campus de marília cÁssia regina rodrigues nunes o bem

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE MEDICINA E DE ENFERMAGEM Marília 2013

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Page 1: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de Marília

CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES

O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE

MEDICINA E DE ENFERMAGEM

Marília

2013

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Cássia Regina Rodrigues Nunes

O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE

MEDICINA E DE ENFERMAGEM

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de doutor em Educação Área de Concentração: Políticas Públicas e Administração da Educação Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho

Marília

2013

Page 3: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Nunes, Cássia Regina Rodrigues

N972b O bem como guia da ação: a ética na formação de

estudantes de medicina e de enfermagem/ Cássia Regina

Rodrigues Nunes. – Marília, 2013.

182 f. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de

Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2013.

Bibliografia: f. 173-182

Orientador: Alonso Bezerra de Carvalho

1. Educação. 2. Ética. 3. Bioética. 4. Aristóteles. 5.

Medicina. 6. Enfermagem. I. Autor. II. Título.

CDD 174.1

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Cássia Regina Rodrigues Nunes

O BEM COMO GUIA DA AÇÃO: A ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES DE

MEDICINA E DE ENFERMAGEM

Tese para

obtenção do título de Doutor em Educação, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, na área de

concentração Políticas Públicas e Administração da Educação Brasileira

BANCA EXAMINADORA Orientador: Alonso Bezerra de Carvalho, Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Assis 2º. Examinador: Carlos da Fonseca Brandão, Professor Doutor - Livre Docente da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Assis 3º Examinador: Reinaldo Sampaio Pereira, Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília 4º.Examinador: Jose Eduardo de Siqueira, Professor Doutor da Universidade Estadual de Londrina – UEL 5º Examinador: Ieda Francischetti, Professora Doutora da Faculdade de Medicina de Marília - Famema Suplentes: 1 - Sinésio Ferraz Bueno, Professor Assistente Doutor, Departamento de Filosofia/Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília 2- Maria José Sanches Marin, Professora Doutora da Faculdade de Medicina de Marília 3- Marcelo Carbone Carneiro, Professor Doutor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Unesp Campus de Bauru

Marília, 15 de fevereiro de 2013

Page 5: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

A meu marido Amauri e aos nossos filhos – Vitor e Arthur, homens íntegros e inteligentes, especialmente ao Arthur porque não me permitiu abandonar a luta empreendida na realização deste estudo. À minha mãe que vibra de entusiasmo e alegria com minhas conquistas. Às minhas irmãs – Marilene e Maria Lúcia – pelo incentivo e boa companhia.

Page 6: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

AGRADECIMENTOS

A Deus que me concede oportunidades na vida, que me move em direção a

elas, que me inspira, me acolhe, fortalece com sua Presença, sem a qual nada

sou.

Ao Prof. Alonso, meu orientador, pela amizade, por acreditar em meu

trabalho e pela orientação segura.

Ao Prof. Reinaldo, meu reconhecimento e gratidão pelos ensinamentos tão

valiosos e por demonstrar, com sua presença e atitudes, que a Ética é

possível.

Ao Fernando, meu sobrinho, pela disposição na leitura e sugestões neste

trabalho.

Às professoras de português com quem tive o prazer da amizade; Ana

Helena, profissional competente, e Maria Derci, inesquecível com sua alegria e

acolhida.

Às bibliotecárias da Famema – Josefina e Helena – pelo tempo, carinho e

atenção.

A meus colegas de trabalho que torceram pelo meu êxito, especialmente

aos professores: Junior, Maria José e Ieda Francischetti, pessoas com cuja

compreensão sempre pude contar.

Às professoras – Carla e Shirlene – pela solicitude na assunção de parte de

minhas atividades na finalização desse trabalho.

Aos meus amigos Marcia Padovan, Yvette Moravcik, Padre Ricci, Frei

Manoel, Elaine Carvalho, Maria Helena – pessoas boas que vamos

encontrando em nosso caminho...

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Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. O Amor é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor

Coríntios 13

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Resumo

Partindo do interesse por favorecer o desenvolvimento humano nos cursos de formação do médico e do enfermeiro, elaborou-se um estudo teórico com o intuito de repensar o ensino da Ética, que busca o Bem na ação racional do homem. Numa perspectiva histórica, revisita-se o avanço do conhecimento acumulado e da formação daqueles profissionais, enfatizando-se a intrínseca relação com a Ética. Fundamentou-se particularmente na Ética a Nicômaco, obra de Aristóteles em que se encontram subsídios seguros para refletir sobre ação humana. Da leitura reflexiva, depreendeu-se que é possível formar, no homem, uma disposição através do hábito, integrantes da escolha determinada pelo lógos, no domínio das contingências. Ademais observou-se que a orientação da conduta no que respeita à formação humana não apenas deva ocorrer desde a infância senão também no redobrado cuidado e esforço enquanto se é jovem, sobremaneira durante a sua formação profissional. Optou-se, por fim, pela ética aristotélica como modelo pertinente para se traçarem estratégias na educação, com vistas à formação integral de médicos e de enfermeiros, orientando-os na interface entre os âmbitos individual e coletivo do desenvolvimento moral.

Palavras-chave: Educação Médica. Educação em Enfermagem. Ética. Bioética.

Aristóteles.

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Abstract

From the interest in promoting human development concerned to professional formation of doctors and the registered nurses, it was elaborated a theoretical study, the main purpose of which is to rethink the way of teaching Ethics, a science that seeks the Good in human rational action. In a historical perspective, it was revived the advances in the realms of knowledge and the training of those professionals, emphasizing the intrinsic relationship to Ethics. It was particularly based on Aristotle’s Nicomachean Ethics, in which there are seccurate means to reflect on human action. From this reflexive reading, it was gathered that it is possible to develop in man such a disposition brought forth by habit as a constituent of choice determined by the lógos, involved in the area of contingencies and according to Ethics’ point of view. Moreover, It was observed that the orientation of conduct regarding human education must start both from childhood and with great concern and effort while young persons, mainly during their professional formation. At last, it is concluded that the Aristotelian ethics is a relevant paradigm to draw strategies on education, particularly to an integral formation of doctors and nurses, in order to orientate them towards the interface between individual and collective fields of moral development.

Keywords: Medical Education. Nursing Education. Ethics. Bioethics. Aristotle.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABEM Associação Brasileira de Educação Médica

ABEn Associação Brasileira de Enfermagem

Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior

CEB Câmara de Educação Básica

CES Câmara de Ensino Superior

CFE Conselho Federal de Educação

CFM Conselho Federal de Medicina

Cinaem Comissão Interinstitucional de Avaliação de Escolas Médicas

CNE Conselho Nacional de Educação

Cnpq Conselho Nacional de Pesquisa

COFEN Conselho Federal de Enfermagem

CREMESP Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo

DCENF Diretrizes Curriculares de Enfermagem

DNA Ácido Desoxirribonucleico

EEUSP Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

EMA Educação Médica nas Américas

EN Ética a Nicômaco

ESF Estratégia de Saúde da Família

EUA Estados Unidos da América

Fepafam Federação Pan-Americana de Associações de Faculdades de Medicina

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação

MEC Ministério da Educação

Met. Metafísica

MS Ministério da Saúde

OMS Organização Mundial de Saúde

OPAS Organização Pan-Americana de Saúde

PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais

Pet-Saúde Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde

PGH Projeto Genoma Humano

PIDA Programa de Integração Docente-Assistencial

Pits programas de interiorização do trabalho em Saúde

Promed Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina

Pró-Saúde Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde

Rede Unida Rede Unida de desenvolvimento de Profissionais de Saúde

Sesu Comissão de Especialistas do Ensino Médico da Secretaria de Educação Superior

SUS Sistema Único de Saúde

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 - DA ÉTICA ......................................................................................... 16

1.1 O CONCEITO DE ÉTICA .................................................................................... 17

1.2 ETHICA NICOMACHEA ...................................................................................... 27

CAPÍTULO 2 - EDUCAÇÃO MÉDICA ...................................................................... 40

2.1 A FORMAÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DO MÉDICO ........................................ 41

2.2 A FORMAÇÃO ÉTICA DO MÉDICO ................................................................... 70

CAPÍTULO 3 - EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM .................................................... 84

3.1 A FORMAÇÃO TÉCNICA-CIENTÍFICA DO ENFERMEIRO ............................... 85

3.2 A FORMAÇÃO ÉTICA DO ENFERMEIRO .......................................................... 98

CAPÍTULO 4 - A BIOÉTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ............................ 102

4.1 O SURGIMENTO DA BIOÉTICA ....................................................................... 103

4.2 OS REFERENCIAS E MODELOS UTILIZADOS .............................................. 106

4.3 OS TEMAS ABORDADOS ................................................................................ 119

4.4 O ENSINO DA BIOÉTICA ................................................................................. 121

CAPÍTULO 5 - ÉTICA E EDUCAÇÃO .................................................................... 124

5.1 A EDUCAÇÃO COMO FORMAÇÃO INTEGRAL DO HOMEM ......................... 126

5.2 A FORMAÇÃO ÉTICA ....................................................................................... 141

5.3 A CONTRIBUIÇÃO DE ARISTÓTELES PARA A FORMAÇÃO ÉTICA ............. 153

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 164

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 172

Page 12: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

INTRODUÇÃO

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Introdução 11

Há muito os profissionais perderam o senso de arte e de prazer na realização

de seu ofício, não à semelhança de quem pinta uma tela, desinteressado de sua

venda, de sua conveniência à satisfação de interesses materiais. Na modernidade,

talvez nem a própria arte se salvaguarde do sistema mercantilista a que se

submetem tudo e todos. Expressiva parte dos diversos campos profissionais realiza

seu trabalho deixando-se subordinar à necessidade de subsistência, esta também

determinada pela sociedade capitalista, que conjuga o bem estar e a realização do

trabalho à posse de objetos. O conforto oferecido por materiais e equipamentos e

geradores de lucro criam sempre novas necessidades, para além da sobrevivência.

Já não basta ganhar para subsistir, mas adquirir cada vez mais bens de consumo.

No contexto capitalista, analisar perspectivas de formação humana implica

investigar as várias faces que assume o trabalho coletivo e o modo como o homem

age e se modifica ao participar desse trabalho. Em contrapartida, compreender a

formação humana legítima é perceber que o processo de conhecimento e de

realização pessoal se expressa socialmente, ultrapassando a dimensão do agir

exclusivamente determinado pela necessidade de subsistência. Há que se

considerar que a formação humana pressupõe o desenvolver-se do indivíduo como

particularidade e generalidade. Posto isso, tudo leva a concluir que o processo de

formação humana enfrenta crise grave. Não obstante, acredita-se que seja possível

formar profissionais que resistam às concepções educativas determinadas pelo

ideário capitalista, e que propostas de ensino ainda possam erguer as muralhas que

defendam uma sociedade efetivamente democrática e solidária.

O processo de formação de profissionais da saúde – médico e enfermeiro –

não escapou imune a essa série de fatores cuja influência angustiante colocou em

cheque as relações dos sujeitos como produtores, consumidores, profissionais e

cidadãos. Com efeito, mudanças ocorridas no âmbito político-econômico, ideológico

hegemônico determinaram transformações no modo de vida da sociedade – valores

e costumes – e em seus processos de educação. Concernente à formação dos

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Introdução 12

profissionais de Saúde, uma vez que interesses mercantilistas Influenciaram as

relações profissionais na modernidade, houve transição significativa na interação

entre médicos, enfermeiros com o paciente, de que resultou num modelo formativo e

assistencial desumanizado.

Por lidar com a vida humana, o profissional da saúde enfrenta cotidianamente

os dilemas de natureza ética, que se agravaram na modernidade. Num mundo

profissional que sofre os impactos dos avanços científicos e tecnológicos, da

progressiva complexidade das situações, das escolhas e das decisões das pessoas,

não raras vezes aquele profissional sente-se inseguro ou mesmo desconhece a

melhor forma de agir. Precisamente nesses momentos difíceis ele pode socorrer-se

à Ética, ciência que se configura na ação e, no que respeita ao conhecimento,

contribui com subsídios de análise ampla das situações para a efetivação de

escolhas.

Na formação profissional, especificamente a disciplina Ética procura entender

a natureza das ações humanas, como se geram, suas razões e consequências na

vida das pessoas – individual e coletivamente. Conquanto não se questione sua

importância de favorecer o desenvolvimento humano, na educação profissional de

médicos e de enfermeiros têm se apresentado dificuldades para inserir modelos e

propostas, conteúdos e práticas, com que se construa um projeto eficiente de

formação humana segundo a concepção ética do homem.

Docente de Ética e Bioética numa Escola de Ensino Superior, interessou-nos

investigar como o ensino dessa disciplina se organiza na formação de médicos e

enfermeiros para, posteriormente, propor e introduzir os elementos conceituais de

um modelo ético bem estruturado, circunscrito, à obra de Aristóteles Ética a

Nicômaco. Para tanto, procurou-se relacionar a Ética à Educação, no propósito de

subsidiar discussões em torno da possibilidade de se refletir na formação ética

inserida nos cursos de Medicina e Enfermagem.

A ética já fora ministrada associada à Medicina Legal e, na Enfermagem, por

muito tempo, integrou-se à História da profissão, mais tarde denominou-se

Legislação Profissional e Deontologia, com a carga horária oscilando de 20 a 40

horas/aula, em que se abordavam temas relacionados ao início e ao fim da vida.

Mais recentemente, no movimento empreendido pela Bioética, retomou-se a Ética

propriamente dita, sem que, entretanto, se clarificasse à instituição escolar seu papel

fundamental na formação do médico e do enfermeiro. Não obstante, importa, de

Page 15: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Introdução 13

fato, a formação ética desses profissionais porque o exercício de sua função se

configure efetivamente em atitudes destinadas ao Bem – esfera da ação – no

reconhecimento de inter-relações humanizadas.

Tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais quanto os ideários da educação

apontam para a formação integral dos profissionais da Saúde. Frequentemente se

alude à Ética nos discursos de graduação ou em planejamentos curriculares, em que

se costuma traçar o perfil profissional com vistas à sua formação crítico-reflexiva,

enfatizando-se o trabalho multiprofissional, porque seja capaz de atitudes

compromissadas e responsavelmente desempenhadas. No entanto, percebe-se que

a abordagem se apresenta reduzida a simplificações e há pouco interesse de os

docentes em tratarem a Ética científica e complexamente, ou de favorecerem

avanços no sentido de que seus alunos possam compreender e solucionar os

impasses que se lhes impõe a prática cotidiana. Não se pode negar que tenha

ocorrido certa evolução, sobretudo após a retomada pela Bioética, contudo as

conquistas nesse campo exibem-se tênues, quase imponderáveis, o que está a

indicar o muito que se há de fazer, porque se trata da necessidade, desejo e

interesse de todas as pessoas, particularmente dos futuros profissionais. Eis, pois,

um desafio que se lança a todos os cidadãos, indistintamente.

Importa inserir conteúdo teórico no ensino da Ética, entretanto há de se

cuidar, notadamente, da esfera prática. Como a Ética é pertinente ao âmbito da

práxis e incide diretamente sobre a escolha da ação – não quaisquer ações, mas a

boa ação, a excelência na ação, naquela em que sua execução se dá em sua

melhor forma (ação virtuosa). De modo que, possuir conhecimento teórico de como

se deve agir, sem se efetiva-los nas ações não atinge o objetivo a que se propõe.

Considere-se, inclusive, o pressuposto de que alguns docentes não detenham a

atitude necessária, resultante do conhecimento e da ação, para orientar o estudante

à boa escolha. Por conseguinte, um direcionamento teórico associado à prática e

uma instituição bem organizada com regras e decisões coerentes trarão benefícios

tanto a professores quanto à formação dos estudantes no que respeita às escolhas

e na efetivação da ação, mormente porque estarão atuando dentro de pouco tempo

e por longo tempo.

Posto que o ambiente escolar deva ser intencionalmente favorável ao

desenvolvimento ético das pessoas, na carência desse tipo de propósito cada vez

mais se perderá a qualidade da formação dos estudantes por não se utilizarem,

Page 16: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Introdução 14

nessa fase vital de amadurecimento, as oportunidades de prática, a reflexão sobre

ideias e posturas que, efetivamente, os conduzirão a atuar com competência.

O capítulo inicial deste estudo contemplará o conceito de Ética, de acordo

com a ciência à qual pertence, seu significado e importância, para situar e clarificar o

objeto aqui investigado. Expõem-se a Ética na perspectiva de alguns autores

contemporâneos e a concepção de Bem e Virtude à luz da óptica aristotélica, haja

vista a relevância de seu pensamento na filosofia antiga e na atualidade. O notável

pensador nos legou Ética a Nicômaco – considerada obra-prima da Filosofia – que

tem sido lida, cada vez mais valorizada por diversos pensadores modernos, e da

qual não se pode prescindir ao se abordar a Ética, tal sua significância e

completude.

Inicialmente, o segundo capítulo organiza-se em torno da retrospectiva

histórica da prática médica, do ensino da Medicina ao longo do tempo, de suas

conquistas em conhecimento científico, de descobertas e avanços tecnológicos,

enfim de sua contribuição no diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças. Em

seguida, abordar-se-á a formação do médico na atualidade e, mais especificamente,

de sua formação ética nas escolas de Medicina, sobremaneira após o advento da

Bioética, que introduziu novos horizontes na interação médico - paciente, na

apropriação da capacidade de esse profissional efetivar escolhas mais racionais e

humanizadas. Está aberta, no entanto, a discussão a respeito da melhor forma de

inseri-la nos currículos.

Aborda-se ainda a influencia da Bioética imprimindo novo direcionamento à

formação ética de profissionais da Saúde no terceiro capítulo, dedicado à

Enfermagem. Como ocorreu à Medicina, embora tenha sentido o impacto das

mudanças decorrentes das relações estabelecidas no mundo moderno, não se

perdeu seu objeto de trabalho – o cuidado de enfermagem – que lhe atribuiu um

sentido integral do ser humano. Resgatam-se as modificações na formação do

enfermeiro, seu avanço em conhecimento, suas lutas por garantir o reconhecimento

como prática profissional. Na contramão dessas conquistas, a Enfermagem viu-se

enfraquecida, subjugada diante do peso da divisão técnica de trabalho que lhe

impuseram, restando-lhe transitar a assistência direta ao paciente a um pessoal com

pouca ou nenhuma qualificação. As relações humanas deixaram de ser o foco de

atenção no trabalho do enfermeiro.

Page 17: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Introdução 15

No quarto capítulo, expõe-se o contexto de gênese da Bioética, por meio da

qual se retomou a Ética, mas sob nova e mais abrangente perspectiva:

fundamentação e justificativas do agir destinado à ação humanizada.

Finalmente, no capítulo conclusivo, busca-se na literatura definir o papel da

educação no desenvolvimento ético do indivíduo para, em seguida, situar a

atualidade da formação ética nos cursos de Medicina e de Enfermagem. Partindo-se

do pressuposto de que educar é integrar formação técnica e formação humana,

importa reconhecer que a Ética deve ocupar lugar de destaque nos propósitos da

Educação, uma vez que naquela ciência se conjugam teoria e práxis. Para justificá-

lo, recorreu-se à articulação dos elementos estruturantes da Ethica Nicomachea,

fonte de referência para o conhecimento da ação do homem e, portanto da Ética.

Nesse sentido, o objeto de estudo se amplia ao debate em torno da

possibilidade de se conferir ao profissional da Saúde a formação adequada, que

resgate como centro dos processos educativos o ser humano como parâmetro e não

o mercado de trabalho. Com efeito, é possível apreender que médicos e enfermeiros

venham a determinar como meta de seu trabalho o Bem, caso lhes seja favorecida

uma boa formação profissional, o que inclui orientação em sua formação de modo a

formar disposição para realizar a melhor escolha e esta se efetive em sua ação: a

assistência à saúde pautada na ação virtuosa, o que concorre à boa realização de

sua função – de sua racionalidade e do alcance do Bem que está acima de qualquer

coisa e é desejável por todos.

Page 18: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

CAPÍTULO 1

DA ÉTICA

Page 19: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 1. Da Ética 17

1.1 O Conceito de Ética

A princípio, visando clarificar o objeto de estudo aqui investigado, importa

situar o conceito de Ética num universo científico mais amplo, e apontar quais são

seus valores, sua relevância, seus parâmetros e métodos de operação, posto que de

forma concisa, contudo clara. Introduziu-se o conceito de Ética na perspectiva de

alguns autores contemporâneos e, concernente à concepção de bem e virtude, na

perspectiva aristotélica. Destaca-se o pensamento de Aristóteles dada a sua

importância na filosofia antiga. Entre outras obras, legou à posteridade Ética a

Nicômaco, considerada obra-prima da filosofia moral e tem sido cada vez mais

valorizada como modelo ético nos dias contemporâneos.

Muitos autores têm-se dedicado ao seu estudo, referindo-se à sua aplicação,

porquanto a Ética se traduz na ação do homem para apreender a essência de tudo

quanto existe com uma destinação para o Bem. Há certa concordância, nesse

sentido.

Divide-se a Ética em duas dimensões: a vivida no presente e a situada no

devir, de tal forma que a última serve de guia à primeira. Ademais, pode-se perceber

que há outras duas dimensões contidas na primeira: a do indivíduo e a do indivíduo

em seu entrelaçado de relações com o(s) outro(s) – a sociedade.

Aristóteles anteviu uma relação indivíduo-Estado, sem a qual o homem não

poderia aperfeiçoar-se. Sua inter-relação se dá em todos os âmbitos da sociedade: o

familiar, o pedagógico, o sociopolítico, o religioso. Nesse espaço de relações se

formularam regras utilizadas nas interações humanas.

Segundo Vaz (1999), no período pré-socrático, houve poderosas expressões

do pensamento ético na obra de Heráclito e Demócrito, fontes que, hoje, encontram-

se fragmentadas.

Na antiga Grécia, para o perfeito cumprimento dos valores daquela

sociedade, o jovem aristocrata recebia a educação completa – paidéia – que tinha

como finalidade a realização em cada indivíduo da areté, visando à formação de um

Page 20: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 1. Da Ética 18

guerreiro belo e bom. Além de desenvolver um corpo perfeito, almejava a perfeição

do espírito:

“Sua educação era feita nos ginásios – para a perfeição do corpo – e por preceptores que lhe ensinavam Homero e Hesíodo – para a perfeição de seu espírito. Belo de corpo e alma e bom de corpo e alma, o jovem guerreiro merecia pertencer à nobre estirpe dos aristói, descendente dos deuses”. (CHAUÍ, 2002, p. 157).

A antiga areté – corpo perfeito e a coragem como virtude – já não era mais

suficiente numa Atenas democrática, comercial e artesanal. A excelência se

encontrava na arte política. Desejava-se a virtude no cumprimento das leis e o uso

da palavra pelo cidadão, com participação nos acontecimentos da pólis, por meio de

argumentações e preparo para deliberar nas assembleias. Os sofistas, no início não

atenienses, traziam o debate entre o ser e o devir, além de se dedicarem ao ensino

dos jovens destinando-se a um ofício e para tornarem-se bons cidadãos (CHAUÍ,

2002).

Não obstante, verifica-se que o incipiente marco teórico do pensamento ético

fundou-se em Sócrates, posto que ele não o tenha deixado escrito. Iniciou as

reflexões morais utilizando-se de inquisições sob a forma lógica, de que decorreu a

discussão a respeito de acuradas observações originadas do contato direto com as

próprias coisas da vida tal como existem. O motivo dominante das interrogações

suscitadas por Sócrates visava mostrar aos atenienses “[...] que o verdadeiro valor

do homem reside no único bem inatingível pela inconstância da fortuna, a incerteza

do futuro, a precariedade do sucesso, as vicissitudes da vida: o bem da alma”, o que

se relacionava ao interior do homem (psiche). Encontrava-se aqui o pressuposto

antropológico das muitas concepções do homem, da própria história da Ética. Por

meio da indagação, do uso da Razão, evidencia-se, inclusive, o reconhecimento da

própria ignorância para o aprendizado da verdadeira areté – a virtude. (VAZ, 1999,

p. 95).

Foi na Grécia Antiga que o ideal de educação humana surgiu com o destino e

significado de desenvolvimento da perfeição como própria do ser humano. Esse

ideal de aperfeiçoamento do homem denominou-se Paidéia e, em suas raízes,

relacionava-se à busca da perfeição do corpo pela ginástica, e da mente pela

poesia. Há aproximadamente 2500 anos, após o nascimento da Filosofia, o ideal de

Page 21: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 1. Da Ética 19

perfeição humana fundado na “educação” transformou-se em busca da perfeição do

espírito. Em Sócrates, a perfeição do espírito assume o caráter de busca da Razão.

As categorias do saber ético dos gregos foram reinterpretadas por Sócrates: a

sabedoria, a virtude, a lei e a justiça. As propriamente socráticas – a alma e a virtude

como ciência – foram sistematizadas em Platão, que chegou à definição de justiça:

“[...] um dos valores centrais da tradição grega do saber ético [...]” (VAZ, 1999, p.

101).

Platão não escreveu especificamente acerca da Ética, entretanto a deixou

transparecer através da ideia de ordem. Por seu intermédio, possibilita-se a

unificação da Ética, da Política e da Cosmologia, sob o amparo da teoria das ideias,

assegurando a virtude ao indivíduo e à cidade. Há uma concepção de realidade total

numa relação do ethos e da práxis com o lógos filosófico. Criou, pois, uma ontologia

das ideias entre o Bem e o Ser. Inaugura-se aí “[...] o primeiro grande modelo ético

da história.” (VAZ, 1999, p. 98).

Está presente no pensamento grego a ideia de liberdade e de necessidade; a

primeira como essencial à virtude, e a segunda como predicado da Razão, assim

como a ideia de ordem que rege a realidade do indivíduo e assegura a unidade das

partes no todo. Nessa ordenação está presente o Bem.

As ideias, na concepção platônica, são objetos eternos e imutáveis do

pensamento, de modo que explicam a aquisição de conceitos pelo significado das

palavras e a possibilidade de conhecimento. Com efeito, nesse contexto, a ideia do

Bem figura a Platão como a ideia essencial e suprema, de que decorre sua filosofia

que, aliás, culmina em sua Ética. Constitui-se o Bem no imperativo moral para todos

e cuja efetivação deve destinar-se todo proceder humano. Portanto, concebeu o

pensador tipos fundamentais de virtude: a sabedoria ou prudência, inerente à parte

racional da alma; a coragem, decorrente da vontade; a temperança ou equilíbrio,

próprios da sensibilidade; a justiça, nascida do equilíbrio que se estabelece entre

todas as disposições sociais e éticas (VAZ, 1999).

Em Platão, tal postura adquire a denominação de purificação da alma,

demonstrada na conhecida “Alegoria da Caverna”, onde se narra a saída do homem

do mundo das sombras para atingir o mundo das verdadeiras formas, e, assim, a

verdadeira realidade. Ao mito das cavernas corresponde o alcance ao mundo das

ideias. “[...] A Ética platônica é pensada como estruturalmente articulada à teoria das

Ideias e tendo, portanto, seus alicerces conceptuais no terreno teórico mais tarde

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Capítulo 1. Da Ética 20

designado com o nome de metafísica.” (VAZ, 1999, p. 20). Em Platão, vê-se que

ascender à ideia do Bem é necessário e suficiente para agir moralmente bem. Essa

assertiva foi contraposta por Aristóteles em Ética a Nicômaco. Aponta que há uma

Razão responsável pela epistemologia – razão científica – e outra responsável pelas

ações – razão calculativa –, o que será abordado posteriormente neste estudo.

Concernente à tradição do pensamento ético grego, alguns autores tomam

Aristóteles por fundador da Ética. Vaz (1999, p. 109-110) considera que a Ética

organizada como ciência se deu com Aristóteles: “[...] uma disciplina específica e

distinta no corpo das ciências [...] e que se tornou quase canônico para a tradição

escolar posterior.” Ademais, refere ao pensamento ético de seu criador, entretanto,

como uma continuidade da ética platônico-socrática. Considera-a tão forte, que se

refere a ela como “[...] nova tradição – o aristotelismo – inconfundivelmente distinta,

mas não definitivamente arrancada do tronco platônico.”

Aristóteles viveu por vinte anos na Academia de Atenas, o que lhe possibilitou

aprofundar os conhecimentos e adotar uma postura crítica em relação aos seus

predecessores, deixando um legado inestimável à Filosofia, sobretudo à Ética.

Fundou posteriormente sua própria escola, o Liceu – nome dedicado a Apolo

Liceano, por ficar próximo ao templo em sua homenagem.

Historicamente, a palavra Ética se aplicava à Moral, quer sob a forma de

ciência, quer como arte de dirigir a conduta. A palavra foi utilizada tanto no sentido

de ciência dos costumes quanto no sentido de moral prescritiva. Decorrem daí as

aplicações nos dois sentidos. Mais ainda se emprega com o sentido comum ou

mesmo vago da palavra “moral”.

Define-se Ética como “ciência que tem por objetivo o juízo de apreciação,

enquanto se aplica à distinção entre o bem e o mal.” (ÉTICA, 1999, p. 348). Cabem

aqui três distinções: a moral então definida como o conjunto de prescrições

admitidas em época e sociedades determinadas; etografia ou etologia, a ciência que

tem por objeto a conduta dos homens e a Ética propriamente dita – ciência cujo

objeto são os juízos de apreciação dos atos qualificados como bons ou maus.

Considera-se ainda sua inter-relação, admitida a possibilidade de diferenciação

entre elas.

Para Vázquez (1997), Ética corresponde ao tipo de conduta humana fundada

na ação refletida, considerando as normas reconhecidas como obrigatórias e válidas

numa sociedade. Decorrente dessa concepção, constata-se que, em não se tratando

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Capítulo 1. Da Ética 21

de conduta espontânea e natural, vem a definir-se, pois, o comportamento moral,

mormente porque apoiados em normas que lhes norteiem moralmente o

comportamento, outros indivíduos formulam juízos de valor, aprovando ou

desaprovando a conduta de outrem. Assevera o autor que tanto os atos quanto os

juízos morais dos indivíduos pressupõem certas normas que se destinam a um

determinado dever ser no contexto social. Não obstante, reconhece Vázquez que

não é propósito da Ética formular normas, senão entender o comportamento moral,

sua essência, em que consiste o Bem, enfim.

No que concerne aos problemas teóricos de caráter moral, Vázquez aponta

um domínio da Ética que não visa ditar qual a melhor ação a ser tomada em

situações concretas da vida. No entanto, a busca de compreensão teórica do agir

moral não raro gera consequências práticas, visto que os homens podem balizar sua

conduta moral nos princípios gerais, então definidos pela Ética.

Por sua vez, Vaz (1999, p. 18) toma por verdadeira a natureza filosófica do

saber ético, tanto que, na cultura contemporânea, reconhece que restou designada

uma ciência humana voltada à “[...] descrição dos aspectos empíricos e das formas

históricas do ethos ou a circunscrevê-la ao domínio da metaética.” Acrescenta que a

tendência para atribuir diferentes matizes à Ética e à Moral, com o propósito de

caracterizar o agir humano – social e individual –, decorre da crescente

complexidade da sociedade. E, uma vez inserido no emaranhado de relações, essa

inclinação ocorre ante à emergência de o indivíduo se confrontar com o todo social.

À época de Aristóteles, não havia por que considerar tal distinção ou

confronto, dado que ocorria apenas continuidade nas relações indivíduo-sociedade e

vice-versa. De fato, apenas na ciência moderna se faz imprescindível a

diferenciação, ou mesmo oposição entre as motivações individuais para o modo de

proceder, uma vez que os sujeitos sociais se veem impelidos por necessidades e/ou

interesses, além de se submeterem aos objetivos da sociedade política. Nesse

sentido, vê-se o emprego do termo Moral concernente ao âmbito da práxis individual

e Ética, ampliando-se seu significado para abranger a práxis social.

Conquanto muito se empenhasse Hegel em unificar os termos, a tendência

teórica foi para se utilizar o termo moral quando se referisse à subjetividade do agir,

ao passo que Ética costuma designar a realidade histórica e social dos costumes.

Vaz (1999, p.16), ratifica suas ponderações declarando que a distinção entre

as expressões Ética e Filosofia Moral se perpetua na linguagem contemporânea

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Capítulo 1. Da Ética 22

especializada. Não obstante, esclarece que, embora em seu texto de estudo os dois

termos ocorram em sua sinonímia original, ele prefere o termo Ética/ética, para o

substantivo e adjetivo respectivamente: “[...] de acordo com a procedência histórica

reivindicada pelas primeiras formas do discurso filosófico sobre o ethos que a

tradição consagrou com o vocábulo ética.” No que respeita ao termo Moral,

substantivo ou adjetivo, ele o utiliza em expressões já fixas no uso corrente, como

consciência moral, lei moral, moralidade e norma da moralidade.

Em Chauí (1998, p. 335), lê-se que “o senso moral e a consciência moral

dizem respeito a valores, sentimentos, intenções e ações referidos ao bem e ao mal

e ao desejo de felicidade.”

A despeito da evolução semântica de Ética e Moral, Vaz (1999, p. 14) afirma

que não há diferença significativa entre os dois termos, já que designam

fundamentalmente o mesmo objeto, “[...] seja o costume socialmente considerado,

seja o hábito do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e legitimado pela

sociedade.”

O mesmo estudioso chama à atenção a respeito da necessidade de

fundamentação filosófica para a Ética, porquanto essa ciência reivindica o saber

filosófico, porque sua aplicação não se reduza no uso empírico de formação de

grupos humanos. Uma vez pautada no saber filosófico, asseguram-se, dessa

maneira, a fundamentação e universalização que a Ética exige.

Para legitimar a carência de se fundamentarem linguagens e lógicas éticas,

no sentido de aprimorar e plenificar sua práxis no complexo universo social atual,

Vaz afirma que se faz imprescindível a recuperação de conceitos da Ética antiga.

Em breve definição – a Ética como ciência do ethos –, Vaz delineia seu

campo de investigação, reflexão e de sistematização de caráter epistemológico e

ontológico, além de definir seu objeto de investigação – o ethos.

Cortina e Martínez (2012) apresentam a Ética como a área de conhecimento

pertinente ao campo da Filosofia que se dedica à reflexão moral. Denomina-a Ética

ou Filosofia Moral, quando estabelece por seu objetivo último esclarecer, por meio

da reflexão, o campo da Moral. Trata-se, pois, de saber construído solidamente em

conceitos e argumentos concernentes à dimensão moral do homem, ou seja, à sua

práxis.

Dentre os vários empregos do vocábulo moral na época contemporânea,

encontram-se várias interpretações. Há o que designa um sistema de conteúdos que

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Capítulo 1. Da Ética 23

sintetiza determinada forma de vida, em que estão contidos valores, princípios,

preceitos e normas. Essa acepção reflete “[...] um determinado modelo ideal de boa

conduta socialmente estabelecido [...]” Cortina e Martínez (2012, p. 14), sob o

prisma empírico estudado por muitas outras ciências, como a Antropologia, a

Sociologia, a História, ao passo que a Ética, indiretamente embora, pretende orientar

a ação humana.

Utiliza-se ainda o vocábulo para referir-se a um código de conduta subjetiva, a

um código moral que se presta de guia, muitas vezes coincidindo – mas não

necessariamente - com o código moral social. Iniciado por maiúscula, pode ser

empregado para nomear a ciência que trata do Bem em geral, ou ainda aquilo que

ela prescreve como mais adequado a uma diversidade de doutrinas morais, e ainda

como uma disciplina filosófica – a Filosofia Moral ou Ética.

Cabe recorrer a uma diferenciação decisiva, segundo Cortina e Martínez, que

se passa a citar em seguida:

Temos de insistir na distinção entre os dois níveis lógicos que representam as doutrinas morais e as teorias éticas: enquanto as primeiras tratam de sistematizar um conjunto concreto e princípios, normas preceitos e valores, as segundas constituem uma tentativa de explicar um fato: o fato de que os seres humanos se orientam por códigos morais, o fato de que existe moral, fato que nós a partir daqui vamos denominar “o fato da moralidade”. Essa distinção não impede que, no momento de elaborar determinada doutrina moral, se utilizem elementos tomados das teorias éticas, e vice-versa. De fato, as doutrinas morais costumam ser construídas mediante a conjunção de elementos tomados de diferentes fontes [...] (CORTINA; MARTÍNEZ, 2012, p.15).

No entanto, Cortina e Martínez preferem distinguir os termos Ética e Moral no

que diz respeito ao mundo acadêmico. Aplica-se o termo Ética referindo à Filosofia

Moral, tratada à maneira de disciplina filosófica e moral, em que se atribuem

princípios, normas e valores como orientação de conduta para viver uma vida, boa e

justa.

Discrimina, ademais, um ajuizamento moral correto de um juízo ético

propriamente dito a respeito de temas polêmicos que suscitem discussão na

sociedade humana, entre os quais a legalização de drogas ou do aborto, a pobreza

etc.. O juízo moral pode ser elaborado por qualquer pessoa, desde que haja

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Capítulo 1. Da Ética 24

interesse em conhecer os princípios básicos da doutrina moral considerada válida,

tenha certa habilidade de raciocínio e esteja bem informada acerca do assunto em

questão. Por outro lado, após proceder a argumentos filosóficos, o juízo ético analisa

e propõe conclusões relativas ao objeto que levou a aceitar como válida uma

doutrina moral. É efetivado por um especialista ou por aqueles que se dedicam a

analisar mais profundamente o problema.

No mundo profissional, a Ética foi intensamente marcada pela recorrência a

Códigos de Ética, considerados etiqueta por muito tempo, um modo de relacionar-se

com os outros polidamente, sobremaneira no trato a colegas profissionais, sem que

se cometam deslizes e/ou abusos à sua autonomia, privacidade, segurança. A

outros, tais códigos representam apenas regras de conduta que, uma vez

descumpridas, são passíveis de punição.

Mais recentemente, tentou-se reaver seu propósito de guia destinado à

interação sócio-profissional, porque haja entendimento dos princípios neles contidos

e se atinjam relações pautadas na boa conduta – mais justas, respeitosas,

beneficentes, altruístas... – sobretudo, porém, no sentido de um esforço pessoal e

coletivo por encontrar fundamentação para as ações usuais no trato social.

No dia a dia da vida familiar, social, profissional, em todas as áreas de

prestação de serviços, depara-se com questões próprias das relações humanas,

quando se devem tomar iniciativas, optar, decidir a respeito de um sem-número de

circunstâncias que vão desde as mais corriqueiras às de maior complexidade. Eis

alguns poucos exemplos dessas situações: Devo passar no sinal vermelho num

horário de pouco movimento e muita pressa? Devo ficar dias a mais com livro

emprestado da biblioteca, mesmo sabendo que há poucos volumes e muitos

esperam para retirá-lo? Devo continuar a pesquisa que me dará muito prestígio e

recompensa financeira, mesmo me utilizando de recursos já comprovadamente

prejudiciais aos sujeitos participantes do estudo? Devo respeitar a autonomia do

paciente, ou aplicar o tratamento que acredito ser mais eficaz, mesmo sem a sua

concordância? Devo abreviar o sofrimento de uma pessoa em estado terminal?

Devo manter o sigilo acerca de um paciente portador de doença contagiosa e

colocar em risco o bem-estar da comunidade? Devo investir em projetos que

beneficiem a poucos e ainda influenciar em licitações de empresas que me trarão

ganhos individuais, quando posso, em vez disso, escolher projetos que beneficiarão

um conjunto maior de pessoas, comunidades inteiras? Devo cobrar 50% a mais para

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Capítulo 1. Da Ética 25

obter lucro com a venda deste produto? Devo retirar da fórmula do medicamento um

componente para cuja obtenção me sairá oneroso? Devo mesmo destinar à

educação e à saúde os percentuais exigidos constitucionalmente? etc..

No âmbito prático, cada pessoa deve estar ciente das consequências de seus

atos, não apenas para si mesma senão também para toda esfera social. No entanto,

há a necessidade de pautar o comportamento em normas aceitas, válidas, e

reconhecidas como obrigatórias numa sociedade. Porque são norteadoras para

nossas ações, tais normas refletem o que é melhor para a sociedade. Dada à

diversidade de comportamento, normas se fazem reconhecidas e absolutamente

imprescindíveis. Uma vez interiorizadas pelos indivíduos, geram um imperativo de

ação, ou seja, um sentimento de dever agir de uma determinada maneira.

Nesse sentido, códigos, normas e leis orientam e educam. O chamado

Código de Ética dos profissionais é considerado, porquanto busca normatizar

condutas - aceitas e acatadas como certas por determinada comunidade

profissional. Se necessário, torna-se punitivo em caso de erro ou dano provocado a

outrem. Utilizam-se os Conselhos de Classe e Comitês de Ética nas instituições que

apuram e julgam os erros cometidos por toda sorte de profissionais. Como toda

legislação ou normatização direcionada a um conjunto de pessoas, visa, além de

coibir a ocorrência de erros de ordem profissional por meio de punições, orientar à

conduta mais adequada.

Nesse aspecto, importa registrar que, após a Bioética empenhar-se no

movimento introduzido na década de 70, à Ética reouve a devida importância,

sobremaneira nos cursos de Medicina e Enfermagem. Expandiu-se, inclusive, aos

Cursos de Direito. A Bioética entre outras perspectivas, procura desenvolver no

profissional o pensamento reflexivo, a respeito de sua prática, de modo que suas

atitudes cotidianas passem a ser mais sensatas, conscientes e, conforme se

prescreve para a área da Saúde, mais humanizadas.

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Capítulo 1. Da Ética 26

A seguir, apresentar-se-ão algumas das reflexões de Aristóteles, que propôs

que pelo exercício da potencialidade para ser virtuoso o homem cumpri o propósito

ou função a que ele se destina. Orientar-se sob o princípio do Bem é próprio do

phronimos – aquele que foi educado com boa disposição para calcular qual a boa

ação ou ação virtuosa, conforme a óptica de um de seus estudiosos:

[...] do ponto de vista do agir bem, a boa ação (virtuosa) seria aquela que atenderia a um justo meio (μεσοηϛ) (que não consiste numa média aritmética), estabelecido pelo phronimos, o qual, portanto, seria o mais apto a aquilatar sobre qual a justa medida entre o excesso e a falta (ações viciosas), ou seja, seria o mais capacitado para calcular a boa ação dentre as ações e, com isso, poder agir bem. (PEREIRA, 2006, p. 20).

Conquanto pressuponha domínio teórico, a obra Ética a Nicômaco dedica

especial atenção ao campo da práxis, visto que, para Aristóteles, se não se reverter

em determinado tipo de ação, o conhecimento resulta inepto, inócuo, estéril.

Aristóteles entendia, pois, que é favorecida ao agente a possibilidade de agir de

certo modo – virtuoso – e para isso há que se ter certo conhecimento, com finalidade

prática.

A Ética, portanto, não é uma ciência exata, posto que intervenha no domínio

prático do pensar, calcular, julgar, discernir. Por sua vez, a ética aristotélica é um

recurso que possibilita conduzir o conhecimento acerca das condições que geram

ações boas. Particularmente ao tema do presente estudo, presta-se à propositura de

uma melhor maneira de investir na formação ética do médico e do enfermeiro.

Aristóteles considera dois tipos de conhecimento, teorético, aquele cujo fim é

o próprio conhecimento, e o produtivo, que trata de um conhecimento prático, pois

seu objetivo são as ações. Nesse sentido, se a Medicina e a Enfermagem ministram

conhecimentos que têm em vista um fim prático, importa que se valorize o

conhecimento da Ética na formação profissional oferecida a seus alunos, cuja

finalidade seja a excelência da ação. Coincide, pois, com o propósito de todo aquele

que recorre ao serviço de saúde. Desse modo, há que se esmerar na qualidade do

ensino quando se tratar da Ética.

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Capítulo 1. Da Ética 27

1.2 Ethica Nicomachea

Aristóteles presenteia a posteridade com a obra Ética a Nicômaco – uma

inestimável contribuição mesmo para os dias atuais. Muitos reconhecem o valor de

sua investigação, razão por que se amplia a possibilidade de recobrar sua proposta

como uma forma de lidar com situações inusitadas da vida a exigir, de cada um,

decisões frente às contingências, porque se possa fazer a melhor escolha.

Dotado de grande saber e inteligência, versou todas as matérias e lançou as

bases para que outros pensadores viessem posteriormente refletir acerca de como o

homem deveria proceder para julgar e decidir frente às contingências, utilizando-se

de racionalidade para discernir qual a melhor das escolhas. Pondera a respeito das

ações humanas e afirma o desejo como móvel da ação, desenvolvido pelo hábito,

por meio do qual o homem desenvolve disposições para a virtude ou para o vício.

Em cada ação executada se gera novas ações com vistas a um fim. Alguns fins são

meios para alcance de outros fins, no entanto, todos tem em vista o sumo Bem.

Neste sentido, toda e qualquer ação que empreende constitui um meio destinado a

alcançar o fim último – a eudaimonia – o sumo Bem. Esse preside, guia todas as

ações. Nas atitudes sempre melhor efetivadas, na excelência de sua ação, o agente

moral pode atingir a felicidade – boa vida/bem viver – subentende-se não uma vida

qualquer, mas uma boa vida, a vida vivida em sua melhor forma, com vistas ao Bem.

