campus de marília cÁssia regina rodrigues nunes o bem
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de Marília
CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES
O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE
MEDICINA E DE ENFERMAGEM
Marília
2013
Cássia Regina Rodrigues Nunes
O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE
MEDICINA E DE ENFERMAGEM
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de doutor em Educação Área de Concentração: Políticas Públicas e Administração da Educação Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho
Marília
2013
Nunes, Cássia Regina Rodrigues
N972b O bem como guia da ação: a ética na formação de
estudantes de medicina e de enfermagem/ Cássia Regina
Rodrigues Nunes. – Marília, 2013.
182 f. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de
Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2013.
Bibliografia: f. 173-182
Orientador: Alonso Bezerra de Carvalho
1. Educação. 2. Ética. 3. Bioética. 4. Aristóteles. 5.
Medicina. 6. Enfermagem. I. Autor. II. Título.
CDD 174.1
Cássia Regina Rodrigues Nunes
O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE
MEDICINA E DE ENFERMAGEM
Tese para
obtenção do título de Doutor em Educação, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, na área de
concentração Políticas Públicas e Administração da Educação Brasileira
BANCA EXAMINADORA Orientador: Alonso Bezerra de Carvalho, Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Assis 2º. Examinador: Carlos da Fonseca Brandão, Professor Doutor - Livre Docente da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Assis 3º Examinador: Reinaldo Sampaio Pereira, Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília 4º.Examinador: Jose Eduardo de Siqueira, Professor Doutor da Universidade Estadual de Londrina – UEL 5º Examinador: Ieda Francischetti, Professora Doutora da Faculdade de Medicina de Marília - Famema Suplentes: 1 - Sinésio Ferraz Bueno, Professor Assistente Doutor, Departamento de Filosofia/Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília 2- Maria José Sanches Marin, Professora Doutora da Faculdade de Medicina de Marília 3- Marcelo Carbone Carneiro, Professor Doutor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Unesp Campus de Bauru
Marília, 15 de fevereiro de 2013
A meu marido Amauri e aos nossos filhos – Vitor e Arthur, homens íntegros e inteligentes, especialmente ao Arthur porque não me permitiu abandonar a luta empreendida na realização deste estudo. À minha mãe que vibra de entusiasmo e alegria com minhas conquistas. Às minhas irmãs – Marilene e Maria Lúcia – pelo incentivo e boa companhia.
AGRADECIMENTOS
A Deus que me concede oportunidades na vida, que me move em direção a
elas, que me inspira, me acolhe, fortalece com sua Presença, sem a qual nada
sou.
Ao Prof. Alonso, meu orientador, pela amizade, por acreditar em meu
trabalho e pela orientação segura.
Ao Prof. Reinaldo, meu reconhecimento e gratidão pelos ensinamentos tão
valiosos e por demonstrar, com sua presença e atitudes, que a Ética é
possível.
Ao Fernando, meu sobrinho, pela disposição na leitura e sugestões neste
trabalho.
Às professoras de português com quem tive o prazer da amizade; Ana
Helena, profissional competente, e Maria Derci, inesquecível com sua alegria e
acolhida.
Às bibliotecárias da Famema – Josefina e Helena – pelo tempo, carinho e
atenção.
A meus colegas de trabalho que torceram pelo meu êxito, especialmente
aos professores: Junior, Maria José e Ieda Francischetti, pessoas com cuja
compreensão sempre pude contar.
Às professoras – Carla e Shirlene – pela solicitude na assunção de parte de
minhas atividades na finalização desse trabalho.
Aos meus amigos Marcia Padovan, Yvette Moravcik, Padre Ricci, Frei
Manoel, Elaine Carvalho, Maria Helena – pessoas boas que vamos
encontrando em nosso caminho...
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. O Amor é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor
Coríntios 13
Resumo
Partindo do interesse por favorecer o desenvolvimento humano nos cursos de formação do médico e do enfermeiro, elaborou-se um estudo teórico com o intuito de repensar o ensino da Ética, que busca o Bem na ação racional do homem. Numa perspectiva histórica, revisita-se o avanço do conhecimento acumulado e da formação daqueles profissionais, enfatizando-se a intrínseca relação com a Ética. Fundamentou-se particularmente na Ética a Nicômaco, obra de Aristóteles em que se encontram subsídios seguros para refletir sobre ação humana. Da leitura reflexiva, depreendeu-se que é possível formar, no homem, uma disposição através do hábito, integrantes da escolha determinada pelo lógos, no domínio das contingências. Ademais observou-se que a orientação da conduta no que respeita à formação humana não apenas deva ocorrer desde a infância senão também no redobrado cuidado e esforço enquanto se é jovem, sobremaneira durante a sua formação profissional. Optou-se, por fim, pela ética aristotélica como modelo pertinente para se traçarem estratégias na educação, com vistas à formação integral de médicos e de enfermeiros, orientando-os na interface entre os âmbitos individual e coletivo do desenvolvimento moral.
Palavras-chave: Educação Médica. Educação em Enfermagem. Ética. Bioética.
Aristóteles.
Abstract
From the interest in promoting human development concerned to professional formation of doctors and the registered nurses, it was elaborated a theoretical study, the main purpose of which is to rethink the way of teaching Ethics, a science that seeks the Good in human rational action. In a historical perspective, it was revived the advances in the realms of knowledge and the training of those professionals, emphasizing the intrinsic relationship to Ethics. It was particularly based on Aristotle’s Nicomachean Ethics, in which there are seccurate means to reflect on human action. From this reflexive reading, it was gathered that it is possible to develop in man such a disposition brought forth by habit as a constituent of choice determined by the lógos, involved in the area of contingencies and according to Ethics’ point of view. Moreover, It was observed that the orientation of conduct regarding human education must start both from childhood and with great concern and effort while young persons, mainly during their professional formation. At last, it is concluded that the Aristotelian ethics is a relevant paradigm to draw strategies on education, particularly to an integral formation of doctors and nurses, in order to orientate them towards the interface between individual and collective fields of moral development.
Keywords: Medical Education. Nursing Education. Ethics. Bioethics. Aristotle.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABEM Associação Brasileira de Educação Médica
ABEn Associação Brasileira de Enfermagem
Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
CEB Câmara de Educação Básica
CES Câmara de Ensino Superior
CFE Conselho Federal de Educação
CFM Conselho Federal de Medicina
Cinaem Comissão Interinstitucional de Avaliação de Escolas Médicas
CNE Conselho Nacional de Educação
Cnpq Conselho Nacional de Pesquisa
COFEN Conselho Federal de Enfermagem
CREMESP Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo
DCENF Diretrizes Curriculares de Enfermagem
DNA Ácido Desoxirribonucleico
EEUSP Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
EMA Educação Médica nas Américas
EN Ética a Nicômaco
ESF Estratégia de Saúde da Família
EUA Estados Unidos da América
Fepafam Federação Pan-Americana de Associações de Faculdades de Medicina
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MEC Ministério da Educação
Met. Metafísica
MS Ministério da Saúde
OMS Organização Mundial de Saúde
OPAS Organização Pan-Americana de Saúde
PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais
Pet-Saúde Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde
PGH Projeto Genoma Humano
PIDA Programa de Integração Docente-Assistencial
Pits programas de interiorização do trabalho em Saúde
Promed Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina
Pró-Saúde Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde
Rede Unida Rede Unida de desenvolvimento de Profissionais de Saúde
Sesu Comissão de Especialistas do Ensino Médico da Secretaria de Educação Superior
SUS Sistema Único de Saúde
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 - DA ÉTICA ......................................................................................... 16
1.1 O CONCEITO DE ÉTICA .................................................................................... 17
1.2 ETHICA NICOMACHEA ...................................................................................... 27
CAPÍTULO 2 - EDUCAÇÃO MÉDICA ...................................................................... 40
2.1 A FORMAÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DO MÉDICO ........................................ 41
2.2 A FORMAÇÃO ÉTICA DO MÉDICO ................................................................... 70
CAPÍTULO 3 - EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM .................................................... 84
3.1 A FORMAÇÃO TÉCNICA-CIENTÍFICA DO ENFERMEIRO ............................... 85
3.2 A FORMAÇÃO ÉTICA DO ENFERMEIRO .......................................................... 98
CAPÍTULO 4 - A BIOÉTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ............................ 102
4.1 O SURGIMENTO DA BIOÉTICA ....................................................................... 103
4.2 OS REFERENCIAS E MODELOS UTILIZADOS .............................................. 106
4.3 OS TEMAS ABORDADOS ................................................................................ 119
4.4 O ENSINO DA BIOÉTICA ................................................................................. 121
CAPÍTULO 5 - ÉTICA E EDUCAÇÃO .................................................................... 124
5.1 A EDUCAÇÃO COMO FORMAÇÃO INTEGRAL DO HOMEM ......................... 126
5.2 A FORMAÇÃO ÉTICA ....................................................................................... 141
5.3 A CONTRIBUIÇÃO DE ARISTÓTELES PARA A FORMAÇÃO ÉTICA ............. 153
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 164
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 172
INTRODUÇÃO
Introdução 11
Há muito os profissionais perderam o senso de arte e de prazer na realização
de seu ofício, não à semelhança de quem pinta uma tela, desinteressado de sua
venda, de sua conveniência à satisfação de interesses materiais. Na modernidade,
talvez nem a própria arte se salvaguarde do sistema mercantilista a que se
submetem tudo e todos. Expressiva parte dos diversos campos profissionais realiza
seu trabalho deixando-se subordinar à necessidade de subsistência, esta também
determinada pela sociedade capitalista, que conjuga o bem estar e a realização do
trabalho à posse de objetos. O conforto oferecido por materiais e equipamentos e
geradores de lucro criam sempre novas necessidades, para além da sobrevivência.
Já não basta ganhar para subsistir, mas adquirir cada vez mais bens de consumo.
No contexto capitalista, analisar perspectivas de formação humana implica
investigar as várias faces que assume o trabalho coletivo e o modo como o homem
age e se modifica ao participar desse trabalho. Em contrapartida, compreender a
formação humana legítima é perceber que o processo de conhecimento e de
realização pessoal se expressa socialmente, ultrapassando a dimensão do agir
exclusivamente determinado pela necessidade de subsistência. Há que se
considerar que a formação humana pressupõe o desenvolver-se do indivíduo como
particularidade e generalidade. Posto isso, tudo leva a concluir que o processo de
formação humana enfrenta crise grave. Não obstante, acredita-se que seja possível
formar profissionais que resistam às concepções educativas determinadas pelo
ideário capitalista, e que propostas de ensino ainda possam erguer as muralhas que
defendam uma sociedade efetivamente democrática e solidária.
O processo de formação de profissionais da saúde – médico e enfermeiro –
não escapou imune a essa série de fatores cuja influência angustiante colocou em
cheque as relações dos sujeitos como produtores, consumidores, profissionais e
cidadãos. Com efeito, mudanças ocorridas no âmbito político-econômico, ideológico
hegemônico determinaram transformações no modo de vida da sociedade – valores
e costumes – e em seus processos de educação. Concernente à formação dos
Introdução 12
profissionais de Saúde, uma vez que interesses mercantilistas Influenciaram as
relações profissionais na modernidade, houve transição significativa na interação
entre médicos, enfermeiros com o paciente, de que resultou num modelo formativo e
assistencial desumanizado.
Por lidar com a vida humana, o profissional da saúde enfrenta cotidianamente
os dilemas de natureza ética, que se agravaram na modernidade. Num mundo
profissional que sofre os impactos dos avanços científicos e tecnológicos, da
progressiva complexidade das situações, das escolhas e das decisões das pessoas,
não raras vezes aquele profissional sente-se inseguro ou mesmo desconhece a
melhor forma de agir. Precisamente nesses momentos difíceis ele pode socorrer-se
à Ética, ciência que se configura na ação e, no que respeita ao conhecimento,
contribui com subsídios de análise ampla das situações para a efetivação de
escolhas.
Na formação profissional, especificamente a disciplina Ética procura entender
a natureza das ações humanas, como se geram, suas razões e consequências na
vida das pessoas – individual e coletivamente. Conquanto não se questione sua
importância de favorecer o desenvolvimento humano, na educação profissional de
médicos e de enfermeiros têm se apresentado dificuldades para inserir modelos e
propostas, conteúdos e práticas, com que se construa um projeto eficiente de
formação humana segundo a concepção ética do homem.
Docente de Ética e Bioética numa Escola de Ensino Superior, interessou-nos
investigar como o ensino dessa disciplina se organiza na formação de médicos e
enfermeiros para, posteriormente, propor e introduzir os elementos conceituais de
um modelo ético bem estruturado, circunscrito, à obra de Aristóteles Ética a
Nicômaco. Para tanto, procurou-se relacionar a Ética à Educação, no propósito de
subsidiar discussões em torno da possibilidade de se refletir na formação ética
inserida nos cursos de Medicina e Enfermagem.
A ética já fora ministrada associada à Medicina Legal e, na Enfermagem, por
muito tempo, integrou-se à História da profissão, mais tarde denominou-se
Legislação Profissional e Deontologia, com a carga horária oscilando de 20 a 40
horas/aula, em que se abordavam temas relacionados ao início e ao fim da vida.
Mais recentemente, no movimento empreendido pela Bioética, retomou-se a Ética
propriamente dita, sem que, entretanto, se clarificasse à instituição escolar seu papel
fundamental na formação do médico e do enfermeiro. Não obstante, importa, de
Introdução 13
fato, a formação ética desses profissionais porque o exercício de sua função se
configure efetivamente em atitudes destinadas ao Bem – esfera da ação – no
reconhecimento de inter-relações humanizadas.
Tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais quanto os ideários da educação
apontam para a formação integral dos profissionais da Saúde. Frequentemente se
alude à Ética nos discursos de graduação ou em planejamentos curriculares, em que
se costuma traçar o perfil profissional com vistas à sua formação crítico-reflexiva,
enfatizando-se o trabalho multiprofissional, porque seja capaz de atitudes
compromissadas e responsavelmente desempenhadas. No entanto, percebe-se que
a abordagem se apresenta reduzida a simplificações e há pouco interesse de os
docentes em tratarem a Ética científica e complexamente, ou de favorecerem
avanços no sentido de que seus alunos possam compreender e solucionar os
impasses que se lhes impõe a prática cotidiana. Não se pode negar que tenha
ocorrido certa evolução, sobretudo após a retomada pela Bioética, contudo as
conquistas nesse campo exibem-se tênues, quase imponderáveis, o que está a
indicar o muito que se há de fazer, porque se trata da necessidade, desejo e
interesse de todas as pessoas, particularmente dos futuros profissionais. Eis, pois,
um desafio que se lança a todos os cidadãos, indistintamente.
Importa inserir conteúdo teórico no ensino da Ética, entretanto há de se
cuidar, notadamente, da esfera prática. Como a Ética é pertinente ao âmbito da
práxis e incide diretamente sobre a escolha da ação – não quaisquer ações, mas a
boa ação, a excelência na ação, naquela em que sua execução se dá em sua
melhor forma (ação virtuosa). De modo que, possuir conhecimento teórico de como
se deve agir, sem se efetiva-los nas ações não atinge o objetivo a que se propõe.
Considere-se, inclusive, o pressuposto de que alguns docentes não detenham a
atitude necessária, resultante do conhecimento e da ação, para orientar o estudante
à boa escolha. Por conseguinte, um direcionamento teórico associado à prática e
uma instituição bem organizada com regras e decisões coerentes trarão benefícios
tanto a professores quanto à formação dos estudantes no que respeita às escolhas
e na efetivação da ação, mormente porque estarão atuando dentro de pouco tempo
e por longo tempo.
Posto que o ambiente escolar deva ser intencionalmente favorável ao
desenvolvimento ético das pessoas, na carência desse tipo de propósito cada vez
mais se perderá a qualidade da formação dos estudantes por não se utilizarem,
Introdução 14
nessa fase vital de amadurecimento, as oportunidades de prática, a reflexão sobre
ideias e posturas que, efetivamente, os conduzirão a atuar com competência.
O capítulo inicial deste estudo contemplará o conceito de Ética, de acordo
com a ciência à qual pertence, seu significado e importância, para situar e clarificar o
objeto aqui investigado. Expõem-se a Ética na perspectiva de alguns autores
contemporâneos e a concepção de Bem e Virtude à luz da óptica aristotélica, haja
vista a relevância de seu pensamento na filosofia antiga e na atualidade. O notável
pensador nos legou Ética a Nicômaco – considerada obra-prima da Filosofia – que
tem sido lida, cada vez mais valorizada por diversos pensadores modernos, e da
qual não se pode prescindir ao se abordar a Ética, tal sua significância e
completude.
Inicialmente, o segundo capítulo organiza-se em torno da retrospectiva
histórica da prática médica, do ensino da Medicina ao longo do tempo, de suas
conquistas em conhecimento científico, de descobertas e avanços tecnológicos,
enfim de sua contribuição no diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças. Em
seguida, abordar-se-á a formação do médico na atualidade e, mais especificamente,
de sua formação ética nas escolas de Medicina, sobremaneira após o advento da
Bioética, que introduziu novos horizontes na interação médico - paciente, na
apropriação da capacidade de esse profissional efetivar escolhas mais racionais e
humanizadas. Está aberta, no entanto, a discussão a respeito da melhor forma de
inseri-la nos currículos.
Aborda-se ainda a influencia da Bioética imprimindo novo direcionamento à
formação ética de profissionais da Saúde no terceiro capítulo, dedicado à
Enfermagem. Como ocorreu à Medicina, embora tenha sentido o impacto das
mudanças decorrentes das relações estabelecidas no mundo moderno, não se
perdeu seu objeto de trabalho – o cuidado de enfermagem – que lhe atribuiu um
sentido integral do ser humano. Resgatam-se as modificações na formação do
enfermeiro, seu avanço em conhecimento, suas lutas por garantir o reconhecimento
como prática profissional. Na contramão dessas conquistas, a Enfermagem viu-se
enfraquecida, subjugada diante do peso da divisão técnica de trabalho que lhe
impuseram, restando-lhe transitar a assistência direta ao paciente a um pessoal com
pouca ou nenhuma qualificação. As relações humanas deixaram de ser o foco de
atenção no trabalho do enfermeiro.
Introdução 15
No quarto capítulo, expõe-se o contexto de gênese da Bioética, por meio da
qual se retomou a Ética, mas sob nova e mais abrangente perspectiva:
fundamentação e justificativas do agir destinado à ação humanizada.
Finalmente, no capítulo conclusivo, busca-se na literatura definir o papel da
educação no desenvolvimento ético do indivíduo para, em seguida, situar a
atualidade da formação ética nos cursos de Medicina e de Enfermagem. Partindo-se
do pressuposto de que educar é integrar formação técnica e formação humana,
importa reconhecer que a Ética deve ocupar lugar de destaque nos propósitos da
Educação, uma vez que naquela ciência se conjugam teoria e práxis. Para justificá-
lo, recorreu-se à articulação dos elementos estruturantes da Ethica Nicomachea,
fonte de referência para o conhecimento da ação do homem e, portanto da Ética.
Nesse sentido, o objeto de estudo se amplia ao debate em torno da
possibilidade de se conferir ao profissional da Saúde a formação adequada, que
resgate como centro dos processos educativos o ser humano como parâmetro e não
o mercado de trabalho. Com efeito, é possível apreender que médicos e enfermeiros
venham a determinar como meta de seu trabalho o Bem, caso lhes seja favorecida
uma boa formação profissional, o que inclui orientação em sua formação de modo a
formar disposição para realizar a melhor escolha e esta se efetive em sua ação: a
assistência à saúde pautada na ação virtuosa, o que concorre à boa realização de
sua função – de sua racionalidade e do alcance do Bem que está acima de qualquer
coisa e é desejável por todos.
CAPÍTULO 1
DA ÉTICA
Capítulo 1. Da Ética 17
1.1 O Conceito de Ética
A princípio, visando clarificar o objeto de estudo aqui investigado, importa
situar o conceito de Ética num universo científico mais amplo, e apontar quais são
seus valores, sua relevância, seus parâmetros e métodos de operação, posto que de
forma concisa, contudo clara. Introduziu-se o conceito de Ética na perspectiva de
alguns autores contemporâneos e, concernente à concepção de bem e virtude, na
perspectiva aristotélica. Destaca-se o pensamento de Aristóteles dada a sua
importância na filosofia antiga. Entre outras obras, legou à posteridade Ética a
Nicômaco, considerada obra-prima da filosofia moral e tem sido cada vez mais
valorizada como modelo ético nos dias contemporâneos.
Muitos autores têm-se dedicado ao seu estudo, referindo-se à sua aplicação,
porquanto a Ética se traduz na ação do homem para apreender a essência de tudo
quanto existe com uma destinação para o Bem. Há certa concordância, nesse
sentido.
Divide-se a Ética em duas dimensões: a vivida no presente e a situada no
devir, de tal forma que a última serve de guia à primeira. Ademais, pode-se perceber
que há outras duas dimensões contidas na primeira: a do indivíduo e a do indivíduo
em seu entrelaçado de relações com o(s) outro(s) – a sociedade.
Aristóteles anteviu uma relação indivíduo-Estado, sem a qual o homem não
poderia aperfeiçoar-se. Sua inter-relação se dá em todos os âmbitos da sociedade: o
familiar, o pedagógico, o sociopolítico, o religioso. Nesse espaço de relações se
formularam regras utilizadas nas interações humanas.
Segundo Vaz (1999), no período pré-socrático, houve poderosas expressões
do pensamento ético na obra de Heráclito e Demócrito, fontes que, hoje, encontram-
se fragmentadas.
Na antiga Grécia, para o perfeito cumprimento dos valores daquela
sociedade, o jovem aristocrata recebia a educação completa – paidéia – que tinha
como finalidade a realização em cada indivíduo da areté, visando à formação de um
Capítulo 1. Da Ética 18
guerreiro belo e bom. Além de desenvolver um corpo perfeito, almejava a perfeição
do espírito:
“Sua educação era feita nos ginásios – para a perfeição do corpo – e por preceptores que lhe ensinavam Homero e Hesíodo – para a perfeição de seu espírito. Belo de corpo e alma e bom de corpo e alma, o jovem guerreiro merecia pertencer à nobre estirpe dos aristói, descendente dos deuses”. (CHAUÍ, 2002, p. 157).
A antiga areté – corpo perfeito e a coragem como virtude – já não era mais
suficiente numa Atenas democrática, comercial e artesanal. A excelência se
encontrava na arte política. Desejava-se a virtude no cumprimento das leis e o uso
da palavra pelo cidadão, com participação nos acontecimentos da pólis, por meio de
argumentações e preparo para deliberar nas assembleias. Os sofistas, no início não
atenienses, traziam o debate entre o ser e o devir, além de se dedicarem ao ensino
dos jovens destinando-se a um ofício e para tornarem-se bons cidadãos (CHAUÍ,
2002).
Não obstante, verifica-se que o incipiente marco teórico do pensamento ético
fundou-se em Sócrates, posto que ele não o tenha deixado escrito. Iniciou as
reflexões morais utilizando-se de inquisições sob a forma lógica, de que decorreu a
discussão a respeito de acuradas observações originadas do contato direto com as
próprias coisas da vida tal como existem. O motivo dominante das interrogações
suscitadas por Sócrates visava mostrar aos atenienses “[...] que o verdadeiro valor
do homem reside no único bem inatingível pela inconstância da fortuna, a incerteza
do futuro, a precariedade do sucesso, as vicissitudes da vida: o bem da alma”, o que
se relacionava ao interior do homem (psiche). Encontrava-se aqui o pressuposto
antropológico das muitas concepções do homem, da própria história da Ética. Por
meio da indagação, do uso da Razão, evidencia-se, inclusive, o reconhecimento da
própria ignorância para o aprendizado da verdadeira areté – a virtude. (VAZ, 1999,
p. 95).
Foi na Grécia Antiga que o ideal de educação humana surgiu com o destino e
significado de desenvolvimento da perfeição como própria do ser humano. Esse
ideal de aperfeiçoamento do homem denominou-se Paidéia e, em suas raízes,
relacionava-se à busca da perfeição do corpo pela ginástica, e da mente pela
poesia. Há aproximadamente 2500 anos, após o nascimento da Filosofia, o ideal de
Capítulo 1. Da Ética 19
perfeição humana fundado na “educação” transformou-se em busca da perfeição do
espírito. Em Sócrates, a perfeição do espírito assume o caráter de busca da Razão.
As categorias do saber ético dos gregos foram reinterpretadas por Sócrates: a
sabedoria, a virtude, a lei e a justiça. As propriamente socráticas – a alma e a virtude
como ciência – foram sistematizadas em Platão, que chegou à definição de justiça:
“[...] um dos valores centrais da tradição grega do saber ético [...]” (VAZ, 1999, p.
101).
Platão não escreveu especificamente acerca da Ética, entretanto a deixou
transparecer através da ideia de ordem. Por seu intermédio, possibilita-se a
unificação da Ética, da Política e da Cosmologia, sob o amparo da teoria das ideias,
assegurando a virtude ao indivíduo e à cidade. Há uma concepção de realidade total
numa relação do ethos e da práxis com o lógos filosófico. Criou, pois, uma ontologia
das ideias entre o Bem e o Ser. Inaugura-se aí “[...] o primeiro grande modelo ético
da história.” (VAZ, 1999, p. 98).
Está presente no pensamento grego a ideia de liberdade e de necessidade; a
primeira como essencial à virtude, e a segunda como predicado da Razão, assim
como a ideia de ordem que rege a realidade do indivíduo e assegura a unidade das
partes no todo. Nessa ordenação está presente o Bem.
As ideias, na concepção platônica, são objetos eternos e imutáveis do
pensamento, de modo que explicam a aquisição de conceitos pelo significado das
palavras e a possibilidade de conhecimento. Com efeito, nesse contexto, a ideia do
Bem figura a Platão como a ideia essencial e suprema, de que decorre sua filosofia
que, aliás, culmina em sua Ética. Constitui-se o Bem no imperativo moral para todos
e cuja efetivação deve destinar-se todo proceder humano. Portanto, concebeu o
pensador tipos fundamentais de virtude: a sabedoria ou prudência, inerente à parte
racional da alma; a coragem, decorrente da vontade; a temperança ou equilíbrio,
próprios da sensibilidade; a justiça, nascida do equilíbrio que se estabelece entre
todas as disposições sociais e éticas (VAZ, 1999).
Em Platão, tal postura adquire a denominação de purificação da alma,
demonstrada na conhecida “Alegoria da Caverna”, onde se narra a saída do homem
do mundo das sombras para atingir o mundo das verdadeiras formas, e, assim, a
verdadeira realidade. Ao mito das cavernas corresponde o alcance ao mundo das
ideias. “[...] A Ética platônica é pensada como estruturalmente articulada à teoria das
Ideias e tendo, portanto, seus alicerces conceptuais no terreno teórico mais tarde
Capítulo 1. Da Ética 20
designado com o nome de metafísica.” (VAZ, 1999, p. 20). Em Platão, vê-se que
ascender à ideia do Bem é necessário e suficiente para agir moralmente bem. Essa
assertiva foi contraposta por Aristóteles em Ética a Nicômaco. Aponta que há uma
Razão responsável pela epistemologia – razão científica – e outra responsável pelas
ações – razão calculativa –, o que será abordado posteriormente neste estudo.
Concernente à tradição do pensamento ético grego, alguns autores tomam
Aristóteles por fundador da Ética. Vaz (1999, p. 109-110) considera que a Ética
organizada como ciência se deu com Aristóteles: “[...] uma disciplina específica e
distinta no corpo das ciências [...] e que se tornou quase canônico para a tradição
escolar posterior.” Ademais, refere ao pensamento ético de seu criador, entretanto,
como uma continuidade da ética platônico-socrática. Considera-a tão forte, que se
refere a ela como “[...] nova tradição – o aristotelismo – inconfundivelmente distinta,
mas não definitivamente arrancada do tronco platônico.”
Aristóteles viveu por vinte anos na Academia de Atenas, o que lhe possibilitou
aprofundar os conhecimentos e adotar uma postura crítica em relação aos seus
predecessores, deixando um legado inestimável à Filosofia, sobretudo à Ética.
Fundou posteriormente sua própria escola, o Liceu – nome dedicado a Apolo
Liceano, por ficar próximo ao templo em sua homenagem.
Historicamente, a palavra Ética se aplicava à Moral, quer sob a forma de
ciência, quer como arte de dirigir a conduta. A palavra foi utilizada tanto no sentido
de ciência dos costumes quanto no sentido de moral prescritiva. Decorrem daí as
aplicações nos dois sentidos. Mais ainda se emprega com o sentido comum ou
mesmo vago da palavra “moral”.
Define-se Ética como “ciência que tem por objetivo o juízo de apreciação,
enquanto se aplica à distinção entre o bem e o mal.” (ÉTICA, 1999, p. 348). Cabem
aqui três distinções: a moral então definida como o conjunto de prescrições
admitidas em época e sociedades determinadas; etografia ou etologia, a ciência que
tem por objeto a conduta dos homens e a Ética propriamente dita – ciência cujo
objeto são os juízos de apreciação dos atos qualificados como bons ou maus.
Considera-se ainda sua inter-relação, admitida a possibilidade de diferenciação
entre elas.
Para Vázquez (1997), Ética corresponde ao tipo de conduta humana fundada
na ação refletida, considerando as normas reconhecidas como obrigatórias e válidas
numa sociedade. Decorrente dessa concepção, constata-se que, em não se tratando
Capítulo 1. Da Ética 21
de conduta espontânea e natural, vem a definir-se, pois, o comportamento moral,
mormente porque apoiados em normas que lhes norteiem moralmente o
comportamento, outros indivíduos formulam juízos de valor, aprovando ou
desaprovando a conduta de outrem. Assevera o autor que tanto os atos quanto os
juízos morais dos indivíduos pressupõem certas normas que se destinam a um
determinado dever ser no contexto social. Não obstante, reconhece Vázquez que
não é propósito da Ética formular normas, senão entender o comportamento moral,
sua essência, em que consiste o Bem, enfim.
No que concerne aos problemas teóricos de caráter moral, Vázquez aponta
um domínio da Ética que não visa ditar qual a melhor ação a ser tomada em
situações concretas da vida. No entanto, a busca de compreensão teórica do agir
moral não raro gera consequências práticas, visto que os homens podem balizar sua
conduta moral nos princípios gerais, então definidos pela Ética.
Por sua vez, Vaz (1999, p. 18) toma por verdadeira a natureza filosófica do
saber ético, tanto que, na cultura contemporânea, reconhece que restou designada
uma ciência humana voltada à “[...] descrição dos aspectos empíricos e das formas
históricas do ethos ou a circunscrevê-la ao domínio da metaética.” Acrescenta que a
tendência para atribuir diferentes matizes à Ética e à Moral, com o propósito de
caracterizar o agir humano – social e individual –, decorre da crescente
complexidade da sociedade. E, uma vez inserido no emaranhado de relações, essa
inclinação ocorre ante à emergência de o indivíduo se confrontar com o todo social.
À época de Aristóteles, não havia por que considerar tal distinção ou
confronto, dado que ocorria apenas continuidade nas relações indivíduo-sociedade e
vice-versa. De fato, apenas na ciência moderna se faz imprescindível a
diferenciação, ou mesmo oposição entre as motivações individuais para o modo de
proceder, uma vez que os sujeitos sociais se veem impelidos por necessidades e/ou
interesses, além de se submeterem aos objetivos da sociedade política. Nesse
sentido, vê-se o emprego do termo Moral concernente ao âmbito da práxis individual
e Ética, ampliando-se seu significado para abranger a práxis social.
Conquanto muito se empenhasse Hegel em unificar os termos, a tendência
teórica foi para se utilizar o termo moral quando se referisse à subjetividade do agir,
ao passo que Ética costuma designar a realidade histórica e social dos costumes.
Vaz (1999, p.16), ratifica suas ponderações declarando que a distinção entre
as expressões Ética e Filosofia Moral se perpetua na linguagem contemporânea
Capítulo 1. Da Ética 22
especializada. Não obstante, esclarece que, embora em seu texto de estudo os dois
termos ocorram em sua sinonímia original, ele prefere o termo Ética/ética, para o
substantivo e adjetivo respectivamente: “[...] de acordo com a procedência histórica
reivindicada pelas primeiras formas do discurso filosófico sobre o ethos que a
tradição consagrou com o vocábulo ética.” No que respeita ao termo Moral,
substantivo ou adjetivo, ele o utiliza em expressões já fixas no uso corrente, como
consciência moral, lei moral, moralidade e norma da moralidade.
Em Chauí (1998, p. 335), lê-se que “o senso moral e a consciência moral
dizem respeito a valores, sentimentos, intenções e ações referidos ao bem e ao mal
e ao desejo de felicidade.”
A despeito da evolução semântica de Ética e Moral, Vaz (1999, p. 14) afirma
que não há diferença significativa entre os dois termos, já que designam
fundamentalmente o mesmo objeto, “[...] seja o costume socialmente considerado,
seja o hábito do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e legitimado pela
sociedade.”
O mesmo estudioso chama à atenção a respeito da necessidade de
fundamentação filosófica para a Ética, porquanto essa ciência reivindica o saber
filosófico, porque sua aplicação não se reduza no uso empírico de formação de
grupos humanos. Uma vez pautada no saber filosófico, asseguram-se, dessa
maneira, a fundamentação e universalização que a Ética exige.
Para legitimar a carência de se fundamentarem linguagens e lógicas éticas,
no sentido de aprimorar e plenificar sua práxis no complexo universo social atual,
Vaz afirma que se faz imprescindível a recuperação de conceitos da Ética antiga.
Em breve definição – a Ética como ciência do ethos –, Vaz delineia seu
campo de investigação, reflexão e de sistematização de caráter epistemológico e
ontológico, além de definir seu objeto de investigação – o ethos.
Cortina e Martínez (2012) apresentam a Ética como a área de conhecimento
pertinente ao campo da Filosofia que se dedica à reflexão moral. Denomina-a Ética
ou Filosofia Moral, quando estabelece por seu objetivo último esclarecer, por meio
da reflexão, o campo da Moral. Trata-se, pois, de saber construído solidamente em
conceitos e argumentos concernentes à dimensão moral do homem, ou seja, à sua
práxis.
Dentre os vários empregos do vocábulo moral na época contemporânea,
encontram-se várias interpretações. Há o que designa um sistema de conteúdos que
Capítulo 1. Da Ética 23
sintetiza determinada forma de vida, em que estão contidos valores, princípios,
preceitos e normas. Essa acepção reflete “[...] um determinado modelo ideal de boa
conduta socialmente estabelecido [...]” Cortina e Martínez (2012, p. 14), sob o
prisma empírico estudado por muitas outras ciências, como a Antropologia, a
Sociologia, a História, ao passo que a Ética, indiretamente embora, pretende orientar
a ação humana.
Utiliza-se ainda o vocábulo para referir-se a um código de conduta subjetiva, a
um código moral que se presta de guia, muitas vezes coincidindo – mas não
necessariamente - com o código moral social. Iniciado por maiúscula, pode ser
empregado para nomear a ciência que trata do Bem em geral, ou ainda aquilo que
ela prescreve como mais adequado a uma diversidade de doutrinas morais, e ainda
como uma disciplina filosófica – a Filosofia Moral ou Ética.
Cabe recorrer a uma diferenciação decisiva, segundo Cortina e Martínez, que
se passa a citar em seguida:
Temos de insistir na distinção entre os dois níveis lógicos que representam as doutrinas morais e as teorias éticas: enquanto as primeiras tratam de sistematizar um conjunto concreto e princípios, normas preceitos e valores, as segundas constituem uma tentativa de explicar um fato: o fato de que os seres humanos se orientam por códigos morais, o fato de que existe moral, fato que nós a partir daqui vamos denominar “o fato da moralidade”. Essa distinção não impede que, no momento de elaborar determinada doutrina moral, se utilizem elementos tomados das teorias éticas, e vice-versa. De fato, as doutrinas morais costumam ser construídas mediante a conjunção de elementos tomados de diferentes fontes [...] (CORTINA; MARTÍNEZ, 2012, p.15).
No entanto, Cortina e Martínez preferem distinguir os termos Ética e Moral no
que diz respeito ao mundo acadêmico. Aplica-se o termo Ética referindo à Filosofia
Moral, tratada à maneira de disciplina filosófica e moral, em que se atribuem
princípios, normas e valores como orientação de conduta para viver uma vida, boa e
justa.
Discrimina, ademais, um ajuizamento moral correto de um juízo ético
propriamente dito a respeito de temas polêmicos que suscitem discussão na
sociedade humana, entre os quais a legalização de drogas ou do aborto, a pobreza
etc.. O juízo moral pode ser elaborado por qualquer pessoa, desde que haja
Capítulo 1. Da Ética 24
interesse em conhecer os princípios básicos da doutrina moral considerada válida,
tenha certa habilidade de raciocínio e esteja bem informada acerca do assunto em
questão. Por outro lado, após proceder a argumentos filosóficos, o juízo ético analisa
e propõe conclusões relativas ao objeto que levou a aceitar como válida uma
doutrina moral. É efetivado por um especialista ou por aqueles que se dedicam a
analisar mais profundamente o problema.
No mundo profissional, a Ética foi intensamente marcada pela recorrência a
Códigos de Ética, considerados etiqueta por muito tempo, um modo de relacionar-se
com os outros polidamente, sobremaneira no trato a colegas profissionais, sem que
se cometam deslizes e/ou abusos à sua autonomia, privacidade, segurança. A
outros, tais códigos representam apenas regras de conduta que, uma vez
descumpridas, são passíveis de punição.
Mais recentemente, tentou-se reaver seu propósito de guia destinado à
interação sócio-profissional, porque haja entendimento dos princípios neles contidos
e se atinjam relações pautadas na boa conduta – mais justas, respeitosas,
beneficentes, altruístas... – sobretudo, porém, no sentido de um esforço pessoal e
coletivo por encontrar fundamentação para as ações usuais no trato social.
No dia a dia da vida familiar, social, profissional, em todas as áreas de
prestação de serviços, depara-se com questões próprias das relações humanas,
quando se devem tomar iniciativas, optar, decidir a respeito de um sem-número de
circunstâncias que vão desde as mais corriqueiras às de maior complexidade. Eis
alguns poucos exemplos dessas situações: Devo passar no sinal vermelho num
horário de pouco movimento e muita pressa? Devo ficar dias a mais com livro
emprestado da biblioteca, mesmo sabendo que há poucos volumes e muitos
esperam para retirá-lo? Devo continuar a pesquisa que me dará muito prestígio e
recompensa financeira, mesmo me utilizando de recursos já comprovadamente
prejudiciais aos sujeitos participantes do estudo? Devo respeitar a autonomia do
paciente, ou aplicar o tratamento que acredito ser mais eficaz, mesmo sem a sua
concordância? Devo abreviar o sofrimento de uma pessoa em estado terminal?
Devo manter o sigilo acerca de um paciente portador de doença contagiosa e
colocar em risco o bem-estar da comunidade? Devo investir em projetos que
beneficiem a poucos e ainda influenciar em licitações de empresas que me trarão
ganhos individuais, quando posso, em vez disso, escolher projetos que beneficiarão
um conjunto maior de pessoas, comunidades inteiras? Devo cobrar 50% a mais para
Capítulo 1. Da Ética 25
obter lucro com a venda deste produto? Devo retirar da fórmula do medicamento um
componente para cuja obtenção me sairá oneroso? Devo mesmo destinar à
educação e à saúde os percentuais exigidos constitucionalmente? etc..
No âmbito prático, cada pessoa deve estar ciente das consequências de seus
atos, não apenas para si mesma senão também para toda esfera social. No entanto,
há a necessidade de pautar o comportamento em normas aceitas, válidas, e
reconhecidas como obrigatórias numa sociedade. Porque são norteadoras para
nossas ações, tais normas refletem o que é melhor para a sociedade. Dada à
diversidade de comportamento, normas se fazem reconhecidas e absolutamente
imprescindíveis. Uma vez interiorizadas pelos indivíduos, geram um imperativo de
ação, ou seja, um sentimento de dever agir de uma determinada maneira.
Nesse sentido, códigos, normas e leis orientam e educam. O chamado
Código de Ética dos profissionais é considerado, porquanto busca normatizar
condutas - aceitas e acatadas como certas por determinada comunidade
profissional. Se necessário, torna-se punitivo em caso de erro ou dano provocado a
outrem. Utilizam-se os Conselhos de Classe e Comitês de Ética nas instituições que
apuram e julgam os erros cometidos por toda sorte de profissionais. Como toda
legislação ou normatização direcionada a um conjunto de pessoas, visa, além de
coibir a ocorrência de erros de ordem profissional por meio de punições, orientar à
conduta mais adequada.
Nesse aspecto, importa registrar que, após a Bioética empenhar-se no
movimento introduzido na década de 70, à Ética reouve a devida importância,
sobremaneira nos cursos de Medicina e Enfermagem. Expandiu-se, inclusive, aos
Cursos de Direito. A Bioética entre outras perspectivas, procura desenvolver no
profissional o pensamento reflexivo, a respeito de sua prática, de modo que suas
atitudes cotidianas passem a ser mais sensatas, conscientes e, conforme se
prescreve para a área da Saúde, mais humanizadas.
Capítulo 1. Da Ética 26
A seguir, apresentar-se-ão algumas das reflexões de Aristóteles, que propôs
que pelo exercício da potencialidade para ser virtuoso o homem cumpri o propósito
ou função a que ele se destina. Orientar-se sob o princípio do Bem é próprio do
phronimos – aquele que foi educado com boa disposição para calcular qual a boa
ação ou ação virtuosa, conforme a óptica de um de seus estudiosos:
[...] do ponto de vista do agir bem, a boa ação (virtuosa) seria aquela que atenderia a um justo meio (μεσοηϛ) (que não consiste numa média aritmética), estabelecido pelo phronimos, o qual, portanto, seria o mais apto a aquilatar sobre qual a justa medida entre o excesso e a falta (ações viciosas), ou seja, seria o mais capacitado para calcular a boa ação dentre as ações e, com isso, poder agir bem. (PEREIRA, 2006, p. 20).
Conquanto pressuponha domínio teórico, a obra Ética a Nicômaco dedica
especial atenção ao campo da práxis, visto que, para Aristóteles, se não se reverter
em determinado tipo de ação, o conhecimento resulta inepto, inócuo, estéril.
Aristóteles entendia, pois, que é favorecida ao agente a possibilidade de agir de
certo modo – virtuoso – e para isso há que se ter certo conhecimento, com finalidade
prática.
A Ética, portanto, não é uma ciência exata, posto que intervenha no domínio
prático do pensar, calcular, julgar, discernir. Por sua vez, a ética aristotélica é um
recurso que possibilita conduzir o conhecimento acerca das condições que geram
ações boas. Particularmente ao tema do presente estudo, presta-se à propositura de
uma melhor maneira de investir na formação ética do médico e do enfermeiro.
Aristóteles considera dois tipos de conhecimento, teorético, aquele cujo fim é
o próprio conhecimento, e o produtivo, que trata de um conhecimento prático, pois
seu objetivo são as ações. Nesse sentido, se a Medicina e a Enfermagem ministram
conhecimentos que têm em vista um fim prático, importa que se valorize o
conhecimento da Ética na formação profissional oferecida a seus alunos, cuja
finalidade seja a excelência da ação. Coincide, pois, com o propósito de todo aquele
que recorre ao serviço de saúde. Desse modo, há que se esmerar na qualidade do
ensino quando se tratar da Ética.
Capítulo 1. Da Ética 27
1.2 Ethica Nicomachea
Aristóteles presenteia a posteridade com a obra Ética a Nicômaco – uma
inestimável contribuição mesmo para os dias atuais. Muitos reconhecem o valor de
sua investigação, razão por que se amplia a possibilidade de recobrar sua proposta
como uma forma de lidar com situações inusitadas da vida a exigir, de cada um,
decisões frente às contingências, porque se possa fazer a melhor escolha.
Dotado de grande saber e inteligência, versou todas as matérias e lançou as
bases para que outros pensadores viessem posteriormente refletir acerca de como o
homem deveria proceder para julgar e decidir frente às contingências, utilizando-se
de racionalidade para discernir qual a melhor das escolhas. Pondera a respeito das
ações humanas e afirma o desejo como móvel da ação, desenvolvido pelo hábito,
por meio do qual o homem desenvolve disposições para a virtude ou para o vício.
Em cada ação executada se gera novas ações com vistas a um fim. Alguns fins são
meios para alcance de outros fins, no entanto, todos tem em vista o sumo Bem.
Neste sentido, toda e qualquer ação que empreende constitui um meio destinado a
alcançar o fim último – a eudaimonia – o sumo Bem. Esse preside, guia todas as
ações. Nas atitudes sempre melhor efetivadas, na excelência de sua ação, o agente
moral pode atingir a felicidade – boa vida/bem viver – subentende-se não uma vida
qualquer, mas uma boa vida, a vida vivida em sua melhor forma, com vistas ao Bem.
