sua horrvel concupiscncia. Olhem: ali est a capela. Apontou um edifcio de estilo gtico escondido entre a folhagem. -Ouo a tocha de um lenhador muito perto daqui continuou-. Possivelmente possa nos facilitar a informao que procuramos e nos assinalar a tumba de Mircalla, condessa de Karstein. s vezes, estes aldees conservam a lembrana das tradies locais a respeito das grandes famlias... -Em casa tenho um retrato de Mircalla, condessa de Karstein disse meu pai-. Gostaria de v-lo? -Certamente. Mas temos tempo de sobra respondeu o general-. Acredito ter visto o original, e espero me convencer depois de explorar a capela.46

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-Como! exclamou meu pai-. Pretende ter visto a condessa Mircalla? Mas como, se h mais de um sculo que morreu! -No est to morta como a gente cr replicou o general. Quando passvamos por debaixo do arco que dava acesso capela gtica em runas, acrescentou: -Nos poucos anos que me ficam de vida s desejo ter ocasio de uma coisa: me vingar. E, felizmente, a vingana pode realizar-se ainda por meio de um brao mortal. -De que vingana est falando? perguntou meu pai, cada vez mais assombrado. -Quero cortar a cabea do monstro respondeu o general em um acesso de clera, golpeando o cho com os ps e elevando suas mos como se empunhasse uma tocha invisvel e a brandisse ferozmente no ar. -O que diz? gritou meu pai. -Cortarei-lhe a cabea com uma tocha, com uma foice, com qualquer ferramenta que possa servir pa