capital estrangeiro no sus

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    CONTRIBUIES PARA O DEBATESOBRE A ENTRADA DE CAPITAL

    ESTRANGEIRO NA SADE BRASILEIRa

    DIREO EXECUTIVA NACIONAL DOS ESTUDANTES DE MEDICINA

    COORDENAAO DE POLTICAS DE SADEGESTO 2016

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    Em 07 de outubro de 2014, a presidenta Dilma lanoua Medida Provisria n. 656, que inicialmente s tratava deregistro de imveis pblicos, crdito imobilirio e prorro-

    gao de alguns incentivos tributrios. O texto, ao passarpela anlise da Comisso Mista no Congresso, acabou porse tornar uma extensa colcha de retalhos, com o acrsci-mo de 32 novos temas entre eles, a entrada de capitalestrangeiro no sistema de sade brasileiro. Segundo notada Associao Brasileira de Sade Coletiva (ABRASCO),com a autorizao da entrada de capital estrangeiro nosetor de sade, empresas de fora do pas podero instalarou operar hospitais (inclusive lantrpicos) e clnicas, almde executar aes e servios de sade. Atualmente, o ca-pital estrangeiro est restrito aos planos de sade, segura-doras e farmcias [1].

    Diante disso, a Coordenao de Polticas de Sade (CPS)da Direo Executiva Nacional dos Estudantes de Medici-na (DENEM) lana este texto na tentativa de realizar algunsquestionamentos acerca desta medida, o modo como foigestada e os impactos que traz para o SUS. Entendemosque debates como este so determinantes na congurao

    das polticas de sade em nosso pas, e, compreendendomdicas e mdicos como agentes polticos, engajados coma transformao da realidade que est colocada e tambmcomprometidos com a luta pela efetivao do SUS 100%pblico e de qualidade, como prescrito em nossa consti-tuio, acreditamos ser fundamental que se avance nesses

    debates dentro de nossas escolas mdicas.

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    O TRMITE DA MP 656/14

    A Medida Provisria 656, lanada por Dilma em outu-

    bro de 2014, se tratava de um instrumento com fora delei, mas que precisava passar pelo aval do CongressoNacional. Desse modo, aps a entrada em vigor da MP656, o Congresso teria 90 dias para apreciar a medida etransform-la em lei. Assim, com alteraes sugeridas peloCongresso Nacional, que inseriu mais 32 temas ao textooriginal, e aps alguns vetos da presidente Dilma, a Medi-da Provisria foi convertida na Lei n. 13.097/15, de 19 de

    janeiro de 2015. A lei, aps essa costura organizada porCongresso e Governo Federal, acabou por versar sobrediversos temas, como iseno scal para aerogeradores eparcelamento de dvidas de times de futebol. Mas, debaixodesse grande guarda-chuva, tambm houve espao para

    a inscrio de um artigo que assegura a abertura total dosetor de sade brasileiro ao capital estrangeiro. Segundoa professora da UFRJ Ligia Bahia, essas medidas so aschamadas X-tudo, e no a primeira vez que se incluemdentro delas proposies que golpeiam o SUS. Trata-se,para ela, de uma reforma dos princpios nacionais e de-

    mocrticos do SUS [2].

    Importante frisar, de antemo, que a questo da aber-tura ao capital estrangeiro no se trata, propriamente, detema novo na economia brasileira. Alguns setores j vi-nham sendo afetados por esse tipo de investimento. Po-

    rm, no setor sade, tratava-se de exceo, uma vez queh preceitos normativos que impedem a completa abertura(ao menos, teoricamente) como a Lei Orgnica da Sade

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    (Lei 8.080) e a prpria Constituio Federal. Segundo notada ABRASCO, j citada, por quatro razes jurdicas o Pro-

    jeto de Converso de Lei n 18 de 2014 no pode prospe-rar, ofende a Constituio Federal, a Lei n 8.080 de 1990,

    a Lei Complementar n 95 de 1998 e a Resoluo n 1 de2002 do Congresso Nacional. Trataremos, mais frente,dessas contrariedades. Mas, o que j se pode observar que a arquitetura que tornou possvel a aprovao destamedida, alm de agrante desrespeito ao ordenamento ju-rdico nacional, tambm representa grave retrocesso nasconquistas sociais que, a duras penas, foram instaladasnormativamente no sentido de compreender a sade comodireito de todos e dever do Estado. evidente, assim, oaparato ideolgico que est por trs da entrada em vigordesta nova lei, qual seja o retorno compreenso da sa-de a partir de uma lgica de mercado.

