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John Burnet

A aurora da filosofia gregaTRADUO

Vera Ribeiro

REVISO DA TRADUO

Agatha Bacelar

TRADUO DAS CITAES EM GREGO E LATIM

Henrique CairusDoutor em Letras Clssicas pela UFRJ

Agatha Bacelar Tatiana Oliveira RibeiroMestres em Letras Clssicas pela UFRJ

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Copyright desta edio: Contraponto Editora Ltda.

Contraponto Editora Ltda.Caixa Postal 56066 - CEP 22292-970

Rio de Janeiro, RI - BrasilTelefax: (21) 2544-0206/2215-6148 Site: www.contrapontoeditora.com.br E-mail: [email protected]

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Preparao de originaisCsar Benjamin

Reviso tipogrficaGilberto Scheid

Capa e projeto grficoRegina Ferraz Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita das editoras.

CIP-BRASIL CATALOGAAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

8976a Burnet, lohn, 1863-1928 A aurora da filosofia grega I lohn Bumet ; traduo Vera Ribeiro; reviso da traduo Agatha Bacelar; traduo das citaes em grego e latim Henrique Cairus, Agatha Bacelar, Tatiana Oliveira Ribeiro. _ Rio de Janeiro; Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. 384p. ; 23 em Traduo de: Early greek philosophy ISBN 978-85-85910-82-2 1. Filosofia antiga. I. Ttulo. 06-2514CDO 182 COU 1"652"

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nept J,tEV -rrov ovtrov n,V lgelav E(H [physis ]"23 de todas as coisas. Quando essa idia foi abandonada, sob a influncia da crtica eletica, a antiga palavra continuou em uso. Empdocles afirmou que havia quatro dessas matrias primitivas, cada qual com sua prpria crl [physisJ, enquanto os atomistas acreditaram haver um nmero infinito delas, ao qual tambm aplicaram o termo. 2 O termo pX~ [arkh], freqentemente usado por nossas fontes mais autorizadas, , nesse sentido," puramente aristotlico. muito natural que ele tenha sido adotado por Teofrasto e por autores posteriores, pois todos partiram da clebre passagem da Fsica em que Aristteles classifica seus predecessores conforme eles houvessem postulado uma ou mais pXa [arkhi] (princpios materiais).2. Mas Plato nunca usa o termo nesse contexto, e ele no ocorre sequer uma vez nos fragmentos autnticos dos primeiros filsofos, o que seria muito estranho; supondo que eles o empregassem. Se assim, podemos entender prontamente por que os jnios chamaram a cincia de llEpt crEOl icr~opTJ [Perl physeos histore] (investigao sobre a natureza). Veremos que a idia crescente que pode ser rastreada em todos os sucessivos representantes de qualquer escola sempre aquela que diz respeito substncia primordial,27 ao passo que teorias como a astronmica e outras so, em geral, peculiares aos pensadores individuais. O principal interesse de todos era a busca do que havia de permanente no fluxo das coisas."Movimento e repouso

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VIII. De acordo com Aristteles e seus seguidores, os primeiros cosmlogos tambm acreditavam num "movimento eterno" (OlO KVTJcrl [adios knesis]), mas essa provavelmente a maneira peculiar aos peripatticos de enunciar a idia. No h qualquer chance de que os jnios tenham dito algo sobre a eternidade do movimento em seus escritos. Nos tempos primevos, no era o movimento, mas o repouso que tinha de ser explicado; alm disso, improvvel que a origem do movimento tenha sido discutida antes de a possibilidade do prprio movimento ser negada. Como veremos, isso foi feito por Parmnides, e, por conseguinte, seus sucessores, ao aceitarem a realidade do movimento, foram obrigados a demonstrar como se originava. Assim, a afirmao de Aristteles, tal como a compreendo, quer dizer apenas que os primeiros28

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INTRODUO

pensadores no sentiram necessidade de atribuir uma origem ao movimento. A eternidade do movimento uma inferncia substancialmente correta, mas enganosa ao sugerir a rejeio deliberada de uma doutrina ainda no formulada. 29 Uma questo mais importante a natureza desse movimento. claro que ele deve ter existido antes do comeo do mundo, j que foi o que lhe deu origem. Portanto, no pode ser identificado com a rotao diurna do cu, como fizeram muitos autores, nem com qualquer outro movimento puramente mundano.'o A doutrina pitagrica, tal como exposta no Timeu de Plato," postula que o movimento original era irregular e desordenado, e teremos motivos para crer que os atomistas atriburam aos tomos um movimento dessa espcie. Assim, nesse estgio, mais seguro no atribuir qualquer movimento regular ou bem definido substncia primordial dos primeiros cosmlogos. 32

IX. No h em tudo isso qualquer vestgio de especulao teolgica. o carter Vimos que houvera uma ruptura completa com a antiga religio egia e secular da que o politesmo olmpico nunca teve uma influncia slida sobre a cincia jnica mente dos jnios. , pois, um grande equvoco buscar as origens da cincia jnica em qualquer tipo de idia mitolgica. Sem dvida, havia muitos vestgios das crenas e prticas mais antigas nas partes da Grcia que no estiveram sob o domnio dos povos do norte, e logo veremos como se reafirmaram nos mistrios rficos e de outros tipos. Mas o caso da Jnia foi diferente. Foi s depois da chegada dos aqueus que os gregos puderam estabelecer seus povoamentos na costa da sia Menor, que lhes estivera fechada pelos hititas,33 no havendo ali nenhum antecedente tradicional. Nas ilhas do Egeu, a situao era outra, mas a Jnia propriamente dita era uma regio sem passado. Isso explica o carter secular da filosofia jnica mais antiga. No devemos nos deixar enganar pelo uso da palavra 8E [thes 1 (deus) nos fragmentos que chegaram at ns. bem verdade que os jnios a usavam para designar a "substncia primordial" e o mundo (ou os mundos), mas isso no significa nem mais nem menos do que o uso dos eptetos divinos "sempre-novo" e "imortal" a que j nos referimos. Em seu sentido religioso, a palavra "deus" sempre significou, antes e acima de tudo, um objeto de culto, mas j em Homero essa deixara de ser sua nica significao. A Teogonia de Hesodo a melhor evidncia dessa mudana. claro que muitos dos deuses nela mencionados nun29

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

ca foram cultuados por ningum, e alguns so meras personificaes de fenmenos naturais, ou at de paixes humanas." Esse uso no-religioso da palavra "deus" caracterstico de todo o perodo que estamos abordando, e reconhec-lo extremamente importante, pois, com isso, no incorreremos no erro de fazer a cincia derivar da mitologia. 35 Percebemos isso, acima de tudo, pelo fato de desde o incio, enquanto a religio primitiva considerava divinos os corpos celestes e o prprio cu - e, portanto, de natureza inteiramente diferente de todas as coisas existentes na Terra - , os jnios terem se posicionado contra qualquer distino dessa ordem, embora ela lhes devesse ser perfeitamente conhecida atravs das crenas populares. Aristteles retomou essa distino tempos depois, mas a cincia grega comeou por rejeit-la. 36Pretensa ongem

oriental da filosofia

X. Temos tambm de enfrentar a questo da natureza e da extenso da influncia exercida pelo que chamamos de saber oriental sobre a mente dos gregos. Mesmo hoje, comum a idia de que os gregos, de algum modo, herdaram sua filosofia do Egito e da Babilnia. Devemos tentar compreender com a maior clareza possvel o que tal afirmao significa. Para comear, devemos observar que essa questo assumiu um aspecto muito diferente, agora que sabemos quo antiga foi a civilizao egia. Muito do que se considerou oriental pode muito bem ter sido nativo. Quanto s influncias posteriores, devemos ressaltar que nenhum autor do perodo em que floresceu a filosofia grega tinha qualquer conhecimento de que ela tivesse vindo do Oriente. Herdoto no deixaria de diz-lo, se o tivesse ouvido, pois isso teria confirmado sua prpria crena na origem egpcia da religio e da civilizao gregas.'? Plato, que tinha grande respeito pelos egpcios por outros motivos, classificou -os mais como um povo de negociantes que de fIlsofos. 38 Aristteles fala apenas da origem da matemtica no Egit0 39 (ponto a que retornaremos); no obstante, se conhecesse uma filosofia egpcia, teria sido mais conveniente para sua argumentao mencion-la. Foi somente mais tarde, quando os sacerdotes egpcios e os judeus alexandrinos comearam a disputar entre si a descoberta das fontes da filosofia grega em seu prprio passado, que tivemos afirmaes claras no sentido de que ela teria vindo da Fencia ou do Egito. Mas s se chegou chamada filosofia egpcia por um processo de transformao dos mitos primitivos em alegorias. Ainda somos capazes de julgar por ns mesmos a interpretao30

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INTRODUO

que Flon deu ao Velho Testamento e podemos ter certeza de que os alegoristas egpcios foram ainda mais arbitrrios, pois dispunham de um material muito menos promissor com que trabalhar. O mito de sis e Osris, por exemplo, primeiro interpretado segundo as idias da filosofia grega posterior e depois declarado como fonte dessa filosofia. Esse mtodo de interpretao culminou no neopitagrico Numnio, que o transmitiu para os apologistas cristos. Foi Numnio quem perguntou: "O que Plato seno Moiss falando tico?".40 Clemente e Eusbio deram a esse comentrio uma aplicao ainda mais ampla. 4l No Renascimento, essa miscelnea foi retomada, juntamente com tudo o mais, e algumas idias derivadas da Praeparatio Evangelica [Preparao evanglica J continuaram a influenciar por muito tempo as vises aceitas. 42 Cudworth referiu-se antiga "filosofia moisesta ou mosaica'; ensinada por Tales e Pitgoras." importante reconhecer a verdadeira origem desse preconceito contra a originalidade dos gregos. No provm das pesquisas modernas sobre as crenas dos povos antigos, pois estas nada revelaram em matria de evidncias de uma filosofia fencia ou egpcia. Trata-se de um mero resduo da paixo alexandrina pela alegoria. claro que, hoje em dia, ningum defenderia uma origem oriental da filosofia grega com base nos testemunhos de Clemente ou Eusbio; o argumento favorito, nos ltimos tempos, tem sido a analogia com as artes. Percebemos mais e mais, segundo se afirma, que os gregos receberam sua arte do Oriente; e insiste-se em que, com toda a probabilidade, o mesmo se comprovar a respeito de sua filosofia. Esse um argumento sedutor, mas nada tem de conclusivo. Ele desconhece a diferena da maneira como tais coisas so transmitidas de um povo a outro. A civilizao material e as artes podem facilmente passar de um povo a outro, ainda que eles no tenham uma lngua comum, mas a filosofia s se pode expressar em linguagem abstrata e s pode ser transmitida por homens instrudos, seja por meio de livros, seja de ensinamentos orais. Ora, no temos conhecimento de nenhum grego, na poca sobre a qual estamos discorrendo, que fosse capaz de ler um livro egpcio ou mesmo de ouvir o discurso de um sacerdote egpcio, e nunca ouvimos falar, at poca bem recente, de professores orientais que escrevessem ou falassem grego. claro que um viajante grego no Egito assimilaria algumas palavras do egpcio, e presumvel que os sacerdotes conseguissem fazer-se entender pelos gregos. 4' Mas eles deviam31

