o estrangeiro - albert camus

Upload: -

Post on 02-Mar-2018

233 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    1/65

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    2/65

    DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipeLe Livrose seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadm icos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

    OLe Livrose seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico epropriedade intelectual de form a totalmente gra tuita, por acreditar que oconhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquer

    pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site:LeLivros.siteou em

    qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando

    por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novonvel."

    http://lelivros.site/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=linkhttp://lelivros.org/parceiros/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=linkhttp://lelivros.site/http://lelivros.site/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=linkhttp://lelivros.org/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=link
  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    3/65

    Albert Camus

    O ESTRANGEIRO

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    4/65

    Ttulo Original: L'tranger

    Traduo de Antnio Quadros

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    5/65

    PRIMEIRA PARTE

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    6/65

    Captulo I

    Hoje, a me morreu. Ou talvez ontem, no sei bem. Recebi um telegrama doasilo:

    Sua me falecida: Enterro amanh. Sentidos psames.Isto no quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

    O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilmetros de Argel. Tomo oautocarro das duas horas e chego l tarde.

    Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanh noite. Pedi doisdias de folga ao meu chefe e, com um pretexto destes, ele no nos podia recusar.Mas no estava com um ar l muito satisfeito.

    Cheguei mesmo a dizer-lhe A culpa no minha. No respondeu. Penseiento que no devia ter dito estas palavras.

    A verdade: que eu no tinha que me desculpar: Ele que tinha de me darpsames. Mas com certeza o far, depois de amanh, quando me vir de luto. Por

    agora um pouco como se a me no tivesse morrido. Depois do enterro, pelocontrrio, ser um caso arrumado e tudo passar a revestir-se de um ar maisoficial.

    Tomei o autocarro s duas horas. Estava calor. Como de costume, almocei norestaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim, e o Celeste disse-me Me, h s uma.

    Quando sa, acompanharam-me porta. Estava um pouco atordoado e tiveque ir a casa do Manuel para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata

    preta. O Manuel perdeu o tio, h m eia dzia de meses.Tive que correr para no perder o autocarro. Esta pressa, esta correria, e

    talvez tambm os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada edo cu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quasetodo o tempo. E quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado, queme sorriu e m e perguntou se eu vinha de longe.

    Disse que sim, para no ter que voltar a falar.O asilo distava dois quilmetros da aldeia. Fui a p. Quis ver imediatamente a

    me. Mas a porteira disse-me que eu precisava, antes disso, de falar com odiretor. Como estava com pessoas, esperei ainda um pouco. Durante este tempo,o porteiro no parou de falar. Depois, o diretor recebeu-me no seu gabinete. Um

    velhote, que tem a Legio de honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depoisapertou-me a mo durante tanto tempo, que j no sabia como havia de a tirar.Consultou um processo e disse-me: A senhora sua me entrou para aqui h trsanos. O senhor era o seu nico amparo.

    Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei a explicar-lhe, Masele interrompeu-me: No tem nada que se justificar, meu filho. Estive a ler o

    processo da sua me. O senhor no lhe podia suportar as despesas. Ela precisavade uma enfermeira. O seu ordenado modesto. E, no fim de contas, aqui ela erafeliz. Disse: Sim, Sr. Diretor. Acrescentou:

    Sabe o senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade. Partilhavacom eles motivos de interesse que so de um outro tempo. O Senhor novo, e ao

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    7/65

    p de si, ela aborrecia-se com certeza.Era verdade. Quando estava l em casa a me passava o tempo a seguir-me

    em silncio com os olhos. Nos primeiros dias do asilo, chorava m uitas vezes: Masera por causa do hbito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo,ainda devido ao hbito. Foi um pouco por isto que, nu ltimo ano quase no a fuivisitar, E tambm porque a visita me tomava o domingo todo sem contar oesforo para ir para o autocarro comprar os bilhetes e fazer duas horas deviagem.

    O diretor disse-me ainda mais coisas. Mas j quase no o ouvia. Em seguidaperguntou-me: Julgo que agora, quer ir ver a sua me?

    Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o at porta.Nas escadas, explicou-me: Levam o-la para a nossa morgue particular. Para

    no impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervososdurante dois ou trs dias, o que torna o servio difcil.

    Atravessamos um ptio onde havia muitos velhos, conversando e m grupos,uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se.

    E atrs de ns as conversas recomeavam.Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. porta de uma pequena

    construo, o diretor deixou-me.Deixo-o agora, senhor Meursault. Estou s ordens, no escritrio. Em

    princpio, o enterro estava m arcado para as dez horas da manh. Pensamos que oSenhor podia assim passar a noite a velar.

    Uma ltima coisa: parece que a sua me exprimiu vrias vezes aos amigos odesejo de ter um enterro religioso.- Tomei minha conta este encargo. Masqueria p-lo a par.

    Agradeci-lhe. Embora sem ser ateia, enquanto viva a me nunca pensara nareligio: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e coberta por uma vidraa.Mobilhavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, aomeio da sala, suportavam um caixo coberto.

    Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se damadeira pintada de casca de noz. Perto do caixo estava uma enferm eira rabe,de bata branca, com um leno colorido na cabea. Neste momento, o porteiroentrou por detrs de m im. Devia ter corrido: Gaguejou.

    Fecharam-no, mas eu vou desparafus-lo, para que o senhor a possa ver.Aproximava-se do caixo, quando eu o detive.

    Disse-me: No quer? Respondi: No. Calou-se e eu estava embaraadoporque sentia que no devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-mee perguntou: Por qu?, mas sem um ar de censura, como se pedisse umainformao. Eu disse:

    No sei. Ento, retorcendo os bigodes brancos, declarou sem olhar paramim: Compreendo. O homem tinha uns bonitos olhos azuis claros e uma peleum pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se tambm, um poucoatrs de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a porta. Nestemomento, o porteiro disse-me: O que ela tem, um cancro.

    No percebi o que ele dizia, at reparar que a enferm eira trazia por debaixodos olhos uma ligadura que dava a volta cabea. No stio do nariz, no se via

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    8/65

    nenhuma salincia.Apenas a brancura do penso, sobre a cara.Depois dela sair, o porteiro falou: Vou deix-lo sozinho.

    No sei bem que gesto fiz, mas deixou-se ficar em p, atrs de mim. Estapresena nas minhas costas incomodava-m e. A sala estava cheia de uma bonitaluz de fim de tarde. Dois besouros zumbiam, de encontro vidraa. E eu sentia-me invadido pelo sono. Disse ao porteiro, sem me voltar para ele: Est c hmuito tempo? Ele respondeu imediatamente: Cinco anos, como se estivessedesde sempre espera da minha pergunta.

    Em seguida, ps-se a falar sem parar. Muito se teria espantado se algum lhehouvesse dito, no seu tempo, que acabaria como porteiro de um asilo, emMarengo. Tinha sessenta e quatro anos e era parisiense. Neste momentointerrompi-o:

    Ah, o senhor no daqui? Depois lembrei-me de que, antes de me levar aodiretor, estivera a falar da minha me.

    Dissera-me que era preciso enterr-la depressa, porque na plancie fazia

    muito calor, sobretudo nesta terra. Fora ento que me confiara ser de Paris e quedificilmente o esquecia. Em Paris fica-se com o morto, s vezes trs ou quatrodias. Aqui no h tempo, mal nos habituamos ideia e temos logo que correratrs do carro funerrio. A mulher dele dissera-lhe ento: Cala-te, no socoisas que se digam ao senhor. O velho corara e desculpara-se. Eu interviera

    para dizer: No, no... Achava o que ele estava a dizer verdadeiro einteressante.

    Na pequena morgue ele confiou-me que entrara no asilo com o indigente.Como se sentia ainda vlido, oferecera-se para o lugar de porteiro. Observei que,

    no fim de contas, era tambm um pensionista. Disse-me que no. Tinha jreparado na forma como se referia a eles , aos outros , e mais raram enteaos velhos , falando de pensionistas, alguns dos quais no eram mais velhos doque ele. Mas no era a mesma coisa, evidentemente. Como era porteiro tinhadireitos sobre os outros, em certa medida.

    A enfermeira entrou nesta altura. A tarde cara muito depressa. Muitodepressa, a noite escurecera, por detrs da vidraa. O porteiro manejou ointerruptor e eu fiquei por momentos cego pelo aparecimento sbito da luz.Convidou-me para ir j antar ao refeitrio. Mas eu no tinha fome.

    Ofereceu-se, ento, para me trazer uma chvena de caf com leite. Comogosto muito de caf com leite, aceitei, e ele voltou alguns instantes depois comuma bandeja. Bebi. Tive ento vontade de fumar. Mas hesitei, porque no sabiase o podia fazer diante da me. Pensei, e conclu que isso no tinha importncianenhuma. Ofereci um cigarro ao porteiro e fumam os os dois.

    A certa altura, disse-me: No sei se sabia, mas os amigos da senhora suame vm tambm velar. o costume. Tenho que ir buscar cadeiras e caf.Perguntei-lhe se no se poderia apagar uma das lmpadas. O reflexo da luz nas

    paredes brancas cansava-me. Respondeu-me que no era possvel. A instalaofora assim montada: ou tudo ou nada. A partir da, no lhe prestei muita ateno.

    Saiu, voltou, arrumou as cadeiras nos seus lugares. Numa delas, empilhou aschvenas em volta de uma cafeteira. Depois sentou-se em frente de mim, do

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    9/65

    outro lado da me. A enfermeira estava ao fundo, de costas voltadas. No via oque ela estava a fazer. Mas, pelo movimento dos braos, parecia-me que faziamalha.

    A temperatura era agradvel, o caf confortara-me e pela porta aberta,entrava um cheiro de noite e de flores. Creio que adormeci por alguns instantes.

    Acordei, porque algum roou por mim. Por ter fechado os olhos, a salapareceu-me ainda mais branca. Na minha frente no havia um a nica sombra ecada objeto, cada ngulo, todas as curvas se desenhavam com uma pureza queme fazia mal aos olhos.

    Foi nesse momento que entraram os amigos da minha me. Ao todo, eramuns dez, e passavam em silncio, nesta luz to crua. Sentaram -se sem que uma scadeira rangesse. Eu via-os como nunca vira ningum at ento e nem um

    pormenor das suas caras ou dos seus fatos me escapava. No os ouvia, noentanto, e custava-me a acreditar que tivessem realidade. Quase todas asmulheres usavam um avental e o cordo que as apertava na cintura, mais lhesrealava a barriga inchada. Nunca havia notado que as barrigas das mulheres

    velhas eram to grandes.Os homens eram quase todos muito negros e traziam bengalas. O que me

    impressionava nas suas fisionomias, era que eu no lhes via os olhos, masunicamente uma luz sem brilho no meio de um ninho de rugas. Quando sesentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabea embaraadamente, os

    beios comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse percebido ao certo seme estavam a cumprimentar, ou se era apenas um tic. Julgo que mecumprimentavam. Foi nesse momento que reparei que estavam todos em frentede mim, balanando as cabeas, em volta do porteiro. Por instantes tive a

    impresso de que estavam ali para me j ulgar.Pouco depois, uma das mulheres comeou a chorar. Estava na segunda fila,escondida pelas outras, e eu no a via muito bem. Chorava dando pequenosgritos, regularmente: parecia-me que nunca mais pararia de chorar. Dava a ideiaque os outros no ouviam. Estavam encolhidos, tristes e silenciosos. Olhavam ocaixo, a bengala ou qualquer coisa, e no tiravam os olhos desse nico objeto. Amulher continuava a chorar. Eu estava muito admirado porque no a conhecia.Gostaria de no a ouvir mais. No o ousava dizer, porm. O porteiro debruou-sesobre ela, fa lou-lhe, m as ela sacudiu a cabea, disse qualquer coisa, e continuoua chorar com a mesma regularidade. O porteiro veio ento para o meu lado.Sentou-se ao p de mim.