Afirma Aristóteles que, só é possível o alcance da felicidade na efetivação de uma
vida virtuosa e essa só se dá na consecução de ações virtuosas. Para atingir esta
finalidade última são necessários vários elementos, boa família, bens materiais,
corpo saudável, mas um deles é essencial – a virtude. Pois, uma alma corrompida
não leva a uma vida feliz. As virtudes da alma se dividem em duas: as virtudes do
caráter e as virtudes do intelecto. Ambas se guiam pelo raciocínio; não obstante, a
Razão e o desejo combinados são princípios da ação. Dessa forma, o agente moral
reconhece o prazer, ao realizar cada empreendimento que se destine àquele fim,
como alcance para toda sua vida, pelo uso da Razão, perseguindo a reta Razão.
Capítulo 1. Da Ética 28
Mas é a virtude moral que determina que seja reto o nosso propósito e escolhamos
os devidos meios. A excelência ou virtude é o logos na sua melhor forma que
possibilita assim a melhor escolha.
Aristóteles indica que a virtude pode se desenvolver pela aprendizagem. Pela
orientação se gera ou destrói toda virtude. Desde a tenra idade, o homem aprende
com outras pessoas, de cuja orientação ele não pode prescindir, uma vez que esse
aprendizado é fundamental para a sua conduta destinada ao alcance da
eudaimonia.
Sabe-se que um dos méritos de Aristóteles consiste em raciocinar sobre cada
objeto em conformidade com os princípios que lhe são próprios. Na Ética a
Nicômaco é de fato encarada com todo o rigor, o que é próprio do autor. Sua
argumentação aponta para a possibilidade de se desenvolver a ação virtuosa por
meio da prática habitual e o exercício da Razão calculativa na determinação da
melhor escolha.
A ética aristotélica não admite a possibilidade de se determinar a priori qual
seja a melhor ação. A habilidade de escolher com discernimento – que é deliberada
– dá-se nas contingências sobre as coisas, que são variáveis. Delibera bem quem
visa ao melhor entre as coisas que podem ser alcançadas pela ação no justo meio,
que é próprio do homem virtuoso, porquanto “[...] as virtudes são modalidades de
escolha, ou envolvem a escolha.” (EN, 1106a4). Disto trata a obra Ética a
Nicômaco (EN) de Aristóteles.
A Ética a Nicômaco constitui obra de extraordinária repercussão, marcada
de inegável relevância para a história da Filosofia. Com efeito, foi/é lida por
expressiva parte dos filósofos que, então, deixaram-se influenciar por seu conteúdo,
inclusive Kant, que é reconhecido pelo estudo da Filosofia Moral. Nunca uma
filosofia influiu tanto no pensamento do mundo.
Desde o início da referida obra, Aristóteles estabelece a relação intrínseca
entre Ética e Política, asseverando que ambas – formação e vida do homem –
submetem-se ao domínio e soberania desses dois âmbitos. Aqui se encontra a
referência a ser utilizada neste estudo, com o propósito de ponderar a formação
ética na essência de sua interação entre Ética e Política.
Nesse sentido, apenas no domínio da polis é possível atingir a felicidade no
plano individual. É ela a maior responsável pela disposição formada nos cidadãos.
Para isso a polis deve ser organizada. Assim, faz-se imprescindível que cada um
Capítulo 1. Da Ética 29
exerça bem a sua função. Sem a organização da polis, não se alcança a felicidade,
e, sem a ação virtuosa de cada individuo, não há felicidade para a polis. Os dois
âmbitos se complementam. Declara ele que a finalidade da Política deva ser o bem
humano. Atingir o Bem coletivo ainda é mais completo que atingir o Bem para o
indivíduo, pois se subentende que a lei geral orienta ou influi na ação individual. No
entanto, a Ética ocupa o âmbito particular, pelas escolhas.
As virtudes morais não podem ser ensinada, mas são desenvolvidas por meio
de uma boa orientação, que formará o hábito e por conseguinte o desejo de agir
bem. Não obstante, Aristóteles numa argumentação bastante sólida, indica de que
maneira o homem desenvolve a virtudes morais, pois são elas ingredientes dos mais
importantes para alcançar a eudaimonia. Este ideal orienta o homem, na medida em
que o busca em toda atividade que empreende. Aristóteles assim expõe a ideia :
Ora, como são muitas ações, artes e ciências, muitos são os seus fins [...] o fim da arte médica é a saúde, o da construção naval é um navio [...] em todas elas os fins das artes fundamentais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque esses últimos são procurados a bem dos primeiros.” (EN, 1094a8).
Pode-se constatar essa assertiva na abertura da obra de Aristóteles: “Admite-
se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como ação e toda escolha,
têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é
aquilo a que todas as coisas tendem” (EN, 1094a1).
Seja qual for a atividade, a arte (téchne: conhecimentos práticos como a
medicina, música, navegação), a investigação (ciência teorética), tudo concorre para
a satisfação de uma única e desejada instância: o Bem, ou o sumo Bem. Se todas
as ações forem desejadas com vistas a este fim, estar-se-ão de acordo com a
função própria do homem – a ação em sua melhor forma, a virtuosa. Atinge-se,
desse modo, a excelência na ação.
O filósofo inicia a investigação a respeito do Bem na ação humana com uma
indagação: se o Bem é importante em nossa vida, por que não o conhecer
profundamente, para que a ele mais facilmente nos possamos conduzir? Enfatiza-se
aqui um primeiro ponto na ética aristotélica: o conhecimento do Bem, cuja finalidade
não seja o próprio conhecimento – teorético, mas o de possuí-lo e desejá-lo, sob o
controle da Razão como guia para a ação. Desse modo, torna-se conhecimento
produtivo.
Capítulo 1. Da Ética 30
Longe de ser uma ação qualquer, institui-se uma ação boa, dado que a
racionalidade é peculiar ao homem, capacitando-o, de certa forma, à escolha da
melhor ação, como se entende neste fragmento:
Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom tal-e-tal” têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade – pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim o é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. (EN, 1098a 14).
Aristóteles expõe uma visão teleológica da natureza, asseverando que tudo
quanto existe tem uma causa final ou propósito final. Conhecer a causa final de uma
coisa corresponde a saber se ela é boa para o seu tipo de função e de que coisa ela
precisa para cumprir o seu propósito. O propósito de existir de uma cadeira é servir
para sentar; aquela em que você não pode sentar não é uma boa cadeira. Caso ela
não cumpra o seu propósito, não é uma cadeira. O bom para aquela cadeira é ter
quatro pernas, para equilibrar e sustentar alguém que nela se sente. Conhecendo o
seu propósito, sabe-se de que se precisa para realizar aquele mesmo propósito. O
propósito da planta é crescer e florescer; uma boa planta é aquela que cresce com
sucesso e qualquer coisa que facilite o seu crescimento é bom para a planta.
No entender do filósofo, da mesma forma, o homem possui uma causa final.
Um homem bom é aquele que realiza o seu propósito, e tudo quanto facilite essa
realização é bom para o homem. O propósito do homem é pôr em execução sua
capacidade de racionalizar com excelência, e, procura-se no adulto, sua
funcionalidade otimizada. Nisso está contido o exercício das suas virtudes. Para ser
excelente, tem que exercitar ambas as partes da alma que se guiam pelo raciocínio:
as virtudes intelectuais e as virtudes morais.
Capítulo 1. Da Ética 31
A racionalidade é central na ética aristotélica, sobretudo aquela orientada
para escolha boa, praticada continuamente para atingir a excelência na sua função.
O que é peculiar ao homem é uma vida de atividade, orientada pela Razão. E a
função de um bom homem é, portanto, a boa realização desta função, a que se
acrescenta:
[...] e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim o é] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. (EN,1098a13).
Por conseguinte, todo trabalho e todo conhecimento visa a algum bem, ao
passo que a ação visa alcançar o mais alto Bem. A concepção de Bem pode diferir
de um para outro indivíduo: para uns pode significar riqueza; para outros, a saúde,
por exemplo. Aristóteles argumenta que os bens mais verdadeiros são aqueles
relacionados à alma. E há um Bem que se destaca como causa da boa realização
das demais: o Bem supremo – a felicidade, que deve corresponder à virtude, ao que
há de melhor em nós, guiados que somos pela Razão: constituída pelo desejo. Esse
tipo de atividade deve perpetuar-se por toda vida, porquanto o homem não se torna
virtuoso pelo mero fato de realizar determinada ação, mas uma instância favorece a
outra, até que se forme o hábito e, assim sucessivamente, contribui na disposição
para agir virtuosamente.
Por disposições de caráter entende-se: “[...] as coisas em virtude das quais
nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência
à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e
boa se a sentimos moderadamente [...]” (EN, 1105b25).
Capítulo 1. Da Ética 32
Toda ação e propósito têm como finalidade um bem que lhe é próprio. O Bem
para a Medicina é a saúde; para a Arquitetura, a casa. O fato de tê-lo em vista
realiza todo o resto, segundo Aristóteles. Os fins são vários e nós os escolhemos em
vista do Bem supremo :
Não deliberamos acerca de fins, mas a respeito de meios. Um médico, por exemplo, não delibera se há de curar ou não, nem um orador se há de persuadir, nem um estadista se há de implantar a ordem pública, nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade. Dão a finalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcançá-la; e, se parece poder ser alcançada por vários meios [...] (EN,1112b11).
No entanto, um deles merece buscar-se por si mesmo, jamais é escolhido,
tendo em vista outra coisa; “...por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo
que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.” (EN,
1097a40). Tal é o conceito de felicidade, o Bem que se persegue, fundando-se no
interesse de si próprio, e não de outra coisa. Assim determina uma certeza que
permanece orientadora:
É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria. (EN, 1097b1).
Para Aristóteles, a felicidade é a vida completa, apenas alcançada quando o
homem realiza a sua função da melhor maneira, triunfando com excelência no
desempenho de uma função. Se fosse possível uma síntese de sua obra pertinente
à Ética, poder-se-ia dizer: a felicidade do homem está onde se faz o bom uso da
Razão, na constância de sua aplicação ao longo da vida, não apenas por breve
período de tempo.
Descobre-se no tempo um eficiente colaborador do homem que, exercitado
na Razão, impelido e motivado pelo desejo, empenha-se diariamente no propósito
Capítulo 1. Da Ética 33
de buscar a perfeição durante toda a vida, no sentido de realizá-la bem e para o
Bem, de acordo com a bondade e a excelência da ação – atividade virtuosa –. Por
conseguinte, o tempo o auxilia no exercício da atividade virtuosa: “[...] o homem feliz
vive bem e age bem; pois definimos praticamente a felicidade como uma espécie de
boa vida e boa ação.” (EN, 1098b20).
A Ética e a Política – ambas intervindo na ação individual e na coletiva –
visam a um objetivo comum: a formação do homem virtuoso, aquele que é nobre e
justo porque escolhe com prudência. Chama-se a atenção a um ponto de extrema
importância para que isto ocorra, conforme afirma Aristóteles: “[...] é preciso ter sido
educado nos bons hábitos.” (EN, 1095b5).
Ao homem bem educado, assiste-lhe mais facilmente conhecer e agir em
consonância com o Bem, segundo Aristóteles. Por outro lado, a maioria dos homens
vive destituída de certo fundamento, de forma que identificam o Bem e a felicidade
na vida de prazeres imediatos e de gozo. Não que alguns elementos não concorram
para a vida feliz: riqueza, corpo perfeito, amigos e família, mas a virtude é o mais
importante deles, se se pretende alcançar a felicidade. Assegura Aristóteles que ao
homem de grande refinamento (educação) e nobreza de caráter, sobrepõe-se
preferentemente a virtude. Aristóteles define a virtude :
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio termo entre dois vícios, um por um excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. (EN, 1106b 35).
Ao homem virtuoso, o prazer é decorrente da realização de atos que se
consideram corretos. Com efeito, partindo-se do pressuposto de que o desejo se faz
móvel da ação, há que se considerar a diferença da ação praticada pelo animal e
pelo homem, respectivamente. Enquanto aquele é regido por reações instintivas,
este deseja preferencialmente que sua escolha seja precedida de deliberação, o que
é facultado pela Razão calculativa e movida pelo desejo, para a qual a disposição
virtuosa tem fundamental importância.
Capítulo 1. Da Ética 34
Por outro lado, o sujeito incontinente (acrático) é dominado pelos impulsos.
Por conseguinte, o desejo lhe impele a ação. É imperioso que se eduque, no
homem, certo tipo de desejo, para que ele seja continente a ponto de conquistar
autodomínio para efetivar ações da melhor forma possível, porquanto foi educado
gradativamente para disposição virtuosa que, por sua vez, inclina-o e o orienta
justamente para esse tipo de ação. Num processo habitual, com o tempo, o agente
adquire a inclinação e o desejo de agir norteando-se por uma única forma – a
virtuosa. A disposição é uma espécie de segunda pele, uma segunda natureza, uma
forma de agir aprendida e efetivada no hábito. Quanto mais cristalizada a forma de
agir – virtuosa ou viciosa – tanto mais difícil ocorrerá variação ou mudança. Por isso
Aristóteles alerta para a necessidade de educar a criança para a escolha boa.
A boa escolha realiza-se no encontro coincidente do desejo com a reta
Razão, a capacidade de calcular a melhor das escolhas. A virtude moral implica que
seja reto o nosso propósito e escolhamos os devidos meios. A reta Razão calcula a
melhor das ações que não está pronta, mas é calculada, diante de um
acontecimento.
Entende-se por Razão calculativa a faculdade exclusivamente possuída pelo
homem de ponderar (avaliar prospectando) em defesa de suas ações e escolhas.
Desse modo, age com reflexão, prudência, discernimento, sensatez, equilíbrio etc. e
encontra o justo meio, o justo equilíbrio no confronto, nas oposições de escolhas.
Para que o desempenho da Razão seja bom – o que não consiste no
excesso, nem na falta – faz-se necessária a relação com ele mesmo e a relação
com a própria coisa em juízo.
O conceito de mediania em Aristóteles é fundamental para o entendimento da
excelência na ação, característica exclusiva do homem virtuoso – phronimos – o que
possui a sabedoria prática. Pois a justiça e a temperança são destruídas pelo
excesso e pela falta e são preservadas pela mediania. Evidenciam-se, nesses
excertos, a especificidade da virtude, e da capacidade de o agente moral deliberar e
efetivar a melhor escolha, não por um princípio determinado a priori, assim
consideradas moralmente boas, senão na mediania calculada no âmbito das
contingências.
Capítulo 1. Da Ética 35
Trata-se de cada indivíduo encontrar o meio termo, que não é um só, nem
coincidente para todos:
Quando o desejo opera sozinho, sem o lógos, as ações são, de certo modo, do domínio da necessidade, sem a possibilidade daquele que engendra a ação escolhê-lo. Por outro lado, quando o desejo é acompanhado do lógos, perfazendo com isso a escolha, há a possibilidade das ações contrárias na esfera da contingência. Destarte, o lógos, ao engendrar a possibilidade dos contrários, de certo modo sustentaria a esfera ética, na medida em que garantiria àquele que o possui escolher uma das ações possíveis na contingência que o mundo sublunar comporta. (PEREIRA, 2006, p. 19).
Em Aristóteles, uma ação só pode ser considerada moralmente boa, se ela for concorde com o justo-meio. O justo-meio não consiste em uma média aritmética (assim como o 3 é o meio termo entre o 2 e o 4), pois ele depende tanto do objeto, o qual varia caso a caso, quanto daquele que age, não sendo o justo meio o mesmo para todos os indivíduos com relação ao mesmo objeto. (PEREIRA, 2011, p. 35).
[...] em todas as coisas o meio termo é louvável e os extremos nem louváveis nem corretos, nem dignos de censura. (EN, 1108a15).
No extremo relativo à cólera, existe o excesso, o homem irascível; em sua
falta, há o homem pacato; em relação à verdade, a jactância e a falsa modéstia; seu
meio-termo corresponde à veracidade. Com respeito à aprazibilidade, há dois tipos:
o chocarreiro (insolente); em sua falta, surge o rústico, e o meio-termo marca o
espirituoso. O outro tipo de aprazibilidade respeita à amabilidade, em cujo excesso
se gera uma pessoa obsequiosa ou lisonjeira; na sua deficiência, o homem se
mostra desagradável, mal-humorado e rixento. Também há o meio-termo nas
paixões: em relação à vergonha, em sua falta gera-se o despudorado; em seu
excesso, o acanhado; já seu meio-termo coincide com a pessoa modesta.
Entre a inveja e o despeito, está a justa indignação. A esse respeito, declara
Aristóteles: “[...] estas disposições se referem à dor e ao prazer que nos inspiram a
boa ou má fortuna de nossos semelhantes [...]” (EN, 1108b35). O homem que se
caracteriza pela justa indignação se aflige com a má fortuna imerecida, ao passo
que o invejoso aflige-se com a boa fortuna alheia Já o despeitado não se aflige,
chega ao ponto de rejubilar-se.
Capítulo 1. Da Ética 36
Considerando a concepção de Aristóteles, verifica-se que não é fácil
encontrar o meio termo, porquanto estão mais perto dele os extremos que em
relação ao extremo oposto. Deve-se levar em consideração, inclusive, que aquilo a
que mais tendemos, por natureza, é mais contrário ao meio-termo. Apenas ao
agente moral – aquele que desenvolveu disposição, experiência e raciocínio,
espécie essa de percepção – é possível determinar o meio-termo, localizado entre o
excesso e a falta. Trata-se de estado mediano, de certa forma correspondente à
temperança e em perfeita consonância com a reta Razão.
Realiza-se a deliberação segundo a disposição do agente, e apenas a
escolha efetivada na mediania é concernente à ação moralmente boa. Esse tipo de
ação é própria do homem que desenvolveu a sabedoria prática – phronimos. Apenas
se precisa o justo-meio no momento da ação; varia de um indivíduo para outro e
segundo as contingências, conforme se verifica no fragmento :
O phronimos possui a capacidade calculativa que possibilita achar o justo meio. E este será condizente com a ação correta: “Com efeito, as proposições relativas à conduta, as universais são mais vazias, mas as particulares são mais verdadeiras, porquanto a conduta versa sobre casos individuais e nossas proposições devem harmonizar-se com os fatos nesses casos. (EN, 1107a28).
O domínio da Ética se dá no campo do que é variável; admite, pois, grande
variedade e flutuações de opinião, o mesmo ocorrendo em torno dos bens. Por
conseguinte, há de se considerar, além de conhecimento, a experiência para saber
controlar as paixões, saber julgar bem as coisas que conhece. Em larga escala
depende do modo de viver. Acrescenta-se aqui que, na ética aristotélica, a
ação/escolha realiza-se pela Razão calculativa, em detrimento da Razão científica,
que pouco opera no domínio ético, que se dá sobre as coisas que são variáveis.
A sabedoria prática, que é própria do phronimos, não é habilidade, opinião ou
conhecimento: vai além da inteligência e intuição, o que significa que ela não se
limita a entender (apreensão da verdade científica) e julgar, próprio do homem
perspicaz. A sabedoria prática realiza cálculo, por meio do uso da Razão, permitindo
ao homem deliberar com excelência, fundando-se no conhecimento, na experiência
e, sobremaneira, pela disposição em agir, deixando-se guiar conforme o Bem.
Capítulo 1. Da Ética 37
Segundo Aristóteles, à sabedoria filosófica – conhecimento científico/teorético
combinado com a Razão intuitiva a respeito de coisas mais elevadas, invariáveis,
destituída de finalidade para a práxis – o homem deve preferir a sabedoria prática,
um bem acima de todos, que versa sobre as coisas propriamente humanas,
alcançada pela ação humana mediante a deliberação: “De modo que delibera bem
no sentido irrestrito da palavra aquele que, baseando-se no cálculo, é capaz de visar
à melhor, para o homem, das coisas alcançáveis pela ação.” (EN, 1141b7).
Toda deliberação traduz-se por investigação. Dessa maneira, investigam-se
as possibilidades, analisa-se a melhor maneira de alcançar uma finalidade
estabelecida previamente, consideram-se a maneira e os meios de alcançar a sua
consecução. Aquilo por que se optou consiste no objeto de escolha e este
corresponde, pois, àquilo que se deseja; contudo, não antes da análise e da
deliberação.
Aristóteles define o fim último que se alcança pelas ações – meio que visa ao
bem supremo – a eudaimonia. Eis, portanto, o valor da deliberação na escolha boa
para cada situação. Escolhem-se, pois, fins intermediários que, por sua vez,
convergem para esse fim último. As ações se desenvolvem sucessivamente por
educação e hábito para a consecução do bem supremo, o mais indicado e desejado
no desempenho da função do homem.
Constituem objeto de contemplação sob a perspectiva da ética aristotélica:
investigar o que é o Bem; orientar/educar o indivíduo a respeito de como deve ele
agir (vida virtuosa); apontar-lhe como as escolhas devem ser feitas (mediania),
senão também como suas ações devem ocorrer (retidão e constância), para atingir a
finalidade da Ética: viver a vida orientada pelo Bem para o alcance da eudaimonia,
desejo de todos os homens. Todos esses procederes se pautam e são possíveis
apenas no domínio coletivo, porquanto a escolha é pertinente ao âmbito particular,
ao passo que a vida virtuosa se dá na convivência da coletividade.
Capítulo 1. Da Ética 38
Com efeito, logo no início de sua obra Ética a Nicômaco, Aristóteles
assevera que a Ética e a Política estão intimamente imbricadas, uma vez que ambas
têm a mesma natureza e buscam o mesmo fim – o Bem. Explicita que a Política
direciona a vida e o conhecimento de seus cidadãos, assim como leis são
necessárias para a sua educação, o que se ratifica neste fragmento :
[...] é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o individuo como para o Estado, o deste último deve ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. (EN, 1094a28).
Aristóteles estabelece que as virtudes se adquirem por meio da constância de
seu exercício: “[...] tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a
temperança, a bravura etc” (EN, 1103b1). Isso se aplica também aos legisladores e
à sua função de incutir no cidadão bons hábitos. Acrescenta que somos autárquicos
e essa é uma condição necessária para a vida feliz, apenas possível numa vida na
polis, não uma qualquer, senão a vida na polis organizada, cujo fim comum seja
satisfazer as necessidades dos concidadãos. Não obstante, o conhecimento e as
leis não são suficientes, se os indivíduos forem incontinentes. Deve-se recorrer à
ação intrínseca ao trabalho, à vida familiar e à Política. Para a realização de ações
boas torna-se imprescindível que tanto o indivíduo quanto a coletividade sejam
educados nos bons hábitos. De fato, a formação do homem, aqui em questão a do
jovem, determina como se dará sua ação futura, reforçando, desse modo, o valor e a
importância para a presente investigação. Lembremo-nos de que
[...] as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticamos, portanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres. E não é coisa de somenos que desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquela maneira. Tem, pelo contrário, imensa importância, ou melhor: tudo depende disso. (EN, 1103b21).
Capítulo 1. Da Ética 39
Na área da Saúde, muitas vezes, a decisão não se faz simples : situações
muito complexas se apresentam ao profissional que, então, deve deliberar a respeito
dos meios que o conduzirão à manutenção da vida, preferentemente. Aristóteles
explana a respeito das decisões de maior valor: essas são de difícil deliberação.
Argumenta que saber o que é melhor não basta para agir dessa maneira. As
melhores escolhas se pautam no conhecimento do assunto, de modo deliberado.
Sendo a vida o objeto com que lida cotidianamente o profissional da saúde, e porque
ela é dotada de grande valor, no momento da dúvida, cabe a quem hesite dividi-la
com outros profissionais capacitados, porque todos alcancem a melhor escolha
diante do impasse:
Delibera-se a respeito das coisas que comumente acontecem de certo modo, mas cujo resultado é obscuro, e daquelas em que este é indeterminado. E nas coisas de grande monta tomamos conselheiros, por não termos confiança em nossa capacidade de decidir. (EN, 1112b8).
Nas coisas que são variáveis opera a razão calculativa – que permite as
escolha –, diferentemente do que ocorre com as coisas que são invariáveis. Aí opera
a Razão científica. Segundo Aristóteles, a escolha – campo tomado por aquilo que é
variável, onde se incluem as coisas praticadas –, reside a virtude moral.
Na Medicina e em tudo que respeita à saúde e à vida, sobressai o uso da
Razão calculativa. A capacidade calculativa está presente naqueles profissionais
que foram orientados nesse sentido, adquirem uma disposição de caráter tal, que os
faça possuí-la, movidos pela disposição, desejo de escolha boa, do conhecimento e
da experiência para o bom uso da Razão que orienta e realiza a melhor das
escolhas. Nesse sentido, urge não se perder o eixo de formação ética do
profissional, sobremaneira no que tange ao desenvolvimento da disposição e da
sabedoria prática do agente moral – âmago da educação ética. Uma vez integrada à
vida na comunidade, compõe a preocupação ética, abordagem dada no capítulo
Ética e Educação deste estudo.
CAPÍTULO 2
EDUCAÇÃO MÉDICA
Capítulo 2. Educação Médica 41
2.1 A formação técnico-científica do médico
Num primeiro momento, em torno da retrospectiva histórica e da discussão
atual a respeito da formação do médico organiza-se este capítulo, para, em seguida,
contemplar mais especificamente a formação ética nas escolas de Medicina.
Desde sua origem remota, em todos os momentos históricos em que se
experimentaram mudanças profundas das relações sociais nos âmbitos econômico,
cultural e político, reconstruíram-se os processos de formação humana e de
concepção acerca da Medicina. Passou de uma interação próxima entre o médico, o
paciente e sua família para os avanços em termos de evidente cientificismo nos
vínculos com o paciente, distanciando-se da relação humana, o que pressupõe se
valorizarem as decisões, inequivocamente fundadas nos passos amplos da evolução
da Tecnologia. O tempo histórico presente marca-se de algumas modificações
relevantes, mormente porque evidenciam a tendência de imprimir novo
direcionamento à formação do profissional médico. Abordar-se-ão aqui as intenções
de mudanças ocorridas nas últimas décadas, concernentes aos Cursos de Medicina
– em cujas escolas se promove a educação continuada –, e às orientações dos
Conselhos Profissionais que, contemplando temas éticos e oferecendo aos
estudantes bolsas para estudos e pesquisas, muito têm contribuído com vistas à sua
formação ética.
Com o propósito de traçar um breve histórico da Medicina, baseou-se este
tópico em Margotta (1998), em cuja obra se reitera o fato de que a origem remota da
Medicina mantém-se alicerçada apenas em conjecturas, em virtude da inexistência
de documentação. Não obstante, de acordo com pesquisas realizadas nos séculos
XIX e XX, supõe-se que tenha a Medicina se originado na associação natural de
práticas mágicas e sacerdotais, em que não se dissociavam, mas se confundiam,
inclusive, as funções do médico e do sacerdote em muitas das sociedades primitivas
e em algumas outras da época contemporânea. Com efeito, a história da Medicina
manifesta sua gênese na magia do homem primitivo, perpassa os progressos
científico-tecnológicos do final do século XX e início do XXI, para alcançar as
Capítulo 2. Educação Médica 42
promessas e expectativas do futuro, ante os avanços das Ciências e da Tecnologia.
Importa acentuar, contudo, que, malgrado essa abertura de novas perspectivas de
progresso técnico, a relação humana foi e ainda é de importância vital na prática
médica. De fato, a confiança verificada na inter-relação médico-paciente constitui-se
a essência dos empreendimentos da Medicina, conforme sustenta Margotta:
[...] a importância do ato de fé por parte do paciente na relação com o médico, algo que ainda é um elemento vital em nossos dias, quando curas radicais e racionais são possíveis para muitas doenças, assim, como eram quando a medicina era inteiramente mágica e empírica. (MARGOTTA, 1998. p. 6).
É possível conhecer alguns procedimentos médicos realizados pelos egípcios
em épocas anteriores por meio de textos de autores gregos e romanos, entre os
quais figuram Homero, Heródoto, Hipócrates e Plínio. No entanto, papiros
descobertos atestam que os médicos egípcios utilizavam-se de grande quantidade
de drogas, inclusive o ópio e a cicuta. O papiro descoberto por Georg Ebers em
Luxor (1873), datado de 1553-1550 a. C., compõe-se de uma coletânea de textos
concernentes à medicina egípcia tal como provavelmente era praticada no Antigo
Império (3300-2360 a. C.) – o que corresponde à época das primeiras oito dinastias
dos faraós.
É provável que esses papiros tenham resgatado trechos das prescrições de
Imhotep, da terceira dinastia, que, além de ter sido um famoso arquiteto e construtor
de pirâmides, foi também um médico excepcional. Os gregos o associavam a
Asclépio, atualmente conhecido por seu nome latino Esculápio – o deus grego da
Medicina.
Para os hebreus, a doença representava a ira dos deuses ante os pecados da
humanidade. Não era, pois, provocada por um demônio, um espírito maligno ou
feitiços. Para vencer a doença e melhorar, as pessoas recorriam à intervenção de
sacerdotes, que eram os verdadeiros intérpretes da lei de Moisés e obtinham mais
êxito nas curas que os médicos.
Segundo o mesmo autor, possivelmente os persas tenham compartilhado
com os judeus a origem de sua medicina, porquanto enfatizavam a importância da
Capítulo 2. Educação Médica 43
higiene pessoal e comunitária. A saúde dependia do deus da luz e da bondade,
Ahura Mazda. No caso de mau exercício, previam-se honorários e multas.
Por volta de 1500 a.C., circulavam entre os hindus eruditos os livros de Veda
(aprendizado), entre os quais o Ayurveda (Veda da vida longa), especificamente,
tratava da Medicina. Eram textos sagrados, considerados revelações de entidades
divinas. Naquele tempo, viveram dois médicos hindus – Charaka e Susruta –, cujos
escritos constituem a base da medicina indiana. Alude Margotta à natureza mista
das obras médicas, à semelhança de enciclopédias, em que é difícil discriminar
ideias essencialmente indianas dos conceitos e preceitos oriundos de outras
civilizações. Enfatiza o autor em fragmento da obra consultada:
Um papel extremamente importante da medicina indiana é desempenhado pelas rigorosas regras de higiene da religião brâmane. Recomenda-se uma dieta vegetariana e a abstinência do álcool; há também grande ênfase na limpeza, com muitos banhos e a remoção imediata dos excrementos da casa. (MARGOTTA, 1998, p. 17).
A medicina chinesa remonta à época mais antiga. Atribui-se sua prática ao
imperador Shen Nung, que teria governado de 2838-2698 a.C., “[...] sob a inspiração
de Pan Ku, o deus da criação, segundo a tradição taoísta: o caos foi superado e a
ordem foi estabelecida com base nos dois polos postos, yin e yang.” (MARGOTTA,
1998, p. 18). Nos três volumes de sua obra Pen T’sao Ching ou Herbário, apresenta-
se um elenco de 365 ervas, além de prescrições e venenos. Atribui-se ao imperador
Hwang Ti (2698-2598 a.C) a melhor e mais antiga obra chinesa de Medicina,
transmitida oralmente durante séculos e transcrita provavelmente no século III a.C.
Por ser limitado o conhecimento, a obra traz suposições muito interessantes, como a
que se verifica em determinada passagem: “Todo o sangue no corpo humano é
controlado e regulado pelo coração. A corrente sanguínea flui incessantemente num
círculo; ela simplesmente não pode parar, assim como não param o fluxo de um rio
ou o percurso do sol e da lua.” (MARGOTTA, 1998, p. 19).
O Japão sofreu influência tanto da medicina chinesa quanto da medicina
europeia. No entanto, antes da chegada dos chineses, seus conhecimentos a
respeito de doenças fundavam-se na mediação de espíritos malignos e influências
divinas.
Capítulo 2. Educação Médica 44
Com o passar dos tempos, os sacerdotes foram se afastando dos rituais de
tratamento, e a Medicina passou a ter caráter profissional.
Aos gregos atribuem-se os primórdios da Medicina como a conhecemos, uma
vez que eram questionadores do mundo e procuravam compreender o homem e a
natureza. Segundo Margotta, a civilização do mar Egeu, gestada após a conquista
das ilhas gregas, começou por volta de 3000 a.C. Com influências orientais e da
cultura pré-helênica, a Medicina desenvolveu-se paralelamente à Filosofia, tornando-
se ciência e arte, praticada não pelos sacerdotes, mas por leigos, que substituíram
as magias por investigação.
A mais antiga fonte de informação acerca da medicina grega encontra-se na
obra de Homero, que assegurava que o médico é uma figura de respeito: “Ele vale
muitas vidas, inigualável na remoção de flechas das feridas e na cura com bálsamos
preparados de ervas.” (MARGOTTA, 1998, p. 22). Fazia referência a deuses e às
preces aos moribundos. À época de Homero, a Medicina não se fundamentava em
magias: era uma disciplina independente, praticada por profissionais pagos. Não
obstante, influências orientais na cultura grega conduziram-na a tornar-se mais
sacerdotal. O autor consultado refere-se a que as literaturas depois de Homero
citam demônios, clarividentes e augúrios. Vários deuses relacionavam-se à cura:
além de Apolo, Ártemis, Atena e Afrodite. Na mitologia grega a serpente estava
associada ao poder de cura e também à sabedoria, a ponto de haver se tornado
símbolo da cura, ainda hoje utilizado na Medicina. Tão logo se edificaram os
santuários, o culto à serpente se alastrou, embora já fosse evidente na medicina
mágica, conforme se constata em:
O culto à Esculápio pode ter evoluído dessas divindades, pois seu símbolo, a serpente, é uma representação antiga das forças do submundo e um sinal sagrado do deus da cura entre as tribos semitas da Ásia Menor. Não se sabe ao certo se Esculápio existiu realmente, sendo deificado após a morte. O que se conta é que, durante sua passagem sobre a terra, constituiu uma grande família, incluindo Panacéia, que possuía a cura para tudo, e Higia, cujo domínio era a saúde pública. (MARGOTTA, 1998, p. 22).
Capítulo 2. Educação Médica 45
No século V, as práticas médicas sacerdotais já propagavam por toda a
Grécia e se desenvolveram até os séculos IV ou V d.C.
Segundo referências do mesmo autor, os primeiros filósofos eram biólogos e
naturalistas. Os fundamentos mais importantes para a medicina científica foram
proporcionados a partir da fundação da escola filosófica greco-latina, fundada por
Pitágoras (580-489 a. C.), em Crotona. O filósofo grego impunha regras rígidas aos
ingressantes na busca de conhecimentos. O médico mais famoso da escola de
Crotona foi Alcmeon – jovem contemporâneo de Pitágoras –, que tornou a Medicina
reconhecida como Ciência, além de renomado mestre da anatomia e da fisiologia.
Segundo Margotta, Alcmeon descobriu os nervos óticos, a trompa de Eustáquio do
ouvido, fez observações sobre a circulação, diferenciou veias e artérias e foi o
primeiro a afirmar que o cérebro era o berço do intelecto e dos sentidos. Ademais,
investigou distúrbios funcionais do cérebro, elucidou implicações para a morte e o
sono. Na mesma época, outras escolas se desenvolviam em Cirene, no norte da
África; em Cnido, no extremo sul da Ásia Menor e nas ilhas de Rodes e Cós.
Entre as demais, sobrepujou a Escola de Cós, cujos ensinamentos se
garantiam e amparavam em diagnósticos e exames, não lhes importando as causas
das doenças, senão o prognóstico de cada paciente. Inclusive, conquistou fama para
a posteridade, mormente porque aí se formou Hipócrates – o pai da Medicina.
Era peculiar à Escola de Cós que os iniciantes na arte da Medicina
prestassem juramento – renovado de tempos em tempos – porque se assegurasse o
alto padrão da conduta profissional. A História consagrou e celebrizou esse
juramento como juramento de Hipócrates, proferido solenemente até os dias
contemporâneos pelos formandos dos Cursos de Medicina na cerimônia de sua
graduação, porquanto exprime um ideal de postura profissional e de vida altruísta.
Constam de seu teor valores, virtudes, posturas, procedimentos, habilidades e
competências desejáveis ao autêntico profissional de medicina: conhecimento;
respeito à profissão, a mestres e colegas, sobremaneira ao paciente e à vida; uma
conduta de beneficência em relação àquele que está sob seus cuidados;
abnegação; confidencialidade; postura responsável não apenas na prática
profissional, senão também manifestando uma vida pessoal honrosa, entre outros
valores e deveres.
Capítulo 2. Educação Médica 46
Porque demonstra amplo escopo de atitudes ético-profissionais aí contidos e
porque se encontra estreitamente coeso ao eixo de atenção e ao propósito deste
capítulo – contemplar a formação técnico-científica e ética do médico –, importa
conhecê-lo.
Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes. Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte. Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam. Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados. Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça. (Juramento de Hipócrates, c2001/2012).
Além do juramento, Hipócrates legou à Medicina ensinamentos importantes,
sobremaneira aos concernentes à área clínica, em que observações, descrições e
investigações evidenciam-se precisas. Não obstante, no que se refere à anatomia e
fisiologia não houve evolução, uma vez que tais conhecimentos advêm de
experiências com animais e cadáveres, e os gregos nutriam muito respeito aos
mortos.
De qualquer forma, seja em textos legados por Hipócrates, seja em
apontamentos de autoria de seus discípulos, expressa-se claramente o que se
considerava a arte da medicina e, em particular, a preocupação de cunho ético
Capítulo 2. Educação Médica 47
dispensada pelo profissional médico em relação a seu paciente, como se deixa
transparecer nos seguintes excertos:
Aquele que quiser compreender a medicina deve aprender tudo o que está escrito aqui. Primeiro, é preciso conhecer o efeito de cada estação do ano e as diferenças entre elas. Deve-se levar em conta os ventos frios ou quentes, comuns a qualquer país ou restritos a certas localidades. Finalmente, é preciso inteirar-se sobre as diferentes qualidades das águas, variação de gosto e efeitos no corpo humano...Da mesma maneira, é necessário observar como vivem as pessoas, do que elas gostam, o que comem e bebem, se fazem exercícios físicos e se são preguiçosas e desleixadas com o corpo. Tudo isso o médico precisa saber, se quiser realmente compreender as queixas dos pacientes e se colocar em uma posição em que possa receitar o tratamento adequado. (MARGOTTA, 1998, p. 29).
[...] devo primeiro falar o que considero ser seu escopo: tirar ou pelo menos aliviar a dor. O fato de que todos podem se beneficiar disso, mesmo os que não acreditam, é prova de sua existência e seu poder. (On art apud MARGOTTA, 1998, p. 27).
Depois da morte de Hipócrates, a Escola de Cós entrou em declínio,
permaneceu a sua reputação, no entanto. Fundada no Egito por Felipe da
Macedônia, Alexandria tornou-se o principal centro da cultura grega. Nas escolas
médicas, houve grandes avanços no que tange à anatomia e fisiologia, sobretudo
com Herófilo – provavelmente o primeiro a realizar dissecção de corpos.
A partir do século VI d.C., a Medicina se profissionalizou. Com o propósito de
exercer a profissão, os recém-treinados solicitavam licença, que só era concedida
após a verificação do desempenho do estudante na escola. Então, podiam abrir
consultório e receber honorários dos pacientes.
Grego fiel aos ensinamentos de Hipócrates, Galeno estudou em Esmirna e
Alexandria. No ano de 162, seguiu para Roma, onde adquiriu fama como médico e
filósofo, contando entre seus clientes o Imperador Marco Aurélio. Escreveu cerca de
quatrocentos tratados, a maioria dos quais se queimou num incêndio, restando
apenas 83 de seus escritos. Considerado um médico excelente e empenhado, fez
estudos e descobertas de anatomia, cujos conhecimentos teriam avançado mais
rapidamente se os estudiosos da Idade Média houvessem procedido à verificação
de suas observações e descobertas, o que só foi possível ocorrer na Renascença.
Capítulo 2. Educação Médica 48
A queda do Império Romano relacionado a acontecimentos como a
corrupção, opressão das minorias, disseminação da pobreza e ataques bárbaros,
aliados à ocorrência de epidemias com alto índice de mortalidade fez declinar a
Medicina. O Cristianismo em ascensão considerava-a um trabalho de caridade, de
forma que, nem o indivíduo nem a comunidade estavam isentos de ajudar os
doentes. Em termos de prática, os cristãos ajudaram os doentes inicialmente em
albergues, que se transformariam em hospitais mais tarde.
O espírito caridoso influenciou várias outras seitas consideradas heréticas
pela Igreja Católica, como a nestoriana – de Nestório, monge de Antioquia – foi
banida do Império Romano. Os nestorianos fundaram na Pérsia, a escola de
Gondishapur, que viria a ser o berço da Medicina na Arábia. Vários termos usados
na medicina ocidental, como “álcool”, “alcalino”, “alcalóide”, “alquimia” e “alambique”,
vêm do árabe. Jabir Ibn Hayan, que concebeu os fundamentos da Química, viveu no
século IX, foi o primeiro a examinar o sangue e as fezes.
Os médicos árabes mais conhecidos foram Rhazes e Avicena, habitantes do
califado oriental e Avenzoar e Averróis, esses últimos, foram membros da escola de
Córdoba – capital do califado ocidental. Metade das 237 obras de Rhazes, que
nasceu na Pérsia e estudou medicina em Bagdá, no século IX, trata da Medicina:
escreveu um tratado acerca da varíola e catapora, fundamentando-se em
experimentos diretos, com conclusões precisas. Avicena nasceu em 980 na Pérsia;
começou a estudar Medicina aos 16 anos e aos 18 já se tornara experiente.
Declarara que “embora tivesse lido a Metafísica de Aristóteles umas quarenta vezes,
teve que admitir que, por mais que se esforçasse, não entendia nada.”
(MARGOTTA, 1998, p. 49). Seu propósito era reconciliar as doutrinas biológicas e
médicas de Hipócrates, Aristóteles e Galeno e a isso se deu o sucesso de sua obra
de 5 volumes, que perdurou por muito tempo. Quando Avicena morreu em 1037, a
escola de Córdoba florescia no século X: havia médicos em abundância e 52
hospitais. Suas obras dominaram o pensamento médico até a Idade Média.
Após a morte de Avicena, destacou-se o médico islâmico, Albucasis, que
deixou uma obra em que se revela sua habilidade como cirurgião. Em sua prática,
dizia aos cirurgiões: “Deus observa e sabe se vocês operam porque a cirurgia é
realmente necessária ou por amor ao dinheiro.” (MARGOTTA, 1998, p.50).
Capítulo 2. Educação Médica 49
No século XII, Avenzoar, nascido em Sevilha, não aceitava as doutrinas dos
grandes nomes do passado. Não poupou críticas à Avicena, declarando não ter
tempo para abordagens metafísicas, imprimindo mais ênfase à experimentação. Jbn
Rushid, ou Averróis, (1126-1198), tornou-se magistrado em Córdoba e Sevilha,
estudou Jurisprudência, Filosofia e Medicina; sua obra mais famosa se ocupava
mais da teoria que da prática. Maimônides foi o aluno mais célebre de Averróis.
Seguia Aristóteles e, como seu mestre, era mais conhecido como filósofo que
médico. Dada à perseguição de seita fanática, Maimônides obrigou-se a fugir para o
Egito, onde passou a ganhar a vida com a prática da Medicina.
No início da Idade Média, entre guerras, epidemias e fome, os cuidados com
os doentes ficaram a cargo de ordens religiosas, como se verifica em:
Uma série de circunstâncias aleatórias foi responsável pela criação da ordem beneditina por São Bento de Núrcia, o que resultou num grande progresso da medicina, tanto na teoria quanto na prática. Várias enfermarias monásticas foram construídas. A mais famosa pertencia ao mosteiro suíço de São Gal, fundado em 720 por um monge irlandês. Os hospitais monásticos eram completamente autônomos e os remédios eram feitos pelos próprios monges a partir de plantas cultivadas em seus jardins. (MARGOTTA, 1998, p. 52).
Não obstante, a saída dos monges de suas clausuras para realizarem visitas
aos doentes tornou-se tema de polêmica nos conselhos eclesiásticos, o que resultou
em proibição da medicina monástica. Mesmo assim, muitos preferiam procurar os
religiosos aos médicos leigos.
Os agrupamentos de escolas de ensino sob o título de universidade datam da
idade média. A mais antiga foi a escola de Salerno, na Itália, conhecida como
“Civitas Hipocrática” (PAIXÃO, 1979).
Salerno era conhecida estação de tratamento devido seu clima ameno e por
possuir água com propriedades terapêuticas. Após longo tempo, reavivou a história
de medicina leiga com sua escola de Medicina, criada no século X, atingindo o seu
apogeu no final do século XI. Em 1050, o mais célebre professor da época,
Gariopontos, escreveu o primeiro manual para uso estudantil contendo doutrinas de
Galeno e outros. A sua obra Passionarius contém a base da terminologia moderna.
Traduziu termos gregos para o Latim e adaptou palavras populares, como “cicatrizar
Capítulo 2. Educação Médica 50
e cauterizar”. A escola admitia mulheres, entre as quais Trótula, de identidade
desconhecida. Alguns autores consideram que possa ter sido apenas mais um dos
médicos da época. É de sua autoria um texto a respeito de obstetrícia, que
permaneceu em uso ate o século XVI. Continha ensinamentos de como proceder
antes, durante e após o parto e recomendações para os tratamentos de prolapso e
pólipos no útero, da dieta apropriada, além de orientações para a escolha da ama de
leite (PAIXÃO, 1979; OLIVEIRA, 1981; MARGOTA, 1996).