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

servir-se de intrpretes, e impossvel conceber que idias filosficas fossem comunicadas por meio de um dragomano sem instruo. 45 Mas, na verdade, no vale a pena indagar se a transmisso de idias filosficas era ou no possvel, enquanto no forem apresentadas evidncias de que algum desses povos tinha uma filosofia a transmitir. Ainda no se descobriu nada nesse sentido. At onde sabemos, os hindus foram o nico povo da Antigidade, alm dos gregos, a ter algo digno desse nome. Ningum sugeriria hoje que a filosofia grega proveio da India, e, a rigor, tudo aponta para a concluso de que a filosofia hindu surgiu sob influncia grega. A cronologia da literatura em snscrito um assunto extremamente dificil, mas, tanto quanto podemos perceber, os grandes sistemas indianos so de data posterior das filosofias gregas com que mais se assemelham. claro que o misticismo do Upanixade e do budismo tiveram uma origem nativa, mas, embora estes tenham influenciado profundamente a filosofia no sentido estrito, s se relacionavam com ela da maneira como Hesodo e os rficos se relacionavam com o pensamento cientfico grego.A matemtica

egpcia

XI. Outra coisa, entretanto, seria dizer que a filosofia grega passou a existir de modo independente das influncias orientais. Os prprios gregos acreditavam que sua cincia matemtica era de origem egpcia e devem ter tido algum conhecimento da astronomia babilnica. O fato de a filosofia ter se originado justamente na poca em que a comunicao com esses dois pases era mais fcil, e de o mesmo homem a quem se atribui a introduo da geometria na Grcia tambm ter sido considerado o primeiro filsofo, no podem ser meros acasos. Para ns, portanto, torna-se importante descobrir o que significava a matemtica egpcia. Veremos que, mesmo nesse caso, os gregos foram realmente originais. O papiro de Rhind, que se encontra no Museu Britnico,46 oferece-nos um vislumbre da aritmtica e da geometria tal como eram compreendidas nas margens do Nilo. Ele obra de um certo Ahms e contm regras sobre clculos de natureza aritmtica e geomtrica. Os problemas aritmticos concernem, em sua maioria, a medies de trigo e frutas. Versam particularmente sobre questes como a diviso de um nmero de medidas entre determinado nmero de pessoas, sobre o nmero de pes ou jarros de cerveja produzidos por certas medidas e sobre o salrio a ser pago aos trabalhadores por determinado trabalho. De fato, isso corresponde exatamente descrio da aritmtica egpcia que32

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INTRODUO

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plato nos fornece nas Leis, em que ele nos diz que, junto com o alfabeto, as crianas aprendiam a resolver problemas de distribuio de mas e grinaldas de flores a um nmero maior ou menor de pessoas, problemas de emparelhamento de pugilistas e lutadores, e assim por diante'" Essa claramente a origem da arte que os gregos chamavam de OYHHt1Cl] [logistik], e provvel que eles a tenham tomado de emprstimo ao Egito, onde era altamente desenvolvida; mas no h nenhum indcio do que os gregos chamavam de pt81l11tt1Cl] [arithmetik], o estudo cientfico dos nmeros. A geometria do papiro de Rhind tem um carter similar. Herdoto, que nos diz que a geometria egpcia surgiu da necessidade de medir novamente as terras depois das inundaes, chega claramente bem mais perto do alvo do que Aristteles, que afirma que ela nasceu do cio desfrutado pela casta sacerdotal. 48 As regras fornecidas para o clculo de reas s so exatas quando estas so retangulares. Uma vez que os campos costumam ser mais ou menos retangulares, tais regras seriam suficientes para fins prticos. Presume-se at que um tringulo reto possa ser eqiltero. Entretanto, a regra para encontrar o chamado seqt de uma pirmide est em nvel bem mais elevado, como seria de se esperar. Ela chega ao seguinte: dado o "comprimento da sola do p", ou seja, a diagonal da base, e o do piremus ou "vrtice': encontrar um nmero que represente a razo entre eles. Isso feito dividindo-se metade da diagonal da base pelo "vrtice': e bvio que tal mtodo poderia muito bem ser descoberto empiricamente. Parece um anacronismo falar em trigonometria elementar ligada a uma regra como essa, e no h nada a sugerir que os egpcios tenham ido mais longe. 49 Que os gregos aprenderam deles o quanto puderam sumamente provvel, mas tambm devemos constatar que, desde o comeo, eles generalizaram essa regra de modo a torn-la til para medir as distncias de objetos inacessveis, como navios no mar. Provavelmente, foi essa generalizao que sugeriu a idia de uma cincia da geometria, que, na verdade, foi uma criao dos pitagricos. Podemos ver como os gregos logo suplantaram seus mestres a partir de uma observao atribuda a Demcrito, que diz o seguinte (frag. 299): "Ouvi muitos homens doutos, mas, at hoje, nenhum deles me superou na construo de figuras a partir de linhas, acompanhada pela demonstrao, nem mesmo os "arpedonaptas" egpcios, como so chamados".> Ora, a palavra p1tEOOv1t'tTl [arpedonptes] no egpcia, mas grega. Significa "atador de cordas",Sl e uma33

A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

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coincidncia notvel que o mais antigo tratado geomtrico hindu chame-se $ulvasutras, ou "regras da corda". Essas coisas apontam para a utilizao do tringulo com os lados 3, 4 e 5, e que sempre tem um ngulo reto. Sabemos que ele foi usado desde tempos remotos pelos chineses e hindus, que sem dvida o receberam da Babilnia, e veremos que Tales provavelmente aprendeu a utiliz-lo no Egito. 52 No h razo para se supor que qualquer um desses povos tenha se preocupado em fornecer uma demonstrao terica de suas propriedades, embora Demcrito certamente fosse capaz de faz-lo. No entanto, como veremos, no h evidncias reais de que Tales tivesse qualquer conhecimento matemtico que fosse alm do papiro de Rhind. Devemos concluir, portanto, que a matemtica, no sentido estrito, surgiu na Grcia depois dessa poca. Nesse contexto, significativo que todos os termos matemticos sejam de origem exclusivamente grega. 53A astronomia

babilnica

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XII. A outra fonte de que os jnios teriam supostamente derivado sua cincia a astronomia babilnica. certo que os babilnios observavam o cu desde pocas remotas. Haviam mapeado as estrelas fixas, especialmente as do zodaco, em constelaes. 54 Isso til para estudar a observao astronmica, mas, em si mesmo, pertence mais mitologia ou ao folclore. Eles haviam identificado e denominado os planetas, alm de observar seu movimento aparente. Estavam bastante informados sobre as posies e deslocamentos retrgrados destes, alm de familiarizados com os solstcios e equincios. Tambm haviam notado a ocorrncia de eclipses, com vistas a lhes prever o retorno para fins de adivinhao. Mas no devemos exagerar a antigidade nem a exatido dessas observaes. Tardou muito para que os babilnios tivessem um calendrio satisfatrio, e eles s conseguiam manter o ano correto mediante a intercalao de um dcimo terceiro ms, quando lhes parecia desejvelo que torna impossvel uma cronologia fidedigna, de modo que no havia nem poderia haver dados disponveis para fins astronmicos antes da chamada era de Nabonassar (747 a.c.). O mais antigo documento astronmico de carter realmente cientfico, que veio luz em 1907, data de 523 a.c., no reinado de Cambises, quando Pitgoras j havia fundado sua escola em Crotona. Alm disso, a era dourada da astronomia babiInica atualmente fixada no perodo posterior a Alexandre, o Grande, quando a Babilnia era uma cidade helenstica. Mesmo nessa poca, no34

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INTRODUO

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obstante a alta preciso alcanada nas observaes e o acmulo de dados teis aos astrnomos alexandrinos, no h provas de que a astronomia babilnica tenha ultrapassado o estgio emprico. 55 Veremos que Tales provavelmente conhecia o ciclo atravs do qual os babilnios tentavam prever os eclipses ( 3), mas seria equivocado supor que os pioneiros da cincia grega tivessem um conhecimento detalhado sobre as observaes babilnicas. Os nomes babilnicos dos planetas no ocorrem antes dos escritos da velhice de Plato.'6 Alis, veremoS que os primeiros cosmlogos no prestaram nenhuma ateno aos planetas, e difcil saber o que pensavam sobre as estrelas fixas. Isso mostra que eles comearam sozinhos e em total independncia das observaes babilnicas, e que as observaes registradas s se tornaram plenamente acessveis no perodo alexandrino. 57 Todavia, mesmo que os jnios as houvessem conhecido, persistiria a sua originalidade. Os babilnios registravam os fenmenos celestes para fins astrolgicos, e no por algum interesse cientfico. No h indcio de que tenham tentado explicar o que viam seno da forma mais tosca. Os gregos, por outro lado, fizeram pelo menos trs descobertas de importncia crucial no decorrer de duas ou trs geraes. Em primeiro lugar, descobriram que a Terra uma esfera e no se apia em coisa alguma. 58 Em segundo lugar, descobriram a verdadeira teoria dos eclipses lunares e solares; e, em estreita ligao com isso, em terceiro lugar, conseguiram perceber que a Terra no o centro do nosso sistema, mas gira em torno do centro, tal como os planetas. No muito depois, pelo menos em carter experimental, alguns gregos deram o passo final ao identificar o Sol como o centro em torno do qual giravam a Terra e os planetas. Essas descobertas sero discutidas no local apropriado; so mencionadas aqui apenas para mostrar o abismo entre a astronomia grega e tudo o que a havia precedido. Por outro lado, os gregos rejeitaram a astrologia, que s foi introduzida em seu meio no sculo III a.c. 59 Podemos resumir tudo isto dizendo que os gregos no tomaram sua filosofia nem sua cincia emprestadas do Oriente. Contudo, receberam do Egito algumas regras de mensurao que, generalizadas, deram origem geometria, ao passo que aprenderam com a Babilnia que os fenmenos celestes ocorriam em ciclos. No h dvida de que essa amostra de conhecimento teve uma relao considervel com a ascenso da cincia, pois sugeriu aos gregos outras questes com que os babilnios jamais haviam sonhado. 6035

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

o carter cientfico dos primrdios da cosmologia grega

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XIII. necessrio insistir no carter cientfico da fllosofia que estamos prestes a estudar. Vimos que os povos orientais eram consideravelmente mais ricos do que os gregos em matria de fatos acumulados, ainda que esses fatos nunca tivessem sido observados com fins cientficos e nunca houvessem sugerido uma reviso da primitiva concepo do mundo. Os gregos, no entanto, viram neles algo que podia ser aproveitado e, como povo, jamais demoraram a agir segundo a mxima do "Chacun prend son bien partout ou ille trouve".' A visita de Slon a Creso, descrita por Herdoto, por menos histrica que seja, d-nos uma boa idia desse esprito. Creso diz a Slon ter ouvido falar muito de "sua sabedoria e suas perambulaes" e de como, por amor ao conhecimento (tov xPVOt nlV 'toov Xaaioov 8Eoopiav t tE (i..a npoAyoucrav x:at tOU piou x:crtoov x:at tou 8avtou leat ou t x:otv ~vov [thaumasiotten ini phesin en tOls kat' auton khr6nois ten tn Khaldion theoran t te lla prolgousan ki tous bous hekston ki tous thantous ki ou t koin mnon] (diz ser muito admirvel, no seu prprio tempo, a teoria dos caldeus (ie., a astrologia), sobretudo por predizerem tanto das vidas quanto das mortes, e no s o que comun). Os esticos, e especialmente Posidnio, foram responsveis pela introduo da astrologia na Grcia e, recentemente, mostrou-se que o sistema totalmente desenvolvido que ficou conhecido em pocas posteriores baseava-se na doutrina estica do Etllapl!V11 [heimarmne] (destino). Ver o importantssimo artigo de Boll em Neue Jahrb., XXI (1908), p. 108.