    Ao fim de um longo momento, informou-me, sem me olhar: Era muitoamiga da senhora sua me. Diz que era a nica amiga que tinha e que agora, ficasem ningum.

    Ficam os assim durante longos instantes. Os suspiros e soluos da mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim, calou-se.

    Eu j no tinha sono, mas estava cansado e doam-me os rins.Era o silncio de todas aquelas pessoas, que agora me era penoso. De tempos

    a tempos, ouvia apenas um rudo estranho e no conseguia compreender de que

    se tratava. Acabei por adivinhar que alguns dos velhos chupavam o interior dasbochechas, deixando escapar estes barulhos esquisitos. Estavam to absortos nos

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    10/65

    seus pensamentos, que nem davam por isso.Tinha mesmo a impresso de que esta morta, ali deitada, nada significava

    para e les. Mas creio agora que se tratava de um a impresso falsa.Tomamos todos caf, servido pelo porteiro. Em seguida, no sei mais nada. A

    noite passou. Lembro-me de que, a certa altura, abri os olhos e reparei que osvelhos dormiam dobrados sobre si mesmos, com exceo de um nico que, dequeixo encostado s costas das mos, e com estas agarradas bengala, meolhava fixam ente, como se estivesse espera de me ver acordar. Depois, voltei aadormecer. Acordei porque os rins me doam cada vez mais. O dia surgia poucoa pouco atravs da vidraa. Logo a seguir, um dos velhos acordou e tossiu muito.

    Cuspia num grande leno de quadrados e cada um dos escarros era como queum arranque.

    Acordou os outros e o porteiro disse-lhes que se deviam ir embora.Levantaram-se.Esta viglia incmoda tinha-lhes dado s caras uma cor de cinza. sada, e

    com grande espanto meu, vieram-me todos apertar a mo como se esta noite

    em que no havamos trocado uma s palavra, tivesse aumentado a nossaintimidade. Estava cansado. O porteiro levou-me ao quarto dele, e pude lavar-m ee pentear-me. Voltei a tomar caf com leite, que era timo.

    Quando sa, o dia estava completamente levantado.Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o cu estava cheio de

    tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheirode sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. H muito tempo que no vinhaao campo e teria tido imenso prazer em passear, se no fosse a me. Mas pus-me espera no ptio, debaixo de uma rvore.

    Respirava o odor da terra fresca e j no tinha sono. Pensei nos colegas doescritrio. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para mim, erasempre a hora mais difcil.

    Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um sino que tocava no interior dosedifcios distraiu-me.

    Houve uma confuso de movimentos por detrs das janelas, e depois tudo seacalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os ps. O

    porteiro atravessou o ptio e veio dizer que o diretor estava minha espera. Fuiao escritrio deste.

    Mandou-me assinar vrios documentos. Reparei que estava vestido de preto,com calas de fantasia.

    Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: Os empregados da agnciafunerria j c esto. Vou-lhes dizer para fecharem o caixo. Quer ver a suame pela ltima vez? Disse que no.

    Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:Bigeac, diga aos homens que podem ir.Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro... Agradeci-lhe: Sentou-se por

    detrs da secretria e cruzou as pernas. Informou-me que estaramos ss, eu eele, apenas com a presena da enfermeira de servio. Em princpio, os

    pensionistas no deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: umaquesto de humanidade, observou. Mas excepcionalmente, dera autorizao

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    11/65

    para seguir o prstito a um velho am igo da minha me: Toms Perez. Aqui, odiretor sorriu. Disse-me: No sei se compreende, um sentimento um poucoinfantil. Mas ele e sua me andavam sempre j untos.

    No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: a sua noiva.Ele ria. Isto agradava-lhes. E o caso que a morte da sua me afetou-o

    muito. Achei melhor no lhe recusar a autorizao. Mas, a conselho do mdico,proibi-lhe a velada de ontem.

    Ficamos calados durante bastante tempo. O diretor levantou-se e olhou pelaanela do escritrio.

    A certa altura observou: J chegou o padre de Marengo. Vem adiantado.Preveniu-me que so precisos pelo menos trs quartos de hora para chegar igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos.

    Diante do edifcio, estava o padre e dois aclitos.Um deles segurava um turbulo de incenso e o padre abaixava-se para

    regular o comprimento da cadeia de prata.Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por meu filho e disse-

    me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.Vi de relance que os parafusos do caixo estavam apertados e que havia na

    sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o diretor disse-me que ocarro estava espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas oraes. A

    partir confuso de movimentos por detrs das j anelas, e depois tudo se acalmou.O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os ps. O porteiroatravessou o ptio e veio dizer que o diretor estava minha espera. Fui aoescritrio deste. Mandou-me assinar vrios documentos. Reparei que estavavestido de preto, com calas de fantasia. Pegou no telefone e dirigiu-me a

    palavra: Os empregados da agncia funerria j c esto. Vou-lhes dizer parafecharem o caixo. Quer ver a sua me pela ltima vez? Disse que no.Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone: Figeac, diga aos homens que

    podem ir.Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro.Agradeci-lhe: Sentou-se por detrs da secretria e cruzou as pernas.

    Informou-me de que estaramos ss, eu e ele, apenas com a presena daenfermeira de servio. E m princpio, os pensionistas no deviam assistir aosenterros. Deixava-os apenas velar: uma questo de humanidade, observou.Mas excepcionalmente, dera autorizao para seguir o prstito a um velho amigoda minha me: Toms Perez. Aqui, o diretor sorriu. Disse-me: No sei secompreende, um sentimento um pouco infantil. Mas ele e a sua me andavamsempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: a suanoiva.

    Ele ria. Isto agradava-lhes E o caso que a m orte da sua me afetou-o muito.Achei melhor no lhe recusar a autorizao.

    Mas, a conselho do mdico, proibi-lhe a velada de ontem.Ficamos calados durante bastante tempo. O diretor levantou-se e olhou pela

    anela do escritrio. A certa altura observou: J chegou o padre de Marengo.

    Vem adiantado.Preveniu-me que so precisos pelo menos trs quartos de hora para chegar

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    12/65

    igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos.Diante do edifcio, estava o padre e dois aclitos. Um deles segurava um

    turbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da cadeiade prata. Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por meu filho edisse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.

    Vi de relance que os parafusos do caixo estavam apertados e que havia nasala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o diretor disse-me que ocarro estava espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas oraes.

    A partir deste momento, foi tudo muito rpido. Os homens dirigiram-se para ocaixo. O padre, os dois aclitos, o diretor e eu, samos. Diante da porta, haviauma senhora que e u no conhecia: o Sr. Meursault, disse o diretor. No escuteio nome da senhora e compreendi apenas que era enfermeira delegada. Sem umsorriso, inclinou uma cara ossuda e comprida. Depois, afastam o-nos para deixar

    passar o corpo.Seguimos os homens e samos do asilo. Diante da porta, estava um carro

    comprido e reluzente. Ao p do carro, estavam o mestre de cerimnias,

    homenzinho vestido com um traje ridculo, e um velho com um ar embaraado.Percebi que era o Sr. Perez. Tinha um chapu mole, de copa arredondada e abaslargas (tirou-o da cabea quando o caixo atravessou a porta), um fato cujascalas caam sobre os sapatos e uma gravata preta, pequena demais, para a suacamisa com um grande colarinho branco. Os beios tremiam-lhe, por debaixo deum nariz semeado de pontos negros. Os cabelos brancos, bastante finos,deixavam-lhe passar umas curiosas orelhas balouantes e mal acabadas, cujacor de um vermelho sanguneo nesta cara to plida, me impressionou.

    O mestre de cerimnias indicou-nos os nossos lugares. O padre ia frente do

    carro. Em volta deste, os quatro homens.Atrs, o diretor e eu; fechando o cortejo, a enfermeira delegada e o Sr. Perez.O cu estava j cheio de sol. Comeava a pesar sobre a terra e o calor

    aumentava rapidamente: No sei por que motivo esperam os tanto tempo antes deprincipiarmos a andar. Tinha calor, com o meu fato escuro. O velhinho quevoltara a cobrir a cabea, tirou outra vez o chapu. Voltara-me um pouco para olado dele e olhava-o, quando o diretor o trouxe conversa.

    Disse-me que, muitas vezes, a minha me e o Sr. Perez iam passear noiteat aldeia, acompanhados por uma enferm eira.

    Eu olhava os campos em meu redor. Atravs das linhas de ciprestes quelevavam s colinas perto do cu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e

    bem desenhadas, eu compreendia a minha me. A noite, neste stio, devia sercomo que um melanclico perodo de trguas.

    Hoje, o sol excessivo que fazia estrem ecer a paisagem, tornava-a deprimentee inumana.

    Iniciamos o caminho. Reparei ento que o Sr. Perez coxeava ligeiramente.Pouco a pouco, o carro ia mais depressa e o velho perdia terreno: Um doshomens que rodeava o carro tambm se deixou ultrapassar e seguia agora aomeu nvel. Eu estava admirado pela rapidez com que o sol subia no horizonte. Dei

    por que o ar era a muito cruzado pelo canto dos insetos e pelos estalidos daservas. O suor caa-me pela cara abaixo.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    13/65

    Como no trazia chapu, limpava-me com um leno. O empregado daagncia disse-me ento qualquer coisa que no ouvi.

    Enquanto, com a mo esquerda, limpava a testa com um leno, com a modireita levantava a pala do bon. Disse-lhe: O qu? Ele repetiu, apontando parao cu: Est forte. Eu disse: Sim. Pouco depois, perguntou-me: a sua me,quem ali vai? Voltei a dizer: Sim. Era muito velha? Respondi:

    Assim, assim, porque no sabia ao certo quantos anos tinha.O homem calou-se. Voltei-me e vi o velho Perez uns cinquenta metros atrs

    de ns. Com o chapu na mo, apressava-se o mais que podia: Olhei tambmpara o diretor. Andava com muita dignidade, sem gestos inteis. Algumas gotasde suor escorriam-lhe pela testa, mas no as enxugava.

    Parecia-me que o cortejo ia um pouco mais depressa. Em volta de m im, erasempre a mesma paisagem luminosa, inundada de sol.

    O brilho do cu era insustentvel. Em dado momento, passam os por um troode estrada que havia sido arranjado h pouco. O sol derretia o alcatro. Os psenterravam-se, deixando aberta a carne luzidia do alcatro. Por cima do carro, o

    chapu do cocheiro, de couro escuro, parecia ter sido moldado na mesma lamanegra. Sentia-me um pouco perdido entre o cu azul e branco e a monotoniadestas cores, negro pegajoso do alcatro aberto, negro bao dos fatos, negrolacado do carro.