Afirma Aristóteles que, só é possível o alcance da felicidade na efetivação de uma

vida virtuosa e essa só se dá na consecução de ações virtuosas. Para atingir esta

finalidade última são necessários vários elementos, boa família, bens materiais,

corpo saudável, mas um deles é essencial – a virtude. Pois, uma alma corrompida

não leva a uma vida feliz. As virtudes da alma se dividem em duas: as virtudes do

caráter e as virtudes do intelecto. Ambas se guiam pelo raciocínio; não obstante, a

Razão e o desejo combinados são princípios da ação. Dessa forma, o agente moral

reconhece o prazer, ao realizar cada empreendimento que se destine àquele fim,

como alcance para toda sua vida, pelo uso da Razão, perseguindo a reta Razão.

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Capítulo 1. Da Ética 28

Mas é a virtude moral que determina que seja reto o nosso propósito e escolhamos

os devidos meios. A excelência ou virtude é o logos na sua melhor forma que

possibilita assim a melhor escolha.

Aristóteles indica que a virtude pode se desenvolver pela aprendizagem. Pela

orientação se gera ou destrói toda virtude. Desde a tenra idade, o homem aprende

com outras pessoas, de cuja orientação ele não pode prescindir, uma vez que esse

aprendizado é fundamental para a sua conduta destinada ao alcance da

eudaimonia.

Sabe-se que um dos méritos de Aristóteles consiste em raciocinar sobre cada

objeto em conformidade com os princípios que lhe são próprios. Na Ética a

Nicômaco é de fato encarada com todo o rigor, o que é próprio do autor. Sua

argumentação aponta para a possibilidade de se desenvolver a ação virtuosa por

meio da prática habitual e o exercício da Razão calculativa na determinação da

melhor escolha.

A ética aristotélica não admite a possibilidade de se determinar a priori qual

seja a melhor ação. A habilidade de escolher com discernimento – que é deliberada

– dá-se nas contingências sobre as coisas, que são variáveis. Delibera bem quem

visa ao melhor entre as coisas que podem ser alcançadas pela ação no justo meio,

que é próprio do homem virtuoso, porquanto “[...] as virtudes são modalidades de

escolha, ou envolvem a escolha.” (EN, 1106a4). Disto trata a obra Ética a

Nicômaco (EN) de Aristóteles.

A Ética a Nicômaco constitui obra de extraordinária repercussão, marcada

de inegável relevância para a história da Filosofia. Com efeito, foi/é lida por

expressiva parte dos filósofos que, então, deixaram-se influenciar por seu conteúdo,

inclusive Kant, que é reconhecido pelo estudo da Filosofia Moral. Nunca uma

filosofia influiu tanto no pensamento do mundo.

Desde o início da referida obra, Aristóteles estabelece a relação intrínseca

entre Ética e Política, asseverando que ambas – formação e vida do homem –

submetem-se ao domínio e soberania desses dois âmbitos. Aqui se encontra a

referência a ser utilizada neste estudo, com o propósito de ponderar a formação

ética na essência de sua interação entre Ética e Política.

Nesse sentido, apenas no domínio da polis é possível atingir a felicidade no

plano individual. É ela a maior responsável pela disposição formada nos cidadãos.

Para isso a polis deve ser organizada. Assim, faz-se imprescindível que cada um

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Capítulo 1. Da Ética 29

exerça bem a sua função. Sem a organização da polis, não se alcança a felicidade,

e, sem a ação virtuosa de cada individuo, não há felicidade para a polis. Os dois

âmbitos se complementam. Declara ele que a finalidade da Política deva ser o bem

humano. Atingir o Bem coletivo ainda é mais completo que atingir o Bem para o

indivíduo, pois se subentende que a lei geral orienta ou influi na ação individual. No

entanto, a Ética ocupa o âmbito particular, pelas escolhas.

As virtudes morais não podem ser ensinada, mas são desenvolvidas por meio

de uma boa orientação, que formará o hábito e por conseguinte o desejo de agir

bem. Não obstante, Aristóteles numa argumentação bastante sólida, indica de que

maneira o homem desenvolve a virtudes morais, pois são elas ingredientes dos mais

importantes para alcançar a eudaimonia. Este ideal orienta o homem, na medida em

que o busca em toda atividade que empreende. Aristóteles assim expõe a ideia :

Ora, como são muitas ações, artes e ciências, muitos são os seus fins [...] o fim da arte médica é a saúde, o da construção naval é um navio [...] em todas elas os fins das artes fundamentais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque esses últimos são procurados a bem dos primeiros.” (EN, 1094a8).

Pode-se constatar essa assertiva na abertura da obra de Aristóteles: “Admite-

se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como ação e toda escolha,

têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é

aquilo a que todas as coisas tendem” (EN, 1094a1).

Seja qual for a atividade, a arte (téchne: conhecimentos práticos como a

medicina, música, navegação), a investigação (ciência teorética), tudo concorre para

a satisfação de uma única e desejada instância: o Bem, ou o sumo Bem. Se todas

as ações forem desejadas com vistas a este fim, estar-se-ão de acordo com a

função própria do homem – a ação em sua melhor forma, a virtuosa. Atinge-se,

desse modo, a excelência na ação.

O filósofo inicia a investigação a respeito do Bem na ação humana com uma

indagação: se o Bem é importante em nossa vida, por que não o conhecer

profundamente, para que a ele mais facilmente nos possamos conduzir? Enfatiza-se

aqui um primeiro ponto na ética aristotélica: o conhecimento do Bem, cuja finalidade

não seja o próprio conhecimento – teorético, mas o de possuí-lo e desejá-lo, sob o

controle da Razão como guia para a ação. Desse modo, torna-se conhecimento

produtivo.

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Capítulo 1. Da Ética 30

Longe de ser uma ação qualquer, institui-se uma ação boa, dado que a

racionalidade é peculiar ao homem, capacitando-o, de certa forma, à escolha da

melhor ação, como se entende neste fragmento:

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom tal-e-tal” têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade – pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim o é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. (EN, 1098a 14).

Aristóteles expõe uma visão teleológica da natureza, asseverando que tudo

quanto existe tem uma causa final ou propósito final. Conhecer a causa final de uma

coisa corresponde a saber se ela é boa para o seu tipo de função e de que coisa ela

precisa para cumprir o seu propósito. O propósito de existir de uma cadeira é servir

para sentar; aquela em que você não pode sentar não é uma boa cadeira. Caso ela

não cumpra o seu propósito, não é uma cadeira. O bom para aquela cadeira é ter

quatro pernas, para equilibrar e sustentar alguém que nela se sente. Conhecendo o

seu propósito, sabe-se de que se precisa para realizar aquele mesmo propósito. O

propósito da planta é crescer e florescer; uma boa planta é aquela que cresce com

sucesso e qualquer coisa que facilite o seu crescimento é bom para a planta.

No entender do filósofo, da mesma forma, o homem possui uma causa final.

Um homem bom é aquele que realiza o seu propósito, e tudo quanto facilite essa

realização é bom para o homem. O propósito do homem é pôr em execução sua

capacidade de racionalizar com excelência, e, procura-se no adulto, sua

funcionalidade otimizada. Nisso está contido o exercício das suas virtudes. Para ser

excelente, tem que exercitar ambas as partes da alma que se guiam pelo raciocínio:

as virtudes intelectuais e as virtudes morais.

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Capítulo 1. Da Ética 31

A racionalidade é central na ética aristotélica, sobretudo aquela orientada

para escolha boa, praticada continuamente para atingir a excelência na sua função.

O que é peculiar ao homem é uma vida de atividade, orientada pela Razão. E a

função de um bom homem é, portanto, a boa realização desta função, a que se

acrescenta:

[...] e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim o é] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. (EN,1098a13).

Por conseguinte, todo trabalho e todo conhecimento visa a algum bem, ao

passo que a ação visa alcançar o mais alto Bem. A concepção de Bem pode diferir

de um para outro indivíduo: para uns pode significar riqueza; para outros, a saúde,

por exemplo. Aristóteles argumenta que os bens mais verdadeiros são aqueles

relacionados à alma. E há um Bem que se destaca como causa da boa realização

das demais: o Bem supremo – a felicidade, que deve corresponder à virtude, ao que

há de melhor em nós, guiados que somos pela Razão: constituída pelo desejo. Esse

tipo de atividade deve perpetuar-se por toda vida, porquanto o homem não se torna

virtuoso pelo mero fato de realizar determinada ação, mas uma instância favorece a

outra, até que se forme o hábito e, assim sucessivamente, contribui na disposição

para agir virtuosamente.

Por disposições de caráter entende-se: “[...] as coisas em virtude das quais

nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência

à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e

boa se a sentimos moderadamente [...]” (EN, 1105b25).

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Capítulo 1. Da Ética 32

Toda ação e propósito têm como finalidade um bem que lhe é próprio. O Bem

para a Medicina é a saúde; para a Arquitetura, a casa. O fato de tê-lo em vista

realiza todo o resto, segundo Aristóteles. Os fins são vários e nós os escolhemos em

vista do Bem supremo :

Não deliberamos acerca de fins, mas a respeito de meios. Um médico, por exemplo, não delibera se há de curar ou não, nem um orador se há de persuadir, nem um estadista se há de implantar a ordem pública, nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade. Dão a finalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcançá-la; e, se parece poder ser alcançada por vários meios [...] (EN,1112b11).

No entanto, um deles merece buscar-se por si mesmo, jamais é escolhido,

tendo em vista outra coisa; “...por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo

que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.” (EN,

1097a40). Tal é o conceito de felicidade, o Bem que se persegue, fundando-se no

interesse de si próprio, e não de outra coisa. Assim determina uma certeza que

permanece orientadora:

É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria. (EN, 1097b1).

Para Aristóteles, a felicidade é a vida completa, apenas alcançada quando o

homem realiza a sua função da melhor maneira, triunfando com excelência no

desempenho de uma função. Se fosse possível uma síntese de sua obra pertinente

à Ética, poder-se-ia dizer: a felicidade do homem está onde se faz o bom uso da

Razão, na constância de sua aplicação ao longo da vida, não apenas por breve

período de tempo.

Descobre-se no tempo um eficiente colaborador do homem que, exercitado

na Razão, impelido e motivado pelo desejo, empenha-se diariamente no propósito

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Capítulo 1. Da Ética 33

de buscar a perfeição durante toda a vida, no sentido de realizá-la bem e para o

Bem, de acordo com a bondade e a excelência da ação – atividade virtuosa –. Por

conseguinte, o tempo o auxilia no exercício da atividade virtuosa: “[...] o homem feliz

vive bem e age bem; pois definimos praticamente a felicidade como uma espécie de

boa vida e boa ação.” (EN, 1098b20).

A Ética e a Política – ambas intervindo na ação individual e na coletiva –

visam a um objetivo comum: a formação do homem virtuoso, aquele que é nobre e

justo porque escolhe com prudência. Chama-se a atenção a um ponto de extrema

importância para que isto ocorra, conforme afirma Aristóteles: “[...] é preciso ter sido

educado nos bons hábitos.” (EN, 1095b5).

Ao homem bem educado, assiste-lhe mais facilmente conhecer e agir em

consonância com o Bem, segundo Aristóteles. Por outro lado, a maioria dos homens

vive destituída de certo fundamento, de forma que identificam o Bem e a felicidade

na vida de prazeres imediatos e de gozo. Não que alguns elementos não concorram

para a vida feliz: riqueza, corpo perfeito, amigos e família, mas a virtude é o mais

importante deles, se se pretende alcançar a felicidade. Assegura Aristóteles que ao

homem de grande refinamento (educação) e nobreza de caráter, sobrepõe-se

preferentemente a virtude. Aristóteles define a virtude :

A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio termo entre dois vícios, um por um excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. (EN, 1106b 35).

Ao homem virtuoso, o prazer é decorrente da realização de atos que se

consideram corretos. Com efeito, partindo-se do pressuposto de que o desejo se faz

móvel da ação, há que se considerar a diferença da ação praticada pelo animal e

pelo homem, respectivamente. Enquanto aquele é regido por reações instintivas,

este deseja preferencialmente que sua escolha seja precedida de deliberação, o que

é facultado pela Razão calculativa e movida pelo desejo, para a qual a disposição

virtuosa tem fundamental importância.

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Capítulo 1. Da Ética 34

Por outro lado, o sujeito incontinente (acrático) é dominado pelos impulsos.

Por conseguinte, o desejo lhe impele a ação. É imperioso que se eduque, no

homem, certo tipo de desejo, para que ele seja continente a ponto de conquistar

autodomínio para efetivar ações da melhor forma possível, porquanto foi educado

gradativamente para disposição virtuosa que, por sua vez, inclina-o e o orienta

justamente para esse tipo de ação. Num processo habitual, com o tempo, o agente

adquire a inclinação e o desejo de agir norteando-se por uma única forma – a

virtuosa. A disposição é uma espécie de segunda pele, uma segunda natureza, uma

forma de agir aprendida e efetivada no hábito. Quanto mais cristalizada a forma de

agir – virtuosa ou viciosa – tanto mais difícil ocorrerá variação ou mudança. Por isso

Aristóteles alerta para a necessidade de educar a criança para a escolha boa.

A boa escolha realiza-se no encontro coincidente do desejo com a reta

Razão, a capacidade de calcular a melhor das escolhas. A virtude moral implica que

seja reto o nosso propósito e escolhamos os devidos meios. A reta Razão calcula a

melhor das ações que não está pronta, mas é calculada, diante de um

acontecimento.

Entende-se por Razão calculativa a faculdade exclusivamente possuída pelo

homem de ponderar (avaliar prospectando) em defesa de suas ações e escolhas.

Desse modo, age com reflexão, prudência, discernimento, sensatez, equilíbrio etc. e

encontra o justo meio, o justo equilíbrio no confronto, nas oposições de escolhas.

Para que o desempenho da Razão seja bom – o que não consiste no

excesso, nem na falta – faz-se necessária a relação com ele mesmo e a relação

com a própria coisa em juízo.

O conceito de mediania em Aristóteles é fundamental para o entendimento da

excelência na ação, característica exclusiva do homem virtuoso – phronimos – o que

possui a sabedoria prática. Pois a justiça e a temperança são destruídas pelo

excesso e pela falta e são preservadas pela mediania. Evidenciam-se, nesses

excertos, a especificidade da virtude, e da capacidade de o agente moral deliberar e

efetivar a melhor escolha, não por um princípio determinado a priori, assim

consideradas moralmente boas, senão na mediania calculada no âmbito das

contingências.

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Capítulo 1. Da Ética 35

Trata-se de cada indivíduo encontrar o meio termo, que não é um só, nem

coincidente para todos:

Quando o desejo opera sozinho, sem o lógos, as ações são, de certo modo, do domínio da necessidade, sem a possibilidade daquele que engendra a ação escolhê-lo. Por outro lado, quando o desejo é acompanhado do lógos, perfazendo com isso a escolha, há a possibilidade das ações contrárias na esfera da contingência. Destarte, o lógos, ao engendrar a possibilidade dos contrários, de certo modo sustentaria a esfera ética, na medida em que garantiria àquele que o possui escolher uma das ações possíveis na contingência que o mundo sublunar comporta. (PEREIRA, 2006, p. 19).

Em Aristóteles, uma ação só pode ser considerada moralmente boa, se ela for concorde com o justo-meio. O justo-meio não consiste em uma média aritmética (assim como o 3 é o meio termo entre o 2 e o 4), pois ele depende tanto do objeto, o qual varia caso a caso, quanto daquele que age, não sendo o justo meio o mesmo para todos os indivíduos com relação ao mesmo objeto. (PEREIRA, 2011, p. 35).

[...] em todas as coisas o meio termo é louvável e os extremos nem louváveis nem corretos, nem dignos de censura. (EN, 1108a15).

No extremo relativo à cólera, existe o excesso, o homem irascível; em sua

falta, há o homem pacato; em relação à verdade, a jactância e a falsa modéstia; seu

meio-termo corresponde à veracidade. Com respeito à aprazibilidade, há dois tipos:

o chocarreiro (insolente); em sua falta, surge o rústico, e o meio-termo marca o

espirituoso. O outro tipo de aprazibilidade respeita à amabilidade, em cujo excesso

se gera uma pessoa obsequiosa ou lisonjeira; na sua deficiência, o homem se

mostra desagradável, mal-humorado e rixento. Também há o meio-termo nas

paixões: em relação à vergonha, em sua falta gera-se o despudorado; em seu

excesso, o acanhado; já seu meio-termo coincide com a pessoa modesta.

Entre a inveja e o despeito, está a justa indignação. A esse respeito, declara

Aristóteles: “[...] estas disposições se referem à dor e ao prazer que nos inspiram a

boa ou má fortuna de nossos semelhantes [...]” (EN, 1108b35). O homem que se

caracteriza pela justa indignação se aflige com a má fortuna imerecida, ao passo

que o invejoso aflige-se com a boa fortuna alheia Já o despeitado não se aflige,

chega ao ponto de rejubilar-se.

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Capítulo 1. Da Ética 36

Considerando a concepção de Aristóteles, verifica-se que não é fácil

encontrar o meio termo, porquanto estão mais perto dele os extremos que em

relação ao extremo oposto. Deve-se levar em consideração, inclusive, que aquilo a

que mais tendemos, por natureza, é mais contrário ao meio-termo. Apenas ao

agente moral – aquele que desenvolveu disposição, experiência e raciocínio,

espécie essa de percepção – é possível determinar o meio-termo, localizado entre o

excesso e a falta. Trata-se de estado mediano, de certa forma correspondente à

temperança e em perfeita consonância com a reta Razão.

Realiza-se a deliberação segundo a disposição do agente, e apenas a

escolha efetivada na mediania é concernente à ação moralmente boa. Esse tipo de

ação é própria do homem que desenvolveu a sabedoria prática – phronimos. Apenas

se precisa o justo-meio no momento da ação; varia de um indivíduo para outro e

segundo as contingências, conforme se verifica no fragmento :

O phronimos possui a capacidade calculativa que possibilita achar o justo meio. E este será condizente com a ação correta: “Com efeito, as proposições relativas à conduta, as universais são mais vazias, mas as particulares são mais verdadeiras, porquanto a conduta versa sobre casos individuais e nossas proposições devem harmonizar-se com os fatos nesses casos. (EN, 1107a28).

O domínio da Ética se dá no campo do que é variável; admite, pois, grande

variedade e flutuações de opinião, o mesmo ocorrendo em torno dos bens. Por

conseguinte, há de se considerar, além de conhecimento, a experiência para saber

controlar as paixões, saber julgar bem as coisas que conhece. Em larga escala

depende do modo de viver. Acrescenta-se aqui que, na ética aristotélica, a

ação/escolha realiza-se pela Razão calculativa, em detrimento da Razão científica,

que pouco opera no domínio ético, que se dá sobre as coisas que são variáveis.

A sabedoria prática, que é própria do phronimos, não é habilidade, opinião ou

conhecimento: vai além da inteligência e intuição, o que significa que ela não se

limita a entender (apreensão da verdade científica) e julgar, próprio do homem

perspicaz. A sabedoria prática realiza cálculo, por meio do uso da Razão, permitindo

ao homem deliberar com excelência, fundando-se no conhecimento, na experiência

e, sobremaneira, pela disposição em agir, deixando-se guiar conforme o Bem.

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Capítulo 1. Da Ética 37

Segundo Aristóteles, à sabedoria filosófica – conhecimento científico/teorético

combinado com a Razão intuitiva a respeito de coisas mais elevadas, invariáveis,

destituída de finalidade para a práxis – o homem deve preferir a sabedoria prática,

um bem acima de todos, que versa sobre as coisas propriamente humanas,

alcançada pela ação humana mediante a deliberação: “De modo que delibera bem

no sentido irrestrito da palavra aquele que, baseando-se no cálculo, é capaz de visar

à melhor, para o homem, das coisas alcançáveis pela ação.” (EN, 1141b7).

Toda deliberação traduz-se por investigação. Dessa maneira, investigam-se

as possibilidades, analisa-se a melhor maneira de alcançar uma finalidade

estabelecida previamente, consideram-se a maneira e os meios de alcançar a sua

consecução. Aquilo por que se optou consiste no objeto de escolha e este

corresponde, pois, àquilo que se deseja; contudo, não antes da análise e da

deliberação.

Aristóteles define o fim último que se alcança pelas ações – meio que visa ao

bem supremo – a eudaimonia. Eis, portanto, o valor da deliberação na escolha boa

para cada situação. Escolhem-se, pois, fins intermediários que, por sua vez,

convergem para esse fim último. As ações se desenvolvem sucessivamente por

educação e hábito para a consecução do bem supremo, o mais indicado e desejado

no desempenho da função do homem.

Constituem objeto de contemplação sob a perspectiva da ética aristotélica:

investigar o que é o Bem; orientar/educar o indivíduo a respeito de como deve ele

agir (vida virtuosa); apontar-lhe como as escolhas devem ser feitas (mediania),

senão também como suas ações devem ocorrer (retidão e constância), para atingir a

finalidade da Ética: viver a vida orientada pelo Bem para o alcance da eudaimonia,

desejo de todos os homens. Todos esses procederes se pautam e são possíveis

apenas no domínio coletivo, porquanto a escolha é pertinente ao âmbito particular,

ao passo que a vida virtuosa se dá na convivência da coletividade.

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Capítulo 1. Da Ética 38

Com efeito, logo no início de sua obra Ética a Nicômaco, Aristóteles

assevera que a Ética e a Política estão intimamente imbricadas, uma vez que ambas

têm a mesma natureza e buscam o mesmo fim – o Bem. Explicita que a Política

direciona a vida e o conhecimento de seus cidadãos, assim como leis são

necessárias para a sua educação, o que se ratifica neste fragmento :

[...] é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o individuo como para o Estado, o deste último deve ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. (EN, 1094a28).

Aristóteles estabelece que as virtudes se adquirem por meio da constância de

seu exercício: “[...] tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a

temperança, a bravura etc” (EN, 1103b1). Isso se aplica também aos legisladores e

à sua função de incutir no cidadão bons hábitos. Acrescenta que somos autárquicos

e essa é uma condição necessária para a vida feliz, apenas possível numa vida na

polis, não uma qualquer, senão a vida na polis organizada, cujo fim comum seja

satisfazer as necessidades dos concidadãos. Não obstante, o conhecimento e as

leis não são suficientes, se os indivíduos forem incontinentes. Deve-se recorrer à

ação intrínseca ao trabalho, à vida familiar e à Política. Para a realização de ações

boas torna-se imprescindível que tanto o indivíduo quanto a coletividade sejam

educados nos bons hábitos. De fato, a formação do homem, aqui em questão a do

jovem, determina como se dará sua ação futura, reforçando, desse modo, o valor e a

importância para a presente investigação. Lembremo-nos de que

[...] as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticamos, portanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres. E não é coisa de somenos que desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquela maneira. Tem, pelo contrário, imensa importância, ou melhor: tudo depende disso. (EN, 1103b21).

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Capítulo 1. Da Ética 39

Na área da Saúde, muitas vezes, a decisão não se faz simples : situações

muito complexas se apresentam ao profissional que, então, deve deliberar a respeito

dos meios que o conduzirão à manutenção da vida, preferentemente. Aristóteles

explana a respeito das decisões de maior valor: essas são de difícil deliberação.

Argumenta que saber o que é melhor não basta para agir dessa maneira. As

melhores escolhas se pautam no conhecimento do assunto, de modo deliberado.

Sendo a vida o objeto com que lida cotidianamente o profissional da saúde, e porque

ela é dotada de grande valor, no momento da dúvida, cabe a quem hesite dividi-la

com outros profissionais capacitados, porque todos alcancem a melhor escolha

diante do impasse:

Delibera-se a respeito das coisas que comumente acontecem de certo modo, mas cujo resultado é obscuro, e daquelas em que este é indeterminado. E nas coisas de grande monta tomamos conselheiros, por não termos confiança em nossa capacidade de decidir. (EN, 1112b8).

Nas coisas que são variáveis opera a razão calculativa – que permite as

escolha –, diferentemente do que ocorre com as coisas que são invariáveis. Aí opera

a Razão científica. Segundo Aristóteles, a escolha – campo tomado por aquilo que é

variável, onde se incluem as coisas praticadas –, reside a virtude moral.

Na Medicina e em tudo que respeita à saúde e à vida, sobressai o uso da

Razão calculativa. A capacidade calculativa está presente naqueles profissionais

que foram orientados nesse sentido, adquirem uma disposição de caráter tal, que os

faça possuí-la, movidos pela disposição, desejo de escolha boa, do conhecimento e

da experiência para o bom uso da Razão que orienta e realiza a melhor das

escolhas. Nesse sentido, urge não se perder o eixo de formação ética do

profissional, sobremaneira no que tange ao desenvolvimento da disposição e da

sabedoria prática do agente moral – âmago da educação ética. Uma vez integrada à

vida na comunidade, compõe a preocupação ética, abordagem dada no capítulo

Ética e Educação deste estudo.

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CAPÍTULO 2

EDUCAÇÃO MÉDICA

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Capítulo 2. Educação Médica 41

2.1 A formação técnico-científica do médico

Num primeiro momento, em torno da retrospectiva histórica e da discussão

atual a respeito da formação do médico organiza-se este capítulo, para, em seguida,

contemplar mais especificamente a formação ética nas escolas de Medicina.

Desde sua origem remota, em todos os momentos históricos em que se

experimentaram mudanças profundas das relações sociais nos âmbitos econômico,

cultural e político, reconstruíram-se os processos de formação humana e de

concepção acerca da Medicina. Passou de uma interação próxima entre o médico, o

paciente e sua família para os avanços em termos de evidente cientificismo nos

vínculos com o paciente, distanciando-se da relação humana, o que pressupõe se

valorizarem as decisões, inequivocamente fundadas nos passos amplos da evolução

da Tecnologia. O tempo histórico presente marca-se de algumas modificações

relevantes, mormente porque evidenciam a tendência de imprimir novo

direcionamento à formação do profissional médico. Abordar-se-ão aqui as intenções

de mudanças ocorridas nas últimas décadas, concernentes aos Cursos de Medicina

– em cujas escolas se promove a educação continuada –, e às orientações dos

Conselhos Profissionais que, contemplando temas éticos e oferecendo aos

estudantes bolsas para estudos e pesquisas, muito têm contribuído com vistas à sua

formação ética.

Com o propósito de traçar um breve histórico da Medicina, baseou-se este

tópico em Margotta (1998), em cuja obra se reitera o fato de que a origem remota da

Medicina mantém-se alicerçada apenas em conjecturas, em virtude da inexistência

de documentação. Não obstante, de acordo com pesquisas realizadas nos séculos

XIX e XX, supõe-se que tenha a Medicina se originado na associação natural de

práticas mágicas e sacerdotais, em que não se dissociavam, mas se confundiam,

inclusive, as funções do médico e do sacerdote em muitas das sociedades primitivas

e em algumas outras da época contemporânea. Com efeito, a história da Medicina

manifesta sua gênese na magia do homem primitivo, perpassa os progressos

científico-tecnológicos do final do século XX e início do XXI, para alcançar as

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Capítulo 2. Educação Médica 42

promessas e expectativas do futuro, ante os avanços das Ciências e da Tecnologia.

Importa acentuar, contudo, que, malgrado essa abertura de novas perspectivas de

progresso técnico, a relação humana foi e ainda é de importância vital na prática

médica. De fato, a confiança verificada na inter-relação médico-paciente constitui-se

a essência dos empreendimentos da Medicina, conforme sustenta Margotta:

[...] a importância do ato de fé por parte do paciente na relação com o médico, algo que ainda é um elemento vital em nossos dias, quando curas radicais e racionais são possíveis para muitas doenças, assim, como eram quando a medicina era inteiramente mágica e empírica. (MARGOTTA, 1998. p. 6).

É possível conhecer alguns procedimentos médicos realizados pelos egípcios

em épocas anteriores por meio de textos de autores gregos e romanos, entre os

quais figuram Homero, Heródoto, Hipócrates e Plínio. No entanto, papiros

descobertos atestam que os médicos egípcios utilizavam-se de grande quantidade

de drogas, inclusive o ópio e a cicuta. O papiro descoberto por Georg Ebers em

Luxor (1873), datado de 1553-1550 a. C., compõe-se de uma coletânea de textos

concernentes à medicina egípcia tal como provavelmente era praticada no Antigo

Império (3300-2360 a. C.) – o que corresponde à época das primeiras oito dinastias

dos faraós.

É provável que esses papiros tenham resgatado trechos das prescrições de

Imhotep, da terceira dinastia, que, além de ter sido um famoso arquiteto e construtor

de pirâmides, foi também um médico excepcional. Os gregos o associavam a

Asclépio, atualmente conhecido por seu nome latino Esculápio – o deus grego da

Medicina.

Para os hebreus, a doença representava a ira dos deuses ante os pecados da

humanidade. Não era, pois, provocada por um demônio, um espírito maligno ou

feitiços. Para vencer a doença e melhorar, as pessoas recorriam à intervenção de

sacerdotes, que eram os verdadeiros intérpretes da lei de Moisés e obtinham mais

êxito nas curas que os médicos.

Segundo o mesmo autor, possivelmente os persas tenham compartilhado

com os judeus a origem de sua medicina, porquanto enfatizavam a importância da

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Capítulo 2. Educação Médica 43

higiene pessoal e comunitária. A saúde dependia do deus da luz e da bondade,

Ahura Mazda. No caso de mau exercício, previam-se honorários e multas.

Por volta de 1500 a.C., circulavam entre os hindus eruditos os livros de Veda

(aprendizado), entre os quais o Ayurveda (Veda da vida longa), especificamente,

tratava da Medicina. Eram textos sagrados, considerados revelações de entidades

divinas. Naquele tempo, viveram dois médicos hindus – Charaka e Susruta –, cujos

escritos constituem a base da medicina indiana. Alude Margotta à natureza mista

das obras médicas, à semelhança de enciclopédias, em que é difícil discriminar

ideias essencialmente indianas dos conceitos e preceitos oriundos de outras

civilizações. Enfatiza o autor em fragmento da obra consultada:

Um papel extremamente importante da medicina indiana é desempenhado pelas rigorosas regras de higiene da religião brâmane. Recomenda-se uma dieta vegetariana e a abstinência do álcool; há também grande ênfase na limpeza, com muitos banhos e a remoção imediata dos excrementos da casa. (MARGOTTA, 1998, p. 17).

A medicina chinesa remonta à época mais antiga. Atribui-se sua prática ao

imperador Shen Nung, que teria governado de 2838-2698 a.C., “[...] sob a inspiração

de Pan Ku, o deus da criação, segundo a tradição taoísta: o caos foi superado e a

ordem foi estabelecida com base nos dois polos postos, yin e yang.” (MARGOTTA,

1998, p. 18). Nos três volumes de sua obra Pen T’sao Ching ou Herbário, apresenta-

se um elenco de 365 ervas, além de prescrições e venenos. Atribui-se ao imperador

Hwang Ti (2698-2598 a.C) a melhor e mais antiga obra chinesa de Medicina,

transmitida oralmente durante séculos e transcrita provavelmente no século III a.C.

Por ser limitado o conhecimento, a obra traz suposições muito interessantes, como a

que se verifica em determinada passagem: “Todo o sangue no corpo humano é

controlado e regulado pelo coração. A corrente sanguínea flui incessantemente num

círculo; ela simplesmente não pode parar, assim como não param o fluxo de um rio

ou o percurso do sol e da lua.” (MARGOTTA, 1998, p. 19).

O Japão sofreu influência tanto da medicina chinesa quanto da medicina

europeia. No entanto, antes da chegada dos chineses, seus conhecimentos a

respeito de doenças fundavam-se na mediação de espíritos malignos e influências

divinas.

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Capítulo 2. Educação Médica 44

Com o passar dos tempos, os sacerdotes foram se afastando dos rituais de

tratamento, e a Medicina passou a ter caráter profissional.

Aos gregos atribuem-se os primórdios da Medicina como a conhecemos, uma

vez que eram questionadores do mundo e procuravam compreender o homem e a

natureza. Segundo Margotta, a civilização do mar Egeu, gestada após a conquista

das ilhas gregas, começou por volta de 3000 a.C. Com influências orientais e da

cultura pré-helênica, a Medicina desenvolveu-se paralelamente à Filosofia, tornando-

se ciência e arte, praticada não pelos sacerdotes, mas por leigos, que substituíram

as magias por investigação.

A mais antiga fonte de informação acerca da medicina grega encontra-se na

obra de Homero, que assegurava que o médico é uma figura de respeito: “Ele vale

muitas vidas, inigualável na remoção de flechas das feridas e na cura com bálsamos

preparados de ervas.” (MARGOTTA, 1998, p. 22). Fazia referência a deuses e às

preces aos moribundos. À época de Homero, a Medicina não se fundamentava em

magias: era uma disciplina independente, praticada por profissionais pagos. Não

obstante, influências orientais na cultura grega conduziram-na a tornar-se mais

sacerdotal. O autor consultado refere-se a que as literaturas depois de Homero

citam demônios, clarividentes e augúrios. Vários deuses relacionavam-se à cura:

além de Apolo, Ártemis, Atena e Afrodite. Na mitologia grega a serpente estava

associada ao poder de cura e também à sabedoria, a ponto de haver se tornado

símbolo da cura, ainda hoje utilizado na Medicina. Tão logo se edificaram os

santuários, o culto à serpente se alastrou, embora já fosse evidente na medicina

mágica, conforme se constata em:

O culto à Esculápio pode ter evoluído dessas divindades, pois seu símbolo, a serpente, é uma representação antiga das forças do submundo e um sinal sagrado do deus da cura entre as tribos semitas da Ásia Menor. Não se sabe ao certo se Esculápio existiu realmente, sendo deificado após a morte. O que se conta é que, durante sua passagem sobre a terra, constituiu uma grande família, incluindo Panacéia, que possuía a cura para tudo, e Higia, cujo domínio era a saúde pública. (MARGOTTA, 1998, p. 22).

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Capítulo 2. Educação Médica 45

No século V, as práticas médicas sacerdotais já propagavam por toda a

Grécia e se desenvolveram até os séculos IV ou V d.C.

Segundo referências do mesmo autor, os primeiros filósofos eram biólogos e

naturalistas. Os fundamentos mais importantes para a medicina científica foram

proporcionados a partir da fundação da escola filosófica greco-latina, fundada por

Pitágoras (580-489 a. C.), em Crotona. O filósofo grego impunha regras rígidas aos

ingressantes na busca de conhecimentos. O médico mais famoso da escola de

Crotona foi Alcmeon – jovem contemporâneo de Pitágoras –, que tornou a Medicina

reconhecida como Ciência, além de renomado mestre da anatomia e da fisiologia.

Segundo Margotta, Alcmeon descobriu os nervos óticos, a trompa de Eustáquio do

ouvido, fez observações sobre a circulação, diferenciou veias e artérias e foi o

primeiro a afirmar que o cérebro era o berço do intelecto e dos sentidos. Ademais,

investigou distúrbios funcionais do cérebro, elucidou implicações para a morte e o

sono. Na mesma época, outras escolas se desenvolviam em Cirene, no norte da

África; em Cnido, no extremo sul da Ásia Menor e nas ilhas de Rodes e Cós.

Entre as demais, sobrepujou a Escola de Cós, cujos ensinamentos se

garantiam e amparavam em diagnósticos e exames, não lhes importando as causas

das doenças, senão o prognóstico de cada paciente. Inclusive, conquistou fama para

a posteridade, mormente porque aí se formou Hipócrates – o pai da Medicina.

Era peculiar à Escola de Cós que os iniciantes na arte da Medicina

prestassem juramento – renovado de tempos em tempos – porque se assegurasse o

alto padrão da conduta profissional. A História consagrou e celebrizou esse

juramento como juramento de Hipócrates, proferido solenemente até os dias

contemporâneos pelos formandos dos Cursos de Medicina na cerimônia de sua

graduação, porquanto exprime um ideal de postura profissional e de vida altruísta.

Constam de seu teor valores, virtudes, posturas, procedimentos, habilidades e

competências desejáveis ao autêntico profissional de medicina: conhecimento;

respeito à profissão, a mestres e colegas, sobremaneira ao paciente e à vida; uma

conduta de beneficência em relação àquele que está sob seus cuidados;

abnegação; confidencialidade; postura responsável não apenas na prática

profissional, senão também manifestando uma vida pessoal honrosa, entre outros

valores e deveres.

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Capítulo 2. Educação Médica 46

Porque demonstra amplo escopo de atitudes ético-profissionais aí contidos e

porque se encontra estreitamente coeso ao eixo de atenção e ao propósito deste

capítulo – contemplar a formação técnico-científica e ética do médico –, importa

conhecê-lo.

Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes. Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte. Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam. Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados. Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça. (Juramento de Hipócrates, c2001/2012).

Além do juramento, Hipócrates legou à Medicina ensinamentos importantes,

sobremaneira aos concernentes à área clínica, em que observações, descrições e

investigações evidenciam-se precisas. Não obstante, no que se refere à anatomia e

fisiologia não houve evolução, uma vez que tais conhecimentos advêm de

experiências com animais e cadáveres, e os gregos nutriam muito respeito aos

mortos.

De qualquer forma, seja em textos legados por Hipócrates, seja em

apontamentos de autoria de seus discípulos, expressa-se claramente o que se

considerava a arte da medicina e, em particular, a preocupação de cunho ético

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Capítulo 2. Educação Médica 47

dispensada pelo profissional médico em relação a seu paciente, como se deixa

transparecer nos seguintes excertos:

Aquele que quiser compreender a medicina deve aprender tudo o que está escrito aqui. Primeiro, é preciso conhecer o efeito de cada estação do ano e as diferenças entre elas. Deve-se levar em conta os ventos frios ou quentes, comuns a qualquer país ou restritos a certas localidades. Finalmente, é preciso inteirar-se sobre as diferentes qualidades das águas, variação de gosto e efeitos no corpo humano...Da mesma maneira, é necessário observar como vivem as pessoas, do que elas gostam, o que comem e bebem, se fazem exercícios físicos e se são preguiçosas e desleixadas com o corpo. Tudo isso o médico precisa saber, se quiser realmente compreender as queixas dos pacientes e se colocar em uma posição em que possa receitar o tratamento adequado. (MARGOTTA, 1998, p. 29).

[...] devo primeiro falar o que considero ser seu escopo: tirar ou pelo menos aliviar a dor. O fato de que todos podem se beneficiar disso, mesmo os que não acreditam, é prova de sua existência e seu poder. (On art apud MARGOTTA, 1998, p. 27).

Depois da morte de Hipócrates, a Escola de Cós entrou em declínio,

permaneceu a sua reputação, no entanto. Fundada no Egito por Felipe da

Macedônia, Alexandria tornou-se o principal centro da cultura grega. Nas escolas

médicas, houve grandes avanços no que tange à anatomia e fisiologia, sobretudo

com Herófilo – provavelmente o primeiro a realizar dissecção de corpos.

A partir do século VI d.C., a Medicina se profissionalizou. Com o propósito de

exercer a profissão, os recém-treinados solicitavam licença, que só era concedida

após a verificação do desempenho do estudante na escola. Então, podiam abrir

consultório e receber honorários dos pacientes.

Grego fiel aos ensinamentos de Hipócrates, Galeno estudou em Esmirna e

Alexandria. No ano de 162, seguiu para Roma, onde adquiriu fama como médico e

filósofo, contando entre seus clientes o Imperador Marco Aurélio. Escreveu cerca de

quatrocentos tratados, a maioria dos quais se queimou num incêndio, restando

apenas 83 de seus escritos. Considerado um médico excelente e empenhado, fez

estudos e descobertas de anatomia, cujos conhecimentos teriam avançado mais

rapidamente se os estudiosos da Idade Média houvessem procedido à verificação

de suas observações e descobertas, o que só foi possível ocorrer na Renascença.

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Capítulo 2. Educação Médica 48

A queda do Império Romano relacionado a acontecimentos como a

corrupção, opressão das minorias, disseminação da pobreza e ataques bárbaros,

aliados à ocorrência de epidemias com alto índice de mortalidade fez declinar a

Medicina. O Cristianismo em ascensão considerava-a um trabalho de caridade, de

forma que, nem o indivíduo nem a comunidade estavam isentos de ajudar os

doentes. Em termos de prática, os cristãos ajudaram os doentes inicialmente em

albergues, que se transformariam em hospitais mais tarde.

O espírito caridoso influenciou várias outras seitas consideradas heréticas

pela Igreja Católica, como a nestoriana – de Nestório, monge de Antioquia – foi

banida do Império Romano. Os nestorianos fundaram na Pérsia, a escola de

Gondishapur, que viria a ser o berço da Medicina na Arábia. Vários termos usados

na medicina ocidental, como “álcool”, “alcalino”, “alcalóide”, “alquimia” e “alambique”,

vêm do árabe. Jabir Ibn Hayan, que concebeu os fundamentos da Química, viveu no

século IX, foi o primeiro a examinar o sangue e as fezes.

Os médicos árabes mais conhecidos foram Rhazes e Avicena, habitantes do

califado oriental e Avenzoar e Averróis, esses últimos, foram membros da escola de

Córdoba – capital do califado ocidental. Metade das 237 obras de Rhazes, que

nasceu na Pérsia e estudou medicina em Bagdá, no século IX, trata da Medicina:

escreveu um tratado acerca da varíola e catapora, fundamentando-se em

experimentos diretos, com conclusões precisas. Avicena nasceu em 980 na Pérsia;

começou a estudar Medicina aos 16 anos e aos 18 já se tornara experiente.

Declarara que “embora tivesse lido a Metafísica de Aristóteles umas quarenta vezes,

teve que admitir que, por mais que se esforçasse, não entendia nada.”

(MARGOTTA, 1998, p. 49). Seu propósito era reconciliar as doutrinas biológicas e

médicas de Hipócrates, Aristóteles e Galeno e a isso se deu o sucesso de sua obra

de 5 volumes, que perdurou por muito tempo. Quando Avicena morreu em 1037, a

escola de Córdoba florescia no século X: havia médicos em abundância e 52

hospitais. Suas obras dominaram o pensamento médico até a Idade Média.

Após a morte de Avicena, destacou-se o médico islâmico, Albucasis, que

deixou uma obra em que se revela sua habilidade como cirurgião. Em sua prática,

dizia aos cirurgiões: “Deus observa e sabe se vocês operam porque a cirurgia é

realmente necessária ou por amor ao dinheiro.” (MARGOTTA, 1998, p.50).

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Capítulo 2. Educação Médica 49

No século XII, Avenzoar, nascido em Sevilha, não aceitava as doutrinas dos

grandes nomes do passado. Não poupou críticas à Avicena, declarando não ter

tempo para abordagens metafísicas, imprimindo mais ênfase à experimentação. Jbn

Rushid, ou Averróis, (1126-1198), tornou-se magistrado em Córdoba e Sevilha,

estudou Jurisprudência, Filosofia e Medicina; sua obra mais famosa se ocupava

mais da teoria que da prática. Maimônides foi o aluno mais célebre de Averróis.

Seguia Aristóteles e, como seu mestre, era mais conhecido como filósofo que

médico. Dada à perseguição de seita fanática, Maimônides obrigou-se a fugir para o

Egito, onde passou a ganhar a vida com a prática da Medicina.

No início da Idade Média, entre guerras, epidemias e fome, os cuidados com

os doentes ficaram a cargo de ordens religiosas, como se verifica em:

Uma série de circunstâncias aleatórias foi responsável pela criação da ordem beneditina por São Bento de Núrcia, o que resultou num grande progresso da medicina, tanto na teoria quanto na prática. Várias enfermarias monásticas foram construídas. A mais famosa pertencia ao mosteiro suíço de São Gal, fundado em 720 por um monge irlandês. Os hospitais monásticos eram completamente autônomos e os remédios eram feitos pelos próprios monges a partir de plantas cultivadas em seus jardins. (MARGOTTA, 1998, p. 52).

Não obstante, a saída dos monges de suas clausuras para realizarem visitas

aos doentes tornou-se tema de polêmica nos conselhos eclesiásticos, o que resultou

em proibição da medicina monástica. Mesmo assim, muitos preferiam procurar os

religiosos aos médicos leigos.

Os agrupamentos de escolas de ensino sob o título de universidade datam da

idade média. A mais antiga foi a escola de Salerno, na Itália, conhecida como

“Civitas Hipocrática” (PAIXÃO, 1979).

Salerno era conhecida estação de tratamento devido seu clima ameno e por

possuir água com propriedades terapêuticas. Após longo tempo, reavivou a história

de medicina leiga com sua escola de Medicina, criada no século X, atingindo o seu

apogeu no final do século XI. Em 1050, o mais célebre professor da época,

Gariopontos, escreveu o primeiro manual para uso estudantil contendo doutrinas de

Galeno e outros. A sua obra Passionarius contém a base da terminologia moderna.

Traduziu termos gregos para o Latim e adaptou palavras populares, como “cicatrizar

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Capítulo 2. Educação Médica 50

e cauterizar”. A escola admitia mulheres, entre as quais Trótula, de identidade

desconhecida. Alguns autores consideram que possa ter sido apenas mais um dos

médicos da época. É de sua autoria um texto a respeito de obstetrícia, que

permaneceu em uso ate o século XVI. Continha ensinamentos de como proceder

antes, durante e após o parto e recomendações para os tratamentos de prolapso e

pólipos no útero, da dieta apropriada, além de orientações para a escolha da ama de

leite (PAIXÃO, 1979; OLIVEIRA, 1981; MARGOTA, 1996).