Concernente às contribuições para o âmbito da Medicina, Salerno
disponibilizou para as gerações futuras de profissionais os conhecimentos gregos,
assim como os árabes. A anatomia ensinada em sua escola baseava-se quase
totalmente em Galeno. Os médicos dissecavam animais e acreditavam que havia
maior semelhança entre os intestinos humanos e os de porcos. Os ensinamentos de
Salerno eram transmitidos em versos. A obra Regimen sanatis salernitanum (O livro
salernita de saúde) foi o alicerce da medicina clínica até o final da Idade Média.
Os textos da escola de Salerno eram em sua maioria, colaborações, embora alguns tenham recebido destaque. Rogerius Frugardi foi o autor de um texto claro e conciso sobre cirurgia que refletia as ideias e os métodos dos médicos gregos. Os capítulos sobre feridas no crânio e no abdômen têm interesse especial. As fraturas do crânio deveriam ser exploradas por meio de toque, e, em casos mais graves, Frugardi recomendava a trepanação por uma série de perfurações, de modo que o osso danificado pudesse ser removido sem afetar as membranas protetoras do cérebro. Quanto às contusões no abdômen, se o intestino ficasse duro e frio após prolapso, ele recomendava que fosse aquecido sobre o intestino de um animal recém-abatido, devendo ser limpo com uma esponja antes de ser recolocado no abdômen, de modo que deixasse a ferida aberta enquanto o dano permanecesse visível; em seguida, deveria ser inserido um dreno e a ferida teria de ser tratada diariamente. (MARGOTTA, 1998, p. 53).
Embora fosse a primeira a ser reconhecida oficialmente em 1224, a escola de
Salerno não evoluiu para a categoria de stadium generale, como as universidades
da Europa eram chamadas na época. Durante os séculos XII e XIII, a fundação de
universidades cresceu. Uma das maiores da época era a de Bolonha, onde já existia
uma escola de Direito desde o século XI. Tadeu de Florença (1223-1303) foi um dos
primeiros professores de Medicina; traduziu as obras de Aristóteles e escreveu Della
Conservazione della salute, em que recomendava a prática de exercícios diários.
Capítulo 2. Educação Médica 51
Sua outra obra, Consilia, trazia descrições de casos clínicos. Mondino, professor
dessa mesma escola, trouxe grandes contribuições para a anatomia. A escola de
Bolonha era democrática: os estudantes escolhiam seus professores e elegiam o
reitor, que, nas cerimônias oficiais, beneficiava-se de privilégios e prioridade em
relação a todos, mesmo em se tratando de autoridades eclesiásticas.
No século XIII, a cirurgia se desenvolveu na França graças à escola de
cirurgia de Paris, dirigida por Guido Lanfranc, italiano que, por motivos políticos,
deixou a Itália e foi para Lyon. Escreveu Cyrurgia Parva e Cyrurgia Magna. Seu
amigo Mondeville escreveu o primeiro texto especificamente francês a respeito de
cirurgia, Chyrurgia, em cuja introdução aconselhava a cobrança de honorários e
alertava que pacientes ricos costumavam ir se consultar maltrapilhos para pagar
menos.
Na Inglaterra, a Medicina sofreu grande influência da Igreja. A uniformidade
da educação médica impediu que se escrevessem novos textos; as aulas eram mais
teóricas que práticas. Traduziram-se várias obras do Latim para o Inglês, e, como
em Salerno, houve popularização do conhecimento e inclusão dos fatos médicos na
poesia.
A Universidade de Oxford, data sua criação em 1206. Os estudantes
buscavam formação na Universidade de Paris, regressando em grande número para
lecionar em Londres, até que descontentes com o clima hostil, muitos migraram para
a cidade Cambridge. Inspirado na cultura italiana, Thomas Linacre (1460-1524) foi
um dos primeiros humanistas de Oxford. Fundou o Royal College of Physicians,
1518, entre seus discípulos está Thomas More, conhecido humanista (OLIVEIRA,
1981).
No final da Idade Média, o movimento cultural – Humanismo – se
manifestava, embora houvesse charlatães e se usasse a astrologia, além do fato de
muitos professores terem sido conservadores, “[...] grandes médicos eram
humanistas e homem de letras [...]” (MARGOTTA, 1998, p. 65).
Não obstante, transformações estavam acontecendo: cada vez mais os
professores efetuavam dissecações, ensinava-se anatomia associada à cirurgia;
somente em 1570 as duas disciplinas foram separadas.
Leonardo da Vinci, citado como mestre das artes e das ciências, fez
descobertas, invenções e ilustrações, dissecou mais de trinta cadáveres à luz de
vela, utilizando-se de técnica usada ainda hoje. Foi o primeiro a traçar o trajeto dos
Capítulo 2. Educação Médica 52
nervos cranianos e a dissecar as membranas do feto; analisou o sistema muscular e
desenhou as artérias coronárias. Com efeito, poderia ele ter sido reconhecido como
o Pai da Anatomia, não fossem suas obras descobertas dois séculos mais tarde.
Com sua contribuição, os estudos de anatomia encontraram o caminho certo, e
estudantes de Medicina tornaram-se hábeis anatomistas.
Coube a Andreas Vesálio (1514-63) ser celebrado como o Pai da Anatomia.
Estudou em Louvain, Montpellier e Paris. Sua obra, Tabulae Anatomicae Sex (Seis
Tabelas Anatômicas), continha textos e ilustrações magníficas, realizadas por
Stephen Calcar, seu amigo desenhista de Pádua. Em 1543, com 28 anos, completou
sua obra máxima, De humani corporis fabrica libri septem (Sete Livros sobre a
Estrutura do Corpo Humano), em que, descartando os dogmas de Galeno, provocou
escândalo nos professores galenistas. Apontou erros dos professores do passado,
posto que, ao fazê-lo, não fosse seu propósito “[...] triunfar por glórias pessoais”
(MARGOTTA, 1998, p. 78). Perturbava os galenistas a negação de Vesálio a
respeito da existência de poros por onde o sangue passava no coração, do
ventrículo direito para o esquerdo, o que não o deixou também imune a erros. Foi
severamente criticado pelos colegas e ameaçado pela Igreja. Queimou seus
trabalhos não publicados e abandonou, assim, sua carreira científica, tornando-se
médico do Imperador Carlos V e, mais tarde, de Felipe II.
Gabriele Fallopio, que viveu de 1523 a 1562, descrito como professor
excelente e indivíduo exemplar, lecionou nas universidades de Ferrara, Pisa e
Pádua. Defendeu a obra de Vesálio, apondo-lhe, no entanto, algumas correções.
Descreveu o ouvido, as artérias cerebrais, as dobras do intestino delgado, o
ligamento inguinal, o tímpano, os canais semicirculares e as trompas que lhe levam
o nome, além de descrições dos músculos oculares e nervos do cérebro. Sua obra
mais famosa foi Observationes anatomicae. Sucedeu a ele o igualmente famoso
Fabrizio, que desenvolveu trabalho a respeito da reprodução, anatomia e fisiologia
do feto, dentre outras contribuições.
Philippus Aureolus Theophastus Bombastus von Hohenheim, conhecido como
Paracelso, nasceu na Suíça em 1493. Declara Margotta de que foi autor de mais de
300 obras baseadas em suas experiências e de que se manifestava a favor de se
abandonarem os ensinamentos de Galeno. Tendo viajado continuamente por muitos
lugares, ganhou reputação por seus tratamentos e curas. Consta que, na
Universidade de Basileia, deixou de ensinar em Latim, para fazê-lo em Alemão, e
Capítulo 2. Educação Médica 53
que, em público, queimou as obras de Galeno e Avicena, como protesto contra o
atraso na Medicina tal como praticada na Alemanha da época, segundo relatos de
quem a esse país voltava, após haver concluído seus estudos, como por exemplo na
Itália. Ainda concernente à Universidade da Basileia, importa registrar que os
conhecimentos acerca das doenças mentais evoluíram graças a Felix Platter (1563-
1614), que lá estudou Medicina.
Na França, século XVI, Ambroise Paré, devido à falta de óleo quente,
substituiu-o por gema de ovo, óleo de rosas e terebintina para cauterizar feridas dos
soldados. Observou, então, bons resultados como ausência de inflamação e
diminuição das dores, pondo fim à pratica de queimar os pacientes com óleo quente.
Por não saber falar Latim ou Grego não ingressou na universidade. Seguindo seu
pai e seu tio, tornou-se um barbeiro-cirurgião: o nível mais baixo na hierarquia
médica. Em seu túmulo, gravou-se a frase dita ao ter tratado um oficial, cuja vida
salvou: “Eu o tratei e Deus o curou.” (MARGOTTA, 1998, p.91). Alguns cirurgiões do
final da Renascença foram considerados impiedosos, como Gaspare Tagliacozzi,
professor de Bolonha, posto que tenha ele imprimido grandes avanços na cirurgia
plástica.
No século XVII, as ciências avançavam. No entanto, respeitando à Medicina
foram considerados poucos. Houve avanços farmacológicos no uso de algumas
plantas e derivados de animais como o antimônio, quinino, dentre outros,
abandonando-se gradativamente a purgação de Galeno como tratamento mais
eficaz às doenças.
Os estudos científicos empreendidos por Galileu Galilei (1564-1642) –
considerado um dos maiores cientistas de todos os tempos –, vieram a influenciar
alguns avanços na Medicina. No campo da Óptica, seu aperfeiçoamento do
telescópio de refração concorreu para, em 1590, ter sido inventado o primeiro
microscópio, provavelmente por Johannes e Zacharius Janssen, de Middelburg, na
Holanda, embora outros contemporâneos seus tenham sido citados também como
inventores. De qualquer forma, a invenção do microscópio colaborou no avanço dos
estudos do sangue, da pele, de doenças infecciosas, além de possibilitar a gênese
da bacteriologia, histologia, embriologia, entre outros estudos e aplicações no âmbito
da Medicina.
Na Europa do século XVII, cooperou para esses ainda que tíbios avanços
médicos a ascensão das associações científicas, como Accademia dei Lincei, Roma,
Capítulo 2. Educação Médica 54
1603; Academia Francesa, fundada em 1635; Sociedade Real de Londres,
oficializada em 1700. O filósofo Leibniz influenciou Henrique I a fundar a Academia
de Ciências em Berlim. Publicaram-se contribuições médicas em vários países, e a
primeira revista de medicina surgiu em 1769 – Journal des nouvelles découvertes
sur toutes les parties da la médicine.
Houve ainda o desenvolvimento da Física e da Química relacionadas à
Medicina, graças a nomes como Galileu, Satorius, Gian Alfonso Borelli François de
la Boë, Descartes e Thomas Willis. Inventou-se o termômetro clínico e descobriram-
se a perda de vapor através da pele, os princípios mecânicos da ação muscular, a
medição de energia gasta no movimento, a função dos músculos torácicos e do
diafragma.
Por sua vez, Tomas Willis (1621-1675) – anatomista inglês que estudou em
Oxford e lecionou mais tarde no Colégio Médico de Londres – destaca-se por
estudos e descobertas importantes para a Medicina, como a percepção do gosto
adocicado da urina dos diabéticos. Descobriu ainda a myasthenia gravis e a febre
puerperal. Deu-lhe notoriedade a obra Cerebri anatome, datada de 1664, em que
descreve pela primeira vez o 11º nervo (nervo de Willis).
Num período assinalado de avanço em pesquisas de laboratório e
experiências, o médico inglês Thomas Sydenham, formado em Cambridge em 1645,
observador astuto, empenhou-se em favor da medicina clínica, descreveu a febre
reumática e gota, discriminou a escarlatina do sarampo. Outro médico célebre da
época foi o italiano Giovanni Maria Lancisi, considerado o pioneiro da saúde pública.
Além disso, defendeu uma reforma radical no estudo da Medicina, em que
estudantes deveriam adquirir conhecimentos sólidos em cursos de longa duração,
contemplando a anatomia e fisiologia, o uso do termômetro e do microscópio.
Segundo Margotta, o século XVIII foi um período de mudanças ideológicas e
políticas, o que imprimiu um esmaecimento no dogmatismo acadêmico. No que
respeita ao progresso científico no âmbito da Medicina, marca-se a criação de
hospitais-escola, como o de Londres – e delineou-se o perfil do médico tal como se
conhece na atualidade. Merece destaque o médico holandês Hermann Boerhaave,
que publicou em 1709 Aphorisms (aforismos), obra várias vezes reeditada em
diferentes línguas. Lecionou na Universidade de Leiden, que inaugurou a inovação e
mudanças nos tradicionais métodos de ensino da Medicina. Seu fiel aluno, Gerard
van Swieten (1700-1772), fundou a Escola Vienense, separou o ensino da anatomia
Capítulo 2. Educação Médica 55
do de cirurgia, criou um laboratório de Química. Como seu mestre o fizera, manteve
duas enfermarias: uma destinada a homens, outra a mulheres, e as reservou ao
ensino de medicina clínica. Professor daquela escola, Leopold Auenbrugger
desenvolveu o método de percussão de diagnóstico clínico.
A partir das evoluções apresentadas em outras ciências – mormente na Física
e na Química – vieram a favorecer também as das ciências biológicas. Nesse
campo, descobertas se fizeram, muitas das quais ocorreram de modo fortuito, porém
se mostraram de relevância capital para os passos futuros da Medicina, sobretudo
no século XX, consagrando os nomes dos cientistas médicos nelas envolvidos.
Exemplica-o Edward Jenner (1749 - 1823), que conduziu sistematicamente o estudo
da vacina antivariólica, em 1796, marco reconhecido na medicina preventiva
(BARROS, 2002).
Barros refere que o século XIX trouxe importantes descobertas no campo da
microbiologia, que conduziram a medicina a grandes transformações na ciência
médica, tanto que esse período cronológico passou a ser denominado era
bacteriológica.
Importa ainda destacar o grande químico e microbiologista francês Louis
Pasteur, cuja obra revolucionou os métodos de combate às doenças infecciosas,
uma vez que provou serem decorrentes da ação de bactérias. Sua maior conquista
no campo da imunologia foi a criação de um método de prevenção contra a raiva: a
vacina antirrábica e contra o anthrax. Por sua vez, Robert Koch (1843 - 1910),
médico e bacteriologista alemão, descobriu o agente etiológico (bacilo) da
tuberculose, sua descoberta de maior repercussão. Estabeleceu o raciocínio e a
correlação entre a presença do micro-organismo na doença, sua detecção, seu
cultivo em meio de cultura, inoculação e recuperação novamente do animal
infectado (BARROS, 2002). Em 1883, numa missão oficial, seguiu para o Egito e
Índia, onde procedeu a estudos de etiologia do cólera para, um ano depois,
evidenciar, o agente etiológico da doença – o Vibrio comma. Em 1891, fundou o
Instituto de Higiene, consagrou os estudos de tuberculose, lepra, cólera, malária, tifo
e das bactérias anaeróbicas.
Ademais, segundo relatos de Margotta, houve ainda no século XIX
importantes descobertas que desempenharam papel decisivo no que respeita aos
avanços da Medicina no século seguinte – o desenvolvimento da bioquímica, o
estetoscópio, o oftalmoscópio, a anestesia, os antissépticos, dentre outros. Enfatiza-
Capítulo 2. Educação Médica 56
se a descoberta do Raio-X pelo físico alemão Wilheim Konrad Roentgen. Enfim, na
Medicina da Europa e da América, os céleres progressos de conhecimento
conduziram à criação das especializações médicas.
Decididamente o século XX deu acesso à quase completude de avanços
científicos e tecnológicos de que se tem conhecimento na história da humanidade,
de forma que necessitaria de muitas páginas para descrevê-los. Não obstante, cada
um deles influiu notadamente para o progresso no âmbito da Medicina e enseja
novas descobertas.
Já nas primeiras décadas do século – 1928 – Sir Alexander Fleming (1881 -
1955), professor de Bacteriologia da Universidade de Londres e do Real Colégio de
Médicos, descobriu extraordinariamente o poder antibacteriano do mofo, de que a
penicilina é um derivado. Enquanto voltava a atenção às pesquisas acerca da
bactéria Staphylococcus aureus, responsável pelos abcessos causados por arma de
fogo. Após exaustivo período de observação, Fleming saiu de férias e, ao retornar
percebeu que havia se desenvolvido bolor em um dos vidros sem tampa, derivado
do contato do experimento com o mofo do ambiente. Concluiu, então, que o mofo
oriundo do fungo Penicillium secretara uma substância, inibindo o crescimento
bacteriano. Sua descoberta ampliou-se em vários países. Somente foi isolada em
1938 por Ernest B. Chain e Howard W. Forey, da Universidade de Oxford. Em 1940
foi utilizada em paciente para fins terapêuticos (MANDELL; SANDE, 1983).
Outro grande evento do século se deu pelas experiências de Thomas Hunt
Morgan que o levaram a concluir que os genes estavam localizados nos
cromossomos e que transmitiam os traços hereditários. Era o início da Genética
moderna, posto que essa havia se inaugurado com as experiências de Mendel em
1865, sem o devido reconhecimento à época (SOUZA, 2004).
Por sua vez, a biologia molecular evidenciou duas descobertas relevantes: o
ácido desoxirribonucleico (DNA) como princípio de transformação conferida aos
traços hereditários (1943), por Oswald Avery, Colin MacLeod e Maclyn MacCarty; o
conhecimento da estrutura do DNA (1953), por meio de pesquisas empreendidas por
James Dewey Watson e Francis Harry Campton Crick. Decodificou-se o DNA em
1966 para, quatro anos depois, ser segmentado em fatias. Em 1971, avançou-se
com o conhecimento do DNA recombinante, o que possibilitou a primeira clonagem
dois anos mais tarde. Progressos tecnológicos na área de computação possibilitou
chegar ao Projeto Genoma Humano (PGH), entrelaçando conhecimentos da
Capítulo 2. Educação Médica 57
Genética e da Biologia Molecular. O PGH iniciou-se nos Estados Unidos na década
de 1980 e despertou expectativas na descoberta para a cura de doenças graves,
sobretudo o câncer. Isso estimulou tanto o aporte financeiro quanto o apoio
governamental e deu início à corrida nas disputas por patentes e reconhecimento
por descobertas. Os vultuosos investimentos procederam dos EUA e Japão para,
mais tarde, os centros destinados ao PGH se difundirem no mundo, como os do
Reino Unido, França e no Brasil, inclusive (SOUZA, 2004).
Concernente à assistência à saúde no Brasil, é possível apreender certas
informações de que sua inauguração remonta ao século XVI, vinculada às tentativas
empreendidas por Portugal no sentido de colonizar o território recém-descoberto,
embora, segundo Paixão (1979), haja divergências entre historiadores no que
respeite a data de fundação das instituições.
Posto isso, acredita-se que a Santa Casa de Misericórdia em Olinda exista
desde 1539 ou 1540 sendo então a pioneira no país (OLIVEIRA, 2011).
Logo depois da fundação da Vila de Santos por Brás Cubas (1543) na
Capitania de São Vicente, seu fundador tratou de instalar a Santa Casa de Todos os
Santos. A exemplo das casas de caridade de Portugal, religiosos (na maioria
jesuítas da Companhia de Jesus) prestavam assistência às pessoas que eram
vitimadas pela malária, febre amarela e tifo. Nota-se que a maioria dos historiadores
aceitam como a pioneira dentre elas a Santa Casa de Santos.
Seguiu-se-lhe a fundação da Santa Casa de Misericórdia em Vitória (1545),
também destinada a atender aos enfermos dos navios do porto e a moradores. Em
Salvador, instalada em 1549, após a chegada do governador geral Tomé de Sousa.
realizavam-se tratamento a doentes e trabalhos sociais e filantrópicos até os dias
contemporâneos. Na cidade de São Paulo, fundada em 1554 por obra dos jesuítas,
a assistência hospitalar – ainda que precária –, está presente desde 1560
aproximadamente.
Com a fundação do município do Rio de Janeiro (1565), passou ele a contar
com uma Santa Casa de Misericórdia, instalada pelo Padre José de Anchieta, com o
propósito de socorrer os tripulantes da esquadra do Almirante Diogo Flores Valdez,
trazendo escorbuto a bordo (PAIXÃO, 1979; SANTOS FILHO, 1991).
Pouco mais tarde, vieram as instalações em Minas Gerais, Santa Catarina e a
de Angra dos Reis (RJ). Com efeito, o denominador comum encontrado em todos
esses estabelecimentos respeita à sua criação destinada a fins caritativos e à
Capítulo 2. Educação Médica 58
precariedade da assistência médica, em que atuavam “pouquíssimos médicos
portugueses.” (PAIXÃO, 1979, p.105).
No séc. XVIII, os físicos medicavam os membros da Coroa, ao passo que aos
médicos se reservavam os procedimentos manuais de menor prestígio. Na segunda
metade do século, os médicos alcançaram posição mais privilegiada, com formação
adquirida na Europa, onde participavam como membros de academias científicas e
literárias. No entanto, essa formação assistia apenas a quem procedesse de famílias
abastadas. Resta relatar que, na época, barbeiros efetivavam sangrias, além da
atuação dos boticários oriundos de famílias humildes (EDLER; FONSECA, 2006).
Em 1808, decorrente do estabelecimento da Família Real portuguesa no
Brasil, criaram-se os primeiros cursos de Medicina, a Escola de Cirurgia e Anatomia
da Bahia, a Escola de Anatomia e Cirurgia e a Academia de Guarda da Marinha,
ambas no Rio de Janeiro, datando do mesmo ano da chegada da Família Real e de
toda a Corte portuguesa ao País. As duas primeiras se tornaram a Faculdade de
Medicina da Universidade Federal da Bahia e Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de janeiro, respectivamente (STELLA; CAMPOS,
2006).
Paixão (1979) reporta a má impressão causada ao I Imperador do Brasil pela
precariedade da assistência à saúde da época, o que o levou a declarar na
Assembléia Constituinte aos 3 de maio de 1823:
A primeira vez que fui a Roda dos Expostos, achei, parece incrível, sete crianças, com duas amas, nem berço, nem vestuário. Pedi mapa e vi que em 13 anos tinham entrado 12.000 e apenas tinham vingado 1.000, não sabendo a misericórdia verdadeiramente onde elas se acham. (PAIXÃO, 1979, p. 106).
De acordo com a mesma autora, em 1856, essa situação experimentou,
tímida embora, mudanças para melhor com a chegada ao Brasil das religiosas,
conhecidas como irmãs de caridade, o que acarretou, inclusive, queda significativa
da mortalidade infantil.
As escolas brasileiras seguiram o modelo francês disseminado pelo mundo na
primeira metade do século XIX, e se pautavam no modelo clínico de observação das
condições patológicas – técnica de inspeção do corpo e dos sintomas apresentados
– e no conhecimento de anatomia. O trabalho, a pesquisa e o ensino eram
Capítulo 2. Educação Médica 59
realizados na cabeceira do paciente e nos anfiteatros de anatomia (KEMP; EDLER,
2004).
À época da sua criação, os cursos duravam quatro anos. Entre 1812 e 1815,
ocorreram as primeiras reformas nas duas escolas: a duração dos cursos passou
para cinco anos e, em 1832, para seis; houve ampliação de cinco para 14
disciplinas, adotando-se o modelo pedagógico existente nas escolas francesas de
Medicina. Em Salerno, os cursos já duravam cinco anos com mais um ano de prática
em hospital (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA, 2009).
As escolas brasileiras adotaram esse modelo com duração de seis anos,
destinando de três a quatro semestres ao conhecimento biológico – chamado de
ciclo básico – seguido do ciclo clínico, com duração de quatro a seis semestres para
o aprendizado de pediatria, ginecologia e obstetrícia, clínica médica e cirúrgica,
propedêutica e outras especialidades, além de um ano de internato, constituído de
prática supervisionada.
No final do século XIX, já havia muita influência do modelo alemão em todo o
mundo, inclusive nos Estados Unidos e, em cada um deles, assumiu características
diversas. Silva Melo foi um dos médicos que, tendo estudado na Alemanha, voltou
entusiasmado com o que lá existia. Fundava-se esse modelo no ensino e pesquisa
em laboratórios, favorecendo a carreira de pesquisa. Silva Melo, assim como
Flexner nos Estados Unidos, prezava pela alta qualidade na formação do médico
tanto científica quanto cultural. Na década de 1880, a Reforma Saboia foi aos
poucos se organizando em conformidade com o modelo alemão, que defendia o
ensino prático e livre. Implantaram-se laboratórios de Fisiologia, Patologia
Experimental, Histologia e Parasitologia, dentre outros (KEMP; EDLER, 2004).
No início do século XX, o modelo americano tornou-se hegemônico. Segundo
Gonçalves e Benevides-Pereira (2009), Abraham Flexner, especialista em educação
superior, após ter visitado 155 faculdades de Medicina nos EUA e Canadá, concluiu
que apenas cinco delas tinham condições de formar médicos. Elaborou, então, o
conhecido Relatório Flexner.
O ensino da Medicina, tal como se conhece hoje, teve início a partir de 1910,
após a divulgação do relatório Flexner pela Fundação Carnegie. Representou uma
mudança profunda no cenário educacional médico dos Estados Unidos, em uma
época em que imperava a medicina de frágil sustentação científica, cujas escolas
Capítulo 2. Educação Médica 60
surgiam sem vínculos com as universidades, carentes de regulamentação no
tocante a pré-requisitos para ingresso, matrículas, sobremaneira para a duração dos
cursos, a ponto de haver duração de apenas um ano (FLEXNER, 1910).
Diante deste panorama, as sugestões contidas no Relatório Flexner
representam um avanço no sentido de uma formação mais científica do médico, na
medida em que confiaram nos cursos algumas características como: definição dos
pré-requisitos para o ingresso no curso de Medicina, de sua duração em quatro
anos; estímulo à docência em tempo integral; implantação do ensino clínico –
sobremaneira em ambiente hospitalar; vinculação de pesquisa ao ensino; ênfase na
pesquisa biológica em contraposição à medicina empírica antes praticada;
vinculação das escolas de medicina às universidades; introdução do ensino
laboratorial e controle do exercício profissional pela classe organizada
(CAMARGO,1996).
No contexto desta reforma de caráter científico, observam-se contrapontos,
cujos reflexos negativos ainda se fazem sentir contemporaneamente no ensino e na
prática médica. Amplamente financiada por fundações privadas americanas – cerca
de 300 milhões de dólares em um período de 20 anos – e pela Associação Médica
Americana, cujo intuito era, em defesa da alopatia, frear a progressão da
homeopatia, a referida reforma acarretou efeitos, a saber: fecham-se escolas de
Medicina, sobremaneira as destinadas a negros; restringe-se o número de vagas
oferecidas, elitizou-se o ensino médico, favorecendo as classes médias-alta e alta,
os homens brancos e todos aqueles que, sensíveis à ideologia da medicina científica
eram depositários dos valores morais preconizados por suas classes sociais de
origem. Houve, assim, uma estreita conjugação de interesses entre o capitalismo, a
corporação médica e as universidades, o que concorreu para determinar a
institucionalização do sistema médico que lhes era mais conveniente e adequado –
a medicina cientificista (CAMARGO, 1996).
Há que se considerar que esta mudança ideológica operou implicações no
modo de se conceber o objeto da prática médica – a pessoa humana. Antes
concebido sujeito do processo terapêutico e respeitado em sua dignidade, o homem
já não se reconhece como sujeito, passando a ser um objeto de estudos,
comparável a quaisquer outros objetos de estudo de conhecimento científico
pertinente a ciências diversas – Física, Química, Biologia, Matemática etc. –,
destituídas das qualidades inalienáveis de ser humano.
Capítulo 2. Educação Médica 61
Em contrapartida, como efeito rebote, modifica-se e se configura uma nova
óptica do papel do médico – agora convertido em apenas mais um profissional,
prestador de serviços integrante da sociedade, ou seja, a arte médica cede espaço e
relevância, desvalorizando-se, em favor da ciência e da tecnologia, suscitadas pelo
capitalismo (CAMARGO, 1996).
Com efeito, essas mudanças todas geraram profunda alteração nas relações
médico-paciente, que perduram até à atualidade e provocam um distanciamento
gradativo do que se constitui essência humana, uma vez que provocaram a ruptura
do vínculo humanístico entre médico e seu paciente, o que é fundamento de
inquestionável importância no percurso de qualquer tratamento.
A expansão das escolas de Medicina se deu entre 1930 e 1970. Até então
eram 12, todas públicas. Entre 1930 e 1960, criaram-se mais 19 escolas, e, em
1964, havia um total de 37 cursos de Medicina. A partir daí, houve uma explosão de
escolas e a inversão na relação público-privada (GONÇALVES; BENEVIDES-
PEREIRA, 2009).
Segundo Corbellini (2007), a saúde começou a se organizar na década de 50,
priorizando a assistência individual e hospitalar, mesmo quando o discurso de
sanitaristas defendia a prevenção. Inclusive, esse foi o tema do 1º. Congresso Sul-
Riograndense de Higiene, realizado em 1957. Outra característica marcante desse
modelo é que se centralizava no profissional médico, e não na saúde e no paciente.
Desse modo, a Medicina assume o topo da hierarquia hospitalar. Essa posição
determinou também a relação do profissional médico com a equipe e o paciente. De
fato, em sua realidade, o cuidado pautado no poder e submissão se estende a todos
profissionais, porquanto as pessoas, ao serem internadas, perdem a sua condição
de ser saudável, produtivo, para incorporar o ser submisso.
No final da década de 1960 e início dos anos 70, a saúde passou a ser vista
como um bem de consumo, em consonância com a política econômica da época,
que preconizava um crescimento acelerado com uma taxa elevada de produtividade,
com baixo salário aos trabalhadores, apenas favorecendo aos trabalhadores
especializados.
Em 1961, instituiu-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que
reformulou o Conselho Federal de Educação (CFE), e, entre outras atribuições,
passou a regulamentar os cursos de Ensino Superior (STELLA; CAMPOS, 2006).
Capítulo 2. Educação Médica 62
Em 1968, como resultado da reforma universitária efetivada, pôs-se fim às
cátedras, introduzindo o sistema de departamentos, numa proposta de organização
dos cursos em ciclos, na tentativa de diminuir a fragmentação da grade curricular,
cujos conteúdos eram ministrados, sem que se levasse em conta sua integração ao
curso (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA, 2009).
Iniciada na segunda metade dos anos 1970, a Reforma Sanitária revela-se
um movimento importante constituído por intelectuais universitários e profissionais
da área da saúde, posteriormente incorporado por outros segmentos da sociedade,
em plena vigência do regime autoritário da Ditadura Militar (STELLA; CAMPOS,
2006).
A política educacional estava a serviço do modelo econômico progressista e
autoritário do País. A reforma educacional tinha como meta a eficiência técnica para
prover mão de obra e aumento da produtividade, cujos efeitos nem sempre
favoráveis ainda se fazem sentir no cenário nacional. O sistema de educação que
emergiu com as reformas da Ditadura Militar foi marcado pela ideologia tecnocrática,
que propugnava uma concepção pedagógica autoritária e produtivista na relação
entre educação e mundo do trabalho (FERREIRA; BITTAR, 2008).
Os avanços científicos e tecnológicos alcançados desde a segunda metade
do século XX aumentaram a eficácia dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos,
na medida em que sua incorporação passou a determinar tanto a gestão dos
serviços de saúde quanto a formação dos profissionais da área da saúde e a
departamentalização curricular. A atenção concentrou-se nos hospitais e no trabalho
especializado: trata-se do chamado modelo hospitalocêntrico, que não permitia a
todos o acesso a esses recursos (AMORETTI, 2005; SPERANDIO et al., 2010).
Em 1985, surgiram os programas conhecidos pela sigla UNI: Uma Nova
Iniciativa na formação de profissionais para a Saúde, sob a égide da norte-
americana Fundação Kellogg. Eram 20 projetos espalhados em vários países que
visavam integrar ensino, serviço e comunidade objetivando a formação do
profissional da saúde voltado para as necessidades da comunidade. Incentivavam o
estudo epidemiológico, a interdisciplinaridade, o trabalho em equipe e a utilização do
serviço como prática de ensino, juntamente com o projeto Educação Médica nas
Américas (EMA), apoiado pela Federação Pan-Americana de Associações de
Faculdades de Medicina (Fepafam), e culminaram na Declaração de Edimburgo em
1988. Elaborada pela Comissão de Planejamento da Federação Mundial de
Capítulo 2. Educação Médica 63
Educação Médica (1988). Os princípios discutidos em Edimburgo nortearam todo o
movimento de transformação da educação médica no Brasil, o que inovou várias
escolas de Medicina (MATTOS, 1997; GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA,
2009).
Na década de 80, houve pressão direcionada a uma mudança política na
Saúde, motivada por críticas ao modelo clínico que enfatizava especialidades,
alienado, contudo, da prevenção de doenças, apenas engajado a seu tratamento e
cura – o que se denomina função curativa (CORBELLINI, 2007).
O movimento da Reforma Sanitária atingiu seu auge na VIII Conferência
Nacional de Saúde, em março de 1986, após amplas discussões que se estenderam
por todo o País, visando não apenas atender às proposições formuladas pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) na Conferência de Alma Ata, na antiga União
Soviética em 1978, senão também efetivar transformações na atenção primária
dispensada à Saúde.
Na década de 1980, o Sistema de Saúde no Brasil passa por grandes
modificações, simultaneamente ao processo de redemocratização do País, que
atravessava, na época, grave crise na área econômico-financeira. O movimento
propunha uma nova Política de Saúde, considerando como princípios básicos a
descentralização do sistema e a universalização do atendimento, já consagrados na
8ª. Conferência (LUZ, 1991).
De modo geral, a Reforma Sanitária buscou uma inversão no modelo de
atenção à saúde, no sentido de promovê-la, em consonância com a proposta
definida na Constituição Federal de 1988, manifestando-se com o emblema de
“Saúde para todos no ano 2000”.
Nessa época a Organização Pan-Americana de Saúde propôs o Programa de
Integração Docente-Assistencial (PIDA), na tentativa de aproximar a educação ao
serviço, com a possibilidade de ampliação dos campos de prática dos estudantes,
visando à atenção primária à saúde. Este programa não teve grande repercussão,
com poucos resultados nesse sentido (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA,
2009).
A Constituição Federal de 1988 cria o Sistema Único de Saúde (SUS) – um
dos mais avançados programas de saúde – o que veio resgatar e garantir o direito à
cidadania, ao mesmo tempo que transformava o antigo modelo curativo individual,
Capítulo 2. Educação Médica 64
corporativo e mercantilista num sistema de saúde de visão coletiva, inserido num
contexto de lógica social.
Concernente ao Sistema Único de Saúde, a Lei n. 8080, de 19 de setembro
de 1990 – conhecida como Lei Orgânica da Saúde – regulamenta o disposto na
Constituição Federal/88 no que se refere à saúde, definindo diretrizes,
estabelecendo o papel da União, Estados e Municípios no sistema, sobremaneira
dispondo a respeito de seu financiamento. Pouco tempo depois, em finais de
dezembro de 1990, aprovou-se a Lei n. 8142, que dispõe sobre a participação da
comunidade, por intermédio de Conselhos de Saúde.
A Lei 8080/90 corrobora o teor contido no Artigo 196 da Constituição
Federal/88, definindo que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos”, reformulando, estabelecendo e executando condições tais que
assegurem “o acesso universal e igualitário às ações e a serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.” Ademais, a mesma Lei define como fatores
determinantes e condicionantes da saúde a alimentação, a moradia, o saneamento
básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o
acesso a bens e serviços essenciais, entre outros. Uma das contribuições relevantes
dessa Lei foi ter deixado explícito que os níveis de saúde da população expressam a
organização social e econômica do País (BRASIL, 1990).
A formação profissional acompanha o movimento político e a necessidade
social da população. A partir da década de 50, muitos debates contribuíram para
reformas no ensino médico, encontrando consonância com a criação da Capes e
Cnpq.
As discussões no Brasil da década de 1990 referendaram o pensamento
internacional que criticava o modelo de educação profissional alicerçado na
racionalidade técnica, com currículos fragmentados em ciclos básico e
profissionalizante, em que predominava o conhecimento teórico organizado de forma
sistemática e disciplinar e a aplicação prática do conhecimento científico ao final do
curso (STELLA; CAMPOS, 2006).
Outros movimentos, como a Declaração de Edimburgo de 1988 e 1993 com a
influência da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e da Rede Unida
de desenvolvimento de Profissionais de Saúde (Rede Unida), somados às iniciativas
de formação e trabalho na área do ensino médico, com investimentos das
Capítulo 2. Educação Médica 65
instituições americanas – Fundação Kellogg e Rockfeller –, que pleiteavam
reorganizar o ensino médico brasileiro, inclusive discutindo que tipo de profissional a
escola deveria formar. Incorporaram-se conceitos que se desdobraram no perfil do
profissional a ser formado, como: medicina integral, preventiva, comunitária e,
posteriormente, medicina da família. Anexa a esses movimentos, constituiu-se a
Comissão Interinstitucional de Avaliação de Escolas Médicas (Cinaem). Este projeto
(1991-2002) avaliou um grande número de escolas médicas. Evidenciou que, na
década de 1990, o número de escolas médicas havia se ampliado, a ponto de não
se saber ao certo o total em funcionamento, muitas sem condições de oferecer um
curso de qualidade. Indicou a necessidade de formação de médicos com uma visão
integral, visto que havia um predomínio de especialistas e que mudanças maciças
urgiam acontecer (STELLA; CAMPOS, 2006; GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA,
2009).
As discussões foram ganhando fôlego, novas ideias surgiram, entre as quais
o uso de métodos de aprendizagem baseada em problemas, conteúdos coerentes
com os avanços científicos e tecnológicos, a inclusão de informações atuais que
surgem em áreas correlatas. Em síntese, as propostas visavam organizar o currículo
segundo as seguintes demandas: a formação generalista do médico, associando ao
currículo “flexneriano”; o conhecimento das ciências sociais; atenção ao indivíduo e
não à doença, integração entre as disciplinas do ciclo básico, clínico e internato;
inclusão de disciplinas das ciências humanas, como Psicologia, Sociologia e
Antropologia (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA , 2009 apud JORNAL CRM).
Os autores supracitados referem que, em 2005, havia 144 escolas em
funcionamento (58 públicas e 86 privadas) e 48 escolas ainda não reconhecidas.
Chama-se atenção ao fato de as vagas terem aumentado 98,9 % nas escolas
privadas, ao passo que, nas escolas públicas, apenas 15 %.
Outro aspecto importante que o governo utilizou para justificar incentivos às
mudanças curriculares foi um estudo realizado pela Cinaem, em que se evidencia o
fato de os recém-formados em Medicina dominarem apenas metade do conteúdo
que deveriam saber ao término do curso. Revela, inclusive, que a residência médica
incorporou-se como continuidade natural da graduação, cujo interesse crescente é
obter o título de especialização (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Segundo Stella e Campos (2006), docentes, alunos, profissionais médicos e
gestores do SUS discutiram a necessidade de mudanças na formação em 11 fóruns
Capítulo 2. Educação Médica 66
nacionais de avaliação, oficinas de trabalho semestrais, preparando lideranças e
estimulando discussões nas escolas. Os eventos propiciaram a elaboração de um
documento-síntese: “Preparando a transformação da Educação Médica”, que,
segundo os autores, contribuiu para a realização de alterações, se não no todo, ao
menos em parte dos currículos. Tudo isso concorreu para que houvesse discussões
de propostas para novas diretrizes curriculares destinadas aos cursos superiores, o
que foi iniciado pelo Ministério da Educação em 1997.
Em 1999, a Comissão de Especialistas do Ensino Médico da Secretaria de
Educação Superior apresentou uma proposta de renovação curricular, considerada
obsoleta pela Associação Brasileira de Ensino Médico. A mesma ABEM promoveu o
XXXVII Congresso Brasileiro de Ensino Médico, durante o qual diretores de Escolas
de Medicina, discutindo o documento, mostraram-se contrários às propostas.
Pautavam-se eles em documentos da Rede Unida de desenvolvimento de
Profissionais de Saúde (Rede Unida) e Cinaem, com o apoio do Ministério da Saúde
(MS) e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que, uma vez
interessados na formação de recursos humanos para o SUS, ganharam força. Em
2000, no Congresso seguinte promovido pela ABEM, a Comissão de especialistas
endossou o documento que, então, foi enviado à Câmara de Ensino Superior (CES)
do Conselho Nacional de Educação (STELLA; CAMPOS, 2006).
Direcionado a estabelecer o perfil de profissional generalista, a priorizar a
atenção primária no País, a propor a integração ensino-serviço, a facilitar o
aprendizado do estudante em áreas diversificadas desde o início do curso
(sobremaneira descentralizando a atenção hospitalar), à intenção de articular
disciplinas de revitalização da formação humana dos médicos, todo esse movimento
culminou numa nova proposta curricular, que foi aprovada pelo CNE em 3 de
outubro de 2001, pela Resolução n°. 718.
Gonçalves e Benevides-Pereira (2009) sintetizaram da seguinte maneira os
pontos centrais de direcionamento para a educação médica: a centralização do
ensino no estudante e na comunidade, rompendo com o hospitalocentrismo, sem
deixar de lado sua importância no processo de formação, mas utilizando outros
cenários de prática; o ensino baseado em problemas fictícios ou reais, visando à
integração dos conteúdos básico e clínico e à garantia de aprendizagem mais
efetiva, sistemática e baseada em evidências.
As diretrizes curriculares nacionais para o curso de Medicina determinam que
Capítulo 2. Educação Médica 67
o perfil do profissional necessita de uma boa formação geral, humanista, crítica e
reflexiva, cujos procedimentos e desempenho se devem pautar em princípios éticos.
O profissional deve atuar na perspectiva de integralidade da assistência, com senso
de responsabilidade social e compromisso com a cidadania. As diretrizes
preconizam que os currículos devam utilizar metodologias que privilegiem a
participação ativa dos estudantes, a integração dos conteúdos básico-clínicos
orientados para a interdisciplinaridade, integrando as dimensões biológicas,
psicológicas, sociais e ambientais. Incluem-se e enfatizam-se os conteúdos éticos e
humanísticos, o estímulo ao desenvolvimento de atitudes e valores que promovam a
cidadania. Orienta-se a utilizar cenários diversificados de ensino-aprendizagem
desde o início de sua formação, porque os alunos possam vivenciar as situações
adversas de vida, a organização e processo de trabalho nos vários cenários
“permitindo ao aluno lidar com problemas reais e assumir responsabilidades
crescentes como agente prestador de cuidados e atenção [...]” (STELLA; CAMPOS,
2006, p. 77).
A formação de recursos humanos para o SUS somente se torna possível com
o real envolvimento e compromisso com a saúde pública. Esse tipo de incentivo
possui também interesse na redução dos altos custos decorrentes da hospitalização.
Ao mesmo tempo, enfatiza a necessidade de sensibilização dos profissionais às
reais condições de vida da população, que se tornam determinantes para a saúde.
Para a implantação de Políticas Nacionais de Saúde, a formação de recursos
humanos tornou-se foco de atenção do governo, para poder organizar e articular os
serviços e a as instituições de ensino. Por meio da capacitação dos profissionais e
trabalhadores da área da saúde tem-se tentado recuperar a articulação existente
entre o ensino, a assistência e a real necessidade da população (HADDAD et al.,
2010).
A visão biologicista dominante nos serviços de saúde contradiz a visão de
saúde calcada na qualidade de vida da população. Nesse sentido, Haddad et al.
(2010, p. 387) defendem que urge investimento na educação quanto à “emergência
de concepções críticas, reflexivas e que problematizem a realidade social.” Esse
pensamento é contrário às propostas de ensino que reforçam incorporação do
conhecimento tecnológico de alta complexidade e custos elevados, perpetuando-se
modelos e tradições de seleção de conteúdos e cargas horárias segundo a
Capítulo 2. Educação Médica 68
importância das especialidades.
O governo federal, por intermédio dos Ministérios da Saúde e da Educação,
no sentido de incentivar as escolas médicas a realizarem mudanças curriculares,
tem lançado programas com incentivo financeiro para serem aplicados na
contratação de consultores, na realização de oficinas, em requalificação de
profissionais e aquisição de material de ensino. O Programa de Incentivo às
mudanças curriculares dos Cursos de Medicina (Promed), lançado em 2002, teve
como principal objetivo adequar a formação dos médicos à realidade do sistema de
saúde brasileiro. Por exemplo, o informe de chamada às escolas para financiamento
de mudanças denuncia que as escolas de Medicina praticamente não alteraram o
currículo nos últimos 30 anos. O Promed recomenda as seguintes mudanças
pedagógicas nas escolas: ênfase na medicina integral, valorizando o conceito de
saúde em detrimento da doença; o desenvolvimento de metodologias ativas de
ensino-aprendizagem; valorizar a humanização do atendimento com a formação de
uma base ética sólida; incentivar o ingresso de futuros médicos em ações de
atenção básica, priorizando o Programa de Saúde da Família e trabalhar novos
cenários de ensino-aprendizagem, que não sejam somente hospitais universitários
(Ministério da Saúde, 2002). Nesse último item, subentende-se que os estudantes
devam ser levados a conhecer e praticar nas Unidades de Atenção Básica,
sobretudo trabalhando nas Unidades que desenvolvam a Estratégia de Saúde da
Família (ESF), porquanto, nesse campo, aprendem a valorizar as ações de
promoção à saúde e prevenção de doenças e de complicações delas decorrentes.