    A Frente Nacional Contra a Privatizao da Sade, emnota, tambm denuncia a medida: sabido que, poucosanos aps a promulgao da Constituio Federal, o Brasiliniciou uma srie de reformas liberalizantes na ordem eco-nmica, que visavam abrir a economia ao capital estrangei-ro, como demanda capitalista para efetivar a mundializao

    do capital. Vrios setores foram abertos ao investimentoexterno, como a produo de petrleo e as telecomuni-caes. No entanto, foram mantidas restries especcasao ingresso do capital e de empresas estrangeiras em de-terminados setores da economia, dentre eles, o setor deassistncia sade [3]. No entanto, o que se percebe nos

    ltimos anos so diversas tentativas na inteno de romperessa barreira no setor sade, entregando-o em toda suadimenso aos investidores, sobretudo estrangeiros.

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    Foi nesse mesmo sentido, por exemplo, a aprovao da lei9.656, em 1998, que estabeleceu a entrada do capital es-trangeiro nos planos de sade. Da mesma maneira, desde2009, tramita no Senado Federal o projeto de lei 259, que

    tenta exibilizar a entrada do capital estrangeiro na sadebrasileira, preservando reas compreendidas como de in-teresse de segurana nacional (transplantes, clulas-tron-co, quimioterapia e radioterapia). Atualmente, este PLS en-contra-se na Comisso de Relaes Exteriores e DefesaNacional do Senado, esperando seguimento.

    Diferente dessas tentativas anteriores, o que se apro-vou com a lei 13.097/15 foi ainda mais radical, pois alm degarantir a abertura irrestrita ao capital estrangeiro, estabe-lece seu funcionamento em todos os nveis de assistncia sade: de hospitais a exames de imagens e at planeja-mento familiar. Isso tudo congurado pelo modo de operar

    tradicional do Congresso Nacional, ou seja, ao largo dosanseios da sociedade civil, da participao social, do deba-te qualicado, traduzindo em suas prticas a busca irrefre-vel pelo retrocesso nas conquistas sociais, sobretudo nocampo da sade, e a satisfao de interesses dos grandesinvestidores muitos dos quais tambm contriburam com

    a maior poro dos nanciamentos de campanhas eleito-rais desses mesmos legisladores; em algum momento, bvio, essa conta precisa ser paga.

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    A QUESTO DO CONTROLE SOCIAL

    No processo de tramitao do projeto de lei em ques-to, alguns setores da sociedade civil, como a Frente Na-cional Contra a Privatizao da Sade e a ABRASCO, am-bas j citadas, lanaram manifestos solicitando que Dilmavetasse os artigos relativos abertura ao capital estrangei-ro no texto nal da lei. Como de praxe, essas entidades fo-ram sumariamente ignoradas. O prprio Ministro da Sade poca foi at o Conselho Nacional de Sade dizer queentidades como a ABRASCO e o Centro Brasileiro de Estu-dos de Sade (CEBES) duas entidades bastante impor-tantes no movimento da reforma sanitria no sabem fa-zer anlises polticas. Percebe-se que no se trata apenasde ignorar demandas especcas e interromper dilogos

    com os movimentos sociais oportunamente. Mais do queisso, sintoma da agudizante e sistemtica ausncia departicipao social na tomada de decises em nosso pas.

    Alm disso, como arma Ligia Bahia, o apagamento dasconquistas sociais, como se elas tivessem se tornado an-tiquadas, de modo a precisarem dar lugar a uma maneira

    moderna de governar autoritria e tecnocrata.

    Sobre a questo do controle social, a DENEM j produ-ziu uma cartilha, no ltimo ano, que pode ser acessada emnossa pgina no Facebook, onde tratamos o tema de ma-neira mais aprofundada. Contudo, importante ressaltar,

    aqui, a falta de oxigenao nos debates sobre controle eparticipao social sobretudo, em relao ao SUS. 2015foi ano de Conferncia Nacional de Sade, e, mesmo as-

    k

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    sim, pouco se avanou na luta pela construo de nossosistema de sade a partir de intenso dilogo com usurios,movimentos sociais, instncias de controle e participao.O que se observou, ao contrrio, foram negativas absolu-

    tas a demandas trazidas pela sociedade, como pode sernotado, por exemplo, tanto na questo da abertura ao ca-pital estrangeiro quanto na indicao controversa do psi-quiatra Valencius Wurch para a cadeira da Coordenaode Sade Mental, lcool e outras drogas do Ministrio daSade, que gerou intenso debate e ocupao das salas dacoordenao, por mais de 100 dias, por diversos setoresde movimentos ligados Luta Antimanicomial de todo opas. Ainda assim, o governo se mostrou irresoluto na ma-nuteno da indicao, isto , na congurao de mais umretrocesso, desta vez no campo da sade mental.