Concernente às contribuições para o âmbito da Medicina, Salerno

disponibilizou para as gerações futuras de profissionais os conhecimentos gregos,

assim como os árabes. A anatomia ensinada em sua escola baseava-se quase

totalmente em Galeno. Os médicos dissecavam animais e acreditavam que havia

maior semelhança entre os intestinos humanos e os de porcos. Os ensinamentos de

Salerno eram transmitidos em versos. A obra Regimen sanatis salernitanum (O livro

salernita de saúde) foi o alicerce da medicina clínica até o final da Idade Média.

Os textos da escola de Salerno eram em sua maioria, colaborações, embora alguns tenham recebido destaque. Rogerius Frugardi foi o autor de um texto claro e conciso sobre cirurgia que refletia as ideias e os métodos dos médicos gregos. Os capítulos sobre feridas no crânio e no abdômen têm interesse especial. As fraturas do crânio deveriam ser exploradas por meio de toque, e, em casos mais graves, Frugardi recomendava a trepanação por uma série de perfurações, de modo que o osso danificado pudesse ser removido sem afetar as membranas protetoras do cérebro. Quanto às contusões no abdômen, se o intestino ficasse duro e frio após prolapso, ele recomendava que fosse aquecido sobre o intestino de um animal recém-abatido, devendo ser limpo com uma esponja antes de ser recolocado no abdômen, de modo que deixasse a ferida aberta enquanto o dano permanecesse visível; em seguida, deveria ser inserido um dreno e a ferida teria de ser tratada diariamente. (MARGOTTA, 1998, p. 53).

Embora fosse a primeira a ser reconhecida oficialmente em 1224, a escola de

Salerno não evoluiu para a categoria de stadium generale, como as universidades

da Europa eram chamadas na época. Durante os séculos XII e XIII, a fundação de

universidades cresceu. Uma das maiores da época era a de Bolonha, onde já existia

uma escola de Direito desde o século XI. Tadeu de Florença (1223-1303) foi um dos

primeiros professores de Medicina; traduziu as obras de Aristóteles e escreveu Della

Conservazione della salute, em que recomendava a prática de exercícios diários.

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Capítulo 2. Educação Médica 51

Sua outra obra, Consilia, trazia descrições de casos clínicos. Mondino, professor

dessa mesma escola, trouxe grandes contribuições para a anatomia. A escola de

Bolonha era democrática: os estudantes escolhiam seus professores e elegiam o

reitor, que, nas cerimônias oficiais, beneficiava-se de privilégios e prioridade em

relação a todos, mesmo em se tratando de autoridades eclesiásticas.

No século XIII, a cirurgia se desenvolveu na França graças à escola de

cirurgia de Paris, dirigida por Guido Lanfranc, italiano que, por motivos políticos,

deixou a Itália e foi para Lyon. Escreveu Cyrurgia Parva e Cyrurgia Magna. Seu

amigo Mondeville escreveu o primeiro texto especificamente francês a respeito de

cirurgia, Chyrurgia, em cuja introdução aconselhava a cobrança de honorários e

alertava que pacientes ricos costumavam ir se consultar maltrapilhos para pagar

menos.

Na Inglaterra, a Medicina sofreu grande influência da Igreja. A uniformidade

da educação médica impediu que se escrevessem novos textos; as aulas eram mais

teóricas que práticas. Traduziram-se várias obras do Latim para o Inglês, e, como

em Salerno, houve popularização do conhecimento e inclusão dos fatos médicos na

poesia.

A Universidade de Oxford, data sua criação em 1206. Os estudantes

buscavam formação na Universidade de Paris, regressando em grande número para

lecionar em Londres, até que descontentes com o clima hostil, muitos migraram para

a cidade Cambridge. Inspirado na cultura italiana, Thomas Linacre (1460-1524) foi

um dos primeiros humanistas de Oxford. Fundou o Royal College of Physicians,

1518, entre seus discípulos está Thomas More, conhecido humanista (OLIVEIRA,

1981).

No final da Idade Média, o movimento cultural – Humanismo – se

manifestava, embora houvesse charlatães e se usasse a astrologia, além do fato de

muitos professores terem sido conservadores, “[...] grandes médicos eram

humanistas e homem de letras [...]” (MARGOTTA, 1998, p. 65).

Não obstante, transformações estavam acontecendo: cada vez mais os

professores efetuavam dissecações, ensinava-se anatomia associada à cirurgia;

somente em 1570 as duas disciplinas foram separadas.

Leonardo da Vinci, citado como mestre das artes e das ciências, fez

descobertas, invenções e ilustrações, dissecou mais de trinta cadáveres à luz de

vela, utilizando-se de técnica usada ainda hoje. Foi o primeiro a traçar o trajeto dos

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Capítulo 2. Educação Médica 52

nervos cranianos e a dissecar as membranas do feto; analisou o sistema muscular e

desenhou as artérias coronárias. Com efeito, poderia ele ter sido reconhecido como

o Pai da Anatomia, não fossem suas obras descobertas dois séculos mais tarde.

Com sua contribuição, os estudos de anatomia encontraram o caminho certo, e

estudantes de Medicina tornaram-se hábeis anatomistas.

Coube a Andreas Vesálio (1514-63) ser celebrado como o Pai da Anatomia.

Estudou em Louvain, Montpellier e Paris. Sua obra, Tabulae Anatomicae Sex (Seis

Tabelas Anatômicas), continha textos e ilustrações magníficas, realizadas por

Stephen Calcar, seu amigo desenhista de Pádua. Em 1543, com 28 anos, completou

sua obra máxima, De humani corporis fabrica libri septem (Sete Livros sobre a

Estrutura do Corpo Humano), em que, descartando os dogmas de Galeno, provocou

escândalo nos professores galenistas. Apontou erros dos professores do passado,

posto que, ao fazê-lo, não fosse seu propósito “[...] triunfar por glórias pessoais”

(MARGOTTA, 1998, p. 78). Perturbava os galenistas a negação de Vesálio a

respeito da existência de poros por onde o sangue passava no coração, do

ventrículo direito para o esquerdo, o que não o deixou também imune a erros. Foi

severamente criticado pelos colegas e ameaçado pela Igreja. Queimou seus

trabalhos não publicados e abandonou, assim, sua carreira científica, tornando-se

médico do Imperador Carlos V e, mais tarde, de Felipe II.

Gabriele Fallopio, que viveu de 1523 a 1562, descrito como professor

excelente e indivíduo exemplar, lecionou nas universidades de Ferrara, Pisa e

Pádua. Defendeu a obra de Vesálio, apondo-lhe, no entanto, algumas correções.

Descreveu o ouvido, as artérias cerebrais, as dobras do intestino delgado, o

ligamento inguinal, o tímpano, os canais semicirculares e as trompas que lhe levam

o nome, além de descrições dos músculos oculares e nervos do cérebro. Sua obra

mais famosa foi Observationes anatomicae. Sucedeu a ele o igualmente famoso

Fabrizio, que desenvolveu trabalho a respeito da reprodução, anatomia e fisiologia

do feto, dentre outras contribuições.

Philippus Aureolus Theophastus Bombastus von Hohenheim, conhecido como

Paracelso, nasceu na Suíça em 1493. Declara Margotta de que foi autor de mais de

300 obras baseadas em suas experiências e de que se manifestava a favor de se

abandonarem os ensinamentos de Galeno. Tendo viajado continuamente por muitos

lugares, ganhou reputação por seus tratamentos e curas. Consta que, na

Universidade de Basileia, deixou de ensinar em Latim, para fazê-lo em Alemão, e

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Capítulo 2. Educação Médica 53

que, em público, queimou as obras de Galeno e Avicena, como protesto contra o

atraso na Medicina tal como praticada na Alemanha da época, segundo relatos de

quem a esse país voltava, após haver concluído seus estudos, como por exemplo na

Itália. Ainda concernente à Universidade da Basileia, importa registrar que os

conhecimentos acerca das doenças mentais evoluíram graças a Felix Platter (1563-

1614), que lá estudou Medicina.

Na França, século XVI, Ambroise Paré, devido à falta de óleo quente,

substituiu-o por gema de ovo, óleo de rosas e terebintina para cauterizar feridas dos

soldados. Observou, então, bons resultados como ausência de inflamação e

diminuição das dores, pondo fim à pratica de queimar os pacientes com óleo quente.

Por não saber falar Latim ou Grego não ingressou na universidade. Seguindo seu

pai e seu tio, tornou-se um barbeiro-cirurgião: o nível mais baixo na hierarquia

médica. Em seu túmulo, gravou-se a frase dita ao ter tratado um oficial, cuja vida

salvou: “Eu o tratei e Deus o curou.” (MARGOTTA, 1998, p.91). Alguns cirurgiões do

final da Renascença foram considerados impiedosos, como Gaspare Tagliacozzi,

professor de Bolonha, posto que tenha ele imprimido grandes avanços na cirurgia

plástica.

No século XVII, as ciências avançavam. No entanto, respeitando à Medicina

foram considerados poucos. Houve avanços farmacológicos no uso de algumas

plantas e derivados de animais como o antimônio, quinino, dentre outros,

abandonando-se gradativamente a purgação de Galeno como tratamento mais

eficaz às doenças.

Os estudos científicos empreendidos por Galileu Galilei (1564-1642) –

considerado um dos maiores cientistas de todos os tempos –, vieram a influenciar

alguns avanços na Medicina. No campo da Óptica, seu aperfeiçoamento do

telescópio de refração concorreu para, em 1590, ter sido inventado o primeiro

microscópio, provavelmente por Johannes e Zacharius Janssen, de Middelburg, na

Holanda, embora outros contemporâneos seus tenham sido citados também como

inventores. De qualquer forma, a invenção do microscópio colaborou no avanço dos

estudos do sangue, da pele, de doenças infecciosas, além de possibilitar a gênese

da bacteriologia, histologia, embriologia, entre outros estudos e aplicações no âmbito

da Medicina.

Na Europa do século XVII, cooperou para esses ainda que tíbios avanços

médicos a ascensão das associações científicas, como Accademia dei Lincei, Roma,

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Capítulo 2. Educação Médica 54

1603; Academia Francesa, fundada em 1635; Sociedade Real de Londres,

oficializada em 1700. O filósofo Leibniz influenciou Henrique I a fundar a Academia

de Ciências em Berlim. Publicaram-se contribuições médicas em vários países, e a

primeira revista de medicina surgiu em 1769 – Journal des nouvelles découvertes

sur toutes les parties da la médicine.

Houve ainda o desenvolvimento da Física e da Química relacionadas à

Medicina, graças a nomes como Galileu, Satorius, Gian Alfonso Borelli François de

la Boë, Descartes e Thomas Willis. Inventou-se o termômetro clínico e descobriram-

se a perda de vapor através da pele, os princípios mecânicos da ação muscular, a

medição de energia gasta no movimento, a função dos músculos torácicos e do

diafragma.

Por sua vez, Tomas Willis (1621-1675) – anatomista inglês que estudou em

Oxford e lecionou mais tarde no Colégio Médico de Londres – destaca-se por

estudos e descobertas importantes para a Medicina, como a percepção do gosto

adocicado da urina dos diabéticos. Descobriu ainda a myasthenia gravis e a febre

puerperal. Deu-lhe notoriedade a obra Cerebri anatome, datada de 1664, em que

descreve pela primeira vez o 11º nervo (nervo de Willis).

Num período assinalado de avanço em pesquisas de laboratório e

experiências, o médico inglês Thomas Sydenham, formado em Cambridge em 1645,

observador astuto, empenhou-se em favor da medicina clínica, descreveu a febre

reumática e gota, discriminou a escarlatina do sarampo. Outro médico célebre da

época foi o italiano Giovanni Maria Lancisi, considerado o pioneiro da saúde pública.

Além disso, defendeu uma reforma radical no estudo da Medicina, em que

estudantes deveriam adquirir conhecimentos sólidos em cursos de longa duração,

contemplando a anatomia e fisiologia, o uso do termômetro e do microscópio.

Segundo Margotta, o século XVIII foi um período de mudanças ideológicas e

políticas, o que imprimiu um esmaecimento no dogmatismo acadêmico. No que

respeita ao progresso científico no âmbito da Medicina, marca-se a criação de

hospitais-escola, como o de Londres – e delineou-se o perfil do médico tal como se

conhece na atualidade. Merece destaque o médico holandês Hermann Boerhaave,

que publicou em 1709 Aphorisms (aforismos), obra várias vezes reeditada em

diferentes línguas. Lecionou na Universidade de Leiden, que inaugurou a inovação e

mudanças nos tradicionais métodos de ensino da Medicina. Seu fiel aluno, Gerard

van Swieten (1700-1772), fundou a Escola Vienense, separou o ensino da anatomia

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Capítulo 2. Educação Médica 55

do de cirurgia, criou um laboratório de Química. Como seu mestre o fizera, manteve

duas enfermarias: uma destinada a homens, outra a mulheres, e as reservou ao

ensino de medicina clínica. Professor daquela escola, Leopold Auenbrugger

desenvolveu o método de percussão de diagnóstico clínico.

A partir das evoluções apresentadas em outras ciências – mormente na Física

e na Química – vieram a favorecer também as das ciências biológicas. Nesse

campo, descobertas se fizeram, muitas das quais ocorreram de modo fortuito, porém

se mostraram de relevância capital para os passos futuros da Medicina, sobretudo

no século XX, consagrando os nomes dos cientistas médicos nelas envolvidos.

Exemplica-o Edward Jenner (1749 - 1823), que conduziu sistematicamente o estudo

da vacina antivariólica, em 1796, marco reconhecido na medicina preventiva

(BARROS, 2002).

Barros refere que o século XIX trouxe importantes descobertas no campo da

microbiologia, que conduziram a medicina a grandes transformações na ciência

médica, tanto que esse período cronológico passou a ser denominado era

bacteriológica.

Importa ainda destacar o grande químico e microbiologista francês Louis

Pasteur, cuja obra revolucionou os métodos de combate às doenças infecciosas,

uma vez que provou serem decorrentes da ação de bactérias. Sua maior conquista

no campo da imunologia foi a criação de um método de prevenção contra a raiva: a

vacina antirrábica e contra o anthrax. Por sua vez, Robert Koch (1843 - 1910),

médico e bacteriologista alemão, descobriu o agente etiológico (bacilo) da

tuberculose, sua descoberta de maior repercussão. Estabeleceu o raciocínio e a

correlação entre a presença do micro-organismo na doença, sua detecção, seu

cultivo em meio de cultura, inoculação e recuperação novamente do animal

infectado (BARROS, 2002). Em 1883, numa missão oficial, seguiu para o Egito e

Índia, onde procedeu a estudos de etiologia do cólera para, um ano depois,

evidenciar, o agente etiológico da doença – o Vibrio comma. Em 1891, fundou o

Instituto de Higiene, consagrou os estudos de tuberculose, lepra, cólera, malária, tifo

e das bactérias anaeróbicas.

Ademais, segundo relatos de Margotta, houve ainda no século XIX

importantes descobertas que desempenharam papel decisivo no que respeita aos

avanços da Medicina no século seguinte – o desenvolvimento da bioquímica, o

estetoscópio, o oftalmoscópio, a anestesia, os antissépticos, dentre outros. Enfatiza-

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Capítulo 2. Educação Médica 56

se a descoberta do Raio-X pelo físico alemão Wilheim Konrad Roentgen. Enfim, na

Medicina da Europa e da América, os céleres progressos de conhecimento

conduziram à criação das especializações médicas.

Decididamente o século XX deu acesso à quase completude de avanços

científicos e tecnológicos de que se tem conhecimento na história da humanidade,

de forma que necessitaria de muitas páginas para descrevê-los. Não obstante, cada

um deles influiu notadamente para o progresso no âmbito da Medicina e enseja

novas descobertas.

Já nas primeiras décadas do século – 1928 – Sir Alexander Fleming (1881 -

1955), professor de Bacteriologia da Universidade de Londres e do Real Colégio de

Médicos, descobriu extraordinariamente o poder antibacteriano do mofo, de que a

penicilina é um derivado. Enquanto voltava a atenção às pesquisas acerca da

bactéria Staphylococcus aureus, responsável pelos abcessos causados por arma de

fogo. Após exaustivo período de observação, Fleming saiu de férias e, ao retornar

percebeu que havia se desenvolvido bolor em um dos vidros sem tampa, derivado

do contato do experimento com o mofo do ambiente. Concluiu, então, que o mofo

oriundo do fungo Penicillium secretara uma substância, inibindo o crescimento

bacteriano. Sua descoberta ampliou-se em vários países. Somente foi isolada em

1938 por Ernest B. Chain e Howard W. Forey, da Universidade de Oxford. Em 1940

foi utilizada em paciente para fins terapêuticos (MANDELL; SANDE, 1983).

Outro grande evento do século se deu pelas experiências de Thomas Hunt

Morgan que o levaram a concluir que os genes estavam localizados nos

cromossomos e que transmitiam os traços hereditários. Era o início da Genética

moderna, posto que essa havia se inaugurado com as experiências de Mendel em

1865, sem o devido reconhecimento à época (SOUZA, 2004).

Por sua vez, a biologia molecular evidenciou duas descobertas relevantes: o

ácido desoxirribonucleico (DNA) como princípio de transformação conferida aos

traços hereditários (1943), por Oswald Avery, Colin MacLeod e Maclyn MacCarty; o

conhecimento da estrutura do DNA (1953), por meio de pesquisas empreendidas por

James Dewey Watson e Francis Harry Campton Crick. Decodificou-se o DNA em

1966 para, quatro anos depois, ser segmentado em fatias. Em 1971, avançou-se

com o conhecimento do DNA recombinante, o que possibilitou a primeira clonagem

dois anos mais tarde. Progressos tecnológicos na área de computação possibilitou

chegar ao Projeto Genoma Humano (PGH), entrelaçando conhecimentos da

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Capítulo 2. Educação Médica 57

Genética e da Biologia Molecular. O PGH iniciou-se nos Estados Unidos na década

de 1980 e despertou expectativas na descoberta para a cura de doenças graves,

sobretudo o câncer. Isso estimulou tanto o aporte financeiro quanto o apoio

governamental e deu início à corrida nas disputas por patentes e reconhecimento

por descobertas. Os vultuosos investimentos procederam dos EUA e Japão para,

mais tarde, os centros destinados ao PGH se difundirem no mundo, como os do

Reino Unido, França e no Brasil, inclusive (SOUZA, 2004).

Concernente à assistência à saúde no Brasil, é possível apreender certas

informações de que sua inauguração remonta ao século XVI, vinculada às tentativas

empreendidas por Portugal no sentido de colonizar o território recém-descoberto,

embora, segundo Paixão (1979), haja divergências entre historiadores no que

respeite a data de fundação das instituições.

Posto isso, acredita-se que a Santa Casa de Misericórdia em Olinda exista

desde 1539 ou 1540 sendo então a pioneira no país (OLIVEIRA, 2011).

Logo depois da fundação da Vila de Santos por Brás Cubas (1543) na

Capitania de São Vicente, seu fundador tratou de instalar a Santa Casa de Todos os

Santos. A exemplo das casas de caridade de Portugal, religiosos (na maioria

jesuítas da Companhia de Jesus) prestavam assistência às pessoas que eram

vitimadas pela malária, febre amarela e tifo. Nota-se que a maioria dos historiadores

aceitam como a pioneira dentre elas a Santa Casa de Santos.

Seguiu-se-lhe a fundação da Santa Casa de Misericórdia em Vitória (1545),

também destinada a atender aos enfermos dos navios do porto e a moradores. Em

Salvador, instalada em 1549, após a chegada do governador geral Tomé de Sousa.

realizavam-se tratamento a doentes e trabalhos sociais e filantrópicos até os dias

contemporâneos. Na cidade de São Paulo, fundada em 1554 por obra dos jesuítas,

a assistência hospitalar – ainda que precária –, está presente desde 1560

aproximadamente.

Com a fundação do município do Rio de Janeiro (1565), passou ele a contar

com uma Santa Casa de Misericórdia, instalada pelo Padre José de Anchieta, com o

propósito de socorrer os tripulantes da esquadra do Almirante Diogo Flores Valdez,

trazendo escorbuto a bordo (PAIXÃO, 1979; SANTOS FILHO, 1991).

Pouco mais tarde, vieram as instalações em Minas Gerais, Santa Catarina e a

de Angra dos Reis (RJ). Com efeito, o denominador comum encontrado em todos

esses estabelecimentos respeita à sua criação destinada a fins caritativos e à

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Capítulo 2. Educação Médica 58

precariedade da assistência médica, em que atuavam “pouquíssimos médicos

portugueses.” (PAIXÃO, 1979, p.105).

No séc. XVIII, os físicos medicavam os membros da Coroa, ao passo que aos

médicos se reservavam os procedimentos manuais de menor prestígio. Na segunda

metade do século, os médicos alcançaram posição mais privilegiada, com formação

adquirida na Europa, onde participavam como membros de academias científicas e

literárias. No entanto, essa formação assistia apenas a quem procedesse de famílias

abastadas. Resta relatar que, na época, barbeiros efetivavam sangrias, além da

atuação dos boticários oriundos de famílias humildes (EDLER; FONSECA, 2006).

Em 1808, decorrente do estabelecimento da Família Real portuguesa no

Brasil, criaram-se os primeiros cursos de Medicina, a Escola de Cirurgia e Anatomia

da Bahia, a Escola de Anatomia e Cirurgia e a Academia de Guarda da Marinha,

ambas no Rio de Janeiro, datando do mesmo ano da chegada da Família Real e de

toda a Corte portuguesa ao País. As duas primeiras se tornaram a Faculdade de

Medicina da Universidade Federal da Bahia e Faculdade de Medicina da

Universidade Federal do Rio de janeiro, respectivamente (STELLA; CAMPOS,

2006).

Paixão (1979) reporta a má impressão causada ao I Imperador do Brasil pela

precariedade da assistência à saúde da época, o que o levou a declarar na

Assembléia Constituinte aos 3 de maio de 1823:

A primeira vez que fui a Roda dos Expostos, achei, parece incrível, sete crianças, com duas amas, nem berço, nem vestuário. Pedi mapa e vi que em 13 anos tinham entrado 12.000 e apenas tinham vingado 1.000, não sabendo a misericórdia verdadeiramente onde elas se acham. (PAIXÃO, 1979, p. 106).

De acordo com a mesma autora, em 1856, essa situação experimentou,

tímida embora, mudanças para melhor com a chegada ao Brasil das religiosas,

conhecidas como irmãs de caridade, o que acarretou, inclusive, queda significativa

da mortalidade infantil.

As escolas brasileiras seguiram o modelo francês disseminado pelo mundo na

primeira metade do século XIX, e se pautavam no modelo clínico de observação das

condições patológicas – técnica de inspeção do corpo e dos sintomas apresentados

– e no conhecimento de anatomia. O trabalho, a pesquisa e o ensino eram

Page 61: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 2. Educação Médica 59

realizados na cabeceira do paciente e nos anfiteatros de anatomia (KEMP; EDLER,

2004).

À época da sua criação, os cursos duravam quatro anos. Entre 1812 e 1815,

ocorreram as primeiras reformas nas duas escolas: a duração dos cursos passou

para cinco anos e, em 1832, para seis; houve ampliação de cinco para 14

disciplinas, adotando-se o modelo pedagógico existente nas escolas francesas de

Medicina. Em Salerno, os cursos já duravam cinco anos com mais um ano de prática

em hospital (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA, 2009).

As escolas brasileiras adotaram esse modelo com duração de seis anos,

destinando de três a quatro semestres ao conhecimento biológico – chamado de

ciclo básico – seguido do ciclo clínico, com duração de quatro a seis semestres para

o aprendizado de pediatria, ginecologia e obstetrícia, clínica médica e cirúrgica,

propedêutica e outras especialidades, além de um ano de internato, constituído de

prática supervisionada.

No final do século XIX, já havia muita influência do modelo alemão em todo o

mundo, inclusive nos Estados Unidos e, em cada um deles, assumiu características

diversas. Silva Melo foi um dos médicos que, tendo estudado na Alemanha, voltou

entusiasmado com o que lá existia. Fundava-se esse modelo no ensino e pesquisa

em laboratórios, favorecendo a carreira de pesquisa. Silva Melo, assim como

Flexner nos Estados Unidos, prezava pela alta qualidade na formação do médico

tanto científica quanto cultural. Na década de 1880, a Reforma Saboia foi aos

poucos se organizando em conformidade com o modelo alemão, que defendia o

ensino prático e livre. Implantaram-se laboratórios de Fisiologia, Patologia

Experimental, Histologia e Parasitologia, dentre outros (KEMP; EDLER, 2004).

No início do século XX, o modelo americano tornou-se hegemônico. Segundo

Gonçalves e Benevides-Pereira (2009), Abraham Flexner, especialista em educação

superior, após ter visitado 155 faculdades de Medicina nos EUA e Canadá, concluiu

que apenas cinco delas tinham condições de formar médicos. Elaborou, então, o

conhecido Relatório Flexner.

O ensino da Medicina, tal como se conhece hoje, teve início a partir de 1910,

após a divulgação do relatório Flexner pela Fundação Carnegie. Representou uma

mudança profunda no cenário educacional médico dos Estados Unidos, em uma

época em que imperava a medicina de frágil sustentação científica, cujas escolas

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Capítulo 2. Educação Médica 60

surgiam sem vínculos com as universidades, carentes de regulamentação no

tocante a pré-requisitos para ingresso, matrículas, sobremaneira para a duração dos

cursos, a ponto de haver duração de apenas um ano (FLEXNER, 1910).

Diante deste panorama, as sugestões contidas no Relatório Flexner

representam um avanço no sentido de uma formação mais científica do médico, na

medida em que confiaram nos cursos algumas características como: definição dos

pré-requisitos para o ingresso no curso de Medicina, de sua duração em quatro

anos; estímulo à docência em tempo integral; implantação do ensino clínico –

sobremaneira em ambiente hospitalar; vinculação de pesquisa ao ensino; ênfase na

pesquisa biológica em contraposição à medicina empírica antes praticada;

vinculação das escolas de medicina às universidades; introdução do ensino

laboratorial e controle do exercício profissional pela classe organizada

(CAMARGO,1996).

No contexto desta reforma de caráter científico, observam-se contrapontos,

cujos reflexos negativos ainda se fazem sentir contemporaneamente no ensino e na

prática médica. Amplamente financiada por fundações privadas americanas – cerca

de 300 milhões de dólares em um período de 20 anos – e pela Associação Médica

Americana, cujo intuito era, em defesa da alopatia, frear a progressão da

homeopatia, a referida reforma acarretou efeitos, a saber: fecham-se escolas de

Medicina, sobremaneira as destinadas a negros; restringe-se o número de vagas

oferecidas, elitizou-se o ensino médico, favorecendo as classes médias-alta e alta,

os homens brancos e todos aqueles que, sensíveis à ideologia da medicina científica

eram depositários dos valores morais preconizados por suas classes sociais de

origem. Houve, assim, uma estreita conjugação de interesses entre o capitalismo, a

corporação médica e as universidades, o que concorreu para determinar a

institucionalização do sistema médico que lhes era mais conveniente e adequado –

a medicina cientificista (CAMARGO, 1996).

Há que se considerar que esta mudança ideológica operou implicações no

modo de se conceber o objeto da prática médica – a pessoa humana. Antes

concebido sujeito do processo terapêutico e respeitado em sua dignidade, o homem

já não se reconhece como sujeito, passando a ser um objeto de estudos,

comparável a quaisquer outros objetos de estudo de conhecimento científico

pertinente a ciências diversas – Física, Química, Biologia, Matemática etc. –,

destituídas das qualidades inalienáveis de ser humano.

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Capítulo 2. Educação Médica 61

Em contrapartida, como efeito rebote, modifica-se e se configura uma nova

óptica do papel do médico – agora convertido em apenas mais um profissional,

prestador de serviços integrante da sociedade, ou seja, a arte médica cede espaço e

relevância, desvalorizando-se, em favor da ciência e da tecnologia, suscitadas pelo

capitalismo (CAMARGO, 1996).

Com efeito, essas mudanças todas geraram profunda alteração nas relações

médico-paciente, que perduram até à atualidade e provocam um distanciamento

gradativo do que se constitui essência humana, uma vez que provocaram a ruptura

do vínculo humanístico entre médico e seu paciente, o que é fundamento de

inquestionável importância no percurso de qualquer tratamento.

A expansão das escolas de Medicina se deu entre 1930 e 1970. Até então

eram 12, todas públicas. Entre 1930 e 1960, criaram-se mais 19 escolas, e, em

1964, havia um total de 37 cursos de Medicina. A partir daí, houve uma explosão de

escolas e a inversão na relação público-privada (GONÇALVES; BENEVIDES-

PEREIRA, 2009).

Segundo Corbellini (2007), a saúde começou a se organizar na década de 50,

priorizando a assistência individual e hospitalar, mesmo quando o discurso de

sanitaristas defendia a prevenção. Inclusive, esse foi o tema do 1º. Congresso Sul-

Riograndense de Higiene, realizado em 1957. Outra característica marcante desse

modelo é que se centralizava no profissional médico, e não na saúde e no paciente.

Desse modo, a Medicina assume o topo da hierarquia hospitalar. Essa posição

determinou também a relação do profissional médico com a equipe e o paciente. De

fato, em sua realidade, o cuidado pautado no poder e submissão se estende a todos

profissionais, porquanto as pessoas, ao serem internadas, perdem a sua condição

de ser saudável, produtivo, para incorporar o ser submisso.

No final da década de 1960 e início dos anos 70, a saúde passou a ser vista

como um bem de consumo, em consonância com a política econômica da época,

que preconizava um crescimento acelerado com uma taxa elevada de produtividade,

com baixo salário aos trabalhadores, apenas favorecendo aos trabalhadores

especializados.

Em 1961, instituiu-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que

reformulou o Conselho Federal de Educação (CFE), e, entre outras atribuições,

passou a regulamentar os cursos de Ensino Superior (STELLA; CAMPOS, 2006).

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Capítulo 2. Educação Médica 62

Em 1968, como resultado da reforma universitária efetivada, pôs-se fim às

cátedras, introduzindo o sistema de departamentos, numa proposta de organização

dos cursos em ciclos, na tentativa de diminuir a fragmentação da grade curricular,

cujos conteúdos eram ministrados, sem que se levasse em conta sua integração ao

curso (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA, 2009).

Iniciada na segunda metade dos anos 1970, a Reforma Sanitária revela-se

um movimento importante constituído por intelectuais universitários e profissionais

da área da saúde, posteriormente incorporado por outros segmentos da sociedade,

em plena vigência do regime autoritário da Ditadura Militar (STELLA; CAMPOS,

2006).

A política educacional estava a serviço do modelo econômico progressista e

autoritário do País. A reforma educacional tinha como meta a eficiência técnica para

prover mão de obra e aumento da produtividade, cujos efeitos nem sempre

favoráveis ainda se fazem sentir no cenário nacional. O sistema de educação que

emergiu com as reformas da Ditadura Militar foi marcado pela ideologia tecnocrática,

que propugnava uma concepção pedagógica autoritária e produtivista na relação

entre educação e mundo do trabalho (FERREIRA; BITTAR, 2008).

Os avanços científicos e tecnológicos alcançados desde a segunda metade

do século XX aumentaram a eficácia dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos,

na medida em que sua incorporação passou a determinar tanto a gestão dos

serviços de saúde quanto a formação dos profissionais da área da saúde e a

departamentalização curricular. A atenção concentrou-se nos hospitais e no trabalho

especializado: trata-se do chamado modelo hospitalocêntrico, que não permitia a

todos o acesso a esses recursos (AMORETTI, 2005; SPERANDIO et al., 2010).

Em 1985, surgiram os programas conhecidos pela sigla UNI: Uma Nova

Iniciativa na formação de profissionais para a Saúde, sob a égide da norte-

americana Fundação Kellogg. Eram 20 projetos espalhados em vários países que

visavam integrar ensino, serviço e comunidade objetivando a formação do

profissional da saúde voltado para as necessidades da comunidade. Incentivavam o

estudo epidemiológico, a interdisciplinaridade, o trabalho em equipe e a utilização do

serviço como prática de ensino, juntamente com o projeto Educação Médica nas

Américas (EMA), apoiado pela Federação Pan-Americana de Associações de

Faculdades de Medicina (Fepafam), e culminaram na Declaração de Edimburgo em

1988. Elaborada pela Comissão de Planejamento da Federação Mundial de

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Capítulo 2. Educação Médica 63

Educação Médica (1988). Os princípios discutidos em Edimburgo nortearam todo o

movimento de transformação da educação médica no Brasil, o que inovou várias

escolas de Medicina (MATTOS, 1997; GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA,

2009).

Na década de 80, houve pressão direcionada a uma mudança política na

Saúde, motivada por críticas ao modelo clínico que enfatizava especialidades,

alienado, contudo, da prevenção de doenças, apenas engajado a seu tratamento e

cura – o que se denomina função curativa (CORBELLINI, 2007).

O movimento da Reforma Sanitária atingiu seu auge na VIII Conferência

Nacional de Saúde, em março de 1986, após amplas discussões que se estenderam

por todo o País, visando não apenas atender às proposições formuladas pela

Organização Mundial de Saúde (OMS) na Conferência de Alma Ata, na antiga União

Soviética em 1978, senão também efetivar transformações na atenção primária

dispensada à Saúde.

Na década de 1980, o Sistema de Saúde no Brasil passa por grandes

modificações, simultaneamente ao processo de redemocratização do País, que

atravessava, na época, grave crise na área econômico-financeira. O movimento

propunha uma nova Política de Saúde, considerando como princípios básicos a

descentralização do sistema e a universalização do atendimento, já consagrados na

8ª. Conferência (LUZ, 1991).

De modo geral, a Reforma Sanitária buscou uma inversão no modelo de

atenção à saúde, no sentido de promovê-la, em consonância com a proposta

definida na Constituição Federal de 1988, manifestando-se com o emblema de

“Saúde para todos no ano 2000”.

Nessa época a Organização Pan-Americana de Saúde propôs o Programa de

Integração Docente-Assistencial (PIDA), na tentativa de aproximar a educação ao

serviço, com a possibilidade de ampliação dos campos de prática dos estudantes,

visando à atenção primária à saúde. Este programa não teve grande repercussão,

com poucos resultados nesse sentido (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA,

2009).

A Constituição Federal de 1988 cria o Sistema Único de Saúde (SUS) – um

dos mais avançados programas de saúde – o que veio resgatar e garantir o direito à

cidadania, ao mesmo tempo que transformava o antigo modelo curativo individual,

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Capítulo 2. Educação Médica 64

corporativo e mercantilista num sistema de saúde de visão coletiva, inserido num

contexto de lógica social.

Concernente ao Sistema Único de Saúde, a Lei n. 8080, de 19 de setembro

de 1990 – conhecida como Lei Orgânica da Saúde – regulamenta o disposto na

Constituição Federal/88 no que se refere à saúde, definindo diretrizes,

estabelecendo o papel da União, Estados e Municípios no sistema, sobremaneira

dispondo a respeito de seu financiamento. Pouco tempo depois, em finais de

dezembro de 1990, aprovou-se a Lei n. 8142, que dispõe sobre a participação da

comunidade, por intermédio de Conselhos de Saúde.

A Lei 8080/90 corrobora o teor contido no Artigo 196 da Constituição

Federal/88, definindo que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e

de outros agravos”, reformulando, estabelecendo e executando condições tais que

assegurem “o acesso universal e igualitário às ações e a serviços para sua

promoção, proteção e recuperação.” Ademais, a mesma Lei define como fatores

determinantes e condicionantes da saúde a alimentação, a moradia, o saneamento

básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o

acesso a bens e serviços essenciais, entre outros. Uma das contribuições relevantes

dessa Lei foi ter deixado explícito que os níveis de saúde da população expressam a

organização social e econômica do País (BRASIL, 1990).

A formação profissional acompanha o movimento político e a necessidade

social da população. A partir da década de 50, muitos debates contribuíram para

reformas no ensino médico, encontrando consonância com a criação da Capes e

Cnpq.

As discussões no Brasil da década de 1990 referendaram o pensamento

internacional que criticava o modelo de educação profissional alicerçado na

racionalidade técnica, com currículos fragmentados em ciclos básico e

profissionalizante, em que predominava o conhecimento teórico organizado de forma

sistemática e disciplinar e a aplicação prática do conhecimento científico ao final do

curso (STELLA; CAMPOS, 2006).

Outros movimentos, como a Declaração de Edimburgo de 1988 e 1993 com a

influência da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e da Rede Unida

de desenvolvimento de Profissionais de Saúde (Rede Unida), somados às iniciativas

de formação e trabalho na área do ensino médico, com investimentos das

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Capítulo 2. Educação Médica 65

instituições americanas – Fundação Kellogg e Rockfeller –, que pleiteavam

reorganizar o ensino médico brasileiro, inclusive discutindo que tipo de profissional a

escola deveria formar. Incorporaram-se conceitos que se desdobraram no perfil do

profissional a ser formado, como: medicina integral, preventiva, comunitária e,

posteriormente, medicina da família. Anexa a esses movimentos, constituiu-se a

Comissão Interinstitucional de Avaliação de Escolas Médicas (Cinaem). Este projeto

(1991-2002) avaliou um grande número de escolas médicas. Evidenciou que, na

década de 1990, o número de escolas médicas havia se ampliado, a ponto de não

se saber ao certo o total em funcionamento, muitas sem condições de oferecer um

curso de qualidade. Indicou a necessidade de formação de médicos com uma visão

integral, visto que havia um predomínio de especialistas e que mudanças maciças

urgiam acontecer (STELLA; CAMPOS, 2006; GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA,

2009).

As discussões foram ganhando fôlego, novas ideias surgiram, entre as quais

o uso de métodos de aprendizagem baseada em problemas, conteúdos coerentes

com os avanços científicos e tecnológicos, a inclusão de informações atuais que

surgem em áreas correlatas. Em síntese, as propostas visavam organizar o currículo

segundo as seguintes demandas: a formação generalista do médico, associando ao

currículo “flexneriano”; o conhecimento das ciências sociais; atenção ao indivíduo e

não à doença, integração entre as disciplinas do ciclo básico, clínico e internato;

inclusão de disciplinas das ciências humanas, como Psicologia, Sociologia e

Antropologia (GONÇALVES; BENEVIDES-PEREIRA , 2009 apud JORNAL CRM).

Os autores supracitados referem que, em 2005, havia 144 escolas em

funcionamento (58 públicas e 86 privadas) e 48 escolas ainda não reconhecidas.

Chama-se atenção ao fato de as vagas terem aumentado 98,9 % nas escolas

privadas, ao passo que, nas escolas públicas, apenas 15 %.

Outro aspecto importante que o governo utilizou para justificar incentivos às

mudanças curriculares foi um estudo realizado pela Cinaem, em que se evidencia o

fato de os recém-formados em Medicina dominarem apenas metade do conteúdo

que deveriam saber ao término do curso. Revela, inclusive, que a residência médica

incorporou-se como continuidade natural da graduação, cujo interesse crescente é

obter o título de especialização (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).

Segundo Stella e Campos (2006), docentes, alunos, profissionais médicos e

gestores do SUS discutiram a necessidade de mudanças na formação em 11 fóruns

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Capítulo 2. Educação Médica 66

nacionais de avaliação, oficinas de trabalho semestrais, preparando lideranças e

estimulando discussões nas escolas. Os eventos propiciaram a elaboração de um

documento-síntese: “Preparando a transformação da Educação Médica”, que,

segundo os autores, contribuiu para a realização de alterações, se não no todo, ao

menos em parte dos currículos. Tudo isso concorreu para que houvesse discussões

de propostas para novas diretrizes curriculares destinadas aos cursos superiores, o

que foi iniciado pelo Ministério da Educação em 1997.

Em 1999, a Comissão de Especialistas do Ensino Médico da Secretaria de

Educação Superior apresentou uma proposta de renovação curricular, considerada

obsoleta pela Associação Brasileira de Ensino Médico. A mesma ABEM promoveu o

XXXVII Congresso Brasileiro de Ensino Médico, durante o qual diretores de Escolas

de Medicina, discutindo o documento, mostraram-se contrários às propostas.

Pautavam-se eles em documentos da Rede Unida de desenvolvimento de

Profissionais de Saúde (Rede Unida) e Cinaem, com o apoio do Ministério da Saúde

(MS) e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que, uma vez

interessados na formação de recursos humanos para o SUS, ganharam força. Em

2000, no Congresso seguinte promovido pela ABEM, a Comissão de especialistas

endossou o documento que, então, foi enviado à Câmara de Ensino Superior (CES)

do Conselho Nacional de Educação (STELLA; CAMPOS, 2006).

Direcionado a estabelecer o perfil de profissional generalista, a priorizar a

atenção primária no País, a propor a integração ensino-serviço, a facilitar o

aprendizado do estudante em áreas diversificadas desde o início do curso

(sobremaneira descentralizando a atenção hospitalar), à intenção de articular

disciplinas de revitalização da formação humana dos médicos, todo esse movimento

culminou numa nova proposta curricular, que foi aprovada pelo CNE em 3 de

outubro de 2001, pela Resolução n°. 718.

Gonçalves e Benevides-Pereira (2009) sintetizaram da seguinte maneira os

pontos centrais de direcionamento para a educação médica: a centralização do

ensino no estudante e na comunidade, rompendo com o hospitalocentrismo, sem

deixar de lado sua importância no processo de formação, mas utilizando outros

cenários de prática; o ensino baseado em problemas fictícios ou reais, visando à

integração dos conteúdos básico e clínico e à garantia de aprendizagem mais

efetiva, sistemática e baseada em evidências.

As diretrizes curriculares nacionais para o curso de Medicina determinam que

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Capítulo 2. Educação Médica 67

o perfil do profissional necessita de uma boa formação geral, humanista, crítica e

reflexiva, cujos procedimentos e desempenho se devem pautar em princípios éticos.

O profissional deve atuar na perspectiva de integralidade da assistência, com senso

de responsabilidade social e compromisso com a cidadania. As diretrizes

preconizam que os currículos devam utilizar metodologias que privilegiem a

participação ativa dos estudantes, a integração dos conteúdos básico-clínicos

orientados para a interdisciplinaridade, integrando as dimensões biológicas,

psicológicas, sociais e ambientais. Incluem-se e enfatizam-se os conteúdos éticos e

humanísticos, o estímulo ao desenvolvimento de atitudes e valores que promovam a

cidadania. Orienta-se a utilizar cenários diversificados de ensino-aprendizagem

desde o início de sua formação, porque os alunos possam vivenciar as situações

adversas de vida, a organização e processo de trabalho nos vários cenários

“permitindo ao aluno lidar com problemas reais e assumir responsabilidades

crescentes como agente prestador de cuidados e atenção [...]” (STELLA; CAMPOS,

2006, p. 77).

A formação de recursos humanos para o SUS somente se torna possível com

o real envolvimento e compromisso com a saúde pública. Esse tipo de incentivo

possui também interesse na redução dos altos custos decorrentes da hospitalização.

Ao mesmo tempo, enfatiza a necessidade de sensibilização dos profissionais às

reais condições de vida da população, que se tornam determinantes para a saúde.

Para a implantação de Políticas Nacionais de Saúde, a formação de recursos

humanos tornou-se foco de atenção do governo, para poder organizar e articular os

serviços e a as instituições de ensino. Por meio da capacitação dos profissionais e

trabalhadores da área da saúde tem-se tentado recuperar a articulação existente

entre o ensino, a assistência e a real necessidade da população (HADDAD et al.,

2010).

A visão biologicista dominante nos serviços de saúde contradiz a visão de

saúde calcada na qualidade de vida da população. Nesse sentido, Haddad et al.

(2010, p. 387) defendem que urge investimento na educação quanto à “emergência

de concepções críticas, reflexivas e que problematizem a realidade social.” Esse

pensamento é contrário às propostas de ensino que reforçam incorporação do

conhecimento tecnológico de alta complexidade e custos elevados, perpetuando-se

modelos e tradições de seleção de conteúdos e cargas horárias segundo a

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Capítulo 2. Educação Médica 68

importância das especialidades.

O governo federal, por intermédio dos Ministérios da Saúde e da Educação,

no sentido de incentivar as escolas médicas a realizarem mudanças curriculares,

tem lançado programas com incentivo financeiro para serem aplicados na

contratação de consultores, na realização de oficinas, em requalificação de

profissionais e aquisição de material de ensino. O Programa de Incentivo às

mudanças curriculares dos Cursos de Medicina (Promed), lançado em 2002, teve

como principal objetivo adequar a formação dos médicos à realidade do sistema de

saúde brasileiro. Por exemplo, o informe de chamada às escolas para financiamento

de mudanças denuncia que as escolas de Medicina praticamente não alteraram o

currículo nos últimos 30 anos. O Promed recomenda as seguintes mudanças

pedagógicas nas escolas: ênfase na medicina integral, valorizando o conceito de

saúde em detrimento da doença; o desenvolvimento de metodologias ativas de

ensino-aprendizagem; valorizar a humanização do atendimento com a formação de

uma base ética sólida; incentivar o ingresso de futuros médicos em ações de

atenção básica, priorizando o Programa de Saúde da Família e trabalhar novos

cenários de ensino-aprendizagem, que não sejam somente hospitais universitários

(Ministério da Saúde, 2002). Nesse último item, subentende-se que os estudantes

devam ser levados a conhecer e praticar nas Unidades de Atenção Básica,

sobretudo trabalhando nas Unidades que desenvolvam a Estratégia de Saúde da

Família (ESF), porquanto, nesse campo, aprendem a valorizar as ações de

promoção à saúde e prevenção de doenças e de complicações delas decorrentes.