    Tudo isto, o sol, o cheiro de borracha e de leo do automvel, o do verniz e odo incenso, o cansao de uma noite de insnia, me perturbava o olhar e as ideias.Voltei-me uma vez mais: o velho Perez apareceu-me muito ao longe, perdidonuma nuvem de calor, e depois no o tornei a ver. Procurei-o com o olhar e vique abandonara a estrada e metera pelos campos dentro.

    Reparei que, na minha frente, a estrada virava para um lado.Compreendi que o Perez, conhecendo a terra, cortava a direito para nosapanhar. Na curva, conseguira juntar-se conosco.

    Em seguida voltamos a perd-lo. Tomou ainda vrios atalhos atravs doscampos. Quanto a mim, sentia o sangue latejar-me nas fontes.

    Depois tudo se passou com tanta rapidez, tanta certeza, tanta naturalidade, que no me lembro de nada. Uma coisa, apenas: entrada da aldeia, a enfermeira

    delegada falou-me.Possua uma voz singular, que no acertava com a cara, uma voz trmula e

    melodiosa. Disse-me: Se vamos muito devagar, arriscamo-nos a uma insolao.Mas se vam os muito depressa, transpiramos e na igrej a apanhamos calor e frio.Tinha razo.

    Era um beco sem sada. Conservei ainda algumas imagens deste dia: porexemplo, a cara do Perez quando, pela ltima vez, se juntou conosco prximo daaldeia. Grossas lgrimas de enervamento e de tristeza corriam-lhe pela caraabaixo. Mas, por causa das rugas, no caam. Dividiam-se, juntavam-se eformavam uma mscara de gua nessa cara arruinada. Houve ainda a igreja eos aldees nos passeios, os gernios vermelhos nos jazigos do cemitrio, odesmaio do Perez (dir-se-ia um boneco partido), a terra cor de sangue que

    atiravam para cima do caixo da me, a carne branca das razes que se lhesuntavam, ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um caf, o

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    14/65

    incessante roncar do motor, e a minha alegria quando o autocarro entrou noninho de luzes de Argel e que pensei que me ia deitar e dormir durante dozehoras.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    15/65

    Captulo II

    Ao acordar, compreendi por que motivo o meu chefe mostrara um araborrecido quando lhe pedi os dois dias de licena: hoje era sbado. Tinha-o, porassim dizer, esquecido, mas ao levantar-me, esta ideia viera-me cabea. Ochefe, muito naturalmente, pensou que eu disporia assim de quatro dias de

    feriado contando com o domingo, e isso no lhe podia dar prazer de espcienenhuma. Mas por um lado no culpa minha, se o enterro foi ontem em vez deser hoje, e por outro lado, teria tido de qualquer maneira o sbado e o domingolivres. Isto no me impede, c laro, de compreender.

    Custou-me a levantar, pois estava cansado do dia de ontem.Enquanto fazia a barba, perguntei a mim mesmo o que iria fazer e decidi ir

    tomar um banho de mar. Tomei um elctrico e dirigi-me para o estabelecimentode banhos do porto. Uma vez a, mergulhei para a gua. Havia muitos rapazes eraparigas.

    Encontrei na gua a Maria Cardona, uma antiga datilgrafa do escritrio, queeu desej ara em tempos. Ela tambm, julgo eu.Mas despediu-se pouco depois e no tivemos tempo.Ajudei-a a subir para uma boia e, neste movimento, toquei-lhe nos seios.

    Estava eu ainda na gua, e j ela se estendia na boia de barriga para o ar.Voltou-se para mim. Tinha os cabelos a carem-lhe para os olhos e sorria.

    Subi para o lado dela.Estava um dia timo e, como de brincadeira, deixei cair a cabea para trs, e

    descansei-a em cima dela. No disse nada e eu deixei-me ficar assim: Tinha ocu inteiro nos olhos, e o cu estava azul e dourado. Debaixo da cabea, sentia ocorpo de Maria latejar suavemente. Ficamos muito tempo na boia, meioadormecidos. Quando o sol se tornou forte de mais, ela m ergulhou e eu tambm.Agarre i-a, passei-lhe um brao em volta da c intura e nadamos os dois juntos. Elaria muito.

    No cais, enquanto nos secvam os, disse-m e: Estou mais queimada do quevoc. Perguntei-lhe se queria vir comigo noite ao cinema. Voltou a rir e disseque tinha vontade de ver um filme com o Fernandel. Depois de vestidos, ficouadmirada de me ver com uma gravata preta e perguntou-me se eu estava deluto. Disse-lhe que a minha me tinha morrido. Como queria saber a quanto

    tempo, respondi-lhe: Morreu ontem. Esboou um movimento de recuo, masno fez nenhuma observao. Tive vontade de lhe dizer que a culpa no foraminha, mas detive-me porque m e pareceu j ter dito isso mesmo ao meu chefe.Isto nada queria dizer. De qualquer modo, fica-se sempre com um ar um poucoculpado.

    noite, Maria esquecera-se de tudo. O filme tinha momentos engraados eoutros realmente idiotas. Encostava a minha perna dela. Acariciava-lhe osseios. Para o fim do espetculo beijei-a, mas mal. sada, veio a minha casa.

    Quando acordei fora-se j embora. Explicara-me que tinha de ir visitar uma

    tia. Pensei que era domingo, o que me aborreceu: no gosto dos Domingos. Entovoltei-me na cama, procurei na almofada o cheiro de sal que os cabelos de

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    16/65

    Maria ali tinham deixado e dormi at s dez horas: Fumei depois alguns cigarros,sem me levantar, at ao meio-dia. No queria ir como de costume almoar aoCeleste porque me fariam com certeza perguntas e eu detesto que me faam

    perguntas. Cozi eu prprio uns ovos e comi-os assim mesmo, sem po porque jno havia nenhum e porque no queria descer para o ir comprar.

    Depois do almoo aborreci-me um pouco, e vagueei pela casa.Quando a me c estava, era cmoda. Agora grande demais para mim e

    tive que transportar a m esa da sala de j antar para o quarto.Vivo apenas nesta diviso, rodeado pelas cadeiras de palha um pouco gastas,

    pelo arm rio cujo espelho est amarelecido, pela cmoda e pela camaencerada. Mais tarde, para fazer alguma coisa, peguei num velho jornal e pus-me a ler.

    Recortei um anncio de sais de Kruschen e colei-o num velho caderno ondeguardo as coisas que me divertem nos jornais.

    Lavei tambm as mos e, por fim, fui para a varanda.O meu quarto d para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No

    entanto, o pavimento estava pastoso, as pessoas eram poucas e, para mais, iamcom pressa. Passavam primeiro famlias de passeio, dois midos de fato marujo, com cales at ao joelho, um pouco embaraados nos seus trajes dever-a-Deus, uma menininha com um grande laarote cor-de-rosa e sapatos

    pretos envernizados. Atrs deles, uma me enorme, com um vestido de sedacastanho, e o pai, um homenzinho franzino que eu conheo de vista. Trazia umchapu de palha, um lacinho e uma bengala na mo. Vendo-o com a mulher,

    percebi porque que, no bairro, se dizia que era uma pessoa distinta. Um poucomais tarde, passaram rapazes do bairro, cabelos penteados com fixador, gravata

    vermelha, casaco muito cintado, com uma algibeira bordada e sapatos de pontaquadrada. Pensei que iam a um dos cinemas da baixa.Por isso que partiam to cedo, rindo tanto e correndo para o elctrico.Depois deles, a rua ficou pouco a pouco deserta.Os espetculos, julgo eu, tinham principiado em toda a parte. S se viam na

    rua os comerciantes e os gatos.O cu estava puro, mas sem brilho, por cima das rvores ao longo da rua. No

    passeio da frente, o vendedor de tabaco tirou uma cadeira, instalou-a diante daporta e ps-se a cavalo nela, com os dois braos nas costas. Os elctricos, hpouco cheios, iam quase vazios. No pequeno caf Pierrot ao lado da tabacaria,o criado varria a serradura na sala deserta. Era realmente domingo. Peguei naminha cadeira e coloquei-a como a do vendedor de tabaco porque me pareceumuito mais cmodo

    Fumei dois cigarros, entrei para ir buscar um bocado de chocolate e volteipara o comer janela. Pouco depois o cu escureceu e julguei que amos teruma chuvada de Vero. Pouco a pouco, no entanto, o cu foi-se descobrindo.Mas a passagem das nuvens deixara na rua como que uma promessa de chuvaque a tornara mais sombria. Fiquei ali muito tem po, a olhar para o cu.

    s cinco horas, os elctricos chegaram ruidosamente. Traziam do estdio

    cachos de espectadores pendurados nos degraus e nas pegas das portas.Os elctricos seguintes transportavam os jogadores, que reconheci pelas

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    17/65

    malinhas que traziam na mo. Gritavam e cantavam aos berros que o seu clubeera o melhor. Muitos deles fizeram-me sinais. Um deles, gritou-me mesmo:Demos cabo deles! E, sacudindo a cabea, eu disse: Sim, sim. A partir destemomento, os automveis comearam a afluir. O dia m udou ainda um pouco. Porcima dos tetos, o cu tornou-se avermelhado e, com o nascer da noite, as ruasganharam animao. Os mesmos transeuntes foram voltando pouco a pouco.

    Reconheci o senhor distinto no meio dos outros. As crianas choravam oudeixavam-se arrastar: Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram

    para a rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes de h pouco tinhamgestos mais decididos do que o costume e eu calculei que haviam visto um filmede aventuras. Os que regressavam dos cinemas da cidade chegaram um poucomais tarde. Pareciam mais srios.

    Ainda riam, mas de tempos a tempos. Tinham um ar cansado e pensativo.Deixaram-se ficar na rua, dando de um lado para o outro no passeio do lado del. As raparigas do bairro, de cabelos soltos, passeavam de brao dado. Osrapazes passavam por elas e dirigiam-lhes gracejos, elas riam-se e voltavam a

    cabea para o lado. Algumas, minhas conhecidas, acenaram-me com a mo.Os candeeiros da rua acenderam-se bruscamente e empalideceram as

    primeiras estrelas que subiam na noite. Senti os olhos fatigados, de tanto olhar ospasseios, com o seu carregam ento de homens e de luzes. As lmpadas tornaramos pavimentos luzidios, e os elctricos, a intervalos regulares, lanaram os seusreflexos sobre uns cabelos brilhantes, um sorriso ou uma pulseira de prata. Poucodepois, os elctricos fizeram-se mais raros, a noite escureceu por sobre asrvores e os candeeiros, e o bairro esvaziou-se insensivelmente, at altura emque o primeiro gato atravessou lentamente a rua outra vez deserta. Pensei ento

    que era preciso jantar.Doa-me um bocadinho o pescoo por ter ficado tanto tempo apoiado sobreas costas da cadeira. Fui rua comprar po e pastis, cozinhei eu mesmo o quetinha em casa e comi em p.

    Quis fumar outro cigarro janela, mas o ar tinha refrescado e eu estava comum pouco de frio. Fechei os vidros e, volta, vi no espelho um bocado da mesaonde a lmpada de lcool estava junto a uns pedaos de po.

