cangaço - cordel
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
SIMÃO PEDRO DOS SANTOS
DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS:A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL
Rio de Janeiro2015
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SIMÃO PEDRO DOS SANTOS
DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS:A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL
Tese de Doutorado apresentada aoPrograma de Letras Vernáculas daUniversidade Federal do Rio deJaneiro como requisito para aobtenção do Título de Doutor emLetras Vernáculas (LiteraturaBrasileira).
Orientador:Prof.ª DoutoraAnéliaMontechiariPietrani
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RESUMO
SANTOS, Simão Pedro dos. Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelados
carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. Tese (Doutorado em Letras
Vernáculas) –
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras/UFRJ, 2015.
A presente tese defende a ocorrência de uma matéria épica da literatura de cordel com ênfase
no cangaço, a partir de uma memória oral como fundo para a memória escrita. Para a
idealização mítica contemporânea aos cangaceiros, com rara exceção, usou-se a primeira
pessoa do discurso. O processo de feitura desses textos era calcado em uma primeira pessoa a
que chamamos de Eu épico, pelos motivos inerentes à conturbada trajetória das personagens.A ideia de fazê-los heróis, no entanto, se prolonga até os dias atuais, já com a isenção poética
pertinente à distância no tempo. Nas narrativas épicas do cordel, há filetes espontâneos com
as técnicas das narrativas clássicas como a invocação, a rememorização, a sobrenaturalidade,
as façanhas inusitadas, mas ainda, e principalmente, há íntimo diálogo com textos medievais e
ibéricos legados ao Nordeste no período colonial. Narrativas como as de Carlos Magno e
outras são a essência da invenção e reinvenção dos heróis locais. Este estudo se fundamenta
em textos de Anazildo Vasconcelos, Arnold Hauser, Eric Hobsbawm, Aglae Lima de
Oliveira, Câmara Cascudo, Rui Facó, Jerusa Pires Ferreira, entre outros, que constituem o
apoio teórico nos estudos do cordel épico. O corpus analisado se compõe de textos de
Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, pioneiros do cordel brasileiro, e se
estende aos poetas contemporâneos, que igualmente abordaram a temática ora proposta.
Palavras-chave: Literatura brasileira, cordel, cangaço.
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ABSTRACT
SANTOS, Simão Pedro dos. Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelados
carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. Tese (Doutorado em Letras
Vernáculas) – Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras/UFRJ, 2015.
This thesis argues for the occurrence of an epic matter in the literature of cordel with
emphasis on cangaço, from an oral memory as background for writing memory. For a
mythical idealization of the cangaceiros in their contemporary times, with rare exception, it
was used the first-person speech. The process of making these texts was trampled in a first person which we call “I epic”, for reasons inherent in the troubled history of the characters.
The idea of making them heroes, however, extends to the present, as with the poetic
exemption concerned to the distance in time. In the epics, there are spontaneous fillets with
the techniques of classical narratives as the invocation, the rememorization, the supernatural,
the unusual exploits, but also and above all, there is intimate dialogue with medieval and
Iberian texts bequeathed to the brazilianNordeste in the colonial period. Narratives such as
Carlos Magno’s stories and others are the essence of the invention and reinvention of local
heroes. This study is based on texts written by AnazildoVasconcelos, Arnold Hauser, Eric
Hobsbawm, Aglae Lima de Oliveira, CâmaraCascudo, RuiFacó, GerusaPires Ferreira, among
others, which are the theoretical support in the epic studies of cordel. The corpus analyzed
consists of texts written by Leandro Gomes de Barros and Francisco das Chagas Batista,
Brazilian pioneers in literature of cordel, and extends to contemporary poets, who also
addressed the theme proposed here.
Keywords: Brazilian literature, cordel, cangaço.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................11
1 – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CORDEL PARA SER CONTADO, CORDEL PARA
SERCANTADO . ......................................................................................................................20
2 – TECEDORES DE HISTÓRIAS: A INVENÇÃO DOS CANGACEIROS ... ....................37
2.1 – Romanceiro guardado, memória transferida ........... ...............................................44
2.2 – Aedos nordestinos: penas inspiradas, histórias para contar .. ..................................62
2.3 – Antônio Silvino, Lampião e outros heróis: os fatos, os feitos, o mítico, omístico.....................................................................................................................................96
2.4 – Anábase e catábase: o inferno, o céu e o pouso no sertão .. ..................................131
3 – AMORES: MARIAS E DADÁS – VÊNUS NO SERTÃO ... ..........................................141
3.1 – Tantas mulheres... marias bonitas que se multiplicam........................................ 145
3.2 – Canções de amor: o cordel e outros cantares ......................................................155
4 – OFICINA DO CORDEL: A INSPIRAÇÃO, O SUOR .. .................................................165
4.1 – Metalinguagem: o exercício da palavra-texto . .....................................................167
4.2 – intertextualidade: diálogos possíveis . ...................................................................179
4.3 –A construção:“Tijolo com tijolo num desenho mágico” . ......................................191
CONSIDERAÇÕES FINAIS .. ...............................................................................................200
BIBLIOGRAFIA .. ..................................................................................................................203
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INTRODUÇÃO
No dia a dia do engenho,toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:saiu um novo romance.E da feira do domingome traziam conspirantes
para que os lesse e explicasseum romance de barbante.
(“Descoberta da literatura”, João Cabral de Melo Neto, em Aescola das facas)
Uma primeira dificuldade que se tem na proposição dos estudos de literatura de cordel
é a ausência de pesquisa, de sistematização, de teorização, que a coloque no bojo dasdiscussões literárias. Estudos que as universidades e outros centros de pesquisas ainda estão a
dever. Não há nos tratados literários nenhuma consideração abrangente no sentido da crítica,
do entendimento estrutural e da mentalidade do universo criador dessa literatura.
Desse modo, entende-se que propor estudos dessa expressão da cultura popular é lidar
com um natural desafio. Há de se conceber, portanto, que isso termina por ser tarefa, embora
instigante, árdua, de investigação de um fazer artístico-literário que não perde importância por
ainda não se ter tornado na sua totalidade objeto de estudos nas academias, que intentam
privilegiar manifestações eruditas como produção do espírito criativo, e que, embora voltado
para um povo, ainda considera como legítimo um matiz literário elitizado.
Dentre os poetas da primeira geração do cordel brasileiro destacam-se Leandro Gomes
de Barros (1865 – 1918), a quem se atribui ser o iniciador dessa linguagem no Nordeste do
Brasil, Francisco das Chagas Batista (1882 – 1930), Antônio Ferreira da Cruz (1876 - ?), João
Melquíades Ferreira da Silva (1869 – 1933), Silvino Pirauá de Lima (1848 – 1898), Severino
Milanês (1906 – 1967) e José Camelo de Melo Resende (1885 – 1964).
Dos poetas elencados acima, há a seguinte lista de obras sobre a temática do cangaço:
Antônio Silvino: vida crimes e julgamento; A história de Antônio Silvino; História completa
de Antônio Silvino, sua vida de crimes e seu julgamento; Interrogatório de Antônio Silvino;
História de Antônio Silvino - continuação e Vida de Antônio Silvino, de Francisco das Chagas
Batista.
De José Camelo de Melo Resende se destaca Uma das maiores proezas que Antônio
Silvino fez no sertão pernambucano e, de Leandro Gomes de Barros, Antônio Silvino no jury:
debate de seu advogado; Antônio Silvino o rei dos cangaceiros; Antônio Silvino se
http://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literaturahttp://www.escritas.org/pt/poema/9530/descoberta-da-literatura
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despedindo do campo; Os cálculos de Antônio Silvino; Como Antônio Silvino fez o diabo
chocar ; A confissão de Antônio Silvino; Exclamações de Antônio Silvino na cadeia; A ira e a
vida de Antônio Silvino; As lágrimas de Antônio Silvino por Tempestade; Luta do diabo com
Antônio Silvino; Morte de Tempestade (Antônio Félix); O nascimento de Antônio Silvino; As
proezas de Antônio Silvino; O sonho de Antônio Silvino na cadeia, em que lhe apareceram as
almas de todos os que elle matou); Todas as lutas de Antônio Silvino; A visão de Antônio
Silvino.
Leandro Gomes de Barros lidera, portanto, a lista de títulos sobre Antônio Silvino.
Atente-se que na poética desse autor não há nenhuma narrativa sobre Virgulino Ferreira, o
Lampião, pois seu ingresso no cangaço se deu a partir de 1920, ocasião em que o poeta já
havia falecido. Nesse caso, a temática do cangaço perdeu grandes lances poéticos, a exemplode tantos textos com exploração de assuntos variados, todos da verve do poeta paraibano.
É importante lembrar as diferenças entre o popular e o folclórico, uma vez que o
caráter deste será sempre a oralidade, o anonimato, a imprecisão cronológica e a persistência
(CASCUDO, 1978, p. 23). O que torna o popular diferente do folclórico é justamente sua
contemporaneidade e sua aproximação no tempo e no espaço. O cordel, todavia, não se
enquadra na linguagem do folclore (salvo raras exceções), por sua inserção na modernidade,
constituindo texto de fazer individual, e, portanto, por apresentar autoridade reconhecida – embora por muito tempo mantenha o caráter da leitura em roda, como ocorre com o folclore,
além de quase sempre ser fácil identificar no tempo a criação de determinado texto. Outra
característica do texto em cordel é sua inserção na palavra escrita. Pode-se então afirmar que
se é material gráfico pode até abordar elementos de oralidade, mas não constitui memória
oral.
Podemos inferir que a literatura de cordel pode alimentar um tipo de persistência,
como por exemplo, a tentativa de se manter numa era em que o rádio, a televisão, o cinema,os jornais, a informática, a internet, linguagens que compõem o cenário da modernidade e da
pós-modernidade, que se afirmam a cada passo. Nesse aspecto, o cordel termina por dialogar
com toda essa soma de tecnologia avançada, estabelecendo uma adaptação que o torna
também uma linguagem igualmente dinâmica, guardadas as diferenças que lhes competem.