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

60. A viso de Plato sobre esse assunto encontra-se em Epin., 986e9 et seq., resumida pelas palavras PWI1EV OE l OtmEp clV "E~VE papppwv 1tapapwtrov [en de t j deutro j t te eis Orpha ki Mousion anaphermena ki t par' Homro j ki Hesido i ki Euripde j ki poietis llois, hos ki KIenthes, peirtai synoikeiun tis dxais autn] (no segundo [livro], tenta acomodar os poemas referentes a Orfeu e a Museu e os de Homero, Hesodo e Eurpides, entre outros poetas, assim como [fez] Clantes, s opinies deles) .

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CAPTULO I

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A ESCOLA DE MILETO

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Mileto abrigou a primeira escola de cosmologia cientfica. Talvez no deixe de ser significativo o fato de esta cidade ser, justamente, o lugar em que a continuidade da civilizao egia e jnica mais claramente acentuada.' Em mais de uma ocasio, os milsios haviam entrado em conflito com os ldios, cujos governantes estavam decididos a estender seus domnios at o litoral; entretanto, por volta do fim do sculo VII a.c., o tirano Trasbulo conseguiu chegar a um acordo com o rei Aliates, firmando-se uma aliana que protegeu Mileto de futuros incmodos. Mesmo passado meio sculo, quando Creso, retomando a poltica expansionista de seu pai, travou guerra com feso e a conquistou, Mileto conseguiu manter a antiga relao firmada no tratado e, estritamente falando, nunca se tornou sdita dos ldios. Alm disso, a ligao com a Ldia favoreceu o desenvolvimento da cincia em Mileto. O que mais tarde veio a ser chamado de helenismo parece ter sido tradicional na dinastia dos Mrmnadas. Herdoto diz que todos os "sofistas" da poca afluram para a corte de Sardes. 2 A tradio que apresenta Creso como "patrono" da sabedoria grega estava plenamente desenvolvida no sculo V a.c. Por menos histricos que sejam seus detalhes, ela deve, claramente, ter alguma base na realidade. particularmente digna de nota "a histria comum entre os gregos" de que Tales acompanhou Creso em sua malfadada campanha contra Ptria, aparentemente no posto de engenheiro militar. Herdoto no d crdito histria de que Tales teria desviado o curso do Halis, mas apenas por saber que j existiam pontes nesse rio. claro que os jnios eram grandes engenheiros e que eram contratados nessa condio pelos reis orientais. 3 Convm acrescentar que a aliana com a Ldia viria a facilitar o intercmbio com a Babilnia e o Egito. A Ldia era um posto avanado da cultura babilnica e Creso mantinha relaes amistosas com os reis do Egito e da Babilnia. Amsis, do Egito, tinha as mesmas simpatias de Creso pelos helenos e os milsios possuam seu prprio templo em Nucratis.1.

Mileto e a Lidia

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

l. TALES

Origem

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O fundador da escola de Mileto e, portanto, o primeiro homem de cincia, foi Tales. 4 Tudo o que sabemos dele vem de Herdoto, e a lenda dos Sete Sbios j existia na poca em que ele comps sua obra. Herdoto relata que Tales era de origem fencia. Outros autores explicaram tal afirmao, dizendo que ele pertencia a uma famlia aristocrtica descendente de Cadmo e Agenor. 5 Provavelmente, Herdoto menciona a suposta ascendncia de Tales apenas porque se acreditava que ele havia introduzido na navegao alguns aperfeioamentos provenientes da Fencia" Seja como for, o nome de seu pai, Exmias, no corrobora a viso de que ele seria semita. Trata-se de um nome crio e os crios tinham sido quase completamente assimilados pelos jnios. Nos monumentos, encontramos uma alternncia de nomes gregos e crios nas mesmas famlias, ao passo que o nome Tales, por outro lado, conhecido como cretense. Assim, no h razo para duvidarmos da ascendncia puramente milsia de Tales, embora provavelmente tivesse sangue crio nas veias.?2.

O eclipse

previsto por Tales

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3. A afirmao mais notvel feita por Herdoto sobre Tales que este previu o eclipse solar que ps fim guerra entre os ldios e os medos. 8 Ora, Tales desconhecia por completo a causa dos eclipses. Anaximandro e seus sucessores certamente a ignoravam,- e inadmissvel que sua explicao pudesse ter sido dada e esquecida com tanta rapidez. Mesmo supondo que Tales conhecesse a causa dos eclipses, os rudimentos de geometria elementar que ele havia recolhido no Egito nunca lhe possiblitariam calcular um deles. Todavia, as evidncias da previso so slidas demais para serem prontamente rejeitadas. Afirma-se que o testemunho de Herdoto foi confirmado por Xenfanes 10 e, segundo Teofrasto, Xenfanes era discpulo de Anaximandro. Seja como for, ele devia conhecer dezenas de pessoas que se lembravam do que havia acontecido. Portanto, a previso do eclipse mais bem atestada do que qualquer outro fato referente a Tales. Ora, possvel fazer uma previso aproximada de eclipses lunares sem conhecer sua verdadeira causa, e no h dvida de que os babilnios de fato o faziam. Alm disso, costuma -se afirmar que eles haviam identificado um ciclo de 223 meses lunares, no qual os eclipses do Sol e da Lua se repetiam a intervalos de tempo iguais." Mas isso no lhes per60

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CAPTULO I A ESCOLA DE MILETO

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mitiria prever eclipses solares num determinado ponto da superfcie da Terra, pois esses fenmenos no so visveis em todos os lugares onde o Sol est acima da linha do horizonte no momento em que eles ocorrem. No ocupamos uma posio no centro da Terra, e a paralaxe geocntrica tem de ser levada em conta. Por meio de um ciclo, portanto, s seria possvel dizer que um eclipse solar seria visvel em algum lugar e que talvez valesse a pena procur-lo, ainda que as chances de um observador em determinado local se decepcionar fossem de cinco sobre seis. Ora, a julgar por relatos preservados de astrnomos caldeus, essa era exatamente a posio dos babilnios no sculo VIII a.c. Eles esperavam pelos eclipses nas datas apropriadas e, quando no ocorriam, anunciavam o fato como um bom pressgio,l2 Para explicar o que nos dito sobre Tales, nada mais se faz necessrio. Ele disse que haveria um eclipse numa certa data e, por sorte, o fenmeno foi visvel na sia Menor numa ocasio marcante. 13 4. A previso do eclipse, portanto, no traz nenhum esclarecimento sobre as realizaes cientficas de Tales; mas, se pudermos estabelecer a data do fenmeno, teremos uma indicao da poca em que Tales viveu. Os astrnomos calcularam que houve um eclipse solar, provavelmente visvel na sia Menor, em 28 de maio (calendrio juliano) de 585 a.c., ao passo que Plnio data o eclipse previsto por Tales de 0l.XLVIII.4 (585/4 a.c.).l4 Isso no confere com exatido, pois maio de 585 pertence ao ano de 586/5 a.c. Entretanto, uma data suficientemente prxima para justificar a identificao desse eclipse com o previsto por Tales" - o que confirmado por Apolodoro, que fixou seu floruit no mesmo ano.'6 Em Digenes, a afirmao adicional de que, segundo Demtrio de Falron, Tales "recebeu o nome de sbio" no arcontado de Damsias em Atenas refere-se, na verdade, lenda dos Sete Sbios, como mostram as palavras que se seguem, e sem dvida se baseia na histria da trpode dlfica, pois o arcontado de Damsias foi o perodo da restaurao dos Jogos Pticos,l7 5. A introduo da geometria egpcia na Hlade atribuda a Tales,18 e provvel que ele tenha realmente visitado o Egito, pois tinha uma teoria sobre as inundaes do Nilo. Herdoto 19 fornece trs explicaes para o fato de ser esse o nico de todos os rios a subir no vero e baixar no inverno, mas, como seu costume, no indica o nome de seus auto61

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

res. Entretanto, a primeira explicao, que imputa a subida do Nilo aos ventos etsios, atribuda a Tales tanto nos Placita 20 quanto em diversos autores posteriores. Ora, isso provm de um tratado sobre a Cheia do Nilo atribudo a Aristteles e conhecido pelos comentadores gregos, mas que s nos chegou num eptome latino do sculo XI/L2l Neste, a primeira das teorias mencionadas por Herdoto atribuda a Tales, a segunda, a Eutmenes de Masslia e a terceira, a Anaxgoras. De onde Aristteles, ou quem quer que tenha escrito o livro, retirou esses nomes? Naturalmente, pensamos em Hecateu, e essa conjectura reforada ao descobrirmos que Hecateu mencionou Eutmenes. 22 Podemos concluir que Tales esteve realmente no Egito e, quem sabe, que Hecateu, ao descrever o Nilo, levou em conta as opinies de seu concidado, como seria natural.Tales e a geometria

6. Quanto natureza e extenso dos conhecimentos matemticos que Tales trouxe do Egito, convm assinalar que a maioria dos autores interpretou de maneira gravemente equivocada o teor da tradio.23 Em seu comentrio ao Primeiro Livro de Euclides, Proclo, baseando-se na autoridade de Eudemo, enumera algumas proposies que ctiz terem sido conhecidas por Tales," sendo uma delas a de que dois tringulos so iguais quando tm um lado e os dois ngulos adjacentes iguais. Disso ele devia ter conhecimento, uma vez que, de outro modo, no poderia ter medido as distncias entre navios no mar, da maneira como se afirma que mediu. 25 Da vemos como surgiram todas essas afirmaes. Algumas proezas em matria de mensurao foram tradicionalmente atribudas a Tales, e Eudemo presumiu que ele devia conhecer todos os teoremas que elas implicam. Mas isso ilusrio. Tanto a medio da distncia dos navios no mar quanto a da altura das pirmides, que tambm lhe atribuda,26 so aplicaes simples da regra fornecida por Ahms para descobrir o seqt. 27 O que a tradio realmente indica que Tales aplicou essa regra emprica a problemas prticos que os egpcios nunca tinham enfrentado, e que, portanto, foi o criador dos mtodos gerais. Isso j uma posio suficiente para a fama.

rales como um poltico

7. Tales aparece mais uma vez em Herdoto, pouco antes da queda da monarquia ldia. Afirma-se que ele teria exortado os gregos jnios a se unirem numa federao de cidades-estado, com sua capital em Teos. 2 Teremos oportunidade de assinalar, em mais de uma ocasio, que as62

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CAPiTULO I A ESCOLA DE. MILETQ

primeiras escolas de filosofia no se mantiveram distantes da poltica, e muitas coisas - por exemplo, o papel desempenhado por Hecateu na revolta jnica - sugerem que os cientistas de Mileto tomaram uma posio resoluta nos tempos agitados que se seguiram morte de Tales. Foi essa ao poltica que garantiu ao fundador da escola milsia seu lugar incontestvel entre os Sete Sbios, e foi graas sua incluso entre essas figuras ilustres que as numerosas anedotas contadas sobre ele em pocas posteriores foram associadas a seu nome. 29 8. Ao que se sabe, Tales no escreveu nada, e nenhum autor anterior a Aristteles tem qualquer conhecimento dele como cientista e filsofo; na tradio mais antiga, ele simplesmente um engenheiro e inventor.'o bvio, entretanto, que as exigncias dos empreendimentos e do comrcio milsios o fariam voltar a ateno para problemas que chamaramos de astronmicos. Como vimos, dizia-se que ele introduziu a prtica de orientar o curso dos navios pela Ursa Menor,3l e a tradio de que ele tentou fazer algo pelo calendrio persistiu de um modo notvel, embora os detalhes no sejam suficientemente bem atestados para ocupar um lugar neste livro. 32 No h dvida de que ele construiu um 1tap1tl1y~a [parpegma] como os de data muito posterior descobertos em Mileto. 33 O 1tap1tl1Y~a [parpegma] foi a mais antiga forma de calendrio e indicava, para uma srie de anos, os equincios e solstcios, as fases da Lua, o nascente e o poente helacos de algumas estrelas e tambm previses do tempo. Nem mesmo Aristteles tem a pretenso de saber como Tales chegou s idias que ele lhe atribui e mediante quais argumentos elas foram defendidas. Essa prpria ressalva, entretanto, torna quase indubitveis as afirmaes de Aristteles nos poucos pontos a respeito das idias de Tales que menciona, de modo que podemos esboar uma recomposio conjuntural de sua cosmologia. Esta, claro, deve ser considerada apenas pelo que de fato - sem perder de vista seu carter hipottico. 9. As afirmaes de Aristteles podem ser reduzidas a trs: (1) A Terra flutua na gua. 34 (2) A gua o princpio material35 de todas as coisas. (3) Tudo est cheio de deuses. O m vivo, pois tem o poder de mover o ferro. 36

o carterincerto da tradio

A cosmologia

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

A primeira dessas afirmaes deve ser entendida luz da segunda, que enunciada na terminologia aristotlica, mas sem dvida significaria que Tales havia afirmado ser a gua a matria de que todas as outras coisas eram formas transitrias. Vimos que essa era a grande questo da poca.gua10.