    No que toca questo da abertura ao capital estran-

    geiro, como j dissemos, tal aprovao se deu sem debatenas casas legislativas sobre interesses e impactos por trsda aprovao, mas tambm sem posicionamento efetivode instncias de participao social, inclusive no ConselhoNacional de Sade, que se limitou emisso de uma notatmida e alguns debates plidos demais. Apesar de suas

    limitaes, j reconhecidas, enquanto espao de controlesocial do SUS - como seu carter consultivo dentro daspolticas de sade, alm de sua composio por algumasentidades sem compromisso algum com a construo deum sistema verdadeiramente pblico e de qualidade -, aausncia de debate (amplo e profundo) prvio aprovao

    dessa lei marca um provvel caminho sem regulamentaoalguma desses investimentos. Algo previsvel, consideran-do-se a pouca regulamentao da Agncia Nacional

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    de Sade Suplementar (ANS) em relao aos planos pri-vados de sade, alm da anistia de 2 bilhes de reais dedvidas de planos de sade que s no foi aprovada devi-do denncia pela sociedade civil. Tudo isso aponta para

    uma provvel ausncia completa de processos de regula-mentao do capital estrangeiro na sade. Ganham, comisso, os organizadores da coaliso que tornou possvel aaprovao da lei: hospitais privados, indstria farmacuti-ca, operadoras de planos de sade e, claro, representan-tes do capital estrangeiro.

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    O CALDO EM QUE SE PREPAROU A LEI 13.097/15E O QUE ELA DIZ

    Observar o contexto socioeconmico, poltico e culturalem que este e outros retrocessos ganham flego impres-cindvel para compreender as fraturas que se desenham eque, em ltima anlise, culminam no fortalecimento da l-gica de mercado, precarizao dos servios pblicos, alar-gamento do capital privado (privatizaes, terceirizaesetc.) e cortes ininterruptos de direitos sociais. Nesse senti-do, desde 2008, a economia mundial passa pela maior re-cesso da histria recente. Ainda hoje, a recuperao eco-nmica global mais devagar que o esperado, e diversospases emergentes encontram-se com declnio no cresci-mento do Produto Interno Bruto (PIB) [4]. Esse o casodo Brasil, que se encontra em recesso desde o segundo

    trimestre de 2014 [5]. Em tempos de crise, conglomeradosempresariais e governos reduzem investimentos em re-as sociais, como sade e educao. Esse tipo de polticaaustera afeta desproporcionalmente os trabalhadores, nomodicando a distribuio injusta da riqueza global. O 1%mais rico do mundo mantm o padro de crescimento de

    seus bens apresentado desde a ecloso da crise, e teromais dinheiro do que os outros 99% em 2016 [6].

    Frente a esse contexto, questionamos: a crise econ-mica que vivemos recai sobre quem? Os inmeros artifciosusados para realocar recursos pblicos nesses contextos,

    tendo como principal efeito o sucateamento de setores es-senciais, como sade e educao, que sempre sofreramcom ataques sua estruturao plena, so incorporados

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    agora nas polticas de ajuste scal. Retirar dinheiro de umservio j sobrecarregado leva a recadas na qualidade daassistncia e ao fortalecimento da ideia de que h uma ine-cincia nos servios pblicos de forma geral, em especial

    o de sade. A partir de uma suposta insustentabilidade -nanceira de manter um sistema de sade pblico e univer-sal, prepara-se o terreno para argumentos privatistas, ideiaessa massivamente incutida na opinio pblica por setoresinteressados no enfraquecimento desses servios.

    Alis, o argumento do sucateamento irrecupervel dosservios pblicos - e, portanto, da necessidade de salva-guarda vinda a partir do capital privado (neste caso, so-bretudo, estrangeiro) - combustvel para a defesa da lein. 13.097/15. A propsito de seu texto, cabe uma anlisemais objetiva do que elenca em seus dispositivos, para, aseguir, traarem-se alguns comentrios acerca dos efeitos

    que esta lei produz em nosso sistema de sade.