    Pensei que passara mais um domingo, que a me j fora a enterrar, que iaregressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava tudo na m esma.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    18/65

    Captulo III

    Hoje trabalhei muito, no escritrio. O chefe foi am vel.Perguntou-me se eu no estava cansado e quis saber a idade da me. Para

    no me enganar, respondi Uns sessenta e tal, e, no sei por que, ficou com umar aliviado, um ar de assunto arrumado. Havia imensas cartas a responder,

    amontoadas sobre a minha secretria e tive que lhes dar seguimento. Antes dedeixar o escritrio para ir almoar, lavei as mos. Ao meio-dia, gosto sempre deo fazer, tarde, no tanto, porque a toalha rolante j est muito mida: serviudurante todo o dia.

    Uma vez fiz esta mesma observao ao chefe. Respondeu-me que eraaborrecido, mas que se tratava de um pormenor sem importncia. Sa um poucomais tarde, ao meio-dia e meia hora, com o Manuel, que trabalha na expedio.O escritrio d para o m ar e perdemos alguns instantes a olhar para os barcos decarga, no porto ardente de sol. Neste momento passou um camio, fazendo um

    enorme barulho de correntes e de exploses.O Manuel perguntou-me se aproveitvamos e eu comecei a correr. Ocamio ultrapassou-nos e lanamo-nos a toda a velocidade atrs dele. Sentia-meinundado de poeira e de rudo. No via nada e sentia apenas este impulsodesordenado da corrida, no meio de guindastes e de mquinas, de mastros quedanavam no horizonte e de cascos de navios. Fui o primeiro a agarrar-me eatirei-me num salto. Depois, aj udei o Manuel a sentar-se. Estvam os sem flego,o camio ia aos saltos no pavimento irregular do cais, por entre a poeira e o sol.O Manuel ria-se a bandeiras despregadas.

    Chegamos todos suados ao restaurante do Celeste, que l estava comosempre, com a sua barriga gorda, o seu avental e os seus bigodes brancos.Perguntou-me se eu me sentia bem.

    Disse-lhe que sim e que estava com fome. Comi muito depressa e tomei umcaf. Depois voltei para casa, dormi um bocado porque bebera vinho demais e,ao acordar, tive vontade de fumar.

    Fazia-se tarde e corri para apanhar um elctrico. Trabalhei toda a tarde. Faziamuito calor no escritrio e tarde, sada, gostei de passear lentamente ao longodo cais. O cu estava verde e eu sentia-me contente. Mas apesar disso fuidiretam ente para casa, pois queria cozer umas batatas.

    Ao subir, na escada escura, choquei com o velho Salamano, meu vizinho deandar. Ia com o co. H oito anos que no se largam. O rafeiro tem uma doenade pele que lhe fez cair todo o pelo e que o cobre de manchas e de crostas. fora de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamanoacabou por ficar parecido com o co. Quanto ao co, tomou do dono umaespcie de ar curvado, focinho para a frente e pescoo estendido. Parecem damesma raa, e no entanto detestam-se. Duas vezes por dia, s onze e s seishoras, o velho leva o co a passear. Fazem h oito anos o mesmo itinerrio.

    Seguem ao longo da rua de Lyon, o co a puxar pelo homem at o fazer

    tropear. Pe-se ento a bater no bicho e a insult-lo.O co roja-se cheio de medo e deixa-se arrastar. Nesse momento o velho

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    19/65

    quem tem que puxar. Quando o co se esquece, pe-se outra vez a puxar e outra vez espancado e insultado. Ficam ento os dois no passeio e olham-se, o cocom terror, o homem com dio. assim todos os dias. Quando o co quer fazeras suas necessidades, o velho no lhe d tempo e arrasta-o: Se por acaso o cofaz no quarto, tambm lhe bate. Isto dura h oito anos. O Celeste diz que uma pena, mas no fundo ningum pode saber. Quando encontrei o Salamanonas escadas, ia a insultar o co: Bandido! Co nojento! Eu disse: Boas noites,mas o velho continuava a insult-lo: Perguntei-lhe o que que o co tinha feito.

    o m e respondeu. Dizia apenas:Bandido! Co nojento!. Percebi que, debruado sobre o animal, estava a

    arranjar qualquer coisa na coleira. Falei mais alto. Ento, sem se voltar para trs,respondeu-me com uma espcie de raiva reprimida: Est sempre aqui!.Depois foi-se embora puxando pelo co, que chorava e se deixava arrastar.

    Neste instante preciso, entrou o meu segundo vizinho de andar. No bairro,corre o boato que vive custa das mulheres.

    Mas quando lhe perguntam qual o emprego que tem, responde que

    lojista. Em geral, no gostam dele. Mas fala muitas vezes comigo e s vezesentra em minha casa, porque sou dos poucos que o escutam. Acho que diz coisascom muito interesse.

    Alis, no tenho nenhum motivo para no lhe falar. Chama-se RaimundoSints. baixo, com uns ombros largos e um nariz de pugilista. Anda semprevestido muito corretamente. Tambm ele diz, ao falar do Salamano: uma

    pena! Perguntou-me se aquilo no me incomodava e eu respondi-lhe que no.Subimos e eu ia deix-lo, quando me disse: Tenho l em casa vinho e

    chourio. No quer vir petisc-lo comigo? Pensei que isso me evitaria ter que

    fazer o jantar e aceitei. A casa dele compe-se apenas de um quarto e de umacozinha sem janela. Por cima da cama, veem-se um anjo de estuque, branco ecor-de-rosa, retratos de campees e duas ou trs fotografias de m ulheres nuas. Oquarto estava sujo. e a cama por fazer.

    Primeiro, acendeu a lmpada de petrleo, depois colocou na m o direita umaligadura pouco limpa.

    Perguntei-lhe o que que tinha na mo. Respondeu-me que jogara pancadana rua com um tipo que se metera com ele.

    No sei se sabe, senhor Meursault, disse, no que eu sej a mau, o quesou nervoso. O outro disse-me: Se s homem, desce do elctrico. Respondi-lhe: V, sossega, tem calma.

    Disse-me que eu no era um homem. Ento desci e disse-lhe: melhor quete cales, ou parto-te a cara. Respondeu-me:

    Sempre queria ver. Ento dei-lhe um soco. Caiu. Quando eu o ia a aj udar alevantar, comeou do cho a dar-me pontaps.

    Ento dei-lhe uma joelhada e dois bicanos. Tinha a cara cheia de sangue.Perguntei-lhe se queria mais. Disse que no.

    Entretanto, Sints ia enrolando a ligadura. Eu estava sentado na cama. Disse-me: Como v, no fui eu que comecei. Ele que quis. Reconheci que era

    verdade. Declarou-me ento que, justamente, queria pedir-me um conselho apropsito deste assunto, que eu sim, era um homem, que conhecia a vida, que

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    20/65

    podia aj ud-lo e que, em seguida, ficaria meu amigo. No respondi e eleperguntou-me se eu queria ser amigo dele. -

    Repliquei que tanto me fazia: ele ficou com um ar contente.Tirou o chourio de um armrio, assou-o no fogo, e ps em cima da mesa

    copos, pratos, talheres e duas garrafas de vinho.Tudo isto sem dizer uma palavra. Depois instalamo-nosEnquanto comia, comeou a contar-me a histria toda. Ao princpio, hesitava

    um bocadinho. Conheci uma senhora... Essa senhora... era minha... amante, porassim dizer... O homem com quem lutara era irmo dessa mulher. Disse-meque a tivera por sua conta. No respondi nada, mas ele sentiu-se na necessidadede acrescentar imediatamente que sabia muito bem os boatos que corriam no

    bairro, mas que s respondia perante a sua conscincia, e que tinha a profisso delojista.

    Voltando ao assunto, disse ele, a certa altura percebi que qualquer coisa noogava certo. Dava-lhe dinheiro suficiente para viver. Pagava-lhe mesmo o

    quarto e ainda vinte francos por dia para alimentao. Trezentos francos para o

    quarto, seiscentos francos para a comida, um par de meias de vez em quando,eram bem uns mil francos por ms. E Sua Excelncia no trabalhava!

    Mas dizia-me que era pouco, que o que eu lhe dava no era suficiente. E noentanto, eu dizia-lhe: Porque que no arranjas um trabalho, nem que seja pormeio dia? J me aliviavas um bocado. Este ms comprei-te um vestido, dou-tevinte francos por dia, pago-te a renda e tu, passas as tardes a tomar caf com asamigas. D-lhes o caf e o acar. Portei-me bem contigo e tu no me pagas namesma m oeda. Mas ela no trabalhava, dizia que no era capaz e foi assim que

    percebi que me andava a enganar.

    Contou-me que lhe encontrara dentro da carteira um bilhete de lotaria e queela no soubera explicar como arranjara dinheiro para o comprar. Mais tarde,encontrara-lhe uma senha de casa de penhores, provando que empenhara duas

    pulseiras.At a, ignorara a existncia dessas pulseiras. Percebi perfeitam ente que aqui

    andava gato. Ento abandonei-a. Mas primeiro cheguei-lhe. E disse-lhe meiadzia de verdades.

    Disse-lhe que o que ela queria, era divertir-se. E disse-lhe tambm, Sr.Meursault:

    No vs que todos tm inveja da felicidade que te dou? Ainda acabars porter saudades da felicidade que tinhas...

    Espancara-a at a deixar cheia de sangue. Antes disso, no lhe batia. Ou poroutra batia-lhe, mas ternamente, por assim dizer. Chorava um bocadinho. Eufechava as persianas e o caso terminava como sempre. Mas agora, foi a srio. Equanto a mim, ainda no a castiguei bastante.

    Explicou-me nesta altura que era por isto que precisava de um conselho.Calou-se para regular a torcida do candeeiro. Eu, continuava a ouvi-lo. Beberaquase um litro de vinho e sentia muito calor nas fontes. Como os meus se haviamacabado, fumava os cigarros do Raimundo. Passavam na rua os ltimos eltricos,

    levando com eles os rudos agora longnquos do bairro.Raimundo continuou a falar. O que o aborrecia, era ainda sentir necessidade

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    21/65

    fsica dela. Mas queria castig-la.Primeiro pensara lev-la para um hotel e chamar a polcia de costumes para

    provocar um escndalo e ser-lhe passada uma carta de profissional. Depois,dirigira-se a uns amigos que pertenciam a um meio duvidoso. Estes no tinhamtido nenhuma ideia. E, como me sublinhava Raimundo, valia realmente a penaserem desse meio, para nem ideias terem! Dissera-lhes isso mesmo e elestinham-lhe ento proposto marc-la. Mas no era ainda o que ele queria.Precisava de pensar muito. Mas antes, queria perguntar-me uma coisa.

    De resto, antes de mo perguntar, queria saber o que eu pensava desta histriatoda. Respondi que no pensava nada, mas que era muito interessante.Perguntou-me se eu achava que ela o tinha enganado. A mim, parecia-me bemque sim. Se achava que ele a devia castigar e o que faria eu, se estivesse no seulugar. Disse-lhe que nunca se podia saber, mas compreendia que ele a quisessecastigar. Bebi ainda um pouco de vinho. Ele acendeu um cigarro e contou-me aideia que tinha em mente.

    Queria escrever-lhe uma carta dando uma no cravo e outra na ferradura.

    Depois, quando ela voltasse, teria relaes com ela, como habitualmente e,mesmo no fim, cuspir-lhe-ia na cara, e p-la-ia na rua. Achei que,efetivamente, seria um bom castigo. Em seguida disse-me que no se sentiacapaz de escrever a carta e que pensara em mim para a redigir. Como eu nodizia nada, perguntou-me se me importava de o fazer agora mesmo e eurespondi que no.