Enfatizam-se aqueles acometimentos de grande incidência na população,
como o diabetes, a hipertensão, além de outras doenças que são crescentes nos
últimos tempos: de modo geral, a depressão, a obesidade e as dislipidemias, dentre
outras. Nesse sentido, o profissional colabora na melhoria da saúde da população,
diminuindo gastos elevados com internação e medicalização consequente ao
aparecimento de doenças, antes prevenindo-as (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Ainda concernente ao documento antes abordado, constata-se que uma das
maiores preocupações – aliás, a que mais motiva a proposição de mudanças na
formação de profissionais de saúde – diz respeito à excessiva especialização
médica. Decorre daí o aumento de custos assistenciais, além de isso contribuir
gradativamente porque haja diminuição de uma visão integral, o que compromete a
ampliação de Programas de Atenção Básica, como a ESF.
Capítulo 2. Educação Médica 69
Por outro lado, pode-se afirmar que o mais desejável seria que a população
pudesse viver em condições melhores de vida, o que propicia promoção à saúde e
que pudesse ter acesso adequado aos meios de prevenção de doenças e que fosse
ele igualitário no que se respeita a tratamentos especializados dentro dos padrões
científicos e tecnológicos mais avançados.
Gonçalves e Benevides-Pereira (2009) afirmam que centralizar o ensino no
estudante e na comunidade rompe com o hospitalocentrismo, sem que se
negligencie sua importância no processo de formação. Com efeito, trata-se de
utilizar outros cenários de prática e de ensino fundamentado em problemas fictícios
ou reais, visando à integração dos conteúdos básicos e clínicos. Eis aí pontos de
redirecionamento para um ensino mais efetivo.
Além do Promed, que funciona desde 2005, outros programas participam no
financiamento de novas propostas de ensino, procurando colaborar na formação
integral do médico. O Programa Nacional de Reorientação Profissional em Saúde
(Pró-Saúde) foi criado em 2005, com a intenção de mudar o modelo tradicional de
cuidado em saúde centrado na doença e no atendimento hospitalar. De outro lado,
tenciona atingir algumas metas relevantes: integração ensino-serviço, abordagem
integral do processo saúde-doença, com ênfase na atenção básica e,
consequentemente, melhor atendimento à saúde da população. Desta fase
participaram da seleção para financiamento concedido pelo governo as escolas que
ofereciam curso de Medicina, Enfermagem e Odontologia. Na segunda fase do
projeto, Pró-Saúde II, lançado em 2007, ampliou-se a participação para os demais
cursos da área da saúde. O programa sobremaneira enfatizava a integração ensino
– serviço, a articulação entre instituições de ensino superior e o serviço público de
saúde, potencializando “respostas às necessidades concretas da população
brasileira, mediante a formação de recursos humanos, a produção do conhecimento
e a prestação dos serviços com vistas ao fortalecimento do SUS.” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2009).
Em parceria com outras Secretarias – Trabalho, Saúde e Educação –, o mais
recente programa financiado pelo governo colabora tanto na formação dos
estudantes quanto na capacitação de profissionais que se encontram em exercício
de sua atividade na atenção primária. Trata-se do Programa de Educação pelo
Trabalho para a Saúde, conhecido por PET-saúde, que disponibiliza bolsas para
tutores ligados a universidades ou faculdades, preceptores (profissionais dos
Capítulo 2. Educação Médica 70
serviços) e estudantes de graduação da área da saúde. O programa expandiu-se,
gerando ramificações: como o Pet-saúde/Saúde da Família; o PET-saúde/Vigilância
em Saúde e, em 2011, lançou-se o PET-saúde/Saúde Mental/crack (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2011).
A formação do profissional deve levar em conta o mercado em que ele será
inserido, e a instituição de ensino deve estar articulada ao setor serviço, atenta às
contradições existentes e à real necessidade da população.
Há um esforço na implementação das diretrizes curriculares ou mesmo de
aproximações das instâncias formadoras às necessidades dos serviços de saúde,
possibilitando mudanças na concepção e perfil dos profissionais para a consecução
das orientações existentes. Isso inclui o contato precoce do estudante na atenção
primária à saúde desde a primeira série, esforço na promoção da
interdisciplinaridade, dando ênfase à formação dos professores em metodologias de
ensino-aprendizagem. Pretende-se, dessa maneira, a sensibilização dos estudantes
e professores em face aos problemas sociais, a melhoria na formação e, por
conseguinte, na assistência ao paciente. A direção está dada. No entanto, o desafio
é saber em que medida os conteúdos serão incluídos e como serão articulados no
currículo.
2.2 A formação ética do médico
Retomam-se os remotos ensinamentos éticos, dada à relevância de seu
legado aos profissionais médicos: Nesse sentido, aponta-se O corpus
Hippocraticum como obra que, segundo Margotta (1998), engloba um conjunto de
tratados médicos de várias escolas, e contém as obras éticas e o Juramento de
Hipócrates.
Capítulo 2. Educação Médica 71
Em On the physician (Sobre o Médico), declara-se como deve ser o
comportamento do médico na visão do homem grego na Antiguidade Clássica:
É essencial que todo médico tenha boa aparência e esteja bem nutrido, pois ninguém confiaria os cuidados do próprio corpo a alguém que não cuide de si mesmo. Ele deve saber como e quando se silenciar e viver uma vida regrada que contribuirá para a sua reputação. Deve se comportar como homem honesto, ser gentil e compreensivo com todos. Não deve agir por impulsos ou precipitadamente; deve transmitir calma, serenidade e não se irrita; por outro lado, não convém demonstrar demasia alegria.” (MARGOTTA, 1998, p. 27).
O fragmento faz menção à postura, à aparência e à comunicação do médico
para o estabelecimento de uma relação adequada com o paciente, com o propósito
de obter-lhe a confiança. A obra reporta-se também ao sigilo das informações a
respeito do paciente. Trata-se, pois, da origem de um Código de Ética Médica que,
ao longo da história da profissão, orientou a conduta e o dever do médico em
relação ao paciente. Em certos momentos, o comportamento do médico na interação
com o paciente se direcionou à responsabilidade com a cura; noutros, com a
manutenção de uma postura polida, a que muitos se referem como à semelhança de
um código de etiquetas, para, posteriormente, o Código de Ética deixar evidente o
dever do médico.
A mudança mais significativa e recente, percebida no Código de Ética
Médica, foi a que fez referência à autonomia do paciente, à importância da
informação para a sua participação nas decisões; também houve inclusão de itens
relativos à atenção aos familiares.
Por um longo tempo, ancorou-se o ensino da Ética na Deontologia. Somente
com o advento da Bioética, retomaram-se a reflexão e fundamentação sobre o agir,
articulando as Ciências Biológicas e Humanas em sua formação, assistindo ao
profissional articular os conhecimentos apreendidos nessas ciências de tal forma
que sejam mobilizados ao agir. Sua prática consiste de escolhas e decisões que
incidem direta e seriamente sobre a vida de outra pessoa, num de seus momentos
de vida mais vulneráveis. Nessa inter-relação médico/paciente, faz-se presente a
Ética, porquanto envolve decisões frente à escolha da melhor opção. Saber agir com
Capítulo 2. Educação Médica 72
responsabilidade em relação ao outro deve ser uma preocupação indispensável na
formação médica.
Sustentando-se no modelo flexneriano, o ensino nas escolas médicas passou
a valorizar a Ciência, e não mais a pessoa como centro do tratamento e cuidado.
Com efeito, esse enfoque científico que, aliás, perdura até nossos dias em muitas
escolas de Medicina causou uma profunda alteração na relação médico-paciente,
porquanto determina o rompimento do vínculo humanístico entre o médico e seu
paciente, o qual, como se sabe, é de fundamental importância no percurso de
qualquer tratamento. Pode-se conferir essa reflexão no seguinte extrato:
[...] pudemos acompanhar um processo de localização da doença no corpo, objetivação do diagnóstico, tecnização da relação médico-paciente, ampliação da intervenção, racionalização e matematização dos critérios e procedimentos, busca de simplificação da concepção de doença e da terapêutica, mercantilização da prática, centralização das decisões e controle do trabalho do médico. (DALMASO, 2000, p. 54).
Num estudo realizado em 1992, abrangendo 75 escolas de Medicina, Meira e
Cunha (1994) concluíram que o ensino da Ética pouco havia mudado em relação
aos anos anteriores. Na maioria das escolas, o ensino da Ética vinculava-se a outras
disciplinas – principalmente à de Medicina Legal – e inclinado a aspectos
deontológicos, de cunho teórico, em que se reduzia a discussão de casos clínicos e
reflexão filosófica, embora fossem as disciplinas ministradas na segunda metade do
curso: ordinariamente, no 4º ou 5º anos. Em apenas uma escola mencionou-se a
discussão ética integrada a outras disciplinas do currículo. Comentam ainda que as
escolas geralmente dispunham de um ou dois docentes médicos numa disciplina, de
no máximo, 50 horas (num total de 8640 horas de curso) e que havia grande
variedade no enfoque e estrutura, denotando diversidade de compreensão e de
localização da disciplina.
Camargo (1996) numa comparação entre dois estudos realizados em 1985 e
1992, de autoria de Mello e Cols. e Meire e Cunha, consecutivamente, comenta que
as características gerais permaneciam nos referidos períodos, com pequeno
aumento como disciplina autônoma. Nas escolas em que participavam docentes não
Capítulo 2. Educação Médica 73
médicos, foram citados três professores com formação em Direito, Filosofia e
Psicologia, e a carga horária concentrava-se no 3º, 4º e 5º anos dos cursos.
Dado que o ensino das normas que constam no Código de Deontologia resta
insuficiente, sobremaneira porque deixa a desejar no que tange ao estímulo à
reflexão acerca de valores, sem os quais não se desenvolve o comportamento
moral, alguns autores defendem a necessidade de as escolas extrapolarem os
limites do mero ensino daquelas normas. Ademais, há que se considerar como
agravante dessa carência de reflexão e/ou desenvolvimento do agir moral a faixa
etária daqueles que estão sendo formados, conforme se verifica no seguinte excerto:
A deontologia, no entanto, não atende a um dos objetivos primordiais da educação, qual seja o desenvolvimento de comportamento moral nos alunos dos cursos médicos. Ela trata da questão das obrigações morais, do dever que, sem dúvida, deve ser conhecido por todo cidadão, mas não dispõe de recursos formativos do caráter que é função da escola, principalmente de uma escola médica que recebe, em sua maioria, adolescentes de dezessete e dezoito anos e os abriga em tempo integral durante os últimos anos de sua adolescência, devolvendo-os formados (vinte e três ou vinte quatro anos), adultos, para a sociedade. (CAMARGO, 1996, p. 49).
Se a formação centraliza-se apenas em elementos técnicos, o estudante, de
fato, prosseguirá numa postura fechada, voltado para critérios científicos, sem levar
em conta, entre outros aspectos, a individualidade, a estrutura psicológica, as
reações emocionais, as condições sociais de cada indivíduo, inerentes à sua vida
em comunidade.
Dantas e Souza (2008) realizaram uma revisão sistemática a respeito do
ensino da Ética, em cuja conclusão corroboram a suma importância que esta
Ciência possui na formação do médico. Analisaram-se três pesquisas referentes a:
1984, 1992 e 2001. Coincidindo com estudos anteriores da década de 1980, os
autores verificaram que a maioria dos cursos ofertava a disciplina Ética integrada à
de Medicina Legal e Deontologia. No último estudo, realizado em 2001, a disciplina
recebia a denominação de Bioética ou Ética e Bioética, o que demonstra que,
gradativamente, esse ensino foi se desvinculando de uma abordagem
exclusivamente normativa, incluindo temas filosóficos – uma tendência influenciada
pelo movimento iniciado pela Bioética na década de 1970.
Capítulo 2. Educação Médica 74
No terceiro estudo empreendido por Dantas e Souza, sobressaiu a escolha de
temas segundo a literatura especializada, e houve a inclusão de temas como
princípios da Bioética e pesquisa em seres humanos, dentre outros. Utilizaram-se as
seguintes estratégias de ensino: aulas expositivas, mesas-redondas, discussão de
casos e seminários. Foram relatados como instrumentos de avaliação: provas
dissertativas, testes de múltipla escolha, seminários e realização de revisão
bibliográfica. Nos estudos, observou-se que a disciplina era ministrada, na maioria
das vezes, no quarto ano; em alguns casos, prolongava-se em mais um período e,
em poucos, ao longo do curso todo.
Como afirmam Dantas e Souza, o ensino de Ética deve ser realizado nas
instituições em todos os períodos do curso de graduação, ministrado por docentes
que se imbuíram de vivência profissional e de conhecimento na área de Ciências
Humanas, de forma integrada com outras instâncias responsáveis por questões
éticas. Ademais, no estudo realizado em 1992, observou-se relação entre os temas
abordados e a formação dos professores e ainda, com uma proposta do ensino da
Ética de forma transversal no currículo. Constatou-se, entretanto, que isto não
ocorria efetivamente.
[...] o discurso não tem se efetivado na prática, pois não houve nas últimas décadas um aumento significativo no número de disciplinas dedicadas exclusivamente à ética médica e bioética, nem dos docentes com funções específicas em bioética ou na carga horária da disciplina, denotando um pequeno envolvimento institucional no fortalecimento do ensino e pesquisa da área. (DANTAS; SOUZA, 2008, p. 511).
Os autores comentam que, ao longo de 20 anos, comprovou-se uma relativa
estagnação na estrutura educacional e organizacional dos cursos de Ética nas
escolas médicas brasileiras, com baixa carga horária, pequeno número de
docentes, com abordagem concentrada no ciclo clínico – quarto ano – com foco na
Deontologia. Com o advento da Bioética como área transdisciplinar, modificou-se o
enfoque, incorporaram-se temas da Ética aplicada à vida, que se desdobraram das
relações humanas para as relações sociais e com a natureza.
Em 1985, a Comissão de Ensino Médico, do Conselho Federal de Medicina
elaborou um relatório, asseverando que havia entre as escolas consenso de que a
Capítulo 2. Educação Médica 75
disciplina Ética deveria ser ministrada autonomamente, isto é, não associada à
Medicina Legal como tem sido oferecida. Ademais, deveria ser incluída ao longo de
todo o curso, por meio de discussão de casos, com a participação ativa dos
estudantes. A Comissão refere ainda que as disciplinas de Medicina Legal e
Deontologia são imprescindíveis à formação médica, porém insuficientes para a sua
formação ético-humanística (SIQUEIRA; SAKAI; EISELI, 2002).
Encontrou-se esse mesmo contexto em escolas do Reino Unido numa
investigação realizada por Jaqsi e Lehmann (2004) em 22 escolas médicas. Na
metade delas, havia apenas um docente ministrando a disciplina. Numa pesquisa
realizada em 2002 - 2003 nos Estados Unidos e Canadá, verificou-se que 70% das
escolas contavam com a presença de um professor em regime de dedicação
integral no ensino da Ética e apenas 25 horas destinadas a seu ensino. Em
contrapartida, havia a inclusão de questões sobre Ética nos exames de residência
médica e para a obtenção do título de especialista, o que, de certa forma, contribui
para despertar a atenção do aluno para a relevância da matéria e presta-se tanto
para a sua difusão quanto para o estudo complementar de Ética.
Jaqsi e Lehmann refletem que, frente a um conflito ético, o indivíduo
primeiramente se sensibiliza com ele para depois processá-lo racionalmente,
quando, então, avalia seus múltiplos ângulos e dimensões. Consideram essencial a
análise crítica com aplicação de referenciais teóricos e uso de argumentos
consistentes na tomada de decisão. Em diferentes continentes, observou-se a
diminuição da sensibilidade dos estudantes ao longo do curso de Medicina.
Enfatizam-se que mais importante que ensinar a regra do jogo – as normas que
regem a profissão – há a necessidade de sensibilizar os estudantes e de
fundamentá-los porque decidam bem em cada caso. Os autores concluem que é
necessária a capacitação a ser efetuada pelos poucos docentes exclusivos da área
ética, bem como a outros docentes que estão envolvidos na prática com os
estudantes. Deve haver também compromisso por parte desses outros docentes em
relação à Ética.
Dallari (1996) expõe vários pontos de vista a respeito do ensino da Ética no
mundo, constando que se encontra atrasado em relação às necessidades da
sociedade. Revela que, sobremaneira na Saúde, enfatizam-se mais as técnicas do
que a Ética, além de existirem poucos especialistas nessa matéria. Em alguns
casos, professores e alunos se imbuem de interesses flutuantes por disciplinas
Capítulo 2. Educação Médica 76
optativas – fator que é apontado como negativo no que respeita a formação dos
profissionais. Ressalta que o ensino da Bioética deve adotar resolutamente a via das
novas interrogações, propor novas formas de participação e de ensino da Ética na
formação de profissionais. Assevera que existem vários meios de atingir o
pretendido, distantes da tendência de se submeter ao Direito, aos códigos, ao
engessamento dos programas, ou a uma única modalidade de ensino.
D'Avila (2003) insta a responsabilidade do Conselho Federal de Medicina
(CFM) para atentar à formação ética dos profissionais de Medicina, tanto dos já
formados quanto dos que estão em formação. Refere que, na década de 90, de
forma incipiente, muitos Conselhos Regionais tomaram a iniciativa de ensinar
princípios de ética médica por meio de convênios com algumas escolas.
Os Conselhos de Medicina são órgãos que defendem a qualidade da prática
médica, o exercício profissional ético e uma boa formação técnica e humanista.
Criado em 1957, o CFM organiza várias atividades em defesa da sociedade. Uma de
suas competências é julgar processos ético-disciplinares, em geral oriundos de
denúncia. Os julgamentos fundam-se no Código de Ética Médica, e apresentam
como resultado desde advertência confidencial até mesmo a cassação do exercício
profissional. Além de disciplinares, consideram-se os processos um modo de
aprendizagem, quando, por meio de julgamentos simulados, são realizadas
discussões éticas com os profissionais. Recomendam-se os julgamentos simulados
tanto na graduação quanto na pós-graduação em Medicina, como forma de
“recuperar o vivido, compartilhar dúvidas e vivenciar os conflitos da profissão
médica.” (OLIVEIRA, 1997, p. 146).
Desde 2000, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo
(CREMESP) tem criado bolsas de pesquisas – um bom exemplo de incentivo ao
ensino, e mais especificamente, à formação ética do médico. Seguramente, essa
iniciativa contribui, em certa medida, para a atualização e capacitação dos médicos
orientadores dos projetos.
Siqueira, Sakai e Eiseli (2002), estudiosos do tema, confirmam a insuficiência
do modelo clássico, marcado pelo ensino de Deontologia e Medicina Legal na
formação humanística dos profissionais médicos. Para suplantar essa deficiência,
propõem a introdução da disciplina de Bioética. Com isso, abrir-se-ia aos estudantes
a possibilidade de conhecer o comportamento humano nas diversas correntes de
pensadores e de enriquecer a reflexão acerca da Deontologia e da moralidade
Capítulo 2. Educação Médica 77
humana. Reitera-se a necessidade de reformulação do ensino da Ética, mormente
no diz respeito à metodologia usada, visto que, necessariamente, deverá ocorrer a
integração das diversas disciplinas que se complementam na visão integral e
complexa do ser humano.
Neste estudo, verificou-se que, entre os estudantes do 5º ano entrevistados,
56% declararam que o ensino da Ética tal como ministrado antes da realização da
pesquisa deveria ocorrer durante todos os anos do curso, e 84% deles
consideraram-no satisfatório, avaliando-o com o critério máximo oferecido nas
alternativas.
Por outro lado, considera-se que a Medicina ganhou muito em tecnologia,
porém tem perdido seu caráter humanista: o paciente ficou reduzido a uma máquina
humana. No entanto, seus aspectos emocionais, crenças e valores foram relegados
a plano secundário (TRONCON et al.,1998; D’AVILA 2003).
D'Avila (2003) comenta que, na Universidade Federal de Santa Catarina, a
disciplina Ética também está emaranhada ao ensino da Medicina Legal e que as
escolas que a ensinam, ainda o fazem de forma insipiente. Segundo ele, num
sistema político-econômico neoliberal, a Ética torna-se desvalorizada, pouco
interessante: o que não deixa de se constituir, pois, ainda mais um desafio.
Recomenda a introdução do ensino da Bioética para propiciar uma visão do papel do
médico cidadão mais ampla, numa perspectiva mais moderna. Quanto ao ensino da
disciplina, acrescenta que deva ser desenvolvida de forma transdisciplinar, por meio
de discussões enriquecidas com a presença de juristas, filósofos, sociólogos e
outros profissionais. Desse modo, revitaliza-se a ideia já defendida por outros
autores: urge que o ensino da Ética seja ministrado em todas as fases do curso de
Medicina, cujos conteúdos se graduem num crescendo em profundidade.
Gomes, Moura e Amorim (2006, p. 64) apresentam o resultado de um estudo
da organização curricular no ensino da Ética, em uma coleta realizada em 2004, por
meio de ementas de disciplinas de duas universidades públicas do Ceará. Concluem
que, além da carga horária estabelecida, a disciplina se apresentava inserida em
várias outras disciplinas. Percebeu-se a ampliação do conteúdo, não só enfatizando
deveres senão também incluindo temas de base filosófica: a relação médico-
paciente, a cidadania, a integração de vários enfoques disciplinares. Os autores
defendem especificidade da Ética, mas seja inserida no curso de forma transversal.
Ademais, reconhecem que o corpo docente investigado guardava coerência com a
Capítulo 2. Educação Médica 78
visão generalista de formação profissional e “com visão integral do ser humano e
consciência de cidadania”. Tanto a evolução do pensamento e da prática dos
profissionais imbuídos de visão humanística e cidadã quanto um corpo docente
constituído de forma multiprofissional, poderiam facilitar o redirecionamento do
ensino, em sintonia com os preceitos bioéticos.
Nesse sentido, conquanto haja às vezes intenção e planejamento, por
diversos motivos não se efetivam de fato algumas discussões.
Vale lembrar que as Diretrizes Curriculares Nacionais deixam transparecer o
propósito de melhorar a qualidade do ensino destinado à formação crítica e reflexiva
do profissional generalista, humanista, apto para atuar nos diferentes níveis de
atenção à saúde, numa perspectiva de integralidade da assistência, pautado em
princípios éticos. Como promotor da saúde integral do ser humano, recomenda-se
ainda que o profissional deva imbuir-se da responsabilidade social e comprometer-
se com a cidadania. O documento reforça a consideração de que o médico deva
obrigar-se ao exercício de sua profissão no alto grau de qualidade e princípios da
Ética e da Bioética. Além do mais, deve ele atuar criticamente, saber lidar com o
mercado de trabalho, possuir visão de seu papel social, estar disposto a atuar em
atividades políticas e de planejamento.
No que respeita ao processo saúde-doença, entre os conteúdos sugeridos
consta a compreensão dos determinantes sócio-culturais, comportamentais,
psicológicos, ecológicos, ético e legais, do ponto de vista individuais e também
coletivos. Menciona-se incluir as dimensões éticas e humanísticas, para que se
desenvolvam, no estudante, atitudes e valores orientados para a cidadania.
Os PCNs – cuja última orientação para os cursos de Medicina foi homologada
em primeiro de outubro de 2001 –, norteiam com flexibilidade os planejamentos de
ensino das instituições, orientando que as escolas os efetivem responsavelmente,
porque se atenda à expectativa de alto padrão de formação profissional. Propõem
desenho curricular que favoreça a interdisciplinaridade, de modo que se integrem as
dimensões biológicas, psicológicas, sociais e ambientais, para que seja precoce na
prática a vivência do aluno, que deve assumir, desde cedo, responsabilidades
crescentes (BRASIL, 2001).
Ainda concernente ao currículo, Oliveira, Guaiumi e Cipullo (2008) comentam
que algumas modificações do ensino da Ética – o que designam Educação Ética –
advêm de necessidade face ao descompasso entre os avanços tecnológicos e a
Capítulo 2. Educação Médica 79
maturidade das reflexões morais. Ademais, começam a se referir à Ética como
Bioética, relacionando-a a um conteúdo de natureza humanística.
Num estudo de que participaram estudantes de 23 escolas de Medicina do
Estado de São Paulo, aqueles autores verificaram que, quanto à metodologia, os
resultados corroboram estudos anteriores. Não obstante, à semelhança do que
ocorria em outras disciplinas, com respeito ao predomínio de aulas teóricas, o
método não evoluiu como deveria ou era esperado, como orientava o longínquo
Relatório Flexner que se enfatizasse o ensino clínico.
O estudo evidencia algumas diferenças concernentes ao desenvolvimento da
disciplina: escolas ministrando o curso no primeiro ano; em apenas uma delas o
curso era oferecido durante todos os anos da graduação; como em outras
investigações anteriores, percebeu-se que pequena porcentagem das escolas
consideradas no estudo não administra a disciplina Bioética na graduação em
Medicina.
Referentemente à questão de haver mudança no comportamento dos
graduandos, os resultados obtidos do estudo evidenciam o seguinte quadro: metade
dos participantes aponta alguma mudança após o curso de Bioética haver sido
ministrado; pequena parcela reconhece ter ocorrido muita alteração na postura; o
que se deve enfatizar, porquanto houve percepção do valor da disciplina, não
apenas a memória de seu conteúdo. Embora discreto, poder-se-ia considerar
significativo esse último resultado em meio à desconsideração existente no que
respeita ao curso de Bioética.
Os estudantes referiram ter ocorrido mudanças em sua atitude posteriormente
à participação no curso. Não obstante, os autores desse estudo perceberam muitas
respostas errôneas aos casos clínicos que propuseram aos estudantes investigados,
o que demonstra que o curso está distante do resultado almejado. Concluem, enfim,
que os impactos na mudança de postura são pequenos ante a importância dada à
abordagem dos temas, que aulas exclusivamente teóricas não estimulam os
estudantes e, na literatura, há poucos textos disponíveis que abordem os temas.
Gomes, Moura e Amorim (2006) argumentam em favor da introdução do
conteúdo de Bioética a partir do início do curso, porquanto permite ao estudante
compreender melhor as situações vivenciadas à luz de uma visão filosófica, e não
meramente técnica.
Capítulo 2. Educação Médica 80
Oliveira, Guaiumi e Cipullo (2008) referem-se a um estudo de Taquete (2005),
de que consta a reclamação dos estudantes a respeito da falta de supervisão no dia
a dia em situações em que não sabiam como proceder. Esse fato denota a
relevância do ensino da ética nas práticas diárias dos estudantes, porquanto
constitui-se de estímulo à reflexão dos diversos modos de interagir com pacientes,
familiares e equipe. Enfim, trata-se de um ensino que, muitas vezes, deve ir além de
sua programação sistemática.
Trabalhado como tema transversal, o ensino da ética tem contribuído de
modo eficaz para a mudança exigida na formação atual, conforme defendem muitos
autores (GOMES; MOURA; AMORIM, 2006; REGO; GOMES; BATISTA, 2006;
DANTAS; SOUZA, 2008).
Rego et al (2008) reforçam a necessidade de haver práticas de ensino em
que os estudantes mobilizem sentimentos morais e tenham a possibilidade de refletir
sobre a própria prática, o que propicia a elaboração de uma nova estrutura de
pensamento, sem que lhes seja imposta. Caso contrário, pode provocar efeitos
contrários aos desejados. Faz-se necessário que o professor tenha familiaridade
com o método, sobremaneira que domine com clareza os objetivos educacionais a
que se propõe.
Citam-se alguns exemplos possíveis de métodos, estratégias e recursos a
serem empregados por docentes: discussão de casos; role playing; clubes de
debates e competições; discussão de filmes; ensino direto de teorias éticas e
discussão de métodos1. Há consenso entre os autores de que a discussão de casos
e filmes são bastante profícuos, em detrimento da discussão apenas teórica.
1 (1) Discussão de casos: o estudante aplica, num caso particular, os conhecimentos aprendidos em aulas
teóricas – (2) role-playing (PR): técnica da Psicologia (especialmente, Psicoterapia) ou em treinamentos de
todos os tipos; consiste em assumir um determinado papel – consciente ou inconscientemente e vivenciar no
lugar de outrem, experiências propostas em situações de acordo com as expectativas percebidas pela
sociedade, no que respeita ao comportamento da pessoa em um contexto particular; além de instigante, o RP
estimula o estudante a viver situações cada vez mais complexas que podem propiciar um trabalho de
integração com outras disciplinas e áreas de conhecimento humano; com efeito, ao atuar reproduzindo
diferentes papéis, o estudante entra em contato com diferentes pontos de vista, posturas e valores diversos
(pai, mãe, médico, padre/pastor, paciente religioso, paciente terminal etc.), de forma que lhe favoreça
trabalhar aprendendo em equipe, tomar decisões em situações emergenciais, mesmo encontrar solução para
os problemas e desafios propostos no desempenhar de seu “papel”. O êxito didático do RP depende, no
entanto, do professor que aplicar a técnica: há que dominá-la bem, saber propor casos verossimilhantes, saber
motivar os alunos, observar; caso contrário a aula torna-se pantomima, atitudes, sentimentos não resultam
autênticos. – (3) clubes de debate e competições: simulam-se, inclusive, julgamentos, em que se testa no
estudante, a habilidade de convencer uma audiência a respeito de sua posição diante do tema proposto;
autores consideram que sinceridade e autenticidade sejam “empecilhos para vencer o debate”. – (4) discussão
de filmes: embora possa trabalhar sentimentos morais, encontra alguns aspectos inconvenientes a
dificuldades de encontrar filmes significativos que se harmonizem com temas e conteúdos trabalhados nas
Capítulo 2. Educação Médica 81
Conforme julgam Gomes, Moura e Amorim (2006), a educação deve favorecer o
entendimento do ser humano em sua complexidade e unicidade. Para isso, é preciso
reunir conhecimentos das Ciências da Natureza, das Ciências Humanas, Literatura e
Filosofia. Outras disciplinas também se reportam a implicações de valores morais –
objeto de reflexão ética. Os autores defendem a óptica de que cada disciplina e cada
professor devem ter presente a dimensão ética. Constatam, no entanto, que os
docentes são em sua maioria médicos, e o curso de Medicina não possuí, em geral,
docentes da área das Ciências Humanas, permanecendo apenas como uma
proposta. Inclusive, questionam o fato de que essa incidência de conteúdos da
dimensão ética possa vir a interferir na implementação do novo currículo proposto.
Não obstante, estão acordes em que a medida, efetivamente, favorece a formação
médica.
Essa diversidade de formação dos professores pode favorecer a geração de um conhecimento multidisciplinar e interdisciplinar do processo saúde- doença, com maior possibilidade de articulação do médico com outras áreas do conhecimento, desde a graduação, contribuindo para uma formação mais humanística e afeita à valorização da dimensão ética. (GOMES; MOURA; AMORIM, 2006, p. 64).
Quando se fala de interdisciplinaridade, é preciso considerar como será feita a
inserção, nos programas, dos temas citados. Caso contrário será feita apenas
conforme o entender e a intenção de cada professor, sem que se busque mobilizar o
estudante para pensar, discutir e desenvolver atitudes mais maduras, refletidas e
crítica, justificando-as eticamente. Faz-se imprescindível uma abordagem cuidadosa,
para que a discussão a respeito do conteúdo de natureza ética não fique
simplificada e perdida no planejamento geral dos cursos, porquanto, como reflete
Correia (2008), o que é de todos não é de ninguém, e a Ética passa a não existir na
organização curricular e, por extensão, na formação profissional.
O ensino da Ética não é tarefa fácil, senão um desafio. Os autores concordam
com que não pode ser ministrado sob a perspectiva acadêmica tradicional, que deve
aulas expositivas e o risco de se tornar o debate palco de falácias, de interpretações errôneas (“achismos”) ou
que não estejam acordes com os temas propostos a discussão, porque subjetivos em demasia, o que pode dar
lugar a acalorados desentendimentos. – (5) ensino direto de teorias éticas e discussão de métodos: seu
propósito é modificar as atitudes da audiência.
Capítulo 2. Educação Médica 82
se realizar de forma reflexiva, aprofundando temas, se são eles abordados
superficialmente.
Em meio a tantas possibilidades tecnológicas e a interesses que o
impulsionam, muitas vezes o profissional pode desviar-se da melhor escolha e vir a
causar mais dano que benefício ao paciente, deixando-se guiar pela falaciosa
convicção – que, aliás, pode beirar à irracionalidade –, de que pode ou deve fazer
tudo o que a ciência lhe permite: obstinação terapêutica. Pode ainda, desconsiderar
as consequências em agir sem a firme convicção da necessária ponderação dos
fatos, com investigação aprofundada, adequada deliberação para a tomada de
decisão.
De fato, importa a valorização da medicina científica e racional, porque seja
bem sucedida a prática médica. Não obstante, no caso de essa prática ficar
desprovida da reflexão ética e da atitude humanística, tornar-se-á totalmente árida e
gravemente perigosa para o seu principal objeto.
Muitos são os que afirmam a importância do estudo da Ética e da formação
humanística do estudante de Medicina como elemento fundamental na formação
médica. De outro lado, entretanto, reconhecem que a formação humana se perdeu
com o tempo. A arte de cuidar do paciente foi substituída pela técnica. Urge que se
retome a dimensão humana e crítica, contudo diversamente da maneira que vem
sendo disposta nos currículos. Nos estudos que tratam do ensino da Ética, percebe-
se que a Bioética trouxe nova perspectiva para a formação do profissional médico. A
Bioética propõe que sua abordagem seja multiprofissional, multidisciplinar e
transdisciplinar. Espera-se que, após a sua difusão, os especialistas em Bioética e
as escolas de Medicina caminhem para o merecido reconhecimento dessa
disciplina, com o propósito de colaborar para o desenvolvimento e garantia de
atitude mais humana do médico em relação ao paciente, aos familiares e à equipe.
Por extensão, que se possa, vivenciar uma organização político-social em que se
valoriza sua prática.
Confrontada ao ensino tradicional da Ética, a Bioética introduz uma
abordagem mais ampla, integrando visões diferentes da vida na atualidade,
necessárias para a compreensão dos fatos e tomada de atitudes, numa realidade
em que a ciência intervém com mudanças que estão a exigir um repensar vital para
a sobrevivência humana – para um bom uso da ciência. No quarto capítulo, retomar-
Capítulo 2. Educação Médica 83
se-á uma abordagem mais especifica da gênese da Bioética, a amplitude e a direção
por ela impulsionada para o ensino da Ética na área da saúde.
Tornou-se conhecida a assertiva de Berlinguer: “Todo estudante de medicina
é um idealista no início do curso e um cínico no final do curso”. Comentando-a,
D’Avila (2003) considera que, embora terrível, a frase guarda um fundo de verdade
num sistema político de mercado neoliberal, em que a reflexão ética é
desfavorecida. Torna-se, pois, um desafio a todos, indistintamente, e que deve
começar de dentro para fora na sociedade, nascer a preocupação em cada um e se
estender ao coletivo. A julgar pela opinião de que o estudante ingressa na Medicina
muito mais humano que no momento de deixar a faculdade, forçoso é reconhecer
que a reflexão ética deva perpassar os anos de graduação do estudante, bem como
o tempo de formação do residente de medicina.
A sociedade espera que o médico seja um profissional responsável,
competente, técnica e humanamente capacitado para lidar com as pessoas num
momento em que surgem inseguranças, medos e, em algumas vezes, o
enfrentamento da finitude da vida.
É evidente a responsabilidade da escola em proporcionar ao indivíduo
condições de desenvolver-se na totalidade, para além do conhecimento técnico.
Espera-se que o médico desenvolva a capacidade racional de decidir, de relacionar-
se com o outro, compreendendo-o e com ele interagindo da melhor maneira.
CAPÍTULO 3
EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 85
3.1 A formação técnica-científica do enfermeiro
A formação do enfermeiro modificou-se ao longo da história, sem perder de
vista o seu objeto de trabalho, o cuidado de enfermagem. Espelhada no zelo
materno com aquele que, em certo momento, não podia cuidar de si, a gênese da
Enfermagem se deu no cuidado a outrem.
O cuidar deu-lhe sentido de totalidade, firme no propósito do cuidado integral
ao ser humano, na lógica do auxílio às necessidades de alimentação, higiene e de
cuidados próprios com a doença da pessoa, não apenas relacionados às suas
necessidades físicas, senão também as de natureza espiritual e psicológica.
Em busca da melhoria na qualidade de trabalho e valorização como profissão,
a Enfermagem desenvolveu-se cientificamente. Contudo, sofreu influencia de ordem
político-econômica, direcionando o modelo e a organização da assistência prestada.
Além disso, marca-se de uma luta constante de valorização da profissão, tanto
economicamente porque tenha salários mais competitivos, quanto socialmente, no
que diz respeito, sobretudo, à valoração de sua função pela equipe de saúde.
Historicamente, a profissão passou por vários modelos: vocacional, religioso e
o científico. Num certo momento foi exercida por pessoas inabilitadas, sem a devida
qualificação para o tipo de trabalho, mas não destituídas de boas intenção e
vontade. Justifica-se pelo fato de o trabalho ter sido associado a doenças que
mantinham os indivíduos isolados do convívio social. Inclusive, foi também exercida
por religiosas e leigas por caridade em busca de salvação.
Paixão (1979, p. 17), estudiosa do trabalho da enfermagem, pondera que o
trabalho do enfermeiro possui três elementos principais: espírito de serviço (ou
ideal), habilidade (arte), e ciência. Considera-se o espírito de serviço como sendo o
mais valoroso, desde o início de sua história, quando seu trabalho ainda não se
sustentava na ciência: “[...] o espírito de serviço que realizava [...] essa inclinação
natural do homem, ser social por excelência”.
No período pré-cristão, o tratamento a doentes era realizado pelos sacerdotes
e feiticeiros, porquanto se consideravam as doenças castigo de Deus. À medida que
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 86
se desenvolveu o conhecimento das plantas medicinais, outras pessoas também
foram ensinadas a cuidar dos doentes (COREN, 2012).
Consta que, o primeiro lugar a acolher os doentes foi denominado pelo povo
de diaconias, uma assistência prestada por diáconos e diaconisas em casas
particulares ou hospitais. Por volta do ano 300 d.C. após o Édito de Milão1, muitas
mulheres da nobreza, desejosas de realizar o Bem, dedicaram-se aos doentes e
puderam transformar seus palácios em casas de caridade. Entre elas constam:
Santa Paula, Fabíola e Marcela.
A fundação do primeiro hospital de Roma – pelos cristãos – se deu por meio
da doação de Fabíola de seu próprio palácio. Santa Paula levou sua iniciativa à
Palestina, fundando alguns hospitais. São Bento, que viveu no século VI foi o mais
conhecido desta época por organizar instituições de acolhimento aos doentes.
Depois disso, os mosteiros beneditinos se espalharam, principalmente na Itália,
França, Inglaterra e Alemanha. Associavam trabalho com a lavoura, formando
núcleos de populações, dando origem a cidades, assim como também copiavam
manuscritos e organizavam bibliotecas e escolas (PAIXÃO,1979).
Marcou-se o período cristão pela submissão à Igreja que, aliada à nobreza,
monopolizava o conhecimento e economia. Formaram-se congregações e ordens
seculares que, comandadas pela Igreja e movidas pelo fervor religioso na prática
caridosa, davam assistência à saúde. As ordens religiosas iniciaram a construção de
hospitais direcionados aos pobres, moribundos e a segregados em virtude de
epidemias. As condições higiênicas eram precárias numa época de declínio
econômico e assolada por frequentes epidemias e guerras. Somente no século XVIII
os hospitais se caracterizaram pela prática médico-hospitalar (PAIXÃO, 1979;
ALMEIDA; ROCHA, 1986; GEOVANINI et al. 1995).
Do século VII até o século XVII ainda se encontravam núcleos caridosos
dispensando cuidados aos loucos e leprosos, muito discriminados na época. Após
fundar a ordem dos Frades menores ou Franciscanos, criaram-se ordens seculares
destinadas a leigos que se dispunham a realizar caridades, sem que para isso
tivessem que deixar seus lares - denominadas ordens terceiras –, fundadas por São
Francisco de Assis.
1 O Édito de Milão aconteceu em 335 d.C. quando o Imperador Constantino (274-337), deu aos cristãos a
liberdade de culto, fechou os hospitais dedicados a Esculápio e estimulou a fundação de hospitais cristãos.
(Paixão, 1979).
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 87
No que respeita a historicidade da enfermagem, as ordens terceiras foram de
vital importância, uma vez que a partir de sua organização surgiram muitas pessoas
dedicadas aos enfermos:
O valor das ordens terceiras foi enorme para o progresso da enfermagem. Seus membros consideravam um dever tomar parte nessa obra de misericórdia, e grande era o número dos que tomavam a si o cuidado de uns tantos doentes, indo diariamente aos hospitais. Muitos desses terceiros eram nobres. (PAIXÃO, 1979, p. 43).
Clara Sciffi, distinta jovem de Assis, seguiu os passos de Francisco,
dedicando-se aos doentes. Dessa forma, originou-se a Ordem das Clarissas. Paixão
(1979, p. 14) declara que para os irmãos dedicados a este trabalho “[...] nenhuma
obra de caridade lhes era estranha [...]”. A exemplo desta dedicação Paixão relata
que, em 1372, Santa Catarina, durante uma epidemia, trabalhou dia e noite para
atender aos doentes no hospital. Procurava os doentes abandonados nas ruas e em
casebres. A lâmpada – que lhe servia para procurar os doentes – em seu humilde
quarto são conservados em sua memória.
O final do século XVII até a metade do século XIX foi denominado período
crítico da enfermagem: a prática se efetivava por mulheres sem qualificação, de
péssima conduta moral, analfabetas e bêbadas e as condições de trabalho nos
hospitais eram degradantes porque relacionadas ao trabalho manual. A elas
atribuía-se uma carga de trabalho exaustivo, com baixa remuneração e sujeição a
mecanismos disciplinadores.
Na Inglaterra, o movimento industrial urbano no século XVIII revelou a
necessidade de melhorar as condições de assistência hospitalar e de Enfermagem,
processo esse levado a cabo por Florence Nightingale (COREN, 2012).
Anteriormente relata-se que houve algumas iniciativas de preparo de pessoal para
qualificar o trabalho da Enfermagem, como o das Irmãs de Caridade, inspiradas em
São Vicente de Paula, no século XVII, na França; as escolas para parteiras em
várias cidades europeias; a criação de uma escola de Enfermagem em Heidelberg
(1781); a fundação de uma escola em La Source, na Suíça, em 1859 (SILVA 1989).
No entanto, a história da Enfermagem como profissão foi notadamente
marcada por Florence Nightingale. Nascida na Itália, filha de ingleses de classe alta,
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 88
era pessoa determinada e inclinada à atividade intelectual. O desejo de dedicar-se
ao cuidado dos enfermos moveu-a a buscar conhecimento dessa prática com
religiosas.
Em 1854, declarada a guerra da Criméia, Florence partiu para cuidar dos
feridos, ao lado de 38 voluntárias religiosas e leigas – vindas de vários hospitais.
Atendia os doentes com atenção e se preocupava principalmente com a organização
e limpeza do ambiente, o que considerava necessário para a restauração da vida.
Conseguiu, graças a seu desvelo, a redução da mortalidade de 40% para 2%. Após
contrair tifo, dedicou-se ao trabalho intelectual. Em 1859, fundou a Escola do
Hospital Saint Thomas na Inglaterra. Inicia-se, então, o ensino fundado em princípios
científicos, o que para ela significava a única maneira de mudar os destinos da
Enfermagem. Origina-se a Enfermagem como profissão, agora preocupada com o
reconhecimento e dedicação ao cuidado ao ser humano, cujo exercício se marca de
extrema exigência e disciplina (COREN, 2012).
O espírito de dedicação e compromisso com a pessoa do paciente a seu
cuidado encontra-se expresso no emblemático juramento de Florence, proclamado
pelos formandos de Enfermagem até à atualidade:
Juro, livre e solenemente, dedicar minha vida profissional a serviço da pessoa humana, exercendo a Enfermagem com consciência e dedicação: guardar sem desfalecimento os segredos que me forem confiados, respeitando a vida desde a concepção até a morte; não participar voluntariamente de atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano; manter e elevar os ideais de minha profissão, obedecendo aos preceitos da ética e da moral, preservando sua honra, seu prestígio e suas tradições. (COREN, 2012, p. 2).
