boca do inferno 24
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Jornal do Centro Acadêmico de Letras da UFPR, edição 24, março de 2010.TRANSCRIPT
INFORMATIVO DO CENTRO ACADÊMICO DE LETRAS . UFPR
Editorial
eleições: obrigação ou direito // foi-se a terceira margem, vem o machado
Matérias
com todas as letras // pro-grama sat 2010 // o caso da avaliação
Crônicas
quadro negro para urubu //armadura // literatura como refúgio
Artigos Acadêmicos
fatos históricos na constru-ção da nacionalidade são-tomense na obra teatro do imaginário angolar de s. tomé e príncipe de fernando de ma-cedo. in(ter)cambio: fallos en el programa de augm
Produção Literária
coração inflamável // ciran-da no abismo // trilhando o caminho, caminhando a tri-lha // labirintos vivos // insé-culos // limbo // in the green // (sem título)
02 03.6 07.9 10.15 18.23
cal ufpr . boca do inferno . 2 cal ufpr . boca do inferno . 3
Este ano enfrentamos longo e cansativo processo eleitoral.
Enfrentamos? A democracia, uma herança que veio dos gre-
gos, estabelece uma série de regras e mecanismos que regu-
lam os direitos e deveres dos cidadãos de uma nação. Claro
que o conceito mudou de A.C. pra cá. Todavia, a essência é a
mesma. Daquela democracia que só levava em conta a opinião
de quem não era escravo, um poderoso instrumento sobrevi-
veu: o voto. O voto no Brasil, que já foi bastante restrito, hoje
é amplo e “universal”, apesar de ainda não ser direito de todos
os viventes no país (leia-se analfabetos). Mulheres, idosos,
adolescentes, todas as classes sociais. O voto não vê cor, sexo
nem poder aquisitivo. Uma beleza, não? Não. O caso é que os
brasileiros não sabem do poder do voto. Desconhecem que
podem revolucionar, podem fazer e desfazer qualquer movi-
mento com o botãozinho apertado na urna eletrônica. Mui-
tas pessoas reclamam da “obrigação” de votar. O caso é que,
se não fosse assim, quem é que garantiria a democracia? Bem,
este é outro assunto. Tratemos do objeto desta reflexão: o não
voto. Nas eleições, quando o eleitor dá sua opinião em deter-
minado assunto (seja escolhendo candidato alinhado aos
seus pensamentos, seja escolhendo uma maneira ou outra de
decidir o futuro da nação) exerce poder sobre a sua vida e a
alheia. Parece pouco? Certamente não. Aqui na UFPR, para
não deixar de ser, o voto é a principal maneira de conhecer
a opinião da comunidade. O que isso significa? Significa que
é através de pleitos que nós participamos da administração
da Universidade, direta ou indiretamente. Qual o problema?
Ah, o problema! Os nossos caros colegas, que já consideram
um martírio ter que sair do aconchego do lar um único do-
mingo a cada dois anos para eleger seus representantes (por-
que se consideram obrigados a isso), acreditam que, por não
ser obrigatório, não é preciso “perder tempo” com bobagens
eleitorais (caso aplicado a qualquer pleito, na faculdade, no
colégio, na sala de aula ou onde for). O que é democracia para
estas pessoas? Será que perdemos a noção dos nossos direi-
tos? Talvez, com essa realidade medonha de sujeiras que ve-
mos nas casas governamentais, tenhamos perdido a confian-
ça nas instituições públicas. É isso? Se é, por que não tiramos
aqueles que sujam a casa e colocamos alguém melhor? Ah,
é difícil..., diz alguém. Alguém que, mesmo podendo mudar,
prefere ficar inerte. Não podemos nos sujeitar ao que acon-
tece à nossa volta, não devemos deixar que as coisas andem
conforme a brisa bate na nossa face. É mais que necessário
que todos, todos mesmo, levantem suas cabeças e percebam
que podem mudar tudo o que quiserem. E isso pode ser feito
com apenas um gesto: votar. Esperamos que este texto sirva
de incentivo aos senhores colegas de Letras e que faça algum
efeito para que, quando alguém perguntar se vocês sabem
quem é o reitor, ou o chefe do departamento, ou o presiden-
te do CAL, vocês saibam responder e possam dizer: eu votei,
contra ou a favor, mas votei.