Enfatizam-se aqueles acometimentos de grande incidência na população,

como o diabetes, a hipertensão, além de outras doenças que são crescentes nos

últimos tempos: de modo geral, a depressão, a obesidade e as dislipidemias, dentre

outras. Nesse sentido, o profissional colabora na melhoria da saúde da população,

diminuindo gastos elevados com internação e medicalização consequente ao

aparecimento de doenças, antes prevenindo-as (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).

Ainda concernente ao documento antes abordado, constata-se que uma das

maiores preocupações – aliás, a que mais motiva a proposição de mudanças na

formação de profissionais de saúde – diz respeito à excessiva especialização

médica. Decorre daí o aumento de custos assistenciais, além de isso contribuir

gradativamente porque haja diminuição de uma visão integral, o que compromete a

ampliação de Programas de Atenção Básica, como a ESF.

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Capítulo 2. Educação Médica 69

Por outro lado, pode-se afirmar que o mais desejável seria que a população

pudesse viver em condições melhores de vida, o que propicia promoção à saúde e

que pudesse ter acesso adequado aos meios de prevenção de doenças e que fosse

ele igualitário no que se respeita a tratamentos especializados dentro dos padrões

científicos e tecnológicos mais avançados.

Gonçalves e Benevides-Pereira (2009) afirmam que centralizar o ensino no

estudante e na comunidade rompe com o hospitalocentrismo, sem que se

negligencie sua importância no processo de formação. Com efeito, trata-se de

utilizar outros cenários de prática e de ensino fundamentado em problemas fictícios

ou reais, visando à integração dos conteúdos básicos e clínicos. Eis aí pontos de

redirecionamento para um ensino mais efetivo.

Além do Promed, que funciona desde 2005, outros programas participam no

financiamento de novas propostas de ensino, procurando colaborar na formação

integral do médico. O Programa Nacional de Reorientação Profissional em Saúde

(Pró-Saúde) foi criado em 2005, com a intenção de mudar o modelo tradicional de

cuidado em saúde centrado na doença e no atendimento hospitalar. De outro lado,

tenciona atingir algumas metas relevantes: integração ensino-serviço, abordagem

integral do processo saúde-doença, com ênfase na atenção básica e,

consequentemente, melhor atendimento à saúde da população. Desta fase

participaram da seleção para financiamento concedido pelo governo as escolas que

ofereciam curso de Medicina, Enfermagem e Odontologia. Na segunda fase do

projeto, Pró-Saúde II, lançado em 2007, ampliou-se a participação para os demais

cursos da área da saúde. O programa sobremaneira enfatizava a integração ensino

– serviço, a articulação entre instituições de ensino superior e o serviço público de

saúde, potencializando “respostas às necessidades concretas da população

brasileira, mediante a formação de recursos humanos, a produção do conhecimento

e a prestação dos serviços com vistas ao fortalecimento do SUS.” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2009).

Em parceria com outras Secretarias – Trabalho, Saúde e Educação –, o mais

recente programa financiado pelo governo colabora tanto na formação dos

estudantes quanto na capacitação de profissionais que se encontram em exercício

de sua atividade na atenção primária. Trata-se do Programa de Educação pelo

Trabalho para a Saúde, conhecido por PET-saúde, que disponibiliza bolsas para

tutores ligados a universidades ou faculdades, preceptores (profissionais dos

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Capítulo 2. Educação Médica 70

serviços) e estudantes de graduação da área da saúde. O programa expandiu-se,

gerando ramificações: como o Pet-saúde/Saúde da Família; o PET-saúde/Vigilância

em Saúde e, em 2011, lançou-se o PET-saúde/Saúde Mental/crack (MINISTÉRIO

DA SAÚDE, 2011).

A formação do profissional deve levar em conta o mercado em que ele será

inserido, e a instituição de ensino deve estar articulada ao setor serviço, atenta às

contradições existentes e à real necessidade da população.

Há um esforço na implementação das diretrizes curriculares ou mesmo de

aproximações das instâncias formadoras às necessidades dos serviços de saúde,

possibilitando mudanças na concepção e perfil dos profissionais para a consecução

das orientações existentes. Isso inclui o contato precoce do estudante na atenção

primária à saúde desde a primeira série, esforço na promoção da

interdisciplinaridade, dando ênfase à formação dos professores em metodologias de

ensino-aprendizagem. Pretende-se, dessa maneira, a sensibilização dos estudantes

e professores em face aos problemas sociais, a melhoria na formação e, por

conseguinte, na assistência ao paciente. A direção está dada. No entanto, o desafio

é saber em que medida os conteúdos serão incluídos e como serão articulados no

currículo.

2.2 A formação ética do médico

Retomam-se os remotos ensinamentos éticos, dada à relevância de seu

legado aos profissionais médicos: Nesse sentido, aponta-se O corpus

Hippocraticum como obra que, segundo Margotta (1998), engloba um conjunto de

tratados médicos de várias escolas, e contém as obras éticas e o Juramento de

Hipócrates.

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Capítulo 2. Educação Médica 71

Em On the physician (Sobre o Médico), declara-se como deve ser o

comportamento do médico na visão do homem grego na Antiguidade Clássica:

É essencial que todo médico tenha boa aparência e esteja bem nutrido, pois ninguém confiaria os cuidados do próprio corpo a alguém que não cuide de si mesmo. Ele deve saber como e quando se silenciar e viver uma vida regrada que contribuirá para a sua reputação. Deve se comportar como homem honesto, ser gentil e compreensivo com todos. Não deve agir por impulsos ou precipitadamente; deve transmitir calma, serenidade e não se irrita; por outro lado, não convém demonstrar demasia alegria.” (MARGOTTA, 1998, p. 27).

O fragmento faz menção à postura, à aparência e à comunicação do médico

para o estabelecimento de uma relação adequada com o paciente, com o propósito

de obter-lhe a confiança. A obra reporta-se também ao sigilo das informações a

respeito do paciente. Trata-se, pois, da origem de um Código de Ética Médica que,

ao longo da história da profissão, orientou a conduta e o dever do médico em

relação ao paciente. Em certos momentos, o comportamento do médico na interação

com o paciente se direcionou à responsabilidade com a cura; noutros, com a

manutenção de uma postura polida, a que muitos se referem como à semelhança de

um código de etiquetas, para, posteriormente, o Código de Ética deixar evidente o

dever do médico.

A mudança mais significativa e recente, percebida no Código de Ética

Médica, foi a que fez referência à autonomia do paciente, à importância da

informação para a sua participação nas decisões; também houve inclusão de itens

relativos à atenção aos familiares.

Por um longo tempo, ancorou-se o ensino da Ética na Deontologia. Somente

com o advento da Bioética, retomaram-se a reflexão e fundamentação sobre o agir,

articulando as Ciências Biológicas e Humanas em sua formação, assistindo ao

profissional articular os conhecimentos apreendidos nessas ciências de tal forma

que sejam mobilizados ao agir. Sua prática consiste de escolhas e decisões que

incidem direta e seriamente sobre a vida de outra pessoa, num de seus momentos

de vida mais vulneráveis. Nessa inter-relação médico/paciente, faz-se presente a

Ética, porquanto envolve decisões frente à escolha da melhor opção. Saber agir com

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Capítulo 2. Educação Médica 72

responsabilidade em relação ao outro deve ser uma preocupação indispensável na

formação médica.

Sustentando-se no modelo flexneriano, o ensino nas escolas médicas passou

a valorizar a Ciência, e não mais a pessoa como centro do tratamento e cuidado.

Com efeito, esse enfoque científico que, aliás, perdura até nossos dias em muitas

escolas de Medicina causou uma profunda alteração na relação médico-paciente,

porquanto determina o rompimento do vínculo humanístico entre o médico e seu

paciente, o qual, como se sabe, é de fundamental importância no percurso de

qualquer tratamento. Pode-se conferir essa reflexão no seguinte extrato:

[...] pudemos acompanhar um processo de localização da doença no corpo, objetivação do diagnóstico, tecnização da relação médico-paciente, ampliação da intervenção, racionalização e matematização dos critérios e procedimentos, busca de simplificação da concepção de doença e da terapêutica, mercantilização da prática, centralização das decisões e controle do trabalho do médico. (DALMASO, 2000, p. 54).

Num estudo realizado em 1992, abrangendo 75 escolas de Medicina, Meira e

Cunha (1994) concluíram que o ensino da Ética pouco havia mudado em relação

aos anos anteriores. Na maioria das escolas, o ensino da Ética vinculava-se a outras

disciplinas – principalmente à de Medicina Legal – e inclinado a aspectos

deontológicos, de cunho teórico, em que se reduzia a discussão de casos clínicos e

reflexão filosófica, embora fossem as disciplinas ministradas na segunda metade do

curso: ordinariamente, no 4º ou 5º anos. Em apenas uma escola mencionou-se a

discussão ética integrada a outras disciplinas do currículo. Comentam ainda que as

escolas geralmente dispunham de um ou dois docentes médicos numa disciplina, de

no máximo, 50 horas (num total de 8640 horas de curso) e que havia grande

variedade no enfoque e estrutura, denotando diversidade de compreensão e de

localização da disciplina.

Camargo (1996) numa comparação entre dois estudos realizados em 1985 e

1992, de autoria de Mello e Cols. e Meire e Cunha, consecutivamente, comenta que

as características gerais permaneciam nos referidos períodos, com pequeno

aumento como disciplina autônoma. Nas escolas em que participavam docentes não

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Capítulo 2. Educação Médica 73

médicos, foram citados três professores com formação em Direito, Filosofia e

Psicologia, e a carga horária concentrava-se no 3º, 4º e 5º anos dos cursos.

Dado que o ensino das normas que constam no Código de Deontologia resta

insuficiente, sobremaneira porque deixa a desejar no que tange ao estímulo à

reflexão acerca de valores, sem os quais não se desenvolve o comportamento

moral, alguns autores defendem a necessidade de as escolas extrapolarem os

limites do mero ensino daquelas normas. Ademais, há que se considerar como

agravante dessa carência de reflexão e/ou desenvolvimento do agir moral a faixa

etária daqueles que estão sendo formados, conforme se verifica no seguinte excerto:

A deontologia, no entanto, não atende a um dos objetivos primordiais da educação, qual seja o desenvolvimento de comportamento moral nos alunos dos cursos médicos. Ela trata da questão das obrigações morais, do dever que, sem dúvida, deve ser conhecido por todo cidadão, mas não dispõe de recursos formativos do caráter que é função da escola, principalmente de uma escola médica que recebe, em sua maioria, adolescentes de dezessete e dezoito anos e os abriga em tempo integral durante os últimos anos de sua adolescência, devolvendo-os formados (vinte e três ou vinte quatro anos), adultos, para a sociedade. (CAMARGO, 1996, p. 49).

Se a formação centraliza-se apenas em elementos técnicos, o estudante, de

fato, prosseguirá numa postura fechada, voltado para critérios científicos, sem levar

em conta, entre outros aspectos, a individualidade, a estrutura psicológica, as

reações emocionais, as condições sociais de cada indivíduo, inerentes à sua vida

em comunidade.

Dantas e Souza (2008) realizaram uma revisão sistemática a respeito do

ensino da Ética, em cuja conclusão corroboram a suma importância que esta

Ciência possui na formação do médico. Analisaram-se três pesquisas referentes a:

1984, 1992 e 2001. Coincidindo com estudos anteriores da década de 1980, os

autores verificaram que a maioria dos cursos ofertava a disciplina Ética integrada à

de Medicina Legal e Deontologia. No último estudo, realizado em 2001, a disciplina

recebia a denominação de Bioética ou Ética e Bioética, o que demonstra que,

gradativamente, esse ensino foi se desvinculando de uma abordagem

exclusivamente normativa, incluindo temas filosóficos – uma tendência influenciada

pelo movimento iniciado pela Bioética na década de 1970.

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Capítulo 2. Educação Médica 74

No terceiro estudo empreendido por Dantas e Souza, sobressaiu a escolha de

temas segundo a literatura especializada, e houve a inclusão de temas como

princípios da Bioética e pesquisa em seres humanos, dentre outros. Utilizaram-se as

seguintes estratégias de ensino: aulas expositivas, mesas-redondas, discussão de

casos e seminários. Foram relatados como instrumentos de avaliação: provas

dissertativas, testes de múltipla escolha, seminários e realização de revisão

bibliográfica. Nos estudos, observou-se que a disciplina era ministrada, na maioria

das vezes, no quarto ano; em alguns casos, prolongava-se em mais um período e,

em poucos, ao longo do curso todo.

Como afirmam Dantas e Souza, o ensino de Ética deve ser realizado nas

instituições em todos os períodos do curso de graduação, ministrado por docentes

que se imbuíram de vivência profissional e de conhecimento na área de Ciências

Humanas, de forma integrada com outras instâncias responsáveis por questões

éticas. Ademais, no estudo realizado em 1992, observou-se relação entre os temas

abordados e a formação dos professores e ainda, com uma proposta do ensino da

Ética de forma transversal no currículo. Constatou-se, entretanto, que isto não

ocorria efetivamente.

[...] o discurso não tem se efetivado na prática, pois não houve nas últimas décadas um aumento significativo no número de disciplinas dedicadas exclusivamente à ética médica e bioética, nem dos docentes com funções específicas em bioética ou na carga horária da disciplina, denotando um pequeno envolvimento institucional no fortalecimento do ensino e pesquisa da área. (DANTAS; SOUZA, 2008, p. 511).

Os autores comentam que, ao longo de 20 anos, comprovou-se uma relativa

estagnação na estrutura educacional e organizacional dos cursos de Ética nas

escolas médicas brasileiras, com baixa carga horária, pequeno número de

docentes, com abordagem concentrada no ciclo clínico – quarto ano – com foco na

Deontologia. Com o advento da Bioética como área transdisciplinar, modificou-se o

enfoque, incorporaram-se temas da Ética aplicada à vida, que se desdobraram das

relações humanas para as relações sociais e com a natureza.

Em 1985, a Comissão de Ensino Médico, do Conselho Federal de Medicina

elaborou um relatório, asseverando que havia entre as escolas consenso de que a

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Capítulo 2. Educação Médica 75

disciplina Ética deveria ser ministrada autonomamente, isto é, não associada à

Medicina Legal como tem sido oferecida. Ademais, deveria ser incluída ao longo de

todo o curso, por meio de discussão de casos, com a participação ativa dos

estudantes. A Comissão refere ainda que as disciplinas de Medicina Legal e

Deontologia são imprescindíveis à formação médica, porém insuficientes para a sua

formação ético-humanística (SIQUEIRA; SAKAI; EISELI, 2002).

Encontrou-se esse mesmo contexto em escolas do Reino Unido numa

investigação realizada por Jaqsi e Lehmann (2004) em 22 escolas médicas. Na

metade delas, havia apenas um docente ministrando a disciplina. Numa pesquisa

realizada em 2002 - 2003 nos Estados Unidos e Canadá, verificou-se que 70% das

escolas contavam com a presença de um professor em regime de dedicação

integral no ensino da Ética e apenas 25 horas destinadas a seu ensino. Em

contrapartida, havia a inclusão de questões sobre Ética nos exames de residência

médica e para a obtenção do título de especialista, o que, de certa forma, contribui

para despertar a atenção do aluno para a relevância da matéria e presta-se tanto

para a sua difusão quanto para o estudo complementar de Ética.

Jaqsi e Lehmann refletem que, frente a um conflito ético, o indivíduo

primeiramente se sensibiliza com ele para depois processá-lo racionalmente,

quando, então, avalia seus múltiplos ângulos e dimensões. Consideram essencial a

análise crítica com aplicação de referenciais teóricos e uso de argumentos

consistentes na tomada de decisão. Em diferentes continentes, observou-se a

diminuição da sensibilidade dos estudantes ao longo do curso de Medicina.

Enfatizam-se que mais importante que ensinar a regra do jogo – as normas que

regem a profissão – há a necessidade de sensibilizar os estudantes e de

fundamentá-los porque decidam bem em cada caso. Os autores concluem que é

necessária a capacitação a ser efetuada pelos poucos docentes exclusivos da área

ética, bem como a outros docentes que estão envolvidos na prática com os

estudantes. Deve haver também compromisso por parte desses outros docentes em

relação à Ética.

Dallari (1996) expõe vários pontos de vista a respeito do ensino da Ética no

mundo, constando que se encontra atrasado em relação às necessidades da

sociedade. Revela que, sobremaneira na Saúde, enfatizam-se mais as técnicas do

que a Ética, além de existirem poucos especialistas nessa matéria. Em alguns

casos, professores e alunos se imbuem de interesses flutuantes por disciplinas

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Capítulo 2. Educação Médica 76

optativas – fator que é apontado como negativo no que respeita a formação dos

profissionais. Ressalta que o ensino da Bioética deve adotar resolutamente a via das

novas interrogações, propor novas formas de participação e de ensino da Ética na

formação de profissionais. Assevera que existem vários meios de atingir o

pretendido, distantes da tendência de se submeter ao Direito, aos códigos, ao

engessamento dos programas, ou a uma única modalidade de ensino.

D'Avila (2003) insta a responsabilidade do Conselho Federal de Medicina

(CFM) para atentar à formação ética dos profissionais de Medicina, tanto dos já

formados quanto dos que estão em formação. Refere que, na década de 90, de

forma incipiente, muitos Conselhos Regionais tomaram a iniciativa de ensinar

princípios de ética médica por meio de convênios com algumas escolas.

Os Conselhos de Medicina são órgãos que defendem a qualidade da prática

médica, o exercício profissional ético e uma boa formação técnica e humanista.

Criado em 1957, o CFM organiza várias atividades em defesa da sociedade. Uma de

suas competências é julgar processos ético-disciplinares, em geral oriundos de

denúncia. Os julgamentos fundam-se no Código de Ética Médica, e apresentam

como resultado desde advertência confidencial até mesmo a cassação do exercício

profissional. Além de disciplinares, consideram-se os processos um modo de

aprendizagem, quando, por meio de julgamentos simulados, são realizadas

discussões éticas com os profissionais. Recomendam-se os julgamentos simulados

tanto na graduação quanto na pós-graduação em Medicina, como forma de

“recuperar o vivido, compartilhar dúvidas e vivenciar os conflitos da profissão

médica.” (OLIVEIRA, 1997, p. 146).

Desde 2000, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo

(CREMESP) tem criado bolsas de pesquisas – um bom exemplo de incentivo ao

ensino, e mais especificamente, à formação ética do médico. Seguramente, essa

iniciativa contribui, em certa medida, para a atualização e capacitação dos médicos

orientadores dos projetos.

Siqueira, Sakai e Eiseli (2002), estudiosos do tema, confirmam a insuficiência

do modelo clássico, marcado pelo ensino de Deontologia e Medicina Legal na

formação humanística dos profissionais médicos. Para suplantar essa deficiência,

propõem a introdução da disciplina de Bioética. Com isso, abrir-se-ia aos estudantes

a possibilidade de conhecer o comportamento humano nas diversas correntes de

pensadores e de enriquecer a reflexão acerca da Deontologia e da moralidade

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Capítulo 2. Educação Médica 77

humana. Reitera-se a necessidade de reformulação do ensino da Ética, mormente

no diz respeito à metodologia usada, visto que, necessariamente, deverá ocorrer a

integração das diversas disciplinas que se complementam na visão integral e

complexa do ser humano.

Neste estudo, verificou-se que, entre os estudantes do 5º ano entrevistados,

56% declararam que o ensino da Ética tal como ministrado antes da realização da

pesquisa deveria ocorrer durante todos os anos do curso, e 84% deles

consideraram-no satisfatório, avaliando-o com o critério máximo oferecido nas

alternativas.

Por outro lado, considera-se que a Medicina ganhou muito em tecnologia,

porém tem perdido seu caráter humanista: o paciente ficou reduzido a uma máquina

humana. No entanto, seus aspectos emocionais, crenças e valores foram relegados

a plano secundário (TRONCON et al.,1998; D’AVILA 2003).

D'Avila (2003) comenta que, na Universidade Federal de Santa Catarina, a

disciplina Ética também está emaranhada ao ensino da Medicina Legal e que as

escolas que a ensinam, ainda o fazem de forma insipiente. Segundo ele, num

sistema político-econômico neoliberal, a Ética torna-se desvalorizada, pouco

interessante: o que não deixa de se constituir, pois, ainda mais um desafio.

Recomenda a introdução do ensino da Bioética para propiciar uma visão do papel do

médico cidadão mais ampla, numa perspectiva mais moderna. Quanto ao ensino da

disciplina, acrescenta que deva ser desenvolvida de forma transdisciplinar, por meio

de discussões enriquecidas com a presença de juristas, filósofos, sociólogos e

outros profissionais. Desse modo, revitaliza-se a ideia já defendida por outros

autores: urge que o ensino da Ética seja ministrado em todas as fases do curso de

Medicina, cujos conteúdos se graduem num crescendo em profundidade.

Gomes, Moura e Amorim (2006, p. 64) apresentam o resultado de um estudo

da organização curricular no ensino da Ética, em uma coleta realizada em 2004, por

meio de ementas de disciplinas de duas universidades públicas do Ceará. Concluem

que, além da carga horária estabelecida, a disciplina se apresentava inserida em

várias outras disciplinas. Percebeu-se a ampliação do conteúdo, não só enfatizando

deveres senão também incluindo temas de base filosófica: a relação médico-

paciente, a cidadania, a integração de vários enfoques disciplinares. Os autores

defendem especificidade da Ética, mas seja inserida no curso de forma transversal.

Ademais, reconhecem que o corpo docente investigado guardava coerência com a

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Capítulo 2. Educação Médica 78

visão generalista de formação profissional e “com visão integral do ser humano e

consciência de cidadania”. Tanto a evolução do pensamento e da prática dos

profissionais imbuídos de visão humanística e cidadã quanto um corpo docente

constituído de forma multiprofissional, poderiam facilitar o redirecionamento do

ensino, em sintonia com os preceitos bioéticos.

Nesse sentido, conquanto haja às vezes intenção e planejamento, por

diversos motivos não se efetivam de fato algumas discussões.

Vale lembrar que as Diretrizes Curriculares Nacionais deixam transparecer o

propósito de melhorar a qualidade do ensino destinado à formação crítica e reflexiva

do profissional generalista, humanista, apto para atuar nos diferentes níveis de

atenção à saúde, numa perspectiva de integralidade da assistência, pautado em

princípios éticos. Como promotor da saúde integral do ser humano, recomenda-se

ainda que o profissional deva imbuir-se da responsabilidade social e comprometer-

se com a cidadania. O documento reforça a consideração de que o médico deva

obrigar-se ao exercício de sua profissão no alto grau de qualidade e princípios da

Ética e da Bioética. Além do mais, deve ele atuar criticamente, saber lidar com o

mercado de trabalho, possuir visão de seu papel social, estar disposto a atuar em

atividades políticas e de planejamento.

No que respeita ao processo saúde-doença, entre os conteúdos sugeridos

consta a compreensão dos determinantes sócio-culturais, comportamentais,

psicológicos, ecológicos, ético e legais, do ponto de vista individuais e também

coletivos. Menciona-se incluir as dimensões éticas e humanísticas, para que se

desenvolvam, no estudante, atitudes e valores orientados para a cidadania.

Os PCNs – cuja última orientação para os cursos de Medicina foi homologada

em primeiro de outubro de 2001 –, norteiam com flexibilidade os planejamentos de

ensino das instituições, orientando que as escolas os efetivem responsavelmente,

porque se atenda à expectativa de alto padrão de formação profissional. Propõem

desenho curricular que favoreça a interdisciplinaridade, de modo que se integrem as

dimensões biológicas, psicológicas, sociais e ambientais, para que seja precoce na

prática a vivência do aluno, que deve assumir, desde cedo, responsabilidades

crescentes (BRASIL, 2001).

Ainda concernente ao currículo, Oliveira, Guaiumi e Cipullo (2008) comentam

que algumas modificações do ensino da Ética – o que designam Educação Ética –

advêm de necessidade face ao descompasso entre os avanços tecnológicos e a

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Capítulo 2. Educação Médica 79

maturidade das reflexões morais. Ademais, começam a se referir à Ética como

Bioética, relacionando-a a um conteúdo de natureza humanística.

Num estudo de que participaram estudantes de 23 escolas de Medicina do

Estado de São Paulo, aqueles autores verificaram que, quanto à metodologia, os

resultados corroboram estudos anteriores. Não obstante, à semelhança do que

ocorria em outras disciplinas, com respeito ao predomínio de aulas teóricas, o

método não evoluiu como deveria ou era esperado, como orientava o longínquo

Relatório Flexner que se enfatizasse o ensino clínico.

O estudo evidencia algumas diferenças concernentes ao desenvolvimento da

disciplina: escolas ministrando o curso no primeiro ano; em apenas uma delas o

curso era oferecido durante todos os anos da graduação; como em outras

investigações anteriores, percebeu-se que pequena porcentagem das escolas

consideradas no estudo não administra a disciplina Bioética na graduação em

Medicina.

Referentemente à questão de haver mudança no comportamento dos

graduandos, os resultados obtidos do estudo evidenciam o seguinte quadro: metade

dos participantes aponta alguma mudança após o curso de Bioética haver sido

ministrado; pequena parcela reconhece ter ocorrido muita alteração na postura; o

que se deve enfatizar, porquanto houve percepção do valor da disciplina, não

apenas a memória de seu conteúdo. Embora discreto, poder-se-ia considerar

significativo esse último resultado em meio à desconsideração existente no que

respeita ao curso de Bioética.

Os estudantes referiram ter ocorrido mudanças em sua atitude posteriormente

à participação no curso. Não obstante, os autores desse estudo perceberam muitas

respostas errôneas aos casos clínicos que propuseram aos estudantes investigados,

o que demonstra que o curso está distante do resultado almejado. Concluem, enfim,

que os impactos na mudança de postura são pequenos ante a importância dada à

abordagem dos temas, que aulas exclusivamente teóricas não estimulam os

estudantes e, na literatura, há poucos textos disponíveis que abordem os temas.

Gomes, Moura e Amorim (2006) argumentam em favor da introdução do

conteúdo de Bioética a partir do início do curso, porquanto permite ao estudante

compreender melhor as situações vivenciadas à luz de uma visão filosófica, e não

meramente técnica.

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Capítulo 2. Educação Médica 80

Oliveira, Guaiumi e Cipullo (2008) referem-se a um estudo de Taquete (2005),

de que consta a reclamação dos estudantes a respeito da falta de supervisão no dia

a dia em situações em que não sabiam como proceder. Esse fato denota a

relevância do ensino da ética nas práticas diárias dos estudantes, porquanto

constitui-se de estímulo à reflexão dos diversos modos de interagir com pacientes,

familiares e equipe. Enfim, trata-se de um ensino que, muitas vezes, deve ir além de

sua programação sistemática.

Trabalhado como tema transversal, o ensino da ética tem contribuído de

modo eficaz para a mudança exigida na formação atual, conforme defendem muitos

autores (GOMES; MOURA; AMORIM, 2006; REGO; GOMES; BATISTA, 2006;

DANTAS; SOUZA, 2008).

Rego et al (2008) reforçam a necessidade de haver práticas de ensino em

que os estudantes mobilizem sentimentos morais e tenham a possibilidade de refletir

sobre a própria prática, o que propicia a elaboração de uma nova estrutura de

pensamento, sem que lhes seja imposta. Caso contrário, pode provocar efeitos

contrários aos desejados. Faz-se necessário que o professor tenha familiaridade

com o método, sobremaneira que domine com clareza os objetivos educacionais a

que se propõe.

Citam-se alguns exemplos possíveis de métodos, estratégias e recursos a

serem empregados por docentes: discussão de casos; role playing; clubes de

debates e competições; discussão de filmes; ensino direto de teorias éticas e

discussão de métodos1. Há consenso entre os autores de que a discussão de casos

e filmes são bastante profícuos, em detrimento da discussão apenas teórica.

1 (1) Discussão de casos: o estudante aplica, num caso particular, os conhecimentos aprendidos em aulas

teóricas – (2) role-playing (PR): técnica da Psicologia (especialmente, Psicoterapia) ou em treinamentos de

todos os tipos; consiste em assumir um determinado papel – consciente ou inconscientemente e vivenciar no

lugar de outrem, experiências propostas em situações de acordo com as expectativas percebidas pela

sociedade, no que respeita ao comportamento da pessoa em um contexto particular; além de instigante, o RP

estimula o estudante a viver situações cada vez mais complexas que podem propiciar um trabalho de

integração com outras disciplinas e áreas de conhecimento humano; com efeito, ao atuar reproduzindo

diferentes papéis, o estudante entra em contato com diferentes pontos de vista, posturas e valores diversos

(pai, mãe, médico, padre/pastor, paciente religioso, paciente terminal etc.), de forma que lhe favoreça

trabalhar aprendendo em equipe, tomar decisões em situações emergenciais, mesmo encontrar solução para

os problemas e desafios propostos no desempenhar de seu “papel”. O êxito didático do RP depende, no

entanto, do professor que aplicar a técnica: há que dominá-la bem, saber propor casos verossimilhantes, saber

motivar os alunos, observar; caso contrário a aula torna-se pantomima, atitudes, sentimentos não resultam

autênticos. – (3) clubes de debate e competições: simulam-se, inclusive, julgamentos, em que se testa no

estudante, a habilidade de convencer uma audiência a respeito de sua posição diante do tema proposto;

autores consideram que sinceridade e autenticidade sejam “empecilhos para vencer o debate”. – (4) discussão

de filmes: embora possa trabalhar sentimentos morais, encontra alguns aspectos inconvenientes a

dificuldades de encontrar filmes significativos que se harmonizem com temas e conteúdos trabalhados nas

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Capítulo 2. Educação Médica 81

Conforme julgam Gomes, Moura e Amorim (2006), a educação deve favorecer o

entendimento do ser humano em sua complexidade e unicidade. Para isso, é preciso

reunir conhecimentos das Ciências da Natureza, das Ciências Humanas, Literatura e

Filosofia. Outras disciplinas também se reportam a implicações de valores morais –

objeto de reflexão ética. Os autores defendem a óptica de que cada disciplina e cada

professor devem ter presente a dimensão ética. Constatam, no entanto, que os

docentes são em sua maioria médicos, e o curso de Medicina não possuí, em geral,

docentes da área das Ciências Humanas, permanecendo apenas como uma

proposta. Inclusive, questionam o fato de que essa incidência de conteúdos da

dimensão ética possa vir a interferir na implementação do novo currículo proposto.

Não obstante, estão acordes em que a medida, efetivamente, favorece a formação

médica.

Essa diversidade de formação dos professores pode favorecer a geração de um conhecimento multidisciplinar e interdisciplinar do processo saúde- doença, com maior possibilidade de articulação do médico com outras áreas do conhecimento, desde a graduação, contribuindo para uma formação mais humanística e afeita à valorização da dimensão ética. (GOMES; MOURA; AMORIM, 2006, p. 64).

Quando se fala de interdisciplinaridade, é preciso considerar como será feita a

inserção, nos programas, dos temas citados. Caso contrário será feita apenas

conforme o entender e a intenção de cada professor, sem que se busque mobilizar o

estudante para pensar, discutir e desenvolver atitudes mais maduras, refletidas e

crítica, justificando-as eticamente. Faz-se imprescindível uma abordagem cuidadosa,

para que a discussão a respeito do conteúdo de natureza ética não fique

simplificada e perdida no planejamento geral dos cursos, porquanto, como reflete

Correia (2008), o que é de todos não é de ninguém, e a Ética passa a não existir na

organização curricular e, por extensão, na formação profissional.

O ensino da Ética não é tarefa fácil, senão um desafio. Os autores concordam

com que não pode ser ministrado sob a perspectiva acadêmica tradicional, que deve

aulas expositivas e o risco de se tornar o debate palco de falácias, de interpretações errôneas (“achismos”) ou

que não estejam acordes com os temas propostos a discussão, porque subjetivos em demasia, o que pode dar

lugar a acalorados desentendimentos. – (5) ensino direto de teorias éticas e discussão de métodos: seu

propósito é modificar as atitudes da audiência.

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Capítulo 2. Educação Médica 82

se realizar de forma reflexiva, aprofundando temas, se são eles abordados

superficialmente.

Em meio a tantas possibilidades tecnológicas e a interesses que o

impulsionam, muitas vezes o profissional pode desviar-se da melhor escolha e vir a

causar mais dano que benefício ao paciente, deixando-se guiar pela falaciosa

convicção – que, aliás, pode beirar à irracionalidade –, de que pode ou deve fazer

tudo o que a ciência lhe permite: obstinação terapêutica. Pode ainda, desconsiderar

as consequências em agir sem a firme convicção da necessária ponderação dos

fatos, com investigação aprofundada, adequada deliberação para a tomada de

decisão.

De fato, importa a valorização da medicina científica e racional, porque seja

bem sucedida a prática médica. Não obstante, no caso de essa prática ficar

desprovida da reflexão ética e da atitude humanística, tornar-se-á totalmente árida e

gravemente perigosa para o seu principal objeto.

Muitos são os que afirmam a importância do estudo da Ética e da formação

humanística do estudante de Medicina como elemento fundamental na formação

médica. De outro lado, entretanto, reconhecem que a formação humana se perdeu

com o tempo. A arte de cuidar do paciente foi substituída pela técnica. Urge que se

retome a dimensão humana e crítica, contudo diversamente da maneira que vem

sendo disposta nos currículos. Nos estudos que tratam do ensino da Ética, percebe-

se que a Bioética trouxe nova perspectiva para a formação do profissional médico. A

Bioética propõe que sua abordagem seja multiprofissional, multidisciplinar e

transdisciplinar. Espera-se que, após a sua difusão, os especialistas em Bioética e

as escolas de Medicina caminhem para o merecido reconhecimento dessa

disciplina, com o propósito de colaborar para o desenvolvimento e garantia de

atitude mais humana do médico em relação ao paciente, aos familiares e à equipe.

Por extensão, que se possa, vivenciar uma organização político-social em que se

valoriza sua prática.

Confrontada ao ensino tradicional da Ética, a Bioética introduz uma

abordagem mais ampla, integrando visões diferentes da vida na atualidade,

necessárias para a compreensão dos fatos e tomada de atitudes, numa realidade

em que a ciência intervém com mudanças que estão a exigir um repensar vital para

a sobrevivência humana – para um bom uso da ciência. No quarto capítulo, retomar-

Page 85: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 2. Educação Médica 83

se-á uma abordagem mais especifica da gênese da Bioética, a amplitude e a direção

por ela impulsionada para o ensino da Ética na área da saúde.

Tornou-se conhecida a assertiva de Berlinguer: “Todo estudante de medicina

é um idealista no início do curso e um cínico no final do curso”. Comentando-a,

D’Avila (2003) considera que, embora terrível, a frase guarda um fundo de verdade

num sistema político de mercado neoliberal, em que a reflexão ética é

desfavorecida. Torna-se, pois, um desafio a todos, indistintamente, e que deve

começar de dentro para fora na sociedade, nascer a preocupação em cada um e se

estender ao coletivo. A julgar pela opinião de que o estudante ingressa na Medicina

muito mais humano que no momento de deixar a faculdade, forçoso é reconhecer

que a reflexão ética deva perpassar os anos de graduação do estudante, bem como

o tempo de formação do residente de medicina.

A sociedade espera que o médico seja um profissional responsável,

competente, técnica e humanamente capacitado para lidar com as pessoas num

momento em que surgem inseguranças, medos e, em algumas vezes, o

enfrentamento da finitude da vida.

É evidente a responsabilidade da escola em proporcionar ao indivíduo

condições de desenvolver-se na totalidade, para além do conhecimento técnico.

Espera-se que o médico desenvolva a capacidade racional de decidir, de relacionar-

se com o outro, compreendendo-o e com ele interagindo da melhor maneira.

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CAPÍTULO 3

EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 85

3.1 A formação técnica-científica do enfermeiro

A formação do enfermeiro modificou-se ao longo da história, sem perder de

vista o seu objeto de trabalho, o cuidado de enfermagem. Espelhada no zelo

materno com aquele que, em certo momento, não podia cuidar de si, a gênese da

Enfermagem se deu no cuidado a outrem.

O cuidar deu-lhe sentido de totalidade, firme no propósito do cuidado integral

ao ser humano, na lógica do auxílio às necessidades de alimentação, higiene e de

cuidados próprios com a doença da pessoa, não apenas relacionados às suas

necessidades físicas, senão também as de natureza espiritual e psicológica.

Em busca da melhoria na qualidade de trabalho e valorização como profissão,

a Enfermagem desenvolveu-se cientificamente. Contudo, sofreu influencia de ordem

político-econômica, direcionando o modelo e a organização da assistência prestada.

Além disso, marca-se de uma luta constante de valorização da profissão, tanto

economicamente porque tenha salários mais competitivos, quanto socialmente, no

que diz respeito, sobretudo, à valoração de sua função pela equipe de saúde.

Historicamente, a profissão passou por vários modelos: vocacional, religioso e

o científico. Num certo momento foi exercida por pessoas inabilitadas, sem a devida

qualificação para o tipo de trabalho, mas não destituídas de boas intenção e

vontade. Justifica-se pelo fato de o trabalho ter sido associado a doenças que

mantinham os indivíduos isolados do convívio social. Inclusive, foi também exercida

por religiosas e leigas por caridade em busca de salvação.

Paixão (1979, p. 17), estudiosa do trabalho da enfermagem, pondera que o

trabalho do enfermeiro possui três elementos principais: espírito de serviço (ou

ideal), habilidade (arte), e ciência. Considera-se o espírito de serviço como sendo o

mais valoroso, desde o início de sua história, quando seu trabalho ainda não se

sustentava na ciência: “[...] o espírito de serviço que realizava [...] essa inclinação

natural do homem, ser social por excelência”.

No período pré-cristão, o tratamento a doentes era realizado pelos sacerdotes

e feiticeiros, porquanto se consideravam as doenças castigo de Deus. À medida que

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 86

se desenvolveu o conhecimento das plantas medicinais, outras pessoas também

foram ensinadas a cuidar dos doentes (COREN, 2012).

Consta que, o primeiro lugar a acolher os doentes foi denominado pelo povo

de diaconias, uma assistência prestada por diáconos e diaconisas em casas

particulares ou hospitais. Por volta do ano 300 d.C. após o Édito de Milão1, muitas

mulheres da nobreza, desejosas de realizar o Bem, dedicaram-se aos doentes e

puderam transformar seus palácios em casas de caridade. Entre elas constam:

Santa Paula, Fabíola e Marcela.

A fundação do primeiro hospital de Roma – pelos cristãos – se deu por meio

da doação de Fabíola de seu próprio palácio. Santa Paula levou sua iniciativa à

Palestina, fundando alguns hospitais. São Bento, que viveu no século VI foi o mais

conhecido desta época por organizar instituições de acolhimento aos doentes.

Depois disso, os mosteiros beneditinos se espalharam, principalmente na Itália,

França, Inglaterra e Alemanha. Associavam trabalho com a lavoura, formando

núcleos de populações, dando origem a cidades, assim como também copiavam

manuscritos e organizavam bibliotecas e escolas (PAIXÃO,1979).

Marcou-se o período cristão pela submissão à Igreja que, aliada à nobreza,

monopolizava o conhecimento e economia. Formaram-se congregações e ordens

seculares que, comandadas pela Igreja e movidas pelo fervor religioso na prática

caridosa, davam assistência à saúde. As ordens religiosas iniciaram a construção de

hospitais direcionados aos pobres, moribundos e a segregados em virtude de

epidemias. As condições higiênicas eram precárias numa época de declínio

econômico e assolada por frequentes epidemias e guerras. Somente no século XVIII

os hospitais se caracterizaram pela prática médico-hospitalar (PAIXÃO, 1979;

ALMEIDA; ROCHA, 1986; GEOVANINI et al. 1995).

Do século VII até o século XVII ainda se encontravam núcleos caridosos

dispensando cuidados aos loucos e leprosos, muito discriminados na época. Após

fundar a ordem dos Frades menores ou Franciscanos, criaram-se ordens seculares

destinadas a leigos que se dispunham a realizar caridades, sem que para isso

tivessem que deixar seus lares - denominadas ordens terceiras –, fundadas por São

Francisco de Assis.

1 O Édito de Milão aconteceu em 335 d.C. quando o Imperador Constantino (274-337), deu aos cristãos a

liberdade de culto, fechou os hospitais dedicados a Esculápio e estimulou a fundação de hospitais cristãos.

(Paixão, 1979).

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 87

No que respeita a historicidade da enfermagem, as ordens terceiras foram de

vital importância, uma vez que a partir de sua organização surgiram muitas pessoas

dedicadas aos enfermos:

O valor das ordens terceiras foi enorme para o progresso da enfermagem. Seus membros consideravam um dever tomar parte nessa obra de misericórdia, e grande era o número dos que tomavam a si o cuidado de uns tantos doentes, indo diariamente aos hospitais. Muitos desses terceiros eram nobres. (PAIXÃO, 1979, p. 43).

Clara Sciffi, distinta jovem de Assis, seguiu os passos de Francisco,

dedicando-se aos doentes. Dessa forma, originou-se a Ordem das Clarissas. Paixão

(1979, p. 14) declara que para os irmãos dedicados a este trabalho “[...] nenhuma

obra de caridade lhes era estranha [...]”. A exemplo desta dedicação Paixão relata

que, em 1372, Santa Catarina, durante uma epidemia, trabalhou dia e noite para

atender aos doentes no hospital. Procurava os doentes abandonados nas ruas e em

casebres. A lâmpada – que lhe servia para procurar os doentes – em seu humilde

quarto são conservados em sua memória.

O final do século XVII até a metade do século XIX foi denominado período

crítico da enfermagem: a prática se efetivava por mulheres sem qualificação, de

péssima conduta moral, analfabetas e bêbadas e as condições de trabalho nos

hospitais eram degradantes porque relacionadas ao trabalho manual. A elas

atribuía-se uma carga de trabalho exaustivo, com baixa remuneração e sujeição a

mecanismos disciplinadores.

Na Inglaterra, o movimento industrial urbano no século XVIII revelou a

necessidade de melhorar as condições de assistência hospitalar e de Enfermagem,

processo esse levado a cabo por Florence Nightingale (COREN, 2012).

Anteriormente relata-se que houve algumas iniciativas de preparo de pessoal para

qualificar o trabalho da Enfermagem, como o das Irmãs de Caridade, inspiradas em

São Vicente de Paula, no século XVII, na França; as escolas para parteiras em

várias cidades europeias; a criação de uma escola de Enfermagem em Heidelberg

(1781); a fundação de uma escola em La Source, na Suíça, em 1859 (SILVA 1989).

No entanto, a história da Enfermagem como profissão foi notadamente

marcada por Florence Nightingale. Nascida na Itália, filha de ingleses de classe alta,

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 88

era pessoa determinada e inclinada à atividade intelectual. O desejo de dedicar-se

ao cuidado dos enfermos moveu-a a buscar conhecimento dessa prática com

religiosas.

Em 1854, declarada a guerra da Criméia, Florence partiu para cuidar dos

feridos, ao lado de 38 voluntárias religiosas e leigas – vindas de vários hospitais.

Atendia os doentes com atenção e se preocupava principalmente com a organização

e limpeza do ambiente, o que considerava necessário para a restauração da vida.

Conseguiu, graças a seu desvelo, a redução da mortalidade de 40% para 2%. Após

contrair tifo, dedicou-se ao trabalho intelectual. Em 1859, fundou a Escola do

Hospital Saint Thomas na Inglaterra. Inicia-se, então, o ensino fundado em princípios

científicos, o que para ela significava a única maneira de mudar os destinos da

Enfermagem. Origina-se a Enfermagem como profissão, agora preocupada com o

reconhecimento e dedicação ao cuidado ao ser humano, cujo exercício se marca de

extrema exigência e disciplina (COREN, 2012).

O espírito de dedicação e compromisso com a pessoa do paciente a seu

cuidado encontra-se expresso no emblemático juramento de Florence, proclamado

pelos formandos de Enfermagem até à atualidade:

Juro, livre e solenemente, dedicar minha vida profissional a serviço da pessoa humana, exercendo a Enfermagem com consciência e dedicação: guardar sem desfalecimento os segredos que me forem confiados, respeitando a vida desde a concepção até a morte; não participar voluntariamente de atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano; manter e elevar os ideais de minha profissão, obedecendo aos preceitos da ética e da moral, preservando sua honra, seu prestígio e suas tradições. (COREN, 2012, p. 2).