    Depois de beber um copo de vinho, Raimundo levantou-se.Afastou os pratos e os restos de chourio frio que tnhamos deixado. Limpou

    cuidadosamente a toalha encerada da mesa.

    Tirou de uma gaveta da mesa de cabeceira uma folha de papel quadriculado,um sobrescrito amarelo, uma pequena caneta vermelha e um tinteiro quadradode tinta roxa. Quando me disse o nome da mulher, percebi que era Moura.Escrevi a carta.

    Escrevi-a um pouco ao acaso, mas apliquei-me o mais possvel paracontentar Raimundo, pois no tinha razo nenhuma para no o contentar. Depoisli a carta em voz alta.

    Escutou-me a fumar, acenando com a cabea, e em seguida pediu-me paraa reler. Disse: J calculava que tu conhecias bem a vida. No percebi a

    princpio que me estava a tratar por tu. S dei por isso, quando me declarou:Agora, ficas meu amigo. Repetiu a frase e eu respondi: Est bem .

    Era-me indiferente ser ou no amigo dele e, como isso parecia dar-lhegosto... Fechou o sobrescrito e acabamos o vinho que ainda havia. Depoisficamos uns momentos a fumar, sem dizer uma palavra. L fora tudo estavacalmo e ouvimos o rudo de um automvel que passava. Eu disse: tarde.

    Raimundo era da mesma opinio. Observou que o tempo passava depressa e ,em certo sentido, era verdade. Estava com sono, mas custava-me levantar-me.Devia estar com um ar cansado, porque o Raimundo me disse que devia ter moem mim.

    Ao princpio, no compreendi. Explicou-me ento que soubera da morte daminha me, mas que era uma coisa que, mais dia menos dia, tinha que

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    22/65

    acontecer. Era essa, tambm, a minha opinio.Levantei-me e Raimundo deu-me um forte aperto de mo, dizendo que entre

    homens, compreendamo-nos sempre. Ao sair de casa dele fechei a porta efiquei uns instantes s escuras, no patamar. A casa estava calma e das

    profundezas da gaiola das escadas, subia um sopro mido e obscuro. Ouviaapenas o sangue latej ando-me nos ouvidos e deixei-me a li ficar, imvel.

    Mas no quarto do velho Salamano, o co gemeu surdamente. No coraodesta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascidado silncio.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    23/65

    Captulo IV

    Trabalhei muito, durante toda a semana.Raimundo veio visitar-me, dizendo que mandara a carta. Fui duas vezes ao

    cinema com o Manuel, que nem sempre compreende l muito bem o que sepassa na tela. Preciso de lhe ir explicando o filme. Ontem foi sbado e, como

    ficara combinado, a Maria veio a minha casa. Desejei-a intensamente, porquetrazia um vestido s riscas brancas e encarnadas e sandlias de couro.Adivinhavam-se-lhe os seios duros e o queimado do sol dava-lhe uma cara deflor.

    Tomamos um autocarro e fomos para uma praia cercada de rochedos e comcanteiros de rosas do lado da terra, a alguns quilmetros de Argel. O sol s quatrohoras no estava quente demais, mas a gua estava morna, com pequenas ondaslongas e preguiosas. Maria ensinou-me um jogo. Era preciso, nadando, beber cresta das ondas, acumular toda a espuma na boca e, pondo-nos em seguida de

    costas, projet-la para o cu. Isto fazia uma espcie de renda espumosa quedesaparecia no ar ou, como uma chuva quente, nos caa na cara. Mas ao fim dealgum tempo, tinha a boca a arder devido ao sal. Maria veio ento ter comigo ecolou-se a mim, na gua. Beijamo-nos A lngua dela refrescava-me os beios erolamos durante alguns momentos nas vagas.

    Quando nos vestimos na praia, Maria olhava-me com olhos brilhantes. Volteia beij-la. A partir da, no falamos mais.

    Apertei-a contra mim e s queramos apanhar depressa um autocarro, ir paraminha casa e deitarm o-nos na minha cama.

    Deixei a janela aberta, e era bom, sentir aquela noite de vero escorregar aolongo dos nossos corpos morenos.

    Esta manh, Maria ficou comigo e combinamos almoar juntos.Desci rua para ir comprar carne. Ao voltar, ouvi uma voz de mulher no

    quarto de Raimundo. Pouco depois, o velho Salamano ralhou com o co, ouvimosum barulho de botas e de patas nos degraus de madeira da escada e depois:Bandido, co nojento, saram para a rua. Contei-lhe a histria do velho e elariu-se. Vestira um dos meus pijamas e estava de m angas arregaadas. Quando seriu, voltei a sentir desejo por ela.

    Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que no queria

    dizer nada, mas que me parecia que no: Ficou com um ar triste. Mas, aopreparar o almoo, e sem que viesse a propsito, voltou a r ir-se de tal forma, quea beijei outra vez. Foi neste momento que rebentou a discusso em casa doRaimundo.

    Ouviu-se primeiro uma voz estridente de mulher e depois a deRaimundo, dizendo: Enganaste-me, enganaste-me. Agora que eu te vou

    ensinar...Uns rudos surdos e a mulher ps-se a berrar, mas de uma maneira to

    horrvel, que o trio se encheu de gente. A mulher continuava a gritar e

    Raimundo continuava a bater-lhe. Maria disse-me que era terrvel e eu norespondi.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    24/65

    Pediu-me para ir chamar um polcia, mas eu respondi-lhe que no gostavados polcias. Mas o meu vizinho do segundo andar, que canalizador,encarregou-se de ir buscar um. Este bateu porta de Raimundo e no se ouviumais nada. Bateu com mais fora e, ao fim de alguns instantes, a mulher choroue Raimundo abriu. Tinha um cigarro na boca e um ar melfluo. A mulher

    precipitou-se para a porta e declarou ao polcia que Raimundo lhe tinha batido.O teu nome, disse o polcia.

    Raimundo respondeu-lhe. Tira o cigarro da boca enquanto me ests a falar,disse o polcia. Raimundo hesitou, olhou para mim e ficou com o cigarro na boca.

    este momento, o polcia deu-lhe uma bofetada com toda a fora, em plenacara. O cigarro foi cair alguns metros mais adiante. Raimundo mudou deexpresso, mas no disse nada, at que perguntou com uma voz humilde se podiair apanhar o cigarro. O agente declarou que sim e acrescentou: Mas ficas asaber que um polcia, no nenhum fantoche. Entretanto a rapariga chorava,repetindo:

    Ele bateu-me, um malandro. Sr. Guarda, perguntou, Raimundo ento,

    da lei, chamar m alandro a um homem?Mas o polcia mandou-lhe que calasse o bico.Raimundo voltou-se para a mulher e disse: No perdes pela demora,

    pequena, est descansada. O polcia disse-lhe que se calasse, que a mulher tinhaque se ir embora e que ele ficasse no quarto at receber convocao docomissariado. Acrescentou que Raimundo devia ter vergonha de estar bbedo ao

    ponto de todo ele tremer. Raimundo explicou: No estou bbedo, Sr. guarda. Masdiante de si, no posso deixar de tremer. Fechou a porta e todos se foramembora. Maria e eu acabamos de preparar o nosso almoo. Como ela no estava

    com fome, comi quase tudo. Saiu uma hora e ainda dormi um bocado.Pelas trs horas bateram porta e Raimundo entrou.Deixei-me ficar deitado. Sentou-se na borda da cama. Ficou uns instantes

    sem falar e eu perguntei-lhe como que o caso se tinha passado. Contou-me quefizera o que fora planeado, mas que ela lhe dera uma bofetada e que entocomeara a bater-lhe. Quanto ao resto, eu tinha-o visto com os meus prpriosolhos. Disse-lhe que me parecia que, agora que ela estava castigada, j podiaestar contente.

    Era tambm a opinio dele, e observou ainda que, por mais que a polciafizesse, j ningum lhe tirava a pancada que recebera. Acrescentou queconhecia os polcias e sabia perfeitamente como se deve lidar com eles.Perguntou-me ento se eu julgara que ele ia responder bofetada do polcia.

    Respondi-lhe que no julgara absolutamente nada e que, alis, no gostavados polcias. Raimundo pareceu ficar muito contente. Perguntou-me se queriasair com ele. Levantei-me e comecei-me a pentear. Disse que era preciso que euservisse de testemunha. A mim, tanto se me dava, mas no sabia o que havia dedizer. Na opinio de Raimundo, bastava declarar que a mulher o enganara.Aceitei ser testemunha.

    Samos e Raimundo ofereceu-me um copo de aguardente. Depois quis jogar

    uma partida de bilhar e ganhou-me por pouco. A seguir, queria ir a um bordel,mas eu disse que no, porque no tinha vontade. Ento voltamos lentamente para

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    25/65

    casa e ele voltou a dizer at que ponto se sentia contente por ter conseguidocastigar a amante. Achei-o muito simptico comigo e pensei que era ummomento bem agradvel.

    Distingui ao longe, na soleira da porta, o velho Salamano com um ar agitado.Quando nos aproximamos, reparei que no estava com o co. Olhava para todosos lados, dava voltas sobre si mesmo, tentava penetrar com os olhos na escuridodo corredor, resmungava palavras sem nexo e recomeava a observar a ruacom os seus pequenos olhos avermelhados. Quando Raimundo lhe perguntou oque se passava, no respondeu logo a seguir.

    Ouvi-o vagamente murmurar: Bandido, co nojento, e continuou a agitar-se. Perguntei-lhe onde estava o co. Respondeu-me bruscamente que se foraembora. E depois, de repente, ps-se a falar muito: Levei-o como de costumeao Campo das Manobras. Em volta das barracas da feira, havia muita gente.Parei um bocado para olhar o Rei da Evaso . E quando me quis ir em bora,no o vi. H muito tempo que lhe queria comprar uma coleira mais pequena.Mas nunca pensei que esse co nojento fugisse desta maneira.

    Raimundo explicou-lhe ento que o co possivelmente se perdera e que haviade voltar. Citou-lhe vrios exemplos de ces que tinham percorrido dezenas dequilmetros para encontrar os donos. Apesar disso, o velho estava cada vez maisagitado.

    Vo apanh-lo, com certeza. Ainda, se algum o recolhesse... Mas no!Com aquelas feridas, enoja toda a gente. A carroa leva-o, tenho a certeza. Eudisse-lhe ento que se dirigisse Cmara e que lho devolviam, caso pagasse oimposto. Perguntou-me se este imposto era muito caro: Eu no sabia. Nestemomento, encolerizou-se: Dar dinheiro por aquele co nojento?! Ele que

    rebente para a! E ps-se a insult-lo.Raimundo riu e entrou em casa. Segui-o, e despedimo-nos porta dos nossosquartos. Pouco depois ouvi os passos do velho e bateram porta. Fui abrir e eleficou uns instantes a olhar para mim. Disse:

    Desculpe, desculpe. Convidei-o a entrar, m as ele no quis. Olhava paraas pontas dos ps e tremiam-lhe as mos.

    Olhando para o lado, perguntou: No o vo apanhar, pois no, Sr. Meursault?Vo-mo dar outra vez, no vo? O que vai ser de mim?! O que vai ser de m im?!Disse-lhe que os ces ficavam durante trs dias na cmara disposio dosdonos e que, depois disso, lhes davam o destino que melhor lhes parecia.