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..Teologia

Aristteles e Teofrasto, seguidos por Simplcio e pelos doxgrafos, sugerem diversas explicaes para essa doutrina. Aristteles as apresenta como conjecturas; s autores posteriores as repetem como se j fossem perfeitamente certas,37 A viso mais provvel parece ser que Aristteles atribuiu a Tales os argumentos posteriormente usados por Hpon de Samos para respaldar uma tese semelhante,38 o que explicaria seu carter fisiolgico. A ascenso da medicina cientfica popularizou os argumentos biolgicos no sculo V a.c., mas, na poca de Tales, o interesse predominante no era fisiolgico, e sim meteorolgico. desse ponto de vista que devemos tentar compreender a teoria. Ora, no difcil perceber como as consideraes meteorolgicas podem ter levado Tales a adotar sua viso. De tudo o que conhecemos, a gua parece ser aquilo que assume as formas mais variadas. Ela nos familiar em estado slido, lquido e gasoso e, sendo assim, bem possvel que Tales julgasse ter diante de seus olhos o desenrolar do processo do mundo que tem origem na gua e a ela retoma. O fenmeno da evaporao sugere, naturalmente, que o fogo dos corpos celestes mantido pela umidade que eles retiram do mar. Ainda hoje, as pessoas dizem que "o Sol suga a gua': A gua volta a cair com a chuva e, por fim, como acreditavam os primeiros cosmlogos, transforma-se em terra. possvel que isso parecesse bastante natural para homens familiarizados com o rio egpcio que havia formado o Delta e com as inundaes da Asia Menor, que traziam grandes depsitos aluviais. Atualmente, o golfo de Latmo, em cujas margens situava-se Mileto, est cheio. Por ltimo, como eles pensavam, a terra voltava a se transformar em gua - uma idia proveniente da observao do orvalho, das brumas da noite e das fontes subterrneas; pois, para os homens dos tempos antigos, estas ltimas no tinham qualquer relao com a chuva. As "guas embaixo da terra" eram consideradas uma fonte independente de umidade. 39 A terceira das afirmaes mencionadas acima implica, na opinio de Aristteles, que Tales acreditava numa "alma do mundo': embora ele tome o cuidado de assinalar que isso nada mais que uma inferncia. 4011.

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Depois, a doutrina da alma do mundo foi definitivamente atribuda a Tales por cio, que a apresenta na fraseologia estica por ele encontrada em sua fonte imediata e identifica o intelecto do mundo com Deus.'1 Ccero encontrou uma afirmao semelhante no manual epicurista que seguiu, porm deu um passo adiante: eliminando o pantesmo estico, transformou o intelecto mundial num demiurgo platnico e disse que Tales sustentava a existncia de uma mente divina que formou todas as coisas a partir da gua.'2 Tudo isso decorre da afirmao cautelosa de Aristteles, e no pode ter maior autoridade do que sua fonte. Portanto, no precisamos entrar na velha controvrsia em torno de Tales ser ateu ou no. Se nos lcito julgar por seus sucessores, muito possvel que ele tenha se referido gua como um "deus", mas isso no implicaria nenhuma crena religiosa definida. 43 Tambm no devemos dar grande importncia afirmao de que "tudo est cheio de deuses". No seguro encarar um aforismo como evidncia, e o mais provvel que seja peculiar a Tales como um dos Sete Sbios, e no como o fundador da escola de Mileto. Alm disso, essas mximas costumam ser antes de tudo annimas, ora sendo atribudas a um sbio, ora a outro." Por outro lado, provvel que Tales tenha realmente dito que o m e o mbar possuam alma. Isso no um aforismo, est mais na categoria de afirmaes como a de que a Terra flutua na gua. Trata-se exatamente do tipo de coisa que esperaramos que Hecateu registrasse sobre Tales. Entretanto, seria um equvoco extrair disso qualquer inferncia a respeito de sua viso do mundo, pois dizer que o m e o mbar esto vivos equivale, quando muito, a sugerir que outras coisas no esto.

lI. ANAXIMANDRO12.

Anaximandro, filho de Praxades, tambm era cidado de Mileto, e TeofTasto O descreveu como "companheiro" de Tales. 4 ' J vimos como essa expresso deve ser entendida ( XIV). De acordo com Apolodoro, Anaximandro tinha 64 anos em Ol.LVIIL2 (547/6 a.c.), o que confirmado por Hiplito, que diz ter ele nascido em Ol.XLII.3 (610/9 a.c.), e por Plnio, que atribui sua grande descoberta da obliqidade do zodaco a Ol.LVIII.46 Parece que temos a algo mais que uma combinao de tipo comum, pois, segundo todas as regras, Anaximandro teria "florescido" em 565 a.c., a meio caminho en-

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tre Tales e Anaxmenes, e isso lhe daria 60 anos, e no 64, em 546 a.C. Ora, Apolodoro parece ter dito que havia deparado com a obra de Anaximandro, e a nica razo que teria para mencionar esse fato seria haver encontrado nela alguma indicao que lhe permitisse estabelecer sua data. Ocorre que 547/6 foi exatamente o ano que antecedeu a queda de Sardes, e talvez possamos supor que Anaximandro teria mencionado sua idade na poca desse acontecimento. Sabemos por Xenfanes que a pergunta "que idade tinhas quando apareceram os medos?" era considerada interessante na poca.47 Seja como for, Anaximandro parece ter sido uma gerao mais jovem do que Tales. 48 Como seu predecessor, ele se distinguiu por algumas invenes prticas. Alguns autores lhe atriburam a inveno do gnmon, mas isso dificilmente estaria correto. Herdoto diz que esse instrumento veio da Babilnia, e Tales deve t-lo usado para determinar os solstcios e equincios. 4 ' Anaximandro tambm foi o primeiro a elaborar um mapa, e Eratstenes afirma que esse foi o mapa de Hecateu. No h dvida de que ele pretendia servir iniciativa milsia no mar Negro. O prprio Anaximandro levou colonizadores para Apolnia,50 e seus concidados lhe erigiram uma esttua."Ieafrastosobre a teoria da substncia primordial de Anaximandro

13. Quase tudo o que sabemos sobre o sistema de Anaximandro pro-

vm, em ltima instncia, de Teofrasto, que certamente conhecia seu livro. 52 Pelo menos uma vez ele parece haver citado as palavras do prprio Anaximandro e criticado seu estilo. Eis o que nos chegou das menes feitas por Teofrasto no Livro Um a respeito dele:Anaximandro de Mileto. filho de Praxades, concidado e companheiro de Tales,53 afirmou que o princpio material e elemento primordial das coisas existentes era o Ilimitado, tendo sido o primeiro a introduzir esse nome do princpio material. Diz ele que este nem a gua nem qualquer um dos chamados 54 elementos, mas uma substncia que difere deles e infinita, da qual provm os cus e os mundos neles contidos. - Phys. Op., frag. 2 (Dox., p. 476; R.P., 16). Diz ele que esta imortal e sempre-nova" e que "abarca todos os mundos". - Hiplito, Ref, I, 6 (R.P., 17a). E naquilo a partir do que as coisas so geradas elas tambm sero destrudas, "como necessrio, pois do reparao e satisfao umas s outras, por sua injustia, de acordo com a ordem do tempo", como diz ele55 em termos um tanto poticos. - Phys. Op., frag. 2 (R.P., 16).

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E, alm disso, havia um movimento eterno, do qual resulta a origem dos mundos. - Hiplito, Ref, I, 6 (R.P., 17a).

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Ele no atribuiu a origem das coisas a nenhuma alterao da matria, mas disse que os contrrios no substrato, que era um corpo ilimitado, separavam-se. - Simplcio, Phys., p. 150, 20 (R.P., 18).

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14. Portanto, Anaximandro ensinava que havia algo eterno e indestrutvel do qual tudo provinha e para o qual tudo retornava; um reservatrio ilimitado, a partir do qual a perda da existncia continuamente recobrada. Isso apenas o desdobramento natural do pensamento que atribumos a Tales, e no h dvida de que Anaximandro pelo menos o formulou com clareza. Alis ainda podemos, at certo ponto, acompanhar o raciocnio que o levou a faz-lo. Tales havia considerado a gua corno a coisa mais apta a ser aquela de que todas as outras eram formas; Anaximandro deve ter-se perguntado corno a substncia primordial poderia ser urna dessas coisas particulares. Sua argumentao parece ter sido preservada por Aristteles, que tem a seguinte passagem em sua discusso sobre o Infinito:Alm disso, tambm no pode haver um corpo simples e nico que seja infinito, ou como afirmam alguns. um corpo distinto dos elementos, os quais derivariam dele, ou sem essa qualificao. Pois h quem faa deste [isto , de um corpo distinto dos elementos] o infinito, e no o ar ou a gua, a fim de que as outras coisas no sejam destrudas por sua infinitude. Eles esto em oposio uns aos outros - o ar frio, a gua mida e o fogo quente - e, portanto, se algum deles fosse infinito, os demais j teriam deixado de existir. Por conseguinte, dizem que o infinito algo diferente dos elementos, e que dele nascem os elementos. - Aristteles, Phys. r, 5. 204b22 (R.P., 16b).