    Basicamente, o que a Lei n. 13.097 traz a respeito daabertura ao capital estrangeiro se concentra em apenas umartigo, dos quase 170 inscritos na lei trata-se do art. 142,relativo ao captulo XVII, Da Abertura ao Capital Estrangei-

    ro na oferta de Servios Sade. Em que pese se tratarde apenas um artigo, seus efeitos ao sistema de sade sonefastos, uma vez que altera dispositivo importante da Lein. 8.080, a chamada Lei do SUS. O que a norma diz, emseus prprios termos, :

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    CAPTULO XVIIDA ABERTURA AO CAPITAL ESTRANGEIRO NA OFERTADE SERVIOS SADE

    Art. 142. A Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, passaa vigorar com as seguintes alteraes:

    Art. 23. permitida a participao direta ou indireta, in-clusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro naassistncia sade nos seguintes casos:I - doaes de organismos internacionais vinculados Or-ganizao das Naes Unidas, de entidades de coopera-o tcnica e de nanciamento e emprstimos;II - pessoas jurdicas destinadas a instalar, operacionalizarou explorar:a) hospital geral, inclusive lantrpico, hospital especializa-

    do, policlnica, clnica geral e clnica especializada; eb) aes e pesquisas de planejamento familiar;III - servios de sade mantidos, sem nalidade lucrativa,por empresas, para atendimento de seus empregados edependentes, sem qualquer nus para a seguridade so-cial; e

    IV - demais casos previstos em legislao especca.

    Art. 53-A. Na qualidade de aes e servios de sade, asatividades de apoio a assistncia sade so aquelas de-senvolvidas pelos laboratrios de gentica humana, pro-duo e fornecimento de medicamentos e produtos para

    sade, laboratrios de anlises clinicas, anatomia patolgi-ca e de diagnstico por imagem e so livres participaodireta ou indireta de empresas ou de capitais estrangei-

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    ros. [7]

    Bem, isso quer dizer, de incio, que a lei, em seu artigo142, modica a Lei Orgnica da Sade (Lei n. 8.080/90),

    de modo a permitir a participao direta ou indireta, in-clusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro naassistncia sade em nosso pas. O antigo art. 23 daLei 8.080, revogado pela nova lei, deixava explcito que eravedada a participao direta ou indireta de empresas oude capitais estrangeiros na assistncia sade, salvo atra-vs de doaes de organismos internacionais vinculados Organizao das Naes Unidas, de entidades de coope-rao tcnica, e de nanciamento e emprstimos.Essa alterao, de algumas linhas, capaz de gerar con-sequncias preocupantes. Segundo a ABRASCO, com apossibilidade do capital estrangeiro ou empresas estrangei-ras possurem hospitais e clnicas inclusive lantrpicas,

    podendo atuar de forma complementar no SUS , ocorre-r uma apropriao do fundo pblico brasileiro, represen-tando mais um passo rumo privatizao e desmonte doSUS.

    Cabe dizer, aqui, que j existia, no Brasil, um sistema de

    sade privado, suplementar ao servio pblico. Entretanto,a entrada nesse mercado era restrita a empresas nacio-nais. Com a mudana trazida em 2015, empresas interna-cionais passam a poder investir na sade brasileira. Agora,por exemplo, grandes empresas de planos de sade ame-ricano tm permisso para operar servios no nosso pas.

    Alm de um bvio problema de avano de privatizaes eliberalizaes no setor, corroborando o desmonte do setorpblico, isso pode trazer tambm um problema de gover-

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    nana para o pas, em relao regulao dessas empre-sas internacionais.

    Segundo Mrio Scheffer, professor do departamento

    de Medicina Preventiva da FMUSP, a atuao do capitalestrangeiro na sade denido como aquele correspon-dente a empresas multinacionais, no caso dos investimen-tos e do comrcio, aos grandes bancos, no caso dos nan-ciamentos, e aos fundos de penso que operam o capitalespeculativo foi vedada pela Constituio Federal e pelaLei Orgnica da Sade, com as excees de emprstimosde organismos internacionais, de cooperao tcnica ouvinculados s Naes Unidas. Mas desde 1998 a Lei dosPlanos de Sade permitiu o capital estrangeiro nos neg-cios de assistncia suplementar [8].