e finalmente finalizamos o processo eleitoral de 2010. depois de uma malsucedida votação, realizada em 05/10, o cal realizou novo pleito para a escolha dos novos diretores. no último dia 22, em “segundo turno”, a chapa “terceira margem do rio” foi eleita com 88% de aprovação (95 votos a favor, 10 contra e 03 nulos). como é nosso dever, faremos um breve relato da gestão “sintaxe@vontade”, que deixa o cal com a atuação em superávit no âmbito das realiza-ções, haja vista que se cumpriram a maioria das “promessas de campanha”. para quem não se recorda, a gestão que dirigiu o cal entre outubro de 2010 e outubro de 2010 tinha algumas metas (prometidas durante a campanha). apesar dos percalços do caminho (desistência de mais da metade dos membros, por exemplo), a gestão conseguiu levar adiante nove projetos significativos...
“As coisas mudam no devagar depressa dos tempos”, já dizia
Guimarães Rosa. A diretoria do Centro Acadêmico de Letras,
gestão 2010-2011, decidiu por maioria de votos cambiar o
“nome” da gestão. A partir de agora, com um novo conceito,
passou a “Terceira Margem do Rio” chamar-se “Foi-se o Ma-
chado”. Em breve, com novo visual e novos conceitos, ainda
que não tenhamos abandonado nenhum dos que divulgamos
no período eleitoral, colocaremos à disposição da comunida-
de o objetivo da mudança e apresentaremos a nova gestão
“Foi-se o Machado”. E, antes da pletora de críticas, nada me-
lhor que citar Machado de Assis: “A vida é cheia de obrigações
que a gente cumpre por mais vontade que tenha de as infringir
deslavadamente”. Está dada a notícia.
eleições
obrigação ou direito?
nota
Foi-Se a terCeira MargeM, VeM o MaCHado
josé olivir de freitas junior
PoR joSé oLiviR dE FREiTAS jUnioR
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01. Organização do patrimônio do CAL, que ganhou quatro computa-dores do Laboratório de Informática do curso de Psicologia, gra-ças à valiosa colaboração da colega Alessandra Diana Zilli (CAL gestão 2008), um armário e um aparelho de telefone.
02. Impressão de três edições deste nosso jornal (uma delas – esta – em colaboração com a nova chapa, atuante desde o primeiro dia)
03. Atualização da lista de e-mails, com repasse de informações (como eventos, cursos e atividades do CAL) à maioria dos alunos
04. Assistência aos alunos dos cursos de Japonês e Polonês (com a re-presentação junto ao DELIN e ao DELEM para a integração destes com as demais habilitações do curso)
05. Representação junto à Universidade na discussão da mudança de campus para o prédio da “Ponte Preta” (tivemos notícia oficial – da diretora do SCHLA – que permaneceremos no Complexo da Reitoria)
06. Eventos (Semana de Letras e Semana de Avaliação do Curso, além do Plebiscito, que movimentou pelo menos uma parte da galera, além da divulgação de eventos de outros locais)
07. Integração entre os alunos dos períodos matutino e noturno (com a festa “Olhos de Ressaca”, que foi um sucesso de público, além do Churras no Barigui)
08. Prestação de contas regular (Contas das festas foram publicadas no Blog e a Geral será em breve)
09. Divulgação e suporte a congressos e encontros da área de Letras (apoio a catorze estudantes com passagem de ida e volta para congressos em outros municípios e estados, além de orientação a alunos que apresentaram trabalho com apoio da PRAE)
01. Atualização do Estatuto do CAL para adéqua-lo ao Noovo Código Civil
02. Criação do mural de Classificados do CAL (ao lado dos elevadores do 10° andar
03. Inclusão do site do CAL no domínio virtual da UFPR (trocando em miúdos, criar um site “www.cal.ufpr.br”
04. Dar continuidade às edições do Boca (isso significa “periodizá-lo”)
05. Organizar as cópias do nosso Arquivo de Xerox