A substncia primordial no um dos "elementos"

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Fica claro que, nesse ponto, Anaximandro contrastado com Tales e Anaxmenes. E no h razo alguma para duvidar de que a exposio desse raciocnio esteja essencialmente correta, embora a forma seja a de Aristteles e, em particular, os "elementos" sejam um anacronismo. 56 Anaximandro, ao que parece, partiu do conflito entre os contrrios que compem o mundo; o quente era contrrio ao frio, o seco, ao mido. Eles estavam em guerra, e qualquer predominncia de um em relao ao outro era urna "injustia" pela qual eles deveriam dar reparao um ao outro no devido tempo. S7 Se Tales estivesse certo ao dizer que a gua era a realidade fundamental, difcil seria saber corno qualquer outra coisa jamais poderia ter existido. Um dos lados da oposio, o frio e mi-

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do, teria tido livre curso, enquanto o quente e seco estaria fora da bata lha h muito tempo. Assim, tem de haver algo que no seja em si mes mo um dos contrrios em luta, algo mais primitivo do qual eles nasarr e no qual eles mais uma vez sejam destrudos. A interpretao natura: das palavras de Teofrasto que Anaximandro deu a esse algo o nOmt de $1crt [physis]; a afirmao atual de que o termo apxi] [arkh) foi introduzido por ele parece decorrer de um mal-entendido. 58 Vimos que, quando Aristteles usou esse termo ao discutir Tales, pretendeu referirse ao que se chama de "princpio material"," e difcil acreditar que a palavra possua aqui qualquer outro significado.Exposio aristotlica da teoria

15. Era natural que Aristteles visse essa teoria como uma antecipao

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ou um pressentimento de sua prpria doutrina da "matria indeterminada"60 e que, vez por outra, expressasse as idias de Anaximandro em termos da teoria dos "elementos" posteriormente formulada. Ele sabia que o Ilimitado era um corpo,61 embora, em seu prprio sistema, no houvesse espao para nada de corpreo que fosse anterior aos elementos; assim, Aristteles tinha de falar disso como um corpo ilimitado, que estivesse "ao lado" ou fosse "distinto" dos elementos (rrapa ~a (HOIXE1a [par t stoikhia] l. Ao que eu saiba, ningum duvidou de que, ao usar essa frase, ele estivesse se referindo a Anaximandro. Em vrios outros lugares, Aristteles menciona algum que afirmava ser a substncia primordial algo "intermedirio" aos elementos ou situado entre dois deles. 62 Quase todos os comentadores gregos tambm atribuem isso a Anaximandro, mas a maioria dos autores modernos recusa-se a segui-los. Sem dvida, fcil mostrar que o prprio Anaximandro no poderia ter dito algo dessa natureza, mas isso no constitui uma verdadeira objeo. Aristteles expe as coisas a seu modo, independentemente de consideraes histricas, e difcil aceitar que seja mais anacrnico chamar o Ilimitado de "intermedirio entre os elementos" do que dizer que ele "distinto dos elementos". Na verdade, se em algum momento introduzimos os elementos, a primeira dessas descries ser a mais adequada das duas. De qualquer modo, se nos recusarmos a entender essas passagens como referentes a Anaximandro, teremos de dizer que Aristteles prestou enorme ateno a algum cujo nome se perdeu, e que no s concordava com algumas das idias de Anaximandro, mas tambm usou algumas de suas expresses mais caractersticas. 63 Podemos acrescentar que, em uma ou duas passagens,68

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Aristteles certamente parece identificar o "intermedirio" com aquilo que "distinto" dos elementos. 64 H at uma passagem em que ele fala do Ilimitado de Anaximandro como uma "mistura", embora suas palavras talvez comportem outro sentido. 6s Mas isso no tem importncia para nossa interpretao de Anaximandro. Ele certamente no pode ter dito nada sobre os "elementos': nos quais ningum pensou antes de Empdocles e ningum poderia pensar antes de Parmnides. Essa questo foi mencionada apenas por ser a origem de uma longa controvrsia e por esclarecer o valor histrico das afirmaes de Aristteles. Do ponto de vista de seu prprio sistema, estas podem ser justificadas; noutros casos, porm, temos de lembrar que, quando ele parece atribuir uma idia a um pensador anterior, no precisamos entender o que ele diz num sentido histrico. 6616. Sem dvida, o motivo de Anaximandro conceber a substncia priA substncia primordial infinita

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mordial como ilimitada foi, tal como indicou Aristteles, "que o devir no pode terminar".67 No est claro, porm, que essas palavras sejam dele, embora os doxgrafos se refiram a elas como se o fossem. Para ns, basta saber que Teofrasto, que vira seu livro, atribuiu-lhe essa idia. E, com certeza, sua viso do mundo o levaria a compreender a necessidade de um reservatrio ilimitado de matria. Os "contrrios", como vimos, esto em guerra uns com os outros, e sua luta marcada por usurpaes "injustas" de ambos os lados. O quente comete uma "injustia" no vero, o frio, no inverno, e isso levaria, a longo prazo, destruio de tudo, exceto do prprio Ilimitado, caso no houvesse um suprimento inesgotvel dele, do qual os contrrios pudessem ser continuamente separados outra vez. Devemos, portanto, imaginar urna massa infinita, que no nenhum dos opostos que conhecemos, estendendo-se ilimitadamente por todos os cantos do mundo em que vivemos. 6s Essa massa um corpo do qual nosso mundo emergiu num dado momento, e no qual ele um dia ser reabsorvido.17.

Dizem que Anaximandro acreditava na existncia de "inmeros mundos no Ilimitado";69 temos que decidir entre a interpretao de que, embora todos os mundos sejam perecveis, existe ao mesmo tempo um nmero ilimitado deles, e a viso de Zeller de que um novo mundo nunca tem origem antes que o antigo tenha desaparecido, de modo que nunca existe mais de um mundo de cada vez. Como esse ponto de

Os mundos inumerveis

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importncia fundamental, ser preciso examinar cuidadosamente as evidncias. Em primeiro lugar, a tradio doxogrfica comprova que Teofrasto discutiu as opinies de todos os filsofos anteriores acerca da existncia de apenas um mundo ou de um nmero infinito deles, e no h dvida de que, quando atribuiu "mundos inumerveis" aos atomistas, pretendia referir-se a mundos coexistentes, e no sucessivos. Ora, se ele tivesse classificado duas vises to diferentes sob uma nica epgrafe, teria tomado o cuidado de assinalar em que aspecto elas diferiam, e no h qualquer sinal desse tipo de distino. Ao contrrio, Anaximandro, Anaximenes, Arquelau, Xenfanes, Digenes, Leucipo, Demcrito e Epicuro so mencionados juntos, todos eles, como adeptos da doutrina de "mundos inumerveis" por todos os lados deste mundo,'o e a nica distino que, enquanto Epicuro tornou desiguais as distncias entre esses mundos, Anaximandro disse que todos eram eqidistantes,?l Zeller rejeitou esse testemunho,'2 alegando que nunca podemos confiar num escritor que atribui "mundos inumerveis" a Anaxmenes, Arquelau e Xenfanes . Com respeito aos dois primeiros, espero mostrar que a afirmao correta, alm de ser pelo menos inteligvel no caso do ltimo. 73 De qualquer modo, a passagem vem de cio,74 e no h razo para se duvidar de que provenha de Teofrasto, embora o nome de Epicuro tenha sido acrescentado posteriormente. Isso se confirma peIo que diz Simplcio:Os que presumiam mundos inumerveis, por exemplo, Anaximandro, Leu-

cipo, Demcrito e, numa poca posterior, Epicuro, afirmavam que estespassavam a existir e desapareciam ad infinitum, alguns sempre surgindo e outros desaparecendo.7 5

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praticamente certo que isso tambm provenha de Teofrasto atravs de Alexandre. Passamos, em seguida, a uma afirmao importantssima que Ccero copiou de Filodemo, autor do tratado epicurista sobre a religio encontrado em Herculano, ou talvez da fonte imediata daquela obra. "A opinio de Anaximandro", nas palavras que ele atribui a Veleio, "era que havia deuses que surgiam, elevavam-se e desapareciam a longos intervalos, e que estes eram os mundos inumerveis";76 isso, claramente, deve ser entendido junto com a afirmao de cio de que, segundo Anaximandro, os "inmeros cus eram deuses. 77 Ora, muito mais natural entender os "longos intervalos" como intervalos de espao, ao invs de70

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intervalos de tempo;'8 se assim for, teremos uma concordncia perfeita entre nossas fontes. podemos acrescentar que muito antinatural compreender a afirmaO de que o Ilimitado "abrange todos os mundos" com referncia a mundos que se sucedessem no tempo, pois, segundo essa viso, num momento qualquer, haveria apenas um mundo a "abranger". Alm disso, o argumento mencionado por Aristteles - o de que, se o que est fora dos cus infinito, o corpo deve ser infinito, e deve haver mundos inumerveis - s admite um sentido e com certeza pretende representar o raciocnio dos milsios, pois eles eram os nicos cosmlogos a afirmar que havia um corpo ilimitado fora dos cus.'9 Por ltimo, sabemos que Petrnio, um dos primeiros pitagricos, afirmava existirem apenas 183 mundos, dispostos num tringulo,80 o que pelo menos mostra que a doutrina da pluralidade dos mundos era muito mais antiga do que os atomistas.18. Os doxgrafos dizem que foi o "movimento eterno" que deu origem

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a "todos os cus e todos os mundos neles contidos". Vimos ( VIII) que, provavelmente, essa apenas a maneira aristotlica de expressar a idia e que no devemos identificar o movimento primordial do Ilimitado com nenhum movimento puramente mundano, como o da rotao diurna. Ademais, isso seria incompatvel com a doutrina dos mundos inumerveis, pois cada um deles teria, presumivelmente, seu prprio centro e sua prpria rotao diurna. Quanto verdadeira natureza desse movimento, no dispomos de nenhuma afirmao clara, mas o termo "separao" (1tKptcrt [apkrisis]) sugere, antes, um processo de agitar e peneirar, como numa joeira ou num crivo. Isso apresentado no Timeu, de Plato, como a doutrina pitagrica,81 e os pitagricos seguiram estritamente Anaximandro em sua cosmologia ( 54). A escola de Abdera, como ser mostrado ( 179), atribua a seus tomos um movimento do mesmo tipo e tambm dependia sobretudo dos milsios no tocante aos detalhes de seu sistema. Na falta de testemunhos expressos, isso deve permanecer como uma conjectura. Mas, quando chegamos ao movimento do mundo aps ele ter sofrido esse processo de "separao", estamos em terreno mais firme. certo que um dos aspectos principais da antiga cosmologia era o papel desempenhado pela analogia com um redemoinho na gua ou no vento, uma 8ivll [dne] (ou 8tvo [dinos]),82 e no h dvida de que lcito71

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

considerarmos isso como a doutrina de Anaximandro e Anaximenes."' Ela surgiria com muita naturalidade na mente de pensadores que partiram da gua como substncia primordial e terminaram no "ar", e forneceria uma explicao admirvel para a posio da terra e da gua no centro e do fogo na circunferncia, com o "ar" entre eles. As coisas pesadas tendem para o centro de um vrtice e as coisas leves so empurradas para a periferia. Convm observar que, nessa poca, no se falava em rotao de uma esfera; o que temos de imaginar o movimento giratrio de um plano ou planos mais ou menos inclinados para a superfcie da Terra."4 Um dado favorvel conjectura feita acima sobre a natureza do movimento primordial que ela proporciona uma explicao dinmica satisfatria para a formao da ivll [dneJ (rotao), e veremos mais uma vez ( 180) que os atomistas sustentavam exatamente essa viso de sua origem.'(

A origem dos corpos celestes

19.

Os doxgrafos tambm nos do algumas indicaes do processo pelo qual as diferentes partes do mundo surgiram do Ilimitado. A seguinte afirmao provm, em ltima instncia, de Teofrasto:Diz ele que uma coisa capaz de gerar o quente e o frio a partir do eterno se separou na origem deste mundo. Disso surgiu uma esfera de chamas que se formou em volta do ar que circunda a Terra, tal como a casca em torno de uma rvore. Quando ela foi arrancada e encerrada em alguns anis, passaram a existir o Sol, a Lua e os astros. - Pseudoplutarco, Strom., frag. 2 (R.P., 19)."