As primeiras escolas de Enfermagem que se espalharam pelo mundo

seguiam o modelo da escola fundada por Florence. Mantinham em comum alguns

pontos fundamentais: ter uma enfermeira exercendo o cargo de direção; efetivar um

ensino metódico, cuja ocorrência se distanciasse do que fosse ocasional; alicerçar a

seleção de candidatas em critérios físicos, morais e intelectuais, além de se

considerar sua aptidão profissional. Essas escolas formavam duas categorias de

enfermeiras: as ladies e as nurses. As primeiras eram pessoas oriundas da classe

social mais elevada e executavam tarefas administrativas, supervisão, controle e

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 89

direção do trabalho, ao passo que as últimas se incumbiam dos trabalhos manuais

(GEOVANINI et al, 1995).

Iniciava-se a divisão do trabalho na equipe de Enfermagem: as mais

graduadas assumem o trabalho mais intelectual, e o trabalho manual, subordinado,

é executado pelos atendentes de Enfermagem (ALMEIDA; ROCHA, 1986).

No Brasil, conta-se a história da Enfermagem a partir da atuação de José de

Anchieta, que improvisou um núcleo hospitalar para atender a um grande número de

enfermos provenientes da esquadra de Diogo Valdez. Posteriormente, aquele núcleo

tornou-se a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, conforme a que foi

tratado, quando se abordou a assistência à saúde no País. Anchieta atuou como

médico, enfermeiro e professor, além de deixar registros dos costumes, das doenças

mais comuns, do clima e do uso de plantas medicinais. Na mesma época, descreve-

se também a participação de práticos – voluntários e escravos com experiência no

atendimento aos doentes. Em geral, eram pessoas analfabetas; apenas os mais

educados se orientavam por livros portugueses de medicina popular e de

enfermagem caseira (PAIXÃO, 1979).

Na história da Enfermagem brasileira, revela-se o trabalho voluntário de Anna

Nery no cuidado a feridos na Guerra do Paraguai (1864 – 1870), quando rompeu o

preconceito contra a mulher, cujo trabalho, na época, se restringia ao lar. Nascida

em Cachoeira, na Província da Bahia, tinha dois filhos que eram médicos militares, e

um outro, oficial do exército, além de outros parentes também vinculados ao

Exército, o que a motivou ao voluntariado para, durante a guerra, prestar serviços ao

País.

Em carta dirigida ao Presidente da Província, afirma: “[...] satisfarei ao mesmo

tempo aos impulsos de mãe e aos deveres de humanidade para com aqueles que

ora sacrificam suas vidas pela honra e brio nacionais e integridade do império.”

(PAIXÃO, 1979, p. 110). Por seu esforço e dedicação recebeu justas homenagens

do governo.

No século XIX, os cuidados aos doentes ficavam a cargo das famílias – mais

especificamente das mães –, ou ainda do trabalho caritativo de ordens religiosas,

que se engajaram na assistência a enfermos nas Santas Casas, seguindo o modelo

português (PAIXÃO, 1979).

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 90

A chegada ao Brasil de diferentes congregações para atuarem em hospitais,

asilos e Santas Casas representou grande avanço na organização, administração e

assistência de Enfermagem. Na virada do século, o afastamento das irmãs de

caridade motivou a contratação de enfermeiras francesas e, em 1890, a criação da

Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras no Hospício Nacional de

Alienados no Rio de Janeiro, mais tarde denominada Escola Alfredo Pinto (MOTT;

OGUISSO, 2003).

A Escola Alfredo Pinto foi a pioneira entre as escolas de Enfermagem –

Criada pelo decreto Lei n. 791, de 27 de setembro de 1890. A princípio, visava

atender à demanda de hospitais civis e militares, para, posteriormente, prestar

serviços pertinentes à Saúde Pública, numa época de epidemias. Consta que era

administrada por enfermeiras diplomadas (COREN, 2012).

Até a terceira década do século XX, o contexto era de epidemias, o que fez

indispensável a vigilância sanitária dos portos, uma vez que esse problema

dificultava a negociação dos produtos brasileiros. Na mesma época, o contexto da

assistência à saúde marcou-se pela grande crítica direcionada a pessoas não

qualificadas, leigos e religiosos, que se encarregavam do cuidado aos doentes

(MOTT; OGUISSO, 2003).

Modificava-se o conceito da Enfermagem: havia a preocupação de aumentar

o número de enfermeiras qualificadas, exigindo-se a participação em congressos e a

formação em alto grau de ensino e prática (SANTOS, 2008).

Na década de 1910, criaram-se o Curso de Enfermagem na cidade de São

Paulo e a Escola prática de enfermeiras da Cruz Vermelha, no Rio de Janeiro.

Posteriormente, fundaram-se várias escolas em outros Estados.

Documentos examinados por Mott e Oguisso (2003) atestam que seus

organizadores consideraram rigorosa a seleção para o primeiro curso do programa

da Escola de Botafogo (RJ). As candidatas deveriam demonstrar idoneidade moral,

instrução básica e sanidade, critérios que objetivavam formar enfermeiras para atuar

na guerra e para atuar na própria clínica. Após esse período – ao fim da I Guerra –,

o preparo das enfermeiras visava à formação geral para atender tanto hospitais

quanto a domicílios.

Pioneira da Enfermagem moderna no Brasil, a Escola Anna Nery foi fundada

em 1923. Dirigida por Raquel Haddock Lobo, que havia se incorporado à Cruz

Vermelha Francesa durante a Primeira Grande Guerra. Foi condecorada pelo

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 91

governo francês, tal foi seu destaque. Retornando ao Brasil, estudou administração

e especializou-se em doenças transmissíveis. Em 1930, iniciou a publicação da

revista “Anais de Enfermagem” (COREN, 2012).

O primeiro currículo da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

(EEUSP), seguia ao estabelecido na escola oficial padrão (Escola Anna Nery), por

meio do Decreto n. 20109 de 1931. A princípio ancorados no modelo americano, os

cursos foram paulatinamente tomando suas próprias características, adaptadas à

situação brasileira (OGUISSO; FREITAS, 2007).

O ensino da Enfermagem, reformulado pela lei 775 de 1949, estabelecia um

aumento no tempo de duração do curso: de 28 meses para 36 meses, ou quatro

anos acadêmicos. Não obstante, houve poucas alterações curriculares em relação

ao anterior: manteve conteúdos das Ciências Biológicas, Sociais e Humanas, de

diferentes ramos da Enfermagem, sem determinar carga horária específica, a não

ser para a o programa de Saúde Pública, que deveria ser de três meses (OGUISSO;

FREITAS, 2007).

No mesmo ano, o Brasil já possuía 18 escolas de Enfermagem, conforme os

moldes do Conselho Internacional de Enfermeiras, cuja principal preocupação era

aumentar o número de enfermeiros egressos e zelar pela excelência na formação,

além da constante luta para o reconhecimento da profissão.

Nesse momento também surgiu a preocupação em formar o pessoal de

menos qualificação – os Auxiliares de Enfermagem –, visto que faltavam enfermeiros

para a assistência, cujo preparo era dispendioso e demorado. Ainda com respeito à

divisão de trabalho, na década de 1960, o governo propôs o Técnico de

Enfermagem, com vistas a subsidiar meios para o desenvolvimento do nível técnico

(ALMEIDA; ROCHA, 1986).

Como o trabalho da Enfermagem se dividiu em funções graduadas conforme

sua qualificação, o trabalho direto ficou reservado aos atendentes e auxiliares, e à

enfermeira coube a função de efetivar o plano assistencial a ser executado,

acompanhar indiretamente a evolução dos pacientes e supervisionar o trabalho,

reiterando a fragmentação do trabalho (ALMEIDA; ROCHA, 1986).

Durante muito tempo, a formação do enfermeiro assentou-se em duas áreas:

básica e tronco profissional. Tratavam-se muitos conhecimentos em conformidade

com outras áreas – como médica, pedagógica – além de técnicas e habilidades

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 92

especializadas. Sob a denominação de Ética de Enfermagem, abordavam-se a

atitude social e o padrão profissional de conduta (ALMEIDA; ROCHA, 1986).

Criado em 1926, a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) foi o

primeiro órgão de classe da profissão. Por meio de discussões e reflexões em busca

de estratégias e propostas pedagógicas, desempenhou um papel reconhecidamente

importante no fortalecimento da educação e para as conquistas na história da

Enfermagem. Concernente a suas divisões e comissões de ensino, estudou e

propôs assuntos de interesse da classe. Ademais, contribuiu não apenas com

propostas de conteúdos para o currículo mínimo senão também porque fosse

reconhecida a profissão (COREN, 2012).

Impulsionada pela organização sócio econômica, a área de Enfermagem,

cedeu à crescente fragmentação das ações executadas pela equipe. Cada um de

seus elementos ficou responsável por uma parcela do cuidado. Desse modo, as

tarefas passaram a ser o centro do trabalho, em detrimento da individualidade do ser

humano.

A divisão de tarefas é característica da produção capitalista, onde se inserem

a divisão social do trabalho e manutenção de poder na produção, além da

interdependência das funções especializadas.

A divisão do trabalho aparece então como um processo social conflitivo, transformando a repartição social da inteligência requerida para uma produção dada, pela concentração em um número restrito de trabalhadores do encargo de conceber instrumentos, mecanismos, automatismos e modos operatórios, podendo substituir cada vez mais a atividade intelectual dos outros trabalhadores. (FREYSSENET, 1989).

Importa considerar que, na diversidade de qualificação dos trabalhadores,

discriminam-se igualmente as tarefas desempenhadas. Há, porém, algo em comum:

todas exigem reflexão. No entanto, na relação capital – trabalho instala-se um

movimento de polarização das qualificações como forma de poder.

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 93

A divisão capitalista do trabalho é a expressão e o instrumento de uma luta pelo poder concreto sobre a produção. Com efeito, a separação entre capital e trabalho não se dá cabalmente através de sua separação jurídica. Os produtores diretos permanecem sendo os únicos capazes de garantir a fabricação, os únicos defensores da inteligência do trabalho, e impõem, o mais das vezes, suas condições, contrariamente a uma visão miserabilista da história operária. O tipo de divisão do trabalho por desqualificação — superqualificação é então o meio para tentar obter o domínio concreto do que se passa na produção. (HIRATA, 1989, p. 2).

A partir da década de 1950, com o advento das teorias de Enfermagem, a

profissão apresentou um avanço considerável. Procurou-se de tal modo estabelecer

as bases para uma ciência de Enfermagem, em que se organizou um conjunto de

conhecimentos, acompanhados de explicações e novos direcionamentos à pratica

profissional (CAMPEDELLI,1989).

No Brasil, destacou-se Wanda de Aguiar Horta que, fundamentada na Teoria

da Motivação Humana de Maslow, criou uma Teoria de Enfermagem, na qual

enfatizava aspectos humanos do paciente, sua progressiva autonomia e o

planejamento da assistência. Impulsionou a independência do profissional com a

aplicação do processo de enfermagem na prática.

Em 1962, por meio de parecer do Conselho Federal de Educação, manteve-

se o Curso de Enfermagem com duração de três anos. Na formação básica

atentava-se mais à visão biológica do homem: naquele momento, enfatizou-se a

assistência ao indivíduo hospitalizado. Por conseguinte, no tronco profissional,

houve a exclusão das disciplinas Enfermagem de Saúde Pública e Ciências Sociais.

Em 1968, dada à Reforma Universitária, reformulou-se o currículo mínimo,

formalizado em 1972. O novo currículo abrangia as ciências básicas e as disciplinas

profissionais. Incluía Saúde Pública, Enfermagem Obstétrica, Enfermagem médico-

cirúrgica e licenciatura em Enfermagem como habilidades específicas (VALE;

FERNANDES, 2006).

Corbellini (2007), analisando a situação da Enfermagem nas décadas de 1950

a 1980, relata que a profissão seguiu o modelo clínico na prática de uma assistência

eminentemente curativa, enquanto o ensino na área se prestava a preparar

profissionais para esse contexto. Os estudantes obedeciam rigorosamente aos

manuais de técnicas, valorizando sobremaneira a postura durante sua efetivação, a

habilidade manual e capacidade de memorização, além de se valorizarem o

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 94

capricho, organização, o esmero.

Ante a prevalência das técnicas sobre a não efetivação do saber científico,

caracteriza-se o trabalho em Enfermagem como uma modalidade funcional, dividido

em tarefas e procedimentos. O vazio teórico perpetua a crise de legitimidade da

profissão, próprios da relação de produção. “Apesar de as teorias de enfermagem

preconizarem pressupostos teóricos para uma orientação da prática, viu-se que elas

seriam dirigidas somente para estratos populacionais que pudessem consumir esses

serviços” (ALMEIDA; ROCHA, 1986, p. 120).

Como ocorreu na medicina, houve influência político-econômica e ideológica

em sua prática. O paciente e o cuidado deixaram de ser o centro da atenção e de

seu trabalho, para ocuparem a função de meio com que se atingisse única finalidade

– a produção. O cientificismo e o capitalismo marcaram tanto o desenvolvimento

quanto a prática da profissão.

A partir da década de 80, o discurso dos sanitaristas enfatizava a importância

de o hospital trabalhar a prevenção, contudo por muito tempo prevaleceu a

dicotomia de que assistia ao hospital a função de tratar a doença. A partir do

movimento da Reforma Sanitária e da instituição das Diretrizes do SUS, fortaleceu-

se a atenção primária à saúde.

Em parceria com a Comissão de Especialistas de Enfermagem, a ABEn

promoveu vários eventos na década de 1980. Propuseram discussões acerca do

perfil e da competência de enfermeiros, o que concorreu para avanços no sentido de

organização de uma proposta de currículo mínimo de Enfermagem.

Almeida e Rocha (1986), refletindo sobre o trabalho em enfermagem e de

suas relações com a estrutura social, com o conjunto das políticas de saúde, mais

especificamente com as exigências de competividade e produção que caracterizam

as sociedades capitalistas, consta-se que o cuidado de Enfermagem se sustenta no

conhecimento efetivado num nível técnico e organizacional, de forma a atender

quaisquer ordens de necessidade humana – biológica, psicológica e social.

À luz desses pressupostos, argumentam favoravelmente ao papel

fundamental da educação em Enfermagem, porquanto prepara e legitima sujeitos

para o exercício desse trabalho, por meio do saber intrínseco à Enfermagem aliado

a elementos ético-filosóficos. Nesse sentido, atribuem-se ao ensino formal tanto a

legitimação quanto a reprodução daquele saber tão somente.

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 95

Não obstante, se não há mudanças curriculares que repensem o trabalho do

enfermeiro com vistas à dinâmica de integração de fatores de natureza ideológica,

econômica e política, está-se favorecendo a cristalização da divisão social do

trabalho e perpetuando a crise de identidade dos vários agentes da equipe que a

constitui. Almeida e Rocha insistem que, as mudanças devam incidir sobre os

currículos e na prática do trabalho desses profissionais.

Aprovou-se um novo currículo em 1994 e, dois anos mais tarde, foi

sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Estabeleceu-se

proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais, período em que a ABEn buscava

apoio para redefinir o processo de formação do enfermeiro. A atuação ampliou-se

em diversas áreas, imprimindo especial relevo à promoção à saúde e a demandas

sociais (VALE; FERNANDES, 2006).

Muitas discussões se seguiram nos anos de 2000 e 2001, promovidas pela

ABEn. O Sistema Único de Saúde era tomado como referência básica às diretrizes

curriculares e, consequentemente na formulação de propostas para a graduação em

Enfermagem, considerando os determinantes históricos sócio-econômicos e

políticos no processo saúde-doença. Segundo Xavier (2001), essas propostas

adotaram por paradigma as relações entre cultura, sociedade e saúde, levando em

consideração as transformações sociais e do mundo do trabalho.

Ito, Takahashi e Leite (2006) afirmam as transformações como necessárias

ao exercício da cidadania numa época em que a educação se dirigia para além da

educação formal. Reafirmam a consideração que se dava ter com os propósitos

contidos na Reforma Sanitária na formação dos profissionais de saúde: atenção ao

contexto de vida do indivíduo – paciente e profissional – de modo a projetá-lo numa

perspectiva de sujeito agente de transformação social.

Essas discussões culminaram nas Diretrizes Curriculares Nacionais,

aprovada em 2001 e ainda vigentes, apresentam as discussões que as antecederam

e enfatizam um conceito ampliado de saúde. Os princípios e diretrizes do SUS

incluem a saúde como um direito de todos e dever do Estado, conforme os preceitos

anunciados para a saúde na Constituição Federal de 1988. As diretrizes curriculares

vigentes propõem a formação de um enfermeiro generalista, humanista, crítico e

reflexivo, capaz do exercício profissional assentado no rigor científico – intelectual e

pautado em princípios éticos.

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 96

As propostas destinavam-se ao preparo de pessoal, de modo que atendesse

às demandas premente da região ou contexto em que se insere, capacitando-o a

identificar as dimensões biopsicossociais norteadoras de sua ação, e a atuar com

senso de responsabilidade social e de compromisso com a cidadania, e, por fim, a

promover a saúde integral do indivíduo a seus cuidados.

O atual documento tem por princípio incentivar uma sólida formação geral do

enfermeiro, para que possa superar os desafios no exercício profissional e na

produção de conhecimento. Para isso, sugere que, durante sua formação, o

estudante de Enfermagem adquira habilidades diferenciadas, uma formação geral

sólida, mas incorporando diversificadas experiências, inclusive fora do ambiente

escolar. Valoriza-se, ademais, a progressiva autonomia intelectual.

Corbellini (2007) atenta para o fato de que mesmo frente à legalização de

nova proposta para formação do enfermeiro, o ensino ainda se via imerso no mesmo

modelo biologicista, curativo e hospitalocêntrico. Por outro lado, visibiliza-se

iniciativas no sentido de incorporar as orientações educativas e políticas, para que

possam resultar em mudanças futuras que incidam sobre modo por que os

enfermeiros se comportem, considerando a real necessidade social da população.

No entanto, para Kletemberg e Siqueira (2003) a Enfermagem evoluiu,

tornando-se científica e cada vez mais especializada, sem que, em momento

histórico algum, haja se omitido ou negligenciado o aspecto humanitário.

De sua parte, Waldow (2009, p.184) defende a retomada do cuidado na

formação do profissional enfermeiro, dado que toda reflexão atual nesse sentido

parece impor ao professor a ânsia de mudar e de inovar o ensino. Para o bom êxito

desses esforços, exigem-se atitudes de “respeito, consideração, generosidade,

solidariedade, compaixão, sensibilidade e responsabilidade.” Sob a óptica da autora,

o cuidado, deve, de fato, ser incluído no currículo, contudo não apoiado no modelo

biomédico. Ao contrário, o cuidado deve ser sentido. Nos currículos, o que muda são

as formas de sua abordagem, a postura docente, a interação entre os sujeitos, as

estratégias e ações pedagógicas.

Há ainda que se considerar que o mundo moderno marcado por ideologia

capitalista não deixou de influenciar as relações do enfermeiro com o paciente.

Como resultado, vê-se a divisão do trabalho na equipe de Enfermagem, associada

ao desejo de poder e reconhecimento pessoal – concordante com valores sociais

atuais. O profissional da Enfermagem passa a galgar novos postos de trabalho,

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 97

melhor remunerados, dedicando-se a atividades administrativas, afastando-se,

desse modo, do cuidado direto ao paciente.

Na Medicina, a complexidade do conhecimento e a mercantilização do serviço

conduziram às especializações, ao passo que, na Enfermagem, à divisão do

trabalho intelectual e manual, prosseguiu existindo, em grande parte dado ao custo

de salários, posto que o Auxiliar de Enfermagem receba por seu trabalho menos que

o Enfermeiro. Em geral, observa-se que apenas nos hospitais renomados, de grande

porte, a contratação de enfermeiros se dá em grande número. No entanto, a eles

são designadas diferentes funções, alguns se dedicam ao trabalho administrativo e

outros sob a denominação – enfermeiro de cabeceira –, dão assistência direta ao

paciente, discriminando ainda mais as categorias de trabalho.

Na década de 80, houve grande empenho em melhorar a qualificação dos

profissionais em Enfermagem. Isso se traduz em melhor remuneração e são formas

de organização econômica do trabalho. Desse modo, percebe-se ainda que a força

de trabalho na Enfermagem se concentrou no predomínio de Auxiliares de

Enfermagem até a atualidade. Verificou-se um aumento no número de Técnicos de

Enfermagem e a possibilidade de extinção da categoria de Auxiliar de Enfermagem,

o que denota um esforço da categoria de promover a qualificação da equipe de

enfermagem responsável pelos cuidados de Enfermagem. Essa luta é empreendida

pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e os Conselhos Regionais, que

representam a classe de profissionais.

O discurso tem-se modificado no propósito de inverter a relação profissional-

paciente estabelecida no século XX, que resultou não apenas na qualificação

técnica da equipe senão também na objetificação do paciente e na fragmentação do

trabalho. Vê-se um esforço para recuperar o cuidar no ensino e na prática de

Enfermagem, sem, contudo, obter resultados efetivos. Isso pode se prolongar até

que, ao longo do tempo, esse discurso e diretrizes façam sentido e possam ser

percebidos nas relações interpessoais.

Page 100: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 3. Educação em Enfermagem 98

3.2 A formação ética dos enfermeiros

Acompanhando os movimentos sociais em momentos diversos, sempre

esteve presente a Ética perpassando as várias concepções educativas. Mais

particularmente no campo pedagógico da Enfermagem, a Ética manifesta-se na

preocupação dos docentes da disciplina com transmitir aos futuros profissionais o

compromisso com o paciente, o que vem refletido na qualidade de seu trabalho de

cuidar. No entanto, até há pouco tempo o ensino da Ética esteve subordinado ao

ideário legalista e normativo. Com o advento da Bioética, introduziu-se a discussão a

respeito de uma perspectiva mais abrangente de a Ética participar nos cursos de

formação para os futuros profissionais de Enfermagem.

Em geral, o interesse das escolas no ensino da Ética ainda parece se

associar aos grandes temas, ao confronto de experiências, sem que, entretanto, se

valorize adequadamente a elaboração do raciocínio destinado a articular a

diversidade de informações e conhecimentos, proporcionando condições para o

desenvolvimento de pensamento e atitudes justificadas na tomada de decisões.

Conforme relatam Oguisso e Freitas (2007), no início dos cursos, a Ética

esteve associada ao conteúdo: História da Enfermagem. Em 1923, a disciplina

denominou-se Bases históricas, éticas e sociais da enfermeira, para, em 1931, ser

nomeada Ética e História da Enfermagem. Em 1960, a Reforma Universitária,

propôs a matéria: Exercício de Enfermagem, com a inclusão da Deontologia e

Legislação Profissional.

Segundo Germano (1996), o ensino da Ética evoluiu e configurou-se por

valores consonantes às lutas ideológicas, sob a óptica das diversas concepções de

mundo presentes em sociedades em cada época, as quais, por sua vez, estenderam

sua influencia à prática do enfermeiro.

No início de sua instituição, o ensino da Ética fundou suas bases na

religiosidade e na caridade, caracterizadas pelo respeito à hierarquia e humildade.

Em seguida, houve intensa preocupação com a moralidade e com grande esforço

empreendido para o reconhecimento de um corpo de saberes necessários à sua

Page 101: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 3. Educação em Enfermagem 99

prática. Com a profissionalização da atividade, temeu-se pela hipertrofia do aspecto

técnico – científico da profissão.

Na década de 1980, publicaram-se muitos artigos em que se veiculava o

combate a essa perspectiva pedagógica, carregada de religiosidade e

conservadorismo (GERMANO, 1996).

O ensino da Ética na Enfermagem constituía-se de um conjunto de valores

formando um corpo teórico que dava subsídios para a prática profissional. Procurava

dar direcionamento ético aos profissionais no tocante a assuntos de relevância,

como o aborto, eutanásia, transplantes, dentre outros. Na década de 1980, os

encontros de classe apontavam para um campo de discussão diferente: o da visão

social da Ética. Denotava uma preocupação com a responsabilidade social do ser

humano (GELAIN, 1994; ALMEIDA; ROCHA, 1986).

Gelain (1995), estudioso da Ética na Enfermagem, declara que, na história da

profissão, a Ética passou por três modelos : primeiramente, o modelo tradicional,

representado por normas a serem seguidas, caracterizadas por uma significação

religiosa, em que o conceito de certo e do errado estariam em conformidade com a

lei ou com a divindade. Esse paradigma foi paulatinamente substituído pelo modelo

Renovado-Personalista-Existencial, numa tentativa de deslocar o eixo das atenções

ao ensino da Ética e ressignificá-lo coerente com a concepção de mundo cujo centro

fosse o homem, transformando radicalmente o horizonte da formação humana. A

partir de então, designava-se ético tudo quanto pudesse promover a pessoa;

denominava-se antiético aquilo que contrariasse essa assertiva. O autor crítica esse

modelo, recomendando cuidado ao tomá-lo por projeto de formação humana,

porquanto apenas reafirma o discurso da modernidade; mantém, entretanto, como

interlocutor a dominância do pensamento burguês, elitista, perpetuador do status

quo, não se abrindo à coletividade. Por não se efetivar como diretriz educacional –

conforme era suposto –, e por inclusive, prejudicar as potencialidades da pessoa.

O terceiro modelo abordado por Gelain é o modelo social-problematizador,

que tende a considerar o homem um ser social, direcionando a postura ética

consciente – condição imprescindível ao exercício da cidadania. O foco do debate

assenta-se em reaver valores humanos do cotidiano – a sensibilidade, a emoção e a

estética –, perdidos por quem privilegia, segundo Gelain, a Razão, o econômico, o

ter, a técnica e a robotização. Na década de 1990, a Enfermagem se voltou às

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 100

questões sociais, culminando as discussões para a reformulação do Código de

Deontologia, que orientava as ações dos profissionais. Em 1993, essa mudança

resultou na elaboração do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem.

Fernandes et al. (2008) declaram que as Diretrizes Curriculares de 2001

apontam para uma formação que não pode ser concebida sem que se considere a

perspectiva ética. É percebido seu valor em tal medida que se declara: a Ética é

base do desenvolvimento educacional. Acrescentam ainda que a aprendizagem

deva ser decorrente da prática, para a qual se exigem cuidado e atenção ao

embasamento teórico destinado à formação de atitudes.

As diretrizes educacionais visam orientar a formação do enfermeiro inserida

numa perspectiva coletiva, cidadã e ética. Propõem uma educação mais flexível, ao

alcance de respostas aos desafios da atenção à saúde da população,

desenvolvendo as capacidades múltiplas para o exercício profissional em

consonância com os princípios da Reforma Sanitária e das Diretrizes do SUS:

equidade, solidariedade, acessibilidade, resolubilidade dos problemas relativos à

saúde das pessoas. Inclui-se aí a compreensão das condições de vida da

população: socioeconômicas, políticas, religiosas, culturais.

Nesta perspectiva de formação, a Ética adquire um caráter transdisciplinar e

um lugar de destaque na Educação, de cuja essência participa. Não visa, de modo

algum, ao exclusivo alcance teórico, senão à ação concreta.

Pensemos, pois, num processo de formação ética, entendendo-o como um agir educacional pautado na concretude dos sujeitos desse processo, centrado na realidade concreta onde eles se inserem. Um processo onde não se impõem comportamentos, mas potencializa o diálogo, a compreensão, o respeito, a liberdade e a solidariedade. Um agir pautado numa relação entre as noções éticas e as situações vividas pelos sujeitos. Caso contrário, estaremos, apenas, repassando noções abstratas e insuficientes para o pleno exercício dos valores éticos da implementação das mudanças sugeridas nas DCENF. (FERNANDES et al., 2008, p. 403 ).

Assim como ocorreu na área de Medicina, a Bioética na Enfermagem

promoveu amplitude e prospectiva na relação entre o profissional e o paciente.

Incorporada ao ensino da Ética a partir da década de 1990, essa nova abordagem

deveu-se sobretudo à fundamentação filosófica, que traz à tona temas e discussões,

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Capítulo 3. Educação em Enfermagem 101

viabilizando reflexões e melhor ajuizamento no uso das novas tecnologias e dos

avanços científicos, da pesquisa científica, da justiça e responsabilidade social.

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CAPÍTULO 4

A BIOÉTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 103

4.1 O surgimento da Bioética

Se pensarmos nos avanços científico-tecnológicos que marcaram

sobremaneira os campos da Biologia e da Medicina a partir dos anos 60,

compreenderemos um dos fatores que motivou o despertar da Bioética, organizada

como disciplina na década de 1970. Esse advento imprimiu novo vigor à Ética – até

aquela época tratada como mera etiqueta – que, então, ressurgiu com novo enfoque

e direcionamento na área da saúde.

Pretende-se, agora, traçar um esboço histórico a respeito do propósito e dos

rumos dos estudos no âmbito da Bioética desde seu surgimento aos dias

contemporâneos, bem como de seu valor e contribuições para a prática científica.

Tal como a propôs Potter (1998), o criador desse neologismo, a Bioética

intentava a religação das ciências empíricas com as ciências humanas, retomando

aspectos humanísticos na formação e ação da prática médica, ao mesmo tempo

ampliando a discussão para além dos temas cotidianos. Introduziu temas

emergenciais como a sustentabilidade do Planeta, as possibilidades científicas e

tecnológicas que deveriam ser melhor avaliadas quanto a seu uso e as

consequências daí advindas. De modo geral, a preocupação última manifestada por

Potter era de preservação da vida no Planeta.

A Bioética visou ao resgate dos fundamentos para o agir, conferindo novo

paradigma ao ensino da Ética nas áreas biológicas. Tratava-se de estudar os

problemas e implicações morais despertados por pesquisas científicas

empreendidas especialmente pela Biologia e Medicina.

O termo Bioética ficou conhecido inicialmente na obra de Potter, Bioethics:

Bridge to the future, publicada em janeiro de 1971, denotando a Ética da vida na

biosfera. Em julho de 1971, Andre Hellegers funda o Joseph and Rose Kennedy

Institute for the study of Human Reproduction and Bioethics, aplicando o termo à

Ética da Medicina e das Ciências Biológicas. Hellegers divulgou a palavra Bioética e

direcionou os estudos do Instituto Kennedy. Anteriormente, em 1962, Dr. Belding

Seuber fundou o Comite de Seattle, denominado pela imprensa americana de “God's

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 104

Comitee”. Foi impelido pela preocupação com o que se deveria fazer face às

implicações dos avanços biotecnológicos e aos avassaladores progressos da

revolução biológica da década de 50 que, por sua vez, deram origem à Bioética.

Seus estudos passam a tomar como objeto específico as questões humanas na sua

dimensão ética (NEVES, 1996; REICH, 1993).

Goldim (2006) propõe outra versão para a inauguração da Bioética: afirma

que a palavra foi utilizada primeiramente por Fritz Jahr, em 1927, em um artigo

publicado na revista alemã Kosmos, onde caracterizou bio + ethik ao

reconhecimento de obrigações éticas com todos os seres vivos. Acrescenta o

mesmo autor que Potter foi influenciado por Aldo Leopold, que, na década de 1930,

criou a Ética da terra, na qual abordava os recursos naturais como objeto de reflexão

ética.

Potter (1998) utiliza a palavra bioética-ponte com o propósito de promover a

sobrevivência humana, ao se referir a problemas que um vultoso desenvolvimento

da tecnologia geraria, se não houvesse uma reorientação desse novo poder em

benefício próprio do ser humano. Preocupava-o o conhecimento científico como fim

em si mesmo, negligenciando os efeitos que poderiam causar aos seres humanos. A

preponderância da ciência e de suas possibilidades sobre o ser humano levaria a

um temor ante a sobrevivência da espécie, pondo em risco a qualidade de vida no

futuro. Potter tinha a intenção de unir Ciência e Filosofia, ou ainda melhor, unir as

ciências biológicas e a Ética numa nova disciplina.

Berlinguer (1993) retoma uma mensagem enviada ao Congresso dos

Intelectuais para a Paz (1948), em que de Einstein já manifestava a preocupação

com a ausência de racionalidade para equilibrar os avanços tecnológicos aos

humanos, pondo em xeque se as possibilidades científicas lhes resultassem em

benefícios, ou fossem utilizados sem que trouxessem danos ao homem:

Através de uma penosa experiência, aprendemos que o pensamento racional não é suficiente para resolver os problemas de nossa vida social. A pesquisa perspicaz e o acurado trabalho científico tiveram, com frequência, consequências trágicas para o gênero humano, trazendo por um lado invenções que livram o homem das mais extenuantes fadigas físicas, tornando sua vida mais fácil e rica. Por outro lado, causa nele uma inquietação grave por torná-lo escravo de seu mundo técnico e, o mais catastrófico, cria os meios para a sua destruição em massa. Uma tragédia realmente assustadora. (BERLINGUER, 1993, p.9).

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 105

Potter propôs ainda a Bioética-profunda: uma reflexão necessária para as

questões da sobrevivência, inclusive declarando que a genética é um assunto

demasiadamente importante para ser relegada ao árbitro único dos cientistas.

Segundo a opinião de Goldim, Potter propunha, com a Bioética profunda, uma nova

ciência ética, cuja competência era intercultural e interdisciplinar, que resultaria em

equilíbrio bem dosado e potencializasse o senso de humildade necessária.

Com efeito, a ideia central de Potter era a Bioética-ponte, cujo propósito

original era o questionamento a respeito dos limites a se estabelecer aos avanços

materialistas próprios da Ciência e Tecnologia. Como sua extensão e segunda

etapa, propunha ele a Bioética-global, insistindo em que os bioeticistas médicos

considerassem o significado original da Bioética nas questões de saúde pública em

âmbito mundial. Enfatizava o conhecimento biológico, que, em sua função de

Bioética-ponte, haveria de possibilitar a fusão entre a Ética médica e a Ética do meio

ambiente numa escala mundial, porque se preservasse a sobrevivência humana. Os

médicos deveriam pensar não somente em suas decisões clínicas senão também

nas consequências de suas ações a longo prazo (POTTER, 1998).

Potter deu cunho de responsabilidade planetária à Bioética: uma ciência da

sobrevivência, enquanto Hellegers a restringiu às ciências da vida, voltadas

particularmente ao nível do humano. Tratava-se, pois, de uma ética biomédica

(NEVES, 1996).

Pessini e Barchifontaine (2000) referem-se a alguns acontecimentos que

favoreceram as discussões e se tornaram foco de preocupação da Bioética. Alguns

fatos pioneiros marcaram tão profundamente sua trajetória, que se prestam como

datas a se lembrarem e comemorarem como início da Bioética:

9 de novembro de 1962, data do artigo publicado na revista Life –

intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre” –, a respeito da

organização do Comitê de Seattle, que deliberava sobre quem se

submeteria ou não à hemodiálise, tipo de tratamento descoberto no

ano anterior. Dado que o número de pacientes em muito excedia o de

máquinas disponíveis para o tratamento, criou-se um comitê de leigos

para selecioná-los. Mas surgiu o impasse que iniciava uma discussão:

quais seriam os critérios?

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 106

16 de junho de 1966 – O [New England Journal of Medicine] publicou

artigo – “Ética e pesquisa clínica” – denunciando procedimentos

antiéticos em pesquisas de cunho científico-experimental. Seu autor,

professor Henry Beecher da Universidade de Harvard dirigiu cerca de

20 pesquisas biomédicas, publicadas em revistas de renome. Vale

lembrar que acontecimentos anteriores tiveram influencia neste

episódio como os abusos ocorridos nos campos de concentração,

revelados pelo julgamento de Nuremberg, em 1945.

31 de março de 1976 – Marca a decisão emanada da Suprema Corte

de New Jersey (EUA) sobre o caso Karen Ann Quinlan, que alcançou

repercussão expressiva, sendo acompanhado de perto pelo público em

geral. Os pais de Karen solicitavam que desligassem os aparelhos que

lhe davam suporte vital. Ante a recusa do hospital e de médicos para o

procedimento de abreviar-lhe sofrimentos e vida, aquela Suprema

Corte “reconheceu o problema levantado pelas novas tecnologias

sustentadoras da vida que haviam evoluído nos últimos 20 anos: a vida

orgânica pode continuar, mas viver humanamente ‘de uma forma

cônscia e sapiente’, isso pode estar comprometido para sempre” (p.

24). O caso Karen deu origem a uma série de debates, para os quais

contribuíram filósofos e teólogos, e de onde decorreram as diretrizes

para instruir procedimentos com pacientes terminais.

4.2 Os referencias e modelos utilizados

O principialismo – primeiro modelo teórico de análise na Bioética –

transformou-se em seu paradigma nos Estados Unidos e no mais conhecido dos

modelos explicativos. Resultou do Relatório Belmont (1974-1978), do qual participou

Beauchamp e em estudos empreendidos juntamente com J. P. Childress publicou

em 1979 a Obra Clássica Principles of Biomedical Ethics. Não obstante, utilizou-se

erroneamente esse modelo como uma representação da Bioética.

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 107

O Relatório Belmont materializou a preocupação do Congresso Americano

com salvaguardar seres humanos, prevenindo-lhes a segurança contra eventuais

abusos da pesquisa biomédica e experimental. Para tanto, em 1974, organizou uma

Comissão e a encarregou de identificar princípios éticos básicos que norteassem as

pesquisas envolvendo experimentação com seres humanos. A esse respeito,

Pessini e Barchifontaine (2000) chamam a atenção para três situações que

mobilizaram a opinião pública, uma vez que constituem abusos ocorridos em

pesquisas, como se pode constatar a seguir.

Em 1963, no Hospital Israelita de Nova York, destinado ao tratamento de

doenças crônicas, injetaram-se células cancerosas em idosos doentes. Entre 1951 e

1970, no Hospital Estatal de Willowbrook, também em Nova York, inoculou-se

hepatite viral em crianças portadoras de retardo mental. Descoberta apenas em

1972, uma pesquisa iniciada em 1932 em Tuskegee, no Estado do Alabama (EUA),

envolveu quatrocentos negros desassistidos de tratamento, para cumprir a finalidade

experimental de conhecer a evolução da sífilis. Dado que a descoberta da penicilina

se deu em 1932 e foi comercializada em 1942, o não uso da droga resultou em

grave problema de cunho ético. Esse último caso tornou-se objeto de discussão a

respeito da Ética em pesquisas biomédicas e restou como exemplo marcante de

eventuais abusos em pesquisas experimentais envolvendo seres humanos.

Posto isso, doze membros da referida Comissão de 1974, entre os quais

participaram filósofos e teólogos, examinando alguns documentos que informavam

das atrocidades cometidas contra seres humanos durante a II Guerra Mundial,

tentavam deles extrair princípios que foram lá violados e neles se basearem com o

intuito de nortear suas considerações a respeito da adequação das pesquisas

efetivadas em humanos. Embora desacreditando de sua eficácia para atingir o

objetivo esperado, dada a dificuldade de utilização, conseguiram identificar três

princípios norteadores básicos, que constam como referencial do Relatório Belmont,

publicado em 1978: a autonomia, a beneficência e a justiça. Tais princípios

constituíram o alicerce onde se fundou a reflexão direcionada a interpretar, criticar e

formular normas de procedimento em se tratando de pesquisas experimentais.

Posteriormente, aqueles princípios ampliaram seus limites para além da Ética

aplicada a pesquisas, para se prestarem também à reflexão de natureza bioética.

Simultaneamente à publicação do Relatório Belmont – uma espécie de guia

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 108

ético em que se pautar com o intuito de proteger seres humanos sujeitos à

experimentação –, Beauchamp e Childress lançaram Principles of Biomedical Ethics,

obra que inaugurou a utilização de princípios toda a vez em que se faz

imprescindível abordar impasses e problemas de natureza bioética. De fato, pode-se

afirmar que esses dois estudiosos lançaram os fundamentos do que viria a se

denominar Principialismo.

Beauchamp e Childress se beneficiaram da proposta de reflexão de Sir

Willian David Ross, filósofo escocês de nascimento (mas ganhou notoriedade como

o inglês que mais tratou a ética), cuja obra mais famosa é The right and the good, de

1930. Sua maior inovação foi considerar que aqueles princípios ratificam, na

verdade, deveres prima facie, mais do que expressam obrigações absolutas. Com

efeito, os princípios bioéticos manifestam fatos palpáveis e são fruto de reflexão

mais profunda.

Conforme se afirmou, Beauchamp e Childress, propuseram quatro princípios

éticos gerais, amplamente aceitos e utilizados, que deveriam ser aplicados aos

problemas da prática médico-assistencial. São eles: Autonomia, Justiça,

Beneficência, que foi desmembrada em Não maleficência.

Beauchamp e Childress tinham convicções filosóficas distintas: um utilitarista

e outro deontologista – o que não deveria ser, de fato, empecilho para que se

resolvessem de comum acordo as normas, princípios e procedimentos entre eles.

Defendiam que: “[...] os princípios e as normas são considerados obrigatórios, prima

facie e estão no mesmo nível [...] somente as circunstâncias e consequências

podem ordená-los em caso de conflito” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000, p. 47).

Costa, Garrafa e Oselka (1998) chamam ainda a atenção para um aspecto

muito frequente : costuma haver certa confusão entre a ética principialista e a

Bioética propriamente dita, o que, evidentemente, não corresponde à verdade.

Como se pode constatar em suas convicções, a ética principialista constitui apenas

um dialeto inserto no âmbito da linguagem bioética.

Após se informar do berço da Bioética nos Estados Unidos, reconhecendo

que aí se originou para, depois, desenvolver-se pelo mundo, Neves (1996, p. 7),

questiona o fato de a fundamentação filosófica da Bioética vir sintetizada em

princípios, o que, para a autora, constitui um problema – não seria o caso de uma

perspectiva tomada como regras a serem seguidas. De certa forma, questiona-se

aqui o próprio Principialismo. Sugere, argumentando, que se deveria partir de uma

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 109

fundamentação na antropologia filosófica1 que, “[...] se empenha na compreensão do

homem na totalidade das suas expressões e na infinitude da sua realização como

pessoa, que toma o homem na singularidade de sua individualidade e na

universalidade de sua humanidade.” Trata-se da ética antropológica, cuja missão é

acompanhar o processo de personificação do sujeito – o homem.

As diferenças entre as convicções e sensibilidades anglo-norte-americana e

europeia, com efeito, fazem-se aqui presentes. Não obstante, por sua vez, Neves

defende a exigência de fundamentação bioética, seja na preocupação com

microproblemas, seja com macroproblemas de dimensão social. A Bioética, na

perspectiva americana, tende a se constituir uma área de conhecimento distinto,

enquanto na visão europeia se apresenta um objeto de estudo transdisciplinar, e se

expressa numa nova sabedoria entre as demais. A autora aponta a tendência

tecnicista americana em torno da figura de um bioeticista presente nas instituições,

enquanto, na Europa, há a tendência de se formarem comissões e consultorias para

análise de problemas determinados.

Desde a sua origem, a perspectiva da Bioética é fundamentalmente

humanista: toma as questões humanas por seu objeto específico, insertas e

consideradas em sua dimensão ética. As relações com o meio ambiente, as

intervenções e descobertas científicas, conscientes das consequências daí

advindas, tanto no âmbito individual quanto no coletivo. No entanto, a Bioética

alcançou diferentes perspectivas na Europa e na América.

Neves (1996, p.7) defende que “a tradição personalista e humanista europeia

conduz à afirmação da Antropologia como fundamento da Bioética”, e assevera que,

“[...] para além da História e da cultura, da religião e dos valores, é ainda a tradição

filosófica que marca a diferença.”

Numa análise das diferentes abordagens, a referida autora constata que, nas

sociedades anglo-norte-americanas, a principal preocupação encontra-se

relacionada à autonomia, à preservação da identidade (privacidade), ao

consentimento informado, aos direitos do paciente, ao passo que, nas comunidades

da Europa Ocidental, a preocupação pauta-se no direito dos não nascidos, no

princípio da solidariedade, na possibilidade de acesso a recursos.

1 A antropologia filosófica não se confunde com qualquer outra expressão do estudo do homem, sendo a única que aborda o

homem na totalidade concreta do seu ser e, por isso, a única a aspirar a um plano universal (NEVES,1996).

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 110

[...] a perspectiva anglo-americana é mais individualista do que a europeia, em vista do fato de privilegiar a autonomia da pessoa singular. Daí também que aquela permaneça profundamente empenhada no que podemos designar por microproblemas, questões cuja resolução importa de forma imediata e decisiva para um indivíduo, por oposição aos macroproblemas, em que os interesses morais de todo um grupo se encontram envolvidos e em que a perspectiva europeia concentra mais fortemente a sua atenção. Esta manifesta uma acentuada preocupação pela dimensão social do homem e as questões que lhe dizem respeito, colocando maior ênfase no sentido de justiça, de equidade no benefício da ação, do que nos eventuais direitos que assistem a cada indivíduo. (NEVES, 1996, p. 10).

Da Europa em geral, Neves exclui o Reino Unido em suas considerações,

entendendo que este integra naturalmente a perspectiva norte-americana, lá as

primeiras iniciativas de abordagem às preocupações da Bioética, se deram na

década de 80, com a institucionalização de diversas comissões de Ética. A França,

por sua vez, instaurou o Conselho Nacional de Ética em 1983.