    Olhou para mim sem dizer uma palavra. Depois, disse: Boas noites. Fechoua porta e ouvi-o andar de um lado para o outro. A cama dele rangeu. E, peloestranho barulho que me chegava atravs da parede, compreendi que estava achorar. No sei por que, pensei na minha me. Mas no dia seguinte, precisava deme levantar cedo. No tinha fome e deitei-me sem jantar.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    26/65

    Captulo V

    RAIMUNDO telefonou-me para o escritrio. Disse-me que um amigo dele, aquem falara de mim, me convidava para passar o domingo numa casa que tinha

    perto de Argel. Respondi que gostaria de ir, mas que j com binara passar odomingo com uma amiga. Raimundo declarou imediatamente que tambm a

    convidava.A mulher do amigo ficaria, at, muito contente por no ser a nica no meio

    de um grupo de homens.Quis desligar imediatamente, pois sei que o chefe no gosta que estej amos ao

    telefone. Mas Raimundo pediu-me para esperar e disse que me poderia tertransmitido o convite noite, mas me queria avisar de outra coisa. Fora seguidodurante todo o dia por um grupo de rabes entre os quais estava o irmo da suaantiga amante. Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me. Respondique estava combinado.

    Pouco depois o chefe mandou-me chamar e fiquei aborrecido porque penseique me ia dizer para telefonar menos e trabalhar mais. No era nada disso.Declarou que me ia falar num projeto ainda muito vago. Queria apenas saber aminha opinio sobre o assunto. Tencionava instalar um escritrio em Paris, paratratar diretamente com as grandes companhias e perguntou-me se eu estavadisposto a ir. Poderia assim viver e m Paris e viajar durante parte do ano. Vocainda novo e creio que essa vida lhe agradaria. Disse que sim, mas que nofundo me era indiferente. Perguntou-me depois se eu no gostava de umamudana de vida. Respondi que nunca se muda de vida, que em todos os casos,todas as vidas se equivaliam e que a minha, aqui, no me desagradava. Mostrouum ar descontente, disse que eu respondia sem pre margem das questes, e queno tinha ambio, o que para os negcios era desastroso. Voltei para o meutrabalho. Teria preferido no o descontentar, mas no via razo nenhuma paramodificar a minha vida. Pensando bem, no era infeliz. Quando era estudante,alimentara muitas ambies desse gnero. Mas quando abandonei os estudos,compreendi muito depressa que essas coisas no tinham verdadeira importncia.

    Maria veio buscar-me noite e perguntou-me se eu queria casar com ela.Respondi que tanto me fazia, mas que se ela de facto queria casar, estava bem.Quis ento saber se eu gostava dela. Respondi, como alis respondera j uma

    vez, que isso nada queria dizer, mas que julgava no a amar. Nesse caso, porque casar comigo?, disse ela. Respondi que isso no tinha importncia e que, seela quisesse, nos podamos casar. Era ela, alis, quem o perguntava, e eucontentava-me em dizer que sim. Maria observou ento que o casamento erauma coisa muito sria. Respondi: No. Maria calou-se durante uns instantes eolhou-me em silncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda deoutra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teriaaceitado uma proposta sem elhante.

    Respondi: Possivelmente. Perguntou ento de si para si se gostaria de mim,

    mas, sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais unsinstantes de silncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que gostava de

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    27/65

    mim se calhar por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, eracapaz de passar aos sentimentos contrrios. Como eu me calasse, por no ternada a acrescentar, tomou-me o brao a sorrir e declarou que queria casarcomigo. Respondi que sim, logo que ela quisesse. Falei-lhe ento na proposta dochefe e Maria disse-me que gostaria de conhecer Paris. Contei-lhe que l viveradurante algum tempo e ela perguntou-me como era a cidade. Respondi: suja.H pombas e ptios escuros. As pessoas tm a pele muito branca.

    Depois passeamos, escolhendo as grandes ruas. As mulheres eram bonitas eperguntei a Maria se ela achava o mesmo. Disse que sim, e que mecompreendia. Depois calamo-nos. Queria no entanto que ela ficasse comigo edisse-lhe que poderamos jantar juntos no Celeste. Maria replicou que gostariamuito, mas tinha que fazer. Estvamos ao p da minha casa e eu disse-lhe adeus.Ela olhou para mim: No queres saber o que que tenho que fazer? Eu queria,mas no me lembrara de lho perguntar e era por isso que estava com um ar decensura.

    Diante do meu ar embaraado, voltou ento a rir e, para me estender a boca,

    teve para mim um movimento de todo o corpo.Jantei no restaurante do Celeste. Comeara j a comer, quando entrou uma

    mulherzinha esquisita e veio perguntar se podia sentar-se minha mesa. Porqueno havia de poder? Fazia gestos bruscos e tinha uns olhos brilhantes, inseridosnuma pequena cara de ma. Tirou o casaco, sentou-se e consultou febrilmentea lista. Chamou o Celeste e pediu imediatamente os pratos que queria, com umavoz ao mesmo tempo precisa e precipitada. Enquanto esperava os acepipes, abriua carteira, tirou um pequeno quadrado de papel e um lpis, fez a conta ao quetinha que pagar, e depois tirou do porta-moedas, acrescentando-lhe a gorjeta, a

    quantia exata. Colocou-a diante dela. Nesse momento levaram-lhe os acepipes,que engoliu a toda a velocidade. Enquanto esperava o prato seguinte tirou aindada carteira um lpis azul e uma revista que dava os programas radiofnicos dasemana.

    Com o maior cuidado, sublinhou um a um quase todos os programas. Como arevista tinha umas doze pginas, continuou este trabalho metodicamente durantetoda a refeio. J eu acabara de comer, e ainda ela estava a sublinhar, semprecom a mesma aplicao. Depois levantou-se, vestiu o casaco com os mesmosgestos precisos de autmato e saiu. Como no tinha nada que fazer, tambm sa esegui-a durante uns momentos.

    Colocou-se beira do passeio e, com uma segurana e uma rapidez incrveis,seguia o seu caminho sem se desviar e sem olhar para os lados. Acabei por

    perd-la de vista e por voltar para trs. Achei que era uma mulher estranha, masdepressa a esqueci.

    porta de casa, encontrei o velho Salamano. Disse-lhe para entrar e eleinformou-me que o co se perdera, pois no estava na Cmara. Os empregadoshaviam-lhe dito que fora, talvez, atropelado. Perguntara se no era possvel sab-lo nos comissariados da polcia. Tinham-lhe respondido que eles no tomavamnota de coisas como essas, pois aconteciam todos os dias. Disse ao velho

    Salamano que podia arranjar outro co, mas ele respondeu-me com toda a razoalis, que estava habituado quele.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    28/65

    Eu estava estendido na cam a e Salamano sentara-se numa cadeira em frenteda mesa. Estava voltado para mim e tinha as mos em cima dos joelhos.Conservara o velho chapu na cabea:

    Sob o bigode amarelecido, mastigava frases que depois no acabava.Maava-me um bocado, mas como no tinha nada que fazer e no estava comsono, no me importei. Para dizer alguma coisa, fiz-lhe perguntas sobre o co.Disse-me que o arranjara depois da morte da m ulher. Casara-se bastante tarde.

    Na sua mocidade, tivera vontade de entrar para o teatro: na tropa,representara em vrias rcitas militares. Mas acabara por entrar para oscaminhos de ferro e no estava arrependido, pois agora davam-lhe uma pequenareforma. No fora feliz com a mulher, mas, por fim, habituara-se a ela. Quandoesta m orrera, sentira-se muito s: Pedira ento a um colega do escritrio para lhedar um co, e fora-lhe oferecido este, quase recm-nascido. Tivera que oalimentar a bibero. Mas como o co vive menos do que o homem, tinhamacabado por envelhecer juntos.

    Tinha mau feitio, Disse Salamano. De tempos a tempos zangvamo-nos.

    Mas apesar disso, era um bom co. Disse que o co devia ser de boa raa, eSalamano ficou com um ar contente. E para mais, acrescentou, no o conheceuantes da doena. No havia pelo mais bonito do que o dele. Todas as noites etodas as manhs, desde que o co aparecera com aquela doena de pele,Salamano punha-lhe pomada. Mas na sua opinio, a verdadeira doena que o cotinha era a velhice, e a velhice no cura.

    Nesse momento bocejei, e o velho anunciou que se ia embora.Disse-lhe que podia ficar e que estava aborrecido com o que lhe acontecera

    ao co: agradeceu-me. Disse-me que a minha me gostara muito do co. Ao

    falar dela, chamava-a a sua pobre me. Emitiu a suposio que eu deviasentir-me bem infeliz desde que a minha me morrera. No respondi. Disse-meento, muito depressa e com um ar embaraado, que no bairro me tinhamcriticado por a ter mandado para o asilo, mas ele conhecia-me e sabia que eugostava muito da minha me. Respondi, no sei ainda por que, que ignorava atagora que fosse criticado por causa disso, mas que o asilo se me afigurara umacoisa muito natural, pois no tinha recursos para a manter comigo.

    Alm disso, acrescentei ainda, h muito tempo que no tnhamos nada quedizer um ao outro e que ela se aborrecia sozinha.

    Sim, disse-me ele, e no asilo, ao menos, arranjam-se amigos. Depois,despediu-se. Queria dormir. A sua vida agora mudara completamente, e nosabia muito bem o que havia de fazer. Pela primeira vez desde que nosconhecamos, estendeu-me a mo num gesto envergonhado e eu senti-lhe asescamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: Espero que osces no ladrem esta noite. Julgo sem pre que o meu.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    29/65

    Captulo VI

    No domingo, custou-me tanto a acordar, que foi preciso a Maria chamar-mee sacudir-me. No comemos, porque queramos tomar cedo o banho de mar.Sentia-me completamente vazio e doa-me um pouco a cabea. O meu cigarrotinha um gosto amargo. Maria fez troa de mim porque dizia que eu estava com

    uma cara de enterro. Pusera um vestido branco e soltara os cabelos. Disse-lheque estava bonita e ela riu de contentamento.

    Ao sair, batemos porta do Raimundo. Respondeu-nos que j vinha. Na rua,porque estava cansado e tambm porque no tnham os aberto as persianas, o dia,

    cheio de sol, bateu-me como uma verdadeira bofetada. Maria saltava deprazer e no parava de repetir que estava timo. Senti-m e melhor e reparei queestava com fome. Disse-o a Maria, que me mostrou o seu saco de praia, onde

    pusera os nossos dois fatos de banho e uma toalha. No havia nada a fazer, senoesperar, e ouvimos Raimundo fechar a porta. Trazia umas calas azuis e uma

    cam isa branca, de m angas curtas. Mas pusera na cabea um chapu de palha, deque Maria se riu muito, e sob os pelos negros, tinha os braos muito brancos. Istoenojava-me um bocadinho. Ao descer, assobiava e tinha um ar muito contente.Disse-me:

    Ol, p, e tratou Maria por Menina.Na vspera tnham os ido ao comissariado e eu testemunhara que a mulher o

    enganara. Saiu-se com um aviso e uma reprimenda. No verificaram a m inhainformao. Diante da porta, falamos com Raimundo deste caso, e depoisdecidimo-nos a tomar o autocarro. A praia no era longe, mas assim iramosmais depressa. Raimundo achava que o amigo ficaria contente por chegarmosto cedo. amos partir quando Raimundo, de sbito , me fez um sinal para olharem frente de mim.