A partir disso vemos que, quando uma parte do Ilimitado separouse do restante para formar o mundo, primeiro ela se diferenciou nos dois contrrios, quente e frio. O quente aparece como a chama que circunda o frio; o frio, como a terra circundada pelo ar. No nos dito de que modo o frio se transformou em terra, gua e ar, mas h uma passagem na Meteorologia de Aristteles que esclarece um pouco essa questo. Depois de discutir as opinies dos "telogos" com respeito ao mar, diz ele:Mas os que so mais doutos na sabedoria dos homens indicam uma origem para o mar. A princpio, dizem eles, toda a regio terrestre era mida; e, medida que foi sendo ressecada pelo Sol. a parte dela que se evaporou produziu os ventos e as voltas do Sol e da Lua,86 enquanto a parte que ficou para trs formou o mar. Portanto, eles julgam que o mar est diminuindo, por ser ressecado, e que, no final, ficar inteiramente seco.

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E o mesmo absurdo ocorre para os que dizem que no principio tambm a Terra era mida e que, quando a regio do mundo ao redor da Terra foi aquecida pelo Sol, produziu-se o ar e todo o cu aumentou, e que ele (o ar) produziu ventos e causou as voltas (do Sol)." - Ibid., 2, 355a21 (R.P., 20a).

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Em seu comentrio a essa passagem, Alexandre diz que tal era a viso de Anaximandro e Digenes, e cita Teofrasto como fonte para sua afirmao. Isso confirmado pela teoria de Anaximandro sobre o mar, tal como descrita pelos doxgrafos ( 20). Assim, conclumos que, depois da primeira separao entre o quente e o frio pela Vll [dne] (rotao), o calor da chama transformou parte do interior mido e frio do mundo em ar ou vapor - tudo uma s coisa nessa poca - , e a expanso dessa nvoa decomps a prpria chama em anis. Logo voltaremos a esses anis, mas antes precisamos examinar o que nos dito sobre a Terra. A origem da Terra e do mar a partir da matria mida e fria que foi "separada" no princpio descrita da seguinte maneira:20. A Terra

e o mar

O mar o que restou da umidade original. O fogo secou a maior parte dele e transformou o resto em sal, ao ressec-lo. - cio, IlI, 16, 1 (R.P.) 20a). Diz ele que a Terra tem forma cilndrica e que sua profundidade equivale a um tero de sua largura. - Pseudoplutarco, Strom., frag. 2 (R.P., ibid.). A Terra est suspensa livremente, sem que nada a mantenha no lugar. Permanece onde est em virtude de sua eqidistncia de tudo. Sua forma cncava e redonda, semelhante a uma coluna de pedra. Estamos numa das superfcies, e a outra fica do lado oposto. 88 - Hiplito, Ref, I, 6 (R.P., 20).

Adotando por um momento a teoria popular dos "elementos", vemos que Anaximandro ps de um lado o fogo, como o quente e seco, e do outro todo o resto, como o frio, que tambm mido. Isso talvez explique como Aristteles veio a falar do Ilimitado como intermedirio entre o fogo e a gua. E vimos tambm que o elemento mido foi parcialmente transformado em "ar" ou vapor pelo fogo, o que explica como Aristteles pde dizer que o Ilimitado era algo entre o fogo e o ar, ou entre o ar e a gua. 89 O interior frio e mido do mundo no , na verdade, a gua. sempre chamado de "o mido" ou "o estado mido". Isso porque ele ainda precisa se diferenciar, sendo transformado, sob a influncia do calor, em terra, gua e vapor. A secagem gradativa da gua pelo fogo um bom exemplo do que Anaximandro quer dizer com "injustia':73

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

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Tales dissera que a Terra flutuava sobre a gua, mas Anaximandro percebeu que ela ficava em livre suspenso no espao (ilE'tOlpO [metoros]) e no precisava de nenhum suporte. Aristteles preservou a argumentao usada por ele. A Terra eq idistante da circunferncia do vrtice em todas as direes, e no h razo para que se mova para cima, para baixo ou para os lados.'o A doutrina dos mundos inumerveis seria incompatvel com a existncia de um alto e baixo absolutos do Universo, de modo que o argumento bastante slido. A posio da Terra se deve liVll [dne] (rotao), pois as massas maiores tendem para o centro de um redemoinho." H evidncia de que, para Anaximandro, a Terra participava do movimento rotatrio. 92 Mas ela no uma esfera, de modo que no devemos falar em revoluo axial. A forma atribuda Terra por Anaximandro fcil de explicar, se adotarmos a viso de que o mundo um sistema de anis em rotao. Ela apenas um anel slido no meio do vrtice.Os corpos celestes

Vimos que a chama, impelida para a circunferncia do vrtice, decomposta em anis pela presso do vapor em expanso produzido por seu prprio calor. Forneo aqui as afirmaes de Hiplito e cio a respeito da formao dos corpos celestes a partir desses anis.21.

Os corpos celestes so crculos de fogo, separados do fogo do mundo e cercados por ar. E existem respiradouros, umas passagens semelhantes a flautas, nas quais os corpos celestes se mostram. por isso que, quando os respiradouros so vedados, ocorrem os eclipses. E a Lua ora parece ficar cheia, ora minguar, em decorrncia da vedao ou da abertura das passagens. O crculo do Sol tem 27 vezes o tamanho da (Terra, enquanto o da) Lua 18 vezes maior. 93 O Sol o mais alto de todos, e os mais baixos so os cr-

culos das estrelas. - Hiplito, Ref, l, 6 (R.P., 20).Os corpos celestes seriam compresses de ar semelhantes a argolas repletas de fogo, expelindo chamas em um certo ponto atravs de orifcios. - cio, lI, '3, 7 (R.P., 19a). O Sol seria um crculo 28 vezes maior do que a Terra, como a roda de um carro, com o aro oco, repleta de fogo, mostrando esse fogo num certo ponto atravs de um orifcio, como que pelo tubo de um fole. - cio, lI, 20, I (R.P., 19a).

o Sol igual Terra, mas o crculo por onde ele expira e pelo qual levado em redor teria 27 vezes o tamanho da Terra. - cio, U. 21, 1. O Sol entraria em eclipse quando o orifcio do respiradouro do fogo fosse vedado. - cio, lI, 24, 2 .

74

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CAPTULO I A ESCOLA DE MILETO

lro lelrdo ra ~s

A Lua seria um crculo 19 vezes maior que a Terra, qual a roda de um carro

que tivesse o aro oco e repleto de fogo, como o do Sol, tambm obliquamente situado como este, com um respiradouro semelhante ao tubo de umfole. [Ela entra em eclipse por causa das voltas da roda.] 94 - cio, lI, 25, A Lua seria eclipsada ao ser vedado o orifcio da roda. - cio, lI, 29. 1.1.

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(O trovo e o relmpago etc.) seriam causados, todos eles, pelas rajadas de vento. Quando este encerrado numa nuvem densa e irrompe para fora dela com violncia, o rompimento produz o barulho e essa fenda d a impresso de um claro, em contraste com o negrume da nuvem. - cio,lU, 3,1.

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uma corrente de ar (isto , vapor), surgida quando suas partculas mais sutis e mais midas so agitadas ou dissolvidas pelo Sol. - cio. 111, 7. 1.

o vento

H uma curiosa variao nas cifras fornecidas para o tamanho das rodas dos corpos celestes, e parece muito provvel que 18 e 27 se refiram sua circunferncia interna, enquanto 19 e 28 circunferncia externa. Talvez possamos inferir que as rodas das "estrelas" teriam nove vezes o tamanho da Terra, pois os nmeros 9, 18 e 27 desempenham um papel considervel nas cosmogonias primitivas!' No vemos as rodas de fogo como crculos completos, pois o vapor ou nvoa que as formou encerra o fogo e forma um anel externo, exceto num ponto de sua circunferncia, pelo qual o fogo escapa, e esse o corpo celeste que efetivamente vemos!6 possvel que a teoria das "rodas" tenha sido sugerida pela Via Lctea. Se perguntarmos de que modo as rodas de ar podem tornar o fogo invisvel para ns, sem que elas mesmas se tornem visveis, a resposta ser que essa era a propriedade do que os gregos chamavam de "ar" nessa poca. Por exemplo, quando um heri homrico torna-se invisvel, ao se vestir de ar", podemos enxergar atravs do ar" e do he-

,

rL97 Convm acrescentar que o relmpago explicado exatamente do mesmo modo que os corpos celestes. Tamhm ele seria fogo que irrompe por entre o ar condensado - nesse caso, as nuvens de tempestade. Parece provvel que essa tenha sido a verdadeira origem da teoria e que Anaximandro tenha explicado os corpos celestes por analogia com o relmpago, e no o inverso, Convm lembrar que a meteorologia e a astronomia ainda no se distinguiam,98 e que a teoria das "rodas" ou anis seria uma inferncia natural da idia do vrtice, Parece lcito prosseguirmos com base na autoridade de Teofrasto; se assim , algumas outras inferncias parecem ser inevitveis. Em pri75

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A AURORA DA FILQS OFIA GREGA

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meiro lugar, Anaximandro tinha se libertado da antiga idia de os cus serem uma abbada slida. Nada nos impede de enxergar ao longe atravs do Ilimitado, e difcil supor que Anaximandro no acreditasse faz-lo. O cosmos tradicional deu lugar a um esquema muito maior o de inmeros vrtices numa massa ilimitada, que no gua nem ar. Sendo assim, difcil resistir crena em que o que chamamos de estrelas fixas se identificava com os "mundos inumerveis", que eram tambm "deuses". Decorre da que a rotao diurna seria apenas aparente, pois as estrelas encontram-se a distncias desiguais de ns e no podem ter uma rotao em comum. Esta deve decorrer, portanto, da rotao da Terra cilndrica em 24 horas. Vimos que a Terra certamente participava da rotao (oVIl [dneJ). Isso elimina uma dificuldade: a roda dos "astros", que fica entre a Terra e a Lua, pois as estrelas fixas no poderiam de modo algum ser explicadas por uma "roda", sendo necessria uma esfera. Quais so, portanto, os "astros" explicados por essa roda interna? Arrisco-me a sugerir que so a estrela matutina e a estrela vespertina, que, como vimos (Introduo, n. 56, p. 47), ainda no eram reconhecidas como um nico astro. Em outras palavras, creio que Anaximandro via as estrelas fixas como estacionrias, cada uma girando em seu prprio vrtice. Isso decerto nos envolve numa dificuldade no tocante rotao do Sol e da Lua. Deduz-se da natureza do vrtice que eles devem girar na mesma direo que a Terra, ou seja, com base na suposio que acabamos de fazer, do Oeste para o Leste, e que deve ser uma rotao mais lenta que a da Terra, o que incompatvel com o fato de que a circunferncia de um vrtice gira mais rpido do que seu centro. Mas essa foi uma dificuldade que todos os cosmlogos da Jnia, at Demcrito, tiveram de enfrentar. Afirmando, como o faziam, que toda a rotao se dava na mesma direo, eles tiveram que dizer que o que chamamos de maiores velocidades eram as menores. A Lua, por exempio, no giraria to depressa quanto o Sol, uma vez que o Sol se aproxima mais da velocidade das estrelas fixas. 99 O fato de Anaximandro no haver observado essa dificuldade no chega a surpreender, se nos lembrarmos que ele foi o primeiro a atacar o problema. No imediatamente bvio que o centro do vrtice deva ter um movimento mais lento do que a circunferncia. Isso serve para explicar a origem da teoria de que os corpos celestes tm uma rotao prpria, em sentido inverso ao da revoluo diurna, que teremos motivos para atribuir a Pitgoras ( 54) .76

I.