A gênese e formação da Bioética nas duas tradições marcaram-se das

mesmas condições, com temáticas gerais muito semelhantes. No entanto, há

diferenças quanto a perspectivas de análise nos diversos países, porquanto a

orientação do pensar e agir segue tradições filosóficas e culturais diversas. Nesse

sentido, Neves refere que a Bioética anglo-americana funda-se em pressupostos

bastante individualistas e pragmáticos, enquanto a europeia busca orientação na

perspectiva da pessoa e se interessa pelos macroproblemas na dimensão social,

colocando maior ênfase no sentido da justiça e equidade que nos direitos de cada

indivíduo. Observa a autora:

A reflexão bioética de tradição filosófica anglo-americana desenvolve uma normativa de ação que enquanto conjunto de regras que condizem a uma boa ação, caracterizam uma moral. A reflexão bioética de tradição filosófica europeia prossegue uma inquirição acerca do fundamento do agir humano dos princípios que determinam a moralidade da ação, constituindo-se numa ética. (NEVES, 1996, p. 11).

Segundo Neves (1996), na vertente europeia, a fundamentação da Bioética

busca as correntes filosóficas dominantes, sobremaneira na ética comunicativa de

Habermas e na filosofia da alteridade de Emmanuel Lévinas. Esta vertente da

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 111

Bioética não assume uma característica descritiva, nem dita normas de conduta,

senão toma por fundamento teleológico a pessoa humana, com seu caráter singular

e universal, sem perder de vista a solidariedade na intersubjetividade.

Particularmente no Brasil, os bioeticistas têm se preocupado sobremaneira

com a justiça social, na tentativa de minimizar as desigualdades que, inclusive, são

exploradas por outras nações que encontram nos países subdesenvolvidos um

palco favorável à realização de pesquisas, para cujas condições metodológicas de

realização, chamam a atenção, ao mesmo tempo alertando para o respeito aos

sujeitos da pesquisa. Além da solidariedade, os bioeticistas brasileiros têm proposto

também a discussão a respeito da justiça e do acesso igualitário às novas

tecnologias, levando em consideração os desníveis socioeconômicos a que se

submetem as pessoas que vivem nos países subdesenvolvidos e em

desenvolvimento.

Garrafa (2000), um dos defensores deste ponto de vista, propõe que a

Bioética é senão a Ética revisitada numa tradução mais generosa, acrescentando

novo vigor ao lado mais desfavorecido e frágil da relação – o do paciente. Não

obstante, o bioeticista atenta a um fato muito corrente no Brasil : ao buscarem

formação fora do país, muitos importam acriticamente modelos de ciência e

tecnologia, inclusive de pacotes éticos, e, quando retornam, não os podem aplicar,

em virtude das diferenças culturais com que inevitavelmente se deparam por aqui.

A bioética – campo de reflexão bastante amplo – desenvolveu modelos

teóricos, cujo propósito é assistir pessoas quando racionalizam e decidem a respeito

das situações, quer sejam pertinentes à vida cotidiana, quer sejam as de conflito. Os

Profissionais de Saúde não são imunes a essas situações de impasse, ou dilemas;

ao contrário, deparam-se com elas frequentemente. Apenas mudam quanto à

terminologia empregada para caracterizá-las. Desse modo, Berlinguer (1993) as

define situações cotidianas e situações de limite ou de fronteira, ao passo que

Garrafa (2000) nomeia as diferentes as situações de problemas emergentes e

persistentes, dando maior ênfase aos problemas enfrentados pelos países

subdesenvolvidos.

Entre as linhas ou linguagens da Bioética, Costa, Garrafa e Oselka (1998)

destacam o contextualismo, que defende que cada caso – por ser sui generis – seja

analisado singularmente, considerado dentro de seus específicos contextos

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 112

socioeconômicos e culturais. Isso implica que não apenas cada situação como

também cada cultura devam levar em conta suas próprias particularidades.

Fundamentando-se em Pessini e Barchifontaine (2000), apresentar-se-ão

outros modelos teóricos desenvolvidos no âmbito da Bioética, entre os quais

constam o libertário; o das virtudes; o casuístico; o fenomenológico e hermenêutico;

o narrativo; o do cuidado; do direito natural e o contratualista. A seguir, faz-se uma

síntese de cada um desses paradigmas, estabelecendo-lhes a matéria e seu

defensor expoente.

O paradigma libertário tem por defensor Hugo Tristran Engelhardt que, em

obra polêmica – Fundamentos da Bioética – radicaliza a autonomia do indivíduo.

Inspirado na tradição político-filosófica do liberalismo americano, esse modelo

justifica não apenas as ações decorrentes da livre escolha do paciente, senão

também defende outras posturas polêmicas como a venda de sangue e órgãos,

considerados que são propriedade do corpo.

Fundamentado na filosofia aristotélica, o paradigma das virtudes é defendido

principalmente por Edmund Pellegrino e David Thomasma, pautados na obra de

Alisdair MacIntyre. Esse modelo centraliza a decisão no agente – sobremaneira no

Profissional de Saúde – integrando o paciente às decisões por ele tomadas. Adota

por tônica o aperfeiçoamento da ação por meio do hábito destinado à prática do

Bem. Ademais, enfatiza a educação dos Profissionais de Saúde e a prática clínica.

Dá-se como exemplo da ação decisória do agente, visando à prática do Bem,

quando ocorre a recusa ao tratamento por pacientes portadores de AIDS, de

doenças infecciosas letais, entre outros acometimentos graves.

Reconhecido bioeticista, Edmund Pellegrino retoma o modelo ético aristotélico

da prática da virtude. Eis o norte a perseguir quem, no ensino da Ética, pretende

fundamentar, aprofundar e otimizar a formação de profissionais competentes para

decidir com mais beneficência e sensatez. Dado que haja uma estrutura institucional

que priorize e possibilite o desenvolvimento de potencialidades do indivíduo, com

efeito, é esta a vertente por que se decidir na formação de estudantes durante sua

graduação. Nesse período, se desenvolve a disposição do agente para o agir ético –

por meio da prática de determinadas ações e procurar-se-á alcançar, nos

graduandos, a atuação virtuosa destinada ao Bem – a excelência no proceder

profissional – a eticidade, enfim.

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 113

Oposto ao modelo principialista, o paradigma defendido por Albert Jonsen e

Stephen Toulmin – denominado casuístico – não se sustenta em princípios

orientadores da ação, mas, numa lógica analítica caso a caso, estabelece analogias

em relação a outros tantos casos ou a experiências concretas. Funda-se, pois, em

decisões tomadas após a prática de cotejar casos, comparando-os ou confrontando-

os. Porque se caracteriza pré-teórico e intuicionista, a utilização desse paradigma de

certa forma tem despertado receios e descrença.

Amparando-se na defesa de que toda experiência se submete a uma

interpretação, o paradigma fenomenológico e hermenêutico valoriza a dimensão

subjetiva e a partilha de significados e da análise entre os sujeitos. Critica-o quem

alega que esse modelo se destina à escolha moral inadequada.

O paradigma narrativo aborda as experiências humanas e os dilemas morais

sob a óptica da dimensão narrativa da pessoa, tomada como parte integrante da

vida e dela jamais dissociada. Pautando-se nas experiências humanas adquiridas,

as histórias de vida da pessoa determinam seu sentido e definem seus valores.

Carol Gilligan manifesta-se a favor do paradigma do cuidado, de natureza

psicológica. Argumenta ela que o cuidado, ou a responsabilidade pelos outros,

caracteriza e é mais percebido por mulheres, ao passo que a justiça é pertinência

dos homens, o que implica que a noção de moralidade encontra diferença relativa

aos gêneros. De qualquer forma, a ênfase na alteridade tem sido empregada com o

propósito de superar a perspectiva tecnicista da Medicina.

O paradigma do direito natural apresentado por John Finnis, “[...] estabelece a

existência de alguns bens fundamentais em si mesmos: o conhecimento, a vida, a

vida estética, a vida lúdica, a racionalidade prática, a religiosidade, a amizade. Estes

são bens em si mesmos, fins e não meios [...]” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000,

p.37). Por conseguinte, trata-se de deveres prima facie, o que determina a ausência

de hierarquia de um sobre outro. Considera-se moral toda ação que contribui para o

desenvolvimento desses valores. Este modelo leva em conta o indivíduo em sua

integralidade, buscando uma integração do homem à sociedade.

Robert Veatch propõe o modelo contratualista, estabelecendo os elementos

reguladores das relações médico-paciente e sociedade: a obediência a princípios

fundamentais – a beneficência; a proibição de matar; o compromisso de dizer a

verdade e de cumprir as promessas.

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 114

A obra de Hans Jonas O imperativo da responsabilidade também se tornou

importante para o estudo da Bioética, uma vez que aborda reflexões éticas acerca

do poder da tecnologia no mundo moderno.

Em suas considerações, Siqueira (2000, p. 57) remete-se às declarações de

Jonas, que alerta acerca do risco de se proceder a ousadas ações nas ciências,

visto que nem todas as apostas são permitidas no tabuleiro do jogo da vida. Numa

heurística do temor, apresenta uma visão de que mais do que a possibilidade de um

“[...] apocalipse abrupto, a moderna tecnociência ensejaria o aparecimento de um

apocalipse gradual, que culminaria na descaracterização da espécie humana e do

Universo como um todo”. Jonas propõe a criação de uma nova ética, que

extrapolaria as balizas das relações com o outro, para definir-se “ [...]uma ética

voltada para o futuro, que estende nossos compromissos morais de tal modo a

alcançar as gerações vindouras dos não nascidos e nos responsabiliza igualmente

pelos cuidados com a natureza extra-humana.”

Hans Jonas diferencia a técnica pré-moderna da moderna, que se

transformou em empresa que gera um progresso ilimitado, diferentemente do que

ocorria antes, em que os avanços costumavam manter-se em equilíbrio por um

longo período de tempo. Na tecnologia moderna, avanços são planejados, rápidos e

se retroalimentam sucessivamente – cada objetivo atingido gera novas

necessidades, que, por sua vez, determinam novos objetivos, estimulando o

desenvolvimento de novas tecnologias porque sejam satisfeitos. Ademais, os novos

avanços difundem-se rapidamente tanto em termos de conhecimento quanto em sua

aplicabilidade.

Jonas atribui esse comportamento à competitividade, à guerra ou à sua

ameaça, ao esgotamento de recursos frente ao crescimento populacional e à própria

globalização, além de determinantes de ordem ideológica na busca incessante do

homem ocidental pelo novo (NUNES, 2000).

Zancanaro (2000), sustentando-se na obra de Hans Jonas, insta à

necessidade de reflexão e de um despertar da consciência e progresso moral, de

forma que possam levar em conta as consequências futuras da ação humana.

Propõe a construção de uma ética fundada no uso responsável da tecnologia frente

aos ilimitados poderes que o homem alcançou com o conhecimento científico. Essa

alienação do homem de ciência o conduziu à indiferença em relação à vida. Nesse

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 115

sentido, a Ética serve de alerta conclamando a responsabilidade daqueles que

detêm qualquer tipo de poder, especialmente quanto ao poder científico e político.

Urge-os à atitude de vigilância constante em face de riscos e perigos imprevisíveis

ao cálculo, muitas vezes não imediatos, mas cujo alcance a longo prazo poderia

causar danos irreversíveis à sobrevivência humana. Existe, desse modo, a

necessidade de se construir uma ética frente aos novos desafios, cuja tarefa

consistiria em refletir, agir e educar para o uso responsável das tecnologias nesse

contexto.

A indiferença em relação à vida, o excesso de poder da tecnologia põem em risco a continuidade das espécies e colocam-nos diante da possibilidade real da catástrofe da morte essencial. Os fatos mostram que a utilização das potencialidades tecnológicas e sua capacidade não só destruidora como transformadora pode provocar consequências imprevisíveis no futuro. (ZANCANARO, 2000, p. 311).

Como se pode verificar, na mentalidade do cientista, há para o poder da

ciência o ditame de que deve ser feito tudo quanto é possível fazer. Isso pode

implicar destruição da vida e exige renuncia à onipotência do poder.

Hans Jonas assevera que a ignorância a respeito das consequências últimas

de nossos atos, frente ao potencial escatológico da nossa tecnologia, será em si

mesma razão suficiente para uma moderação responsável (SIQUEIRA, 2000).

Nesse entendimento de Jonas manifesta-se a intenção da Bioética tal como

apresentada no final do século XX, o que a torna cada vez mais premente.

Perseguindo a óptica de Jacques Ellul, Siqueira pondera que, uma vez

fascinados pela tecnologia e pode-se dizer também por aquilo que a impulsiona – o

dinheiro e o alcance que este favorece a quem dele dispõe –, teríamos nosso juízo

moral abalado e perderíamos em definitivo a capacidade crítica.

Outro modelo explorado na Bioética a destacar trata da “Ética do Discurso” de

Habermas, que, partindo de um referencial kantiano, desloca a fonte e a legitimidade

das normas de uma razão reflexiva abstrata e universal para uma razão discursiva,

consensual e realizada em processo, levando a um efeito pedagógico, onde o sujeito

se forma na intersubjetividade. Habermas segue a linha de seus predecessores

(Horkheimer e Adorno), quando, acredita que, na sociedade moderna, houve um

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 116

crescimento exagerado da razão instrumental2, culminando na objetificação e

mediatização dos indivíduos, para qual busca em sua reconstrução alternativas de

resolução a esse problema, valendo-se de uma proposta de ação voltada para o

entendimento. Em ampla análise filosófico-sociológica, Habermas (1991, p. 18)

argumenta que o desenvolvimento moral de cada indivíduo – sujeitos dotados de

capacidade de linguagem e de ação – ocorre na interação com o outro, mediada

pelo ato de fala: “[...] elementos de determinada comunidade linguística crescem

num universo partilhado intersubjetivamente.” Ao mesmo tempo em que a identidade

e a individuação de cada um cresce e se preserva na interação, possui uma

fragilidade que sofre ameaça em sua exposição, no entanto “A pessoa só constitui

um centro de interioridade na medida em que se expõe simultaneamente à relações

interpessoais construídas sobre uma base comunicativa.” Deve haver para isso uma

reciprocidade, uma atenção direcionada em ambos os sentidos.

Como em Kant, a ética discursiva extraída da teoria da ação comunicativa de

Jürgen Habermas é formalista. No entanto, ela formula o seguinte princípio: “[...] as

únicas normas que têm direito a reclamar validade são aquelas que podem obter a

anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático” (HABERMAS,

1991, p. 16).

Para Habermas (1991, p. 22), há estreita relação entre a autonomia do

indivíduo e a perspectiva social, porquanto, em seu discurso, insere-se sua própria

perspectiva num contexto universal, de forma que o discurso transcende a fronteira

da comunidade concreta, mas não quebra o laço social de pertinência a ela.

Entende que o objeto que se pretende no consenso é uma forma singular de

concordância ou desacordo, mas há que se superar aí o egocentrismo – de uma

liberdade sem limites –, tornando-se uma pretensão de validez passível de crítica,

para, então, ser capaz de projetar-se no outro. Habermas esclarece: “[...] sem a

empatia solidária que permite a cada indivíduo projetar-se nos outros não se poderá

chegar a uma solução passível de anuência geral.” Amplia-se, desse modo na ética

do discurso o conceito deontológico de justiça, porquanto no relacionamento

interpessoal há reconhecimento do outro, num grau de solidariedade, altruísmo e

2 Os pensadores iluministas acreditavam que a evolução do conhecimento possibilitaria a evolução humana,

contudo o aumento desse não foi acompanhado da esperada emancipação humana. Segundo a tradição de

pensadores da Escola de Frankfurt esse fato deveu-se da expansão isolada da razão instrumental – técnica –

sem o necessária desenvolvimento da Razão crítica. O que conduziu a uma crise da Razão. Nessa linha de

análise filosófica, histórica e social Habermas indica como uma possibilidade de superação a teoria da ação

comunicativa.

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 117

entendimento, em que os interesses do indivíduo são contemplados no plano do

interesse geral, de uma estreita relação “ [...] entre a autonomia dos indivíduos

inalienáveis e a sua inserção em formas de vida partilhadas intersubjetivamente.”

Habermas (2000, p. 414) acredita na mudança de paradigma da razão

centrada no sujeito para a razão comunicativa pressupõe a mudança de uma razão

reflexiva para uma ação comunicativa. Habermas faz uma proposta de razão

reflexiva, monológica para uma razão argumentativa comunicativa. No paradigma do

entendimento recíproco, os participantes “ [...] coordenam seus planos de ação ao

se entenderem entre si sobre algo no mundo.” A reflexão se dá na perspectiva do

alter, que, refere-se a si mesmo como participante de uma interação.

Na proposta de Habermas (2000), o paradigma da consciência de si, da

autorrelação de um sujeito que conhece e age solitário é substituído por um outro –

o do entendimento recíproco, isto é, da relação intersubjetiva entre indivíduos que,

socializados pela comunicação, se reconhecem reciprocamente.

Em seus estudos, Habermas percorre um caminho de fundamentação para

uma teoria da ação comunicativa, argumentando que faz imprescindível uma

proposta para além da análise infrutífera, o que se dá na teoria da ação

comunicativa. Denuncia o capitalismo por haver se transformado num mal para a

humanidade, uma vez que se deixando conduzir por essa forma de viver e de

pensar, o homem dirige seus atos instrumental e estrategicamente, a ponto de

perseguir, pois, objetivos egoístas e resultados cada vez mais individualistas.

Apenas por meio da ação comunicativa, voltada para o entendimento, que exclui

qualquer forma de coação, ele será capaz de evoluir, porquanto a racionalidade

descoberta e perseguida desde o Iluminismo não demonstra que o homem seja

capaz de viver com sabedoria.

A teoria da ação comunicativa reclama requisitos fundamentais para a sua

ocorrência: a finalidade da ação deve ser autenticamente expressa no ato de fala,

sem subterfúgios; as pretensões de validez dos interlocutores devem ser passíveis

de critica; o falante e o ouvinte devem ocupar espaços próprios, de modo que

tenham participação em plano de igualdade, e, finalmente, a ação comunicativa

deve ter a possibilidade implícita de levar a um entendimento racional, alicerçada na

convicção, e não na coação (BOLADERAS, 1996).

Porque se inserem e participam da multiplicidade de relações humanas

complexas – na família, como estudante, no exercício profissional, com seus pares

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 118

numa equipe, no trato com pacientes –, o médico e o enfermeiro encontram na ética

discursiva uma inestimável aplicabilidade para a sua formação e atuação.

O entendimento das várias correntes do pensamento ético ajuda a reflexão e

o posicionamento face à diversidade dos intensos dilemas de natureza ética

experenciados pelas pessoas na modernidade, e, consequentemente, no exercício

profissional.

Pessini e Barchifontaine (2000) concluem que uma única perspectiva não é

suficiente para considerar as dimensões morais da experiência humana. Os modelos

e referenciais filosóficos se complementam.

Ante esses modelos expostos – cujo emprego se mostra profícuo à análise de

situações e a uma ampla aplicação clínica –, muitos autores postulam que, em sua

aplicabilidade, eles se entrelaçam, complementam-se e se reforçam, porque a

existência humana possa ser pacífica e, desse modo, perdure. Resta como modelo

mais divulgado no Brasil o principialismo e os quatro princípios que o integram. Por

outro lado, muitos estudiosos têm questionado a impossibilidade contemporânea de

se estabelecerem princípios universais, face à da diversidade moral acarretada pela

pluralidade de valores existentes.

Em todos os modelos explorados na atualidade pela bioética, evidencia-se o

resgate humanístico filosófico, uma vez que esta ciência argumenta que, dado ao

pensamento positivista dominante e aos avanços científicos e tecnológicos que,

sobremaneira, o século XX levou a cabo, prescinde-se um repensar a respeito da

relação do homem com a ciência e com a própria vida.

Alguns autores imprimem a seu discurso um tom bastante aterrorizador ante a

capacidade de o homem avançar, sem que esteja ciente das consequências muitas

vezes desastrosas. Ademais, denunciam a atitude arrogante incisiva do cientista,

imputando-lhe a capacidade simultânea de operar maravilhas admiráveis e de

causar danos inexoráveis à vida e à sua sustentabilidade.

Com o advento da Bioética, fortaleceram-se os conteúdos com bases

filosóficas e humanísticas, de onde advieram ganhos na formação do Profissional de

Saúde, trouxe-lhe referenciais que o assistem no esforço por fundamentar, refletir e

modificar a prática nessa área.

Há necessidade de se investir na formação profissional tanto com respeito ao

conhecimento teórico quanto prático, particularmente promovendo os Profissionais

da área da Saúde, visto que necessitam de conhecimento, preparo, competência

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 119

técnica e ética para a sua atuação. Exige-se do profissional médico e enfermeiro

conhecimentos e atitude relativos ao bom comportamento moral, visto que decisões

demasiadamente importantes fazem parte de seu cotidiano profissional.

Segundo Pellegrino (2011, p. 4), “o bem-estar do paciente sempre deve

suplantar os interesses do médico.” Isso porque a Medicina é uma ‘profissão

especial’, por lidar de perto com vulnerabilidade de doentes.” O mesmo se aplica ao

Profissional de Enfermagem, no sentido de que deve ele tomar decisões em

benefício do bem estar do paciente, provendo-se de conhecimentos, de atenção e

cuidado.

Fundando-se e perseguindo esse objetivo é que se acredita na Ética, cujos

ensino e prática devem ser exortados nas escolas de Medicina e de Enfermagem,

ensejando oportunidades de reflexão e discussão de temas relevantes, inclui-se aqui

os do cotidiano – preferivelmente em pequenos grupos -, para alcançar, na prática,

posicionamentos que o levem ao bom exercício da profissão. Tal como nos legou

Aristóteles, trata-se de buscar a excelência na ação – do exercício contínuo de

ações virtuosas –, que, tornando-se hábito, predispõem o caráter do profissional a

deliberar criticamente entre as alternativas várias, favorecendo-lhe a melhor escolha

(ação ética).

4.3 Os temas abordados

Estudos mostram que os conteúdos abordados na Bioética têm a pretensão

de formar médicos com competência técnica e humana, conforme se constata no

excerto a seguir.

O conteúdo da disciplina de Ética e Bioética da UECE tem base filosófica articulada com visões de mundo e comportamento em sociedade. Na UFC, a Ética vem contextualizada na evolução histórica e científica da Medicina, trabalhando a cidadania e a relação médico-paciente pelo enfoque da Bioética, visando a uma ação interdisciplinar. A dimensão da cidadania, em seu sentido mais amplo, configura o exercício dos direitos e deveres, ou seja, respeito à dignidade humana, fator indispensável a uma prática integral e focada nas necessidades sociais. (GOMES, MOURA e AMORIM, 2006, p. 61).

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 120

Se se trata de resposta à questão de aprender a ser, os autores defendem a

importância da formação integral do estudante.

Dantas e Souza (2008) realizaram uma revisão sistemática do assunto e

destacam alguns temas para o ensino da Ética, tal como foram levantados nos

artigos analisados: o consentimento esclarecido; a prestação de cuidados em saúde;

a confidencialidade e privacidade; qualidade de vida; futilidade terapêutica; morte e

final da vida; reprodução; aspectos práticos cotidianos do profissional e de equipe.

Ainda com respeito a conteúdos programáticos, destaca-se que, no Reino Unido,

havia uma fundamentação antropológica e filosófica antes da discussão de

problemas de natureza bioética, o que favorecia a sustentação teórica ao ensino.

Pessini e Barchifontaine (2000) apresentam uma lista de temas trabalhados

pelo Kennedy Institute of Bioethics, entre os quais figuram: fundamentação ética

filosófica, religiosa e aplicada; história da ética médica e da Bioética; filosofia da

Medicina e da Enfermagem; conceito de saúde; acesso à tecnologia; código de ética

profissional; relação profissional-paciente; consentimento informado;

confidencialidade; assistência à saúde; custo e distribuição de recursos; programas

de assistência à saúde específicos (idosos, crianças, incapacitados HIV, embriões e

fetos, dependentes químicos); sexualidade; contracepção; aborto; tecnologias

reprodutivas; genética, biologia molecular e microbiologia; qualidade ambiental;

experimentação humana; transplantes; a morte e o morrer; dimensão política e

internacional da Biologia e da Medicina (guerra, armas químicas, etc.) e direito dos

animais.

No Brasil, merece destaque Iniciação à Bioética, uma obra organizada pelo

Conselho Federal de Medicina, publicada em1998. Contextualiza o início da Bioética

e traz debate a respeito de alguns temas polêmicos, como o aborto, a ciência, a

reprodução assistida, o projeto genoma humano, transplantes, eutanásia e

distanásia, pesquisa, saúde pública e direitos humanos. Trata-se de temas, cuja

bem cuidada elaboração favorece ao leitor uma boa aproximação a respeito da

proposta da Bioética.

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 121

4.4 O ensino da Bioética

Em geral, tende a ser interdisciplinar a abordagem à Bioética, tendência que

se inaugurou em 1971 nos Estados Unidos, com a criação do Instituto Kennedy,

espalhou-se pelo mundo centros, institutos e departamentos acadêmicos

direcionados para a área de Bioética e do Biodireito. Desses centros participam

médicos, enfermeiros, dentistas, juristas, filósofos, historiadores, cientistas sociais,

antropólogos e profissionais da área das artes (DANTAS; SOUZA, 2008).

De qualquer forma, a disciplina que trata da Ética e da Bioética, além de

professores especialistas em Bioética – bioeticistas – deve contar com profissionais

de Filosofia, Antropologia e Sociologia para integrar a formação de médicos e

enfermeiros, dado que prescindem de outros conhecimentos além daqueles

técnicos, ou de base biológica. Não se quer significar aqui que não sejam eles

relevantes, senão que saber usá-los implica o conhecimento e o desenvolvimento de

atitudes de excelência moral, sobremaneira porque esses profissionais se inter-

relacionam e cuidam de pessoas atravessando momentos de fragilidade, de

vulnerabilidade.

O bioeticista, estudioso e especialista em Bioética, não pretende ensinar

filosofia. Ensiná-la á o filósofo, que, dentre outros recursos selecionará textos

adequados à formação humana do médico e do enfermeiro, assim como deve

ocorrer em relação ao sociólogo, antropólogo. Por sua vez, cabe ao bioeticista

conhecer algumas correntes filosóficas para entender o ser humano e suas relações,

propor métodos e desenvolvimento das potencialidades dos estudantes para a

eticidade e, nesse sentido elaborar situações e promover discussões

problematizadoras que tragam à realidade vivida pelo médico e enfermeiro a

possibilidade de refletir nas vicissitudes humanas.

Em estudo realizado por Siqueira, Sakai e Eiseli (2002), recomenda-se que o

docente da área de Ética deva ter vivência profissional, conhecimento cumulativo de

cultura humanística, de filosofia moral, das normas regulamentadoras da profissão e

história da Medicina. No desempenho da disciplina deve haver a presença de um

docente de elevada qualificação.

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 122

A Bioética entende que valores, de fato, influem nas decisões. Ao mesmo

tempo em que somos influenciados por valores adquiridos e consolidados, existirá a

possibilidade de contínuo questionamento dos valores estabelecidos, o que implica

maior ajuste das regras às situações novas. A Bioética propõe, então, que haja

oportunidade para desenvolvimento de reflexão crítica contínua das situações e que

se tomem decisões por meio de discussões em equipe, preferivelmente a composta

de ordem multiprofissional e multidisciplinar, para que as opiniões se

complementem, orientadas a que se abra um leque de possibilidades, em que se

analisem benefícios, riscos e consequências das escolhas efetivadas e porque as

decisões sejam mais adequadas.

Em muitos países surgiram pesquisas, centros e comitês de Bioética,

formados por especialistas de diversas áreas. Hoje, vários hospitais no mundo todo

fazem constar de seu corpo clínico profissionais especialistas em Ética, contratados

para cumprir o propósito de amparar seus clínicos em momentos em que urge uma

tomada de decisão em face de casos de tratamento complexo.

No Brasil criaram-se a Sociedade Brasileira de Bioética e alguns centros de

estudo e pesquisa. No entanto, tanto a disseminação quanto a valorização da

Bioética, pelo menos de forma mais perceptível, andam em passos lentos, mesmo

porque esta discussão anda na contramão de tudo o que está no ápice da sociedade

moderna: os interesses econômicos, a competitividade, o lucro, valores de mercado,

o capital, enfim. A Ética ocupa o mais alto grau de valor de uma sociedade: a própria

vida, as relações humanas, os sentimentos, a natureza e condição humana, o que

deveria ser de interesse de todos. Sintetiza bem a intenção da bioética no mundo

contemporâneo a proposta inicial de Potter: a preservação da vida, a

sustentabilidade do planeta Terra. Eis o que deveria prevalecer na orientação da

conduta humana.

Entre as características principais da Bioética, consta que ela deva ser livre

em seus propósitos. Por conseguinte, faz-se inadmissível uma doutrina que venha

se contrapor ou questionar seu valor como ambas – ciência e disciplina –, porque

discutem tudo quanto respeita à vida. Com efeito, toda e qualquer pessoa deveria

dela se informar, conhece-la, discutir suas matérias, não apenas colegiados de

médicos e de juízes. Está-se a exigir um posicionamento fundado em reflexão plural,

resultante de discussão intersubjetiva, para que, diante da complexidade da vida

humana contemporânea, se possa decidir responsavelmente em relação à própria

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Capítulo 4. A Bioética no Mundo Contemporâneo 123

vida na Terra e a todas as relações que nela estão insertas.

Nesse panorama, a Bioética passa a atuar, solicitando “o despertar de uma

nova consciência de ser, de um apurado sentido do humano, que se interroga pelo

‘que devo fazer?’ face ao ‘que posso fazer?’”3 (NEVES, 1996, p. 8), em virtude da

condição de o homem avançar progressivamente nas descobertas científicas e

tecnológicas, o que lhe aumenta as possibilidades de intervenção no curso da vida.

Ademais, devem-se considerar as novas situações, absolutamente inéditas, que

desafiam a hierarquia de valores estabelecidos, tanto para os médicos – que sabem

do que são capazes – quanto para os filósofos, que conhecem os princípios morais

da sociedade ocidental.

3 Foi a verdadeira "revolução biológica" desencadeada pela descoberta do DNA, por Crick e Watson, em 1953, que criou as

condições para o vertiginoso movimento de inovação tecnológica que se lhe seguiu e que foi pautado por grandes sucessos

em áreas diversas como: transplantes, reprodução, genética, ressuscitação, etc. Simultaneamente, em nível sócio-político, revigora-se o poderoso movimento dos direitos humanos, sobretudo durante as décadas de 60 e 70, com a contestação da guerra do Vietnã e o conseqüente desafio da "autoridade" instituída, e também com a luta pela igualdade de direitos entre brancos e pretos, entre homens e mulheres. Na confluência destes fatores encontramos a crise da noção de progresso como essencialmente positiva e a intensificação do questionar da ciência. É o despertar de uma nova consciência de se ser, de um apurado sentido do humano, que se interroga pelo "que devo fazer?" face ao "que posso fazer?".

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CAPÍTULO 5

ÉTICA E EDUCAÇÃO

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Capítulo 5. Ética e Educação 125

Em princípio, pretende-se buscar, na literatura, o papel da educação no

desenvolvimento do indivíduo, situando, posteriormente, a inserção de sua formação

ética configurada no âmbito da educação. Resgatam-se os parâmetros expostos por

Aristóteles na obra Ética a Nicômaco, no intento de refletir sobre o desenvolvimento

ético do indivíduo; trata-se aqui mais especificamente da formação ética dos

estudantes de Medicina e de Enfermagem. No contexto social, a educação cumpre o

propósito de transmitir conhecimentos e de desenvolver as potencialidades do

homem, ocupando o espaço não apenas quanto seu domínio sobre o mundo

material senão também a respeito de desenvolver a capacidade racional tomada no

seu sentido ético de orientar a relação do homem com o mundo: das circunstâncias

várias, não apenas instrumental, mas de desenvolvimento humano, qualificando-o à

autonomia e à evolução em sua busca de uma vida melhor, que não pode ser

alcançada senão pela efetivação do Bem.

Trata-se de resgatar como centro dos processos educativos a formação do

ser humano no âmbito da educação técnico-profissional, não sob o domínio

exclusivo do mercado. Com efeito, urge uma formação humana efetivamente

democrática e solidária.

Para tanto, passe-se a exigir do sujeito mais do que conhecimentos e

técnicas, mobilizando também aspectos de sua própria subjetividade, alcançando e

desenvolvendo-lhe integralmente as competências, o que inclui habilidades

cognitivas, afetivas sociopolíticas, psicomotoras, interpessoais e morais em que se

ancorar para o domínio do mundo real. Além dos saberes, faz-se imprescindível ao

homem saber conviver, refletir acerca das razões e consequências de suas ações

para decidir correta e sabiamente.

De fato, a Ética sempre permeou e se fez presente, manifesta no propósito da

educação humana de formar integralmente a pessoa, provendo-o do necessário

conhecimento teórico e prático – este último se constituindo campo específico de

contribuição da Ética. Pensar educação é pensar formação ética.

Page 128: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 5. Ética e Educação 126

5.1 A Educação como formação integral do homem

Para entender a modernidade e, consequentemente, nosso fazer

contemporâneo, deve-se buscar compreender a história da educação. Desde a

antiguidade, na pedagogia da educação ocidental, estão inscritos modelos de

família, Estado e escola, que se amalgamam, resultando daí um riquíssimo tecido da

educação, que, mesmo sistematizada em teorias diversas, não abandonou o ideário

de formação humana, que engloba cultura e universalização da individualidade

(CAMBI, 1999).

A educação destinada ao desenvolvimento integral do homem, considerando

todas as suas potencialidades, tem sempre como referência a Antiga Grécia, berço

da Filosofia que influenciou a cultura europeia ocidental, sem que se negligencie,

contudo, o pensamento e o conhecimento oriental que vêm de longa data. Na

Grécia, inaugura-se um novo modo de pensar distinto daquele pertinente à era

mítica, e de onde decorreu a racionalidade crítica. Os filósofos gregos

empreenderam indagações e desenvolveram raciocínios matemáticos acerca da

natureza, estabelecendo as bases para se constituírem posteriormente a Ciência, a

Política, a Ética, a Técnica e a Arte (CHAUÍ, 1998).

A paidéia evidencia a verdadeira noção de formação integral do homem

grego. A educação dos jovens nobres se propunha a atingir a perfeição do corpo e

do espírito. “A paidéia era a educação como formação cultural completa e sua

finalidade era a realização, em cada um, da areté, a excelência das qualidades

físicas e psíquicas para o perfeito cumprimento dos valores da sociedade” (CHAUÍ,

2002, p. 156). Em Atenas, julgava-se que a polis, além dos guerreiros, necessitava

igualmente de bons cidadãos, o que incluía ao respeito às leis e a participação nas

atividades políticas.

Segundo Chauí, conquanto durante séculos tivessem sido interpretados

pejorativamente, os sofistas se consagraram mestres da arte da educação do

cidadão e os primeiros professores a receberem pagamento, fato que seus inimigos

não perdoavam. Os gregos empregavam a palavra sophistés com a noção de

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Capítulo 5. Ética e Educação 127

ensino, ou da prática de ensinar um saber: sophós: era aquele que possuía saber

relacionado a uma utilidade da prática. Posteriormente, ganhou diferente sentido,

passando a designar o sábio contemplativo, teórico.

A história da pedagogia tal como é concebida na sociedade moderna, posto

que perpassasse as influências teocêntricas da Idade Média – época em que tudo

se concentrava em torno do cristianismo –, evidencia que sempre houve a

preocupação de formar técnicos e cidadãos. Nasceu como história ideologicamente

orientada, com ênfase na teoria e de certo modo distanciada da realidade social.

Nas diversas sociedades, a educação real poderia estar disposta remotamente das

contribuições científicas, sobretudo as das ciências humanas, manifestando, dessa

forma, o distanciamento das teorias pertinentes a práticas educativas.

A modernidade marcou-se de muitas mudanças em vários âmbitos:

geográfico, econômico, político, social, ideológico, cultural, inclusive pedagógico, o

que depositou na ciência e na razão toda a confiança, provocando transformações

do ponto de vista cultural-ideológico, de laicização e de racionalização. Decorreu daí

uma revolução na educação.

O mundo moderno centraliza seu interesse na eficiência do trabalho e no

controle social, marcado pelas relações sociais. Recupera-se a inspiração da

Antiguidade, com um novo modelo, mas destinado a um indivíduo ativo na

sociedade.

Kant, leitor dos antigos gregos, foi reconhecidamente um grande pensador

que influenciou os tempos modernos. Escreveu textos a respeito da filosofia moral,

empreendeu trabalhos sobre ciência física e matemática e sobre a educação. A esse

respeito, mostra que a educação é condição para a possibilidade de uma vida ética.

Para que os homens se tornem morais e sábios, portanto felizes, é preciso que

sejam educados (OLIVEIRA, 2004).

A educação para Kant é o maior e o mais árduo problema a ser proposto aos

homens. O dever do homem é tornar-se melhor, educando-se. Se é mau, deve

produzir em si a moralidade. Assevera o autor: eis por que a educação é o mais

árduo problema proposto aos homens. Os homens são ensinados por outros

homens, e o conhecimento é passado de geração em geração. Para ele, essa é a

esperança de alcançar o desenvolvimento racional e moral do homem. Kant afirma

que a educação deve ser dirigida de modo a melhorar aquilo que gerações

anteriores já obtiveram. Esse procedimento apenas se possibilita por meio do

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Capítulo 5. Ética e Educação 128

raciocínio, ou melhor, de uma intenção raciocinada. Nesse sentido, declara: “É

preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange à arte da

educação; de outro modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e uma

geração poderia destruir tudo o que uma outra anterior teria edificado.” (KANT, 1996,

p. 22).

A formação do homem, conforme concebeu Kant, compreende a disciplina e a

instrução. A disciplina o exclui da animalidade: “O homem não pode tornar-se um

verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” E

completa, concluindo: “Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos

homens os torna mestres muito ruins de seus educandos” (KANT, 1996, p. 15). Há

uma associação explícita da necessidade de se refletir a educação como formação

integral. Por conseguinte, a formação de cada pessoa deve constituir-se fonte de

bem, deve ser bem orientada, o que depende do esforço conjunto de pessoas que

pensem, planejem para organizar as escolas, e dos professores que são os mestres:

“[...] pessoas dotadas de generosas inclinações, as quais se interessam pelo bem da

sociedade e estão aptas para conceber como possível um estado de coisas melhor

no futuro.” (KANT, 1996, p. 25).

A noção de desenvolvimento racional, técnico do homem integra-se à sua

capacidade moral para agir, desenvolvendo as suas habilidades e competências na

condição de ser relacional e ético que interage com o mundo, faz escolhas

conscientes e é por elas responsável.

A educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino. A providência quis que o homem extraísse de si mesmo o bem e, por assim dizer, assim lhe fala: ‘entra no mundo. Coloquei em ti toda espécie de disposições para o bem. Agora compete somente a ti desenvolvê-las e a tua felicidade ou a infelicidade depende de ti’. (KANT, 1996, p. 19).

Para ser educado, primeiramente o homem submete-se a regras e,

gradativamente, se torna capaz de discernir e julgar por si, numa fase onde se lhe é

permitido usar a reflexão e a liberdade. Kant defende que essas regras são

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Capítulo 5. Ética e Educação 129

colocadas num patamar essencial, porquanto em todo momento orientam

automaticamente a ação do homem num primeiro período da vida, ou moralmente,

no segundo. Na escola, a atitude é orientada pelo professor; na vida, pelo

governante, que tem nas leis um guia para a vida humana.

À escola, cabe inclusive corrigir os defeitos que eventualmente possam advir

do âmbito familiar, razão por que a educação pública, para Kant, pode ser ainda

mais vantajosa do que a doméstica, uma vez que reúne informações e a moral.

Kant (1996, p. 23) argumenta que deve haver planejamento na educação

pensando-se no futuro e não no estado imediato ou do presente da humanidade.

Aqui se reconhece um pressuposto ético relevante que o próprio autor enfatiza:

“Este princípio é da máxima importância.” Explicita dois obstáculos para a educação,

que parecem muito próximos das dificuldades também vivenciadas nos dias

contemporâneos:

De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor no futuro. Mas aqui se deparam dois obstáculos: 1) Os pais não se preocupam ordinariamente senão de uma coisa, isto é, que seus filhos façam uma boa figura no mundo; 2) os príncipes consideram os próprios súditos apenas como instrumento para os seus propósitos. (KANT, 1996, p. 23).

Kant sustenta que o bem geral, conquanto pareça sacrificar o bem particular,

contribui sobremaneira para melhorar o estado presente e que “Uma boa educação

é justamente a fonte de todo bem nesse mundo.” (KANT, 1996, p. 23), visto que a

educação ensina e desenvolve, no homem, as suas disposições naturais. De uma

educação mal resolvida e conduzida apenas decorrem em efeitos nocivos à

sociedade, como se vê nesta passagem:

O homem deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposições, para o bem, a providência não as colocou nele prontas; são simples disposições, sem a marca distintiva da moral. Torna-se melhor, educar-se e, se é mau, produzir em si a moralidade: eis o dever do homem. Desde que se reflita detidamente a respeito, vê-se o quanto é difícil. (KANT, 1996, p. 15).

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Capítulo 5. Ética e Educação 130

Segundo Cambi (1999), nos primeiros anos do que se denominou

modernidade, os fins da educação destinavam-se ao homem livre e ativo na

sociedade. Simultaneamente à pedagogia da ciência nasce uma pedagogia social,

com a função de formar o homem-cidadão. A pedagogia e a educação se delineiam

como saber e como práxis, para responder a esse novo homem e às relações e

sistemas que daí decorreram. O homem passa, então, a ser estudado analítica e

experimentalmente nas suas capacidades de aprender e nas formas de crescimento

físico, moral e social.

A modernidade imprimiu nova direção à História. Deixando-se guiar pela ideia

de liberdade, o homem rompeu os modelos de sociedades para instituir novos

modelos, cujo eixo se deslocou do indivíduo e avançou nas relações capitalistas,

reforçando a centralidade no trabalho e no controle social, entretanto, sob constante

ação das elites dirigentes. As instituições educativas eram dirigidas pelo Estado,

cujo propósito era formar os jovens – os adultos da geração seguinte –, objetivando

um modelo de eficiência e produtividade, além de neles moldar a docilidade político-

ideológica. De fato, a expansão vertiginosa da indústria estava a exigir um novo tipo

de trabalhador, já não bastando que fosse ele altruísta, benevolente, embora essas

virtudes continuassem sendo necessárias. Desde bem cedo, ainda na infância,

tornou-se imperioso “modelar” esse tipo de indivíduo de acordo com a necessidade

da nova ordem capitalista e industrial, atendendo às novas relações de produção e

aos novos processos de trabalho.

Por conseguinte, as escolas passaram a assumir a responsabilidade não

apenas de socialização e informação senão também de transmissão do “saber fazer”

– o conhecimento técnico, visando formar trabalhadores. Emergiram as profissões

modernas, divididas entre trabalho manual e intelectual e hierarquizadas

socialmente de acordo com as classes a que se destinavam.

Em decorrência dessa nova ordem social, os processos educativos

determinados pelo desenvolvimento tecnológico e científico marcaram-se de

tendências paradoxais: conformação e liberação; emancipação e controle;

produtividade e livre formação humana, entre outras. E dessa conjuntura, partiu o

trabalho da Pedagogia e a Educação contemporânea.

Cambi (1999) declara que o século XX caracterizou-se pela afirmação do

capitalismo, pela ascensão e declínio do comunismo e, por muito tempo, do

confronto entre a democracia e o totalitarismo. Em meio a sociedades díspares,

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Capítulo 5. Ética e Educação 131

umas avançando econômica e socialmente e outras em profunda crise de

identidade, a escola constituiu-se um dos canais de conformação compulsória e

artificial, tornando-se centro de reprodução de ideologias. Em relação ao

comportamento, o homem fixou-se no presente, tornou-se hedonista e homem-

massa, guiado pela opinião da maioria, pelo consumo, pela acumulação de bens,

experiências e relações:

Antes de tudo, exacerbou-se o individualismo. Depois, cresceu o hedonismo. Por fim, dilatou-se a influência da massa. O sujeito faz cada vez mais referência a si próprio e às suas necessidades/interesse, segue a ética do prazer e da afirmação de si, envolvendo-se em comportamentos cada vez mais narcisistas. [...] Toda a ética perde as conotações de responsabilidade e de uniformidade a uma lei, para assumir cada vez mais características narcisistas e subjetivas. [...] assume um estilo de vida cada vez mais padronizado. (CAMBI, 1999, p. 510-11).

Fundamentando-se em Weber, Carvalho (2004, p. 282-283) considera que

houve um desencantamento em relação à racionalidade, embora o mundo moderno

tenha dado à luz muitos benefícios por meio da afirmação da Razão. Não obstante,

por outro lado, provocou, no homem, a perda de sentido, porquanto pareceu revelar-

se uma racionalidade destrutiva, “[...] o mundo moderno perdeu o seu signum, ou

seja, não há um progresso em direção ao melhor [...] O mundo reificado produziu

pessoas que se tornaram especialistas sem espírito e hedonistas sem coração.” Eis

como julgou Max Weber o processo de racionalidade no mundo moderno,

procurando entender o quanto um possível irracionalismo influiu no estilo de vida do

homem, em sua conduta ética, a ponto de que, caso não houvesse uma

remodelagem do mundo, poder-se-ia dizer que o capitalismo teria se tornado sua

própria religião.