    Reparei num grupo de rabes encostados a um quiosque de tabacos.Olhavam-nos em silncio, mas maneira deles, como se fssemos rvoresmortas ou simplesmente pedras. Raimundo disse-me que o tipo era o segundoa contar da esquerda, e fez um ar preocupado. Acrescentou que, no entanto, ocaso era agora histria antiga. Maria no compreendia muito bem, e perguntou-nos o que se passava. Disse-lhe que eram uns rabes, ressentidos contraRaimundo. Maria quis que nos fssemos embora imediatamente. Raimundo

    endireitou-se e riu, dizendo para nos despacharmos.Fomos para a paragem dos autocarros, que ficava um pouco mais longe, e

    Raimundo anunciou que os rabes no nos haviam seguido. Voltei-me para trs.Continuavam no mesmo lugar e olhavam com a mesma indiferena o stio queacabvamos de deixar. Tomamos o autocarro. Raimundo, que parecia aliviado,no parava de gracejar em inteno de Maria. Senti que esta lhe agradava, masvi que ela no lhe respondia quase nunca.

    De tempos a tempos, Maria olhava-me e ria.Descemos numa paragem dos arredores de Argel. A praia no ficava longe.

    Mas foi preciso atravessar um pequeno planalto que domina o mar e que desceem seguida para a praia. Estava coberto de pedras amareladas e de abrteas

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    30/65

    brancas, sob o azul j duro do cu. Maria divertia-se a espalhar as ptalas destasflores, batendo-lhes com o saco de praia. Marchamos entre filas de pequenasvivendas com cercas verdes ou brancas, algumas escondidas, com as suasvarandas, entre os tamarizes, e outras, nuas e despojadas, no meio das pedras.Antes de chegar borda do planalto, podia-se j ver o mar imvel e, mais longo,um cabo macio e sonolento na gua clara. Subiu at ns, no ar calmo, umligeiro barulho de motor. E vimos, muito longe, uma pequena canoa queavanava imperceptivelmente no mar brilhante. Maria agarrou em algunsestilhaos de rocha, Da encosta que descia para o mar, vimos que j estavamvrios banhistas na praia.

    O amigo de Raimundo morava numa casita de madeira, no extremo da praia.A casa encostava-se rocha e as traves que a sustinham frente, mergulhavam na gua. Raimundo apresentou-nos. O amigo cham ava-se Masson. Era um

    tipo alto, entroncado, com ombros largos, e a mulher dele era baixa, gorda esimptica, com um sotaque parisiense. Disse imediatamente para nos pormos vontade e que tinha para o almoo uns peixes fritos que ele mesmo pescara de

    manh.Disse-lhe que achava a casa m uito bonita, e ele informou-me que passava ali

    o sbado, o domingo, e todos os feriados. Com a minha mulher, claro,acrescentou. Justamente, esta e Maria riam-se de qualquer coisa. Pela primeiravez, pensei seriamente que me ia casar.

    Masson queria tomar banho, mas a mulher e Raimundo no queriam ir.Descemos os trs e Maria a tirou-se logo gua.

    Masson e eu, esperamos ainda um pouco. Masson falava muito devagar enotei que tinha o costume de completar tudo quanto dizia por um e direi mesmo

    mais, mesmo quando, no fundo, nada acrescentava ao sentido da frase. Apropsito de Maria, disse: estupenda e, direi mesmo mais, encantadora.Depois, deixei de prestar ateno a este tique, pois ocupava-me agora e m sentirque o sol me sabia bem. A areia comeava-me aquecer, sob os ps: Retardeimais um bocado a vontade que tinha de ir para a gua, mas acabei por dizer aMasson:

    Vamos? Mergulhei. Ele, entrou lentamente na gua, e s mergulhou quandoperdeu o p. Nadava de bruos, bastante mal, de modo que o deixei para trspara ir ter com Maria. A gua estava fria e era bom nadar. Afastei-me comMaria e sentamo-nos os dois de acordo nos nossos gestos e no nossocontentamento.

    Ao largo, pusemo-nos a boiar de costas e, na minha cara voltada para o cu,o sol afastava os ltimos vus de gua que me escorriam para a boca. Vimos queMasson regressara praia e se estendera ao sol. De longe, parecia enorme.Maria quis que nadssemos juntos. Coloquei-me por detrs dela, segurando-a

    pela cintura e ela avanava fora de braos, enquanto eu a ajudava batendo osps. O pequeno barulho da gua batida seguiu-nos ao longo da manh, at queme senti cansado. Deixei ento Maria e voltei para a praia, nadandocompassadamente e respirando bem: Uma vez na praia, estendi-me de barriga

    para baixo ao p de Masson e descansei a cara na areia. Disse-lhe que erabom e e le tinha a m esma opinio.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    31/65

    Depois, Maria veio ter conosco, Voltei-me para a ver. Estava viscosa da guasalgada e tinha os cabelos cados para trs.

    Estendeu-se encostada a mim e os dois calores, o do corpo dela e o do sol,adormeceram-me um pouco.

    Maria sacudiu-me e disse-me que Masson j fora para casa e era preciso iralmoar. Levantei-me imediatamente porque tinha fome, mas Maria disse-meque no voltara a beij-la desde manh. Era verdade, e tambm eu tinha vontadede a beijar.

    Vem para a gua, disse-me ela. Corremos e deixamo-nos cair nasprimeiras ondas, Fizem os algumas braadas e ela encostou-se a mim. Senti aspernas dela em volta das minhas e desej ei-a.

    Quando voltamos, j Masson nos cham ava. Disse que estava cheio de fome eo dono da casa declarou logo mulher que eu lhe agradava: O po era bom edevorei a minha poro de peixe.

    Depois, havia carne e batatas fritas. Comam os sem falar.Masson bebia muito vinho e servia-me sem parar. Ao caf, tinha a cabea

    um pouco pesada e fumei muito. Masson, Raimundo e eu, encaramos a hiptesede passar o ms de Agosto na praia, dividindo as despesas: Maria perguntou derepente: Sabem que horas so? So onze e meia. Estvamos todos admirados,mas Masson disse que se tinha comido muito cedo, o que era natural, pois a horado almoo era a hora em que se tinha fome. No sei por que motivo Maria se riutanto com isto.

    Julgo que bebera demais. Masson perguntou-me ento se queria ir dar comele um passeio pela praia. A minha mulher dorme sempre a sesta depois dealmoo. Eu, no gosto disso. Preciso de andar. Digo-lhe sempre que melhor

    para a sade. Mas no fim de contas, est no seu direito. Maria declarou queficava, para ajudar a dona da casa a lavar a loia. Esta disse que, para isso, erapreciso pr os homens na rua.

    Descemos os trs.O sol caa quase a pique sobre a praia e o seu brilho no mar era insustentvel.

    J no estava ningum na praia. Nas casas ao longo do planalto e que olhavampara o mar, ouvia-se o barulho de pratos e de talheres. Mal se respirava, nestecalor de pedra que subia do cho. Para principiar, Raimundo e Masson falaramde coisas e pessoas que eu ignorava. Percebi que se conheciam h muito tempo eque, a certa altura, tinham mesmo vivido juntos. Dirigimo-nos para a gua eandamos beira do mar. s vezes, uma onda mais comprida do que as outras,vinha molhar-nos os sapatos de borracha. No pensava em nada, porque estavameio adormecido com todo este sol na minha cabea descoberta. A certa altura,Raimundo disse a Masson qualquer coisa que no consegui ouvir muito bem . Masdistingui ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de ns, dois rabesvestidos de azul, que vinham na nossa direo. Olhei par a Raimundo, que medisse: ele. Continuamos a andar. Masson perguntou como que eles nos

    podiam ter seguido at aqui.Pensei que nos tinham visto tomar o autocarro com um saco de praia, mas

    no disse nada.Os rabes avanavam lentamente e estavam j muito mais perto. No

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    32/65

    modificamos o nosso andamento, mas Raimundo disse:Se houver pancada, tu, Masson, ficas com o segundo. Eu, encarrego-me do

    meu tipo. Tu, Meursault, se vier outro rabe, para ti. Respondi: Est bem, eMasson meteu as mos nas algibeiras. A areia a ferver parecia-me agoravermelha.

    Avanamos no mesmo passo para os rabes. A distncia entre ns foidiminuindo pouco a pouco: Quando no estvamos seno a alguns passos uns dosoutros, os rabes detiveram-se. Masson e eu comeamos a andar mais devagar.Raimundo foi direito ao seu tipo. No percebi muito bem o que lhe disse, mas ooutro fez meno de lhe dar uma cabeada. Raimundo deu ento o primeiro socoe logo a seguir chamou Masson. Masson dirigiu-se ao que lhe fora destinado edeu-lhe dois socos com toda a fora. O outro caiu no mar, de barriga para baixo,a cara dentro de gua e ficou assim alguns segundos, perto da cabea dele,rebentavam superfcie bolhas de ar. Durante este tempo, Raimundo continuou alutar e o outro tinha a cara cheia de sangue. Raimundo voltou-se para mim edisse: Vais ver o que ele vai apanhar! Gritei-lhe: Ateno, o tipo tem uma

    navalha! mas Raimundo tinha j o brao aberto e um golpe na boca.Masson deu um salto para frente. Mas o outro rabe levantara-se e colocara-

    se atrs do que estava armado. No ousamos mexer-nos. Os rabes recuaramlentamente, sem deixar de nos falar e de nos ameaar com a navalha. Quandoviram que a distncia era suficiente, fugiam muito depressa, enquanto nsficvam os ali pregados, ao sol, e Raimundo agarrava no brao a escorrer sangue.

    Masson disse imediatamente que conhecia um mdico que passava osdomingos no pequeno planalto. Raimundo quis ir sem demora tratar das feridas.Mas, cada vez que falava, o sangue borbulhava-lhe na boca. Ajudando-o a andar,

    voltamos para casa o mais depressa possvel. A, Raimundo disse que afinal asferidas eram superficiais e que podia ir j ao mdico. Saiu com Masson e eufiquei, para explicar s mulheres o que se tinha passado. A mulher de Massonchorava e Maria estava muito plida. Era aborrecido, ter de lhes explicar. Porfim, calei-me e pus-me a fumar, olhando para a paisagem do mar.

    Pela uma e meia, Raimundo e Masson voltaram. Raimundo trazia o braoligado e adesivo no canto da boca. O mdico dissera-lhe que no fora nada deimportante, mas estava com um ar sombrio. Masson tentou faz-lo rir. Mas eleno dizia nada.

    A certa altura, disse que queria descer praia, e eu perguntei-lhe aonde ia.Respondeu que lhe apetecia apanhar ar.

    Masson e eu dissemos que o acompanhvamos. Ento, encolerizou-se einsultou-nos. Masson declarou que no devamos contrari-lo. Apesar disso, fuicom ele.

    Andamos muito tempo, ao longo da praia. O sol estava agora esmagador.Estilhaava-se na praia e no mar. Tive a impresso de que Raimundo sabia aondeia, mas talvez estivesse enganado.