    Alm de contrariar a Lei 8.080, como j armamos, a

    nova lei tambm desobedece Lei Complementar 95, de1998, que dispe sobre a elaborao de leis, estabelecen-do que cada lei tratar de um nico objeto e que a leino conter matria estranha a seu objeto ou a este novinculada por anidade, pertinncia ou conexo. Segundoa deputada Jandira Feghali (RJ), que impetrou projeto de

    lei que prev a vedao da abertura do capital estrangeirono setor sade, apesar da proibio, o Congresso Nacio-nal tem aceitado a insero dos assim chamados jabutisdurante a tramitao de medidas provisrias [9].

    Como se no bastasse essas duas proibies, a nova

    medida considerada inconstitucional. Conforme armaLuiz Fernando Alves Rosa, do ponto de vista do DireitoPositivo, a Lei n 13.097/2015 , sem dvida, inconstitucio-

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    nal, pois ofende diretamente ao Art. 199, 3 da CF/1988 vedada a participao direta ou indireta de empresas oucapitais estrangeiros na assistncia sade no Pas, salvonos casos previstos em lei. [10] Posicionamento seme-

    lhante tem a Advocacia Geral da Unio, para quem a apro-vao da lei 13.097/15 inconstitucional, pois transforma oque antes era exceo em regra. Se antigamente o capitalestrangeiro era aceito na sade apenas em casos de nan-ciamento por entidades ligadas a Naes Unidas, hoje aceito sem restrio alguma.

    No mesmo caminho, Scheffer aponta que aes di-retas de inconstitucionalidade j levadas ao Supremo Tri-bunal Federal (STF) por entidades da sociedade civil en-fatizam o dispositivo constitucional que prev a vedaoexpressa participao do capital estrangeiro na sade, elevantam uma situao esdrxula: conserva-se o texto ori-

    ginal da lei do SUS mas acrescenta-se, aps uma vrgula,contedo contrrio. Na prtica designa-se, por exceo, apossibilidade do capital estrangeiro entrar em toda e qual-quer ao e servio de sade. Agora, a legislao brasilei-ra sobre sade traz duas polticas opostas na mesma nor-ma. Em uma das Aes Diretas de Inconstitucionalidade

    (ADI 5.435), impetrada pelo Partido Socialismo e Liberdade(PSOL), sustenta-se que o domnio pelo capital estrangei-ro na sade brasileira inviabiliza o projeto de um Sistemanico de Sade de qualidade e em quantidade sucientes necessidades da populao brasileira, tendo em vistaque a ampliao de espao para o mercado privado, em

    especial o estrangeiro, poder enfraquecer os investimen-tos pblicos, j bastante insucientes para o atendimentoda populao [11].

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    Desse modo, podemos notar que, no plano ideolgico

    e poltico, ocorre grave e sorrateira deslegitimao de umahistria de luta que, durante dcadas, esforou-se para que

    a sade fosse congurada, em nossa carta magna, comodireito de todos e dever do Estado. Na lgica do mercado,traduzida agora neste dispositivo legal, limita-se o acessoa quem tem dinheiro, com valorizao de lucros em detri-mento do Sistema nico de Sade, pblico, universal - umdireito conquistado, de todos os cidados.

    Analisando o contexto global, importante ressaltarque a tendncia do capital justamente essa: mercantili-zar todos os aspectos da vida e da sociabilidade huma-na. Nesse processo a Organizao Mundial do Comrcio(OMC) tem se colocado como protagonista, ao ter comoprincpio a promoo do livre mercado mundialmente. O

    Brasil seu signatrio desde sua criao, tendo adotadotal poltica em especial nas ltimas duas dcadas. Cabe OMC acessar todas as commodities que um pas tema oferecer, reconhecendo-as como todos os produtos/ser-vios que se tornam passveis de serem comercializados.Para alm de bens materiais (recursos naturais, produo

    de produtos), existe outra modalidade de commodities re-conhecidas como bem pblico e de dever do estado, osquais no estariam sujeitos livre mercantilizao. Con-tudo, h evidncias sugerindo que a OMC tem um papelcentral na presso de governos para derrubar barreiras decomercializao, tarifrias e no tarifrias, inclusive para se-

    tores outrora reconhecido como restritos ao Estado - como o caso do setor sade [12]. Para atingir esses objetivos,nota-se a importncia da mdia e dos aparelhos ideolgi-

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    cos que promovem o senso de repdio coisa pblica eo argumento de que boa gesto e ecincia so palavrasque existem unicamente na esfera privada.

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    POR QUE O INTERESSE NO BRASIL E QUAISPOSSVEIS CONSEQUNCIAS PARA O SUS?