Faz-se necessário aventar que essa adaptação da linguagem do cordel às mudanças que o
acompanham no Brasil há mais de cem anos faz dele resistente e persistente dentro dos
avanços e das evoluções que alcançamos.
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Essas criações populares europeias, já conhecidas no Brasil desde o período colonial, e
que diferem daquelas folclóricas, como quadrinhas sobre o Cabeleira, resultaram em texto
matricial, para toda uma poética dos cordelistas brasileiros, sobretudo no que concerne ao
cangaço e o que dele derivou em criação espiritual configurada numa literatura que aponta o
heroísmo de homens que aterrorizaram o Nordeste brasileiro por décadas.
Obviamente o heroísmo de um Carlos Magno difere daquele de um Lampião, mas os
escritos em torno do conquistador europeu e suas façanhas deram ao nosso poeta popular
nordestino a chave para que sua poética em torno de um Antônio Silvino ou um Lampião
fosse ao jeito das proezas e do heroísmo do lendário imperador Carlos, rei medieval dos
francos.
O tema de Carlos Magno subsiste, é transferido, mas, localizado, passa a ter caráternordestino. Toda a valentia do herói medieval insere-se no ambiente e na linguagem próprios
dos cangaceiros. Há de se lembrar que os cangaceiros são heróis-bandoleiros da modernidade,
aventureiros que comportam nova linguagem, e, portanto, apresentam os problemas da
modernidade. Desse modo, um Carlos Magno medieval não se adaptaria ao enredo de um
cordel do século XX. Por esse motivo, mesmo que seja inconsciente, a poética da literatura de
cordel recria a temática de Carlos Magno e jamais transcreve seu conteúdo, como propõem
alguns pensadores da matéria.Para o sertanejo, a figura e a pessoa do cangaceiro representam seu ideal heroico e, por
essa razão, esse mesmo sertanejo sempre se interessou e sempre quis ler ou ouvir os cantares
sobre seus heróis. Se o homem do sertão via no cangaceiro o medo, percebia também que se
fazia necessário o cantar e o louvor em sua honra, pois isso não seria apenas a afirmação
desse herói, mas também do homem e da terra, representados no canto que ele sintetiza.
Observador de todas essas passagens entre o sertanejo e o cangaceiro, entre o temor e
a admiração, os poetas detinham um quê de obrigação por revelar fatos e manter essamemória. Evidente que havia esse temor do povo em relação ao cangaceiro, ao mesmo tempo
em que havia uma busca por um herói, e este não podia ser outro, senão o próprio cangaceiro.
O povo precisava se apegar às figuras desses homens como escape e saída para suas
amarguras, as injustiças vividas, as secas, a fome e a miséria. Os cangaceiros representavam o
que os políticos, por exemplo, não ofereciam: um sentimento de justiça.
Ao enfrentarem o sistema vigente e ao combaterem os coronéis, os cangaceiros
transmitiam ao povo a conta exata da bravura e do destemor que esse mesmo povo não
mostrava, uma vez que não tinha as forças necessárias para o desafio diário contra um coronel
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de barranca, pois na luta para sobreviver esse povo dependia quase sempre de um destes
senhores feudais e a ele tinha de se curvar.
Responsáveis por guardar a memória coletiva, cantadores e poetas da literatura de
cordel sintetizam e divulgam essas lutas e essas histórias por meio da voz, os primeiros, e da
letra e da voz, os cordelistas,que, ao tirarem do prelo seus textos, perambulam por feiras e
ruas, praças e cidades, contando valentias e bravuras que perpetuam a saga dos cangaceiros e
os fazem heróis, afirmando-os, mas afirmando ainda o próprio sertanejo, pois este passa a ser
representado no cantar que resume a coletividade de que faz parte. Falar e fazer constituem
para o povo atitude de coragem e destemor. A coragem e os elementos de que o povo não
dispunha para executá-la estavam nas mãos dos cangaceiros e, sendo este vencedor, o povo
estará vingado e a justiça estará feita.O poeta tem extrema importância em seu grupo social ao centrar seu texto na lida do
cangaço, pois é o único que dispõe do poder da palavra para a captação efetiva da realidade
que propõe focar como observador e como instrumento de ligação entre o cangaceiro e o
leitor possível ou mais precisamente o ouvinte das histórias que sintetiza e conta e até canta.
Entretanto, como porta-voz de seu povo, o poeta tem o cangaceiro igualmente como seu herói,
pois a bravura, a força, a sagacidade do cangaceiro têm de, primeiramente, chamar a atenção
do poeta. A musa da poética popular capta o momento exato de afirmar o herói frente ao povoe a partir daí o imaginário se faz, não sem um foco no mundo dos fatos ou dos reais
acontecimentos.
O canto épico do cordel, como nos clássicos, apresenta dois planos que auxiliam no
entendimento da natureza do texto: uma realidade patente, calcada num fato, e uma realidade
mítica. A realidade patente depõe da história e de tudo que dela se conta como certeza. A
realidade mítica torna-se o resíduo do que ficou da história ou o que dela se extrai, mas há
nisso um dado interessante: é o mítico que termina por funcionar com foros de verdade, pois éa verdade que resta e a que o povo e o seu poeta querem e aprovam. O poeta tem por função,
portanto, levar à coletividade o que colhe dessas duas realidades, para dar à sua obra o caráter
de canto épico. Os fatos evidenciam a história, e o imaginário dá relevância ao mítico ou
imaginário, sustentando a narrativa, dando-lhe a grandeza que merece um texto épico.
Na crônica do Nordeste do final do século XIX e início do XX, crimes diversos
envolviam grupos familiares rivais por circunstâncias as mais variadas como as de ordem
político-partidária, pequenas dissensões em torno de delimitações de terra, questiúnculas por
posses de animais, crimes de desonra à filha de determinada casa, e, consequentemente à
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família, entre outros. Todos motivavam desavenças que se estendiam por anos a fio e
fatalmente abarcavam outra situação: grupos familiares agregados, de um lado e de outro das
refregas, no dever da defesa mútua se digladiavam severa e sinceramente. Nesse ambiente de
tensão e morte, os chefes dessas famílias, no cumprir de seu trato de honra, quase sempre
coronéis, fazendeiros, senhores de terras e posses, ou pequenos aliados como agricultores,
posseiros, servos, terminavam por perecer em lutas, às vezes, desiguais. Morriam, porém, na
defesa da palavra empenhada e da honra de serem aliados.
Ao utilizarem o interessante recurso de um Eu que narra as aventuras cangaceirescas,
os poetas se defendem e se privam de represálias por parte dos cangaceiros e das volantes.
Criar mecanismo que lhes permita divulgar cotidiano tão delicado e perigoso é conferir
expediente de proteção que se estende, com pequena exceção, a todos os cordelistascontemporâneos do cangaço como um quase inconsciente silencioso pacto. A esse Eu que
representa inteligente saída de criação literária para evidenciar a vida e a ação dos cangaceiros
trataremos de Eu épico. Sustentação poética dos cordelistas, é recurso que representa a voz
aos cangaceiros, pois eles mesmos narram, de forma clara e não menos contundente, suas
histórias. Ao se valer desse Eu épico, os poetas tratam, por exemplo, de furtos, roubos, mortes
horrendas, saques e ataques a pequenas cidades e povoados, ao mesmo tempo em que se
redimem, pois, apesar de ser poema épico, a terceira pessoa que lhes colocaria em apuros nãoaparece no texto.
Portadores de virtudes e defeitos, atributos dos heróis, os personagens das narrativas
do cordel épico passam a um só tempo a ideia de que seu heroísmo se faz presente quando se
aponta sua valentia ligada ao enfrentamento dos poderosos locais, representados por coronéis
e fazendeiros, bem como quando do enfrentamento do poder constituído, de natureza mais
abrangente, o que envolve o estado, suas leis e suas forças militares.
Devemos, porém, lembrar que, apesar de receios quanto aos cangaceiros ou ao estado,há predisposição dos poetas em cristalizar as aventuras e façanhas dos cangaceiros como algo
que caracterizaria o mito segundo as expectativas de parte do povo e de acordo com suas
perspectivas. O poeta sintetiza esse caráter mítico em resposta ao povo.
Abra-se um parêntese para lembrar não só a existência do cordel épico paralelamente
ao período em que os cangaceiros desempenham suas atividades como sua resistência ao
tempo, fenômeno próprio da matéria épica, mas se estendendo aos nossos dias, isto é, seu
curso corre para além do tempo em que o cangaço existiu. Além do mais, o cordel épico atual,
diferente daquele coetâneo aos cangaceiros, usa a instância narrativa, como nos épicos
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clássicos, centrada na terceira pessoa do discurso. Esse distanciamento no tempo faz com que
os poetas se sintam livres para criar e isso influencia no seguinte comportamento: embora
muitos vejam com simpatia os ideais do cangaço, podem agora apresentar visão diferente de
tudo o que propunham os poetas na época em que viveram os cangaceiros.
Desse modo, os poetas surgidos após os anos 40, marco final do cangaço, podem tanto
fazer crítica ferrenha aos cangaceiros ou dirigir-lhes, com visão humorada, a pilhéria e a
galhofa, como lhes devotar admiração exaltando-lhes a bravura. Na verdade, no pós-cangaço
esses textos podem trazer estima ou repulsa sobre os cangaceiros, o que depende do ponto de
vista de cada poeta.
Para manter vivas as histórias do cangaço, os poetas compunham e compõem uma
rede de textos que, conforme mostrado acima, extrapolam o tempo em que viveram oscangaceiros, havendo toda uma produção de cordéis de natureza épica que passa pelos anos
50 e chega aos nossos dias. No cordel épico, entretanto, o que aparece é a razão de o poeta
engrandecer os atos dos cangaceiros como reconhecimento às suas ações e de acordo com o
que entendem por bravura, como por exemplo, o enfrentamento desses cangaceiros aos
poderes constituídos e aos seus representantes, os poderosos locais, ou seja, coronéis,
fazendeiros, comerciantes, políticos.