    Mesmo no fim da praia, chegamos a uma pequena fonte que corria para aareia, em direo ao mar, por detrs de um grande rochedo. A, encontramos os

    dois rabes. Estavam deitados, com os seus trajes azuis e sujos. Tinham um arcalmo e quase beatfico. A nossa chegada no os incomodou. O que ferir a

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    33/65

    Raimundo, olhava-o sem dizer uma palavra. O outro soprava numa flauta feita mo e repetia interminavelmente, olhando-nos de vis , as trs notas queconseguia obter do instrumento.

    Durante todo este tempo, havia s o sol e este silncio, com o leve rudo danascente e das trs notas musicais. Depois Raimundo levou a mo algibeira detrs das calas, mas o outro no se moveu. Continuavam a fitar-se.

    Reparei que o que tocava flauta tinha os dedos dos ps muito afastados. Semtirar os olhos do adversrio, Raimundo perguntou-me: Dou cabo dele? Penseique, se dissesse que no, ficaria excitado e dispararia com certeza. Disseunicamente: O tipo ainda no disse nada. Disparar assim sem mais nem menos,no seria bonito. Ouviu-se ainda o leve rudo da gua e da flauta, no corao dosilncio e do calor.

    Depois, Raimundo disse: Ento vou insult-lo e quando ele responder ,doucabo dele. Respondi: Isso mesmo. Mas se o tipo no puxar da navalha, no

    podes atirar. Raimundo comeou a enervar-se. O outro continuava a tocar e osdois observavam atentamente os gestos de Raimundo. No, disse eu a

    Raimundo. Vai-te a ele, homem a homem e d-me o revlver. Se o outrointervm ou se puxa a navalha, mato-o.

    Quando Raimundo me deu o revlver, o sol refletiu-se na arma. Ficamosimveis, como se tudo se houvesse fechado em nossa volta. Olhvamo-nos sem

    baixar os olhos e tudo aqui se detinha entre o mar, a areia, o sol, e o duplo silncioda flauta e da gua.

    Pensei neste instante que disparar ou no disparar, era tudo o mesmo. Masbruscam ente, os rabes com earam a recuar e desapareceram por detrs dorochedo. Raimundo e eu voltamos ento para casa. Raimundo parecia estar

    melhor e falou no autocarro da volta.Acompanhei-o at casa e, enquanto ele subia a escada de madeira, eu fiqueino primeiro degrau, a cabea cheia de sol, sem coragem para o esforo que era

    preciso fazer para subir as escadas de madeira e voltar a abordar as mulheres.Mas o calor era to grande que me era igualmente penoso ficar assim imvel,sob a chuva de luz que caa do cu. Ficar aqui ou partir, vinha a dar na mesma.Ao fim de alguns instantes, voltei para a praia e comecei a andar.

    Era o mesmo brilho avermelhado. Na areia, o mar ofegava com a respiraorpida e abafada das pequenas ondas que se sucediam umas s outras. Dirigia-me lentamente para os rochedos e sentia que a testa me inchava, sob o peso dosol.

    Todo este calor se apoiava contra mim, opondo-se ao meu avano. E cadavez que sentia o sopro quente deste calor enorme na minha cara, cerrava osdentes, apertava os punhos nas algibeiras das calas, retesava-me todo paratriunfar do sol e da embriaguez opaca que caa sobre mim. A cada espada de luzsurgida da areia, de uma concha esbranquiada ou de um vidro partido, osqueixos crispavam-se m e. Andei assim durante muito tempo.

    Distinguia, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, rodeado de umaaurola formada pela luz e pela poeira do mar.

    Pensava na nascente fresca que havia por detrs do rochedo.Desejava reencontrar o murmrio da gua que dela brotava, desejava fugir

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    34/65

    ao sol, ao esforo, s lgrimas da mulher, desejava enfim, reencontrar a sombrae o repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o rabe de Raimundovoltara ali.

    Estava s. Descansava de costas, as mos debaixo da nuca, a cabea nassombras do rochedo e o resto do corpo ao sol. O seu trajo azul fumegava decalor. Fiquei um pouco admirado. Para m im, era histria antiga, e viera para aquisem pensar no caso. Logo que me viu, levantou-se e meteu a m o na algibeira.

    Eu, muito naturalmente, agarrei no revlver de Raimundo, dentro do casaco.Ento, o rabe deixou-se cair outra vez para trs, mas sem tirar a mo daalgibeira.

    Eu estava bastante longe dele, a uns dez metros de distncia.Adivinhava-lhe por instantes o olhar, entre as plpebras semicerradas. Mas a

    maioria das vezes, a imagem dele danava diante dos meus olhos, na atmosferainflamada. O barulho das vagas era ainda mais preguioso do que ao meio-dia.Eram o mesmo sol e a mesma luz, que se prolongavam at este momento.

    H j duas horas que o dia deitara a sua ncora neste oceano de metal

    fervente. No horizonte, passou um pequeno vapor.Adivinhei-lhe a mancha negra com o canto do olho, pois no cessava de fitar

    o rabe.Pensei que me bastava voltar para trs e tudo ficaria resolvido. Mas atrs de

    mim, comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para anascente. O rabe no se m oveu. Apesar disso, estava ainda bastante longe.

    Parecia sorrir, talvez por causa das sombras que se lhe projetavam na cara.Esperei. A ardncia do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se-menas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que a minha m e fora a enterrar e,

    como ento, doa-me a testa, sobretudo a testa e todas as suas veias batiam aomesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que j no podiasuportar mais, fiz um movimento para frente. Sabia que era estpido, que no m eiria desembaraar do sol, simplesmente por dar um passo e m frente. Mas deium passo, um s passo em frente. E desta vez, sem se levantar, o rabe tirou anavalha da algibeira e mostrou-ma ao sol. A luz refletiu-se no ao e era comouma longa lmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, osuor amontoado nas sobrancelhas correu-me de sbito pelas plpebras abaixo ecobriu-as com um vu morno e espesso.

    Os meus olhos ficaram cegos, por detrs desta cortina de lgrimas e de sal.Sentia apenas as pancadas do sol na testa e , indistintamente, a espada de fogo

    brotou da navalha, sem pre diante de mim. Esta espada a arder corroa-me aspestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi ento que tudo vacilou. O marenviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o cu se abria em todaa sua extenso, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou ecrispei a mo que segurava o revlver. O gatilho cedeu, toquei na superfcie lisada coronha e foi a, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, quetudo principiou.

    Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destrura o equilbrio do dia, o silncio

    excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei ento a disparar maisquatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    35/65

    isso.E era como se batesse quatro breves pancadas porta da desgraa.

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    36/65

    SEGUNDA PARTE

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    37/65

    Captulo I

    Logo a seguir minha priso, fui interrogado por vrias vezes. Mas tratava-sede interrogatrios de identidade, que no duraram muito tempo. A primeira vez,no comissariado, o meu caso parecia no interessar a ningum. Oito dias depois,ao contrrio, o juiz de instruo olhou-me com curiosidade.

    Mas, para comear, perguntou-me apenas o nome e a morada, a profisso, adata e o local do nascimento. Depois quis saber se eu j escolhera advogado.Respondi que no e perguntei-lhe se era absolutamente necessrio ter advogado.Por qu?, disse ele. Repliquei, afirmando que achava o meu caso muitosimples.

    Sorriu, dizendo: uma opinio. No entanto, a lei a lei. Se o senhor no querquem o defenda, ns nomeamos automaticamente advogado. Achei que eramuito cmodo, a justia encarregar-se desses pormenores. Disse-lho. Concordoucomigo e concluiu que a lei estava bem feita.

    No comeo, no o tomei a srio. Recebeu-me numa sala com reposteiros nasparedes. Tinha em cima da secretria um nico candeeiro, que iluminava acadeira onde me mandou sentar, enquanto ele ficava na sombra. Tinha j lidodescries parecidas em livros, e tudo isto me pareceu uma brincadeira.

    Depois da nossa conversa, pelo contrrio, olhei-o e vi um homem de traosfinos, profundos olhos azuis, muito alto, com um comprido bigode grisalho e umaabundante cabeleira quase branca. Afigurou-se-me uma pessoa razovel e, nofim de contas, simptica, apesar dos tiques nervosos que, de quando e m quando,lhe deformavam a boca. sada ia mesmo para lhe estender a mo, maslembrei-me a tempo de que era um assassino.

    No dia seguinte, um advogado veio falar com igo priso.Era baixo e gordo, bastante novo ainda, os cabelos cuidadosamente penteados

    com fixador. Apesar do calor (eu estava em mangas de camisa), envergava umfato escuro, um colarinho duro e uma gravata esquisita, com grandes riscas

    pretas e brancas. Ps em cima da cam a a pasta que trazia debaixo do brao,apresentou-se e disse que estudara o meu processo. O meu caso era delicado,mas se eu tivesse confiana nele, no duvidava do xito final. Agradeci-lhe e eledisse-me: Entremos no fundo da questo.

    Sentou-se na cama e explicou-me que tinham andado a investigar a minha

    vida privada. Tinham descoberto que a minha me morrera recentemente noasilo. Procedera-se ento a um inqurito em Marengo. Os investigadores tinhamsabido que eu dera provas de insensibilidade no dia do enterro. Veja secompreende, disse o advogado, custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas muito importante. E ser um grande argumento para a acusao, se eu noconseguir dar resposta. Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se eu, nessedia, tinha tido pena da minha me. Esta pergunta muito me espantou e parecia-me que no era capaz de a fazer a algum.

    No obstante, respondi que perdera um pouco o hbito de me interrogar a

    mim mesmo e que era difcil dar-lhe uma resposta. claro que gostava da minha me, mas isso no queria dizer nada. Todos os

  • 7/26/2019 O Estrangeiro - Albert Camus

    38/65

    seres saudveis tinham, em certas ocasies, desejado mais ou menos, a mortedas pessoas que amavam. Aqui, o advogado cortou-me a palavra e mostrou-semuito agitado.

    Obrigou-me a prometer que no diria isto na audincia, nem ao juiz deinstruo. Expliquei-lhe, no entanto, que a minha natureza era feita de tal modoque as minhas necessidades fsicas perturbavam frequentemente os meussentimentos. No dia do enterro, estava muito cansado e com muito sono. Deforma que no dei l muito bem pelo que se passou. O que podia afirmar, comtoda a certeza, era que preferia que a me no tivesse morrido. Mas o advogadono ficou contente. Disse:

    Isso no chega.Ps-se a pensar. Perguntou-me se se poderia dizer que, nesse dia, eu

    reprimira os meus sentimentos naturais. Respondi:No, porque no verdade. Olhou-me de um modo estranho, como se eu

    lhe inspirasse uma certa repulsa. Disse-me quase maldosamente que, dequalquer forma, o diretor e o pessoal do asilo seriam ouvidos como testemunhas,

    o que seria sem dvida muito mau para mim. Fiz-lhe notar que essa histriano tinha nenhuma relao com o meu caso, mas ele respondeu-me que se via

    bem que eu no conhecia a justia de perto.Foi-se embora com um ar zangado. Teria querido ret-lo, explicar-lhe que

    desejava a simpatia dele, no para ser mais bem defendido, mas, se assim meposso exprimir, naturalmente.

    Percebia sobretudo que o punha pouco vontade. No me compreendia edesconfiava um bocadinho de mi