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Capítulo 5. Ética e Educação 132

Carvalho (2008) pormenoriza a caracterização dessa época que transcorreu

sob o jugo dos interesses capitalistas:

O surgimento do cálculo racional dos custos da produção, a institucionalização do trabalho assalariado, o aparecimento de uma nova maneira de pensar e de agir que favorecia o processo de acumulação e a contínua incorporação da ciência e da técnica ao processo produtivo, como também a modificação do Estado, que passou a se organizar com base num sistema tributário centralizado, num poder militar permanente, no monopólio da legislação e da violência e, principalmente, numa administração burocrática racional, são os outros elementos que manifestariam a racionalidade instaurada no mundo ocidental moderno. (CARVALHO, 2008, p. 2).

Em meio a essas mudanças radicais, a educação sofreu as consequências da

massificação da vida social, do estado de conformismo passivo ante o domínio do

capitalismo. Instala-se a tendência gregária entre os homens que sentem prazer na

companhia de outrem, mas destituídos da consciência de uma organização bem

definida, perdem o sentido da vida, da razão de existirem, se conformam às

circunstâncias. Homens solitários na multidão compuseram uma espécie de

sociedade igualmente vazia de significado, que, por sua vez, enfraqueceu a própria

cultura – marginalizada em relação às novas entidades ideológicas e tecnológicas. O

novo processo de socialização incluiu o mundo do trabalho, e as fábricas abrem-se

recrutando novos protagonistas – a mulher e a criança. Ante esse processo,

constata-se que “A prática educativa voltou-se para um sujeito humano novo.”

(CAMBI, 1999, p. 512).

À escola, confiou-se a formação humana, agora composta de elementos

teórico-científicos e sociológicos para atender a novas políticas educativas e

metodológicas. Ideias, valores intencionais, conhecimentos, técnicas articulam-se

para provocar os efeitos esperados que se conformassem àquele tipo de sociedade.

Em alguns momentos alternava-se a ênfase num ou noutro desses aspectos.

Mudanças científico-tecnológicas e suas consequências de ordem ideológica

com respeito a valores e costumes refletiram-se na educação familiar e escolar.

Concorda-se com Aranha (1996, p. 19) quando assevera que, ao se estudar a

educação, deve-se fazê-lo considerando o seu contexto histórico geral, não apenas

traçando um paralelo entre fatos da educação e os da sociedade, respectivamente :

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Capítulo 5. Ética e Educação 133

“[...] as questões da educação são engendradas nas relações que os homens

estabelecem ao produzir a sua existência. Nesse sentido a educação não é um

fenômeno neutro, mas sofre os efeitos da ideologia, por estar de fato envolvida na

política.”

Corroborando essa ideia, Saviani (1996) declara que a educação é um ato

político, e que não está divorciada das características da sociedade, servindo a

interesses antagônicos numa sociedade dividida em classes. A educação visa à

promoção do homem, o que significa torná-lo cada vez mais capaz de conhecer,

intervir e transformar a sua realidade, no sentido de ampliar a liberdade, a

comunicação e a colaboração entre os homens. Situado no meio natural e cultural, o

homem possui capacidades e as utiliza para transformar a natureza e também poder

exercê-las com, entre ou sobre outros homens. Na medida em que o homem existe

socialmente, esse aspecto relacional com outros homens pode ser marcado de

dominância, ou exercido na relação horizontal entre eles, de tal forma que há

reconhecimento igualitário do outro, estabelecendo o regime de cooperação ou

colaboração. Ademais, há ainda a considerar que a educação satisfaça uma

necessidade de natureza prática. Trata-se da assim denominada educação para a

subsistência, ou, conforme Saviani a designa, educação para o desenvolvimento –

terminologia mais adequada se pertinente ao homem brasileiro.

Segundo Cabreira (2001), na década de 60, em decorrência do golpe militar

de 1964, os professores se viram obrigados a pregar um nacionalismo exagerado,

promovendo uma ideologia instalada, o que incide contrariamente sobre todo e

qualquer processo educativo. A escola e a educação passaram a ser vigiadas. Na

década de 70, o propósito do ensino era profissionalizar os trabalhadores, uma vez

que o ritmo de urbanização se exacerbava, visando a uma política neoliberal. Com

efeito, isso coincide com o objetivo da LDB 5692/71 – dar cabo das novas

exigências de um país que necessitava de mão de obra qualificada. De qualquer

forma, procede o consenso de que a qualificação para a produção “[...] propiciou a

desqualificação do ensino, oferecendo ensino profissionalizante aos pobres e

intelectual aos ricos." (CABREIRA, 2001, p. 77).

Na década de 80, houve uma abertura política que favoreceu a possibilidade

de refletir a respeito de novos modelos educacionais “que pensassem a educação

enquanto processo e pressuposto do exercício da cidadania.” (CABREIRA, 2001,

p.23).

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Capítulo 5. Ética e Educação 134

A abertura política instalada pela democracia permitiu reformas no plano

educacional, ratificadas na elaboração da Constituição Federal de 1988 e da nova

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Assegurou-se, desse modo,

a responsabilidade conjunta dos governos federal, estaduais e municipais de se

estabelecerem diretrizes com que nortear os currículos e conteúdos mínimos na

formação básica, propostas pelo Ministério da Educação e deliberada pelo Conselho

Nacional de Educação (CNE). A primeira versão dos Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCNs) ficou pronta em 1996, dada a conhecer um ano depois, sem,

contudo, revestir-se de caráter obrigatório.

O Parecer nº 4/98 da CEB e a Resolução nº 2 de 1998 propõem sete

diretrizes como referência para a organização do currículo escolar. Importa ressaltar

que o documento estabelece que as ações pedagógicas devam fundamentar-se em

princípios éticos, políticos e estéticos, além de se identificarem alguns princípios

complementares, como autonomia, responsabilidade e solidariedade, relacionados à

cidadania e à vida democrática.

Um dos aspectos mais inovadores do documento refere-se à “vida cidadã” e

evocam os temas transversais propostos pelos PCNs, sem que se faça, no entanto,

qualquer referência explícita a eles. “Nesta diretriz, fica evidente a lógica da mútua

omissão que tomou conta dos atores políticos do CNE.” (BONAMINO; MARTÍNEZ,

2002, p. 375).

Nas orientações emanadas dos órgãos responsáveis pela qualidade do

ensino no país, há preocupação com a formação integral do ser humano, desde o

ensino fundamental até à graduação. Evidencia-se o interesse pelo desenvolvimento

do homem e por seus direitos de informar-se e formar-se, para, como cidadão,

participar ativamente na sociedade.

Logo em sua introdução, os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais, datado

de 1997, destinados ao Ensino Fundamental definem que um de seus objetivos

constitui-se em possibilitar às crianças o domínio ativo de conhecimentos

necessários com que possam empreender a conquista de sua cidadania, a ponto de

se tornarem cientes de seu ser e estar na sociedade.

Para isso, dentre outras reflexões a respeito do processo ensino-

aprendizagem de competências gerais a serem objetivadas no encontro do PENSAR

E FAZER próprios do trabalho escolar, o referido documento propõe questões de

natureza ética relativas à igualdade de direitos, à dignidade do ser humano e à

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Capítulo 5. Ética e Educação 135

interação solidária entre os homens. Com efeito, é absolutamente isso que, no

âmbito da Ética, se espera do homem – ser racional e capaz de se desenvolver,

evoluir como Pessoa, decidindo, agindo e interagindo de modo sensato e

satisfatório. Nesse sentido, é incontestável a importância atribuída à formação

humana por quem a dirige, orienta, efetiva.

O propósito da Secretaria de Educação e do Desporto, ao consolidar os

Parâmetros Curriculares, constitui-se em apontar metas de qualidade que

contribuam para o aluno interagir no mundo atual como “cidadão participativo,

reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres.” (BRASIL, 1997, p. 4).

Na universidade, especificamente nos cursos de Medicina e de Enfermagem,

houve transformações nos direcionamentos visando à formação desses

profissionais. Tem-se enfatizado a formação voltada para à prática em se tratando

de saúde, de forma a abranger as necessidades tanto das pessoas quanto da

população. Isso implica compreender melhor o modo de ser e de viver das pessoas

à luz de uma perspectiva mais totalitária, que aborde integralmente às ações de

saúde, ou seja, considerando as dimensões psíquica, social e biológica na vida da

pessoa.

Ora, tal proposta educativa se distancia e, até certo ponto, se opõe àquela de

Flexner, que resultou numa prática que toma por parâmetro queixas e sintomas

isolados numa dimensão biológica exclusiva, mas que seja resultado de

entendimento humanizado e de sua consequente ação no sentido de promover a

qualidade de vida e de saúde para pessoas em geral.

Conforme a define a Organização Mundial de Saúde (OMS), e é hoje

entendida pelos profissionais da área, saúde não mais significa apenas a ausência

de doença, senão um estado para o qual convergem e contribuem diversos fatores

favoráveis à vida digna do ser humano: família, moradia, trabalho, lazer, educação e

cultura, transporte, infraestrutura, ambiente, segurança etc. A saúde é, portanto

bastante complexa.

Para que se satisfaçam todos esses aspectos compreendidos na nova

concepção de saúde, faz-se imprescindível que se melhore a relação profissional-

paciente, uma vez que esta tem se revelado demasiadamente mecanicista e

instrumental. Urge resgatar a humanidade dessa relação, porque se desvelem as

necessidades, de tal forma que os profissionais possam atuar segundo esse ideal -

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Capítulo 5. Ética e Educação 136

promoção à saúde. Não se pode perder de vista a busca de uma forma de beneficiar

as pessoas experenciando uma situação de vulnerabilidade.

Se, de um lado, a melhoria na assistência à saúde das pessoas depende de

condições mais amplamente palpáveis, como o acesso a serviços, o ambiente físico

mais adequado ao atendimento, às tecnologias existentes de diagnóstico e

tratamento, de outro lado, carecem de mudanças na relação que o profissional

estabelece com o paciente, o que se evidencia nos PCNs atuais e deve ser

concretizado na formação dos profissionais de saúde.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais vigentes relativos aos Cursos de

Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição, aprovados em 2001, ancoraram-

se em vários documentos, entre os quais a Constituição Federal de 1988 e a Lei

Orgânica do Sistema Único de Saúde nº 8.080 de 19/9/1990, assim como os quatro

pilares para a Educação no século XXI, conforme se observa a seguir. Consideram-

se a garantia aos direitos do cidadão em relação à saúde, o modo como o

profissional deva ser preparado para atender às demandas, levando em conta o

modo de vida da população, sua história, as necessidades individuais e coletivas.

Editado em 1998 pela Organização das Nações Unidas para a Educação,

Ciência e Cultura (UNESCO), o relatório Delors foi elaborado pela Comissão

Internacional para Educação no Século XXI. Recomenda para o cumprimento das

missões da Educação no século XXI, uma combinação flexível de quatro

aprendizagens fundamentais, que se fizeram conhecer como os quatro pilares da

Educação: aprender a SABER (conhecer); aprender a FAZER (práxis); aprender a

CONVIVER e aprender a SER. Esse último patamar apresenta-se como via

essencial que, além de integrar os pilares anteriores, apenas o atinge e culmina

aquele que cumpriu o percurso da aprendizagem nos outros três com competência e

excelência no desempenho de sua função. O relatório dedica especial atenção ao

desenvolvimento, no proceder humano, da imprescindível complacência no trato

com o semelhante, compreendendo-o para dirimir-lhe conflitos e reconhecer a

interdependência entre os seres humanos (DELORS, 2010).

Os Parâmetros Curriculares assumem a perspectiva de assegurar a

flexibilidade, a diversidade e a qualidade da formação oferecida aos estudantes.

Orientam no sentido de que os currículos não se perpetuem imobilizados,

inoperantes e radicalizados como meros instrumentos de transmissão de

conhecimentos. Ao contrário, articulam-se flexivelmente, porque o graduado esteja

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Capítulo 5. Ética e Educação 137

preparado “para enfrentar os desafios das rápidas transformações da sociedade, do

mercado de trabalho e das condições de exercício profissional.” (BRASIL, 1997, p.

1).

Segundo os Parâmetros Curriculares, define-se e se classifica o Enfermeiro

como o profissional com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva,

qualificado para o exercício de Enfermagem, assegurando-se no rigor científico e

intelectual e pautando-se em princípios éticos. Seja ele capaz de conhecê-los e de

intervir nos problemas/situações de saúde-doença prevalentes, de acordo com o

perfil epidemiológico nacional, e relativos à sua região de atuação, identificando as

dimensões biopsicossociais de seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso

de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da

saúde integral do ser humano.

Aponta-se para a formação do profissional Médico, com formação generalista,

humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no

processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de

promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da

integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso

com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.

Portanto, o texto dos Parâmetros curriculares, no que concerne à

classificação das profissões da área da saúde, corrobora que, de fato, ao par da

necessidade de integrar conhecimentos para a formação de um profissional, porque

ele exercite sua função com competência técnica, absolutamente há que se

considerar a sua formação humanista, capacitando-o a compreender os problemas e

necessidades do paciente e a tomar decisões acertadas em seu benefício.

As Diretrizes Curriculares Nacionais manifestam-se a respeito da formação

integral da pessoa, quando consideram o preparo do indivíduo para o exercício da

cidadania e a valorização da conduta pautada em princípios éticos, de forma que

passou a constituir uma questão de interesse público (CARVALHO, 2010). Para que

a formação vá além do desenvolvimento de habilidades práticas e o do ensino de

conhecimentos científicos, faz-se necessário que conhecimentos e habilidades

sejam bem utilizados.

Venturelli (1997) declara que a educação que se dá na escola deve ser

também extramural, no sentido de se atingir o que se pretende em termos de

autonomia da pessoa e que a formação do estudante deve colocá-lo como um

Page 140: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 5. Ética e Educação 138

sujeito ativo da aprendizagem. Ademais, prevê que os estudantes dos fins do século

XX estariam exercendo a profissão até o ano de 2040; por isso, o sistema

educacional deve assegurar-lhes destreza, estimular atitudes, provê-los de um

pensamento crítico.

Esta década bien puede ser llamada una década en la que los valores mercenarios intentan determinarlo todo: privatizar y transformarlo todo en actividades donde el lucro pase a ser lo central. Y eso se refleja en educación, salud, programas sociales, etc. ...Vivimos un ciclo donde se desarrolla una cresciente falta de respeto hacia el ser humano. En este contexto, se hace doblemente importante la necesidad de mirar a la salud y al proceso de formación profesional que debe enfrentar ese desafío. Lo queramos o no, la duración de este tipo de períodos en la historia tiene derecta relación con la actitud que todos nosotros tengamos. Las profesiones de la salud son unas de las más directamente tocadas y el desafío mencionado es para ellas aun más apremiante. (VENTURELLI, 1997, p.3).

La vida entera es un constante proceso de aprendizage y, por ello, también una contribución al progreso y a las modificaciones de una realidad que las requiere. De eso modo, no podemos pretender que el período intramural universitario permitirá entregar “toda la información” existente. (VENTURELLI, 1997, p. 32).

Ceccim e Feuerwerker (2004) têm feito reflexões a respeito da necessidade

de retomada de formação humanística na área da saúde, para que o projeto iniciado

na Reforma Sanitária na década de 70 possa se efetivar na prática. Com efeito, sem

formação integral dos profissionais, o propósito de melhorar a assistência à

população tende ao fracasso. Os autores discorrem acerca de um projeto educativo

que extrapola a educação e propõe a revisão e formulação de uma política pública

para educação de profissionais, que contribuam para a saúde da população.

Os autores reforçam a importância de avançar nas propostas do movimento

da Reforma Sanitária, bem como na concretização do Sistema Único de Saúde

(SUS). Por sua vez, esse sistema deve cumprir um papel indutor no sentido de

mudança, inclusive na formação profissional, propondo uma articulação intencional

entre as várias esferas de gestão do sistema de saúde e as instituições formadoras.

Isso seria uma ação estratégica no sentido de provocar uma transformação na

organização dos serviços e na formação de profissionais.

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Capítulo 5. Ética e Educação 139

Quanto ao setor de ensino, os autores afirmam que é necessária e urgente

uma reforma que expresse o atendimento aos interesses públicos, referindo-se a

uma formação acadêmico-científica, ética e humanística para o desenvolvimento

técnico-profissional que preencha as expectativas.

O Ministério da Educação e da Saúde tem dispensado esforços por

desenvolver a competência do profissional e o fortalecimento do processo de

formação, traduzidos em algumas iniciativas: programas de interiorização do

trabalho em Saúde (Pits); Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de

Medicina (Promed); Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional

em Saúde (Pró-Saúde) e capacitação de recursos humanos por meio do Programa

de Educação pelo Trabalho para a Saúde (Pet-Saúde).

A elaboração teórica da educação está sempre articulada às ciências e

ideologias (religiosas, políticas e culturais), uma intersecção do cognitivo voltado

para o domínio do real e a descoberta de seus fundamentos, inclusive o dos

comportamentos.

CAMBI (1999) declara que a História da Educação é um depositório de muitas

histórias, dotadas de autonomia, mas dialeticamente interligadas e interagentes: das

teorias e da história social, entendida como história do costume e de algumas figuras

sociais, como história das culturas e das mentalidades. O autor propõe relações de

simbiose entre o âmbito das teorias: representado pela Filosofia e a Pedagogia.

Trata-se de uma colaboração entre os dois saberes, em que a função crítica e

projetiva exercida pela Filosofia da Educação indica modelos e ideias. Urge que a

intenção afirmada nos parâmetros educacionais e programas governamentais de

incentivo à Educação, na área da Saúde se insiram e efetivem na escola, por meio

de conteúdos, reflexão e discussões interdisciplinares em favor do desenvolvimento

humano, consolidando-as na prática profissional e cotidiana.

É expectativa desejável que a universidade se organize de forma a cumprir

sua função de desenvolver consciência crítica ante as ideologias e posturas

contraditórias existentes na sociedade, opondo a elas pesquisas, técnicas e

procedimentos que se revertam em benefícios das pessoas. Essa meta não será

alçada, senão pela formação de profissionais igualmente críticos, que não se deixem

conduzir por modismos efêmeros e pela tecnicidade exacerbada.

Voltar-se para a associação do conhecimento técnico ao humano, para o

reconhecimento dos limites do saber teórico-científico é atitude louvável a ser

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Capítulo 5. Ética e Educação 140

esperar da universidade. Nesse sentido, o estudante passa a não apenas aprender

técnicas necessárias ao atendimento em saúde, senão também, conhecer seus

limites e respeitá-los. Faz-se urgente que se questione posturas e condutas,

modifique-as quando errôneas, humanize sua ação, destinando-se a compreender a

dimensão psicossocial do paciente – ou de qualquer pessoa que busque orientação

ou tratamento –, de modo que, de fato, ele possa ser ajudado com respeito.

Ademais, complacência e respeito são procederes dignos esperados do

graduando ou do profissional que não se utiliza do saber como poder e domínio

sobre as outras pessoas, em geral, ou sobre seus pares. Ao contrário, sabe ele

reconhecer o quanto pode aprender com o outro, decidindo junto, no diálogo com a

equipe, com colegas, mesmo no trato com pacientes. Com efeito, ocorre muita

aprendizagem na relação interpessoal, de onde advém segurança e consciência

para promover a tomada de decisão sensata, e melhorar, consequentemente o

curso da ação/interação transformadora da realidade.

Absolutamente, não se pode prescindir dessa compreensão do mundo e de

seu papel de agente na sociedade quando se pretende a formação otimizada do

Profissional de Saúde, como constataram Ceccim e Feuerwerker (2004, p 51) : “é

preciso haver mudanças nas relações, nos processos, nos atos em saúde e,

principalmente, nas pessoas.”

Para Morin (2000), a educação deve promover a transformação da

informação em conhecimento, e esse, por sua vez, opere a transformação em

sapiência, de modo que modifique o sujeito e o prepare para a vida, por meio de

questionamento, problematização, interligando os conhecimentos.

A chamada pós-modernidade marca-se de complexidade, de pluralismo e

divergências de ideias, o que é próprio da estrutura da mesma modernidade, que se

faz representar por acentuada luta de classes sociais e pelo complexo

desenvolvimento tecnológico e científico (CAMBI, 1999).

Posto que muitos esforços se manifestem à tona nos incentivos e subsídios

do Estado, nas preocupações dos docentes e estudiosos da Educação e da

Filosofia, a dificuldade em se solucionar problemas e impasses advindos de uma

situação de crise permanece, visto que se trata de orientação e trabalho de pessoas

e concepções diferentes para pessoas e concepções desiguais. Entende-se bem do

que aqui se fala quando se dispõe a trabalhar em grupo, onde há composição

heterogênea de pessoas. De fato, conquanto seja meta desejável e necessária ao

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Capítulo 5. Ética e Educação 141

processo ensino-aprendizagem, a tentativa de um trabalho interdisciplinar da

educação, revela-se extremamente difícil e custosa, demandando, para quem decide

adotar uma compreensão da ética nas relações, muito empenho, paciência e

competência. Aí tangem as relações humanas e ficam explícitos os problemas. Não

obstante, também aí se estampam os desafios a serem transpostos quando toma a

Educação sob sua responsabilidade, num esforço conjunto para aperfeiçoar ambas

– a formação e as próprias relações humanas.

A educação reveste-se de um cunho ético que lhe é inerente, depende, pois,

de desenvolvimento individual ancorado nas transformações sociais, ademais

preservando o caráter humano naquilo que foi construído e por aquilo que há de vir.

5.2 A formação ética

No que diz respeito à formação do médico e do enfermeiro considera-se a

intrínseca relação da Ética e da Educação. Embora tenha ocorrido mudanças na

atuação daqueles sob os impactos das grandes transformações sociais não há nada

que seja mais importante que a orientação para boa formação do caráter de uma

pessoa. No que diz respeito a ação voltada para o Bem, não se encontra isolada na

ação do homem no mundo ou no trabalho, confirmando-se, pois a mesma

importância da formação do homem e da formação profissional. À escola cabe

refletir e encontrar caminhos para a educação, no sentido de formar pessoas boas

que desempenhem bem a sua função como ser humano, não apenas exibindo

capacidade técnica profissional. A atuação profissional exige decisões em sua boa

realização: um bom profissional é antes de tudo um homem bom.

Neste estudo, argumenta-se que o jovem em formação prescinde de um

ambiente organizado coerentemente e orientação constante na prática, porque se

habitue a tomar decisões de certa forma que suas ações futuras sejam virtuosas,

racionalizadas e deliberadas com sabedoria no âmbito particular da escolha, como é

o intuito da Ética, em função do bem geral, no entanto.

Na ética aristotélica, encontra-se fundamentação para o que se considera

necessário na formação de profissionais médicos e enfermeiros. Destacamos como

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Capítulo 5. Ética e Educação 142

fundamental, na Ética a Nicômaco, a afirmação de Aristóteles: o homem deve se

deixar orientar desde tenra idade, porque venha a adquirir disposição para agir

virtuosamente, e proceder a escolhas acertadas. Adquire-se essa disposição pelo

hábito e se prolonga na constância do propósito de agir bem e encontrar a melhor

das opções pelo uso da Razão – que se encontra no justo meio – próprio do homem

virtuoso.

Uma educação orientada por tutores, sejam eles os pais, sejam professores,

legisladores, por meio de regras, princípios e leis, orientam o indivíduo que vive em

comunidade. Acredita o filósofo que o jovem ainda em formação não adquiriu

experiências suficientes para deliberar bem frente às situações inusitadas, antes da

tomada de decisão. Nesse sentido, argumenta-se que o jovem em formação precisa

de um ambiente organizado com tal preocupação, preparando-o de modo que suas

ações futuras sejam virtuosas, racionalizadas e deliberadas com sabedoria em

função de um bem particular e geral, o que, aliás, concordante o intento da Ética.

A seguir, passa-se a considerar a formação ética, explicitando-a à luz do que

entendem os autores atuais a seu respeito, ao mesmo tempo buscando, no modelo

ético aristotélico, elementos que possam se prestar a entendê-la e direcioná-la à

formação do médico e do enfermeiro, objetivo desta investigação.

A ética está intrinsecamente coesa à Educação que, por sua vez, estabelece

conexões íntimas com o curso da História e com o momento em que se encontra e a

que pertence a sociedade.

Em suas experiências de vida, o homem adquire comportamentos e costumes

que o direcionarão a fazer escolhas acertadas ou errôneas, não estando elas

restritas apenas a sua vida profissional. Aqui se enfatiza e releva o papel

desempenhado pela formação do homem, uma vez que, conforme for ela conduzida,

implica-se que o sujeito poderá ou não vir a ser um agente moral capacitado a

analisar as circunstâncias da vida e, diante delas, posicionar-se e agir com eticidade.

Resta à escola estar atenta e proporcionar elementos de diagnóstico de nosso

tempo, estabelecendo, pois, coerência com a finalidade da Educação: o

desenvolvimento pleno da pessoa. O ser humano interage com a natureza e com

seus pares, de forma que aprende não apenas conhecimentos de teor científico e/ou

formal, senão também por meio de um sistema de valores que vive na escola.

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Capítulo 5. Ética e Educação 143

Desse modo, uma vez inserida na sociedade e dela recebendo valores que a

influenciam, espera-se que a escola deva organizar-se politicamente, porque seu

ofício de formação possibilite ao indivíduo agir com eticidade. Tão somente à escola

assiste o propósito da formação ética do indivíduo; por conseguinte, deve organizar-

se de tal maneira que se transforme em ambiente que favoreça ações melhores, não

viciosas. Na escola, faz-se necessário formar por meio de atitudes, valores e

conhecimentos que gerem ações destinadas ao Bem, devidamente analisadas,

discutidas e orientadas por regras e modelos de conduta adequados.

Carvalho (2002) entende que o papel da educação constitui-se de preparar as

pessoas para executarem determinadas funções na sociedade e, dessa forma,

suprirem necessidades pela oferta de seus serviços. Isso naturalmente se associa à

formação ética, porquanto no modo de agir estão implícitos costumes e valores. O

ideal se pauta na formação integral da pessoa envolvida no processo de ensino-

aprendizagem tomado em sua dimensão humana, não apenas técnica.

O referido autor comenta que essa preocupação com a postura ética da

pessoa data desde os antigos gregos, que, ao procurar compreender a natureza do

problema, associavam-na ao ato de ensinar a alguém uma conduta. No entanto,

questionavam a possibilidade de se ensinar a vida ética. Decorre das ideias

apresentadas por Carvalho, fundamentadas nos filósofos antigos que a escola é

apenas uma das instituições na qual se formam seus valores. O que há de mais

fundamental é a forma como se pratica o ensino. A melhor forma de cultivá-los e

transmiti-los como um dos mais importantes legados culturais da humanidade é

torná-Ios presentes não só em nossas palavras, mas em nossas ações como

professores e profissionais da educação.

Carvalho refere que muitos interpretam erroneamente a educação moral, cuja

atenção se dirige à conduta das pessoas, atribuindo-lhe o significado equivocado de

“autoritarismo” – uma forma de dominação irracional que submete o ser humano ao

jugo de dogmas radicais. Ao contrário, a formação moral provê ao homem o livre-

arbítrio, a autonomia no seu proceder. De fato, ela lhe permite a escolha da melhor

conduta, visa à capacidade de compreensão, dotando a pessoa da imprescindível

racionalidade para analisar adequadamente as situações com que defronta, além de

lhe propiciar alternativas de ação, de modo que ela possa, com liberdade, preferir

aquela que lhe seja qualitativamente boa, ou o que é melhor, cuja excelência

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Capítulo 5. Ética e Educação 144

extrapole o âmbito individual, para provocar um efeito favorável que esteja em

conformidade com as expectativas da sociedade toda.

Valle (2001) pondera a respeito de se levar em conta os limites que a

educação possui, em se tratando da formação:

A educação não pode tudo, porque encontra, nas disposições de uma ordem que lhe é infinitamente superior, seus limites de atuação. A ação humana não pode tudo, tudo o que pode é realizar-se plenamente [...] Essa confiança extremada na educação, no entanto, só pode se alimentar de uma fé ainda mais inabalável no poder da intervenção humana. Mais do que a educação, é, pois, a ação iluminada da razão que desconhece limites. Essa razão humana que é universal é capaz de promover a justiça e igualdade: ao menos, é nisso que se acredita firmemente e, se tais não são as evidências, não é porque Platão estivesse certo, mas, antes, porque, até aqui, tradições injustas e costumes obscurantistas impediram que a razão se desenvolvesse livre e igualitariamente entre os homens.” (VALLE, 2001 p. 187).

Boto (2001), por sua vez, amplia essa abordagem, declarando que a

Pedagogia é uma ciência destinada ao bem educar, instruir e formar. Para tanto,

recorre aos conceitos da Ética e à sua relação com a Educação. A educação ética

pressupõe certo disciplinamento da vontade humana, de sorte que, uma vez

coordenadas, Educação e Ética atuam na efetivação de um mundo mais saudável,

quer para o indivíduo, quer para a coletividade. Consequentemente, há de se investir

na vontade autônoma, que, aperfeiçoada, é capaz de controlar paixões,

desenvolvendo capacidade de discernir sobre a melhor escolha. À educação cabe

um papel importante na formação ética do indivíduo; no entanto, sua capacidade de

tomar decisões boas depende também de uma educação no contexto familiar e

social, desde a tenra idade, como aponta Aristóteles e, esse aspecto, reafirmado

posteriormente por Kant.

Kant (1996) argumenta que, desde muito cedo, deve-se investir na formação

moral do sujeito, ou se correrá o risco de se enraizarem defeitos, desvios e vícios, a

ponto de que resultariam vãos os esforços por educá-lo. Ademais, pondera que tal é

a inclinação do homem à liberdade, que é necessário desde cedo infundir-lhe

disciplina; se não, ele agiria à maré de seus caprichos, e seria extremamente difícil

reverter essa situação, modificando-a mais tarde. Ratifica-se esse pressuposto com

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Capítulo 5. Ética e Educação 145

a seguinte passagem: “O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por

educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina

e a instrução com a formação” (KANT, 1996, p. 11). Não obstante, o filósofo crê

ainda possível à escola corrigir até mesmo defeitos advindos da educação

doméstica. Nesse sentido, opõe-se radicalmente a ele Aristóteles, que atribuiu maior

responsabilidade à educação familiar, porquanto, desde cedo, a disciplina, a prática

de determinados atos – hábito – que é favorecida ao indivíduo gerará em si uma

disposição para o bem, ou para o mal. Com efeito, em Aristóteles, a orientação é

crucial também quando se estende ao jovem, uma vez que acreditava que apenas à

idade adulta assiste a capacidade de agir com prudência. Atribui ainda, grande

responsabilidade aos legisladores na formulação de leis orientadoras da polis.

Refere-se à Ciência Política como o mais alto de todos os bens, visto que o alcance

do Bem diz respeito à toda uma comunidade – à polis.

Acrescenta Kant que a decisão sábia parece coincidir com a noção de lei,

apenas abalada pela liberdade, que expande no homem a tendência ao livre

pensamento. Aliás, declara o mesmo filósofo que isso deve ser considerado,

inclusive, por governantes, que devem entender o homem em sua dignidade, não

como mero cumpridor de leis. Como resultado prático dessa situação, Kant criou um

princípio por que o homem pudesse se pautar em suas decisões.

Para que se efetive a formação ética, é imperioso reconhecer que ela ocorre

no plano da escolha, ou melhor, ela se apoia na liberdade de o agente optar pela

melhor ação, o que dependerá sobremaneira do desenvolvimento de um sistema de

valores que o oriente à retidão da ação. Mas valores pressupõem a existência de um

conjunto de regras – tanto no contexto familiar quanto no plano social – que indique

e garanta ao indivíduo ponderar nas contingências a melhor ação.

Nesse sentido, Dallari (1996) declara que não basta a existência isolada de

regras. Além da cobrança de seu cumprimento, regras instam que haja justificativas

claras e abrangentes para a sua razão de existir, devem elas permitir que sejam

questionadas, revisadas, se preciso for. Para tanto, é necessário tolerância,

desenvolvimento da comunicação interpessoal e espírito crítico, além de se exigir

prudência, no sentido de que, quando determinada regra não mais se lhe aplique, o

indivíduo possa ser capaz de, por si mesmo, agir com eticidade.

Conquanto a Ética venha conquistando cada vez mais espaço temático na

educação, segundo Valle (2001), seja qual for o motivo dessa conquista, já era

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Capítulo 5. Ética e Educação 146

tempo de se questionar a superficialidade com que a ciência vem sendo tratada. A

questão é que se está a exigir o ensino da Ética numa realidade em que ela parece

se esvair. Ao mesmo tempo, há de se ter em conta que ela própria resulta da

realidade social vivida em certa época. Fica evidente, portanto, concluir que a Ética

e a realidade social se contrapõem.

Nesse encontro conturbado de valores muitas vezes opostos, ou mesmo

paradoxais, a ação educacional tem um papel marcadamente importante : pensar

sobre o agir e agir diversamente aos valores que a sociedade apresenta de forma

superficial, e até inconsequente.

Refere a autora que, com efeito, existe uma incongruência formal e lógica em

pretender socializar crianças para valores de fato inexistentes na sociedade, o que é

perceptível na falência de mitologias e no controle social que, embora se ancore na

autonomia, não apresenta resultado eficaz e significado como valor social. Decorre

daí a sociedade esvaziada de sentido no que concerne à própria autopreservação.

Nesse contexto, tal como se verifica hoje, a formação ética se exibe ao

mesmo tempo como aporia e verdadeiro enigma, o que impele muitos professores a

acolher as diretrizes educacionais como uma exigência legal, como refere Valle.

Na abordagem temática aqui em questão, a grande dificuldade em tratar as

diretrizes educativas – que, em verdade, são de natureza indicativa, reflexiva e

interpretativa –, constitui-se no fato de retirá-las do discurso e efetivá-las, de modo

que venham ser entendidas em seu propósito e aplicadas na prática de ensino.

A esse respeito, pondera Valle:

Ocorre que, no termo de todas as injunções legais atualmente fixadas, o grande enigma educacional – cuja elucidação requer, justamente, a máxima atenção à autonomia do professor – acaba por se reduzir a uma extensa lista de jargões e palavras da moda, de afirmações em sempre coerentes entre si, ainda que harmoniosamente dispostas de modo a lembrar que o professor “deve” se mostrar à altura de determinações que não ajudou a construir, mas que deverá aplicar. (VALLE, 2001, p. 177).

Assim como a Ética, a Educação não é uma atividade isolada: só pode ser

concebida na prática do indivíduo inserido numa sociedade, porquanto o indivíduo

assume uma maneira de ser e comportar-se por meio dos costumes adquiridos no

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Capítulo 5. Ética e Educação 147

seio do contexto social. Cada sociedade passa valores, normas, costumes e práticas

que influenciam na constituição dessa segunda natureza do ser humano – o ethos.

Faz-se evidente que a associação entre Educação, Ética e Política, ocorre na

própria atividade educacional, visto que seja esta uma atividade coletiva. Por sua

vez, a Ética se apresenta como maneira habitual de um indivíduo se comportar na

coletividade, inserido na vida em sociedade que possui valores, normas e costumes

compartilhados. Valle corrobora essa simbiose de que se tratou:

Por isso, a força dogmática, o caráter quase sagrado de que se revestem ao serem transmitidos de geração em geração. Definindo o próprio modo de ser de cada sociedade, de sua manutenção parece depender a sobrevivência de todo edifício social. (VALLE, 2001, p. 178).

Não obstante, à escola sempre coube a responsabilidade de formação

integral das pessoas, como menciona Valle (2001, p. 177): “[...] a formação ética dos

futuros cidadãos foi o primeiro, e foi também o mais constante sentido atribuído à

ação educativa [...]” Na condição de educação formal movida por interrogações,

Ética e Política se entrelaçavam: “Tornada atividade social explícita e refletida, a

educação se faz instrumento de construção de uma nova polis – de realização da

obra política, pela formação ética dos futuros cidadãos.”

O direcionamento das ações por meio de regras, leis e normas são

fundamentais ao convívio social desejável; no entanto, não são elas suficientes nem

mais valorosas que uma boa formação, que, nas contingências da vida, tornam-se

alicerce seguro, para as decisões acertadas e, nos momentos mais difíceis e

conflituosos, possa prover a pessoa de sabedoria para escolher a opção mais

acertada, como nos aponta Aristóteles.

Como declara Valle é raro ocorrer de a ética ser desafiada; contudo, seus

valores devem ser compreendidos, porque se permita a crítica a eles.

Por conseguinte, é na comunidade que se forma o futuro cidadão, em quem

valores e ensinamentos éticos são infundidos por meio da repetição das ações e

pelo hábito. Recorrendo ainda à citação de Valle, ancorada em Aristóteles, constata-

se que, se depende da prática social, a maior parcela de responsabilidade incide,

dessa maneira, sobre cada cidadão. Como argumenta a autora:

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Capítulo 5. Ética e Educação 148

[...] essa formação prática – realizada por meio da imitação de modelos também pelo exercício continuado de valores – deve ser tarefa de toda a sociedade, isso significa que cada cidadão deve poder ser dado como modelo, e que toda a prática social é um exercício de cidadania. Em outras palavras, admite-se não somente que uma intensa unidade funda a comunidade, mas também a igualdade ética de todos os cidadãos. (VALLE, 2001, p. 181).

Costumes dizem respeito à ação do indivíduo e são adquiridos mediante a

vida em sociedade, o que implica reconhecer o papel que desempenham na

formação de valores, para a qual concorre o esforço conjunto da família, da escola e

da sociedade – cada contexto influenciando, interatuando e intervindo nos demais.

Particularmente cabe à escola, enquanto órgão formador, evidenciar aos

indivíduos, tanto aqueles que ensinam quanto aos discentes que estão em formação

o papel social que desempenham na formação de valores.

Não obstante, como já se constatou anteriormente pelo entendimento de

vários autores, é de um esforço particular que decorre o resultado positivo

concernente à educação. Por isso, no plano de valores, recomenda-se o exercício

contínuo do aprendizado, visando à competência do ato de efetivar escolhas

adequadas, corretas e satisfatórias. Aprender a escolher é um aprendizado que se

perpetua ao longo da vida humana. A ninguém é dado eximir-se de decidir: a cada

dia, a cada instante, bem ou mal, o ser humano se obriga a decisões.

Nesse ponto se exprime o caráter formativo da Ética e o motivo por que essa

ciência vem reconquistando patamares de importância, necessidade e valor para a

sociedade atual. Daí a preocupação de estudiosos em compor o campo da Ética “[...]

não como um dado natural e essencial, mas, sobretudo como de uma experiência

aprendida, acumulada e pedagogicamente construída.” (BOTO, 2001, p. 123).

Ainda que a escola não seja a única instituição a desenvolver valores e

atitudes, tudo o que acorra intramuros ou extramuros é de relevância fundamental

no que respeita à formação humana. Como o entendeu Carvalho (2002), o papel da

instituição escolar é decisivo na tarefa de iniciação de jovens no mundo público de

valores e de princípios éticos, cujo êxito depende de um esforço conjunto de toda a

instituição e em que cada professor, além de desempenhar sua função específica,

representa um agente institucional comprometido com uma série de valores que se

traduzem em responsabilidade e atitudes educativas adequadas ao propósito de

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Capítulo 5. Ética e Educação 149

formar integralmente cada educando sem distinção.

Uma educação assim personalizada requer nos professores que a praticam

algumas atitudes concretas, e não se trata aqui somente de serem eles eruditos,

experientes ou eloquentes. Pois como nos dá a ensinar Aristóteles que não é uma

questão de conhecimento ou de opinião, mas que é preciso saber dominar as

paixões antes de tudo para poder exercitar a razão na escolha adequada, pessoas

que não sabem utilizar do conhecimento ou fazem apenas uso da linguagem própria

do conhecimento não significa mais do que declamações de atores em cena, como é

próprio dos incontinentes, aqueles que se deixam dominar pelas paixões.

Com efeito, é por meio dessas atitudes concretas, que um determinado

professor se converte em um educador competente. Importam as suas atitudes

profundas de significado, seus sentimentos altruístas, e não apenas sua orientação

teórica: seus procedimentos metodológicos, suas técnicas e recursos didáticos têm

menor importância que suas atitudes. Quando o educador posiciona os discentes

em contato direto e real com os problemas da vida, eles certamente desejam

aprender, crescer, descobrir, criar e conviver bem. Sua função consistirá em

desenvolver uma relação pessoal com os educandos e subsidiar recursos para criar

um clima tal que permita o desenvolver dessas tendências espontâneas, numa

relação de confiança.

Na tentativa de desenvolver e promover essa pedagogia que persegue a

formação integral do homem, numa perspectiva humanista, ética, espiritual,

personalista e comunitária, política e social, o tema da atitude do professor/educador

é de relevância capital. Embora sejam muitas as atitudes fundamentais do educador,

pode-se agrupá-las essencialmente em três, sob o ponto de vista operacional:

confiança, respeito e acolhida. Até certo ponto, essas atitudes correspondem

àquelas esperadas pelos profissionais atuando futuramente na área da saúde.

Ao se tratar de formação ética, há de se desejar que o professor proceda com

eticidade. Em contrapartida, todas essas atitudes do professor, de fato, vão provocar

nos alunos a vida sendo verdadeiramente vivida, o entusiasmo por seu trabalho, a

concentração, o juízo crítico, a serenidade diante das adversidades, o desejo e a

facilidade de proceder a escolhas acertadas, a expressão da verdade.

Ainda concernente à atitude do professor, seria louvável que ele propusesse,

no currículo, temas que discutam valores humanos, os interesses presentes no

desenvolvimento político e socioeconômico, temas polêmicos que suscitem

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Capítulo 5. Ética e Educação 150

interesses porque são pertinentes à área de estudos.

Uma vez que começamos a nos descobrir sujeitos de um processo político,

exercendo de nosso papel de cidadão, de pessoas que podem mudar realidades

desiguais, injustas, não mais servimos a interesses de poucos num processo

individualista em que somos envolvidos, posto que se julgue estar cumprindo

apenas uma função técnica.

Conforme nos alerta e menciona Saviani (1996, p. 223), “A superação dessa

ingenuidade se dá através da tomada de consciência dos limites que a situação

objetiva impõe às tarefas que são desempenhadas. E o processo de

desenvolvimento da consciência crítica passa, inicialmente, pela destruição da ilusão

do poder.” Desse modo, de suas palavras deduz-se que a assunção da consciência

crítica acompanhada de frustração pode ser interpretada pela consciência dos

limites objetivos.

Por sua vez, insta-se que a universidade cumpra o papel de mostrar

contradições e posicionamentos para formar profissionais críticos. Para isso é

necessário associar o conhecimento técnico ao humano, reconhecer os limites do

saber teórico e científico. Urge que o estudante não apenas aprenda as técnicas

necessárias para atendimento em saúde, mas reconheça seus limites, questione

condutas, modifique posturas, humanize sua ação, por exemplo, não utilizando o

saber como poder, mas reconhecendo o quanto pode se aprender com o outro,

melhorando a sua relação interpessoal, através do diálogo com equipe, colegas e o

paciente. Assim sendo, na intersubjetividade, melhorar sua tomada de decisão e

ação.

O ensino da Ética na área da saúde, como já se tratou aqui, atualmente está

incorporado à Bioética, uma disciplina criada com pressuposto e intento

interdisciplinar, cujo enfoque não pode prescindir do amplo e mais completo conjunto

dos temas, indo ao encontro do planejamento desejado nos currículos, de uma

formação que integre cada vez mais conhecimentos, além de exigir mudança de

comportamento de quem ensina e do que se espera no tocante à formação dos

novos profissionais, novos entendimentos, atitudes e comportamentos no

desempenho de sua função. Isso prefigura a necessidade de novos modelos de

ensino. A relação profissional-paciente exige um comportamento mais humano e

compreensivo por parte daquele. As instituições de ensino devem e estão

preocupadas com esse âmbito na formação de médicos e enfermeiros, uma vez que

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Capítulo 5. Ética e Educação 151

a realidade mostra que ainda pouco se oferece nesse sentido.

Com o advento da Bioética, o ensino da Ética entrou em evidência, maior

número de pesquisas e artigos passou a ser publicado, tomou novos caminhos, em

consonância com a proposta da Bioética, começou-se a questionar e buscar formas

mais adequadas para obter resultados melhores na formação dos profissionais da

Área da Saúde.

Rego, Gomes e Batista (2006) defendem o ensino da Bioética como tema

transversal nos cursos de Medicina. Discutem a ineficiência verificada apenas nas

mudanças pedagógicas, na forma de ensino. Advertem a que haja resultados mais

razoáveis na formação moral e ética dos estudantes, o que demanda que todos os

professores estejam imbuídos deste propósito. A própria instituição responsável pela

graduação deve deixar claro seu compromisso com a formação moral, explicitando

valores e incitando à participação democrática de todos no cotidiano acadêmico.

Enfatizam aqueles autores e relatam estudos que abordam a importância do

ambiente de ensino:

O ambiente democrático de uma escola onde os estudantes são respeitados e considerados como indivíduos e cidadãos proporciona melhores possibilidades de oferecer um tipo de experiência aos discentes que contribuirá decisivamente para o seu processo de desenvolvimento da competência moral. (REGO; GOMES; BATISTA, 2006, p. 488).