Resultante de um acontecimento grandioso, o canto épico se torna igualmente grande,na medida em que o poeta desfigura a realidade histórica, tornando-a rica de elementos que
extrapolam o acontecimento real, transformando-o, através de recursos míticos, em narrativa
de caráter épico. Na literatura de cordel, essa narrativa também se dá de forma a se apresentar
com recursos parecidos aos do canto épico clássico. As desrealizações do mundo
cangaceiresco se dão de tal forma que não há como negar as realizações míticas, não havendo,
embora, como negar as instâncias do real.
No primeiro capítulo desta tese “História e memória: cordel para ser contado, cordel para ser cantado”, se faz uma abordagem dos fatos que envolvem a trajetória dos cangaceiros
do ponto de vista da realidade, isto é, dos acontecimentos marcadamente históricos de sua
época e o que vivenciaram, mas que, transpostos para a linguagem da literatura de cordel,
adquirem caráter de memória que se estende até os dias atuais. Há também vários exemplos
de como pensadores viram o fenômeno cangaço e como se divide esse pensar em pró e contra.
Outro dado igualmente importante é que essas narrativas, por terem um “leitor
oralizado”, são contadas mediante duas estratégias: a da leitura – quase sempre em voz alta –
pelos poucos que sabiam ler, em roda, nos serões, em meio a parentes, amigos, achegados e
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aquela que se dava pelo canto a palo seco, i.e, sem auxílio de amplificadores de som, nas
feiras, nas praças, nas ruas, às vezes de memória, pela repetição; noutras, apenas de memória
por não se saber ler. O ritmo, a rima, a estrofação constituíam elementos mnemônicos que
facilitavam tanto a leitura como sua consequente memorização.
O seguinte capítulo, “Tecedores de histórias: a invenção dos cangaceiros”, traz
conjecturas sobre os poetas que tiveram como tema os grandes embates dos cangaceiros e
suas vitórias em meio inóspito e brutal. Há ainda a apresentação e consequente discussão
sobre como se criou todo um romanceiro em redor desses heróis e como essa memória foi
transposta para o cordel. Inegavelmente, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, nessa ordem,
foram os mais importantes cangaceiros, cada um a seu tempo e com seu estilo, e em torno dos
quais se deu toda a realidade artístico-literária da literatura de cordel. Não se deixou demencionar outros cangaceiros anterior e posteriormente ao auge e derrocada do fenômeno
cangaço.
Em “Romanceiro guardado, memória transferida”, primeiro subcapítulo do segundo
capítulo, há uma abordagem do cordel local e de sua afirmação no povo brasileiro e
nordestino, a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo na sua transição para o XX,
com os poetas Leandro Gomes de Barros, Francisco da Chagas Batista, João Melchíades
Ferreira da Rocha, Severino Milanês da Silva, Silvino Pirauá de Lima e Antônio Ferreira daCruz, todos a obterem em velhos textos ainda medievais alicerce matricial que, transferido, se
presta a erguer construções poéticas de sabor local.
O segundo subcapítulo, “Aedos nordestinos: penas inspiradas e histórias para contar ”,
faz um levantamento do que vem a ser, na ótica dos poetas populares, a representação do
cangaceiro como herói, sem perdermos de vista o elenco teórico possível, desenvolvido
academicamente e a partir de estudos que tiveram o mito como mote. Nossa pesquisa tem
como objetivo estabelecer e demonstrar atos heroicos no percurso da poética literária docordel, no tocante a esse herói que provém do cangaço. Seguramente, nosso olhar se volta
para a realidade de um herói inserido na cultura nordestina e de acordo com os cordelistas que
desenvolveram sua capacidade de escrever segundo a representação de um mito local, com
vistas, inclusive, para a afirmação coletiva do povo nordestino e brasileiro.
No terceiro subcapítulo, intitulado “Antônio Silvino, Lampião e outros heróis, os
fatos, os feitos, o mítico e o místico”, serão abordados os fatos e os feitos dos cangaceiros de
Antônio Silvino a Lampião, além de outros que fizeram a história do cangaço. O texto faz
notações pontuais que remetem ao período colonial com seus embriões do que viriam a ser os
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cangaceiros pelos séculos XIX e XX. As peripécias desses homens, sua violência, seus
índices de tolerância, seus embates, seus conchavos, teorias várias a seu respeito, tudo se
discute, além de se fazerem mostras de textos de cordel que ilustram os fatos e o mítico, o
místico e o político.
Em “Catábase: a descida ao inferno e a subida ao bom sertão” , quarto subcapítulo,
discute-se o espaço mítico a que os cangaceiros recorreram para configurar sua luta diária. É o
lugar em que os poetas populares inserem seus heróis, e não teria como ser outro. Palmilhar
esse espaço é descer/viver no inferno/sertão. É de lá retornar para alcançar a categoria de
herói. A marca primordial dessa aventura é se sair vitorioso. Ser levado pelo destino sem
olhar para trás é galgar a heroica galeria. O sertão é o grande inferno que os cangaceiros têm
de enfrentar. O inferno é a sobrevivência em meio à aridez não apenas geográfica, mas doshomens: “coronéis”, senhores de terras, políticos, governo, polícia. Eles, os cangaceiros, são
também áridos, secos, valentes. Viver nessa ambientação é viver no inferno. De lá sair é não
só se purgar, mas tornar-se herói.
É sabido que não se fazem heróis com a marca do anti-herói. Os cangaceiros são, na
poética do cordel, heróis. Embora pelo olhar clássico lhes faltem a plástica e a genética
olímpicas, por outro lado, o sobrenatural, os elementos mágicos, o encantamento, a bravura e
a altivez pertinentes a um filho de deuses gregos, não lhes foram negados. Se não há ainterferência dos deuses em suas ações, a poesia popular, no entanto, lhes dão todas as faces
que caracterizam um herói: a força em meio à luta, a sagacidade, a sabedoria. No panteão
nordestino, os grandes cangaceiros são os heróis segundo o que lhes imputa seu povo e sua
gente, na ânsia, inclusive de, coletivamente, se afirmar. Os poetas percebem isso e tornam
vivos um Jesuíno Brilhante, um Antônio Silvino, um Lampião.
No terceiro capítulo, “Amores no cangaço: Marias e Dadás – Vênus no sertão”, a
intenção é mostrar que o cordel épico traz também em seu bojo as “tágides” sertanejas. Foramelas acabocladas e trigueiras mulheres que seguiram seus homens sem pensar em
consequências, ou se nelas pensaram, não se intimidaram, pois o amor, mais forte,
sobrepujava a quaisquer perigos e as fez caminhar por ínvios sertões, no afã de, ao lado de
seus companheiros, cultivarem o que há de mais precioso no ser: amar. Sofreram e morreram
por esses loucos amores. Os cordelistas souberam devotar tributos a essas Vênus do sertão.
Nesta tese, mencionamos também canções de amor que foram imortalizadas na memória
brasileira e pertenceram tanto aos bandos propriamente quanto aos demais artistas brasileiros
de todas as épocas e gêneros.
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No quarto e último capítulo desta tese, “Oficina do cordel: a inspiração, o suor”,
versaremos sobre o fazer poético desses autores que registraram e registram o cotidiano do
Nordeste num esforço para perpetuar a cultura e a história da região. Quase todos
semialfabetizados, esses poetas, em muitas ocasiões, tecem sobre o próprio fazer literário,
independentemente da temática focalizada. Nos cordéis épicos, a presença do metapoema é
uma realidade, sobretudo quando há uma tentativa de se explicar o porquê do tema e de sua
abordagem. Pode-se afirmar com propriedade que mais de 90% desses autores não dão conta
dessa característica teórica em seus textos. Além disso, mostras e discussões sobre
intertextualidade serão uma presença constante nos textos de literatura de cordel, conforme
verificaremos.
É notório que esses fenômenos se dão na própria tradição do cordel e sempre foramcomuns a esse texto, especialmente pela ideia que os poetas trazem de inspiração: batalhar
com a palavra em duro trabalho, explicar seu enredo ou feitura, dialogar com outros textos
tanto na sua forma escrita como na leitura em voz alta para o respeitável público.
Devemos ainda acrescentar que, no que concerne à ortografia dos textos de cordel,
optamos por manter a sua autenticidade, com seus supostos “desvios” gramaticais,
respeitando o tempo em que foram produzidos e o conhecimento que têm seus poetas, no
tocante à normatividade da língua portuguesa.
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1 – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CORDEL PARA SER CONTADO, CORDEL PARA SER
CANTADO
Vários poetas escreveram
Esta história também...(José Costa Leite, em Nascimento vida e morte de AntônioSilvino)
A História no seu sentido mais universal sempre fornecerá ao pesquisador a busca a
fundo dos acontecimentos. É imprescindível ir aos documentos, aos papéis, aos museus, às
bibliotecas, aos jornais, a fim de se resgatar o passado e de se tentar entendê-lo e interpretá-lo.
Na literatura, a busca pela comprovação dos fatos não é nem será um fim. Sua ligação com
um passado histórico qualquer está em com ele dialogar, se há intenção poética de se produzirtexto, por exemplo, de caráter épico.
Seguramente, qualquer evento da história da humanidade em todos os tempos trará
sempre um quê de relato paralelo. A aplicação do termo se ajusta ao texto que remete a tudo
o que se extrai de um dado real, isto é, propriamente histórico, e se estende, com o tempo, a
um imaginário erudito ou popular, numa espécie de resíduo da própria história, para se
constituir, em relato épico, versão tanto erudita quanto popular. Os relatos populares tendem a
representar as verdades em que o povo acredita e de que extrai tudo o que o legitima e com
que se identifica. Isso dá a impressão de que sua história só é real se contada, narrada por ele
ou pelo poeta, seu representante. Destarte, o povo alimenta sua própria história e a guarda
pela memória oral – quase sempre – em detrimento, a princípio, do texto escrito, pesquisado,
analisado academicamente. Acumulados na memória coletiva, os relatos populares se
transpõem de geração a geração e terminam por serem testemunhas de épocas as mais remotas
e das mais variadas histórias e vivências.