As primeiras escolas de Enfermagem que se espalharam pelo mundo
seguiam o modelo da escola fundada por Florence. Mantinham em comum alguns
pontos fundamentais: ter uma enfermeira exercendo o cargo de direção; efetivar um
ensino metódico, cuja ocorrência se distanciasse do que fosse ocasional; alicerçar a
seleção de candidatas em critérios físicos, morais e intelectuais, além de se
considerar sua aptidão profissional. Essas escolas formavam duas categorias de
enfermeiras: as ladies e as nurses. As primeiras eram pessoas oriundas da classe
social mais elevada e executavam tarefas administrativas, supervisão, controle e
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 89
direção do trabalho, ao passo que as últimas se incumbiam dos trabalhos manuais
(GEOVANINI et al, 1995).
Iniciava-se a divisão do trabalho na equipe de Enfermagem: as mais
graduadas assumem o trabalho mais intelectual, e o trabalho manual, subordinado,
é executado pelos atendentes de Enfermagem (ALMEIDA; ROCHA, 1986).
No Brasil, conta-se a história da Enfermagem a partir da atuação de José de
Anchieta, que improvisou um núcleo hospitalar para atender a um grande número de
enfermos provenientes da esquadra de Diogo Valdez. Posteriormente, aquele núcleo
tornou-se a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, conforme a que foi
tratado, quando se abordou a assistência à saúde no País. Anchieta atuou como
médico, enfermeiro e professor, além de deixar registros dos costumes, das doenças
mais comuns, do clima e do uso de plantas medicinais. Na mesma época, descreve-
se também a participação de práticos – voluntários e escravos com experiência no
atendimento aos doentes. Em geral, eram pessoas analfabetas; apenas os mais
educados se orientavam por livros portugueses de medicina popular e de
enfermagem caseira (PAIXÃO, 1979).
Na história da Enfermagem brasileira, revela-se o trabalho voluntário de Anna
Nery no cuidado a feridos na Guerra do Paraguai (1864 – 1870), quando rompeu o
preconceito contra a mulher, cujo trabalho, na época, se restringia ao lar. Nascida
em Cachoeira, na Província da Bahia, tinha dois filhos que eram médicos militares, e
um outro, oficial do exército, além de outros parentes também vinculados ao
Exército, o que a motivou ao voluntariado para, durante a guerra, prestar serviços ao
País.
Em carta dirigida ao Presidente da Província, afirma: “[...] satisfarei ao mesmo
tempo aos impulsos de mãe e aos deveres de humanidade para com aqueles que
ora sacrificam suas vidas pela honra e brio nacionais e integridade do império.”
(PAIXÃO, 1979, p. 110). Por seu esforço e dedicação recebeu justas homenagens
do governo.
No século XIX, os cuidados aos doentes ficavam a cargo das famílias – mais
especificamente das mães –, ou ainda do trabalho caritativo de ordens religiosas,
que se engajaram na assistência a enfermos nas Santas Casas, seguindo o modelo
português (PAIXÃO, 1979).
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 90
A chegada ao Brasil de diferentes congregações para atuarem em hospitais,
asilos e Santas Casas representou grande avanço na organização, administração e
assistência de Enfermagem. Na virada do século, o afastamento das irmãs de
caridade motivou a contratação de enfermeiras francesas e, em 1890, a criação da
Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras no Hospício Nacional de
Alienados no Rio de Janeiro, mais tarde denominada Escola Alfredo Pinto (MOTT;
OGUISSO, 2003).
A Escola Alfredo Pinto foi a pioneira entre as escolas de Enfermagem –
Criada pelo decreto Lei n. 791, de 27 de setembro de 1890. A princípio, visava
atender à demanda de hospitais civis e militares, para, posteriormente, prestar
serviços pertinentes à Saúde Pública, numa época de epidemias. Consta que era
administrada por enfermeiras diplomadas (COREN, 2012).
Até a terceira década do século XX, o contexto era de epidemias, o que fez
indispensável a vigilância sanitária dos portos, uma vez que esse problema
dificultava a negociação dos produtos brasileiros. Na mesma época, o contexto da
assistência à saúde marcou-se pela grande crítica direcionada a pessoas não
qualificadas, leigos e religiosos, que se encarregavam do cuidado aos doentes
(MOTT; OGUISSO, 2003).
Modificava-se o conceito da Enfermagem: havia a preocupação de aumentar
o número de enfermeiras qualificadas, exigindo-se a participação em congressos e a
formação em alto grau de ensino e prática (SANTOS, 2008).
Na década de 1910, criaram-se o Curso de Enfermagem na cidade de São
Paulo e a Escola prática de enfermeiras da Cruz Vermelha, no Rio de Janeiro.
Posteriormente, fundaram-se várias escolas em outros Estados.
Documentos examinados por Mott e Oguisso (2003) atestam que seus
organizadores consideraram rigorosa a seleção para o primeiro curso do programa
da Escola de Botafogo (RJ). As candidatas deveriam demonstrar idoneidade moral,
instrução básica e sanidade, critérios que objetivavam formar enfermeiras para atuar
na guerra e para atuar na própria clínica. Após esse período – ao fim da I Guerra –,
o preparo das enfermeiras visava à formação geral para atender tanto hospitais
quanto a domicílios.
Pioneira da Enfermagem moderna no Brasil, a Escola Anna Nery foi fundada
em 1923. Dirigida por Raquel Haddock Lobo, que havia se incorporado à Cruz
Vermelha Francesa durante a Primeira Grande Guerra. Foi condecorada pelo
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 91
governo francês, tal foi seu destaque. Retornando ao Brasil, estudou administração
e especializou-se em doenças transmissíveis. Em 1930, iniciou a publicação da
revista “Anais de Enfermagem” (COREN, 2012).
O primeiro currículo da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
(EEUSP), seguia ao estabelecido na escola oficial padrão (Escola Anna Nery), por
meio do Decreto n. 20109 de 1931. A princípio ancorados no modelo americano, os
cursos foram paulatinamente tomando suas próprias características, adaptadas à
situação brasileira (OGUISSO; FREITAS, 2007).
O ensino da Enfermagem, reformulado pela lei 775 de 1949, estabelecia um
aumento no tempo de duração do curso: de 28 meses para 36 meses, ou quatro
anos acadêmicos. Não obstante, houve poucas alterações curriculares em relação
ao anterior: manteve conteúdos das Ciências Biológicas, Sociais e Humanas, de
diferentes ramos da Enfermagem, sem determinar carga horária específica, a não
ser para a o programa de Saúde Pública, que deveria ser de três meses (OGUISSO;
FREITAS, 2007).
No mesmo ano, o Brasil já possuía 18 escolas de Enfermagem, conforme os
moldes do Conselho Internacional de Enfermeiras, cuja principal preocupação era
aumentar o número de enfermeiros egressos e zelar pela excelência na formação,
além da constante luta para o reconhecimento da profissão.
Nesse momento também surgiu a preocupação em formar o pessoal de
menos qualificação – os Auxiliares de Enfermagem –, visto que faltavam enfermeiros
para a assistência, cujo preparo era dispendioso e demorado. Ainda com respeito à
divisão de trabalho, na década de 1960, o governo propôs o Técnico de
Enfermagem, com vistas a subsidiar meios para o desenvolvimento do nível técnico
(ALMEIDA; ROCHA, 1986).
Como o trabalho da Enfermagem se dividiu em funções graduadas conforme
sua qualificação, o trabalho direto ficou reservado aos atendentes e auxiliares, e à
enfermeira coube a função de efetivar o plano assistencial a ser executado,
acompanhar indiretamente a evolução dos pacientes e supervisionar o trabalho,
reiterando a fragmentação do trabalho (ALMEIDA; ROCHA, 1986).
Durante muito tempo, a formação do enfermeiro assentou-se em duas áreas:
básica e tronco profissional. Tratavam-se muitos conhecimentos em conformidade
com outras áreas – como médica, pedagógica – além de técnicas e habilidades
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 92
especializadas. Sob a denominação de Ética de Enfermagem, abordavam-se a
atitude social e o padrão profissional de conduta (ALMEIDA; ROCHA, 1986).
Criado em 1926, a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) foi o
primeiro órgão de classe da profissão. Por meio de discussões e reflexões em busca
de estratégias e propostas pedagógicas, desempenhou um papel reconhecidamente
importante no fortalecimento da educação e para as conquistas na história da
Enfermagem. Concernente a suas divisões e comissões de ensino, estudou e
propôs assuntos de interesse da classe. Ademais, contribuiu não apenas com
propostas de conteúdos para o currículo mínimo senão também porque fosse
reconhecida a profissão (COREN, 2012).
Impulsionada pela organização sócio econômica, a área de Enfermagem,
cedeu à crescente fragmentação das ações executadas pela equipe. Cada um de
seus elementos ficou responsável por uma parcela do cuidado. Desse modo, as
tarefas passaram a ser o centro do trabalho, em detrimento da individualidade do ser
humano.
A divisão de tarefas é característica da produção capitalista, onde se inserem
a divisão social do trabalho e manutenção de poder na produção, além da
interdependência das funções especializadas.
A divisão do trabalho aparece então como um processo social conflitivo, transformando a repartição social da inteligência requerida para uma produção dada, pela concentração em um número restrito de trabalhadores do encargo de conceber instrumentos, mecanismos, automatismos e modos operatórios, podendo substituir cada vez mais a atividade intelectual dos outros trabalhadores. (FREYSSENET, 1989).
Importa considerar que, na diversidade de qualificação dos trabalhadores,
discriminam-se igualmente as tarefas desempenhadas. Há, porém, algo em comum:
todas exigem reflexão. No entanto, na relação capital – trabalho instala-se um
movimento de polarização das qualificações como forma de poder.
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 93
A divisão capitalista do trabalho é a expressão e o instrumento de uma luta pelo poder concreto sobre a produção. Com efeito, a separação entre capital e trabalho não se dá cabalmente através de sua separação jurídica. Os produtores diretos permanecem sendo os únicos capazes de garantir a fabricação, os únicos defensores da inteligência do trabalho, e impõem, o mais das vezes, suas condições, contrariamente a uma visão miserabilista da história operária. O tipo de divisão do trabalho por desqualificação — superqualificação é então o meio para tentar obter o domínio concreto do que se passa na produção. (HIRATA, 1989, p. 2).
A partir da década de 1950, com o advento das teorias de Enfermagem, a
profissão apresentou um avanço considerável. Procurou-se de tal modo estabelecer
as bases para uma ciência de Enfermagem, em que se organizou um conjunto de
conhecimentos, acompanhados de explicações e novos direcionamentos à pratica
profissional (CAMPEDELLI,1989).
No Brasil, destacou-se Wanda de Aguiar Horta que, fundamentada na Teoria
da Motivação Humana de Maslow, criou uma Teoria de Enfermagem, na qual
enfatizava aspectos humanos do paciente, sua progressiva autonomia e o
planejamento da assistência. Impulsionou a independência do profissional com a
aplicação do processo de enfermagem na prática.
Em 1962, por meio de parecer do Conselho Federal de Educação, manteve-
se o Curso de Enfermagem com duração de três anos. Na formação básica
atentava-se mais à visão biológica do homem: naquele momento, enfatizou-se a
assistência ao indivíduo hospitalizado. Por conseguinte, no tronco profissional,
houve a exclusão das disciplinas Enfermagem de Saúde Pública e Ciências Sociais.
Em 1968, dada à Reforma Universitária, reformulou-se o currículo mínimo,
formalizado em 1972. O novo currículo abrangia as ciências básicas e as disciplinas
profissionais. Incluía Saúde Pública, Enfermagem Obstétrica, Enfermagem médico-
cirúrgica e licenciatura em Enfermagem como habilidades específicas (VALE;
FERNANDES, 2006).
Corbellini (2007), analisando a situação da Enfermagem nas décadas de 1950
a 1980, relata que a profissão seguiu o modelo clínico na prática de uma assistência
eminentemente curativa, enquanto o ensino na área se prestava a preparar
profissionais para esse contexto. Os estudantes obedeciam rigorosamente aos
manuais de técnicas, valorizando sobremaneira a postura durante sua efetivação, a
habilidade manual e capacidade de memorização, além de se valorizarem o
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 94
capricho, organização, o esmero.
Ante a prevalência das técnicas sobre a não efetivação do saber científico,
caracteriza-se o trabalho em Enfermagem como uma modalidade funcional, dividido
em tarefas e procedimentos. O vazio teórico perpetua a crise de legitimidade da
profissão, próprios da relação de produção. “Apesar de as teorias de enfermagem
preconizarem pressupostos teóricos para uma orientação da prática, viu-se que elas
seriam dirigidas somente para estratos populacionais que pudessem consumir esses
serviços” (ALMEIDA; ROCHA, 1986, p. 120).
Como ocorreu na medicina, houve influência político-econômica e ideológica
em sua prática. O paciente e o cuidado deixaram de ser o centro da atenção e de
seu trabalho, para ocuparem a função de meio com que se atingisse única finalidade
– a produção. O cientificismo e o capitalismo marcaram tanto o desenvolvimento
quanto a prática da profissão.
A partir da década de 80, o discurso dos sanitaristas enfatizava a importância
de o hospital trabalhar a prevenção, contudo por muito tempo prevaleceu a
dicotomia de que assistia ao hospital a função de tratar a doença. A partir do
movimento da Reforma Sanitária e da instituição das Diretrizes do SUS, fortaleceu-
se a atenção primária à saúde.
Em parceria com a Comissão de Especialistas de Enfermagem, a ABEn
promoveu vários eventos na década de 1980. Propuseram discussões acerca do
perfil e da competência de enfermeiros, o que concorreu para avanços no sentido de
organização de uma proposta de currículo mínimo de Enfermagem.
Almeida e Rocha (1986), refletindo sobre o trabalho em enfermagem e de
suas relações com a estrutura social, com o conjunto das políticas de saúde, mais
especificamente com as exigências de competividade e produção que caracterizam
as sociedades capitalistas, consta-se que o cuidado de Enfermagem se sustenta no
conhecimento efetivado num nível técnico e organizacional, de forma a atender
quaisquer ordens de necessidade humana – biológica, psicológica e social.
À luz desses pressupostos, argumentam favoravelmente ao papel
fundamental da educação em Enfermagem, porquanto prepara e legitima sujeitos
para o exercício desse trabalho, por meio do saber intrínseco à Enfermagem aliado
a elementos ético-filosóficos. Nesse sentido, atribuem-se ao ensino formal tanto a
legitimação quanto a reprodução daquele saber tão somente.
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 95
Não obstante, se não há mudanças curriculares que repensem o trabalho do
enfermeiro com vistas à dinâmica de integração de fatores de natureza ideológica,
econômica e política, está-se favorecendo a cristalização da divisão social do
trabalho e perpetuando a crise de identidade dos vários agentes da equipe que a
constitui. Almeida e Rocha insistem que, as mudanças devam incidir sobre os
currículos e na prática do trabalho desses profissionais.
Aprovou-se um novo currículo em 1994 e, dois anos mais tarde, foi
sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Estabeleceu-se
proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais, período em que a ABEn buscava
apoio para redefinir o processo de formação do enfermeiro. A atuação ampliou-se
em diversas áreas, imprimindo especial relevo à promoção à saúde e a demandas
sociais (VALE; FERNANDES, 2006).
Muitas discussões se seguiram nos anos de 2000 e 2001, promovidas pela
ABEn. O Sistema Único de Saúde era tomado como referência básica às diretrizes
curriculares e, consequentemente na formulação de propostas para a graduação em
Enfermagem, considerando os determinantes históricos sócio-econômicos e
políticos no processo saúde-doença. Segundo Xavier (2001), essas propostas
adotaram por paradigma as relações entre cultura, sociedade e saúde, levando em
consideração as transformações sociais e do mundo do trabalho.
Ito, Takahashi e Leite (2006) afirmam as transformações como necessárias
ao exercício da cidadania numa época em que a educação se dirigia para além da
educação formal. Reafirmam a consideração que se dava ter com os propósitos
contidos na Reforma Sanitária na formação dos profissionais de saúde: atenção ao
contexto de vida do indivíduo – paciente e profissional – de modo a projetá-lo numa
perspectiva de sujeito agente de transformação social.
Essas discussões culminaram nas Diretrizes Curriculares Nacionais,
aprovada em 2001 e ainda vigentes, apresentam as discussões que as antecederam
e enfatizam um conceito ampliado de saúde. Os princípios e diretrizes do SUS
incluem a saúde como um direito de todos e dever do Estado, conforme os preceitos
anunciados para a saúde na Constituição Federal de 1988. As diretrizes curriculares
vigentes propõem a formação de um enfermeiro generalista, humanista, crítico e
reflexivo, capaz do exercício profissional assentado no rigor científico – intelectual e
pautado em princípios éticos.
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 96
As propostas destinavam-se ao preparo de pessoal, de modo que atendesse
às demandas premente da região ou contexto em que se insere, capacitando-o a
identificar as dimensões biopsicossociais norteadoras de sua ação, e a atuar com
senso de responsabilidade social e de compromisso com a cidadania, e, por fim, a
promover a saúde integral do indivíduo a seus cuidados.
O atual documento tem por princípio incentivar uma sólida formação geral do
enfermeiro, para que possa superar os desafios no exercício profissional e na
produção de conhecimento. Para isso, sugere que, durante sua formação, o
estudante de Enfermagem adquira habilidades diferenciadas, uma formação geral
sólida, mas incorporando diversificadas experiências, inclusive fora do ambiente
escolar. Valoriza-se, ademais, a progressiva autonomia intelectual.
Corbellini (2007) atenta para o fato de que mesmo frente à legalização de
nova proposta para formação do enfermeiro, o ensino ainda se via imerso no mesmo
modelo biologicista, curativo e hospitalocêntrico. Por outro lado, visibiliza-se
iniciativas no sentido de incorporar as orientações educativas e políticas, para que
possam resultar em mudanças futuras que incidam sobre modo por que os
enfermeiros se comportem, considerando a real necessidade social da população.
No entanto, para Kletemberg e Siqueira (2003) a Enfermagem evoluiu,
tornando-se científica e cada vez mais especializada, sem que, em momento
histórico algum, haja se omitido ou negligenciado o aspecto humanitário.
De sua parte, Waldow (2009, p.184) defende a retomada do cuidado na
formação do profissional enfermeiro, dado que toda reflexão atual nesse sentido
parece impor ao professor a ânsia de mudar e de inovar o ensino. Para o bom êxito
desses esforços, exigem-se atitudes de “respeito, consideração, generosidade,
solidariedade, compaixão, sensibilidade e responsabilidade.” Sob a óptica da autora,
o cuidado, deve, de fato, ser incluído no currículo, contudo não apoiado no modelo
biomédico. Ao contrário, o cuidado deve ser sentido. Nos currículos, o que muda são
as formas de sua abordagem, a postura docente, a interação entre os sujeitos, as
estratégias e ações pedagógicas.
Há ainda que se considerar que o mundo moderno marcado por ideologia
capitalista não deixou de influenciar as relações do enfermeiro com o paciente.
Como resultado, vê-se a divisão do trabalho na equipe de Enfermagem, associada
ao desejo de poder e reconhecimento pessoal – concordante com valores sociais
atuais. O profissional da Enfermagem passa a galgar novos postos de trabalho,
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 97
melhor remunerados, dedicando-se a atividades administrativas, afastando-se,
desse modo, do cuidado direto ao paciente.
Na Medicina, a complexidade do conhecimento e a mercantilização do serviço
conduziram às especializações, ao passo que, na Enfermagem, à divisão do
trabalho intelectual e manual, prosseguiu existindo, em grande parte dado ao custo
de salários, posto que o Auxiliar de Enfermagem receba por seu trabalho menos que
o Enfermeiro. Em geral, observa-se que apenas nos hospitais renomados, de grande
porte, a contratação de enfermeiros se dá em grande número. No entanto, a eles
são designadas diferentes funções, alguns se dedicam ao trabalho administrativo e
outros sob a denominação – enfermeiro de cabeceira –, dão assistência direta ao
paciente, discriminando ainda mais as categorias de trabalho.
Na década de 80, houve grande empenho em melhorar a qualificação dos
profissionais em Enfermagem. Isso se traduz em melhor remuneração e são formas
de organização econômica do trabalho. Desse modo, percebe-se ainda que a força
de trabalho na Enfermagem se concentrou no predomínio de Auxiliares de
Enfermagem até a atualidade. Verificou-se um aumento no número de Técnicos de
Enfermagem e a possibilidade de extinção da categoria de Auxiliar de Enfermagem,
o que denota um esforço da categoria de promover a qualificação da equipe de
enfermagem responsável pelos cuidados de Enfermagem. Essa luta é empreendida
pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e os Conselhos Regionais, que
representam a classe de profissionais.
O discurso tem-se modificado no propósito de inverter a relação profissional-
paciente estabelecida no século XX, que resultou não apenas na qualificação
técnica da equipe senão também na objetificação do paciente e na fragmentação do
trabalho. Vê-se um esforço para recuperar o cuidar no ensino e na prática de
Enfermagem, sem, contudo, obter resultados efetivos. Isso pode se prolongar até
que, ao longo do tempo, esse discurso e diretrizes façam sentido e possam ser
percebidos nas relações interpessoais.
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 98
3.2 A formação ética dos enfermeiros
Acompanhando os movimentos sociais em momentos diversos, sempre
esteve presente a Ética perpassando as várias concepções educativas. Mais
particularmente no campo pedagógico da Enfermagem, a Ética manifesta-se na
preocupação dos docentes da disciplina com transmitir aos futuros profissionais o
compromisso com o paciente, o que vem refletido na qualidade de seu trabalho de
cuidar. No entanto, até há pouco tempo o ensino da Ética esteve subordinado ao
ideário legalista e normativo. Com o advento da Bioética, introduziu-se a discussão a
respeito de uma perspectiva mais abrangente de a Ética participar nos cursos de
formação para os futuros profissionais de Enfermagem.
Em geral, o interesse das escolas no ensino da Ética ainda parece se
associar aos grandes temas, ao confronto de experiências, sem que, entretanto, se
valorize adequadamente a elaboração do raciocínio destinado a articular a
diversidade de informações e conhecimentos, proporcionando condições para o
desenvolvimento de pensamento e atitudes justificadas na tomada de decisões.
Conforme relatam Oguisso e Freitas (2007), no início dos cursos, a Ética
esteve associada ao conteúdo: História da Enfermagem. Em 1923, a disciplina
denominou-se Bases históricas, éticas e sociais da enfermeira, para, em 1931, ser
nomeada Ética e História da Enfermagem. Em 1960, a Reforma Universitária,
propôs a matéria: Exercício de Enfermagem, com a inclusão da Deontologia e
Legislação Profissional.
Segundo Germano (1996), o ensino da Ética evoluiu e configurou-se por
valores consonantes às lutas ideológicas, sob a óptica das diversas concepções de
mundo presentes em sociedades em cada época, as quais, por sua vez, estenderam
sua influencia à prática do enfermeiro.
No início de sua instituição, o ensino da Ética fundou suas bases na
religiosidade e na caridade, caracterizadas pelo respeito à hierarquia e humildade.
Em seguida, houve intensa preocupação com a moralidade e com grande esforço
empreendido para o reconhecimento de um corpo de saberes necessários à sua
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 99
prática. Com a profissionalização da atividade, temeu-se pela hipertrofia do aspecto
técnico – científico da profissão.
Na década de 1980, publicaram-se muitos artigos em que se veiculava o
combate a essa perspectiva pedagógica, carregada de religiosidade e
conservadorismo (GERMANO, 1996).
O ensino da Ética na Enfermagem constituía-se de um conjunto de valores
formando um corpo teórico que dava subsídios para a prática profissional. Procurava
dar direcionamento ético aos profissionais no tocante a assuntos de relevância,
como o aborto, eutanásia, transplantes, dentre outros. Na década de 1980, os
encontros de classe apontavam para um campo de discussão diferente: o da visão
social da Ética. Denotava uma preocupação com a responsabilidade social do ser
humano (GELAIN, 1994; ALMEIDA; ROCHA, 1986).
Gelain (1995), estudioso da Ética na Enfermagem, declara que, na história da
profissão, a Ética passou por três modelos : primeiramente, o modelo tradicional,
representado por normas a serem seguidas, caracterizadas por uma significação
religiosa, em que o conceito de certo e do errado estariam em conformidade com a
lei ou com a divindade. Esse paradigma foi paulatinamente substituído pelo modelo
Renovado-Personalista-Existencial, numa tentativa de deslocar o eixo das atenções
ao ensino da Ética e ressignificá-lo coerente com a concepção de mundo cujo centro
fosse o homem, transformando radicalmente o horizonte da formação humana. A
partir de então, designava-se ético tudo quanto pudesse promover a pessoa;
denominava-se antiético aquilo que contrariasse essa assertiva. O autor crítica esse
modelo, recomendando cuidado ao tomá-lo por projeto de formação humana,
porquanto apenas reafirma o discurso da modernidade; mantém, entretanto, como
interlocutor a dominância do pensamento burguês, elitista, perpetuador do status
quo, não se abrindo à coletividade. Por não se efetivar como diretriz educacional –
conforme era suposto –, e por inclusive, prejudicar as potencialidades da pessoa.
O terceiro modelo abordado por Gelain é o modelo social-problematizador,
que tende a considerar o homem um ser social, direcionando a postura ética
consciente – condição imprescindível ao exercício da cidadania. O foco do debate
assenta-se em reaver valores humanos do cotidiano – a sensibilidade, a emoção e a
estética –, perdidos por quem privilegia, segundo Gelain, a Razão, o econômico, o
ter, a técnica e a robotização. Na década de 1990, a Enfermagem se voltou às
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 100
questões sociais, culminando as discussões para a reformulação do Código de
Deontologia, que orientava as ações dos profissionais. Em 1993, essa mudança
resultou na elaboração do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem.
Fernandes et al. (2008) declaram que as Diretrizes Curriculares de 2001
apontam para uma formação que não pode ser concebida sem que se considere a
perspectiva ética. É percebido seu valor em tal medida que se declara: a Ética é
base do desenvolvimento educacional. Acrescentam ainda que a aprendizagem
deva ser decorrente da prática, para a qual se exigem cuidado e atenção ao
embasamento teórico destinado à formação de atitudes.
As diretrizes educacionais visam orientar a formação do enfermeiro inserida
numa perspectiva coletiva, cidadã e ética. Propõem uma educação mais flexível, ao
alcance de respostas aos desafios da atenção à saúde da população,
desenvolvendo as capacidades múltiplas para o exercício profissional em
consonância com os princípios da Reforma Sanitária e das Diretrizes do SUS:
equidade, solidariedade, acessibilidade, resolubilidade dos problemas relativos à
saúde das pessoas. Inclui-se aí a compreensão das condições de vida da
população: socioeconômicas, políticas, religiosas, culturais.
Nesta perspectiva de formação, a Ética adquire um caráter transdisciplinar e
um lugar de destaque na Educação, de cuja essência participa. Não visa, de modo
algum, ao exclusivo alcance teórico, senão à ação concreta.
Pensemos, pois, num processo de formação ética, entendendo-o como um agir educacional pautado na concretude dos sujeitos desse processo, centrado na realidade concreta onde eles se inserem. Um processo onde não se impõem comportamentos, mas potencializa o diálogo, a compreensão, o respeito, a liberdade e a solidariedade. Um agir pautado numa relação entre as noções éticas e as situações vividas pelos sujeitos. Caso contrário, estaremos, apenas, repassando noções abstratas e insuficientes para o pleno exercício dos valores éticos da implementação das mudanças sugeridas nas DCENF. (FERNANDES et al., 2008, p. 403 ).
Assim como ocorreu na área de Medicina, a Bioética na Enfermagem
promoveu amplitude e prospectiva na relação entre o profissional e o paciente.
Incorporada ao ensino da Ética a partir da década de 1990, essa nova abordagem
deveu-se sobretudo à fundamentação filosófica, que traz à tona temas e discussões,
Capítulo 3. Educação em Enfermagem 101
viabilizando reflexões e melhor ajuizamento no uso das novas tecnologias e dos
avanços científicos, da pesquisa científica, da justiça e responsabilidade social.
CAPÍTULO 4
A BIOÉTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 103
4.1 O surgimento da Bioética
Se pensarmos nos avanços científico-tecnológicos que marcaram
sobremaneira os campos da Biologia e da Medicina a partir dos anos 60,
compreenderemos um dos fatores que motivou o despertar da Bioética, organizada
como disciplina na década de 1970. Esse advento imprimiu novo vigor à Ética – até
aquela época tratada como mera etiqueta – que, então, ressurgiu com novo enfoque
e direcionamento na área da saúde.
Pretende-se, agora, traçar um esboço histórico a respeito do propósito e dos
rumos dos estudos no âmbito da Bioética desde seu surgimento aos dias
contemporâneos, bem como de seu valor e contribuições para a prática científica.
Tal como a propôs Potter (1998), o criador desse neologismo, a Bioética
intentava a religação das ciências empíricas com as ciências humanas, retomando
aspectos humanísticos na formação e ação da prática médica, ao mesmo tempo
ampliando a discussão para além dos temas cotidianos. Introduziu temas
emergenciais como a sustentabilidade do Planeta, as possibilidades científicas e
tecnológicas que deveriam ser melhor avaliadas quanto a seu uso e as
consequências daí advindas. De modo geral, a preocupação última manifestada por
Potter era de preservação da vida no Planeta.
A Bioética visou ao resgate dos fundamentos para o agir, conferindo novo
paradigma ao ensino da Ética nas áreas biológicas. Tratava-se de estudar os
problemas e implicações morais despertados por pesquisas científicas
empreendidas especialmente pela Biologia e Medicina.
O termo Bioética ficou conhecido inicialmente na obra de Potter, Bioethics:
Bridge to the future, publicada em janeiro de 1971, denotando a Ética da vida na
biosfera. Em julho de 1971, Andre Hellegers funda o Joseph and Rose Kennedy
Institute for the study of Human Reproduction and Bioethics, aplicando o termo à
Ética da Medicina e das Ciências Biológicas. Hellegers divulgou a palavra Bioética e
direcionou os estudos do Instituto Kennedy. Anteriormente, em 1962, Dr. Belding
Seuber fundou o Comite de Seattle, denominado pela imprensa americana de “God's
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 104
Comitee”. Foi impelido pela preocupação com o que se deveria fazer face às
implicações dos avanços biotecnológicos e aos avassaladores progressos da
revolução biológica da década de 50 que, por sua vez, deram origem à Bioética.
Seus estudos passam a tomar como objeto específico as questões humanas na sua
dimensão ética (NEVES, 1996; REICH, 1993).
Goldim (2006) propõe outra versão para a inauguração da Bioética: afirma
que a palavra foi utilizada primeiramente por Fritz Jahr, em 1927, em um artigo
publicado na revista alemã Kosmos, onde caracterizou bio + ethik ao
reconhecimento de obrigações éticas com todos os seres vivos. Acrescenta o
mesmo autor que Potter foi influenciado por Aldo Leopold, que, na década de 1930,
criou a Ética da terra, na qual abordava os recursos naturais como objeto de reflexão
ética.
Potter (1998) utiliza a palavra bioética-ponte com o propósito de promover a
sobrevivência humana, ao se referir a problemas que um vultoso desenvolvimento
da tecnologia geraria, se não houvesse uma reorientação desse novo poder em
benefício próprio do ser humano. Preocupava-o o conhecimento científico como fim
em si mesmo, negligenciando os efeitos que poderiam causar aos seres humanos. A
preponderância da ciência e de suas possibilidades sobre o ser humano levaria a
um temor ante a sobrevivência da espécie, pondo em risco a qualidade de vida no
futuro. Potter tinha a intenção de unir Ciência e Filosofia, ou ainda melhor, unir as
ciências biológicas e a Ética numa nova disciplina.
Berlinguer (1993) retoma uma mensagem enviada ao Congresso dos
Intelectuais para a Paz (1948), em que de Einstein já manifestava a preocupação
com a ausência de racionalidade para equilibrar os avanços tecnológicos aos
humanos, pondo em xeque se as possibilidades científicas lhes resultassem em
benefícios, ou fossem utilizados sem que trouxessem danos ao homem:
Através de uma penosa experiência, aprendemos que o pensamento racional não é suficiente para resolver os problemas de nossa vida social. A pesquisa perspicaz e o acurado trabalho científico tiveram, com frequência, consequências trágicas para o gênero humano, trazendo por um lado invenções que livram o homem das mais extenuantes fadigas físicas, tornando sua vida mais fácil e rica. Por outro lado, causa nele uma inquietação grave por torná-lo escravo de seu mundo técnico e, o mais catastrófico, cria os meios para a sua destruição em massa. Uma tragédia realmente assustadora. (BERLINGUER, 1993, p.9).
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 105
Potter propôs ainda a Bioética-profunda: uma reflexão necessária para as
questões da sobrevivência, inclusive declarando que a genética é um assunto
demasiadamente importante para ser relegada ao árbitro único dos cientistas.
Segundo a opinião de Goldim, Potter propunha, com a Bioética profunda, uma nova
ciência ética, cuja competência era intercultural e interdisciplinar, que resultaria em
equilíbrio bem dosado e potencializasse o senso de humildade necessária.
Com efeito, a ideia central de Potter era a Bioética-ponte, cujo propósito
original era o questionamento a respeito dos limites a se estabelecer aos avanços
materialistas próprios da Ciência e Tecnologia. Como sua extensão e segunda
etapa, propunha ele a Bioética-global, insistindo em que os bioeticistas médicos
considerassem o significado original da Bioética nas questões de saúde pública em
âmbito mundial. Enfatizava o conhecimento biológico, que, em sua função de
Bioética-ponte, haveria de possibilitar a fusão entre a Ética médica e a Ética do meio
ambiente numa escala mundial, porque se preservasse a sobrevivência humana. Os
médicos deveriam pensar não somente em suas decisões clínicas senão também
nas consequências de suas ações a longo prazo (POTTER, 1998).
Potter deu cunho de responsabilidade planetária à Bioética: uma ciência da
sobrevivência, enquanto Hellegers a restringiu às ciências da vida, voltadas
particularmente ao nível do humano. Tratava-se, pois, de uma ética biomédica
(NEVES, 1996).
Pessini e Barchifontaine (2000) referem-se a alguns acontecimentos que
favoreceram as discussões e se tornaram foco de preocupação da Bioética. Alguns
fatos pioneiros marcaram tão profundamente sua trajetória, que se prestam como
datas a se lembrarem e comemorarem como início da Bioética:
9 de novembro de 1962, data do artigo publicado na revista Life –
intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre” –, a respeito da
organização do Comitê de Seattle, que deliberava sobre quem se
submeteria ou não à hemodiálise, tipo de tratamento descoberto no
ano anterior. Dado que o número de pacientes em muito excedia o de
máquinas disponíveis para o tratamento, criou-se um comitê de leigos
para selecioná-los. Mas surgiu o impasse que iniciava uma discussão:
quais seriam os critérios?
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 106
16 de junho de 1966 – O [New England Journal of Medicine] publicou
artigo – “Ética e pesquisa clínica” – denunciando procedimentos
antiéticos em pesquisas de cunho científico-experimental. Seu autor,
professor Henry Beecher da Universidade de Harvard dirigiu cerca de
20 pesquisas biomédicas, publicadas em revistas de renome. Vale
lembrar que acontecimentos anteriores tiveram influencia neste
episódio como os abusos ocorridos nos campos de concentração,
revelados pelo julgamento de Nuremberg, em 1945.
31 de março de 1976 – Marca a decisão emanada da Suprema Corte
de New Jersey (EUA) sobre o caso Karen Ann Quinlan, que alcançou
repercussão expressiva, sendo acompanhado de perto pelo público em
geral. Os pais de Karen solicitavam que desligassem os aparelhos que
lhe davam suporte vital. Ante a recusa do hospital e de médicos para o
procedimento de abreviar-lhe sofrimentos e vida, aquela Suprema
Corte “reconheceu o problema levantado pelas novas tecnologias
sustentadoras da vida que haviam evoluído nos últimos 20 anos: a vida
orgânica pode continuar, mas viver humanamente ‘de uma forma
cônscia e sapiente’, isso pode estar comprometido para sempre” (p.
24). O caso Karen deu origem a uma série de debates, para os quais
contribuíram filósofos e teólogos, e de onde decorreram as diretrizes
para instruir procedimentos com pacientes terminais.
4.2 Os referencias e modelos utilizados
O principialismo – primeiro modelo teórico de análise na Bioética –
transformou-se em seu paradigma nos Estados Unidos e no mais conhecido dos
modelos explicativos. Resultou do Relatório Belmont (1974-1978), do qual participou
Beauchamp e em estudos empreendidos juntamente com J. P. Childress publicou
em 1979 a Obra Clássica Principles of Biomedical Ethics. Não obstante, utilizou-se
erroneamente esse modelo como uma representação da Bioética.
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 107
O Relatório Belmont materializou a preocupação do Congresso Americano
com salvaguardar seres humanos, prevenindo-lhes a segurança contra eventuais
abusos da pesquisa biomédica e experimental. Para tanto, em 1974, organizou uma
Comissão e a encarregou de identificar princípios éticos básicos que norteassem as
pesquisas envolvendo experimentação com seres humanos. A esse respeito,
Pessini e Barchifontaine (2000) chamam a atenção para três situações que
mobilizaram a opinião pública, uma vez que constituem abusos ocorridos em
pesquisas, como se pode constatar a seguir.
Em 1963, no Hospital Israelita de Nova York, destinado ao tratamento de
doenças crônicas, injetaram-se células cancerosas em idosos doentes. Entre 1951 e
1970, no Hospital Estatal de Willowbrook, também em Nova York, inoculou-se
hepatite viral em crianças portadoras de retardo mental. Descoberta apenas em
1972, uma pesquisa iniciada em 1932 em Tuskegee, no Estado do Alabama (EUA),
envolveu quatrocentos negros desassistidos de tratamento, para cumprir a finalidade
experimental de conhecer a evolução da sífilis. Dado que a descoberta da penicilina
se deu em 1932 e foi comercializada em 1942, o não uso da droga resultou em
grave problema de cunho ético. Esse último caso tornou-se objeto de discussão a
respeito da Ética em pesquisas biomédicas e restou como exemplo marcante de
eventuais abusos em pesquisas experimentais envolvendo seres humanos.
Posto isso, doze membros da referida Comissão de 1974, entre os quais
participaram filósofos e teólogos, examinando alguns documentos que informavam
das atrocidades cometidas contra seres humanos durante a II Guerra Mundial,
tentavam deles extrair princípios que foram lá violados e neles se basearem com o
intuito de nortear suas considerações a respeito da adequação das pesquisas
efetivadas em humanos. Embora desacreditando de sua eficácia para atingir o
objetivo esperado, dada a dificuldade de utilização, conseguiram identificar três
princípios norteadores básicos, que constam como referencial do Relatório Belmont,
publicado em 1978: a autonomia, a beneficência e a justiça. Tais princípios
constituíram o alicerce onde se fundou a reflexão direcionada a interpretar, criticar e
formular normas de procedimento em se tratando de pesquisas experimentais.
Posteriormente, aqueles princípios ampliaram seus limites para além da Ética
aplicada a pesquisas, para se prestarem também à reflexão de natureza bioética.
Simultaneamente à publicação do Relatório Belmont – uma espécie de guia
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 108
ético em que se pautar com o intuito de proteger seres humanos sujeitos à
experimentação –, Beauchamp e Childress lançaram Principles of Biomedical Ethics,
obra que inaugurou a utilização de princípios toda a vez em que se faz
imprescindível abordar impasses e problemas de natureza bioética. De fato, pode-se
afirmar que esses dois estudiosos lançaram os fundamentos do que viria a se
denominar Principialismo.
Beauchamp e Childress se beneficiaram da proposta de reflexão de Sir
Willian David Ross, filósofo escocês de nascimento (mas ganhou notoriedade como
o inglês que mais tratou a ética), cuja obra mais famosa é The right and the good, de
1930. Sua maior inovação foi considerar que aqueles princípios ratificam, na
verdade, deveres prima facie, mais do que expressam obrigações absolutas. Com
efeito, os princípios bioéticos manifestam fatos palpáveis e são fruto de reflexão
mais profunda.
Conforme se afirmou, Beauchamp e Childress, propuseram quatro princípios
éticos gerais, amplamente aceitos e utilizados, que deveriam ser aplicados aos
problemas da prática médico-assistencial. São eles: Autonomia, Justiça,
Beneficência, que foi desmembrada em Não maleficência.
Beauchamp e Childress tinham convicções filosóficas distintas: um utilitarista
e outro deontologista – o que não deveria ser, de fato, empecilho para que se
resolvessem de comum acordo as normas, princípios e procedimentos entre eles.
Defendiam que: “[...] os princípios e as normas são considerados obrigatórios, prima
facie e estão no mesmo nível [...] somente as circunstâncias e consequências
podem ordená-los em caso de conflito” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000, p. 47).
Costa, Garrafa e Oselka (1998) chamam ainda a atenção para um aspecto
muito frequente : costuma haver certa confusão entre a ética principialista e a
Bioética propriamente dita, o que, evidentemente, não corresponde à verdade.
Como se pode constatar em suas convicções, a ética principialista constitui apenas
um dialeto inserto no âmbito da linguagem bioética.
Após se informar do berço da Bioética nos Estados Unidos, reconhecendo
que aí se originou para, depois, desenvolver-se pelo mundo, Neves (1996, p. 7),
questiona o fato de a fundamentação filosófica da Bioética vir sintetizada em
princípios, o que, para a autora, constitui um problema – não seria o caso de uma
perspectiva tomada como regras a serem seguidas. De certa forma, questiona-se
aqui o próprio Principialismo. Sugere, argumentando, que se deveria partir de uma
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 109
fundamentação na antropologia filosófica1 que, “[...] se empenha na compreensão do
homem na totalidade das suas expressões e na infinitude da sua realização como
pessoa, que toma o homem na singularidade de sua individualidade e na
universalidade de sua humanidade.” Trata-se da ética antropológica, cuja missão é
acompanhar o processo de personificação do sujeito – o homem.
As diferenças entre as convicções e sensibilidades anglo-norte-americana e
europeia, com efeito, fazem-se aqui presentes. Não obstante, por sua vez, Neves
defende a exigência de fundamentação bioética, seja na preocupação com
microproblemas, seja com macroproblemas de dimensão social. A Bioética, na
perspectiva americana, tende a se constituir uma área de conhecimento distinto,
enquanto na visão europeia se apresenta um objeto de estudo transdisciplinar, e se
expressa numa nova sabedoria entre as demais. A autora aponta a tendência
tecnicista americana em torno da figura de um bioeticista presente nas instituições,
enquanto, na Europa, há a tendência de se formarem comissões e consultorias para
análise de problemas determinados.
Desde a sua origem, a perspectiva da Bioética é fundamentalmente
humanista: toma as questões humanas por seu objeto específico, insertas e
consideradas em sua dimensão ética. As relações com o meio ambiente, as
intervenções e descobertas científicas, conscientes das consequências daí
advindas, tanto no âmbito individual quanto no coletivo. No entanto, a Bioética
alcançou diferentes perspectivas na Europa e na América.
Neves (1996, p.7) defende que “a tradição personalista e humanista europeia
conduz à afirmação da Antropologia como fundamento da Bioética”, e assevera que,
“[...] para além da História e da cultura, da religião e dos valores, é ainda a tradição
filosófica que marca a diferença.”
Numa análise das diferentes abordagens, a referida autora constata que, nas
sociedades anglo-norte-americanas, a principal preocupação encontra-se
relacionada à autonomia, à preservação da identidade (privacidade), ao
consentimento informado, aos direitos do paciente, ao passo que, nas comunidades
da Europa Ocidental, a preocupação pauta-se no direito dos não nascidos, no
princípio da solidariedade, na possibilidade de acesso a recursos.
1 A antropologia filosófica não se confunde com qualquer outra expressão do estudo do homem, sendo a única que aborda o
homem na totalidade concreta do seu ser e, por isso, a única a aspirar a um plano universal (NEVES,1996).
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 110
[...] a perspectiva anglo-americana é mais individualista do que a europeia, em vista do fato de privilegiar a autonomia da pessoa singular. Daí também que aquela permaneça profundamente empenhada no que podemos designar por microproblemas, questões cuja resolução importa de forma imediata e decisiva para um indivíduo, por oposição aos macroproblemas, em que os interesses morais de todo um grupo se encontram envolvidos e em que a perspectiva europeia concentra mais fortemente a sua atenção. Esta manifesta uma acentuada preocupação pela dimensão social do homem e as questões que lhe dizem respeito, colocando maior ênfase no sentido de justiça, de equidade no benefício da ação, do que nos eventuais direitos que assistem a cada indivíduo. (NEVES, 1996, p. 10).
Da Europa em geral, Neves exclui o Reino Unido em suas considerações,
entendendo que este integra naturalmente a perspectiva norte-americana, lá as
primeiras iniciativas de abordagem às preocupações da Bioética, se deram na
década de 80, com a institucionalização de diversas comissões de Ética. A França,
por sua vez, instaurou o Conselho Nacional de Ética em 1983.