A Bioética recomenda a interdisciplinaridade na abordagem, uma vez que,

quanto maior abrangência alcançada nas discussões, melhor poderia ser a análise

de situações e assim a escolha da ação a se proceder.

Nesse sentido, Morin (2000, p. 53), tem argumentado acerca da totalidade na

educação, contudo, não menosprezando a especialidade, propondo que se evite ao

máximo a fragmentação do conhecimento. Afirma que, para enfrentar a difícil tarefa

da compreensão do homem, é preciso conciliar esforços conjuntos, não frágeis, de

filósofos, psicólogos, sociólogos, historiadores etc., promovendo a iniciação à

lucidez. Ressalta que esse esforço deve ser incansável: [...] seria preciso demonstrar

que a aprendizagem da compreensão e da lucidez, além de nunca ser concluída,

deve ser continuamente recomeçada (regenerada).

Os educadores, diretores ou professores, devem reconhecer o local

Page 154: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 5. Ética e Educação 152

epistemológico dessa teoria ética em relação a outras disciplinas, além de

considerar qual o seu papel como educador com relação a essa questão, visto que

professores muitas vezes não vêem com clareza a dimensão e o objeto da formação

humana, mais especificamente da Ética. Consequentemente, não avançam para a

abordagem interdisciplinar necessária, perpetuando muitas vezes a discussão

empobrecida, no senso comum, sem subsídios para alcançar a formação que se

pretende. Como nos indica Aristóteles: um projeto ético só é possível se houver uma

organização política que a favoreça.

Enfim, concorda-se com Freire (2000, p. 91) quando afirma: “Se de um lado, a

educação não é a alavanca das transformações sociais, de outro, estas não se

fazem sem ela.”

Em sua Ética a Nicômaco – obra em que se apoia a abordagem feita neste

estudo, além do mais porque se exibe fundamental e sistemática como nenhuma

outra, em se tratando de Ética –, Aristóteles aponta que a educação é a essência

onde se assenta a formação do homem virtuoso, cuja potência se atinge em sua

fase adulta, madura de caráter. Destaca-se que, na investigação levada a efeito

sobre a ação, Aristóteles expõe que a escolha é a causa eficiente da ação e que sua

origem se assenta no raciocínio com vistas a um fim – o Bem. A boa ação inexiste

destituída do concurso entre o intelecto e o caráter.

Parece profícuo resgatar, pois, a ética aristotélica nas reflexões acerca da

formação moral como motivo de preocupação no ato de educar desde a infância,

sobremaneira, como o próprio Aristóteles estabeleceu, retomar essa preocupação

com a formação da disposição para o Bem, orientador das escolhas racionais. Essa

preocupação encaminha-se neste estudo para a formação profissional do indivíduo

jovem, momento em que ganham relevância extraordinária a consolidação de certos

valores e o reposicionamento em face a eles.

É certo reconhecer que nem todos os indivíduos conseguirão atingir o máximo

de sua capacidade racional e ética. Não obstante, também é certo e legítimo

reconhecer que àquele que foi educado com a finalidade de desenvolver a

disposição para agir virtuosamente, valerá o esforço para conduzi-lo à vida

virtuosa/ética. Relativamente a suas ações, trata-se de formar a práxis do agente

moral.

Há que se ter firmemente a preocupação com a formação ética dos

estudantes, descobrir a melhor forma de atingir o seu desenvolvimento e as

Page 155: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 5. Ética e Educação 153

condições necessárias para isso.

5.3 A contribuição de Aristóteles para a formação ética

Inevitável não se recorrer a Aristóteles, uma vez que apresenta os

argumentos essenciais que conduzirão à reflexão na instituição de ensino dos

parâmetros da formação ética do médico e do enfermeiro.

O homem é dotado de Razão, característica que o difere do animal. Em

Aristóteles verifica-se que a Razão se divide em duas partes – a científica e

calculativa. O homem é dotado do lógos, o que lhe confere discernimento e

possibilidade de escolha, que, para ser correta, é determinada pela disposição do

agente. Educar para que se forme este tipo de disposição (virtuosa) deve ser a

ocupação primeira da Ética – o âmbito das ações. A virtude moral é a disposição de

caráter relacionada à escolha, um desejo deliberado consoante com a razão, na

concorrência do desejo e do raciocínio, de forma que o desejo deva buscar o que o

raciocínio delibera e o orienta.

A Razão concernente ao domínio prático possibilita ao agente moral calcular

a melhor ação dentre as ações possíveis. O lógos, aliado a outro elemento, que é o

desejo, engendram a escolha das ações não necessárias, ou seja, daquelas que

não poderiam ocorrer de outro modo, diferentemente das ações deliberadas, não

acidentais, que se encontram no domínio das contingências – a esfera ética – estas

sim ocorrem de modo variável (Pereira, 2006).

Agir atendendo ao lógos correto [...] como é próprio ao phronimos, seria agir de um modo possível, agir pela necessidade1 determinada pelo lógos correto, que possibilitaria a realização (de modo não acidental) da única ação virtuosa dentre as várias ações possíveis. (PEREIRA, 2006, p. 20).

Pereira evidencia a possibilidade de haver um domínio comum entre a

1 O conceito de “Necessário” apresenta três sentidos: aquilo sem o qual não se pode viver, ou não se poderia vir

a ser; aquilo que é forçoso, como o que é contrariamente à condição de escolha, e, por último, aquilo que não

pode ser de outro modo. Se prevalecesse apenas a necessidade absoluta, não haveria a potencialidade dos

contrários, ou melhor, a condição de contingência, e assim se esvaziaria a esfera prática, onde se situa o

espaço de o homem agir.

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Capítulo 5. Ética e Educação 154

potência de fazer o bem e a potência racional. Ao que tudo indica, o âmbito de cada

das potências não se esgota nesse domínio comum. No entanto, encontram-se

subsídios de que a potência racional não se encerra na esfera da necessidade,

como se verifica neste fragmento:

[...] o que caracteriza a potência racional é justamente a possibilidade de escapar da esfera da necessidade mediante a capacidade de escolha da ação a ser realizada. O médico, por exemplo, em determinada situação pode tanto curar como causar a doença. O que lhe confere essa capacidade é justamente o lógos (1046b 20), que permite a ação não necessária no domínio da contingência. (PEREIRA, 2006, p. 19).

Segundo Pereira (2006), algo que é potência pode não se atualizar, isto é, se

desenvolver. Não obstante, considerando que, do ponto de vista ético, quando o

processo educativo encaminha o homem a bons desejos, acompanhado do lógos,

possibilita-se a melhor escolha, que adquire a sua melhor forma – a excelência ou

virtude da ação.

Aristóteles expõe no conceito de potência a ideia de movimento, atribuindo ao

homem a possibilidade de sair de um estado para outro, e, quando atinge seu télos

atualiza-se: “...quanto mais algo está para se atualizar, quanto mais próximo está de

seu fim, tanto mais podemos afirmá-lo como sendo bom ou belo (PEREIRA, 2006, p.

15). Dessa forma, em sua melhor forma, desempenha sua função de acordo com a

virtude – disposição do caráter.

Considera-se potência de três modos, segundo Pereira (1996) apud Tricot e

Ross: o primeiro não recebe muita atenção de Aristóteles, ao passo que os outros

dois se apresentam fundamentais para a compreensão dos referidos conceitos, que

não poderiam ser reduzidos a uma unidade. Um sentido lhe é dado em relação ao

movimento e o outro “para além das coisas.” Particularmente, enfatizar-se-á aqui a

atenção dirigida ao sentido de movimento, que está relacionado à acepção física da

potência – referente ao movimento.

Em Metafísica, Aristóteles estabelece o primeiro significado de potência, dado

como o princípio de mudança ou movimento, inerente à mesma concepção de

potência, “[...] quando o princípio da mudança está na própria coisa que é mudada

distingue-se e diferencia-se sempre (e estruturalmente) dela, por algum aspecto.” (p.

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Capítulo 5. Ética e Educação 155

255). No segundo, encontra-se o princípio pelo qual a coisa é mudada,

passivamente, seja para melhor mas movida por outra, ou por si como outra, à

semelhança do que ocorre ao médico enquanto enfermo. O terceiro significado

respeita àquilo que tem a capacidade de mudar em todos os sentidos, ao passo que,

no quarto, tem-se a capacidade de mudar para melhor e, no quinto, constitui-se da

capacidade de se conservar e não se corromper.

Pereira (2006) investiga, numa vertente ética, o conceito de potência a partir

da relação da Ética a Nicômaco com dos livros Δ e Θ da obra Metafisica de

Aristóteles, uma vez que desejo e o lógos pertencentes à potência compõem a

capacidade de fazer algo bem, num dos sentidos da acepção física da potência.

Não obstante, segundo explanação de Pereira (2006), toda a discussão gira

em torno do que Aristóteles concebeu como potência – fonte original da ação – e

ato. Admite-se que potência seja a capacidade ou caráter daquilo que pode ser

produzido, ou pode produzir-se por si mesmo, mas que ainda não existe

efetivamente. Trata-se, pois, algo que é em potência vir a ser, efetuar-se em ato. Em

outras palavras, considera-se que algo que jaz em estado virtual, em potência,

possa vir a atualizar-se. Exemplifica-se com o caso de um homem que,

efetivamente, não esteja vendo algo, mas, porque não é cego, possui ele em

potencial a capacidade aplicada à realização do ato de ver aquilo, bastando que

dirija àquilo sua ação de potência de ver: “Faz-se necessário, então, que o ente

venha a ser, não do que não existe ou existe absolutamente, o não existente ou

existente em ato, mas do que existe virtualmente, em potência, ou então de um não

ente em ato.” (Met. Δ1069b14).

Aristóteles denomina potência racional àquelas capacidades adquiridas

mediante o exercício ou aprendizagem doutrinal, como se constata nesse fragmento

“As potências adquiridas, para serem possuídas, exigem um precedente exercício

da atividade; as potências congênitas e as potências passivas, ao contrário, não têm

necessidade dele.” (Met. 1047b31-1048a24).

Em se tratando da potência racional, nesse princípio de movimento existe a

possibilidade de produzir bem algo, ou de vir a ser algo bom. A motivação ou o

desejo do sujeito e a sua escolha racional determinam a atualização – aqui

entendida em sua acepção respeitando àquilo que está em ato, oposta ao que é

virtual ou potencial – de um de seus extremos, porquanto não se pode desejar

coisas opostas, ou vir a sê-lo simultaneamente, na condição de ato.

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Capítulo 5. Ética e Educação 156

Conquanto o homem nasça dotado da potencialidade que pode conduzi-lo a

extremos opostos – vir a ser pessoa virtuosa ou viciosa –, esse dote inato deverá ser

exercitado e desenvolvido por meio de ações tais, que se alcance a disposição firme

e constante para a prática do Bem. Uma vez formada essa sua disposição ou desejo

de pôr-se a agir (ou atuar), sustentado pelo lógos, o homem calcula a melhor ação

no domínio prático. Além disso, porque possui a capacidade de mover-se de um a

outro estado, dependendo da educação e do hábito, o homem pode adquirir uma

boa ou má disposição para agir.

Concernentemente à Ética, a ação – como certo tipo de movimento –, por

meio da escolha confere ao homem a potencialidade para a concretude da ação

conforme à virtude – pelo seu exercício – lhe favorece a potencialidade para a ação

virtuosa, que não é ocasional.

Aristóteles não aborda especificamente a formação, ou a educação formal tal

como é conhecida hoje. Não obstante, trata dos fundamentos da ação e fornece

subsídios para o conhecimento e orientação quando se propõe a reflexão a respeito

da formação ética nos dias contemporâneos. Dedica sua Obra Ética a Nicômaco a

investigar a ação do homem, estabelecendo a natureza dessa ação, como se

origina, quais são os elementos que a compõem. Nesse sentido, distancia-se da

concepção platônica, porquanto considera além do conhecimento a experiência

como alicerce da sabedoria prática.

Por não ser dado certo modo de agir por natureza, pressupõe-se, desse

modo, que há de haver uma intencionalidade. Assim sendo, resta a certeza da

possibilidade humana de obter a excelência da ação, fundando-se no fato de ser ela

construída e desenvolvida por meio da educação. Com efeito, o indivíduo deve ser

educado, de modo tal que ao efetivar escolhas adequadas no âmbito das

contingências – onde absolutamente não se encontram evidentes – o faça,

coincidindo desejo e reta Razão, demandando para isso que o homem seja

orientado enquanto transcorre seu período de formação.

Aristóteles explicita categoricamente que toda criança não deva prescindir da

orientação de um tutor, porque possa aprender a agir bem. Acrescenta o fato de o

jovem ainda não ser bom plenamente porque lhe faltam experiências. Com efeito, o

filósofo deposita na orientação de sua ação e experiência o ponto de partida e o

núcleo da formação do caráter do homem. Decorre daí a importância vital para a

formação ética do indivíduo a contribuição do meio em que é formado e a orientação

Page 159: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 5. Ética e Educação 157

de sua conduta, ademais permanece sob a responsabilidade da família, de leis da

escola. O que mais tardiamente, já adulto, possa a responsabilidade a ser imputada

ao próprio agente moral, que efetiva as escolhas.

Em Aristóteles, constata-se que a Ética se verifica no domínio das

contingências, em cujo sentido opera a Razão que, de sua parte, delibera e calcula o

justo meio entre o excesso e falta – prudência –, em consonância com a Reta

Razão, com a sabedoria prática. E o que está de acordo com a sabedoria prática é a

virtude. Deve ser o agente moral educado no hábito para que adquira certa

disposição – virtudes morais – que o oriente à melhor escolha. A escolha é a causa

eficiente da ação, e deve ser impelida pelo desejo firme do alcance do Bem. O Bem,

por sua vez, é causa final da ação, é guia da escolha e orientador para se alcançar a

eudaimonia.

Em consonância com os avanços científicos e pedagógicos, o currículo deve

possibilitar o desenvolvimento de comportamento moral, compreender os valores

essenciais para a preservação da vida, de não se eximir de trazer continuamente à

discussão o cotidiano e os conflitos da vida e da prática profissional, possibilitando o

exercício do Bem não somente para si mesmo ou para aquele envolvido diretamente

na situação, mas para o todo. Trata-se, pois, de uma formação ao mesmo tempo

personalizada e coletiva, porquanto, como ponderou Aristóteles, vise ao Bem

particular tendo em vista o Bem geral.

Retoma-se a exegese aristotélica, agora com vistas à orientação referente à

formação ética do estudante de Medicina e Enfermagem. Nesse modelo, a ênfase

incide na formação da disposição no profissional, para que ele se capacite a agir

satisfatoriamente ou desempenhar-se no trabalho, alcançando a excelência em sua

ação. Apenas aquele que pondera bem pode igualmente criar regras que, de fato,

viabilizem nos seus pares o desenvolvimento de atitudes críticas e reflexivas

direcionadas ao exercício do perene agir virtuosamente. Em contrapartida, quem

não foi educado e formado com o firme propósito de agir bem poderá exercer má

influencia sobre os outros, contagiando-os com seu próprio modo de ser homem

vicioso.

Não raro se apresentam ao Profissional da Saúde impasses, dilemas e

questionamentos no cotidiano, muitas vezes complexos e polêmicos, outras mais

simples do cotidiano. No entanto, adquirem valiosa importância para quem se acha

envolvido na situação e espera do profissional uma postura que lhe inspire

Page 160: Campus de Marília CÁSSIA REGINA RODRIGUES NUNES O BEM

Capítulo 5. Ética e Educação 158

confiança, ou uma resposta que encaminhe à melhor solução para seu problema.

De acordo com Aristóteles, tudo o que o ser humano faz visa a uma

finalidade. E a causa final do homem é a boa vida, o sumo Bem. Qualquer coisa que

o faça atingir esse propósito é uma conquista que lhe é satisfatório e saudável. Para

alcançar a eudaimonia faz-se essencial viver uma vida virtuosa. O homem virtuoso

assume a felicidade como ideal que guia e mobiliza todas as suas ações. Deseja-a

em virtude de tê-la por escopo para obter o bem supremo, de forma que “[...] é feliz

quem age bem.” (Zingano, 2008, p. 21). O agente moral efetivamente reconhece as

razões que qualificam o que deva fazer e pelas quais se sente motivado a exercitar

ambas as fontes de virtude – as do intelecto e do caráter –, porque se transforme em

ser humano excelente.

Na óptica aristotélica, as virtudes de caráter não podem ser ensinadas, são

adquiridas pelo próprio indivíduo. No entanto, regras e modelos lhe permitem a

possibilidade de se compatibilizar com os princípios morais. Provendo-o de regras,

ou sendo modelo virtuoso, o tutor poderá assistir o educando no processo de

aquisição de virtudes. Por sua intervenção, ao ensinar-lhe regras, é possível fazê-lo

engajar no raciocínio moral, de modo que valorize e dê prioridade aos elementos

que deverá considerar num julgamento moral. Exemplifica-se : na condição de valor,

a justiça não é ensinada. Entretanto, o fato de o tutor mostrar-se justo ante o

educando, ou ensinar-lhe regras, ou ainda, numa oportunidade de decisão, fornecer-

lhe pistas ou orientação de justiça, é bem possível que a criança/o jovem aprendam

a ser justos. Ressalta-se que, segundo Aristóteles, a nenhum ser humano é dado

alcançar seu propósito de vida, sem que exercite as virtudes. Como desenvolver

uma disposição direcionada à ação virtuosa e obter a virtude de caráter constitui,

pois, um desafio imane para o homem.

Pode-se extrair da ética aristotélica a premissa básica: a formação é

fundamental para uma vida ética, e é preciso haver pessoas boas que orientem o

indivíduo a agir moralmente. Considera-se determinante a função da família e dos

legisladores na orientação da disposição de caráter. Afirma o mais renomado entre

os pensadores da Ética que possuir um projeto político é fundamental, sem o qual

não se efetiva o ético, na orientação do agir : “[...] o homem que foi bem educado já

possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade. Quanto àquele

que nem os possui, nem é capaz de adquiri-los [...]” (EN, 1095b7).

Desse pensamento se conclui que nenhuma forma de excelência ética nasce

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Capítulo 5. Ética e Educação 159

naturalmente com a pessoa. Não se pode mudar aquilo que nos é dado por

natureza, como o que acontece à pedra ou ao fogo: não podem ser habituados a

viver de outra maneira, realizar-se-á sua função segundo a sua natureza. Em

contrapartida, a excelência na ação humana pode, efetivamente, sim, ser alcançada,

para uso e atualização de sua função singular – a Razão.

Procede mais uma vez insistir que são determinantes do êxito, de falácias ou

mesmo fracasso no processo de formação o sistema político-educacional, as regras,

as decisões tomadas, as diretrizes metodológicas, a organização institucional, o

perfil dos educadores, o meio em que o estudante se insere, por exemplo. Tudo isso

deve ser considerado por reflexões, tudo muito bem planejado, investigado, posto

em discussão. Caso contrário, dado que esses fatores condicionam a formação

humana e o futuro exercício de sua profissão, pode-se comprometer e enfraquecer o

processo de habituação do educando, ou expor a risco a essência por que ele

desenvolve a disposição para agir virtuosamente, ou seja, para Bem; ou

viciosamente, perenizando atitudes indesejáveis – eis o tipo de profissional que não

se espera ver atuando no futuro: irresponsável, individualista, inconsequente,

desrespeitoso, alienado. Ademais, um mundo em que não se quer viver:

selvagem/incivilizado. É o próprio homem que se qualifica em função dos tempos de

formação e de sua experiência.

Um exemplo de que se pode valer para elucidar esse pensamento aristotélico

é o de que, se a criança aprende a não mentir e adquire o hábito de ser sincera,

muito provavelmente em quase todas as situações não mentirá, a não ser que a

mentira seja um bem maior que a verdade em determinada situação. Assim também

o indivíduo saberá qual atitude tomar uma vez adulto, e ser capaz de decidir a

melhor atitude a ser tomada em determinada situação, desde que desenvolvida a

disposição para a virtude, que o farão bem utilizar a faculdade calculativa, capaz de

decidir nas diversas situações a melhor escolha – atitude ética. Agirá virtuosamente,

se foi habituado nessa disposição; se habituado a agir viciosamente, assim o fará.

Nas atividades técnicas, delibera-se muito mais, uma vez que, sendo menos

exatas que as de natureza exclusivamente científicas, comportam maiores dúvidas.

É o que acorre na Medicina, por exemplo, em que se delibera ininterruptamente,

toma-se decisões em busca de solução para cada caso, considerado na sua

especificidade.

Posto que existam padrões subsidiados pelas ciências, há que se convir que

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Capítulo 5. Ética e Educação 160

cada caso é um caso, pois inexiste um corpo, ou organismo único. Pode inclusive

ocorrer que um mesmo corpo reaja diversamente em diferentes períodos de tempo.

Não importam todos os avanços científico-tecnológicos, todo o conhecimento

conquistado pelas Ciências da Saúde: não se garante que esses padrões venham a

se aplicar a todos os pacientes, indistintamente.

Por outro lado, importa também que o profissional saiba fazer bom uso dos

avanços produzidos. Àquele que delibera bem no desempenho de suas funções,

denomina-se virtuoso, porque tende a alcançar o Bem. Isso faz com que possa

sentir-se plenamente realizado, porque decide com prudência e contribui, com a boa

realização de sua função, ainda que em pequena parcela, para o Bem de outrem.

Segundo Aristóteles, o homem que delibera bem o faz corretamente e tende a

alcançar o bem. Na área da saúde, não raras são as ocasiões em que não se

encontram respostas prontas. Na impossibilidade de deliberar a respeito de

determinados temas e situações, Aristóteles encontra certamente a saída, ao

asseverar que:

Delibera-se a respeito das coisas que comumente acontecem de certo modo, mas cujo resultado é obscuro, e daquelas em que este é indeterminado. E nas coisas de grande monta tomamos conselheiros, por não termos confiança em nossa capacidade de decidir.” (EN,1112b8).

Dessa forma, considera-se que durante seu tempo de formação, o estudante

da área da Saúde, por certo, aprenderá e treinará muito para efetivar as atividades

próprias da profissão, tanto técnicas quanto moral. Não se pode negligenciar o fato

de que ele também irá lidar com a vida das outras pessoas, o que implica que elas

podem vir a ser afetadas por atitudes e decisões tomadas pelo profissional. Decorre

daí a imprescindibilidade do conhecimento científico e ético na consecução do bom

uso de seu aprendizado, efetivado nas ações.

A busca da vida ética – a ser perseguida por toda vida – é o melhor modo de

vida; por isso deve ser motivo de preocupação, e não deve ser lançada à sorte. A

boa vida, uma vida de atividades perseguindo a excelência na ação – é resultado de

uma vida virtuosa, aprendida, não fortuitamente, mas intencionalmente: “[...]

mediante uma certa espécie de estudo e diligência [...]” (EN, 1099b20). Conforme

assevera Aristóteles, relaciona-se essencialmente à realização da ação virtuosa – à

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Capítulo 5. Ética e Educação 161

excelência: “Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo

muito imperfeito.” (EN, 1099b24). Isso remete à omissão, ou à pouca preocupação

que, muitas vezes, tem sido dedicada à formação ética nos currículos, abandonando

a formação nesse aspecto à mercê da sorte, o que pode significar deixar nosso

futuro à completa irresponsabilidade.

O bom agente moral sabe normalmente como agir corretamente, escolhe a

melhor das opções, sabe calcular o melhor e faz o que é mais apropriado a um

homem que usa sua capacidade raciocinativa e foi educado a realizar a melhor das

escolhas, que encontra-se na mediania. À escola cabe o mister fundamental de

guiar o indivíduo a desenvolver as suas potencialidades na direção a areté, ciente de

que: “[...] não é fácil ser bom, pois em todas as coisas é difícil encontrar o meio-

termo [...] eis o que não é para qualquer um e tampouco fácil. Por isso a bondade

tanto é rara como nobre e louvável.” (EN, 1109a24). Indicando um caminho,

Aristóteles acrescenta: “[...] se não dermos ouvidos ao prazer, correremos menos

perigo de errar. Em resumo, é procedendo dessa forma que teremos mais

probabilidade de acertar com o meio-termo.” (EN,1109b13).

Custa-lhe, mas é absolutamente necessário que o homem esteja preparado

para executar ações boas. As ações executadas de acordo com a excelência e

voluntariamente são por si só um gosto, quem age dessa forma não por motivos ou

circunstâncias exteriores, mas guiado pelo Bem no desejo e na Razão, estará de

acordo com aquilo próprio do homem. Por outro lado, as ações executadas por

ignorância ou não voluntariamente tendem a causar dor ou arrependimento.

Busca-se, dessa forma, como parte do processo educativo, um modo de

desenvolver no agente a capacidade racionalizada de agir bem, que, conforme

Aristóteles estabelece, é característica daquele que percebe o que é bom para si

mesmo e para os homens em geral.

Em Aristóteles, verifica-se a estreita relação existente entre Ética e Política,

fato esse que, se ignorado pela Educação, pode levar a sociedade a sua própria

falência. O que leva então o ser humano a ignorar ou negligenciar tão antigo

raciocínio lógico? Destituído do Bem, o homem é induzido à sua própria degradação

moral: perde-se sua dignidade humana, exila-se de sua condição de Pessoa.

Destina-se, pois, na contramão do que determinou Aristóteles por fundamento da

virtude moral. Se o homem não vive e convive com retidão de caráter, se não

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Capítulo 5. Ética e Educação 162

consegue educar seus filhos e a jovens, se não habitua na prática da ação virtuosa e

não toma decisões com discernimento para a prática do Bem – o que poderia

resultar na vida em sociedade mais harmoniosa e prazerosa – não há como

sustentar a vida.

Em A Política, Aristóteles expõe o pensamento de que “[...] toda cidade é

uma espécie de associação, e toda associação se forma tendo por alvo algum bem

[...]” (p. 11). Visa a um bem maior a cidade, ou a sociedade política, onde o homem

é um ser sociável por natureza. A vida em sociedade atende à necessidade de viver

e da comunicação do saber distinguir o Bem do Mal, o justo do injusto, o que se

situa sob a égide da família e Estado.

Se agir virtuosamente é agir dentro da polis, então tudo quanto ele deseja é o

que polis deseja e o que a lei deseja. A legislação tem função educativa, mas o

sujeito virtuoso não se deixa perturbar por agir conforme a lei. No caso do individuo

virtuoso, há uma coincidência de interesses, desde que a polis seja organizada. Aos

legisladores é necessário conhecimento da natureza da virtude e lhes é de interesse

que

Do ponto vista político, o homem virtuoso desfruta de mais autonomia que aquele

que não se habituou às virtudes. É-lhe facultado agir seguindo seus desejos, e

esses conformam à lei, então ele tem condições de ser feliz. Em contrapartida,

aquele que segue a lei por obrigação, por cega obediência, não pelo Bem em si

mesmo que ela enseja, não possui sabedoria prática. Àquele que possui a

capacidade de perceber o bem geral, categoriza Aristóteles, “[...] são bons

administradores de casas e de Estados.” (EN, 1140b10). Os legisladores – o homem

dedicado à política - tem obrigação de conhecer os elementos que operam na

atividade racional do homem na efetivação da boa ação. Enfim, deve o legislador

favorecer e priorizar a Ética, uma vez que a sua obrigação é ocupar-se com a boa

formação de seus concidadãos e em se tratando da Escola, daqueles que ali

desfrutam de aprendizado – trabalhadores ou estudantes.

Aristóteles afirma que, uma espécie de atividade da alma humana de acordo

com a excelência, coincide com a finalidade da ética e igualmente como propósito

da Política, a ação particular e a geral se interdependem para o alcance de uma boa

vida. Em havendo no homem certo interesse e preocupação com a Ética, por certo

ele a vincularia à interação coletiva, em seu convívio social. Da mesma forma, a

formação ética do profissional não é absolutamente desvinculada de sua formação

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Capítulo 5. Ética e Educação 163

individual, pessoal, daquele que age moralmente bem – phronimos.

O exercício das virtudes também deve ocorrer com os legisladores, aqui

destacamos a função dos gestores da instituição escolar, uma vez que sua função é

suscitar, no cidadão/estudante, bons hábitos (ações praticadas). Tomou-se aqui

esse argumento precisamente para refletir e constatar o quanto a organização e o

sistema escolar podem se ocupar, de modo orientador, na formação do estudante.

Aristóteles afirma que somos autárquicos e essa é uma condição necessária

à vida feliz, que só é possível na vida da polis, não uma polis qualquer, mas uma

vida na polis organizada. Reafirma-se aqui a organização na instituição escolar –,

para que se alcance o bem mais valioso e permanente do homem – a formação do

caráter, mais duradoura que o próprio conhecimento das ciências. Extrai-se daí que

em decorrência disto dá-se a formação e sua vida futura. Fica ao leitor um convite à

reflexão no discurso de Aristóteles:

A sabedoria prática é a disposição da mente que se ocupa das coisas justas, nobres e boas para o homem, mas essas são as coisas cuja prática é característica de um homem bom, e não nos tornamos mais capazes de agir pelo fato de conhecer as coisas sãs e saudáveis não no sentido de produzirem a saúde, mas no de serem consequência dela. Efetivamente, a simples posse da arte médica ou da ginástica não nos torna mais capazes de agir. (EN, 1143b22).

O que se espera do bom profissional é a capacidade de deliberar bem não

somente em sua vida profissional, mas assim o fazendo constantemente em

quaisquer circunstâncias. É aquele que percebe o que é bom para si e para os

homens em geral. Ademais, espera-se desenvolver, em nosso futuro profissional um

certo saber, a sabedoria prática, que é um tipo de raciocínio que o faz deliberar bem

nas contingências e agir virtuosamente, atitudes próprias do homem bom e

prudente, que no desempenho de sua função é competente, pois alcança seu

objetivo na melhor escolha: “[...] baseando-se no cálculo, é capaz de visar à melhor,

para o homem, das coisas alcançáveis pela ação.” (EN, 1141b12).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Considerações Finais 165

A barbárie dos milhões de mortes acontecidas em tragédias modernas, como

as duas grandes guerras mundiais, o nazismo, os conflitos no Oriente Médio e

outros, é estigma moral indelével na História da humanidade. O medo desesperador

de que isso possa ocorrer novamente torna-se um fantasma que assombra nossos

dias. Todavia, muitas vezes não nos damos conta de que fatos e justificativas

parecidas estão acorrendo nos dias contemporâneos. Milhões de pessoas morrem

na guerra ou de fome, na miséria humana, padecendo numa epidemia e uso de

drogas ilícitas em situações planejadas ou quase sempre com a cumplicidade

intencional de pessoas que possuem interesses econômicos individualistas. Por

conseguinte, perpetua-se a barbárie do gênero humano em todo o mundo, pode-se

dizer ainda que, de forma mais velada, existe crueldade em contextos próximos de

nós: pessoas ávidas por levar vantagens mesmo às custas do sofrimento de outros.

Estamos falando de nosso dia-a-dia, em que pessoas tomadas pelo individualismo e

imediatismo, operam estrategicamente, desejosas de poder, dinheiro e vantagens

pessoais.

Sabe-se que o Bem e o Mal estão presentes na alma humana. Não obstante,

há que se valorizar e desenvolver o que originalmente participa de sua natureza e

constitui ações desejáveis por todos – o Bem. O Bem deve ser fortalecido para que

o homem não seja conduzido ao caos da barbárie.

Na sociedade atual, as relações são mediadas por interesses individualistas,

nas quais o ser humano transformou-se em objeto, negócio, máquina, instrumento,

enfim, meio para o alcance de bens materiais num mundo globalizado e dominado

por interesses comerciais.

A evolução verificada nas várias esferas da vida no mundo não pode ser

tomada apenas considerando o prisma do Mal, tampouco como banal; entretanto,

diante do desafio de humanizar o indivíduo, faz-se necessário buscar propostas. O

momento exige um indivíduo com caráter humanizado com vistas ao Bem,

sobremaneira no que respeita ao interesse a que este estudo se volta – a formação

ética daquele que cuida de outro ser humano.

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Considerações Finais 166

A Ética procura restabelecer uma forma de equilibrar a balança: avançar

cientificamente, sem perder o humanismo. Por conseguinte, no mundo do trabalho, o

profissional da área da Saúde deve saber fazer bom uso da técnica em favor do

Bem – individual e coletivo.

A Ética é absolutamente necessária. A vida humana funda-se na existência

de pessoas boas. Os indivíduos demonstram reconhecê-lo naturalmente ou, ao

contrário, se valem da Ética em seus discursos para alcançar objetivos escusos. O

que se torna imprescindível são ações intencionais, conscientes para que caminhem

na direção do alcance do Bem.

À escola, considerada como órgão formador, assiste favorecer a seus

partícipes – não importando se àqueles que ensinam, ou se a discentes em

processo de formação – a prática de regras, hábitos e decisões que lhes orientem a

ação, e que seja da melhor forma possível: integralmente. Explorar todas as

potencialidades do indivíduo, para que ele se torne competente para questionar

valores da sociedade e saber decidir com equilíbrio racionalizado e sensatez. Da

mesma maneira, por sua vez, assiste à sociedade, por meio de normas, orientar

coletivamente os indivíduos, além de favorecer-lhes subsídios e informações,

capacitando-os a debater, refletir e analisar criticamente os costumes que, de fato,

influenciam o modo de vida das pessoas em geral.

Toda relação educativa que se limita ao ensino acadêmico de transmissão do

saber converte o educando à passividade, não se tornando ele responsável na

tarefa comum de ir configurando sua própria história, privando-o da responsabilidade

a que foi chamado como pessoa. A escola tem a função de formar o indivíduo não

apenas para realizar uma atividade, por meio de ensinamentos técnicos ou de

habilidades específicas de um ofício, de tal forma que, dependendo do desempenho

tecnicista desse ofício, poderá o indivíduo ser avaliado, de modo geral, em dois

extremos: ser profissional competente ou não. A noção de competência extrapola os

limites do mero exercício de uma atividade, senão também de uma forma mais

abrangente de como é realizada com vistas a um fim. Essa competência exige uma

formação completa, de modo que, inerente ao desempenho desse ofício o indivíduo

toma decisões que podem ser acertadas ou não, dependendo de sua capacidade de

reunir informações e calcular a melhor escolha, em seu favor e do Bem comum.

Urge que a escola adote a relação educativa que promova a capacidade de

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Considerações Finais 167

ponderar e realizar escolhas acertadas em resolver problemas, não apenas em seu

próprio proveito ou louvor, senão cujos benefícios se revertam em satisfação

pessoal, em realizá-la bem e em prol de toda a comunidade. A essa capacidade de

resolver problemas, de possuir discernimento face a situações diversas da vida

pessoal ou do trabalho, de ouvir, observar e compreender, de decidir sabiamente e

efetivar boas escolhas, Aristóteles denominou de sabedoria prática.

Afinal, supõe-se da escola uma educação que faça o educando progredir em

um sentido pessoal, libertador, em que professores e alunos partilhem o destino

comum de ser e conviver, realizando ações em sua melhor forma, boa ação. Apenas

nessas condições de consciência e responsabilidade comum surge, na escola, a

atmosfera de confiança, de investigação, de comunicação e partilha, onde as

relações se dão sem tensões – porquanto cada um respeita e valoriza o outro –,

onde possam acontecer efetivamente as aprendizagens significativas.

Em se tratando de formação humana, há que se ter uma intenção clara,

embora a consecução de resultados efetivos dependa de outros fatores além dos

esforços empreendidos. Na esfera ética, portanto relativa ao comportamento e ação

humana, não há garantia de obtenção dos resultados desejados, porquanto respeita

a potencialidades, em que se deve investir fortemente para o desenvolvimento de

disposição para agir bem.

Enquanto jovens, na fase de formação profissional, os estudantes não são

sujeitos morais acabados, mas estão em desenvolvimento de sua moralidade, o que

os expõe à possibilidade de escolher e agir virtuosamente ou viciosamente. Não se

espera que saibam se posicionar de maneira adequada frente aos novos desafios

éticos, que a eles se apresentam nas diversas circunstâncias da vida profissional. O

novo contexto em que se inserem diz respeito à relação com paciente, sua família,

com a própria equipe de trabalho. Até o momento da graduação, torna-se necessário

que continuamente sejam orientados e apresentados aos mais diversos problemas,

de modo que neles desperte a vontade deliberada de agir bem, desenvolvendo a

sabedoria prática. Há que prepará-los para as escolhas nas circunstâncias futuras,

quando, efetivamente, poderão desempenhar sua função de certo modo, conforme o

que deles esperamos – a excelência no agir.

A Razão calculativa para o bom uso da técnica deve estar ao serviço da Ética.

Para saberem o que é correto, os estudantes devem, em primeiro lugar, apropriar-se

do conhecimento teórico-científico. Sobremaneira para um bom uso do

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Considerações Finais 168

conhecimento, é preciso desenvolver-lhes a disposição para boa escolha na

realização da sua função. Para isso concorrem alguns elementos decisivos: inseri-

los nas situações práticas, inclusive as de maior complexidade, sob a orientação de

um profissional experiente, com a intencionalidade clara de conjugar os âmbitos

técnico e ético, além de, indispensavelmente, inseri-los num ambiente de tal forma

organizado que propicie não um aprendizado qualquer – senão o bom aprendizado e

a tomada de decisão orientados pelo Bem absoluto – que é a finalidade de todas as

coisas e é o mesmo para todos.

É imprescindível que haja preocupação com a estrutura organizacional da

instituição de ensino, uma vez que a esfera Ética está interligada à Política. O

indivíduo aprende a realizar escolhas e agir de certa forma no ambiente em que

vive. Torna-se fundamental que existam regras e decisões coerentes, porque são

orientadoras da ação e para que o sistema educacional não seja contraditório ou

alienado à conjuntura em que o estudante se informa de uma maneira e assiste a

outras acontecerem inversamente àquilo que se propôs, que diz-se desejado e

definido no currículo. A Ética deve essencialmente ser vivida, visto que diz respeito à

ação. Não se trata, por conseguinte, de uma ação qualquer, mas a excelência da

ação – ação virtuosa – conceito ancorado na ética aristotélica.

Para Aristóteles, a alma humana tem aspectos irracionais e racionais, e o ser

humano, fruto dessa combinação, quando escolhe entre ação boa ou ruim, o faz

alicerçado em disposições – razão e desejo em sintonia – adquiridas por meio do

hábito orientado. Numa deliberação ponderada de analise em cada situação, essa

pode ser melhorada cada vez mais com a prática dessa faculdade durante a vida.

Por conseguinte, há de preocupar-se ao máximo com a formação dos hábitos,

exercitando as ações repetidas vezes. Conforme se apresentado no paradigma

aristotélico, o Bem ocorre no momento da escolha: uma ação virtuosa contribui para

outra ação virtuosa, formando dessa forma a disposição.

Dentro desse paradigma, recobra-se o arquétipo aristotélico, congruente com

uma tendência atual de se revisitar seu pensamento, aliás, jamais esquecido. A obra

de Aristóteles fornece elementos de estudo, organizados e meticulosos, em que se

podem encontrar reflexões fundamentais acerca do agir e da realização plena do ser

humano como ente racional, que tem como finalidade a felicidade – boa vida e boa

ação –, para a qual concorre vários elementos, dentre eles, essencialmente, a

virtude. Neste estudo, não houve a pretensão de alcançar todos os recursos

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Considerações Finais 169

presentes na obra, senão analisar, estabelecer relações e encontrar fundamentos

para uma proposta com vistas à boa realização da função do médico e do

enfermeiro, seja na prevenção ou cura, seja no cuidado e atenção às necessidades

referentes à saúde das pessoas.

Entende-se, pois, que, apesar de todos os reveses que o mundo

circunstancial apresenta, quando se cuida da vida humana, é preciso exercitar o que

há de melhor no ser humano. Ouso, portanto, a exemplo de Hipócrates, prefigurar o

comportamento do profissional em sua prática profissional: O profissional médico e o

enfermeiro devem ter conhecimento técnico e humano, saber trabalhar em equipe,

saber ouvir atentamente o paciente, compreendendo suas angústias e

necessidades, avaliar suas queixas e também saber perceber, através de

investigação minuciosa, as dificuldades que não foram relatadas espontaneamente.

Deve saber deliberar bem sobre o assunto para intervir escolhendo a melhor das

alternativas possíveis com competência técnica, atualizando-se continuamente nos

conhecimentos científicos. Saber avaliar os tratamentos existentes com crítica (usar

bem o conhecimento e decisão adequada à situação), pensar demoradamente no

caso em questão, e, porque a vida é bem de maior valor, quando há dúvida, deve

ouvir a opinião de outro profissional. Isso é procedimento sensato e o melhor a ser

feito. Ser ponderado em suas escolhas, nunca escolher aquilo que lhe parecer em

demasia ou deixar de fazer o que se deve. Enfim, estar atento desde sua formação

para discernir o certo e o mais adequado em suas decisões, aprender a fazer

escolhas boas e que essa preocupação – de âmbito individual e coletivo, imediato e

em longo prazo, – perdure em toda a sua vida.

Desse modo, o preparo do profissional deve ser cuidadoso e constante,

porque, como aponta Aristóteles, o adulto pode ter cristalizado condutas, que desde

cedo foram formadas. Durante a formação profissional, não se pode furtar de

orientar os futuros profissionais a materializarem a escolha segundo a reta Razão.

Esse exercício, ativo do homem virtuoso, deve estender-se por todo o curso e toda a

vida. Aristóteles já apontava não ser tarefa fácil; por conseguinte, não é alcançada

por todos. Ainda assim, acredita-se que na educação, se possa encontrar um melhor

caminho; sem que se desmereça o papel da família e da sociedade em seu

processo de formação. O bom exercício da profissão depende de saber fazer uso do

conhecimento e, acima de tudo estar habituado a raciocinar guiado pelo bem para

que efetue a melhor das escolhas em sua ação.

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Considerações Finais 170

Ademais importa, senão ainda mais, a organização da instituição escolar,

realidade em que se concretizam as interelações e dela depende as atitudes que

guiarão a formação moral do estudante. Como grande princípio ordenador, da polis

emana e, simultaneamente, absorve virtude ou vício de e para seus átomos, que são

os cidadãos. Vê-se em Aristóteles que não se pode pensar em domínio ético, sem o

domínio da polis. Na abordagem deste estudo, constatou-se que a organização

racional deve ser dirigida ao convívio das pessoas numa dada comunidade,

particularmente à instituição escolar.

Destaca-se, portanto, a educação como meio de desenvolver a disposição

para certo tipo de ação – alcançada pelo phronimos, o sujeito virtuoso. O homem

deve ser de certo modo "treinado" e ter um ambiente que propicie sua orientação

para a melhor escolha.

Não há distinção em conduzir uma grande instituição política, uma pequena

cidade, ou uma escola. Cabe a orientação dada a seus estudantes, tanto por

estratégias de ensino planejadas diretamente para a sua formação quanto por aquilo

que eles aprendem – tudo se originando da organização que a instituição tem a

oferecer-lhes como estrutura e modelo institucional. Nesse sentido, há que se

dedicar atenção à estrutura e organização institucional, para que sejam também

formadoras no que tange às atitudes dos estudantes para a ação boa. Os dirigentes

e os professores possuem papel formador quando constroem normas e as seguem,

não deixando que o sistema se mostre incoerente na vida do estudante. Caso

contrário, pode contribuir para a dissociação da ação e do pensamento, ou seja,

para sua alienação, o que certamente, resulta consequências à sua vida e à

sociedade.

Toda escola deveria se obrigar ao zelo pela formação ética dos estudantes,

Cabe à instituição a maior responsabilidade sobre o direcionamento que será dado à

formação humana de seus estudantes: ações de ensino, regras e modelos. No

período de formação profissional, além de boa formação técnico-científica, soma-se

a necessidade de não perder de vista a incorporação de bases filosóficas, reflexão

e, sobretudo, exercê-los em sua conduta. Se se quiser viver num mundo melhor, há

que se preocupar mais com a formação ética, dado que a formação do jovem

influencia sobremaneira sua vida futura.

Este estudo entra em sintonia com o modelo filosófico aristotélico e não busca

respostas inéditas, mas soluções possíveis ao problema da formação humana

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Considerações Finais 171

voltada para o Bem, no sentido de fazer bom uso do conhecimento técnico. Porque

o Bem reside na boa realização da função ou atividade do homem e esta é

alcançada pela ação que são geradas pelas escolhas bem deliberadas, ou melhor,

na boa escolha que é aquela que não se encontra nem no excesso e falta, mas na

justa medida.

Recobrar os ensinamentos de Aristóteles é ir ao encontro de uma proposta ou

da possibilidade de uma sociedade melhor, atribuindo à Educação sua real

importância. Assim como deve ser em todo o sistema escolar, mais especificamente

na Disciplina Ética, há a preocupação de formar médicos e enfermeiros que atuem

com excelência na ação: saibam o que é correto, escolham a melhor das opções e

façam o façam de acordo com a reta razão. Desse modo, seja um profissional sério,

confiável e humanizado.

Num mundo de contingências, algumas coisas não dependem de nós, a Ética

depende de nós: “Deliberamos sobre as coisas que estão ao nosso alcance e

podem ser realizadas; e essas são, efetivamente, as que restam.” (EN, 1112a30).

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