    Qual seria, ento, o interesse no Brasil? A escolha dospases a serem investidos ocorre atravs de uma anlise deseu perl demogrco (expectativa de vida, pirmide et-ria), buscando lucro em determinados servios de acordocom esse perl, alm de mo de obra longeva e de baixocusto. Segundo relatrio da ONU, o Brasil ocupa a 6 posi-o entre os pases com o maior investimento estrangeiro.Observa-se, porm, que esse investimento tem mudado decarter: houve queda quantitativa desse investimento de2013 para c (de 64 para 62 bilhes de reais), porm, o ca-rter tambm se alterou, havendo um crescimento de 18%no campo de servios. A previso para 2015, coincidente-mente o ano de entrada do capital estrangeiro no setor da

    sade, era de crescimento de 11%.

    Esse processo leva a consequncias em todo o siste-ma pblico de sade brasileiro, pois o interesse do capitalestrangeiro ocorrer especialmente nas reas mais lucra-tivas do setor sade, como o caso da ateno secundria

    e da ateno terciria, isto , clnicas de especialidades ehospitais. Sobre isso, Scheffer arma que, com volatilida-de e vocao especulativa, investimentos estrangeiros es-colhero leitos, exames e procedimentos que geram altosretornos nanceiros, principalmente servios baseados emvalores e preferncias particulares, e que praticam a sele-

    o adversa, afastando-se do atendimento a populaesque vivem em reas distantes de recursos assistenciais,do atendimento a idosos, crnicos graves, portadores de

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    transtornos mentais e outros pacientes que demandamateno contnua. A expanso de rede privada com essascaractersticas far aumentar a individualizao das de-mandas, os pagamentos diretos em clnicas populares e o

    consumo de planos de sade baratos no preo mas comarmadilhas contratuais e srias restries de coberturas.Mais uma vez o SUS, o fundo pblico, ser utilizado comoador e resseguro das operaes privadas.

    evidente que o grande capital no tem responsabi-lidade social de prover sade como a lei do SUS estipu-la, prezando por equidade, universalidade e integralidade,promovendo sade e prevenindo agravos. Isso caro epouco lucrativo. Como consequncia, haver progressiva-mente menor nanciamento pblico para essas reas, ex-pandindo o atual modelo de ateno primria uma cestabsica de servios voltada principalmente para a parce-

    la mais deprivada da populao, seguindo o conceito denovo universalismo da OMS.

    Nesse sentido, aponta Carla Ferreira: a inspirao danova legislao brasileira deve ser buscada na sede daOMS, em Genebra, na Sua, e seu projeto de Cobertura

    Universal de Sade. A diretora-geral da Organizao, Mar-garet Chan, diz que a proposta tem por objetivo dar prote-o nanceira aos mais pobres. Porm, especialistas bra-sileiros, como o Professor Luiz Facchini (UFPel), advertemque a proposta esconde atrs de si o entendimento de queo direito sade pblica deve ser restringido. Essa tam-

    bm a opinio da Associao Latino-Americana de Medi-cina Social (Alames), para quem a proposta de CoberturaNacional da Sade segmenta a populao de acordo com

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    seu poder aquisitivo, restringindo os investimentos pbli-cos ao atendimento apenas da parcela mais vulnervel dapopulao, deixando o restante da sociedade entregue aplanos privados [13]. Falaremos mais sobre esta proposta

    em textos futuros. O fato que, na macropoltica da ateno sade, ha-ver o distanciamento da valorizao das pessoas em suasespecicidades, passando a ser consideradas como doen-as. Isso levar a repercusses tambm na micropoltica,com gestores cobrando dos mdicos resultados/lucro e odesgaste da relao mdico-paciente, perdendo seu obje-tivo de prover autonomia para a pessoa assistida. Nos doiscenrios, o capital estrangeiro se favorece: lucrando como adoecimento da classe mdia, cada vez maior, principalusuria de planos de sade e, paralelo a isso, com a im-plantao das medidas impostas pelo Banco Mundial, ga-

    rantindo o mnimo para a maioria, segmentando o acesso sade. As experincias de pases como ndia e Turquiamostram esse quadro.