Desse modo, pode-se aventar que A história do imperador Carlos Magno permaneceu
por muito tempo na memória popular europeia porque foi não só aceita, mas identificada com
esse mesmo povo. As façanhas do lendário imperador também aguçaram o imaginário popular
brasileiro, já que a história de suas investidas foi para cá transplantada em livretos que,
igualmente, de forma oral se espalharam, ainda no período colonial, sobretudo, em solo
nordestino, espaço em que esses livrinhos de aventuras se arraigaram. Do mesmo modo,
narrativas como A Donzela Teodora, A princesa Magalona, Roberto do Diabo, João de
Calais, entre outras, legaram igual imaginário à verve nordestina. Essas faces importantes de
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narrativas de bravura com caráter medieval instigaram a adaptação e o desdobramento de
outras narrativas, desta feita, locais, com temática ajustada à saga dos cangaceiros.
A memória coletiva, também chamada de tradição oral, que H. Moniot (1982) define
como “tudo aquilo que é transmitido pela boca e pela memória” (p.102), tem importância no
período colonial, pois constituía a cultura oral do elemento indígena presente quando do
achamento do Brasil, com seus mitos, suas lendas, sua dança, sua música, suas narrativas de
tempos primordiais, com os idosos a passar de geração a geração as mais intrínsecas
tradições. Para ilustrar esse contato do europeu com a tradição oral nativa, veja-se o que narra
Jean de Léry, (1980) em crônica de viagem do século XVI:
Certa vez ao percorrermos o país, eu, outro francês chamado Tiago Rousseau e umintérprete, dormimos uma noite na aldeia de Cotina; pela madrugada, ao retomarmos
a marcha, vimos chegarem de todos os lados os selvagens das vizinhanças, os quaisforam reunir-se em número de quinhentos a seiscentos numa grande praça. [...]Durante cerca de duas horas os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram dedançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conheceremmúsica. Se no início dessa algazarra me assustei, já agora me mantinha absortoouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilhorepetido a cada cópia: He, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, heyre, yuê [...]. Como euainda não entendia bem a língua dos selvagens, pedi ao intérprete que meesclarecesse sobre o sentido das frases pronunciadas. Disse-me ele que haviaminsistido em lamentar seus antepassados mortos e em celebrar-lhes a valentia.(LÉRY, 1980, pp. 210, 214, 215)
No entanto, à medida que a civilização brasileira avança, começa a estabelecer e a
traçar outros contatos com textos orais, ou até escritos – mas com menor incidência – ,
transpostos para cá com o advento de povos como o africano, o judeu, o árabe, que aportaram
principalmente num Nordeste que começava já a amalgamar mitos indígenas e portugueses de
um primeiro momento, para daí em diante deixar de ser luso-indígena e passar a sofrer
influência multicultural em razão da chegada e consequente diálogo com tantos povos.
Graças a esses contatos, fenômenos culturais que passam a integrar a tradição
nordestina, guardam, originalmente, caráter desse imaginário transposto, ao qual foi somado,
de modo natural, o imaginário autóctone, numa espécie de rede que se costurou com fios
multicoloridos para se apresentar carregada de significados locais representados ora pelo
homem do litoral, ora pelo do sertão.
Nesse caudal de cultura e ao lado da História, que constata e sustenta fatos e
fenômenos sociais, sobrevive o lendário, o realismo mágico, o sobrenatural, com o fim de
alimentar o mito. Ao se tocar no Nordeste cangaceiresco, percebe-se que esse fenômeno, para
subsistir e se afirmar, necessitou de algo a mais com que se envolvesse, para se tornar
legitimo: o imaginário popular. Na verdade, com o fim de se afirmar, qualquer povo tem de se
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munir de explicações as mais variadas para consolidar seus mitos. Nesse caso, para o povo, o
imaginário parece mais importante do que o registro propriamente histórico.
Nas culturas populares, apesar de não parecer, o imaginário sobrepuja a História e
nunca o contrário, pois aquele se dissemina de geração a geração e prevalece na memória da
comunidade, e esta termina por se restringir à escola, à biblioteca, à academia. Dessa forma,
se o povo não tem acesso nem contato com o registro que o documenta, isto é, a História, de
forma natural, reinventa, recria sua própria história, e isso só é possível pelo exato viés desse
imaginário, que diferentemente da história, que se restringe ao registro do real objetivo, se
exercita a partir do inconsciente coletivo em aberto e produzi os discursos onírico, mítico e
artístico.
Se por outro lado, a História tenta explicar, entender os fenômenos humanosracionalmente, de forma empírica, o povo também busca se explicar, se entender e contar a
sua própria história. É como se, ao buscar fazer sua história e tudo o que a envolve, creditasse
ao imaginário todo o entendimento em torno de si, de sua origem e fundação. A História,
propriamente, funciona como re-historicização, ou seja, busca deter-se apenas no lógico, no
racional, com toda a importância e compromisso que essa ciência tem na narração e
interpretação dos fatos. No saber popular, porém, há a capacidade de contar/recontar a seu
gosto, e até segundo um caráter de subjetividade individual/coletiva, aquilo que a História pretende analisar de forma isenta. A História é ciclo fechado; o imaginário, aberto, para se
renovar sempre.
Na história nordestina, o cangaço é uma das ocorrências que chamou a atenção de
estudiosos de várias ciências e de artistas das mais diferentes linguagens. Realidade vivida no
espaço sertanejo, o cangaço instiga a História, a Sociologia, a Antropologia a interpretá-lo e
entendê-lo, e a Literatura e outras artes a representá-lo. Associado ao ciclo das secas, à
pobreza e à miséria – em qualquer estudo ou representação artística – , o tema do cangaço serásempre polêmico, pois depende do ponto de vista, inclusive político, de quem o observa. No
ambiente acadêmico, a formação e orientação política (quase sempre de esquerda) dos
pesquisadores dirão da maior ou menor querela em torno do assunto que, por anos, não só
afligiu, mas encantou o Nordeste brasileiro. Nas artes, rara a representação que não seja
voltada para a justiça e igualdade social.
Nomeadamente, o cangaço não está ligado apenas à miséria, à pobreza e à fome,
afirmativa trivial de considerável parte dos estudiosos. É certo que o meio em que se deu esse
fenômeno, por questão geográfica e climática, é propenso a essa pobreza, miséria e fome, a
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ponto de Billy Jaynes Chandler (1981) asseverar que “a grande época do cangaço brasileiro
começa com a mortífera seca de 1877-1878 e alcança seu apogeu quantitativo com a de 1919”
(p. 27). No entanto, havia nesse mesmo ambiente inóspito uma gente abastada cuja riqueza
era justificativa para as ações dos salteadores andantes e sua consequente sustentação. Havia
nas terras palmilhadas pelos cangaceiros, apesar das secas, uma prodigalidade em reses,
fazendas, comércio, armazéns, coletorias, entre outros, lugares em que os bandoleiros
empreendiam sua força e violência para amealhar fortuna e poder (financeiro e político), ao
mesmo tempo em que se faziam ou se deixavam propagar como defensores da justiça e dos
pobres.
Em estudo acurado sobre o banditismo, afirma Eric Hobsbawm (2010):
Ao mesmo tempo, porém, o bandido é inevitavelmente arrastado à trama da riquezae do poder, porque ao contrário dos outros camponeses, ele adquire aquela e exerceeste. Ele é “um de nós” constantemente envolvido no processo de associar -se a“eles”. Quanto mais bem-sucedido é um bandido, tanto mais ele é ao mesmo tempoum representante e paladino dos pobres e parte integrante do sistema dos ricos.(HOBSBAWM, 2010, p. 118)
Observe-se que a disputa pelo poder, em todos os sentidos, era inerente aos
cangaceiros. Há, porém, de se destacar que lhes interessava,sobremodo, o poder econômico ao
político, devido a sua não fixação em lugar algum, por seu cotidiano desmedido e sem pouso
certo, por seu natural caráter nômade e por estarem sempre em fuga, quando não em combatecom as forças volantes de sua área de atuação.
Um chefe cangaceiro ou seus comandados não podiam se aquartelar e mostrar
qualquer poder em lugar fixo, determinado. Dessa forma, seu poder político se dava
indiretamente, pela influência, por exemplo, de amizades políticas com coronéis de quem
viessem a ser aliados.