A gênese e formação da Bioética nas duas tradições marcaram-se das
mesmas condições, com temáticas gerais muito semelhantes. No entanto, há
diferenças quanto a perspectivas de análise nos diversos países, porquanto a
orientação do pensar e agir segue tradições filosóficas e culturais diversas. Nesse
sentido, Neves refere que a Bioética anglo-americana funda-se em pressupostos
bastante individualistas e pragmáticos, enquanto a europeia busca orientação na
perspectiva da pessoa e se interessa pelos macroproblemas na dimensão social,
colocando maior ênfase no sentido da justiça e equidade que nos direitos de cada
indivíduo. Observa a autora:
A reflexão bioética de tradição filosófica anglo-americana desenvolve uma normativa de ação que enquanto conjunto de regras que condizem a uma boa ação, caracterizam uma moral. A reflexão bioética de tradição filosófica europeia prossegue uma inquirição acerca do fundamento do agir humano dos princípios que determinam a moralidade da ação, constituindo-se numa ética. (NEVES, 1996, p. 11).
Segundo Neves (1996), na vertente europeia, a fundamentação da Bioética
busca as correntes filosóficas dominantes, sobremaneira na ética comunicativa de
Habermas e na filosofia da alteridade de Emmanuel Lévinas. Esta vertente da
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 111
Bioética não assume uma característica descritiva, nem dita normas de conduta,
senão toma por fundamento teleológico a pessoa humana, com seu caráter singular
e universal, sem perder de vista a solidariedade na intersubjetividade.
Particularmente no Brasil, os bioeticistas têm se preocupado sobremaneira
com a justiça social, na tentativa de minimizar as desigualdades que, inclusive, são
exploradas por outras nações que encontram nos países subdesenvolvidos um
palco favorável à realização de pesquisas, para cujas condições metodológicas de
realização, chamam a atenção, ao mesmo tempo alertando para o respeito aos
sujeitos da pesquisa. Além da solidariedade, os bioeticistas brasileiros têm proposto
também a discussão a respeito da justiça e do acesso igualitário às novas
tecnologias, levando em consideração os desníveis socioeconômicos a que se
submetem as pessoas que vivem nos países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento.
Garrafa (2000), um dos defensores deste ponto de vista, propõe que a
Bioética é senão a Ética revisitada numa tradução mais generosa, acrescentando
novo vigor ao lado mais desfavorecido e frágil da relação – o do paciente. Não
obstante, o bioeticista atenta a um fato muito corrente no Brasil : ao buscarem
formação fora do país, muitos importam acriticamente modelos de ciência e
tecnologia, inclusive de pacotes éticos, e, quando retornam, não os podem aplicar,
em virtude das diferenças culturais com que inevitavelmente se deparam por aqui.
A bioética – campo de reflexão bastante amplo – desenvolveu modelos
teóricos, cujo propósito é assistir pessoas quando racionalizam e decidem a respeito
das situações, quer sejam pertinentes à vida cotidiana, quer sejam as de conflito. Os
Profissionais de Saúde não são imunes a essas situações de impasse, ou dilemas;
ao contrário, deparam-se com elas frequentemente. Apenas mudam quanto à
terminologia empregada para caracterizá-las. Desse modo, Berlinguer (1993) as
define situações cotidianas e situações de limite ou de fronteira, ao passo que
Garrafa (2000) nomeia as diferentes as situações de problemas emergentes e
persistentes, dando maior ênfase aos problemas enfrentados pelos países
subdesenvolvidos.
Entre as linhas ou linguagens da Bioética, Costa, Garrafa e Oselka (1998)
destacam o contextualismo, que defende que cada caso – por ser sui generis – seja
analisado singularmente, considerado dentro de seus específicos contextos
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 112
socioeconômicos e culturais. Isso implica que não apenas cada situação como
também cada cultura devam levar em conta suas próprias particularidades.
Fundamentando-se em Pessini e Barchifontaine (2000), apresentar-se-ão
outros modelos teóricos desenvolvidos no âmbito da Bioética, entre os quais
constam o libertário; o das virtudes; o casuístico; o fenomenológico e hermenêutico;
o narrativo; o do cuidado; do direito natural e o contratualista. A seguir, faz-se uma
síntese de cada um desses paradigmas, estabelecendo-lhes a matéria e seu
defensor expoente.
O paradigma libertário tem por defensor Hugo Tristran Engelhardt que, em
obra polêmica – Fundamentos da Bioética – radicaliza a autonomia do indivíduo.
Inspirado na tradição político-filosófica do liberalismo americano, esse modelo
justifica não apenas as ações decorrentes da livre escolha do paciente, senão
também defende outras posturas polêmicas como a venda de sangue e órgãos,
considerados que são propriedade do corpo.
Fundamentado na filosofia aristotélica, o paradigma das virtudes é defendido
principalmente por Edmund Pellegrino e David Thomasma, pautados na obra de
Alisdair MacIntyre. Esse modelo centraliza a decisão no agente – sobremaneira no
Profissional de Saúde – integrando o paciente às decisões por ele tomadas. Adota
por tônica o aperfeiçoamento da ação por meio do hábito destinado à prática do
Bem. Ademais, enfatiza a educação dos Profissionais de Saúde e a prática clínica.
Dá-se como exemplo da ação decisória do agente, visando à prática do Bem,
quando ocorre a recusa ao tratamento por pacientes portadores de AIDS, de
doenças infecciosas letais, entre outros acometimentos graves.
Reconhecido bioeticista, Edmund Pellegrino retoma o modelo ético aristotélico
da prática da virtude. Eis o norte a perseguir quem, no ensino da Ética, pretende
fundamentar, aprofundar e otimizar a formação de profissionais competentes para
decidir com mais beneficência e sensatez. Dado que haja uma estrutura institucional
que priorize e possibilite o desenvolvimento de potencialidades do indivíduo, com
efeito, é esta a vertente por que se decidir na formação de estudantes durante sua
graduação. Nesse período, se desenvolve a disposição do agente para o agir ético –
por meio da prática de determinadas ações e procurar-se-á alcançar, nos
graduandos, a atuação virtuosa destinada ao Bem – a excelência no proceder
profissional – a eticidade, enfim.
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 113
Oposto ao modelo principialista, o paradigma defendido por Albert Jonsen e
Stephen Toulmin – denominado casuístico – não se sustenta em princípios
orientadores da ação, mas, numa lógica analítica caso a caso, estabelece analogias
em relação a outros tantos casos ou a experiências concretas. Funda-se, pois, em
decisões tomadas após a prática de cotejar casos, comparando-os ou confrontando-
os. Porque se caracteriza pré-teórico e intuicionista, a utilização desse paradigma de
certa forma tem despertado receios e descrença.
Amparando-se na defesa de que toda experiência se submete a uma
interpretação, o paradigma fenomenológico e hermenêutico valoriza a dimensão
subjetiva e a partilha de significados e da análise entre os sujeitos. Critica-o quem
alega que esse modelo se destina à escolha moral inadequada.
O paradigma narrativo aborda as experiências humanas e os dilemas morais
sob a óptica da dimensão narrativa da pessoa, tomada como parte integrante da
vida e dela jamais dissociada. Pautando-se nas experiências humanas adquiridas,
as histórias de vida da pessoa determinam seu sentido e definem seus valores.
Carol Gilligan manifesta-se a favor do paradigma do cuidado, de natureza
psicológica. Argumenta ela que o cuidado, ou a responsabilidade pelos outros,
caracteriza e é mais percebido por mulheres, ao passo que a justiça é pertinência
dos homens, o que implica que a noção de moralidade encontra diferença relativa
aos gêneros. De qualquer forma, a ênfase na alteridade tem sido empregada com o
propósito de superar a perspectiva tecnicista da Medicina.
O paradigma do direito natural apresentado por John Finnis, “[...] estabelece a
existência de alguns bens fundamentais em si mesmos: o conhecimento, a vida, a
vida estética, a vida lúdica, a racionalidade prática, a religiosidade, a amizade. Estes
são bens em si mesmos, fins e não meios [...]” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000,
p.37). Por conseguinte, trata-se de deveres prima facie, o que determina a ausência
de hierarquia de um sobre outro. Considera-se moral toda ação que contribui para o
desenvolvimento desses valores. Este modelo leva em conta o indivíduo em sua
integralidade, buscando uma integração do homem à sociedade.
Robert Veatch propõe o modelo contratualista, estabelecendo os elementos
reguladores das relações médico-paciente e sociedade: a obediência a princípios
fundamentais – a beneficência; a proibição de matar; o compromisso de dizer a
verdade e de cumprir as promessas.
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 114
A obra de Hans Jonas O imperativo da responsabilidade também se tornou
importante para o estudo da Bioética, uma vez que aborda reflexões éticas acerca
do poder da tecnologia no mundo moderno.
Em suas considerações, Siqueira (2000, p. 57) remete-se às declarações de
Jonas, que alerta acerca do risco de se proceder a ousadas ações nas ciências,
visto que nem todas as apostas são permitidas no tabuleiro do jogo da vida. Numa
heurística do temor, apresenta uma visão de que mais do que a possibilidade de um
“[...] apocalipse abrupto, a moderna tecnociência ensejaria o aparecimento de um
apocalipse gradual, que culminaria na descaracterização da espécie humana e do
Universo como um todo”. Jonas propõe a criação de uma nova ética, que
extrapolaria as balizas das relações com o outro, para definir-se “ [...]uma ética
voltada para o futuro, que estende nossos compromissos morais de tal modo a
alcançar as gerações vindouras dos não nascidos e nos responsabiliza igualmente
pelos cuidados com a natureza extra-humana.”
Hans Jonas diferencia a técnica pré-moderna da moderna, que se
transformou em empresa que gera um progresso ilimitado, diferentemente do que
ocorria antes, em que os avanços costumavam manter-se em equilíbrio por um
longo período de tempo. Na tecnologia moderna, avanços são planejados, rápidos e
se retroalimentam sucessivamente – cada objetivo atingido gera novas
necessidades, que, por sua vez, determinam novos objetivos, estimulando o
desenvolvimento de novas tecnologias porque sejam satisfeitos. Ademais, os novos
avanços difundem-se rapidamente tanto em termos de conhecimento quanto em sua
aplicabilidade.
Jonas atribui esse comportamento à competitividade, à guerra ou à sua
ameaça, ao esgotamento de recursos frente ao crescimento populacional e à própria
globalização, além de determinantes de ordem ideológica na busca incessante do
homem ocidental pelo novo (NUNES, 2000).
Zancanaro (2000), sustentando-se na obra de Hans Jonas, insta à
necessidade de reflexão e de um despertar da consciência e progresso moral, de
forma que possam levar em conta as consequências futuras da ação humana.
Propõe a construção de uma ética fundada no uso responsável da tecnologia frente
aos ilimitados poderes que o homem alcançou com o conhecimento científico. Essa
alienação do homem de ciência o conduziu à indiferença em relação à vida. Nesse
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 115
sentido, a Ética serve de alerta conclamando a responsabilidade daqueles que
detêm qualquer tipo de poder, especialmente quanto ao poder científico e político.
Urge-os à atitude de vigilância constante em face de riscos e perigos imprevisíveis
ao cálculo, muitas vezes não imediatos, mas cujo alcance a longo prazo poderia
causar danos irreversíveis à sobrevivência humana. Existe, desse modo, a
necessidade de se construir uma ética frente aos novos desafios, cuja tarefa
consistiria em refletir, agir e educar para o uso responsável das tecnologias nesse
contexto.
A indiferença em relação à vida, o excesso de poder da tecnologia põem em risco a continuidade das espécies e colocam-nos diante da possibilidade real da catástrofe da morte essencial. Os fatos mostram que a utilização das potencialidades tecnológicas e sua capacidade não só destruidora como transformadora pode provocar consequências imprevisíveis no futuro. (ZANCANARO, 2000, p. 311).
Como se pode verificar, na mentalidade do cientista, há para o poder da
ciência o ditame de que deve ser feito tudo quanto é possível fazer. Isso pode
implicar destruição da vida e exige renuncia à onipotência do poder.
Hans Jonas assevera que a ignorância a respeito das consequências últimas
de nossos atos, frente ao potencial escatológico da nossa tecnologia, será em si
mesma razão suficiente para uma moderação responsável (SIQUEIRA, 2000).
Nesse entendimento de Jonas manifesta-se a intenção da Bioética tal como
apresentada no final do século XX, o que a torna cada vez mais premente.
Perseguindo a óptica de Jacques Ellul, Siqueira pondera que, uma vez
fascinados pela tecnologia e pode-se dizer também por aquilo que a impulsiona – o
dinheiro e o alcance que este favorece a quem dele dispõe –, teríamos nosso juízo
moral abalado e perderíamos em definitivo a capacidade crítica.
Outro modelo explorado na Bioética a destacar trata da “Ética do Discurso” de
Habermas, que, partindo de um referencial kantiano, desloca a fonte e a legitimidade
das normas de uma razão reflexiva abstrata e universal para uma razão discursiva,
consensual e realizada em processo, levando a um efeito pedagógico, onde o sujeito
se forma na intersubjetividade. Habermas segue a linha de seus predecessores
(Horkheimer e Adorno), quando, acredita que, na sociedade moderna, houve um
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 116
crescimento exagerado da razão instrumental2, culminando na objetificação e
mediatização dos indivíduos, para qual busca em sua reconstrução alternativas de
resolução a esse problema, valendo-se de uma proposta de ação voltada para o
entendimento. Em ampla análise filosófico-sociológica, Habermas (1991, p. 18)
argumenta que o desenvolvimento moral de cada indivíduo – sujeitos dotados de
capacidade de linguagem e de ação – ocorre na interação com o outro, mediada
pelo ato de fala: “[...] elementos de determinada comunidade linguística crescem
num universo partilhado intersubjetivamente.” Ao mesmo tempo em que a identidade
e a individuação de cada um cresce e se preserva na interação, possui uma
fragilidade que sofre ameaça em sua exposição, no entanto “A pessoa só constitui
um centro de interioridade na medida em que se expõe simultaneamente à relações
interpessoais construídas sobre uma base comunicativa.” Deve haver para isso uma
reciprocidade, uma atenção direcionada em ambos os sentidos.
Como em Kant, a ética discursiva extraída da teoria da ação comunicativa de
Jürgen Habermas é formalista. No entanto, ela formula o seguinte princípio: “[...] as
únicas normas que têm direito a reclamar validade são aquelas que podem obter a
anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático” (HABERMAS,
1991, p. 16).
Para Habermas (1991, p. 22), há estreita relação entre a autonomia do
indivíduo e a perspectiva social, porquanto, em seu discurso, insere-se sua própria
perspectiva num contexto universal, de forma que o discurso transcende a fronteira
da comunidade concreta, mas não quebra o laço social de pertinência a ela.
Entende que o objeto que se pretende no consenso é uma forma singular de
concordância ou desacordo, mas há que se superar aí o egocentrismo – de uma
liberdade sem limites –, tornando-se uma pretensão de validez passível de crítica,
para, então, ser capaz de projetar-se no outro. Habermas esclarece: “[...] sem a
empatia solidária que permite a cada indivíduo projetar-se nos outros não se poderá
chegar a uma solução passível de anuência geral.” Amplia-se, desse modo na ética
do discurso o conceito deontológico de justiça, porquanto no relacionamento
interpessoal há reconhecimento do outro, num grau de solidariedade, altruísmo e
2 Os pensadores iluministas acreditavam que a evolução do conhecimento possibilitaria a evolução humana,
contudo o aumento desse não foi acompanhado da esperada emancipação humana. Segundo a tradição de
pensadores da Escola de Frankfurt esse fato deveu-se da expansão isolada da razão instrumental – técnica –
sem o necessária desenvolvimento da Razão crítica. O que conduziu a uma crise da Razão. Nessa linha de
análise filosófica, histórica e social Habermas indica como uma possibilidade de superação a teoria da ação
comunicativa.
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 117
entendimento, em que os interesses do indivíduo são contemplados no plano do
interesse geral, de uma estreita relação “ [...] entre a autonomia dos indivíduos
inalienáveis e a sua inserção em formas de vida partilhadas intersubjetivamente.”
Habermas (2000, p. 414) acredita na mudança de paradigma da razão
centrada no sujeito para a razão comunicativa pressupõe a mudança de uma razão
reflexiva para uma ação comunicativa. Habermas faz uma proposta de razão
reflexiva, monológica para uma razão argumentativa comunicativa. No paradigma do
entendimento recíproco, os participantes “ [...] coordenam seus planos de ação ao
se entenderem entre si sobre algo no mundo.” A reflexão se dá na perspectiva do
alter, que, refere-se a si mesmo como participante de uma interação.
Na proposta de Habermas (2000), o paradigma da consciência de si, da
autorrelação de um sujeito que conhece e age solitário é substituído por um outro –
o do entendimento recíproco, isto é, da relação intersubjetiva entre indivíduos que,
socializados pela comunicação, se reconhecem reciprocamente.
Em seus estudos, Habermas percorre um caminho de fundamentação para
uma teoria da ação comunicativa, argumentando que faz imprescindível uma
proposta para além da análise infrutífera, o que se dá na teoria da ação
comunicativa. Denuncia o capitalismo por haver se transformado num mal para a
humanidade, uma vez que se deixando conduzir por essa forma de viver e de
pensar, o homem dirige seus atos instrumental e estrategicamente, a ponto de
perseguir, pois, objetivos egoístas e resultados cada vez mais individualistas.
Apenas por meio da ação comunicativa, voltada para o entendimento, que exclui
qualquer forma de coação, ele será capaz de evoluir, porquanto a racionalidade
descoberta e perseguida desde o Iluminismo não demonstra que o homem seja
capaz de viver com sabedoria.
A teoria da ação comunicativa reclama requisitos fundamentais para a sua
ocorrência: a finalidade da ação deve ser autenticamente expressa no ato de fala,
sem subterfúgios; as pretensões de validez dos interlocutores devem ser passíveis
de critica; o falante e o ouvinte devem ocupar espaços próprios, de modo que
tenham participação em plano de igualdade, e, finalmente, a ação comunicativa
deve ter a possibilidade implícita de levar a um entendimento racional, alicerçada na
convicção, e não na coação (BOLADERAS, 1996).
Porque se inserem e participam da multiplicidade de relações humanas
complexas – na família, como estudante, no exercício profissional, com seus pares
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 118
numa equipe, no trato com pacientes –, o médico e o enfermeiro encontram na ética
discursiva uma inestimável aplicabilidade para a sua formação e atuação.
O entendimento das várias correntes do pensamento ético ajuda a reflexão e
o posicionamento face à diversidade dos intensos dilemas de natureza ética
experenciados pelas pessoas na modernidade, e, consequentemente, no exercício
profissional.
Pessini e Barchifontaine (2000) concluem que uma única perspectiva não é
suficiente para considerar as dimensões morais da experiência humana. Os modelos
e referenciais filosóficos se complementam.
Ante esses modelos expostos – cujo emprego se mostra profícuo à análise de
situações e a uma ampla aplicação clínica –, muitos autores postulam que, em sua
aplicabilidade, eles se entrelaçam, complementam-se e se reforçam, porque a
existência humana possa ser pacífica e, desse modo, perdure. Resta como modelo
mais divulgado no Brasil o principialismo e os quatro princípios que o integram. Por
outro lado, muitos estudiosos têm questionado a impossibilidade contemporânea de
se estabelecerem princípios universais, face à da diversidade moral acarretada pela
pluralidade de valores existentes.
Em todos os modelos explorados na atualidade pela bioética, evidencia-se o
resgate humanístico filosófico, uma vez que esta ciência argumenta que, dado ao
pensamento positivista dominante e aos avanços científicos e tecnológicos que,
sobremaneira, o século XX levou a cabo, prescinde-se um repensar a respeito da
relação do homem com a ciência e com a própria vida.
Alguns autores imprimem a seu discurso um tom bastante aterrorizador ante a
capacidade de o homem avançar, sem que esteja ciente das consequências muitas
vezes desastrosas. Ademais, denunciam a atitude arrogante incisiva do cientista,
imputando-lhe a capacidade simultânea de operar maravilhas admiráveis e de
causar danos inexoráveis à vida e à sua sustentabilidade.
Com o advento da Bioética, fortaleceram-se os conteúdos com bases
filosóficas e humanísticas, de onde advieram ganhos na formação do Profissional de
Saúde, trouxe-lhe referenciais que o assistem no esforço por fundamentar, refletir e
modificar a prática nessa área.
Há necessidade de se investir na formação profissional tanto com respeito ao
conhecimento teórico quanto prático, particularmente promovendo os Profissionais
da área da Saúde, visto que necessitam de conhecimento, preparo, competência
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 119
técnica e ética para a sua atuação. Exige-se do profissional médico e enfermeiro
conhecimentos e atitude relativos ao bom comportamento moral, visto que decisões
demasiadamente importantes fazem parte de seu cotidiano profissional.
Segundo Pellegrino (2011, p. 4), “o bem-estar do paciente sempre deve
suplantar os interesses do médico.” Isso porque a Medicina é uma ‘profissão
especial’, por lidar de perto com vulnerabilidade de doentes.” O mesmo se aplica ao
Profissional de Enfermagem, no sentido de que deve ele tomar decisões em
benefício do bem estar do paciente, provendo-se de conhecimentos, de atenção e
cuidado.
Fundando-se e perseguindo esse objetivo é que se acredita na Ética, cujos
ensino e prática devem ser exortados nas escolas de Medicina e de Enfermagem,
ensejando oportunidades de reflexão e discussão de temas relevantes, inclui-se aqui
os do cotidiano – preferivelmente em pequenos grupos -, para alcançar, na prática,
posicionamentos que o levem ao bom exercício da profissão. Tal como nos legou
Aristóteles, trata-se de buscar a excelência na ação – do exercício contínuo de
ações virtuosas –, que, tornando-se hábito, predispõem o caráter do profissional a
deliberar criticamente entre as alternativas várias, favorecendo-lhe a melhor escolha
(ação ética).
4.3 Os temas abordados
Estudos mostram que os conteúdos abordados na Bioética têm a pretensão
de formar médicos com competência técnica e humana, conforme se constata no
excerto a seguir.
O conteúdo da disciplina de Ética e Bioética da UECE tem base filosófica articulada com visões de mundo e comportamento em sociedade. Na UFC, a Ética vem contextualizada na evolução histórica e científica da Medicina, trabalhando a cidadania e a relação médico-paciente pelo enfoque da Bioética, visando a uma ação interdisciplinar. A dimensão da cidadania, em seu sentido mais amplo, configura o exercício dos direitos e deveres, ou seja, respeito à dignidade humana, fator indispensável a uma prática integral e focada nas necessidades sociais. (GOMES, MOURA e AMORIM, 2006, p. 61).
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 120
Se se trata de resposta à questão de aprender a ser, os autores defendem a
importância da formação integral do estudante.
Dantas e Souza (2008) realizaram uma revisão sistemática do assunto e
destacam alguns temas para o ensino da Ética, tal como foram levantados nos
artigos analisados: o consentimento esclarecido; a prestação de cuidados em saúde;
a confidencialidade e privacidade; qualidade de vida; futilidade terapêutica; morte e
final da vida; reprodução; aspectos práticos cotidianos do profissional e de equipe.
Ainda com respeito a conteúdos programáticos, destaca-se que, no Reino Unido,
havia uma fundamentação antropológica e filosófica antes da discussão de
problemas de natureza bioética, o que favorecia a sustentação teórica ao ensino.
Pessini e Barchifontaine (2000) apresentam uma lista de temas trabalhados
pelo Kennedy Institute of Bioethics, entre os quais figuram: fundamentação ética
filosófica, religiosa e aplicada; história da ética médica e da Bioética; filosofia da
Medicina e da Enfermagem; conceito de saúde; acesso à tecnologia; código de ética
profissional; relação profissional-paciente; consentimento informado;
confidencialidade; assistência à saúde; custo e distribuição de recursos; programas
de assistência à saúde específicos (idosos, crianças, incapacitados HIV, embriões e
fetos, dependentes químicos); sexualidade; contracepção; aborto; tecnologias
reprodutivas; genética, biologia molecular e microbiologia; qualidade ambiental;
experimentação humana; transplantes; a morte e o morrer; dimensão política e
internacional da Biologia e da Medicina (guerra, armas químicas, etc.) e direito dos
animais.
No Brasil, merece destaque Iniciação à Bioética, uma obra organizada pelo
Conselho Federal de Medicina, publicada em1998. Contextualiza o início da Bioética
e traz debate a respeito de alguns temas polêmicos, como o aborto, a ciência, a
reprodução assistida, o projeto genoma humano, transplantes, eutanásia e
distanásia, pesquisa, saúde pública e direitos humanos. Trata-se de temas, cuja
bem cuidada elaboração favorece ao leitor uma boa aproximação a respeito da
proposta da Bioética.
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 121
4.4 O ensino da Bioética
Em geral, tende a ser interdisciplinar a abordagem à Bioética, tendência que
se inaugurou em 1971 nos Estados Unidos, com a criação do Instituto Kennedy,
espalhou-se pelo mundo centros, institutos e departamentos acadêmicos
direcionados para a área de Bioética e do Biodireito. Desses centros participam
médicos, enfermeiros, dentistas, juristas, filósofos, historiadores, cientistas sociais,
antropólogos e profissionais da área das artes (DANTAS; SOUZA, 2008).
De qualquer forma, a disciplina que trata da Ética e da Bioética, além de
professores especialistas em Bioética – bioeticistas – deve contar com profissionais
de Filosofia, Antropologia e Sociologia para integrar a formação de médicos e
enfermeiros, dado que prescindem de outros conhecimentos além daqueles
técnicos, ou de base biológica. Não se quer significar aqui que não sejam eles
relevantes, senão que saber usá-los implica o conhecimento e o desenvolvimento de
atitudes de excelência moral, sobremaneira porque esses profissionais se inter-
relacionam e cuidam de pessoas atravessando momentos de fragilidade, de
vulnerabilidade.
O bioeticista, estudioso e especialista em Bioética, não pretende ensinar
filosofia. Ensiná-la á o filósofo, que, dentre outros recursos selecionará textos
adequados à formação humana do médico e do enfermeiro, assim como deve
ocorrer em relação ao sociólogo, antropólogo. Por sua vez, cabe ao bioeticista
conhecer algumas correntes filosóficas para entender o ser humano e suas relações,
propor métodos e desenvolvimento das potencialidades dos estudantes para a
eticidade e, nesse sentido elaborar situações e promover discussões
problematizadoras que tragam à realidade vivida pelo médico e enfermeiro a
possibilidade de refletir nas vicissitudes humanas.
Em estudo realizado por Siqueira, Sakai e Eiseli (2002), recomenda-se que o
docente da área de Ética deva ter vivência profissional, conhecimento cumulativo de
cultura humanística, de filosofia moral, das normas regulamentadoras da profissão e
história da Medicina. No desempenho da disciplina deve haver a presença de um
docente de elevada qualificação.
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 122
A Bioética entende que valores, de fato, influem nas decisões. Ao mesmo
tempo em que somos influenciados por valores adquiridos e consolidados, existirá a
possibilidade de contínuo questionamento dos valores estabelecidos, o que implica
maior ajuste das regras às situações novas. A Bioética propõe, então, que haja
oportunidade para desenvolvimento de reflexão crítica contínua das situações e que
se tomem decisões por meio de discussões em equipe, preferivelmente a composta
de ordem multiprofissional e multidisciplinar, para que as opiniões se
complementem, orientadas a que se abra um leque de possibilidades, em que se
analisem benefícios, riscos e consequências das escolhas efetivadas e porque as
decisões sejam mais adequadas.
Em muitos países surgiram pesquisas, centros e comitês de Bioética,
formados por especialistas de diversas áreas. Hoje, vários hospitais no mundo todo
fazem constar de seu corpo clínico profissionais especialistas em Ética, contratados
para cumprir o propósito de amparar seus clínicos em momentos em que urge uma
tomada de decisão em face de casos de tratamento complexo.
No Brasil criaram-se a Sociedade Brasileira de Bioética e alguns centros de
estudo e pesquisa. No entanto, tanto a disseminação quanto a valorização da
Bioética, pelo menos de forma mais perceptível, andam em passos lentos, mesmo
porque esta discussão anda na contramão de tudo o que está no ápice da sociedade
moderna: os interesses econômicos, a competitividade, o lucro, valores de mercado,
o capital, enfim. A Ética ocupa o mais alto grau de valor de uma sociedade: a própria
vida, as relações humanas, os sentimentos, a natureza e condição humana, o que
deveria ser de interesse de todos. Sintetiza bem a intenção da bioética no mundo
contemporâneo a proposta inicial de Potter: a preservação da vida, a
sustentabilidade do planeta Terra. Eis o que deveria prevalecer na orientação da
conduta humana.
Entre as características principais da Bioética, consta que ela deva ser livre
em seus propósitos. Por conseguinte, faz-se inadmissível uma doutrina que venha
se contrapor ou questionar seu valor como ambas – ciência e disciplina –, porque
discutem tudo quanto respeita à vida. Com efeito, toda e qualquer pessoa deveria
dela se informar, conhece-la, discutir suas matérias, não apenas colegiados de
médicos e de juízes. Está-se a exigir um posicionamento fundado em reflexão plural,
resultante de discussão intersubjetiva, para que, diante da complexidade da vida
humana contemporânea, se possa decidir responsavelmente em relação à própria
Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 123
vida na Terra e a todas as relações que nela estão insertas.
Nesse panorama, a Bioética passa a atuar, solicitando “o despertar de uma
nova consciência de ser, de um apurado sentido do humano, que se interroga pelo
‘que devo fazer?’ face ao ‘que posso fazer?’”3 (NEVES, 1996, p. 8), em virtude da
condição de o homem avançar progressivamente nas descobertas científicas e
tecnológicas, o que lhe aumenta as possibilidades de intervenção no curso da vida.
Ademais, devem-se considerar as novas situações, absolutamente inéditas, que
desafiam a hierarquia de valores estabelecidos, tanto para os médicos – que sabem
do que são capazes – quanto para os filósofos, que conhecem os princípios morais
da sociedade ocidental.
3 Foi a verdadeira "revolução biológica" desencadeada pela descoberta do DNA, por Crick e Watson, em 1953, que criou as
condições para o vertiginoso movimento de inovação tecnológica que se lhe seguiu e que foi pautado por grandes sucessos
em áreas diversas como: transplantes, reprodução, genética, ressuscitação, etc. Simultaneamente, em nível sócio-político, revigora-se o poderoso movimento dos direitos humanos, sobretudo durante as décadas de 60 e 70, com a contestação da guerra do Vietnã e o conseqüente desafio da "autoridade" instituída, e também com a luta pela igualdade de direitos entre brancos e pretos, entre homens e mulheres. Na confluência destes fatores encontramos a crise da noção de progresso como essencialmente positiva e a intensificação do questionar da ciência. É o despertar de uma nova consciência de se ser, de um apurado sentido do humano, que se interroga pelo "que devo fazer?" face ao "que posso fazer?".
CAPÍTULO 5
ÉTICA E EDUCAÇÃO
Capítulo 5. Ética e Educação 125
Em princípio, pretende-se buscar, na literatura, o papel da educação no
desenvolvimento do indivíduo, situando, posteriormente, a inserção de sua formação
ética configurada no âmbito da educação. Resgatam-se os parâmetros expostos por
Aristóteles na obra Ética a Nicômaco, no intento de refletir sobre o desenvolvimento
ético do indivíduo; trata-se aqui mais especificamente da formação ética dos
estudantes de Medicina e de Enfermagem. No contexto social, a educação cumpre o
propósito de transmitir conhecimentos e de desenvolver as potencialidades do
homem, ocupando o espaço não apenas quanto seu domínio sobre o mundo
material senão também a respeito de desenvolver a capacidade racional tomada no
seu sentido ético de orientar a relação do homem com o mundo: das circunstâncias
várias, não apenas instrumental, mas de desenvolvimento humano, qualificando-o à
autonomia e à evolução em sua busca de uma vida melhor, que não pode ser
alcançada senão pela efetivação do Bem.
Trata-se de resgatar como centro dos processos educativos a formação do
ser humano no âmbito da educação técnico-profissional, não sob o domínio
exclusivo do mercado. Com efeito, urge uma formação humana efetivamente
democrática e solidária.
Para tanto, passe-se a exigir do sujeito mais do que conhecimentos e
técnicas, mobilizando também aspectos de sua própria subjetividade, alcançando e
desenvolvendo-lhe integralmente as competências, o que inclui habilidades
cognitivas, afetivas sociopolíticas, psicomotoras, interpessoais e morais em que se
ancorar para o domínio do mundo real. Além dos saberes, faz-se imprescindível ao
homem saber conviver, refletir acerca das razões e consequências de suas ações
para decidir correta e sabiamente.
De fato, a Ética sempre permeou e se fez presente, manifesta no propósito da
educação humana de formar integralmente a pessoa, provendo-o do necessário
conhecimento teórico e prático – este último se constituindo campo específico de
contribuição da Ética. Pensar educação é pensar formação ética.
Capítulo 5. Ética e Educação 126
5.1 A Educação como formação integral do homem
Para entender a modernidade e, consequentemente, nosso fazer
contemporâneo, deve-se buscar compreender a história da educação. Desde a
antiguidade, na pedagogia da educação ocidental, estão inscritos modelos de
família, Estado e escola, que se amalgamam, resultando daí um riquíssimo tecido da
educação, que, mesmo sistematizada em teorias diversas, não abandonou o ideário
de formação humana, que engloba cultura e universalização da individualidade
(CAMBI, 1999).
A educação destinada ao desenvolvimento integral do homem, considerando
todas as suas potencialidades, tem sempre como referência a Antiga Grécia, berço
da Filosofia que influenciou a cultura europeia ocidental, sem que se negligencie,
contudo, o pensamento e o conhecimento oriental que vêm de longa data. Na
Grécia, inaugura-se um novo modo de pensar distinto daquele pertinente à era
mítica, e de onde decorreu a racionalidade crítica. Os filósofos gregos
empreenderam indagações e desenvolveram raciocínios matemáticos acerca da
natureza, estabelecendo as bases para se constituírem posteriormente a Ciência, a
Política, a Ética, a Técnica e a Arte (CHAUÍ, 1998).
A paidéia evidencia a verdadeira noção de formação integral do homem
grego. A educação dos jovens nobres se propunha a atingir a perfeição do corpo e
do espírito. “A paidéia era a educação como formação cultural completa e sua
finalidade era a realização, em cada um, da areté, a excelência das qualidades
físicas e psíquicas para o perfeito cumprimento dos valores da sociedade” (CHAUÍ,
2002, p. 156). Em Atenas, julgava-se que a polis, além dos guerreiros, necessitava
igualmente de bons cidadãos, o que incluía ao respeito às leis e a participação nas
atividades políticas.
Segundo Chauí, conquanto durante séculos tivessem sido interpretados
pejorativamente, os sofistas se consagraram mestres da arte da educação do
cidadão e os primeiros professores a receberem pagamento, fato que seus inimigos
não perdoavam. Os gregos empregavam a palavra sophistés com a noção de
Capítulo 5. Ética e Educação 127
ensino, ou da prática de ensinar um saber: sophós: era aquele que possuía saber
relacionado a uma utilidade da prática. Posteriormente, ganhou diferente sentido,
passando a designar o sábio contemplativo, teórico.
A história da pedagogia tal como é concebida na sociedade moderna, posto
que perpassasse as influências teocêntricas da Idade Média – época em que tudo
se concentrava em torno do cristianismo –, evidencia que sempre houve a
preocupação de formar técnicos e cidadãos. Nasceu como história ideologicamente
orientada, com ênfase na teoria e de certo modo distanciada da realidade social.
Nas diversas sociedades, a educação real poderia estar disposta remotamente das
contribuições científicas, sobretudo as das ciências humanas, manifestando, dessa
forma, o distanciamento das teorias pertinentes a práticas educativas.
A modernidade marcou-se de muitas mudanças em vários âmbitos:
geográfico, econômico, político, social, ideológico, cultural, inclusive pedagógico, o
que depositou na ciência e na razão toda a confiança, provocando transformações
do ponto de vista cultural-ideológico, de laicização e de racionalização. Decorreu daí
uma revolução na educação.
O mundo moderno centraliza seu interesse na eficiência do trabalho e no
controle social, marcado pelas relações sociais. Recupera-se a inspiração da
Antiguidade, com um novo modelo, mas destinado a um indivíduo ativo na
sociedade.
Kant, leitor dos antigos gregos, foi reconhecidamente um grande pensador
que influenciou os tempos modernos. Escreveu textos a respeito da filosofia moral,
empreendeu trabalhos sobre ciência física e matemática e sobre a educação. A esse
respeito, mostra que a educação é condição para a possibilidade de uma vida ética.
Para que os homens se tornem morais e sábios, portanto felizes, é preciso que
sejam educados (OLIVEIRA, 2004).
A educação para Kant é o maior e o mais árduo problema a ser proposto aos
homens. O dever do homem é tornar-se melhor, educando-se. Se é mau, deve
produzir em si a moralidade. Assevera o autor: eis por que a educação é o mais
árduo problema proposto aos homens. Os homens são ensinados por outros
homens, e o conhecimento é passado de geração em geração. Para ele, essa é a
esperança de alcançar o desenvolvimento racional e moral do homem. Kant afirma
que a educação deve ser dirigida de modo a melhorar aquilo que gerações
anteriores já obtiveram. Esse procedimento apenas se possibilita por meio do
Capítulo 5. Ética e Educação 128
raciocínio, ou melhor, de uma intenção raciocinada. Nesse sentido, declara: “É
preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange à arte da
educação; de outro modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e uma
geração poderia destruir tudo o que uma outra anterior teria edificado.” (KANT, 1996,
p. 22).
A formação do homem, conforme concebeu Kant, compreende a disciplina e a
instrução. A disciplina o exclui da animalidade: “O homem não pode tornar-se um
verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” E
completa, concluindo: “Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos
homens os torna mestres muito ruins de seus educandos” (KANT, 1996, p. 15). Há
uma associação explícita da necessidade de se refletir a educação como formação
integral. Por conseguinte, a formação de cada pessoa deve constituir-se fonte de
bem, deve ser bem orientada, o que depende do esforço conjunto de pessoas que
pensem, planejem para organizar as escolas, e dos professores que são os mestres:
“[...] pessoas dotadas de generosas inclinações, as quais se interessam pelo bem da
sociedade e estão aptas para conceber como possível um estado de coisas melhor
no futuro.” (KANT, 1996, p. 25).
A noção de desenvolvimento racional, técnico do homem integra-se à sua
capacidade moral para agir, desenvolvendo as suas habilidades e competências na
condição de ser relacional e ético que interage com o mundo, faz escolhas
conscientes e é por elas responsável.
A educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino. A providência quis que o homem extraísse de si mesmo o bem e, por assim dizer, assim lhe fala: ‘entra no mundo. Coloquei em ti toda espécie de disposições para o bem. Agora compete somente a ti desenvolvê-las e a tua felicidade ou a infelicidade depende de ti’. (KANT, 1996, p. 19).
Para ser educado, primeiramente o homem submete-se a regras e,
gradativamente, se torna capaz de discernir e julgar por si, numa fase onde se lhe é
permitido usar a reflexão e a liberdade. Kant defende que essas regras são
Capítulo 5. Ética e Educação 129
colocadas num patamar essencial, porquanto em todo momento orientam
automaticamente a ação do homem num primeiro período da vida, ou moralmente,
no segundo. Na escola, a atitude é orientada pelo professor; na vida, pelo
governante, que tem nas leis um guia para a vida humana.
À escola, cabe inclusive corrigir os defeitos que eventualmente possam advir
do âmbito familiar, razão por que a educação pública, para Kant, pode ser ainda
mais vantajosa do que a doméstica, uma vez que reúne informações e a moral.
Kant (1996, p. 23) argumenta que deve haver planejamento na educação
pensando-se no futuro e não no estado imediato ou do presente da humanidade.
Aqui se reconhece um pressuposto ético relevante que o próprio autor enfatiza:
“Este princípio é da máxima importância.” Explicita dois obstáculos para a educação,
que parecem muito próximos das dificuldades também vivenciadas nos dias
contemporâneos:
De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor no futuro. Mas aqui se deparam dois obstáculos: 1) Os pais não se preocupam ordinariamente senão de uma coisa, isto é, que seus filhos façam uma boa figura no mundo; 2) os príncipes consideram os próprios súditos apenas como instrumento para os seus propósitos. (KANT, 1996, p. 23).
Kant sustenta que o bem geral, conquanto pareça sacrificar o bem particular,
contribui sobremaneira para melhorar o estado presente e que “Uma boa educação
é justamente a fonte de todo bem nesse mundo.” (KANT, 1996, p. 23), visto que a
educação ensina e desenvolve, no homem, as suas disposições naturais. De uma
educação mal resolvida e conduzida apenas decorrem em efeitos nocivos à
sociedade, como se vê nesta passagem:
O homem deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposições, para o bem, a providência não as colocou nele prontas; são simples disposições, sem a marca distintiva da moral. Torna-se melhor, educar-se e, se é mau, produzir em si a moralidade: eis o dever do homem. Desde que se reflita detidamente a respeito, vê-se o quanto é difícil. (KANT, 1996, p. 15).
Capítulo 5. Ética e Educação 130
Segundo Cambi (1999), nos primeiros anos do que se denominou
modernidade, os fins da educação destinavam-se ao homem livre e ativo na
sociedade. Simultaneamente à pedagogia da ciência nasce uma pedagogia social,
com a função de formar o homem-cidadão. A pedagogia e a educação se delineiam
como saber e como práxis, para responder a esse novo homem e às relações e
sistemas que daí decorreram. O homem passa, então, a ser estudado analítica e
experimentalmente nas suas capacidades de aprender e nas formas de crescimento
físico, moral e social.
A modernidade imprimiu nova direção à História. Deixando-se guiar pela ideia
de liberdade, o homem rompeu os modelos de sociedades para instituir novos
modelos, cujo eixo se deslocou do indivíduo e avançou nas relações capitalistas,
reforçando a centralidade no trabalho e no controle social, entretanto, sob constante
ação das elites dirigentes. As instituições educativas eram dirigidas pelo Estado,
cujo propósito era formar os jovens – os adultos da geração seguinte –, objetivando
um modelo de eficiência e produtividade, além de neles moldar a docilidade político-
ideológica. De fato, a expansão vertiginosa da indústria estava a exigir um novo tipo
de trabalhador, já não bastando que fosse ele altruísta, benevolente, embora essas
virtudes continuassem sendo necessárias. Desde bem cedo, ainda na infância,
tornou-se imperioso “modelar” esse tipo de indivíduo de acordo com a necessidade
da nova ordem capitalista e industrial, atendendo às novas relações de produção e
aos novos processos de trabalho.
Por conseguinte, as escolas passaram a assumir a responsabilidade não
apenas de socialização e informação senão também de transmissão do “saber fazer”
– o conhecimento técnico, visando formar trabalhadores. Emergiram as profissões
modernas, divididas entre trabalho manual e intelectual e hierarquizadas
socialmente de acordo com as classes a que se destinavam.
Em decorrência dessa nova ordem social, os processos educativos
determinados pelo desenvolvimento tecnológico e científico marcaram-se de
tendências paradoxais: conformação e liberação; emancipação e controle;
produtividade e livre formação humana, entre outras. E dessa conjuntura, partiu o
trabalho da Pedagogia e a Educação contemporânea.
Cambi (1999) declara que o século XX caracterizou-se pela afirmação do
capitalismo, pela ascensão e declínio do comunismo e, por muito tempo, do
confronto entre a democracia e o totalitarismo. Em meio a sociedades díspares,
Capítulo 5. Ética e Educação 131
umas avançando econômica e socialmente e outras em profunda crise de
identidade, a escola constituiu-se um dos canais de conformação compulsória e
artificial, tornando-se centro de reprodução de ideologias. Em relação ao
comportamento, o homem fixou-se no presente, tornou-se hedonista e homem-
massa, guiado pela opinião da maioria, pelo consumo, pela acumulação de bens,
experiências e relações:
Antes de tudo, exacerbou-se o individualismo. Depois, cresceu o hedonismo. Por fim, dilatou-se a influência da massa. O sujeito faz cada vez mais referência a si próprio e às suas necessidades/interesse, segue a ética do prazer e da afirmação de si, envolvendo-se em comportamentos cada vez mais narcisistas. [...] Toda a ética perde as conotações de responsabilidade e de uniformidade a uma lei, para assumir cada vez mais características narcisistas e subjetivas. [...] assume um estilo de vida cada vez mais padronizado. (CAMBI, 1999, p. 510-11).
Fundamentando-se em Weber, Carvalho (2004, p. 282-283) considera que
houve um desencantamento em relação à racionalidade, embora o mundo moderno
tenha dado à luz muitos benefícios por meio da afirmação da Razão. Não obstante,
por outro lado, provocou, no homem, a perda de sentido, porquanto pareceu revelar-
se uma racionalidade destrutiva, “[...] o mundo moderno perdeu o seu signum, ou
seja, não há um progresso em direção ao melhor [...] O mundo reificado produziu
pessoas que se tornaram especialistas sem espírito e hedonistas sem coração.” Eis
como julgou Max Weber o processo de racionalidade no mundo moderno,
procurando entender o quanto um possível irracionalismo influiu no estilo de vida do
homem, em sua conduta ética, a ponto de que, caso não houvesse uma
remodelagem do mundo, poder-se-ia dizer que o capitalismo teria se tornado sua
própria religião.