    Em recente artigo, Jonathan Filippon, da Queen MaryUniversity of London, sugere trs estgios no mercado da

    sade brasileiro aps a entrada do capital estrangeiro:

    1) Curto prazo (1 a 2 anos): pequenas fuses em que osplayers menos capitalizados sero absorvidos por entida-des mais capitalizadas, gerando oligoplios;2) Mdio prazo (3 a 5 anos): o nmero de competidores

    tende a diminuir, principalmente pelas fuses de pequenasentidades nacionais com grandes conglomerados multina-cionais;

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    3) Longo prazo (5 a 10 anos): aumento considervel dospreos e segmentao do mercado: mais para a minoriaque pode bancar. Interesse j sinalizado para as regiesSul e Sudeste do Brasil, acabando com o mito da demo-

    cratizao do acesso a sade. [14] Percebe-se, assim, que a entrada do capital estran-geiro na sade impacta diretamente o SUS, visto que suaexistncia est atrelada iniciativa privada, via servios desade suplementar. Se, hoje, 2/3 dos hospitais brasileirosso privados, sendo metade deles lantrpicos, o que po-demos esperar com o avano do nanciamento pelo capitalestrangeiro? A lei 13.097/15 garante seu investimento emhospitais lantrpicos tambm, o que pode levar ao usodo nanciamento pblico para a esfera privada e, agora,internacional da sade. Ademais, que lgica est por trsda abertura ao capital estrangeiro (que busca o lucro) para

    administrar tambm hospitais lantrpicos (que, apesar deprivados, no visam ao lucro). uma lgica bastante dif-cil de entender. Alm disso, temos o quadro de expansodas Organizaes Sociais de Sade (OSS) e da EmpresaBrasileira de Servios Hospitalares (EBSERH), que garanteuma dependncia do SUS prestao e gesto privada.

    Tendo total liberdade para atuar em todas as esferas daassistncia sade, podemos imaginar um quadro muitomais grave, de mudana profunda na lgica da assistncia sade brasileira, assimilando-se cada vez mais a mode-los como o estadunidense de sade.

    Scheffer, lucidamente, denuncia que capitais quebuscam caminhos de valorizao dicilmente tero com-promissos com necessidades de sade, o que requer po-

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    lticas voltadas reduo de adoecimentos e mortes, comatuao sobre os determinantes sociais da sade. O sis-tema universal, o sistema nico para pobres e ricos, base-ado na sade como direito, na redistribuio da riqueza,

    nanciado por toda a sociedade por meio de impostos econtribuies sociais, cede, assim, espao ao sistema seg-mentado, incapaz de assegurar o acesso a todos os nveisde ateno, em todas as regies, inclusive nos vazios sa-nitrios e para populaes vulnerveis e negligenciadas,onde e para quem o setor privado no tem interesse emofertar servios. No mesmo sentido, fazendo eco notada ABRASCO, tambm questionamos: a que interessa aabertura do capital estrangeiro na sade brasileira? que-les que no querem que o SUS d certo. So os que tmmedo do sucesso do SUS, impedindo-o de todas as ma-neiras de ser um sistema de justia social.

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    QUE SUS DEFENDEMOS? POR QUE LUTAMOS?

    O quadro de sucateamento do Sistema nico deSade crnico e tem sua origem concomitante sua pr-pria criao. Apesar de todo o movimento da Reforma Sa-nitria, o SUS conquistado no o SUS idealizado pelostrabalhadores e pelos tericos da rea da sade. Pelo con-trrio, afasta-se muito do projeto contra hegemnico e deresistncia ao avano do capital. A existncia da sade su-plementar caracteriza a disputa pblico-privado que se ma-terializa dentro do SUS de forma desigual, onde prevaleceos interesses privados. Isso consequncia do subnan-ciamento sade pblica, que se intensica a cada ano,e das polticas governamentais que cedem aos interessesde empresas e banqueiros. S em 2015, alm da aprova-

    o da entrada do capital estrangeiro, a Emenda Constitu-cional 86/2015 vinculou as despesas federais da sade receita corrente lquida; a possibilidade de aprovao daPEC 4/2015, que prorroga a Desvinculao das Receitasda Unio (DRU) at 2023, alm de aument-la de 20 para30%; e, no bastasse tudo isso, em ano de crise do capital,

    quem mais sofre so os trabalhadores, que tm seus direi-tos ameaados com a poltica de ajuste scal adotada pelogoverno.