CAPTULO I A ESCOLA DE MILETO

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22. De qualquer modo, j vimos o bastante para inferir que as especulaes de Anaximandro sobre o mundo eram de carter extremamente ousado. Chegamos agora audcia suprema: sua teoria da origem das criaturas vivas. A descrio feita por Teofrasto foi bem preservada pelos doxgrafos:

Os animais

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As criaturas vivas foram geradas do elemento mido, medida que ele foi evaporado pelo Sol. No comeo, o homem era semelhante a um outro animal, a saber, o peixe. - Hiplito, Ref, I, 6 (R.P., 22a).Os primeiros animais foram produzidos na umidade, cada um envolto numa casca espinhosa. medida que foram avanando na idade, chegaram parte mais seca. Quando a casca se desprendeu,lOo sobreviveram por um breve perodo. IOI - cio, V, 19, 4 (R.P., 22). Alm disso, diz ele que, originalmente, o homem nasceu de animais de outra espcie. Sua razo que, enquanto os outros animais aprendem rapidamente por si prprios a obter seu alimento, somente o homem precisa de um longo perodo de amamentao. Portanto, se ele tivesse sido originalmente como agora, nunca teria sobrevivido. - Pseudoplutarco, Strom., p.2 (R.P., ibid.). Ele declara que, no comeo, os seres humanos surgiram no interior de peixes e que, depois de a terem sido criados, como os tubares,102 e se tornado capazes de se proteger, foram finalmente lanados costa e ocuparam a terra. - Plutarco, Symp. Quaest., 730f (R.P., ibid.).

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Vez por outra, a importncia dessas afirmaes tem sido exagerada e, com freqncia ainda maior, subestimada. Anaximandro foi chamado por alguns de precursor de Darwin, enquanto outros trataram tudo como um resqucio de mitologia. Por conseguinte, importante assinalar que esse um dos raros casos em que temos no apenas um placitum, mas uma indicao das observaes em que ele se baseou. Fica claro que Anaximandro tinha uma idia do que se quer dizer por adaptao ao meio ambiente e sobrevivncia do mais apto, e que ele percebeu que os mamferos superiores no poderiam representar o tipo original de animal. Por essa razo, voltou os olhos para o mar e, naturalmente, concentrou-se nos peixes que apresentam a mais estreita analogia com os mammalia. Johannes Mller mostrou que as afirmaes de Aristteles sobre o galeus levis foram mais exatas que as de naturalistas posteriores, e vemos agora que essas observaes j tinham sido feitas por Anaximandro. O modo como os tubares alimentam seus77

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

filhotes forneceu-lhe exatamente aquilo de que precisava para explicar a sobrevivncia dos primeiros animais,!03

UI. ANAXMENES Vida

23. Anaxmenes de Mileto, filho de Eurstrates, foi, segundo Teofras-

to, "companheiro" de Anaximandro. 104 Apolodoro parece haver afirmado que ele "floresceu" aproximadamente na poca da queda de Sardes (54615 a.c.) e morreu em OI.LXlII (528/525 a.C.).105 Em outras palavras, ele nasceu quando Tales "floresceu" e "floresceu" quando Tales morreu, o que significa que Apolodoro no tinha informaes claras sobre as datas de sua vida. Talvez tenha situado sua morte na sexagsima terceira Olimpada, porque isso indicava apenas trs geraes da escola de Mileto. 106 Assim, no podemos dizer nada de positivo quanto s datas, exceto que ele devia ser mais jovem do que Anaximandro.

o livro deAnaxmenes

24. Anaxmenes escreveu um livro que sobreviveu at a poca da crti-

ca literria, pois somos informados de que usou um idioma jnico simples e despretensioso,lO? muito diferente, ao que podemos supor, da prosa potica de Anaximandro. 108 As especulaes de Anaximandro distinguiam-se pelo arrojo e a amplitude; as de Anaxmenes foram marcadas pela qualidade oposta. Ele parece ter elaborado criteriosamente seu sistema, porm rejeitou as teorias mais audaciosas de seu predecessor. O resultado que, embora sua viso de mundo se assemelhe menos verdade que a de Anaximandro, talvez seja mais fecunda em idias bsicas.25. Anaxmenes um dos fIlsofos sobre os quais Teofrasto escreveu

Teoria da substncia primordial

uma monografia especial,109 o que nos d uma garantia adicional da confiabilidade da tradio. As passagens seguintes llo so as que contm a descrio mais completa dos aspectos principais de seu sistema:Anaxmenes de Mileto, filho de Eurstrato, e que fora companheiro de Anaximandro, disse, tal como este, que a substncia subjacente era una e infinita. Entretanto, no afirmou que fosse indefinida, como Anaximandro, e sim definida, pois disse que ela era Ar. - Phys. Op., frag. 2 (R.P., 26) .

Dele rdo ar] surge, em suas palavras, tudo o que existe, existiu e existir, os deuses e as coisas divinas, enquanto outras coisas provm de sua descendncia. - Hiplito, Rei, I, 7 (R.P., 28) .

78

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CAPiTULO J A ESCOLA DE MILETO

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Disse ele que assim como nossa alma, sendo ar, mantm-nos unidos, o sopro e o ar abarcam o mundo inteiro". - cio, 1,3.4 (RP.) 28).E a forma do ar a seguinte. Nos lugares em que mais uniforme, ele invisvel a nossos olhos, mas o frio e o calor, a umidade e o movimento, tornam-TIO visvel. Ele est sempre em movimento, pois, se no estivesse, no se modificaria tanto. - Hiplito, Ref, I, 7 (R.P., 28). Ele difere nas vrias substncias, por sua rarefao e condensao. - Phys. Op., frag. 2 (R.P., 26).

Quando se dilata, tornando-se mais rarefeito, ele se transforma em fogo, ao passo que os ventos, por outro lado, so Ar condensado. As nuvens formam-se a partir do Ar por feltragem 111 e, ainda mais condensadas, transformam-se em gua. A gua, quando ainda mais condensada, transformase em terra e, quando condensada ao mximo possvel, transforma-se em pedras. - Hiplito, Ref, I, 7 (R.P., 28).

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26. A princpio, isso parece ser uma reduo da doutrina mais refinada de Anaximandro a uma viso pouco elaborada, mas, na verdade, no bem assim. Ao contrrio, a introduo da rarefao e da condensao na teoria um avano notvel. 1l2 Ela d coerncia, pela primeira vez, cosmologia milsia, uma vez que uma teoria que explica tudo como uma forma de uma nica substncia est claramente fadada a considerar quantitativas todas as diferenas. A nica maneira de salvar a unidade da substncia primordial dizer que todas as diversidades se devem presena de maior ou menor quantidade dela num determinado espao . E, uma vez que esse passo foi dado, j no preciso fazer da substncia primordial algo "distinto dos elementos'; para usar a expresso inexata mas conveniente de Aristteles; ela pode muito bem ser um deles.

Rarefao e condensao

27. O ar de que fala Anaximenes inclui muitas coisas que no devemos chamar pelo nome. Em seu estado normal, quando mais uniformemente distribudo, ele invisvel e corresponde ento ao nosso "ar"; o ar que inalamos e o vento que sopra. Por isso que Anaximenes O chamou de 1tVEUI-1U [pnuma] (sopro). Por outro lado, a antiga idia de que a nvoa ou vapor ar condensado continua a ser aceita sem questionamento. Empdocles, como veremos, foi o primeiro a descobrir que o que chamamos de ar era uma substncia corprea distinta, nem idntica ao vapor, nem ao espao vazio. Entre os primeiros cosmlogos, o "ar" sempre uma forma de vapor e at a escurido uma forma de "ar".79

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

Tambm foi Empdocles que esclareceu essa questo, ao mostrar que a escurido uma sombra.''' Foi natural Anaxmenes concentrar-se no "ar" como substncia primordial, pois, no sistema de Anaxmandro, ele ocupava um lugar intermedirio entre os dois contrrios fundamentais, o anel de chama e a massa fria e mida em seu interior ( 19). Sabemos por Plutarco que ele imaginava que o ar se aquecia ao ser rarefeito e esfriava ao ser condensado. Convencera-se disso mediante uma prova experimental curiosa: ao respirarmos com a boca aberta, o ar quente; quando nossos lbios se fecham, frio.'l4

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28. Esse argumento nos leva a um ponto importante da teoria, que corroborado pelo nico fragmento que nos chegou.'l5 "Assim como nossa alma, sendo ar, mantm-nos unidos, o sopro e o ar abarcam o mundo inteiro." A substncia primordial tem a mesma relao com a vida do mundo que com a do homem. Pois bem, essa era a viso pitagrica,116 e tambm um primeiro exemplo do argumento que parte do microcosmo para o macrocosmo, marcando, portanto, o incio de um interesse por questes fisiolgicas. 29. Voltemo-nos agora para a tradio doxogrfica concernente for-

As partes do mundo

mao do mundo e de suas partes:Ele diz que, quando o ar foi feItrado, a terra passou a existir. Ela muito larga e, por conseguinte, sustentada pelo ar. - Pseudoplutarco, Strom.) frag.3 (RoP.,25) Do mesmo modo, o Sol e a Lua e os outros corpos celestes, que so de natureza gnea, so sustentados pelo ar, por causa de sua largura. Os corpos celestes foram produzidos a partir da Terra, pela umidade que se elevou dela. Quando esta se rarefaz, passa a existir o fogo, e os astros so compostos do fogo assim elevado s alturas. H tambm corpos de natureza terrena na regio dos astros) girando juntamente com eles. E ele afirma que os corpos celestes no se movem sob a Terra, como supem outros, mas ao redor dela, tal como um gorro gira em torno de nossa cabea. O Sol se oculta da viso, no por ficar embaixo da Terra, mas por ser encoberto pelas partes mais altas da Terra e por aumentar a sua distncia de ns. Os astros no fornecem calor por causa da imensido de sua distncia. - Hiplito, Ref, I, 7, 4-6 (RoP., 28). Os ventos so produzidos quando o ar se condensa e se precipita sob a propulso, mas) quando ele se concentra e se adensa ainda mais) geram-se as

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CAPTULO I A ESCOLA DE MILETO

nuvens; e, por ltimo, ele se transforma em gua,l17 - Hip6lito, ReI, I, 7, 7 (Dox., p. 561).I-

Os astros [fixam-se como pregos na abbada cristalina dos cus, mas hquem diga que eles J so folhas gneas, como pinturas. 1I8 (Dox., p. 344).-

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Eles no se movem sob a Terra, mas giram em torno dela. - Ibid., 16, 6 (Dox., p. 348).O Sol gneo. - Ibid., 20, 2 (Dox., p. 348). Ele largo como uma folha. - Ibid., 22, 1 (Dox., p. 352).

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Os corpos celestes retornam em seu curso,119 graas resistncia do ar comprimido. - Ibid., 23, 1 (Dox., p. 352).A Lua feita de fogo. - Ibid., 25, 2 (Dox., p. 356).