Capítulo 5. Ética e Educação 132
Carvalho (2008) pormenoriza a caracterização dessa época que transcorreu
sob o jugo dos interesses capitalistas:
O surgimento do cálculo racional dos custos da produção, a institucionalização do trabalho assalariado, o aparecimento de uma nova maneira de pensar e de agir que favorecia o processo de acumulação e a contínua incorporação da ciência e da técnica ao processo produtivo, como também a modificação do Estado, que passou a se organizar com base num sistema tributário centralizado, num poder militar permanente, no monopólio da legislação e da violência e, principalmente, numa administração burocrática racional, são os outros elementos que manifestariam a racionalidade instaurada no mundo ocidental moderno. (CARVALHO, 2008, p. 2).
Em meio a essas mudanças radicais, a educação sofreu as consequências da
massificação da vida social, do estado de conformismo passivo ante o domínio do
capitalismo. Instala-se a tendência gregária entre os homens que sentem prazer na
companhia de outrem, mas destituídos da consciência de uma organização bem
definida, perdem o sentido da vida, da razão de existirem, se conformam às
circunstâncias. Homens solitários na multidão compuseram uma espécie de
sociedade igualmente vazia de significado, que, por sua vez, enfraqueceu a própria
cultura – marginalizada em relação às novas entidades ideológicas e tecnológicas. O
novo processo de socialização incluiu o mundo do trabalho, e as fábricas abrem-se
recrutando novos protagonistas – a mulher e a criança. Ante esse processo,
constata-se que “A prática educativa voltou-se para um sujeito humano novo.”
(CAMBI, 1999, p. 512).
À escola, confiou-se a formação humana, agora composta de elementos
teórico-científicos e sociológicos para atender a novas políticas educativas e
metodológicas. Ideias, valores intencionais, conhecimentos, técnicas articulam-se
para provocar os efeitos esperados que se conformassem àquele tipo de sociedade.
Em alguns momentos alternava-se a ênfase num ou noutro desses aspectos.
Mudanças científico-tecnológicas e suas consequências de ordem ideológica
com respeito a valores e costumes refletiram-se na educação familiar e escolar.
Concorda-se com Aranha (1996, p. 19) quando assevera que, ao se estudar a
educação, deve-se fazê-lo considerando o seu contexto histórico geral, não apenas
traçando um paralelo entre fatos da educação e os da sociedade, respectivamente :
Capítulo 5. Ética e Educação 133
“[...] as questões da educação são engendradas nas relações que os homens
estabelecem ao produzir a sua existência. Nesse sentido a educação não é um
fenômeno neutro, mas sofre os efeitos da ideologia, por estar de fato envolvida na
política.”
Corroborando essa ideia, Saviani (1996) declara que a educação é um ato
político, e que não está divorciada das características da sociedade, servindo a
interesses antagônicos numa sociedade dividida em classes. A educação visa à
promoção do homem, o que significa torná-lo cada vez mais capaz de conhecer,
intervir e transformar a sua realidade, no sentido de ampliar a liberdade, a
comunicação e a colaboração entre os homens. Situado no meio natural e cultural, o
homem possui capacidades e as utiliza para transformar a natureza e também poder
exercê-las com, entre ou sobre outros homens. Na medida em que o homem existe
socialmente, esse aspecto relacional com outros homens pode ser marcado de
dominância, ou exercido na relação horizontal entre eles, de tal forma que há
reconhecimento igualitário do outro, estabelecendo o regime de cooperação ou
colaboração. Ademais, há ainda a considerar que a educação satisfaça uma
necessidade de natureza prática. Trata-se da assim denominada educação para a
subsistência, ou, conforme Saviani a designa, educação para o desenvolvimento –
terminologia mais adequada se pertinente ao homem brasileiro.
Segundo Cabreira (2001), na década de 60, em decorrência do golpe militar
de 1964, os professores se viram obrigados a pregar um nacionalismo exagerado,
promovendo uma ideologia instalada, o que incide contrariamente sobre todo e
qualquer processo educativo. A escola e a educação passaram a ser vigiadas. Na
década de 70, o propósito do ensino era profissionalizar os trabalhadores, uma vez
que o ritmo de urbanização se exacerbava, visando a uma política neoliberal. Com
efeito, isso coincide com o objetivo da LDB 5692/71 – dar cabo das novas
exigências de um país que necessitava de mão de obra qualificada. De qualquer
forma, procede o consenso de que a qualificação para a produção “[...] propiciou a
desqualificação do ensino, oferecendo ensino profissionalizante aos pobres e
intelectual aos ricos." (CABREIRA, 2001, p. 77).
Na década de 80, houve uma abertura política que favoreceu a possibilidade
de refletir a respeito de novos modelos educacionais “que pensassem a educação
enquanto processo e pressuposto do exercício da cidadania.” (CABREIRA, 2001,
p.23).
Capítulo 5. Ética e Educação 134
A abertura política instalada pela democracia permitiu reformas no plano
educacional, ratificadas na elaboração da Constituição Federal de 1988 e da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Assegurou-se, desse modo,
a responsabilidade conjunta dos governos federal, estaduais e municipais de se
estabelecerem diretrizes com que nortear os currículos e conteúdos mínimos na
formação básica, propostas pelo Ministério da Educação e deliberada pelo Conselho
Nacional de Educação (CNE). A primeira versão dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) ficou pronta em 1996, dada a conhecer um ano depois, sem,
contudo, revestir-se de caráter obrigatório.
O Parecer nº 4/98 da CEB e a Resolução nº 2 de 1998 propõem sete
diretrizes como referência para a organização do currículo escolar. Importa ressaltar
que o documento estabelece que as ações pedagógicas devam fundamentar-se em
princípios éticos, políticos e estéticos, além de se identificarem alguns princípios
complementares, como autonomia, responsabilidade e solidariedade, relacionados à
cidadania e à vida democrática.
Um dos aspectos mais inovadores do documento refere-se à “vida cidadã” e
evocam os temas transversais propostos pelos PCNs, sem que se faça, no entanto,
qualquer referência explícita a eles. “Nesta diretriz, fica evidente a lógica da mútua
omissão que tomou conta dos atores políticos do CNE.” (BONAMINO; MARTÍNEZ,
2002, p. 375).
Nas orientações emanadas dos órgãos responsáveis pela qualidade do
ensino no país, há preocupação com a formação integral do ser humano, desde o
ensino fundamental até à graduação. Evidencia-se o interesse pelo desenvolvimento
do homem e por seus direitos de informar-se e formar-se, para, como cidadão,
participar ativamente na sociedade.
Logo em sua introdução, os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais, datado
de 1997, destinados ao Ensino Fundamental definem que um de seus objetivos
constitui-se em possibilitar às crianças o domínio ativo de conhecimentos
necessários com que possam empreender a conquista de sua cidadania, a ponto de
se tornarem cientes de seu ser e estar na sociedade.
Para isso, dentre outras reflexões a respeito do processo ensino-
aprendizagem de competências gerais a serem objetivadas no encontro do PENSAR
E FAZER próprios do trabalho escolar, o referido documento propõe questões de
natureza ética relativas à igualdade de direitos, à dignidade do ser humano e à
Capítulo 5. Ética e Educação 135
interação solidária entre os homens. Com efeito, é absolutamente isso que, no
âmbito da Ética, se espera do homem – ser racional e capaz de se desenvolver,
evoluir como Pessoa, decidindo, agindo e interagindo de modo sensato e
satisfatório. Nesse sentido, é incontestável a importância atribuída à formação
humana por quem a dirige, orienta, efetiva.
O propósito da Secretaria de Educação e do Desporto, ao consolidar os
Parâmetros Curriculares, constitui-se em apontar metas de qualidade que
contribuam para o aluno interagir no mundo atual como “cidadão participativo,
reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres.” (BRASIL, 1997, p. 4).
Na universidade, especificamente nos cursos de Medicina e de Enfermagem,
houve transformações nos direcionamentos visando à formação desses
profissionais. Tem-se enfatizado a formação voltada para à prática em se tratando
de saúde, de forma a abranger as necessidades tanto das pessoas quanto da
população. Isso implica compreender melhor o modo de ser e de viver das pessoas
à luz de uma perspectiva mais totalitária, que aborde integralmente às ações de
saúde, ou seja, considerando as dimensões psíquica, social e biológica na vida da
pessoa.
Ora, tal proposta educativa se distancia e, até certo ponto, se opõe àquela de
Flexner, que resultou numa prática que toma por parâmetro queixas e sintomas
isolados numa dimensão biológica exclusiva, mas que seja resultado de
entendimento humanizado e de sua consequente ação no sentido de promover a
qualidade de vida e de saúde para pessoas em geral.
Conforme a define a Organização Mundial de Saúde (OMS), e é hoje
entendida pelos profissionais da área, saúde não mais significa apenas a ausência
de doença, senão um estado para o qual convergem e contribuem diversos fatores
favoráveis à vida digna do ser humano: família, moradia, trabalho, lazer, educação e
cultura, transporte, infraestrutura, ambiente, segurança etc. A saúde é, portanto
bastante complexa.
Para que se satisfaçam todos esses aspectos compreendidos na nova
concepção de saúde, faz-se imprescindível que se melhore a relação profissional-
paciente, uma vez que esta tem se revelado demasiadamente mecanicista e
instrumental. Urge resgatar a humanidade dessa relação, porque se desvelem as
necessidades, de tal forma que os profissionais possam atuar segundo esse ideal -
Capítulo 5. Ética e Educação 136
promoção à saúde. Não se pode perder de vista a busca de uma forma de beneficiar
as pessoas experenciando uma situação de vulnerabilidade.
Se, de um lado, a melhoria na assistência à saúde das pessoas depende de
condições mais amplamente palpáveis, como o acesso a serviços, o ambiente físico
mais adequado ao atendimento, às tecnologias existentes de diagnóstico e
tratamento, de outro lado, carecem de mudanças na relação que o profissional
estabelece com o paciente, o que se evidencia nos PCNs atuais e deve ser
concretizado na formação dos profissionais de saúde.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais vigentes relativos aos Cursos de
Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição, aprovados em 2001, ancoraram-
se em vários documentos, entre os quais a Constituição Federal de 1988 e a Lei
Orgânica do Sistema Único de Saúde nº 8.080 de 19/9/1990, assim como os quatro
pilares para a Educação no século XXI, conforme se observa a seguir. Consideram-
se a garantia aos direitos do cidadão em relação à saúde, o modo como o
profissional deva ser preparado para atender às demandas, levando em conta o
modo de vida da população, sua história, as necessidades individuais e coletivas.
Editado em 1998 pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO), o relatório Delors foi elaborado pela Comissão
Internacional para Educação no Século XXI. Recomenda para o cumprimento das
missões da Educação no século XXI, uma combinação flexível de quatro
aprendizagens fundamentais, que se fizeram conhecer como os quatro pilares da
Educação: aprender a SABER (conhecer); aprender a FAZER (práxis); aprender a
CONVIVER e aprender a SER. Esse último patamar apresenta-se como via
essencial que, além de integrar os pilares anteriores, apenas o atinge e culmina
aquele que cumpriu o percurso da aprendizagem nos outros três com competência e
excelência no desempenho de sua função. O relatório dedica especial atenção ao
desenvolvimento, no proceder humano, da imprescindível complacência no trato
com o semelhante, compreendendo-o para dirimir-lhe conflitos e reconhecer a
interdependência entre os seres humanos (DELORS, 2010).
Os Parâmetros Curriculares assumem a perspectiva de assegurar a
flexibilidade, a diversidade e a qualidade da formação oferecida aos estudantes.
Orientam no sentido de que os currículos não se perpetuem imobilizados,
inoperantes e radicalizados como meros instrumentos de transmissão de
conhecimentos. Ao contrário, articulam-se flexivelmente, porque o graduado esteja
Capítulo 5. Ética e Educação 137
preparado “para enfrentar os desafios das rápidas transformações da sociedade, do
mercado de trabalho e das condições de exercício profissional.” (BRASIL, 1997, p.
1).
Segundo os Parâmetros Curriculares, define-se e se classifica o Enfermeiro
como o profissional com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva,
qualificado para o exercício de Enfermagem, assegurando-se no rigor científico e
intelectual e pautando-se em princípios éticos. Seja ele capaz de conhecê-los e de
intervir nos problemas/situações de saúde-doença prevalentes, de acordo com o
perfil epidemiológico nacional, e relativos à sua região de atuação, identificando as
dimensões biopsicossociais de seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso
de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da
saúde integral do ser humano.
Aponta-se para a formação do profissional Médico, com formação generalista,
humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no
processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de
promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da
integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso
com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.
Portanto, o texto dos Parâmetros curriculares, no que concerne à
classificação das profissões da área da saúde, corrobora que, de fato, ao par da
necessidade de integrar conhecimentos para a formação de um profissional, porque
ele exercite sua função com competência técnica, absolutamente há que se
considerar a sua formação humanista, capacitando-o a compreender os problemas e
necessidades do paciente e a tomar decisões acertadas em seu benefício.
As Diretrizes Curriculares Nacionais manifestam-se a respeito da formação
integral da pessoa, quando consideram o preparo do indivíduo para o exercício da
cidadania e a valorização da conduta pautada em princípios éticos, de forma que
passou a constituir uma questão de interesse público (CARVALHO, 2010). Para que
a formação vá além do desenvolvimento de habilidades práticas e o do ensino de
conhecimentos científicos, faz-se necessário que conhecimentos e habilidades
sejam bem utilizados.
Venturelli (1997) declara que a educação que se dá na escola deve ser
também extramural, no sentido de se atingir o que se pretende em termos de
autonomia da pessoa e que a formação do estudante deve colocá-lo como um
Capítulo 5. Ética e Educação 138
sujeito ativo da aprendizagem. Ademais, prevê que os estudantes dos fins do século
XX estariam exercendo a profissão até o ano de 2040; por isso, o sistema
educacional deve assegurar-lhes destreza, estimular atitudes, provê-los de um
pensamento crítico.
Esta década bien puede ser llamada una década en la que los valores mercenarios intentan determinarlo todo: privatizar y transformarlo todo en actividades donde el lucro pase a ser lo central. Y eso se refleja en educación, salud, programas sociales, etc. ...Vivimos un ciclo donde se desarrolla una cresciente falta de respeto hacia el ser humano. En este contexto, se hace doblemente importante la necesidad de mirar a la salud y al proceso de formación profesional que debe enfrentar ese desafío. Lo queramos o no, la duración de este tipo de períodos en la historia tiene derecta relación con la actitud que todos nosotros tengamos. Las profesiones de la salud son unas de las más directamente tocadas y el desafío mencionado es para ellas aun más apremiante. (VENTURELLI, 1997, p.3).
La vida entera es un constante proceso de aprendizage y, por ello, también una contribución al progreso y a las modificaciones de una realidad que las requiere. De eso modo, no podemos pretender que el período intramural universitario permitirá entregar “toda la información” existente. (VENTURELLI, 1997, p. 32).
Ceccim e Feuerwerker (2004) têm feito reflexões a respeito da necessidade
de retomada de formação humanística na área da saúde, para que o projeto iniciado
na Reforma Sanitária na década de 70 possa se efetivar na prática. Com efeito, sem
formação integral dos profissionais, o propósito de melhorar a assistência à
população tende ao fracasso. Os autores discorrem acerca de um projeto educativo
que extrapola a educação e propõe a revisão e formulação de uma política pública
para educação de profissionais, que contribuam para a saúde da população.
Os autores reforçam a importância de avançar nas propostas do movimento
da Reforma Sanitária, bem como na concretização do Sistema Único de Saúde
(SUS). Por sua vez, esse sistema deve cumprir um papel indutor no sentido de
mudança, inclusive na formação profissional, propondo uma articulação intencional
entre as várias esferas de gestão do sistema de saúde e as instituições formadoras.
Isso seria uma ação estratégica no sentido de provocar uma transformação na
organização dos serviços e na formação de profissionais.
Capítulo 5. Ética e Educação 139
Quanto ao setor de ensino, os autores afirmam que é necessária e urgente
uma reforma que expresse o atendimento aos interesses públicos, referindo-se a
uma formação acadêmico-científica, ética e humanística para o desenvolvimento
técnico-profissional que preencha as expectativas.
O Ministério da Educação e da Saúde tem dispensado esforços por
desenvolver a competência do profissional e o fortalecimento do processo de
formação, traduzidos em algumas iniciativas: programas de interiorização do
trabalho em Saúde (Pits); Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de
Medicina (Promed); Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional
em Saúde (Pró-Saúde) e capacitação de recursos humanos por meio do Programa
de Educação pelo Trabalho para a Saúde (Pet-Saúde).
A elaboração teórica da educação está sempre articulada às ciências e
ideologias (religiosas, políticas e culturais), uma intersecção do cognitivo voltado
para o domínio do real e a descoberta de seus fundamentos, inclusive o dos
comportamentos.
CAMBI (1999) declara que a História da Educação é um depositório de muitas
histórias, dotadas de autonomia, mas dialeticamente interligadas e interagentes: das
teorias e da história social, entendida como história do costume e de algumas figuras
sociais, como história das culturas e das mentalidades. O autor propõe relações de
simbiose entre o âmbito das teorias: representado pela Filosofia e a Pedagogia.
Trata-se de uma colaboração entre os dois saberes, em que a função crítica e
projetiva exercida pela Filosofia da Educação indica modelos e ideias. Urge que a
intenção afirmada nos parâmetros educacionais e programas governamentais de
incentivo à Educação, na área da Saúde se insiram e efetivem na escola, por meio
de conteúdos, reflexão e discussões interdisciplinares em favor do desenvolvimento
humano, consolidando-as na prática profissional e cotidiana.
É expectativa desejável que a universidade se organize de forma a cumprir
sua função de desenvolver consciência crítica ante as ideologias e posturas
contraditórias existentes na sociedade, opondo a elas pesquisas, técnicas e
procedimentos que se revertam em benefícios das pessoas. Essa meta não será
alçada, senão pela formação de profissionais igualmente críticos, que não se deixem
conduzir por modismos efêmeros e pela tecnicidade exacerbada.
Voltar-se para a associação do conhecimento técnico ao humano, para o
reconhecimento dos limites do saber teórico-científico é atitude louvável a ser
Capítulo 5. Ética e Educação 140
esperar da universidade. Nesse sentido, o estudante passa a não apenas aprender
técnicas necessárias ao atendimento em saúde, senão também, conhecer seus
limites e respeitá-los. Faz-se urgente que se questione posturas e condutas,
modifique-as quando errôneas, humanize sua ação, destinando-se a compreender a
dimensão psicossocial do paciente – ou de qualquer pessoa que busque orientação
ou tratamento –, de modo que, de fato, ele possa ser ajudado com respeito.
Ademais, complacência e respeito são procederes dignos esperados do
graduando ou do profissional que não se utiliza do saber como poder e domínio
sobre as outras pessoas, em geral, ou sobre seus pares. Ao contrário, sabe ele
reconhecer o quanto pode aprender com o outro, decidindo junto, no diálogo com a
equipe, com colegas, mesmo no trato com pacientes. Com efeito, ocorre muita
aprendizagem na relação interpessoal, de onde advém segurança e consciência
para promover a tomada de decisão sensata, e melhorar, consequentemente o
curso da ação/interação transformadora da realidade.
Absolutamente, não se pode prescindir dessa compreensão do mundo e de
seu papel de agente na sociedade quando se pretende a formação otimizada do
Profissional de Saúde, como constataram Ceccim e Feuerwerker (2004, p 51) : “é
preciso haver mudanças nas relações, nos processos, nos atos em saúde e,
principalmente, nas pessoas.”
Para Morin (2000), a educação deve promover a transformação da
informação em conhecimento, e esse, por sua vez, opere a transformação em
sapiência, de modo que modifique o sujeito e o prepare para a vida, por meio de
questionamento, problematização, interligando os conhecimentos.
A chamada pós-modernidade marca-se de complexidade, de pluralismo e
divergências de ideias, o que é próprio da estrutura da mesma modernidade, que se
faz representar por acentuada luta de classes sociais e pelo complexo
desenvolvimento tecnológico e científico (CAMBI, 1999).
Posto que muitos esforços se manifestem à tona nos incentivos e subsídios
do Estado, nas preocupações dos docentes e estudiosos da Educação e da
Filosofia, a dificuldade em se solucionar problemas e impasses advindos de uma
situação de crise permanece, visto que se trata de orientação e trabalho de pessoas
e concepções diferentes para pessoas e concepções desiguais. Entende-se bem do
que aqui se fala quando se dispõe a trabalhar em grupo, onde há composição
heterogênea de pessoas. De fato, conquanto seja meta desejável e necessária ao
Capítulo 5. Ética e Educação 141
processo ensino-aprendizagem, a tentativa de um trabalho interdisciplinar da
educação, revela-se extremamente difícil e custosa, demandando, para quem decide
adotar uma compreensão da ética nas relações, muito empenho, paciência e
competência. Aí tangem as relações humanas e ficam explícitos os problemas. Não
obstante, também aí se estampam os desafios a serem transpostos quando toma a
Educação sob sua responsabilidade, num esforço conjunto para aperfeiçoar ambas
– a formação e as próprias relações humanas.
A educação reveste-se de um cunho ético que lhe é inerente, depende, pois,
de desenvolvimento individual ancorado nas transformações sociais, ademais
preservando o caráter humano naquilo que foi construído e por aquilo que há de vir.
5.2 A formação ética
No que diz respeito à formação do médico e do enfermeiro considera-se a
intrínseca relação da Ética e da Educação. Embora tenha ocorrido mudanças na
atuação daqueles sob os impactos das grandes transformações sociais não há nada
que seja mais importante que a orientação para boa formação do caráter de uma
pessoa. No que diz respeito a ação voltada para o Bem, não se encontra isolada na
ação do homem no mundo ou no trabalho, confirmando-se, pois a mesma
importância da formação do homem e da formação profissional. À escola cabe
refletir e encontrar caminhos para a educação, no sentido de formar pessoas boas
que desempenhem bem a sua função como ser humano, não apenas exibindo
capacidade técnica profissional. A atuação profissional exige decisões em sua boa
realização: um bom profissional é antes de tudo um homem bom.
Neste estudo, argumenta-se que o jovem em formação prescinde de um
ambiente organizado coerentemente e orientação constante na prática, porque se
habitue a tomar decisões de certa forma que suas ações futuras sejam virtuosas,
racionalizadas e deliberadas com sabedoria no âmbito particular da escolha, como é
o intuito da Ética, em função do bem geral, no entanto.
Na ética aristotélica, encontra-se fundamentação para o que se considera
necessário na formação de profissionais médicos e enfermeiros. Destacamos como
Capítulo 5. Ética e Educação 142
fundamental, na Ética a Nicômaco, a afirmação de Aristóteles: o homem deve se
deixar orientar desde tenra idade, porque venha a adquirir disposição para agir
virtuosamente, e proceder a escolhas acertadas. Adquire-se essa disposição pelo
hábito e se prolonga na constância do propósito de agir bem e encontrar a melhor
das opções pelo uso da Razão – que se encontra no justo meio – próprio do homem
virtuoso.
Uma educação orientada por tutores, sejam eles os pais, sejam professores,
legisladores, por meio de regras, princípios e leis, orientam o indivíduo que vive em
comunidade. Acredita o filósofo que o jovem ainda em formação não adquiriu
experiências suficientes para deliberar bem frente às situações inusitadas, antes da
tomada de decisão. Nesse sentido, argumenta-se que o jovem em formação precisa
de um ambiente organizado com tal preocupação, preparando-o de modo que suas
ações futuras sejam virtuosas, racionalizadas e deliberadas com sabedoria em
função de um bem particular e geral, o que, aliás, concordante o intento da Ética.
A seguir, passa-se a considerar a formação ética, explicitando-a à luz do que
entendem os autores atuais a seu respeito, ao mesmo tempo buscando, no modelo
ético aristotélico, elementos que possam se prestar a entendê-la e direcioná-la à
formação do médico e do enfermeiro, objetivo desta investigação.
A ética está intrinsecamente coesa à Educação que, por sua vez, estabelece
conexões íntimas com o curso da História e com o momento em que se encontra e a
que pertence a sociedade.
Em suas experiências de vida, o homem adquire comportamentos e costumes
que o direcionarão a fazer escolhas acertadas ou errôneas, não estando elas
restritas apenas a sua vida profissional. Aqui se enfatiza e releva o papel
desempenhado pela formação do homem, uma vez que, conforme for ela conduzida,
implica-se que o sujeito poderá ou não vir a ser um agente moral capacitado a
analisar as circunstâncias da vida e, diante delas, posicionar-se e agir com eticidade.
Resta à escola estar atenta e proporcionar elementos de diagnóstico de nosso
tempo, estabelecendo, pois, coerência com a finalidade da Educação: o
desenvolvimento pleno da pessoa. O ser humano interage com a natureza e com
seus pares, de forma que aprende não apenas conhecimentos de teor científico e/ou
formal, senão também por meio de um sistema de valores que vive na escola.
Capítulo 5. Ética e Educação 143
Desse modo, uma vez inserida na sociedade e dela recebendo valores que a
influenciam, espera-se que a escola deva organizar-se politicamente, porque seu
ofício de formação possibilite ao indivíduo agir com eticidade. Tão somente à escola
assiste o propósito da formação ética do indivíduo; por conseguinte, deve organizar-
se de tal maneira que se transforme em ambiente que favoreça ações melhores, não
viciosas. Na escola, faz-se necessário formar por meio de atitudes, valores e
conhecimentos que gerem ações destinadas ao Bem, devidamente analisadas,
discutidas e orientadas por regras e modelos de conduta adequados.
Carvalho (2002) entende que o papel da educação constitui-se de preparar as
pessoas para executarem determinadas funções na sociedade e, dessa forma,
suprirem necessidades pela oferta de seus serviços. Isso naturalmente se associa à
formação ética, porquanto no modo de agir estão implícitos costumes e valores. O
ideal se pauta na formação integral da pessoa envolvida no processo de ensino-
aprendizagem tomado em sua dimensão humana, não apenas técnica.
O referido autor comenta que essa preocupação com a postura ética da
pessoa data desde os antigos gregos, que, ao procurar compreender a natureza do
problema, associavam-na ao ato de ensinar a alguém uma conduta. No entanto,
questionavam a possibilidade de se ensinar a vida ética. Decorre das ideias
apresentadas por Carvalho, fundamentadas nos filósofos antigos que a escola é
apenas uma das instituições na qual se formam seus valores. O que há de mais
fundamental é a forma como se pratica o ensino. A melhor forma de cultivá-los e
transmiti-los como um dos mais importantes legados culturais da humanidade é
torná-Ios presentes não só em nossas palavras, mas em nossas ações como
professores e profissionais da educação.
Carvalho refere que muitos interpretam erroneamente a educação moral, cuja
atenção se dirige à conduta das pessoas, atribuindo-lhe o significado equivocado de
“autoritarismo” – uma forma de dominação irracional que submete o ser humano ao
jugo de dogmas radicais. Ao contrário, a formação moral provê ao homem o livre-
arbítrio, a autonomia no seu proceder. De fato, ela lhe permite a escolha da melhor
conduta, visa à capacidade de compreensão, dotando a pessoa da imprescindível
racionalidade para analisar adequadamente as situações com que defronta, além de
lhe propiciar alternativas de ação, de modo que ela possa, com liberdade, preferir
aquela que lhe seja qualitativamente boa, ou o que é melhor, cuja excelência
Capítulo 5. Ética e Educação 144
extrapole o âmbito individual, para provocar um efeito favorável que esteja em
conformidade com as expectativas da sociedade toda.
Valle (2001) pondera a respeito de se levar em conta os limites que a
educação possui, em se tratando da formação:
A educação não pode tudo, porque encontra, nas disposições de uma ordem que lhe é infinitamente superior, seus limites de atuação. A ação humana não pode tudo, tudo o que pode é realizar-se plenamente [...] Essa confiança extremada na educação, no entanto, só pode se alimentar de uma fé ainda mais inabalável no poder da intervenção humana. Mais do que a educação, é, pois, a ação iluminada da razão que desconhece limites. Essa razão humana que é universal é capaz de promover a justiça e igualdade: ao menos, é nisso que se acredita firmemente e, se tais não são as evidências, não é porque Platão estivesse certo, mas, antes, porque, até aqui, tradições injustas e costumes obscurantistas impediram que a razão se desenvolvesse livre e igualitariamente entre os homens.” (VALLE, 2001 p. 187).
Boto (2001), por sua vez, amplia essa abordagem, declarando que a
Pedagogia é uma ciência destinada ao bem educar, instruir e formar. Para tanto,
recorre aos conceitos da Ética e à sua relação com a Educação. A educação ética
pressupõe certo disciplinamento da vontade humana, de sorte que, uma vez
coordenadas, Educação e Ética atuam na efetivação de um mundo mais saudável,
quer para o indivíduo, quer para a coletividade. Consequentemente, há de se investir
na vontade autônoma, que, aperfeiçoada, é capaz de controlar paixões,
desenvolvendo capacidade de discernir sobre a melhor escolha. À educação cabe
um papel importante na formação ética do indivíduo; no entanto, sua capacidade de
tomar decisões boas depende também de uma educação no contexto familiar e
social, desde a tenra idade, como aponta Aristóteles e, esse aspecto, reafirmado
posteriormente por Kant.
Kant (1996) argumenta que, desde muito cedo, deve-se investir na formação
moral do sujeito, ou se correrá o risco de se enraizarem defeitos, desvios e vícios, a
ponto de que resultariam vãos os esforços por educá-lo. Ademais, pondera que tal é
a inclinação do homem à liberdade, que é necessário desde cedo infundir-lhe
disciplina; se não, ele agiria à maré de seus caprichos, e seria extremamente difícil
reverter essa situação, modificando-a mais tarde. Ratifica-se esse pressuposto com
Capítulo 5. Ética e Educação 145
a seguinte passagem: “O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por
educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina
e a instrução com a formação” (KANT, 1996, p. 11). Não obstante, o filósofo crê
ainda possível à escola corrigir até mesmo defeitos advindos da educação
doméstica. Nesse sentido, opõe-se radicalmente a ele Aristóteles, que atribuiu maior
responsabilidade à educação familiar, porquanto, desde cedo, a disciplina, a prática
de determinados atos – hábito – que é favorecida ao indivíduo gerará em si uma
disposição para o bem, ou para o mal. Com efeito, em Aristóteles, a orientação é
crucial também quando se estende ao jovem, uma vez que acreditava que apenas à
idade adulta assiste a capacidade de agir com prudência. Atribui ainda, grande
responsabilidade aos legisladores na formulação de leis orientadoras da polis.
Refere-se à Ciência Política como o mais alto de todos os bens, visto que o alcance
do Bem diz respeito à toda uma comunidade – à polis.
Acrescenta Kant que a decisão sábia parece coincidir com a noção de lei,
apenas abalada pela liberdade, que expande no homem a tendência ao livre
pensamento. Aliás, declara o mesmo filósofo que isso deve ser considerado,
inclusive, por governantes, que devem entender o homem em sua dignidade, não
como mero cumpridor de leis. Como resultado prático dessa situação, Kant criou um
princípio por que o homem pudesse se pautar em suas decisões.
Para que se efetive a formação ética, é imperioso reconhecer que ela ocorre
no plano da escolha, ou melhor, ela se apoia na liberdade de o agente optar pela
melhor ação, o que dependerá sobremaneira do desenvolvimento de um sistema de
valores que o oriente à retidão da ação. Mas valores pressupõem a existência de um
conjunto de regras – tanto no contexto familiar quanto no plano social – que indique
e garanta ao indivíduo ponderar nas contingências a melhor ação.
Nesse sentido, Dallari (1996) declara que não basta a existência isolada de
regras. Além da cobrança de seu cumprimento, regras instam que haja justificativas
claras e abrangentes para a sua razão de existir, devem elas permitir que sejam
questionadas, revisadas, se preciso for. Para tanto, é necessário tolerância,
desenvolvimento da comunicação interpessoal e espírito crítico, além de se exigir
prudência, no sentido de que, quando determinada regra não mais se lhe aplique, o
indivíduo possa ser capaz de, por si mesmo, agir com eticidade.
Conquanto a Ética venha conquistando cada vez mais espaço temático na
educação, segundo Valle (2001), seja qual for o motivo dessa conquista, já era
Capítulo 5. Ética e Educação 146
tempo de se questionar a superficialidade com que a ciência vem sendo tratada. A
questão é que se está a exigir o ensino da Ética numa realidade em que ela parece
se esvair. Ao mesmo tempo, há de se ter em conta que ela própria resulta da
realidade social vivida em certa época. Fica evidente, portanto, concluir que a Ética
e a realidade social se contrapõem.
Nesse encontro conturbado de valores muitas vezes opostos, ou mesmo
paradoxais, a ação educacional tem um papel marcadamente importante : pensar
sobre o agir e agir diversamente aos valores que a sociedade apresenta de forma
superficial, e até inconsequente.
Refere a autora que, com efeito, existe uma incongruência formal e lógica em
pretender socializar crianças para valores de fato inexistentes na sociedade, o que é
perceptível na falência de mitologias e no controle social que, embora se ancore na
autonomia, não apresenta resultado eficaz e significado como valor social. Decorre
daí a sociedade esvaziada de sentido no que concerne à própria autopreservação.
Nesse contexto, tal como se verifica hoje, a formação ética se exibe ao
mesmo tempo como aporia e verdadeiro enigma, o que impele muitos professores a
acolher as diretrizes educacionais como uma exigência legal, como refere Valle.
Na abordagem temática aqui em questão, a grande dificuldade em tratar as
diretrizes educativas – que, em verdade, são de natureza indicativa, reflexiva e
interpretativa –, constitui-se no fato de retirá-las do discurso e efetivá-las, de modo
que venham ser entendidas em seu propósito e aplicadas na prática de ensino.
A esse respeito, pondera Valle:
Ocorre que, no termo de todas as injunções legais atualmente fixadas, o grande enigma educacional – cuja elucidação requer, justamente, a máxima atenção à autonomia do professor – acaba por se reduzir a uma extensa lista de jargões e palavras da moda, de afirmações em sempre coerentes entre si, ainda que harmoniosamente dispostas de modo a lembrar que o professor “deve” se mostrar à altura de determinações que não ajudou a construir, mas que deverá aplicar. (VALLE, 2001, p. 177).
Assim como a Ética, a Educação não é uma atividade isolada: só pode ser
concebida na prática do indivíduo inserido numa sociedade, porquanto o indivíduo
assume uma maneira de ser e comportar-se por meio dos costumes adquiridos no
Capítulo 5. Ética e Educação 147
seio do contexto social. Cada sociedade passa valores, normas, costumes e práticas
que influenciam na constituição dessa segunda natureza do ser humano – o ethos.
Faz-se evidente que a associação entre Educação, Ética e Política, ocorre na
própria atividade educacional, visto que seja esta uma atividade coletiva. Por sua
vez, a Ética se apresenta como maneira habitual de um indivíduo se comportar na
coletividade, inserido na vida em sociedade que possui valores, normas e costumes
compartilhados. Valle corrobora essa simbiose de que se tratou:
Por isso, a força dogmática, o caráter quase sagrado de que se revestem ao serem transmitidos de geração em geração. Definindo o próprio modo de ser de cada sociedade, de sua manutenção parece depender a sobrevivência de todo edifício social. (VALLE, 2001, p. 178).
Não obstante, à escola sempre coube a responsabilidade de formação
integral das pessoas, como menciona Valle (2001, p. 177): “[...] a formação ética dos
futuros cidadãos foi o primeiro, e foi também o mais constante sentido atribuído à
ação educativa [...]” Na condição de educação formal movida por interrogações,
Ética e Política se entrelaçavam: “Tornada atividade social explícita e refletida, a
educação se faz instrumento de construção de uma nova polis – de realização da
obra política, pela formação ética dos futuros cidadãos.”
O direcionamento das ações por meio de regras, leis e normas são
fundamentais ao convívio social desejável; no entanto, não são elas suficientes nem
mais valorosas que uma boa formação, que, nas contingências da vida, tornam-se
alicerce seguro, para as decisões acertadas e, nos momentos mais difíceis e
conflituosos, possa prover a pessoa de sabedoria para escolher a opção mais
acertada, como nos aponta Aristóteles.
Como declara Valle é raro ocorrer de a ética ser desafiada; contudo, seus
valores devem ser compreendidos, porque se permita a crítica a eles.
Por conseguinte, é na comunidade que se forma o futuro cidadão, em quem
valores e ensinamentos éticos são infundidos por meio da repetição das ações e
pelo hábito. Recorrendo ainda à citação de Valle, ancorada em Aristóteles, constata-
se que, se depende da prática social, a maior parcela de responsabilidade incide,
dessa maneira, sobre cada cidadão. Como argumenta a autora:
Capítulo 5. Ética e Educação 148
[...] essa formação prática – realizada por meio da imitação de modelos também pelo exercício continuado de valores – deve ser tarefa de toda a sociedade, isso significa que cada cidadão deve poder ser dado como modelo, e que toda a prática social é um exercício de cidadania. Em outras palavras, admite-se não somente que uma intensa unidade funda a comunidade, mas também a igualdade ética de todos os cidadãos. (VALLE, 2001, p. 181).
Costumes dizem respeito à ação do indivíduo e são adquiridos mediante a
vida em sociedade, o que implica reconhecer o papel que desempenham na
formação de valores, para a qual concorre o esforço conjunto da família, da escola e
da sociedade – cada contexto influenciando, interatuando e intervindo nos demais.
Particularmente cabe à escola, enquanto órgão formador, evidenciar aos
indivíduos, tanto aqueles que ensinam quanto aos discentes que estão em formação
o papel social que desempenham na formação de valores.
Não obstante, como já se constatou anteriormente pelo entendimento de
vários autores, é de um esforço particular que decorre o resultado positivo
concernente à educação. Por isso, no plano de valores, recomenda-se o exercício
contínuo do aprendizado, visando à competência do ato de efetivar escolhas
adequadas, corretas e satisfatórias. Aprender a escolher é um aprendizado que se
perpetua ao longo da vida humana. A ninguém é dado eximir-se de decidir: a cada
dia, a cada instante, bem ou mal, o ser humano se obriga a decisões.
Nesse ponto se exprime o caráter formativo da Ética e o motivo por que essa
ciência vem reconquistando patamares de importância, necessidade e valor para a
sociedade atual. Daí a preocupação de estudiosos em compor o campo da Ética “[...]
não como um dado natural e essencial, mas, sobretudo como de uma experiência
aprendida, acumulada e pedagogicamente construída.” (BOTO, 2001, p. 123).
Ainda que a escola não seja a única instituição a desenvolver valores e
atitudes, tudo o que acorra intramuros ou extramuros é de relevância fundamental
no que respeita à formação humana. Como o entendeu Carvalho (2002), o papel da
instituição escolar é decisivo na tarefa de iniciação de jovens no mundo público de
valores e de princípios éticos, cujo êxito depende de um esforço conjunto de toda a
instituição e em que cada professor, além de desempenhar sua função específica,
representa um agente institucional comprometido com uma série de valores que se
traduzem em responsabilidade e atitudes educativas adequadas ao propósito de
Capítulo 5. Ética e Educação 149
formar integralmente cada educando sem distinção.
Uma educação assim personalizada requer nos professores que a praticam
algumas atitudes concretas, e não se trata aqui somente de serem eles eruditos,
experientes ou eloquentes. Pois como nos dá a ensinar Aristóteles que não é uma
questão de conhecimento ou de opinião, mas que é preciso saber dominar as
paixões antes de tudo para poder exercitar a razão na escolha adequada, pessoas
que não sabem utilizar do conhecimento ou fazem apenas uso da linguagem própria
do conhecimento não significa mais do que declamações de atores em cena, como é
próprio dos incontinentes, aqueles que se deixam dominar pelas paixões.
Com efeito, é por meio dessas atitudes concretas, que um determinado
professor se converte em um educador competente. Importam as suas atitudes
profundas de significado, seus sentimentos altruístas, e não apenas sua orientação
teórica: seus procedimentos metodológicos, suas técnicas e recursos didáticos têm
menor importância que suas atitudes. Quando o educador posiciona os discentes
em contato direto e real com os problemas da vida, eles certamente desejam
aprender, crescer, descobrir, criar e conviver bem. Sua função consistirá em
desenvolver uma relação pessoal com os educandos e subsidiar recursos para criar
um clima tal que permita o desenvolver dessas tendências espontâneas, numa
relação de confiança.
Na tentativa de desenvolver e promover essa pedagogia que persegue a
formação integral do homem, numa perspectiva humanista, ética, espiritual,
personalista e comunitária, política e social, o tema da atitude do professor/educador
é de relevância capital. Embora sejam muitas as atitudes fundamentais do educador,
pode-se agrupá-las essencialmente em três, sob o ponto de vista operacional:
confiança, respeito e acolhida. Até certo ponto, essas atitudes correspondem
àquelas esperadas pelos profissionais atuando futuramente na área da saúde.
Ao se tratar de formação ética, há de se desejar que o professor proceda com
eticidade. Em contrapartida, todas essas atitudes do professor, de fato, vão provocar
nos alunos a vida sendo verdadeiramente vivida, o entusiasmo por seu trabalho, a
concentração, o juízo crítico, a serenidade diante das adversidades, o desejo e a
facilidade de proceder a escolhas acertadas, a expressão da verdade.
Ainda concernente à atitude do professor, seria louvável que ele propusesse,
no currículo, temas que discutam valores humanos, os interesses presentes no
desenvolvimento político e socioeconômico, temas polêmicos que suscitem
Capítulo 5. Ética e Educação 150
interesses porque são pertinentes à área de estudos.
Uma vez que começamos a nos descobrir sujeitos de um processo político,
exercendo de nosso papel de cidadão, de pessoas que podem mudar realidades
desiguais, injustas, não mais servimos a interesses de poucos num processo
individualista em que somos envolvidos, posto que se julgue estar cumprindo
apenas uma função técnica.
Conforme nos alerta e menciona Saviani (1996, p. 223), “A superação dessa
ingenuidade se dá através da tomada de consciência dos limites que a situação
objetiva impõe às tarefas que são desempenhadas. E o processo de
desenvolvimento da consciência crítica passa, inicialmente, pela destruição da ilusão
do poder.” Desse modo, de suas palavras deduz-se que a assunção da consciência
crítica acompanhada de frustração pode ser interpretada pela consciência dos
limites objetivos.
Por sua vez, insta-se que a universidade cumpra o papel de mostrar
contradições e posicionamentos para formar profissionais críticos. Para isso é
necessário associar o conhecimento técnico ao humano, reconhecer os limites do
saber teórico e científico. Urge que o estudante não apenas aprenda as técnicas
necessárias para atendimento em saúde, mas reconheça seus limites, questione
condutas, modifique posturas, humanize sua ação, por exemplo, não utilizando o
saber como poder, mas reconhecendo o quanto pode se aprender com o outro,
melhorando a sua relação interpessoal, através do diálogo com equipe, colegas e o
paciente. Assim sendo, na intersubjetividade, melhorar sua tomada de decisão e
ação.
O ensino da Ética na área da saúde, como já se tratou aqui, atualmente está
incorporado à Bioética, uma disciplina criada com pressuposto e intento
interdisciplinar, cujo enfoque não pode prescindir do amplo e mais completo conjunto
dos temas, indo ao encontro do planejamento desejado nos currículos, de uma
formação que integre cada vez mais conhecimentos, além de exigir mudança de
comportamento de quem ensina e do que se espera no tocante à formação dos
novos profissionais, novos entendimentos, atitudes e comportamentos no
desempenho de sua função. Isso prefigura a necessidade de novos modelos de
ensino. A relação profissional-paciente exige um comportamento mais humano e
compreensivo por parte daquele. As instituições de ensino devem e estão
preocupadas com esse âmbito na formação de médicos e enfermeiros, uma vez que
Capítulo 5. Ética e Educação 151
a realidade mostra que ainda pouco se oferece nesse sentido.
Com o advento da Bioética, o ensino da Ética entrou em evidência, maior
número de pesquisas e artigos passou a ser publicado, tomou novos caminhos, em
consonância com a proposta da Bioética, começou-se a questionar e buscar formas
mais adequadas para obter resultados melhores na formação dos profissionais da
Área da Saúde.
Rego, Gomes e Batista (2006) defendem o ensino da Bioética como tema
transversal nos cursos de Medicina. Discutem a ineficiência verificada apenas nas
mudanças pedagógicas, na forma de ensino. Advertem a que haja resultados mais
razoáveis na formação moral e ética dos estudantes, o que demanda que todos os
professores estejam imbuídos deste propósito. A própria instituição responsável pela
graduação deve deixar claro seu compromisso com a formação moral, explicitando
valores e incitando à participação democrática de todos no cotidiano acadêmico.
Enfatizam aqueles autores e relatam estudos que abordam a importância do
ambiente de ensino:
O ambiente democrático de uma escola onde os estudantes são respeitados e considerados como indivíduos e cidadãos proporciona melhores possibilidades de oferecer um tipo de experiência aos discentes que contribuirá decisivamente para o seu processo de desenvolvimento da competência moral. (REGO; GOMES; BATISTA, 2006, p. 488).