    Para alm do debate da legalidade ou no dessa lei,temos que entender o impacto que isso causa na noo de

    sade enquanto direito. Precisamos combater esses avan-os do capital na sade e, para alm da sade, seus avan-os em todas as esferas da sociedade. Como o histrico

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    brasileiro mostra bem, as tentativas de exibilizar e ampliara participao do capital estrangeiro nas polticas de sadebrasileira so muitas e continuaro avanando. Trata-se,por certo, do modelo de sociedade que estamos dispostos

    a construir. Scheffer arma que as modalidades de nan-ciamento da sade exprimem os valores de uma socieda-de. O princpio de igualdade das pessoas face doena e morte, sejam quais forem suas condies sociais e suasorigens, compartilhado pelos ideais republicano, tico ehumanitrio.

    Desse modo, ns estudantes, militantes, defensoresdo sistema de sade pblico, gratuito, 100% pblico, dequalidade precisaremos continuar resistindo, amplian-do o debate, colocando a defesa irrestrita do SUS nessesmoldes como objetivo central de luta no campo da sade.Muitos so os entraves para a garantia do que direito

    da populao (os direitos tm essa mania de precisaremser conquistados). Tambm premente o enfrentamentoda explorao histrica qual trabalhadoras e trabalhado-res so submetidos. Por isso, preciso resistir e ir alm,organizando os trabalhadores para contra-atacarem e ga-rantirem pelas prprias mos o que lhes de direito. O

    SUS, originariamente, um projeto oposto ao capitalismo e, nesse sentido, a superao desse sistema abominveltambm precisa fundamentar nossos horizontes de luta.Em momentos como este, os velhos hinos parecem cadavez ganharem mais atualidade: O SUS nosso! Ningumtira da gente! Direito conquistado no se tira e no se ven-

    de!.

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    REFERNCIAS

    [1] Nota da ABRASCO e outras entidades solicitando o Vetode Dilma ao projeto de lei que assegurava a abertura ao ca-

    pital estrangeiro na sade. Pode ser acessada atravs dolink: https://www.abrasco.org.br/site/2015/01/nota-entida-des-capital-estrangeiro-veta-dilma/

    [2] Programa Sala de Convidados, exibido em 20 de maiode 2015. Pode ser acessado atravs do link: https://www.youtube.com/watch?v=6mIfOraEYiw

    [3] Nota da Frente Nacional contra a Privatizao da Sadecontra a entrada do capital estrangeiro no setor de sa-de brasileiro. Disponvel em: http://www.contraprivatiza-cao.com.br/2015/01/0968.html [Acesso em 05 de maio de2016].

    [4] Fundo Monetrio Internacional. World EconomicOutlook Update: Subdued Demand, Diminished Prospects.Washington (DC): FMI; Janeiro 2016. 6p. Disponvel em:http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2016/update/01/pdf/0116.pdf [Acessado em 2 Abril 2016].

    [5] Comit de Datao de Ciclos Econmicos. RelatrioTcnico. Rio de Janeiro (BR): IBRE/FGV; Agosto 2015. 4p.Disponvel em: http://portalibre.fgv.br/main.jsp?lumChan-nelId=4028808126B9BC4C0126BEA1755C6C93 [Acessa-do em 2 Abril 2016].

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    [6] Relatrio da Oxfam sobre concentrao de riqueza.

    [7] Lei n. 13.097/2015, que pode ser acessada pelo link:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/

    lei/l13097.htm[8] Mrio Scheffer. O capital estrangeiro e a privatizaodo sistema de sade brasileiro. Disponvel em: http://ce-bes.org.br/2015/04/o-capital-estrangeiro-e-a-privatizacao--do-sistema-de-saude-brasileiro/

    [9] Reportagem disponvel em: http://www.vermelho.org.br/noticia/265248-1

    [10] Luiz Fernando Alves Rosa. Capital Estrangeiro nasade falta debate. Disponvel em: http://brasildebate.com.br/capital-estrangeiro-na-saude-falta-debate/#sthash.

    oqKPUD3c.dpuf

    [11] A ADI 5.435 pode ser acompanhada pelo site: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamen-to.asp?numero=5435&classe=ADI&origem=AP&recur-so=0&tipoJulgamento=M

    [12] Referncia do Global Health Watch sobre papel daOMC.

    [13] Carla Ferreira. Abertura da sade para capital estran-geiro ameaa princpios do SUS. Disponvel em: http://lu-

    cianagenro.com.br/2015/03/abertura-da-saude-para-capi-tal-estrangeiro-ameaca-principios-do-sus/

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    [14] Jonathan Filippon. A abertura da sade nacional aocapital estrangeiro: efeitos do mercado global no Brasil.Disponvel em: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v39n107/0103-1104-sdeb-39-107-01127.pdf