De acordo com Vera Ferreira e Antônio Amaury (2009):
Em todos os estados percorridos por Lampião, existiam coiteiros de grande poder político e econômico, com exceção do Rio Grande do Norte. No Ceará estavaAntônio Joaquim de Santana, pai do secretário de Justiça do estado. Na Paraíba, o[...] coronel Pereira. Em Pernambuco existiam vários, entre eles o coronel Ângelo daGia e, surpreendentemente, o comandante das forças volantes, Theophanes FerrazTorres, que chegou a vender munição a Lampião, segundo depoimento de pessoasda época [...]. Finalmente, Em Sergipe, o coiteiro mais conhecido era Antônio deCarvalho, o Antônio Caixeiro, pai do interventor [governador] do estado, o capitãodo Exército doutor Eronildes de Carvalho. (FERREIRA e AMAURY, 2009, pp. 34-35)
Ao referir-se ainda à rede de aliados e coiteiros, Lampião, em entrevista ao médico
Otacílio Macedo, em 1926, em Juazeiro do Norte, só se mostra decepcionado com o temido einfluente coronel José Pereira Lima, o Zé Pereira, chefe da chamada revolta de Princesa, na
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Paraíba, que, no início de 1930, declara a hoje cidade de Princesa Isabel, como República de
Princesa, e, portanto, território independente dentro daquele estado da federação. Privados,
anteriormente, de boa amizade, rompem e se tornam inimigos figadais, de quem afirma
Virgulino Ferreira na entrevista a Macedo: “De todos os meus protetores, só um,
miseravelmente, me traiu. Foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um
homem perverso, falso e desonesto, a quem servi durante anos, prestando os mais vantajosos
favores de nossa profissão”. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 306)
No entanto, há outro coronel com quem Lampião se indispõe, apesar da amizade que
também nutriam anteriormente. Trata-se do coronel baiano Petronilo de Alcântara Reis,
conhecido por coronel Petro, que terminou por trair o bando comandado por Lampião e de
quem, por esse episódio, passa a ser tão perseguido que foge de suas fazendas:A convivência entre os dois era bastante amistosa e sempre que se encontravam, arecepção era amável. Até que, ao ser atacado por uma volante baiana, o grupo deLampião matou o sargento Afonso. Ao revistarem o corpo do sargento, foiencontrado um bilhete assinado pelo coronel Petro indicando os locais frequentados
pelo grupo, além de instigar os policiais a eliminarem Lampião. Foi a conta. Aodescobrir mais uma traição, lampião e seu grupo passaram a destruir as fazendas docoronel.O coronel Petro ainda tentou enfrentar o cangaceiro, mas os prejuízos eram tãograndes que o levaram a abandonar a luta e retirar-se da região para preservar a
própria vida. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 194)
Ressalte-se que Virgulino Ferreira, para quem o cangaço fora profissão, mantivera o primeiro contato com outro coronel, o padre Cícero, importante e poderoso líder espiritual e
político, nos idos de 1926, em casa do poeta popular João Mendes, na cidade de Juazeiro do
Norte-CE, ocasião em que tratara com o santo patriarca nordestino de assunto relativo à
Coluna Prestes. Em relação àquele estado e ao padre, declara Lampião:
Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque nele não tenhoinimigos. Nunca me fizeram mal e, além disso, é o estado do padre Cícero. Como jádisse, tenho a maior veneração por esse santo sacerdote, porque é o protetor doshumildes e infelizes e, sobretudo, porque há anos protege minhas irmãs que moram
no Juazeiro [...]. Convém dizer que eu ainda não conhecia o padre Cícero, pois esta éa primeira vez que venho a Juazeiro. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 310)
Como afirmado anteriormente, e de acordo com essa citação, pode-se inferir que a um
chefe cangaceiro importava, além do já citado poder econômico, apenas rápido e sorrateiro
contato político a exemplo deste com o padre, como uma espécie de suporte e sustentação
para as ações que propõe executar. Dispor de apoio político é, de todas as formas, ter aval
para cruzar fronteiras, agir livremente, fazer conchavos, contar com proteção de várias
vertentes e de diversos lugares por que tinha de passar. Ter tamanho apoio permite a um chefe
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cangaceiro agir como se tivesse ele próprio mando e força política. Pelo menos indiretamente,
devido às cartas brancas que conduzia.
Saliente-se, porém, que, tanto na literatura de cordel quanto nos estudos sobre o
cangaço, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, os dois grandes chefes, por ironia, talvez, ou
de modo inconsciente ou até consciente ou devido a não exercerem o poder político, se
autointitularam, cada um no tempo em que atuaram como governadores do sertão, em
desafio, literalmente, às autoridades e aos poderes constituídos.
Nesse caso, perceba-se que, de uma forma ou de outra, havia por parte dos bandoleiros
referidos uma inconsciente vontade de mando, no sentido mesmo político, embora isso jamais
fosse possível, e decerto, Silvino e Lampião disso tinham consciência.
Num momento qualquer de sua trajetória, Lampião endereça carta ao entãogovernador do estado de Pernambuco, Júlio de Melo, que lhe fora entregue pelas mãos de
Antônio Guimarães, chefe de polícia do estado. A missiva chegou a Guimarães por
intermédio de Pedro Paulo Mineiro Dias, engenheiro e representante comercial da Standart
Oil, que teria sido feito refém dos cangaceiros capitaneados por Virgulino Ferreira e fora
liberado sem pagamento de resgate. Frederico Maciel (1988) apresenta o conteúdo do texto
escrito por Lampião em que reza os motivos da partilha do estado entre o litoral e o sertão:
fica o mar por conta do governador e o sertão segundo o mando do chefe cangaceiro:Senhor governador de Pernambuco,Suas saudações com os seus.Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerrano sertão e acabar de vez com as brigas. [...] Se o senhor estiver no acordo, devemosdividir os nossos territórios. Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião,Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dostrilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a
pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois então é oque convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda seus macacos meemboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um governando oque é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho e para que não
se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo a sua resposta e confio sempre.Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão (MACIEL, 1988, p. 38)
A atitude de Lampião (se de deboche, se irônica, se verdadeira, embora pelo tom
pareça verdadeira) é de caráter universal entre os bandidos. A ânsia pelo poder traduz, em
termos políticos, a ideia mesma de tomá-lo do estado e de ter maior domínio em sua
comunidade. Se se descartar o Virgulino Ferreira desvencilhado de proposta propriamente
política, revolucionária, de tomada do poder em nome do povo, é possível que a missiva
endereçada ao governador de Pernambuco não tenha valor de protesto pelo poder. Nesse caso,
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soa irônica e constitui apenas insulto. Do contrário, sua atitude seria de defesa do povo e de
tomada do poder pela revolução, mas isso, de fato, não condiz com as propostas do
bandoleiro.
Sobre Antônio Silvino igualmente corre a lenda de que se arvorava a governar o
sertão, a que chamava de estado. Como fizera Lampião (e talvez este o fizera por imitação a
esse seu antecessor), há registro de mensagens sarcásticas enviadas por Silvino às autoridades
de seu tempo. Ao presidente (termo em voga na época para os governadores dos estados) da
Paraíba, conforme Leonardo Mota (1982), enviara telegrama irônico, desafiador e com uso de
trocadilhos:
Ao folclorista Dr. José Rodrigues de Carvalho, então Secretário de Estado, mandouele [Antônio Silvino] dizer em referência ao Chefe de Polícia Dr. Antônio Massa e
ao presidente Castro Pinto: -“Pise milho, sesse massa e dê a esse pinto pra comerque o mal dele é fome!” (MOTA, 1982, p.181)
Leandro Gomes de Barros, com texto em terceira pessoa (raro, já que é
contemporâneo de Antônio Silvino), entre crítico e verdadeiro, apresenta a tonalidade política
que marcou o cangaceiro e o seu apoio, inclusive, a um político local em processo de eleição
também na Paraíba. No texto, a mesma proposta de o governador dominar a capital, e ele,
Silvino, o sertão:
A Paraíba do NorteHoje está em desatino;Uns se queixam do governo,Outros de Antônio Silvino,A política pareceBrincadeira de menino.
[...]Antônio Silvino disseQue agora, na ParaíbaO que não votar com elePode ir arrumando o quiba,O eleitor pobre apanha,O rico morre ou arriba!
Diz ele que se o GovernoLhe tomar a eleição,Ele tem o doutor riflePara ganhar-lhe a questão,E a dona ponta de facaLhe dispensa proteção.
[...]Antônio Silvino disse:- “Eu não aliso ninguém... Se Rego barros perder,A coisa aqui não vai bem...Em pilão que eu piso milhoPinto não come xerém...
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Tenho uma opinião:Que morro porém não minto!Aqui, sem ser Rego Barros,Outro vindo, eu não consinto!
Eu só voto em galo velhoQuem quiser que vote em pinto...
Telegrafei ao GovernoE ele lá recebeu,Mandei dizer-lhe: - Doutor,Cuide lá no que for seu:A Capital lhe pertence,Porém o Estado é meu!!!” (BARROS a pud MOTA, 1982, pp. 179-181)
De todo modo, é do cotidiano do banditismo social a tentativa de tomada do poder
constituído. Se Lampião ou Antônio Silvino não eram politizados a esse ponto, a carta do
primeiro e o telegrama do segundo revelam, porém, o que era práxis entre os bandidos sociais
ao longo da história. Hobsbawm (2010) mostra o acabado retrato desse comportamento nos
bandidos tanto da Europa quanto da Ásia diante da fragilidade dos governos em territórios
dominados por bandidos:
A debilidade do poder propiciava o potencial para o banditismo. Com efeito, atémesmo os impérios mais fortes – o chinês, o antigo Império Romano em seu apogeu
– consideravam que certo grau de banditismo era normal e endêmico nas áreasfronteiriças dedicadas ao pastoreio em zonas congêneres. [...] Como fenômeno demassa (vale dizer, como ação independente de grupos de homens violentos e
armados), o banditismo somente ocorria onde o poder era instável, estava ausente ouhavia entrado em colapso. Nessas situações, o banditismo passava a ser endêmico,ou até mesmo pandêmico [...]. Em tais momentos, líderes independentes de homensarmados podiam penetrar, eles próprios no mundo do poder real, do mesmo modocomo, em outras épocas, clãs de cavaleiros e salteadores nômades haviamconquistado, por terra ou por mar, reinos e impérios. (HOBSBAWN, 2010, pp. 30-31)
Os documentos enviados por Lampião e por Silvino constituem mais uma espécie de
crítica ácida desses chefes cangaceiros do que uma realidade/sonho de poder político a
conquistar para o povo. Textos desaforados como este sempre foram direcionados aos poderosos tanto locais, isto é, coronéis, prefeitos, juízes, como aos de patentes mais
destacadas, como governadores. A ironia representava o pensamento dos cangaceiros, por
acharem fracos, impotentes e inoperantes não só essas autoridades, mas também seus agentes
nas perseguições aos bandos. As narrativas de cordel apresentam essa face de governadores
do sertão encontrada em Antônio Silvino e em Lampião. Sobre o primeiro, também
cognominado Rifle de Ouro, escreve Leandro Gomes de Barros:
Pergunta o valle ao outeiro
O Iman à exhalaçãoO vento pergunta a terra
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E a brisa ao furacãoRespondam todos em coroEsse é rifle de ouroGovernador do sertão. (BARROS, apud CURRAN, 2001, p. 68)1
Sobre Lampião há o seguinte excerto, que também dá conta das questões políticas em
que o cangaceiro se quer meter. Narra o poeta:
Nos sertões onde eu governoA justiça é positivaO juiz é meu fuzilDonde toda lei derivaTodos me pagam impostoE quem não pagar com gostoConte com minha ofensiva. (BATISTA apud CURRAN, 2001, p. 72)
Além dos já supracitados protetores e amigos de Lampião, é importante apontar outroscomo os fazendeiros e comerciantes coronel Antônio da Pissara, de nome Manuel Teixeira
Leite (que em dado momento foi obrigado pelo tenente Alencar, chefe de volantes, a entregar
o coito de Lampião e seus sequazes); coronel José Abílio D’Ávila, coronel Joaquim Rezende,
todos, amigos, coiteiros e parceiros em várias situações (Cf.: OLIVEIRA, 1970, pp. 318-320).