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Anaxmenes explicou o relmpago como Anaximandro, acrescentando, como ilustrao, o que acontece no caso do mar, que reluz quando cortado pelos remos. - Ibid., IJI, 3, 2 (Dox., p. 368).O granizo se produz quando a gua se congela na queda; a neve, quando

h ar aprisionado na gua. - cio, 111, 4, 1 (Dox., p. 370).O arco-ris produzido quando os raios do Sol incidem sobre o ar condensado e denso. Da sua parte anterior parecer vermelha, ao ser queimada pelos raios do Sol, enquanto a outra parte escura, graas predominncia da umidade. E ele diz que o arco-ris produzido noite pela Lua, mas no com freqncia, porque no h Lua cheia constantemente e porque a luz da Lua mais fraca que a do Sol. - Scho/. Arat. l20 (Dox., p. 231). A Terra teria a forma semelhante de uma mesa. - cio, In, 10, 3 (Dox., P377). A causa dos terremotos era o ressecamento e a umidade da Terra, ocasionados, respectivamente, pelas secas e pelas chuvas fortes. - Ibid.) 15, 3 (Dox., p. 379).

Vimos que foi lcito Anaxmenes retornar a Tales no tocante natureza da substncia primordial, mas o efeito disso nos detalhes de sua cosmologia foi lamentvel. A Terra voltou a ser imaginada como um disco semelhante a uma mesa, flutuando no ar. O Sol, a Lua e as estrelas tambm seriam discos de fogo que flutuam no ar "como folhas': idia naturalmente sugerida pelo "redemoinho" (oVll [dne]). Segue-se da que os corpos celestes no poderiam se mover sob a Terra noite, como deve ter sustentado Anaximandro, mas apenas circund-Ia lateralmente,81

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

como um gorro ou uma m de pedra. '2' Essa viso tambm mencionada na Meteorologia '22 de Aristteles, em que se faz referncia elevao das partes setentrionais da Terra, que torna possvel os corpos celestes ocultarem-se da viso. Isso pretende apenas explicar por que as estrelas fora do crculo rtico parecem nascer e se pr, e a explicao bastante adequada, se nos lembrarmos de que o mundo era visto como algo que gira num plano. Ela inteiramente incompatvel com a teoria de uma esfera celeste. '23 Os corpos terrestres que circulam entre os planetas pretendem, sem dvida, explicar os eclipses e as fases da Lua.!24Os mundos inumerveis',!

30. Como se poderia esperar, h nos "mundos inumerveis" atribudos

a Anaxmenes a mesma dificuldade que h nos de Anaximandro. Mas as evidncias so muito menos satisfatrias. Ccero diz que Anaxmenes via o ar como um deus, e acrescenta que ele teve uma origem. 125 Isso no pode estar certo. O ar, como substncia primordial, certamente eterno, e muito provvel que Anaxmenes o chamasse de "divino", tal como fizera Anaximandro com o Ilimitado; mas certo que ele tambm falou de deuses que tiveram origem e desapareceram. Estes, no dizer dele, provinham do ar. Isso expressamente afirmado por Hiplito '26 e tambm por Santo Agostinho.J2 7 provvel que esses deuses devam ser explicados como os de Anaximandro. Simplcio, alis, tem uma viso diferente, mas possvel que tenha sido induzido a erro por uma fonte estica. '231. Para ns, no fcil reconhecer que, aos olhos de seus contempor-

Influncia de Anaxmenes

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neos e por muito tempo depois, Anaxmenes foi uma figura muito mais importante do que Anaximandro. No entanto, esse um fato verdadeiro. Veremos que Pitgoras, apesar de ter seguido Anaximandro em sua descrio dos corpos celestes, deveu muito mais a Anaxmenes na criao de sua teoria geral do mundo ( 53). Veremos tambm que, mais tarde, quando a cincia renasceu na Jnia, foi "filosofia de Anaxmenes" que ela se ligou ( 122). Anaxgoras adotou muitas de suas idias mais caractersticas ( 135), e o mesmo fizeram os atomistas,!29 Digenes de Apolnia voltou doutrina central de Anaxmenes e fez do Ar a substncia primordial, embora tambm tentasse combinar esse ponto de vista com as teorias de Anaxgoras ( 188). Examinaremos tudo isso mais adiante, mas me pareceu desejvel assinalar, desde j, que Anax-

CAPTULO I A ESCOLA DE MILETO

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menes marcou o ponto culminante da linha de pensamento iniciada por Tales, e mostrar como a "filosofia de Anaximenes" passou a representar a doutrina milsia como um todo. S pode t-lo feito por ter sido realmente obra de uma escola, da qual Anaxmenes foi o ltimo representante ilustre, e tambm pelo fato de sua contribuio para tal escola ter completado o sistema que ele havia herdado de seus antecessores. J vimos ( 26) que a teoria da rarefao e da condensao foi, na verdade, a verso mais completa do sistema milsio. Basta acrescentarmos que o reconhecimento claro desse fato ser a melhor pista tanto para a compreenso da prpria cosmologia milsia quanto para a dos sistemas que se seguiram a ela. No essencial, foi de Anaxmenes que todos eles partiram.NOTAS1.

Ver Introduo. 11. foro disse que a Antiga Mileto foi colonizada a partir de Milato, em ereta, numa data anterior da fortificao da nova cidade por Neleu (Estrabo, XIV, p. 634), e as escavaes recentes mostraram que a civilizao egia passou, nesse local, por uma transio gradativa para o jnico antigo. As moradias dos jnios desse perodo situam-se nos e entre os escombros do perodo "micnico", No h nenhum interldio "geomtrico",

2. Herdoto, I, 29. Ver Radet, La Lydie et le monde grec au temps des Mermnades (Paris, 1893).

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3. Herdoto, I, 75. Para uma avaliao correta da cincia jnica, importante lembrar o grande desenvolvimento da engenharia nessa poca. Mndrocles de Sarnas construiu a ponte sobre o Bsforo para o rei Dario (Herdoto, IV, 88), e Hrpalo de Tnedos construiu a ponte de Helesponto para Xerxes, depois de os egpcios e os fencios haverem fracassado nessa tentativa (Diels, Abh. der Rerl. Akad., 1904, p. 8). O tnel que atravessa a colina acima de Samos, descrito por Herdoto (In, 60), foi descoberto por escavadores alemes. Tem cerca de um quilmetro de comprimento, mas os nveis so quase exatos. Sobre esse assunto, ver Diels, "Wissenschaft und Technik bei den Hellenen" (Neue Jahrb., XXXIII, p. 3, 4). Nisso, como noutras coisas, os jnios deram continuidade s tradies "minicas". 4. Simplcio cita uma afirmao de Teofrasto de que Tales teve muitos predecessores (Dox., p. 475, 11). No h por que nos preocuparmos com isso, pois o escoliasta de Apolnio de Rodes (lI, 1248) diz-nos que ele fez de Prometeu o primeiro filsofo, o que meramente uma aplicao da literalidade peripattica a uma expresso de Plato (Phileb . 16c6). Cf. Nota sobre as fontes. 2. 5 Herdoto, 1,170 (R.P., 9d); Digenes, I, 22 (R.P., 9). Isso certamente tem relao com o fato, mencionado por Herdoto (I, 146), de que havia cadmeus da Becia entre os colonos jnios originais. Cf. tambm Estrabo, XIV, p. 633, 636; e Pausnias, VII, 2,7. Mas estes no eram semitas.

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

6. Digenes, I, 23. KalJlaXO ' aUtv otE:V Eupen'lv 'tfi apK'tOtl TI) JitKp kyrov V tOl 'I~POt OtroKUt T a~s~ kyEto , tOUto"tt 'te! KOtvc9 [di di hpesthai t; koin;J (por isso, deve-se seguir o comunal, isso , o comum). Tambm creio que, se entendermos o termo yo [lgosJ no sentido anteriormente explicado (n. 15, p. 177-178), no haver razo para duvidar das palavras que seguem. 43. As palavras yq> 'te!> 't .O WtKOUV'tt [lgo; t; t hIa dioikunti] (pela palavra que governa tudo) pertencem a Marco Aurlio. e no a Herclito. 44. Adotando o lca"v [kakn[ (mal) de Heitz, em vez de "ai [ki] (e), com Diels. 45. A palavra 8uJ.l [thyms J tem seu sentido homrico (o corao como sede do mpeto). A satisfao do desejo implica a troca do fogo seco da alma (frag. 74) pela

180

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CAPTULO 111 HERCLITO DE FESO

umidade (frag. 72). Aristteles equivocou-se nesse ponto, entendendo eu~ como raiva" (Eth. Nic., B, 2, 1105a8). 46. Isso parece referir-se s "trs vidas", Captulo 11, 45, p. 111-112. 47. Hermodoro foi para a Itlia e participou da elaborao das Doze Tbuas de Roma (ver n. 4, p. 176).

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48. Lendo

(dokonta] (as coisas que supe) com Schleiermacher (ou o[dokont' n, "as coisas que supe, de fato"] com Diels). Tambm leio ytVcOOKEt [ginskei] (conhece), ~t>("'Et [phylssei] (guarda, se agarra a) com Diels, que cita a combinao qruAaO"ouO't Kat )'lVWcrKOUO"t [phylssousi ki ginskousi] (guardam e conhecem) extrada de Hipcrates.OK.oVtaK.OV't' oOV

49. Sobre o significado de a~oov [dimon] (sina) nessa passagem, ver minha edio da tica de Aristteles, p. 1 et seq. 50. No me arrisquei a incluir as palavras ev9a ' vn [ntha d' enti] (para o que est l) no comeo, uma vez que o texto me parece incerto demais. Entretanto, ver a nota de Diels. 51. Ver Diels, Dox., p. 145. Devemos distinguir Rei, I e Rei, IX -como fontes de informao sobre Herclito. Este ltimo livro uma tentativa de mostrar que a heresia monarquista de Noeto de Esmerna provinha de Herclito, e constitui uma rica fonte de fragmentos heraclitianos. 52. Aristteles, Met. A, 3, 984a7 (R.P., 56c); Teofrasto, apud Simplcio, Phys., 23, 33 (R.P., 36c). 53. Quanto a esses relatos duplos, ver Nota sobre as fontes, 15. 54. Digenes, IX, 15 (R.P., 30c). Schleiermacher insistiu acertadamente nessa questo. 55. A palavra O"UVOlKElOUV [synoikeiun] usada por Filodemo sobre o mtodo de interpretao estico (cf. Dox., 547b, n.), e Ccero (N.D., I, 41) a traduz por accommodare. 56. Filon, Rer. div. her.,43 (R.P., 34e). 57. Esse foi o equvoco do livro de Lassalle. A fonte de seu engano foi a afirmao hegeliana de que no havia nenhuma proposio de Herclito que ele no houvesse incorporado em sua prpria lgica (Gesch. d. Phil., I, 328). O exemplo citado por ele a afirmao de que o Ser no existe mais do que o no-Ser, e para isso remete a Aristteles, Met. A, 4. Em Aristteles, porm, tal proposio no atribuda a Herclito, mas a Leueipo ou Demcrito, para quem significava que o espao era to real quanto o corpo ( 175). Na Metafsica, Aristteles realmente nos diz que "alguns" supem que Herclito afirma poder uma mesma coisa ser e no ser; mas ele acrescenta que no se deduz da que o homem pensa naquilo que diz (Met. r, 3, 1005b24). Isso explicado em K, 5, 1062a31, onde nos dito que, se questionado de uma certa maneira, Herclito podia ser levado a admitir o princpio da contradio; por conseguinte, no compreendia o que dizia. Em outras palavras, no tinha conscincia de seu prprio procedimento lgico. 58. Que o fogo de Herclito era algo da mesma ordem que o ar" de Anaxmenes claramente indicado em algumas passagens da Metafsica de Aristteles, como

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A AURORA DA FILOSOFIA GREGA

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A, 3, 984a5. Para corroborar a idia de que se pretendia falar de algo diferente do fogo literal, cita-se s vezes Plato, Crat., 413b; mas