A Bioética recomenda a interdisciplinaridade na abordagem, uma vez que,
quanto maior abrangência alcançada nas discussões, melhor poderia ser a análise
de situações e assim a escolha da ação a se proceder.
Nesse sentido, Morin (2000, p. 53), tem argumentado acerca da totalidade na
educação, contudo, não menosprezando a especialidade, propondo que se evite ao
máximo a fragmentação do conhecimento. Afirma que, para enfrentar a difícil tarefa
da compreensão do homem, é preciso conciliar esforços conjuntos, não frágeis, de
filósofos, psicólogos, sociólogos, historiadores etc., promovendo a iniciação à
lucidez. Ressalta que esse esforço deve ser incansável: [...] seria preciso demonstrar
que a aprendizagem da compreensão e da lucidez, além de nunca ser concluída,
deve ser continuamente recomeçada (regenerada).
Os educadores, diretores ou professores, devem reconhecer o local
Capítulo 5. Ética e Educação 152
epistemológico dessa teoria ética em relação a outras disciplinas, além de
considerar qual o seu papel como educador com relação a essa questão, visto que
professores muitas vezes não vêem com clareza a dimensão e o objeto da formação
humana, mais especificamente da Ética. Consequentemente, não avançam para a
abordagem interdisciplinar necessária, perpetuando muitas vezes a discussão
empobrecida, no senso comum, sem subsídios para alcançar a formação que se
pretende. Como nos indica Aristóteles: um projeto ético só é possível se houver uma
organização política que a favoreça.
Enfim, concorda-se com Freire (2000, p. 91) quando afirma: “Se de um lado, a
educação não é a alavanca das transformações sociais, de outro, estas não se
fazem sem ela.”
Em sua Ética a Nicômaco – obra em que se apoia a abordagem feita neste
estudo, além do mais porque se exibe fundamental e sistemática como nenhuma
outra, em se tratando de Ética –, Aristóteles aponta que a educação é a essência
onde se assenta a formação do homem virtuoso, cuja potência se atinge em sua
fase adulta, madura de caráter. Destaca-se que, na investigação levada a efeito
sobre a ação, Aristóteles expõe que a escolha é a causa eficiente da ação e que sua
origem se assenta no raciocínio com vistas a um fim – o Bem. A boa ação inexiste
destituída do concurso entre o intelecto e o caráter.
Parece profícuo resgatar, pois, a ética aristotélica nas reflexões acerca da
formação moral como motivo de preocupação no ato de educar desde a infância,
sobremaneira, como o próprio Aristóteles estabeleceu, retomar essa preocupação
com a formação da disposição para o Bem, orientador das escolhas racionais. Essa
preocupação encaminha-se neste estudo para a formação profissional do indivíduo
jovem, momento em que ganham relevância extraordinária a consolidação de certos
valores e o reposicionamento em face a eles.
É certo reconhecer que nem todos os indivíduos conseguirão atingir o máximo
de sua capacidade racional e ética. Não obstante, também é certo e legítimo
reconhecer que àquele que foi educado com a finalidade de desenvolver a
disposição para agir virtuosamente, valerá o esforço para conduzi-lo à vida
virtuosa/ética. Relativamente a suas ações, trata-se de formar a práxis do agente
moral.
Há que se ter firmemente a preocupação com a formação ética dos
estudantes, descobrir a melhor forma de atingir o seu desenvolvimento e as
Capítulo 5. Ética e Educação 153
condições necessárias para isso.
5.3 A contribuição de Aristóteles para a formação ética
Inevitável não se recorrer a Aristóteles, uma vez que apresenta os
argumentos essenciais que conduzirão à reflexão na instituição de ensino dos
parâmetros da formação ética do médico e do enfermeiro.
O homem é dotado de Razão, característica que o difere do animal. Em
Aristóteles verifica-se que a Razão se divide em duas partes – a científica e
calculativa. O homem é dotado do lógos, o que lhe confere discernimento e
possibilidade de escolha, que, para ser correta, é determinada pela disposição do
agente. Educar para que se forme este tipo de disposição (virtuosa) deve ser a
ocupação primeira da Ética – o âmbito das ações. A virtude moral é a disposição de
caráter relacionada à escolha, um desejo deliberado consoante com a razão, na
concorrência do desejo e do raciocínio, de forma que o desejo deva buscar o que o
raciocínio delibera e o orienta.
A Razão concernente ao domínio prático possibilita ao agente moral calcular
a melhor ação dentre as ações possíveis. O lógos, aliado a outro elemento, que é o
desejo, engendram a escolha das ações não necessárias, ou seja, daquelas que
não poderiam ocorrer de outro modo, diferentemente das ações deliberadas, não
acidentais, que se encontram no domínio das contingências – a esfera ética – estas
sim ocorrem de modo variável (Pereira, 2006).
Agir atendendo ao lógos correto [...] como é próprio ao phronimos, seria agir de um modo possível, agir pela necessidade1 determinada pelo lógos correto, que possibilitaria a realização (de modo não acidental) da única ação virtuosa dentre as várias ações possíveis. (PEREIRA, 2006, p. 20).
Pereira evidencia a possibilidade de haver um domínio comum entre a
1 O conceito de “Necessário” apresenta três sentidos: aquilo sem o qual não se pode viver, ou não se poderia vir
a ser; aquilo que é forçoso, como o que é contrariamente à condição de escolha, e, por último, aquilo que não
pode ser de outro modo. Se prevalecesse apenas a necessidade absoluta, não haveria a potencialidade dos
contrários, ou melhor, a condição de contingência, e assim se esvaziaria a esfera prática, onde se situa o
espaço de o homem agir.
Capítulo 5. Ética e Educação 154
potência de fazer o bem e a potência racional. Ao que tudo indica, o âmbito de cada
das potências não se esgota nesse domínio comum. No entanto, encontram-se
subsídios de que a potência racional não se encerra na esfera da necessidade,
como se verifica neste fragmento:
[...] o que caracteriza a potência racional é justamente a possibilidade de escapar da esfera da necessidade mediante a capacidade de escolha da ação a ser realizada. O médico, por exemplo, em determinada situação pode tanto curar como causar a doença. O que lhe confere essa capacidade é justamente o lógos (1046b 20), que permite a ação não necessária no domínio da contingência. (PEREIRA, 2006, p. 19).
Segundo Pereira (2006), algo que é potência pode não se atualizar, isto é, se
desenvolver. Não obstante, considerando que, do ponto de vista ético, quando o
processo educativo encaminha o homem a bons desejos, acompanhado do lógos,
possibilita-se a melhor escolha, que adquire a sua melhor forma – a excelência ou
virtude da ação.
Aristóteles expõe no conceito de potência a ideia de movimento, atribuindo ao
homem a possibilidade de sair de um estado para outro, e, quando atinge seu télos
atualiza-se: “...quanto mais algo está para se atualizar, quanto mais próximo está de
seu fim, tanto mais podemos afirmá-lo como sendo bom ou belo (PEREIRA, 2006, p.
15). Dessa forma, em sua melhor forma, desempenha sua função de acordo com a
virtude – disposição do caráter.
Considera-se potência de três modos, segundo Pereira (1996) apud Tricot e
Ross: o primeiro não recebe muita atenção de Aristóteles, ao passo que os outros
dois se apresentam fundamentais para a compreensão dos referidos conceitos, que
não poderiam ser reduzidos a uma unidade. Um sentido lhe é dado em relação ao
movimento e o outro “para além das coisas.” Particularmente, enfatizar-se-á aqui a
atenção dirigida ao sentido de movimento, que está relacionado à acepção física da
potência – referente ao movimento.
Em Metafísica, Aristóteles estabelece o primeiro significado de potência, dado
como o princípio de mudança ou movimento, inerente à mesma concepção de
potência, “[...] quando o princípio da mudança está na própria coisa que é mudada
distingue-se e diferencia-se sempre (e estruturalmente) dela, por algum aspecto.” (p.
Capítulo 5. Ética e Educação 155
255). No segundo, encontra-se o princípio pelo qual a coisa é mudada,
passivamente, seja para melhor mas movida por outra, ou por si como outra, à
semelhança do que ocorre ao médico enquanto enfermo. O terceiro significado
respeita àquilo que tem a capacidade de mudar em todos os sentidos, ao passo que,
no quarto, tem-se a capacidade de mudar para melhor e, no quinto, constitui-se da
capacidade de se conservar e não se corromper.
Pereira (2006) investiga, numa vertente ética, o conceito de potência a partir
da relação da Ética a Nicômaco com dos livros Δ e Θ da obra Metafisica de
Aristóteles, uma vez que desejo e o lógos pertencentes à potência compõem a
capacidade de fazer algo bem, num dos sentidos da acepção física da potência.
Não obstante, segundo explanação de Pereira (2006), toda a discussão gira
em torno do que Aristóteles concebeu como potência – fonte original da ação – e
ato. Admite-se que potência seja a capacidade ou caráter daquilo que pode ser
produzido, ou pode produzir-se por si mesmo, mas que ainda não existe
efetivamente. Trata-se, pois, algo que é em potência vir a ser, efetuar-se em ato. Em
outras palavras, considera-se que algo que jaz em estado virtual, em potência,
possa vir a atualizar-se. Exemplifica-se com o caso de um homem que,
efetivamente, não esteja vendo algo, mas, porque não é cego, possui ele em
potencial a capacidade aplicada à realização do ato de ver aquilo, bastando que
dirija àquilo sua ação de potência de ver: “Faz-se necessário, então, que o ente
venha a ser, não do que não existe ou existe absolutamente, o não existente ou
existente em ato, mas do que existe virtualmente, em potência, ou então de um não
ente em ato.” (Met. Δ1069b14).
Aristóteles denomina potência racional àquelas capacidades adquiridas
mediante o exercício ou aprendizagem doutrinal, como se constata nesse fragmento
“As potências adquiridas, para serem possuídas, exigem um precedente exercício
da atividade; as potências congênitas e as potências passivas, ao contrário, não têm
necessidade dele.” (Met. 1047b31-1048a24).
Em se tratando da potência racional, nesse princípio de movimento existe a
possibilidade de produzir bem algo, ou de vir a ser algo bom. A motivação ou o
desejo do sujeito e a sua escolha racional determinam a atualização – aqui
entendida em sua acepção respeitando àquilo que está em ato, oposta ao que é
virtual ou potencial – de um de seus extremos, porquanto não se pode desejar
coisas opostas, ou vir a sê-lo simultaneamente, na condição de ato.
Capítulo 5. Ética e Educação 156
Conquanto o homem nasça dotado da potencialidade que pode conduzi-lo a
extremos opostos – vir a ser pessoa virtuosa ou viciosa –, esse dote inato deverá ser
exercitado e desenvolvido por meio de ações tais, que se alcance a disposição firme
e constante para a prática do Bem. Uma vez formada essa sua disposição ou desejo
de pôr-se a agir (ou atuar), sustentado pelo lógos, o homem calcula a melhor ação
no domínio prático. Além disso, porque possui a capacidade de mover-se de um a
outro estado, dependendo da educação e do hábito, o homem pode adquirir uma
boa ou má disposição para agir.
Concernentemente à Ética, a ação – como certo tipo de movimento –, por
meio da escolha confere ao homem a potencialidade para a concretude da ação
conforme à virtude – pelo seu exercício – lhe favorece a potencialidade para a ação
virtuosa, que não é ocasional.
Aristóteles não aborda especificamente a formação, ou a educação formal tal
como é conhecida hoje. Não obstante, trata dos fundamentos da ação e fornece
subsídios para o conhecimento e orientação quando se propõe a reflexão a respeito
da formação ética nos dias contemporâneos. Dedica sua Obra Ética a Nicômaco a
investigar a ação do homem, estabelecendo a natureza dessa ação, como se
origina, quais são os elementos que a compõem. Nesse sentido, distancia-se da
concepção platônica, porquanto considera além do conhecimento a experiência
como alicerce da sabedoria prática.
Por não ser dado certo modo de agir por natureza, pressupõe-se, desse
modo, que há de haver uma intencionalidade. Assim sendo, resta a certeza da
possibilidade humana de obter a excelência da ação, fundando-se no fato de ser ela
construída e desenvolvida por meio da educação. Com efeito, o indivíduo deve ser
educado, de modo tal que ao efetivar escolhas adequadas no âmbito das
contingências – onde absolutamente não se encontram evidentes – o faça,
coincidindo desejo e reta Razão, demandando para isso que o homem seja
orientado enquanto transcorre seu período de formação.
Aristóteles explicita categoricamente que toda criança não deva prescindir da
orientação de um tutor, porque possa aprender a agir bem. Acrescenta o fato de o
jovem ainda não ser bom plenamente porque lhe faltam experiências. Com efeito, o
filósofo deposita na orientação de sua ação e experiência o ponto de partida e o
núcleo da formação do caráter do homem. Decorre daí a importância vital para a
formação ética do indivíduo a contribuição do meio em que é formado e a orientação
Capítulo 5. Ética e Educação 157
de sua conduta, ademais permanece sob a responsabilidade da família, de leis da
escola. O que mais tardiamente, já adulto, possa a responsabilidade a ser imputada
ao próprio agente moral, que efetiva as escolhas.
Em Aristóteles, constata-se que a Ética se verifica no domínio das
contingências, em cujo sentido opera a Razão que, de sua parte, delibera e calcula o
justo meio entre o excesso e falta – prudência –, em consonância com a Reta
Razão, com a sabedoria prática. E o que está de acordo com a sabedoria prática é a
virtude. Deve ser o agente moral educado no hábito para que adquira certa
disposição – virtudes morais – que o oriente à melhor escolha. A escolha é a causa
eficiente da ação, e deve ser impelida pelo desejo firme do alcance do Bem. O Bem,
por sua vez, é causa final da ação, é guia da escolha e orientador para se alcançar a
eudaimonia.
Em consonância com os avanços científicos e pedagógicos, o currículo deve
possibilitar o desenvolvimento de comportamento moral, compreender os valores
essenciais para a preservação da vida, de não se eximir de trazer continuamente à
discussão o cotidiano e os conflitos da vida e da prática profissional, possibilitando o
exercício do Bem não somente para si mesmo ou para aquele envolvido diretamente
na situação, mas para o todo. Trata-se, pois, de uma formação ao mesmo tempo
personalizada e coletiva, porquanto, como ponderou Aristóteles, vise ao Bem
particular tendo em vista o Bem geral.
Retoma-se a exegese aristotélica, agora com vistas à orientação referente à
formação ética do estudante de Medicina e Enfermagem. Nesse modelo, a ênfase
incide na formação da disposição no profissional, para que ele se capacite a agir
satisfatoriamente ou desempenhar-se no trabalho, alcançando a excelência em sua
ação. Apenas aquele que pondera bem pode igualmente criar regras que, de fato,
viabilizem nos seus pares o desenvolvimento de atitudes críticas e reflexivas
direcionadas ao exercício do perene agir virtuosamente. Em contrapartida, quem
não foi educado e formado com o firme propósito de agir bem poderá exercer má
influencia sobre os outros, contagiando-os com seu próprio modo de ser homem
vicioso.
Não raro se apresentam ao Profissional da Saúde impasses, dilemas e
questionamentos no cotidiano, muitas vezes complexos e polêmicos, outras mais
simples do cotidiano. No entanto, adquirem valiosa importância para quem se acha
envolvido na situação e espera do profissional uma postura que lhe inspire
Capítulo 5. Ética e Educação 158
confiança, ou uma resposta que encaminhe à melhor solução para seu problema.
De acordo com Aristóteles, tudo o que o ser humano faz visa a uma
finalidade. E a causa final do homem é a boa vida, o sumo Bem. Qualquer coisa que
o faça atingir esse propósito é uma conquista que lhe é satisfatório e saudável. Para
alcançar a eudaimonia faz-se essencial viver uma vida virtuosa. O homem virtuoso
assume a felicidade como ideal que guia e mobiliza todas as suas ações. Deseja-a
em virtude de tê-la por escopo para obter o bem supremo, de forma que “[...] é feliz
quem age bem.” (Zingano, 2008, p. 21). O agente moral efetivamente reconhece as
razões que qualificam o que deva fazer e pelas quais se sente motivado a exercitar
ambas as fontes de virtude – as do intelecto e do caráter –, porque se transforme em
ser humano excelente.
Na óptica aristotélica, as virtudes de caráter não podem ser ensinadas, são
adquiridas pelo próprio indivíduo. No entanto, regras e modelos lhe permitem a
possibilidade de se compatibilizar com os princípios morais. Provendo-o de regras,
ou sendo modelo virtuoso, o tutor poderá assistir o educando no processo de
aquisição de virtudes. Por sua intervenção, ao ensinar-lhe regras, é possível fazê-lo
engajar no raciocínio moral, de modo que valorize e dê prioridade aos elementos
que deverá considerar num julgamento moral. Exemplifica-se : na condição de valor,
a justiça não é ensinada. Entretanto, o fato de o tutor mostrar-se justo ante o
educando, ou ensinar-lhe regras, ou ainda, numa oportunidade de decisão, fornecer-
lhe pistas ou orientação de justiça, é bem possível que a criança/o jovem aprendam
a ser justos. Ressalta-se que, segundo Aristóteles, a nenhum ser humano é dado
alcançar seu propósito de vida, sem que exercite as virtudes. Como desenvolver
uma disposição direcionada à ação virtuosa e obter a virtude de caráter constitui,
pois, um desafio imane para o homem.
Pode-se extrair da ética aristotélica a premissa básica: a formação é
fundamental para uma vida ética, e é preciso haver pessoas boas que orientem o
indivíduo a agir moralmente. Considera-se determinante a função da família e dos
legisladores na orientação da disposição de caráter. Afirma o mais renomado entre
os pensadores da Ética que possuir um projeto político é fundamental, sem o qual
não se efetiva o ético, na orientação do agir : “[...] o homem que foi bem educado já
possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade. Quanto àquele
que nem os possui, nem é capaz de adquiri-los [...]” (EN, 1095b7).
Desse pensamento se conclui que nenhuma forma de excelência ética nasce
Capítulo 5. Ética e Educação 159
naturalmente com a pessoa. Não se pode mudar aquilo que nos é dado por
natureza, como o que acontece à pedra ou ao fogo: não podem ser habituados a
viver de outra maneira, realizar-se-á sua função segundo a sua natureza. Em
contrapartida, a excelência na ação humana pode, efetivamente, sim, ser alcançada,
para uso e atualização de sua função singular – a Razão.
Procede mais uma vez insistir que são determinantes do êxito, de falácias ou
mesmo fracasso no processo de formação o sistema político-educacional, as regras,
as decisões tomadas, as diretrizes metodológicas, a organização institucional, o
perfil dos educadores, o meio em que o estudante se insere, por exemplo. Tudo isso
deve ser considerado por reflexões, tudo muito bem planejado, investigado, posto
em discussão. Caso contrário, dado que esses fatores condicionam a formação
humana e o futuro exercício de sua profissão, pode-se comprometer e enfraquecer o
processo de habituação do educando, ou expor a risco a essência por que ele
desenvolve a disposição para agir virtuosamente, ou seja, para Bem; ou
viciosamente, perenizando atitudes indesejáveis – eis o tipo de profissional que não
se espera ver atuando no futuro: irresponsável, individualista, inconsequente,
desrespeitoso, alienado. Ademais, um mundo em que não se quer viver:
selvagem/incivilizado. É o próprio homem que se qualifica em função dos tempos de
formação e de sua experiência.
Um exemplo de que se pode valer para elucidar esse pensamento aristotélico
é o de que, se a criança aprende a não mentir e adquire o hábito de ser sincera,
muito provavelmente em quase todas as situações não mentirá, a não ser que a
mentira seja um bem maior que a verdade em determinada situação. Assim também
o indivíduo saberá qual atitude tomar uma vez adulto, e ser capaz de decidir a
melhor atitude a ser tomada em determinada situação, desde que desenvolvida a
disposição para a virtude, que o farão bem utilizar a faculdade calculativa, capaz de
decidir nas diversas situações a melhor escolha – atitude ética. Agirá virtuosamente,
se foi habituado nessa disposição; se habituado a agir viciosamente, assim o fará.
Nas atividades técnicas, delibera-se muito mais, uma vez que, sendo menos
exatas que as de natureza exclusivamente científicas, comportam maiores dúvidas.
É o que acorre na Medicina, por exemplo, em que se delibera ininterruptamente,
toma-se decisões em busca de solução para cada caso, considerado na sua
especificidade.
Posto que existam padrões subsidiados pelas ciências, há que se convir que
Capítulo 5. Ética e Educação 160
cada caso é um caso, pois inexiste um corpo, ou organismo único. Pode inclusive
ocorrer que um mesmo corpo reaja diversamente em diferentes períodos de tempo.
Não importam todos os avanços científico-tecnológicos, todo o conhecimento
conquistado pelas Ciências da Saúde: não se garante que esses padrões venham a
se aplicar a todos os pacientes, indistintamente.
Por outro lado, importa também que o profissional saiba fazer bom uso dos
avanços produzidos. Àquele que delibera bem no desempenho de suas funções,
denomina-se virtuoso, porque tende a alcançar o Bem. Isso faz com que possa
sentir-se plenamente realizado, porque decide com prudência e contribui, com a boa
realização de sua função, ainda que em pequena parcela, para o Bem de outrem.
Segundo Aristóteles, o homem que delibera bem o faz corretamente e tende a
alcançar o bem. Na área da saúde, não raras são as ocasiões em que não se
encontram respostas prontas. Na impossibilidade de deliberar a respeito de
determinados temas e situações, Aristóteles encontra certamente a saída, ao
asseverar que:
Delibera-se a respeito das coisas que comumente acontecem de certo modo, mas cujo resultado é obscuro, e daquelas em que este é indeterminado. E nas coisas de grande monta tomamos conselheiros, por não termos confiança em nossa capacidade de decidir.” (EN,1112b8).
Dessa forma, considera-se que durante seu tempo de formação, o estudante
da área da Saúde, por certo, aprenderá e treinará muito para efetivar as atividades
próprias da profissão, tanto técnicas quanto moral. Não se pode negligenciar o fato
de que ele também irá lidar com a vida das outras pessoas, o que implica que elas
podem vir a ser afetadas por atitudes e decisões tomadas pelo profissional. Decorre
daí a imprescindibilidade do conhecimento científico e ético na consecução do bom
uso de seu aprendizado, efetivado nas ações.
A busca da vida ética – a ser perseguida por toda vida – é o melhor modo de
vida; por isso deve ser motivo de preocupação, e não deve ser lançada à sorte. A
boa vida, uma vida de atividades perseguindo a excelência na ação – é resultado de
uma vida virtuosa, aprendida, não fortuitamente, mas intencionalmente: “[...]
mediante uma certa espécie de estudo e diligência [...]” (EN, 1099b20). Conforme
assevera Aristóteles, relaciona-se essencialmente à realização da ação virtuosa – à
Capítulo 5. Ética e Educação 161
excelência: “Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo
muito imperfeito.” (EN, 1099b24). Isso remete à omissão, ou à pouca preocupação
que, muitas vezes, tem sido dedicada à formação ética nos currículos, abandonando
a formação nesse aspecto à mercê da sorte, o que pode significar deixar nosso
futuro à completa irresponsabilidade.
O bom agente moral sabe normalmente como agir corretamente, escolhe a
melhor das opções, sabe calcular o melhor e faz o que é mais apropriado a um
homem que usa sua capacidade raciocinativa e foi educado a realizar a melhor das
escolhas, que encontra-se na mediania. À escola cabe o mister fundamental de
guiar o indivíduo a desenvolver as suas potencialidades na direção a areté, ciente de
que: “[...] não é fácil ser bom, pois em todas as coisas é difícil encontrar o meio-
termo [...] eis o que não é para qualquer um e tampouco fácil. Por isso a bondade
tanto é rara como nobre e louvável.” (EN, 1109a24). Indicando um caminho,
Aristóteles acrescenta: “[...] se não dermos ouvidos ao prazer, correremos menos
perigo de errar. Em resumo, é procedendo dessa forma que teremos mais
probabilidade de acertar com o meio-termo.” (EN,1109b13).
Custa-lhe, mas é absolutamente necessário que o homem esteja preparado
para executar ações boas. As ações executadas de acordo com a excelência e
voluntariamente são por si só um gosto, quem age dessa forma não por motivos ou
circunstâncias exteriores, mas guiado pelo Bem no desejo e na Razão, estará de
acordo com aquilo próprio do homem. Por outro lado, as ações executadas por
ignorância ou não voluntariamente tendem a causar dor ou arrependimento.
Busca-se, dessa forma, como parte do processo educativo, um modo de
desenvolver no agente a capacidade racionalizada de agir bem, que, conforme
Aristóteles estabelece, é característica daquele que percebe o que é bom para si
mesmo e para os homens em geral.
Em Aristóteles, verifica-se a estreita relação existente entre Ética e Política,
fato esse que, se ignorado pela Educação, pode levar a sociedade a sua própria
falência. O que leva então o ser humano a ignorar ou negligenciar tão antigo
raciocínio lógico? Destituído do Bem, o homem é induzido à sua própria degradação
moral: perde-se sua dignidade humana, exila-se de sua condição de Pessoa.
Destina-se, pois, na contramão do que determinou Aristóteles por fundamento da
virtude moral. Se o homem não vive e convive com retidão de caráter, se não
Capítulo 5. Ética e Educação 162
consegue educar seus filhos e a jovens, se não habitua na prática da ação virtuosa e
não toma decisões com discernimento para a prática do Bem – o que poderia
resultar na vida em sociedade mais harmoniosa e prazerosa – não há como
sustentar a vida.
Em A Política, Aristóteles expõe o pensamento de que “[...] toda cidade é
uma espécie de associação, e toda associação se forma tendo por alvo algum bem
[...]” (p. 11). Visa a um bem maior a cidade, ou a sociedade política, onde o homem
é um ser sociável por natureza. A vida em sociedade atende à necessidade de viver
e da comunicação do saber distinguir o Bem do Mal, o justo do injusto, o que se
situa sob a égide da família e Estado.
Se agir virtuosamente é agir dentro da polis, então tudo quanto ele deseja é o
que polis deseja e o que a lei deseja. A legislação tem função educativa, mas o
sujeito virtuoso não se deixa perturbar por agir conforme a lei. No caso do individuo
virtuoso, há uma coincidência de interesses, desde que a polis seja organizada. Aos
legisladores é necessário conhecimento da natureza da virtude e lhes é de interesse
que
Do ponto vista político, o homem virtuoso desfruta de mais autonomia que aquele
que não se habituou às virtudes. É-lhe facultado agir seguindo seus desejos, e
esses conformam à lei, então ele tem condições de ser feliz. Em contrapartida,
aquele que segue a lei por obrigação, por cega obediência, não pelo Bem em si
mesmo que ela enseja, não possui sabedoria prática. Àquele que possui a
capacidade de perceber o bem geral, categoriza Aristóteles, “[...] são bons
administradores de casas e de Estados.” (EN, 1140b10). Os legisladores – o homem
dedicado à política - tem obrigação de conhecer os elementos que operam na
atividade racional do homem na efetivação da boa ação. Enfim, deve o legislador
favorecer e priorizar a Ética, uma vez que a sua obrigação é ocupar-se com a boa
formação de seus concidadãos e em se tratando da Escola, daqueles que ali
desfrutam de aprendizado – trabalhadores ou estudantes.
Aristóteles afirma que, uma espécie de atividade da alma humana de acordo
com a excelência, coincide com a finalidade da ética e igualmente como propósito
da Política, a ação particular e a geral se interdependem para o alcance de uma boa
vida. Em havendo no homem certo interesse e preocupação com a Ética, por certo
ele a vincularia à interação coletiva, em seu convívio social. Da mesma forma, a
formação ética do profissional não é absolutamente desvinculada de sua formação
Capítulo 5. Ética e Educação 163
individual, pessoal, daquele que age moralmente bem – phronimos.
O exercício das virtudes também deve ocorrer com os legisladores, aqui
destacamos a função dos gestores da instituição escolar, uma vez que sua função é
suscitar, no cidadão/estudante, bons hábitos (ações praticadas). Tomou-se aqui
esse argumento precisamente para refletir e constatar o quanto a organização e o
sistema escolar podem se ocupar, de modo orientador, na formação do estudante.
Aristóteles afirma que somos autárquicos e essa é uma condição necessária
à vida feliz, que só é possível na vida da polis, não uma polis qualquer, mas uma
vida na polis organizada. Reafirma-se aqui a organização na instituição escolar –,
para que se alcance o bem mais valioso e permanente do homem – a formação do
caráter, mais duradoura que o próprio conhecimento das ciências. Extrai-se daí que
em decorrência disto dá-se a formação e sua vida futura. Fica ao leitor um convite à
reflexão no discurso de Aristóteles:
A sabedoria prática é a disposição da mente que se ocupa das coisas justas, nobres e boas para o homem, mas essas são as coisas cuja prática é característica de um homem bom, e não nos tornamos mais capazes de agir pelo fato de conhecer as coisas sãs e saudáveis não no sentido de produzirem a saúde, mas no de serem consequência dela. Efetivamente, a simples posse da arte médica ou da ginástica não nos torna mais capazes de agir. (EN, 1143b22).
O que se espera do bom profissional é a capacidade de deliberar bem não
somente em sua vida profissional, mas assim o fazendo constantemente em
quaisquer circunstâncias. É aquele que percebe o que é bom para si e para os
homens em geral. Ademais, espera-se desenvolver, em nosso futuro profissional um
certo saber, a sabedoria prática, que é um tipo de raciocínio que o faz deliberar bem
nas contingências e agir virtuosamente, atitudes próprias do homem bom e
prudente, que no desempenho de sua função é competente, pois alcança seu
objetivo na melhor escolha: “[...] baseando-se no cálculo, é capaz de visar à melhor,
para o homem, das coisas alcançáveis pela ação.” (EN, 1141b12).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais 165
A barbárie dos milhões de mortes acontecidas em tragédias modernas, como
as duas grandes guerras mundiais, o nazismo, os conflitos no Oriente Médio e
outros, é estigma moral indelével na História da humanidade. O medo desesperador
de que isso possa ocorrer novamente torna-se um fantasma que assombra nossos
dias. Todavia, muitas vezes não nos damos conta de que fatos e justificativas
parecidas estão acorrendo nos dias contemporâneos. Milhões de pessoas morrem
na guerra ou de fome, na miséria humana, padecendo numa epidemia e uso de
drogas ilícitas em situações planejadas ou quase sempre com a cumplicidade
intencional de pessoas que possuem interesses econômicos individualistas. Por
conseguinte, perpetua-se a barbárie do gênero humano em todo o mundo, pode-se
dizer ainda que, de forma mais velada, existe crueldade em contextos próximos de
nós: pessoas ávidas por levar vantagens mesmo às custas do sofrimento de outros.
Estamos falando de nosso dia-a-dia, em que pessoas tomadas pelo individualismo e
imediatismo, operam estrategicamente, desejosas de poder, dinheiro e vantagens
pessoais.
Sabe-se que o Bem e o Mal estão presentes na alma humana. Não obstante,
há que se valorizar e desenvolver o que originalmente participa de sua natureza e
constitui ações desejáveis por todos – o Bem. O Bem deve ser fortalecido para que
o homem não seja conduzido ao caos da barbárie.
Na sociedade atual, as relações são mediadas por interesses individualistas,
nas quais o ser humano transformou-se em objeto, negócio, máquina, instrumento,
enfim, meio para o alcance de bens materiais num mundo globalizado e dominado
por interesses comerciais.
A evolução verificada nas várias esferas da vida no mundo não pode ser
tomada apenas considerando o prisma do Mal, tampouco como banal; entretanto,
diante do desafio de humanizar o indivíduo, faz-se necessário buscar propostas. O
momento exige um indivíduo com caráter humanizado com vistas ao Bem,
sobremaneira no que respeita ao interesse a que este estudo se volta – a formação
ética daquele que cuida de outro ser humano.
Considerações Finais 166
A Ética procura restabelecer uma forma de equilibrar a balança: avançar
cientificamente, sem perder o humanismo. Por conseguinte, no mundo do trabalho, o
profissional da área da Saúde deve saber fazer bom uso da técnica em favor do
Bem – individual e coletivo.
A Ética é absolutamente necessária. A vida humana funda-se na existência
de pessoas boas. Os indivíduos demonstram reconhecê-lo naturalmente ou, ao
contrário, se valem da Ética em seus discursos para alcançar objetivos escusos. O
que se torna imprescindível são ações intencionais, conscientes para que caminhem
na direção do alcance do Bem.
À escola, considerada como órgão formador, assiste favorecer a seus
partícipes – não importando se àqueles que ensinam, ou se a discentes em
processo de formação – a prática de regras, hábitos e decisões que lhes orientem a
ação, e que seja da melhor forma possível: integralmente. Explorar todas as
potencialidades do indivíduo, para que ele se torne competente para questionar
valores da sociedade e saber decidir com equilíbrio racionalizado e sensatez. Da
mesma maneira, por sua vez, assiste à sociedade, por meio de normas, orientar
coletivamente os indivíduos, além de favorecer-lhes subsídios e informações,
capacitando-os a debater, refletir e analisar criticamente os costumes que, de fato,
influenciam o modo de vida das pessoas em geral.
Toda relação educativa que se limita ao ensino acadêmico de transmissão do
saber converte o educando à passividade, não se tornando ele responsável na
tarefa comum de ir configurando sua própria história, privando-o da responsabilidade
a que foi chamado como pessoa. A escola tem a função de formar o indivíduo não
apenas para realizar uma atividade, por meio de ensinamentos técnicos ou de
habilidades específicas de um ofício, de tal forma que, dependendo do desempenho
tecnicista desse ofício, poderá o indivíduo ser avaliado, de modo geral, em dois
extremos: ser profissional competente ou não. A noção de competência extrapola os
limites do mero exercício de uma atividade, senão também de uma forma mais
abrangente de como é realizada com vistas a um fim. Essa competência exige uma
formação completa, de modo que, inerente ao desempenho desse ofício o indivíduo
toma decisões que podem ser acertadas ou não, dependendo de sua capacidade de
reunir informações e calcular a melhor escolha, em seu favor e do Bem comum.
Urge que a escola adote a relação educativa que promova a capacidade de
Considerações Finais 167
ponderar e realizar escolhas acertadas em resolver problemas, não apenas em seu
próprio proveito ou louvor, senão cujos benefícios se revertam em satisfação
pessoal, em realizá-la bem e em prol de toda a comunidade. A essa capacidade de
resolver problemas, de possuir discernimento face a situações diversas da vida
pessoal ou do trabalho, de ouvir, observar e compreender, de decidir sabiamente e
efetivar boas escolhas, Aristóteles denominou de sabedoria prática.
Afinal, supõe-se da escola uma educação que faça o educando progredir em
um sentido pessoal, libertador, em que professores e alunos partilhem o destino
comum de ser e conviver, realizando ações em sua melhor forma, boa ação. Apenas
nessas condições de consciência e responsabilidade comum surge, na escola, a
atmosfera de confiança, de investigação, de comunicação e partilha, onde as
relações se dão sem tensões – porquanto cada um respeita e valoriza o outro –,
onde possam acontecer efetivamente as aprendizagens significativas.
Em se tratando de formação humana, há que se ter uma intenção clara,
embora a consecução de resultados efetivos dependa de outros fatores além dos
esforços empreendidos. Na esfera ética, portanto relativa ao comportamento e ação
humana, não há garantia de obtenção dos resultados desejados, porquanto respeita
a potencialidades, em que se deve investir fortemente para o desenvolvimento de
disposição para agir bem.
Enquanto jovens, na fase de formação profissional, os estudantes não são
sujeitos morais acabados, mas estão em desenvolvimento de sua moralidade, o que
os expõe à possibilidade de escolher e agir virtuosamente ou viciosamente. Não se
espera que saibam se posicionar de maneira adequada frente aos novos desafios
éticos, que a eles se apresentam nas diversas circunstâncias da vida profissional. O
novo contexto em que se inserem diz respeito à relação com paciente, sua família,
com a própria equipe de trabalho. Até o momento da graduação, torna-se necessário
que continuamente sejam orientados e apresentados aos mais diversos problemas,
de modo que neles desperte a vontade deliberada de agir bem, desenvolvendo a
sabedoria prática. Há que prepará-los para as escolhas nas circunstâncias futuras,
quando, efetivamente, poderão desempenhar sua função de certo modo, conforme o
que deles esperamos – a excelência no agir.
A Razão calculativa para o bom uso da técnica deve estar ao serviço da Ética.
Para saberem o que é correto, os estudantes devem, em primeiro lugar, apropriar-se
do conhecimento teórico-científico. Sobremaneira para um bom uso do
Considerações Finais 168
conhecimento, é preciso desenvolver-lhes a disposição para boa escolha na
realização da sua função. Para isso concorrem alguns elementos decisivos: inseri-
los nas situações práticas, inclusive as de maior complexidade, sob a orientação de
um profissional experiente, com a intencionalidade clara de conjugar os âmbitos
técnico e ético, além de, indispensavelmente, inseri-los num ambiente de tal forma
organizado que propicie não um aprendizado qualquer – senão o bom aprendizado e
a tomada de decisão orientados pelo Bem absoluto – que é a finalidade de todas as
coisas e é o mesmo para todos.
É imprescindível que haja preocupação com a estrutura organizacional da
instituição de ensino, uma vez que a esfera Ética está interligada à Política. O
indivíduo aprende a realizar escolhas e agir de certa forma no ambiente em que
vive. Torna-se fundamental que existam regras e decisões coerentes, porque são
orientadoras da ação e para que o sistema educacional não seja contraditório ou
alienado à conjuntura em que o estudante se informa de uma maneira e assiste a
outras acontecerem inversamente àquilo que se propôs, que diz-se desejado e
definido no currículo. A Ética deve essencialmente ser vivida, visto que diz respeito à
ação. Não se trata, por conseguinte, de uma ação qualquer, mas a excelência da
ação – ação virtuosa – conceito ancorado na ética aristotélica.
Para Aristóteles, a alma humana tem aspectos irracionais e racionais, e o ser
humano, fruto dessa combinação, quando escolhe entre ação boa ou ruim, o faz
alicerçado em disposições – razão e desejo em sintonia – adquiridas por meio do
hábito orientado. Numa deliberação ponderada de analise em cada situação, essa
pode ser melhorada cada vez mais com a prática dessa faculdade durante a vida.
Por conseguinte, há de preocupar-se ao máximo com a formação dos hábitos,
exercitando as ações repetidas vezes. Conforme se apresentado no paradigma
aristotélico, o Bem ocorre no momento da escolha: uma ação virtuosa contribui para
outra ação virtuosa, formando dessa forma a disposição.
Dentro desse paradigma, recobra-se o arquétipo aristotélico, congruente com
uma tendência atual de se revisitar seu pensamento, aliás, jamais esquecido. A obra
de Aristóteles fornece elementos de estudo, organizados e meticulosos, em que se
podem encontrar reflexões fundamentais acerca do agir e da realização plena do ser
humano como ente racional, que tem como finalidade a felicidade – boa vida e boa
ação –, para a qual concorre vários elementos, dentre eles, essencialmente, a
virtude. Neste estudo, não houve a pretensão de alcançar todos os recursos
Considerações Finais 169
presentes na obra, senão analisar, estabelecer relações e encontrar fundamentos
para uma proposta com vistas à boa realização da função do médico e do
enfermeiro, seja na prevenção ou cura, seja no cuidado e atenção às necessidades
referentes à saúde das pessoas.
Entende-se, pois, que, apesar de todos os reveses que o mundo
circunstancial apresenta, quando se cuida da vida humana, é preciso exercitar o que
há de melhor no ser humano. Ouso, portanto, a exemplo de Hipócrates, prefigurar o
comportamento do profissional em sua prática profissional: O profissional médico e o
enfermeiro devem ter conhecimento técnico e humano, saber trabalhar em equipe,
saber ouvir atentamente o paciente, compreendendo suas angústias e
necessidades, avaliar suas queixas e também saber perceber, através de
investigação minuciosa, as dificuldades que não foram relatadas espontaneamente.
Deve saber deliberar bem sobre o assunto para intervir escolhendo a melhor das
alternativas possíveis com competência técnica, atualizando-se continuamente nos
conhecimentos científicos. Saber avaliar os tratamentos existentes com crítica (usar
bem o conhecimento e decisão adequada à situação), pensar demoradamente no
caso em questão, e, porque a vida é bem de maior valor, quando há dúvida, deve
ouvir a opinião de outro profissional. Isso é procedimento sensato e o melhor a ser
feito. Ser ponderado em suas escolhas, nunca escolher aquilo que lhe parecer em
demasia ou deixar de fazer o que se deve. Enfim, estar atento desde sua formação
para discernir o certo e o mais adequado em suas decisões, aprender a fazer
escolhas boas e que essa preocupação – de âmbito individual e coletivo, imediato e
em longo prazo, – perdure em toda a sua vida.
Desse modo, o preparo do profissional deve ser cuidadoso e constante,
porque, como aponta Aristóteles, o adulto pode ter cristalizado condutas, que desde
cedo foram formadas. Durante a formação profissional, não se pode furtar de
orientar os futuros profissionais a materializarem a escolha segundo a reta Razão.
Esse exercício, ativo do homem virtuoso, deve estender-se por todo o curso e toda a
vida. Aristóteles já apontava não ser tarefa fácil; por conseguinte, não é alcançada
por todos. Ainda assim, acredita-se que na educação, se possa encontrar um melhor
caminho; sem que se desmereça o papel da família e da sociedade em seu
processo de formação. O bom exercício da profissão depende de saber fazer uso do
conhecimento e, acima de tudo estar habituado a raciocinar guiado pelo bem para
que efetue a melhor das escolhas em sua ação.
Considerações Finais 170
Ademais importa, senão ainda mais, a organização da instituição escolar,
realidade em que se concretizam as interelações e dela depende as atitudes que
guiarão a formação moral do estudante. Como grande princípio ordenador, da polis
emana e, simultaneamente, absorve virtude ou vício de e para seus átomos, que são
os cidadãos. Vê-se em Aristóteles que não se pode pensar em domínio ético, sem o
domínio da polis. Na abordagem deste estudo, constatou-se que a organização
racional deve ser dirigida ao convívio das pessoas numa dada comunidade,
particularmente à instituição escolar.
Destaca-se, portanto, a educação como meio de desenvolver a disposição
para certo tipo de ação – alcançada pelo phronimos, o sujeito virtuoso. O homem
deve ser de certo modo "treinado" e ter um ambiente que propicie sua orientação
para a melhor escolha.
Não há distinção em conduzir uma grande instituição política, uma pequena
cidade, ou uma escola. Cabe a orientação dada a seus estudantes, tanto por
estratégias de ensino planejadas diretamente para a sua formação quanto por aquilo
que eles aprendem – tudo se originando da organização que a instituição tem a
oferecer-lhes como estrutura e modelo institucional. Nesse sentido, há que se
dedicar atenção à estrutura e organização institucional, para que sejam também
formadoras no que tange às atitudes dos estudantes para a ação boa. Os dirigentes
e os professores possuem papel formador quando constroem normas e as seguem,
não deixando que o sistema se mostre incoerente na vida do estudante. Caso
contrário, pode contribuir para a dissociação da ação e do pensamento, ou seja,
para sua alienação, o que certamente, resulta consequências à sua vida e à
sociedade.
Toda escola deveria se obrigar ao zelo pela formação ética dos estudantes,
Cabe à instituição a maior responsabilidade sobre o direcionamento que será dado à
formação humana de seus estudantes: ações de ensino, regras e modelos. No
período de formação profissional, além de boa formação técnico-científica, soma-se
a necessidade de não perder de vista a incorporação de bases filosóficas, reflexão
e, sobretudo, exercê-los em sua conduta. Se se quiser viver num mundo melhor, há
que se preocupar mais com a formação ética, dado que a formação do jovem
influencia sobremaneira sua vida futura.
Este estudo entra em sintonia com o modelo filosófico aristotélico e não busca
respostas inéditas, mas soluções possíveis ao problema da formação humana
Considerações Finais 171
voltada para o Bem, no sentido de fazer bom uso do conhecimento técnico. Porque
o Bem reside na boa realização da função ou atividade do homem e esta é
alcançada pela ação que são geradas pelas escolhas bem deliberadas, ou melhor,
na boa escolha que é aquela que não se encontra nem no excesso e falta, mas na
justa medida.
Recobrar os ensinamentos de Aristóteles é ir ao encontro de uma proposta ou
da possibilidade de uma sociedade melhor, atribuindo à Educação sua real
importância. Assim como deve ser em todo o sistema escolar, mais especificamente
na Disciplina Ética, há a preocupação de formar médicos e enfermeiros que atuem
com excelência na ação: saibam o que é correto, escolham a melhor das opções e
façam o façam de acordo com a reta razão. Desse modo, seja um profissional sério,
confiável e humanizado.
Num mundo de contingências, algumas coisas não dependem de nós, a Ética
depende de nós: “Deliberamos sobre as coisas que estão ao nosso alcance e
podem ser realizadas; e essas são, efetivamente, as que restam.” (EN, 1112a30).
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