Essas relações de amizade constavam dos mais variados interesses: os de ordem política, da
compra de armas, de munição, (de que mais o chefe precisava) e negócios de toda a natureza.
Ter apoio de quem detivesse poder era importante para todos os chefes cangaceiros, deAntônio Silvino a Virgulino Ferreira, pois esses contatos com os todo-poderosos coronéis era,
de certo modo, estratégia de sustentação política e consequente manutenção do próprio
cangaço.
A propósito do chamado coronelismo, as primeiras notícias que se têm a seu respeito
no Brasil vêm do século XVII e estão ligadas à capitania de Pernambuco. Com a criação do
Governo Geral, em 1549, a terra continua a ser repartida em Sesmarias, ou seja, segue a
cultura do latifúndio, reduto do senhor de terras que dá origem ao coronel.
Luiz Luna e Nelson Barbalho (1983) dão conta desse fenômeno e apontam:
O primeiro coronel com patente que apareceu no sertão de Pernambuco, nomeado pelo governador Pedro de Almeida, em 1674, ao tempo da Guerra dos Palmares, foio fidalgo Luiz do Rego Barros, filho do capitão-mor Francisco do Rego Barros edescendente em linha reta de Arnau de Holanda. Essa patente é histórica por ser a
primeira expedida oficialmente e foi produzir seus efeitos na área que veio a ser aComarca de São Francisco, território que pertencia a Pernambuco [...]. (LUNA eBARBALHO, 1983, p. 28)
1 Como as informações referentes à data de publicação dos folhetos de cordel são muitas vezes divergentes, eoutras até inexistentes, optamos por indicar entre parênteses apenas o último sobrenome do autor e a indicaçãoda página de onde foi transcrito o fragmento citado.
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Ainda no contexto dos coronéis, faz jus voltar aos tempos conturbados do século XIX,
quando da abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, protagonizada pela força das
classes abastadas e dos proprietários rurais, grandes senhores da terra. Nesse momento
histórico e com a independência consolidada, a regência trina faz com que os coronéis
detenham poderes, pois ganha força um sistema paramilitar criado pelo próprio Feijó, com o
nome de Guarda Nacional, e que se estende até os idos de 1922, quando é extinta no governo
de Epitácio Pessoa (Cf.: LUNA e BARBALHO, 1983, pp. 123 e 131).
O ato de criação da Guarda Nacional tem o sentido, inclusive, de inibir as reações e
agitações populares, além das ameaças de insubordinação de tropas militares insatisfeitas
tanto na Corte quanto nas províncias. Esse temor levou os liberais, por medo e insegurança, a
pensarem na instituição de forças paramilitares:Em tais condições, na sessão de maio de 1831, era lido o texto do decreto-leiinstituindo a Guarda Nacional. Com sua criação, aboliam-se as Milícias, cujasforças, contudo, ainda permaneciam vivas por alguns anos, sendo extintas à
proporção que se instalavam os corpos da nova organização militar [...]. A Guarda Nacional empresta caráter oficial aos tradicionais coronéis de barranco. (LUNA eBARBALHO, 1983, p. 132).
Quanto à relação cangaceiro/coronel, se um chefe do primeiro grupo, conforme já
ventilado, não podia centralizar poder, se pode supor esse mesmo poder pulverizado na figura
do segundo, se aliados, na busca mútua por força e apoio, recompensados pela troca de
serviços e favores. Sempre houve alianças entre chefes cangaceiros e coronéis, pois sem a
cobertura destes, aqueles não agiriam por tanto tempo e impunemente.
Segundo Aglae Lima de Oliveira, o coronel Zé Abílio foi acusado muitas vezes de ter
fornecido munições a Lampião. Em Bom Conselho de Papacaça (atual Bom Conselho – PE),
os irmãos Ferreira ficaram a expensas do dito coronel por vários anos:
Virgulino tinha verdadeira estima e respeito pelo coronel de Bom Conselho. Jamaisse desentenderam. O coronel conhecia tão bem Lampião, que por ocasião da mortedesse bandido, foi convidado para o reconhecimento do cadáver. Autoridadeslavraram o documento, arquivando-o no Batalhão da Polícia Militar, sediado emMaceió. (OLIVEIRA, 1970, p. 318).
Padre Cícero, igualmente havido como coronel dos maiores do Nordeste, também
mantivera contato com Lampião, conforme anteriormente mencionado. Na verdade, Floro
Bartolomeu da Costa, médico particular e conselheiro do padre em questões políticas, sugere
e articula a visita do bandoleiro à cidade sagrada do Nordeste, pois é Floro encarregado pelo
governo federal para dar combate aos ideais políticos de Luiz Carlos Prestes.
Assevera Abelardo Montenegro (1973):
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A 8 de março de 1926, falecia no Rio de Janeiro, o caudilho Floro Bartolomeu daCosta.Anteriormente, havia sido ele comissionado no posto de general pelo presidenteArtur Bernardes, para comandar as tropas que lutariam contra a coluna Prestes,Floro Bartolomeu organizaria um Batalhão Patriótico e teria autorização de nomear
os seus lugares-tenentes.Recebia Floro do Banco do Brasil uma ajuda de custo de mil contos de réis e oGoverno lhe fornecia, ainda, armamento. (MONTENEGRO, 1973 p. 286)
O presidente Artur Bernardes, ao que parece, não se lembrara de que poderes
paramilitares como a Guarda Nacional, remanescente do Império, haviam sido desfeitos por
Epitácio Pessoa quatro anos antes. Autorizar a criação do Batalhão Patriótico é continuar a
manter todo um poderio nas mãos de coronéis e senhores de terras no Nordeste. Constituíam
esses grandes proprietários oligarquias rurais de extremo poder e violência.
Desse modo, coronéis continuam a mandar, sobretudo, no sertão sob a proteção e a
chancela de um Estado igualmente atrasado, cujas forças políticas e militares não se
mostravam eficientes no combate aos seus problemas internos. Quanto a contratar a Lampião
e seu bando para agirem em represália à Coluna, embora não houvesse a concordância de
padre Cícero, vence o deputado, e o sacerdote cede.
Se havia um clamor para que se prendesse Lampião, se havia uma imprensa
independente que isso cobrava, por outro lado, havia uma imprensa complacente e dócil para
com o padre. O jornalista J. Matos Ibiapina, do O Ceará, em 16 de março de 1926, asseverava
“que padre Cícero não protegia criminosos por interesse pessoal para deles usar na defesa de
sua política. Fazia-o por bondade e para demonstração de prestígio” (MONTENEGRO, 1973,
p. 288).
Gonçalo Ferreira da Silva, ao escrever o cordel Evangelho primeiro do padre Cícero
Romão, remete a essa bondade de patriarca e conselheiro de todos os que o procuravam,
inclusive cangaceiros:
Serviu de mediadorEntre a dura autoridadeE o voraz cangaceiroQue a fraca sociedadeO deixara sem nenhumaEspiritualidade.
Padre Cícero deixavaO seu interlocutorDe agressivo, serenoCom respeitoso temor
No fim ainda lhe davaHumana aula de amor.
Protegia cangaceiros
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Mas de modo diferenteMuitas vezes ministrandoUm conselho inteligenteQuerendo que fosse humanoSem deixar de ser valente. (SILVA, p. 6)
Além do prestígio de que o padre gozava, houve o acatamento, por sua parte, das
sugestões de Floro Bartolomeu (na ocasião, recém-falecido) em relação ao jovem Virgulino
Ferreira e sua promoção. Por consideração ao ex-deputado, o desfecho da patente termina por
acontecer, independentemente de todas as reais repulsões tanto ao sacerdote quanto a
Lampião, mas principalmente ao padre:
Relativamente a Lampião e seu grupo, padre Cícero não cederia ao governo ummilímetro sequer de sua posição, pois considera a palavra empenhada por Floro[Bartolomeu] uma questão de honra.
A campanha contra padre Cícero pelo fato de receber Lampião, incorporando-o aoBatalhão Patriótico para cumprir a palavra empenhada por Floro, generalizava-se emtodo o país. (MONTENEGRO, 1973, p. 289)
As querelas e as motivações políticas dos agitados anos de 1920, sobretudo naquilo
que diz respeito à Coluna Prestes e ao seu alastrar de ideais comunistas por todo o país, fazem
com que o padre defenda e proteja Lampião e seu bando, pois o cangaceiro se envolve com os
propósitos de combater a Coluna. Os apelos do deputado Floro Bartolomeu fizeram com que
Lampião apoiasse a luta contra os comunistas, embora, seguramente, o cangaceiro não
soubesse na íntegra o que vinha a ser esse olhar político de Luiz Carlos Prestes e de seu
grupo. Seu interesse na prometida outorga da patente de oficial do polêmico Batalhão
Patriótico também lhe era rendoso, pois o cangaço era já um negócio. Em entrevista
concedida em Juazeiro do Norte e publicada no jornal O Ceará, de 17 de março de 1926,
responde Lampião a uma pergunta do repórter quanto a abandonar o cangaço, “que se vai se
dando bem com o negócio e não pensa em abandoná-lo” (MELLO, 2004, p. 118).
Lampião adentrou a cidade sagrada do Ceará com 49 homens a quatro dias da notícia
da morte do próprio Floro Bartolomeu, que pelo menos dois meses antes dessa fatalidade
havia coagido por carta Virgulino Ferreira a tomar parte nesse evento histórico de combate à
Coluna Prestes.
Épica e triunfal é a entrada do bando a Juazeiro. Num misto de temor e de admiração,
o povo não resiste à curiosidade. O fato foi descrito da seguinte forma:
No dia 4 de março de 1926, Lampião e 49 cangaceiros chegavam aJuazeiro. Nas ruas, para vê-los, aglomeravam-se umas quatro mil pessoas. Estavamos bandidos bem armados e municiados. Vestiam, na maioria, brim cáqui. Calçavam
alpercatas de rabicho e chapéu de couro. Usavam lenços de cores diversas amarradosao pescoço. Conduziam rifles e fuzil mauser, revólver e punhal. Traziam à cintura
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três a quatro cartucheiras, acondicionando nelas, cada homem, um total de 400 balas. (MONTENEGRO, 1973, p. 286)
Havia, é certo, na trajetória e no encalço dos cangaceiros poderosos inimigos, pois
essa lida dividia opiniões, mas nessa ousada investida os cangaceiros contavam muito com ahabilidade de dialogar ou de alguém por eles exercer essa função com mandatários locais em
diversas situações. Padre Cícero, poderoso que era, teve a sagacidade e, igualmente, a
capacidade não só de contornar qualquer posição contrária, mas de receber o bando e cumprir
com a promessa empreendida por Bartolomeu. Concedeu a patente sugerida tanto por este e
tão desejada por Lampião:
Após o café da manhã do dia seguinte, encaminhou-se à Igreja Matriz de N.ª S.ª DasDores. Palestrou demoradamente, em audiência particular, com o padre Cícero
Romão Batista. Lampião manifestou ao sacerdote o grande desejo de ser incluído noBatalhão Patriota. Batalhão das Forças Legais, sediado em Campos Sales, estado doCeará. Solicitou sua interferência a fim de conseguir o despacho de sua promoção ao
posto de capitão. [...] o Padre Cícero redigiu a patente. O Dr. Pedro de AlbuquerqueUchoa, engenheiro agrônomo, a pedido do padre, assinou o documento. (OLIVEIRA, 1970, p. 58).
Consta que Lampião, na conversa com o padre, além da patente de capitão que requere
para si, exige que se nomeiem seu irmão Antônio Ferreira e Sabino Barbosa de Melo como 1.º
e 2.º tenentes, respectivamente. Na lavratura do documento em que se concede a patente a que
tanto ansiava Virgulino Ferreira, vê-se que fora atendido o cangaceiro em sua petição.O documento dava a Lampião a possibilidade de atravessar livremente os estados do
Nordeste sem sofrer perseguição policial de nenhuma espécie, como um tipo de salvo-
conduto. Nesse momento, estava o cidadão Virgulino Ferreira à frente de seu grupo como
integrante das Forças Legalistas que davam combate a Prestes. No entanto, o cangaceiro não
percebeu que fora logrado, pois o papel que o punha como oficial não teria valor, e, portanto,
não gozava do reconhecimento das ditas Forças. De todo modo, a empreitada surtiu relativo
efeito: atualizou o armamento com substituição do rifle já antiquado por modelo de 1908,
além de seus soldados mais aguerridos terem ganhado cerca de 400 cartuchos,e os demais,
300, tudo fornecido e legado por Floro Bartolomeu, a quem, conforme já dito acima, fora
confiado recrutar o Batalhão Patriótico de Juazeiro (Cf.: OLIVEIRA, 1970, p. 59).
Nos seguintes termos, padre Cícero lavra as patentes de Virgulino Ferreira, Antônio
Ferreira e Sabino Barbosa de Melo:
Nomeio ao posto de capitão o cidadão Virgulino Ferreira da Silva, a 1.º tenenteAntônio Ferreira da Silva, a 2.º tenente Sabino Barbosa de Melo, que deverão entrarno exercício de suas funções, logo que deste documento se apossarem. Publique-se e
cumpra-se.
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Dado passado no Quartel das Forças Legais do Juazeiro, Batalhão Patriota, sediadoem Campos Sales.Juazeiro, 12 de abril, de 1926. (OLIVEIRA, 1970, p. 59)
Havia ainda no texto o seguinte adendo: “Reconheço ao senhor capitão Virgulino
Ferreira da Silva o direito de se locomover livremente, transpondo as fronteiras de qualquer
estado com os patriotas” (OLIVEIRA, 1970, p. 59).
Faz jus descrever a bela narrativa do fardamento de Virgulino Ferreira, a partir dali,
capitão Virgulino Ferreira da Silva: “Lampião vestiu-se como verdadeiro capitão. Túnica
Cáqui, na platina três galões de sutache branco, botas e chapéu de massa, cartucheira e
talabarte. Um jovem capitão de 28 anos de idade. Reuniu toda a família e tirou fotografias ”.
(OLIVEIRA, 1970, p. 59).
Desse momento histórico, registra-se ainda a visita que o poeta José Cordeiro fez a
Lampião, encontro que resultaria no folheto Visita de Lampião a Juazeiro, (Cf.:
CARVALHO, 2002, p. 69), cujos trechos mais importantes transcrevemos abaixo:
Tudo quanto já expusExijo a publicidadePara que todos conheçamO que é uma verdadeComo bem, esta visitaQuero que saia descritaCom toda sinceridade.
A causa dessa visitaVou dizer de antemãoPara que ninguém suponhaQue foi mera presunçãoEu entrei aqui amarradoFoi mediante um chamadoDum homem de posição.
Portanto não vão julgarQue eu seja presumidoSó penetrei na cidade
Não foi por ser atrevido
Foi atendendo um chamadoDo homem mais elevadoQue eu tenho conhecido.
Foi por intermédio desseQue obtive o perdãoDele também recebiA minha nomeaçãoTroquei, disso não duvidoMinha farda de bandidoPor outra de capitão.
Em troca dessa patente
(Quem me deu assim o diz)Vou perseguir revoltosos
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Enquanto houver no paísCom esta resoluçãoMarcharei para o sertãoCom fé que serei feliz.
Não serei mais cangaceiroSou capitão Virgulino
Nem também serei ladrãoSó fico sendo assassinoTroquei velhas profissõesPor 3 bonitos galõesDa polícia, que destino!
Agora, seu Zé CordeiroJá expus toda verdadeCom minha autorizaçãoPode dar publicidadeTodo mundo dê por visto
Que está descrito nistoA maior realidade.
Não espero pra levarUm romance publicadoPorque o tempo não dáE mesmo eu estou vexadoMas espero no sertãoMe chegar sem delaçãoEste livro desejado. (CORDEIRO, pp. 20-21)
Na história do cangaço, há de se concordar, o mais importante chefe de bando foi,
incontestavelmente, Virgulino Ferreira da Silva. Há de se ressaltar, porém, que antes do
capitão há outras tantas histórias de cangaceiros cuja biografia não se deve olvidar, inclusive
pelo valor de inegável pioneirismo, a exemplo de José Gomes, o Cabeleira, com atuação ainda
no século XVIII, e de notória e comprovada existência. Segue lista de outros nomes
importantes que remonta aos idos do Império e se prolonga até o século XX, especificamente,
os anos de 1940, marco do fim do cangaço. Havia os que se tornaram conhecidos pelos nomes
das famílias a que pertenciam, o que denota a formação de grupos familiares, os que traziam
os nomes acrescidos dos topônimos de origem e os que detinham apelidos por motivos vários:Cunhas, Patacas, Lucas da Feira, Cacundos, Mourões, Moquecas, Liberatos, Guarabiras,
Brilhantes, Curundu, Rio Preto, Pinto Madeira, Feitosa, Calango, Cacheados, Simões,
Massuna, Viriatos, Adolfo Meia-Noite, José Antônio Ataíde, Salvaterra, Manuel Basílio,
Cipriano Queirós, Né Pereira, Cassimiro do Navio, Sinhô Pereira, Irmãos Porcino. (Cf.:
OLIVEIRA, 1970, p. 322).
Frise-se que o último bandoleiro importante (OLIVEIRA, 1970, p. 358) tomba em 23
de março de 1940, pelas mãos da tropa volante do coronel Zé Rufino. Trata-se de Corisco,que, numa derradeira missão de fidelidade à memória de Virgulino Ferreira, tinha por
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finalidade vingar a morte do amigo e compadre, que havia sido morto na Grota de Angicos,
em Sergipe, a 28 de julho de 1938.
Lembre-se que o banditismo errante tem na história brasileira um longo trajeto.
Documentos mais antigos dão conta de que já no século XVII há registros de protótipos dessa
vida marginal andante que, de algum modo, figuram como proto-história do cangaço, termo
este, que, por sua vez, se populariza e passa a ocorrer correntemente de finais do século XIX
ao XX e atualmente.
Quanto à existência de bandos armados no período colonial brasileiro, note-se certo
medo e tensão no povo e a preocupação das primeiras autoridades que já mencionavam a
presença de banditismo itinerante. Corrobora a ocorrência desses protocangaceiros coloniais
Frederico Pernambucano de Mello, que aponta:Descrevendo os primeiros tempos da capitania de Duarte Coelho, Oliveira Limarefere várias vezes à insegurança que a caracterizava, pela irrefreada atuação decriminosos em correrias sem fim. No século XVII, ainda mais intensa revela-se aação de salteadores e bandidos, segundo palavras do mesmo cronista. (MELLO,2004, p. 93)
No século XVII, em terras pernambucanas, constata-se a presença de atores de vida
marginal, em maioria, holandeses, seguidos de franceses. Nesse lapso de tempo em que os
batavos aqui estiveram, nossos avós aprenderam alguns rudimentos de um banditismo que se
estende por séculos, a considerar sua origem no passado colonial tanto do Brasil português
quanto no holandês:
Ao longo do período de colonização holandesa no Nordeste, vamos surpreendernosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros, desertores dastropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o contingente mais expressivoque se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros fugitivos. (MELLO,2004, p. 93)
Ainda:
E não ficamos nisso apenas. Houve mesmo chefes de grupos que eram holandeses.
Assim o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrecht, ou ainda certoHans Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros por volta de 1641.Três anos após esta data, em 1644, os manuscritos holandeses fazem referência aoutro chefe de bandidos que já se tornara notório: Pieter Piloot, igualmenteholandês. Eram os boschloopers, salteadores ou, literalmente, batedores de bosque,da designação holandesa do século XVII. (MELLO, 2004, pp. 93-94)
Destarte, pode-se inferir que essa espécie de banditismo nômade apresenta uma
antiguidade que vai ao período colonial e que se renova ao longo dos tempos, mas sempre
com atitude e proposta semelhantes: tumultuar a ordem, pilhar, invadir comunidades inteiras,
tomar de assalto a vida privada dos inimigos, de pessoas simples e de famílias comuns, promover a vingança – sempre ligada à morte ou ao infortúnio de um parente próximo – ,
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enfrentar os poderosos de vida estável e estabelecida e deles roubar para distribuir com os
menos afortunados. Eis o mito que acompanha e sustenta esses homens dispostos a enfrentar à
vida e à morte.
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2 – TECEDORES DE HISTÓRIAS: A INVENÇÃO DOS CANGACEIROS
“Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer .” (“A moça tecelã”, Marina Colasanti, em Doze reis e a moça nolabirinto do vento)
Roland Barthes (1971, p. 18) afirma que são inúmeras as narrativas do mundo. Há de
se concordar, pois, sem narrar e sem se deixar narrar, o homem cairia em esquecimento e,
nesse caso, correria o risco de perder suas memórias. Narrativas são estratégias para se
guardar memórias com um fim: legá-las à posteridade como dado identificador de
experiências positivas ou negativas, mas que se prestem a referencial qualquer.
As narrativas, sobretudo aquelas em que se trabalha o poema épico, sintetizam a busca
do homem por uma identidade e, portanto, por uma afirmação que, na verdade, se dácoletivamente. Trata-se de uma tentativa de se inserir em um contexto, se reconhecer para se
fazer reconhecido. Desse modo, pode-se inferir que mediante um poema épico uma
comunidade, uma sociedade qualquer tenta, pela sua história, dar como importante sua
existência no tempo e no espaço. É, em suma, seu estar no mundo, porém sempre com um
olhar para a coletividade e sua memória. Mircea Eliade (apud TÂMEGA, 1986, p. 82), afirma
que “a memória não retém facilmente eventos individuais e figuras autênticas, mas funciona
através de estruturas diferentes: retém categorias, ao invés de acontecimentos, e arquétipos,
em lugar de personagens históricas”.
Pode-se entender que há coerência em se conceber no mito cangaceiresco não um
indivíduo, apesar dos nomes que se destacaram como líderes, mas grupos de heróis que
representam categorias, entidades que soam como referencial de valentia, bravura e até de
honradez de toda a coletividade de cangaceiros, o que evidencia arquétipos ideais para a
coletividade externa ao cangaço: o povo.
Note-se a ideia de que, desde tempos mais remotos da cultura humana, o homem busca
narrar com base em seus mitos e suas lendas como a referendar os arquétipos de que fala
Eliade. Essas narrativas nada são, senão uma tentativa de estabelecer entre homem e realidade
um elo que servirá como marco de constante procura pela origem desse homem e dessa
mesma realidade. Entenda-se que esse narrar envolve várias linguagens e pode se dar de
várias formas.
Sobre narrativas afirma Roland Barthes:
Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros distribuídos entre
substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lheconfiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada,
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oral e escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada detodas estas substâncias [...]. (BARTHES, 1971, p. 18)
Desse modo, e com base na afirmação acima, pode-se inferir que a literatura de cordel
com sua múltipla face explora também matéria épica, e assim pode ser entendida, desde queguarde ou se aproxime de características que envolvam essa espécie de narrativa. Se narrar,
numa concepção épica, é apresentar distanciamento da matéria narrada e usar de objetividade
para mostrar essa dita matéria, pode-se mencionar a existência de textos do universo do cordel
que se inserem nas narrativas próprias do gênero épico, principalmente, aqueles textos pós-
cangaço, i.e, os escritos que se dão depois dos idos de 1938, ano da morte de Lampião e
Maria Bonita e de nove de seus companheiros, o que estabelece o fim do cangaço. A distância
temporal faz com que o poeta se centre na 3.ª pessoa do discurso conforme característica do poema épico, segundo se constata nos seguintes versos do poeta Gonçalo Ferreira da Silva,
em Lampião, capitão do cangaço:
[...]
Só a alma luminosado homem missionárioouve a voz interior,e tendo o dom necessáriofaz poesia da seivade um caule imaginário.
Poeta não ouve vozesSó com humanos ouvidos,Ausculta a alma das coisasCom diferentes sentidosPara que os não são poetasAinda desconhecidos.
Este poema que falaDe cangaço e de sertãoÉ, apena, à culturaUma contribuição,Um documentário vivo
Da vida de Lampião.
Por ser uma obra feitaÀ luz da verdade viva,Mostra a face nobre, humanaE até caritativaDe Lampião, se tornandoA menos repetitiva. (SILVA, p. 1)
O narrador contemporâneo dos cangaceiros, como os poetas clássicos, tentava
observar com distância no tempo e no espaço os fatos da saga do cangaço para contá-
los/recontá-los com a isenção que lhes deveria ser intrínseca, embora quase sempre nãoconsiguisse, devido não só à espontaneidade de seus textos e à natureza da poesia popular,
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mas também, seguramente, devido à ausência de conhecimento teórico do narrar épico e à
proximidade no tempo e no espaço do episódio narrado. Parece que o pouco distanciamento
desse espaço e tempo não permite ao poeta se afastar do universo narrado. Observe-se no
texto Antônio Silvino, o rei dos cangaceiros, de Leandro Gomes de Barros, como se faz
presente a natureza do cantar épico:
[...]O povo me chama grandeE como de fato eu sou
Nunca governo venceu-me Nunca civil me ganhouAtrás de minha existência
Não foi um só que cansou.
Já fazem 18 anos
Que não posso descansarTenho por profissão o crimeLucro aquilo que tomar,O governo às vezes dana-sePorém que jeito há de dar?!
O governo diz que pagaAo homem que me der fim,Porém por todo dinheiroQuem se atreve a vir a mim?
Não há um só que se atrevaA ganhar dinheiro assim.
Há homens na nossa terraMais ligeiros do que gato,Porém conhece meu rifleE sabe como eu me bato,Puxa uma onça da furna,Mas não me tira do mato.
Telegrafei ao governoE ele lá recebeu,Mandei-lhe dizer: doutor,Cuide lá no que for seu,A capital lhe pertencePorém o estado é meu. (BARROS, p. 1)
Atentos às duas mostras acima, percebemos a essência de caráter épico que os textos
contêm. No narrar em que há maior distância no tempo e no espaço, e naquele em que isso lhe
é próximo, há, percebe-se, o intento de se resgatar a presença de um ideal mítico. Nota-se no
primeiro texto uma tentativa do poeta de se manter fora da matéria narrada, por recebê-la
“ pronta, processada ao nível do real, o que impede sua participação no mundo narrado”
(SILVA, 1987, p. 14), o que atesta seus escritos como inerentes ao poema épico, e no
segundo, de algum modo, se pode apontar para uma matéria épica ainda em formação.
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Ao se estabelecer que a narrativa se insere como forma de manifestação humana ligada
à arte do contar, pode esta ser concebida como prosa de ficção – caso do romance, do conto e
da crônica – , mas também estará presente na epopeia, no poema épico e até na história, pois
esta última, embora com olhar científico, relata acontecimentos quaisquer do passado.
Ao narrar, o homem busca guardar sua história, e neste caso, há o sentido de registrar
um tempo determinado, seja este o do mito primordial, da ficção – mais contemporânea – , ou
até o do relato de caráter denotativo. A narrativa traz em si a marca interessante de ser, ora
algo ficcional, ora relato de um fenômeno qualquer da existência humana. É possível que a
importância da narrativa esteja nesses detalhes.
Ao atentarmos nas narrativas mais antigas da humanidade, deparamos com relatos que
envolvem a Bíblia (com seus diversos tons, inclusive épicos); o Alcorão, (igualmente próximoà primeira, com desenrolar de temas épicos); Homero ( Ilíada e Odisseia); Virgílio ( Eneida);
Camões (Os lusíadas), entre outros. Todos a expor e até a delinear a história identitária de seu
povo.
A pertinência desses textos está em contar algo que tem a ver com a origem essencial,
primordial, que alimenta histórias cerzidas ao sabor da oralidade. Trazem, ademais, uma carga
semântica ligada a uma tradição do contar que passa de uma geração a outra. É o narrar que
sobrevive e resiste ao peso do calendário, em legado que se compõe de mitos e tradições deque uma comunidade se vale, no sentido de se colocar e de se fazer presente na cultura
humana, mediante sua história, mas com a finalidade de se integrar e de se afirmar no grande
bojo de uma história longa e maior, que depõe da própria natureza e da formação e
contribuição humanas na composição do mundo.
Se a “narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada oral ou escrita”,
segundo a fala barthesiana, (Cf.: BARTHES, 1971, p. 18),