06. Remodelar a sede do CAL (com móveis mais modernos e planeja-dos para dar mais espaço para a galera “se achegar”)
07. Organizar e liberar para empréstimo os livros da nossa Biblioteca
08. Criar e fazer funcionar a Empresa Junior de Letras
09. Negociar com o SCHLA um novo espaço, mais amplo, para o CAL
10. Implementar a Avaliação Semestral de Docentes e Disciplinas
Enfim, uma gestão que trabalhou bastante pelo curso e pe-
los alunos, apesar de o trabalho não ser tão visível. Agora, há
pela frente muito mais trabalho. A diretoria eleita terá muito
a negociar, discutir e planejar. As metas da “Terceira Margem
do Rio”, entre outras, são estas (conforme o programa da cha-
pa, divulgado durante o período eleitoral):
Até aqui já é um trabalho e tanto! Esperamos que a nova ges-
tão possa contar com o apoio da comunidade discente, assim
como dos professores e servidores do curso, para que possa-
mos melhorar a cada dia, num esforço contínuo e colabora-
tivo, que tenha por fim o melhor para Todas as Letras. Boa
sorte a todos nós!
como é O questionário é composto com perguntas que registram a
satisfação ou não do aluno em relação ao seu curso, como, por
exemplo, se o curso foi a primeira opção do aluno, ou como
ele (aluno) é afetado por alguma situação específica do curso
ou da universidade, entre outras. O questionário é também
um veículo para a manifestação do aluno (com reclamações,
sugestões, etc.). Importante citar que, como meio de validar
os questionários, são solicitados os dados acadêmicos - nome,
GRR, e-mail, telefone. Estes dados serão acessados somente
pela Coordenação do Curso e pela PROGRAD, ainda que ape-
nas a título de informação. A instituição assegura aos alunos
o sigilo, tanto dos dados como das informações pessoais.
quem faz
O questionário é aplicado pelos bolsistas do Sistema, vincu-
lados à PROGRAD (Carlo, de Letras e Jucéli, de Medicina).
Após o recolhimento das folhas de respostas, eles transmiti-
rão os dados para a PROGRAD e entregarão os questionários
respondidos à Coordenação, exceto aqueles com manifesta-
ções, que serão entregues diretamente à PROGRAD. É im-
portante que todos participem e se manifestem. O SAT vem
como uma oportunidade para os alunos serem ouvidos por
aqueles que regem nossa vida acadêmica.
ufpr
prograMa Sat 2010carlo giacomitti
desde meados de 2010, está em andamento o sat - sistema de acompanhamento e tutoria do fluxo acadêmico. o sat foi criado para acompanhar a vida acadêmica discente durante a graduação. o programa é gerido pela prograd - pró-reitoria de graduação e ensino profissionalizante e con-ta com o apoio operacional das coordenações de cursos. com a aplicação de um questionário, o sat tem como objetivo identificar as dificuldades quedo aluno durante a formação e então propor à reitoria soluções para os problemas encontrados. esse questionário, aplicado a todos os alunos, será repetido periodicamente (anual ou semestralmente, dependendo do curso). esta continuidade garante o sucesso do programa, pois as dificuldades podem aparecer com o passar do tempo, isto é, há um efetivo acompanhamento do estudante durante toda a graduação.
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Nos últimos tempos tem se dado especial atenção à avaliação
institucional nas diversas esferas governamentais. Na Univer-
sidade acontece a mesma coisa. Aqui na UFPR, além do SAT
(matéria da página anterior), em 2009 foi realizada a primeira
etapa da Avaliação Institucional de Cursos, que englobou vin-
te e seis cursos de graduação, entre eles o nosso. Os resulta-
dos, disponíveis na página de Letras (http://www.letras.ufpr.
br), foram utilizados para medir a satisfação da comunidade
acadêmica em relação a itens como infraestrutura, segurança
e apoio acadêmico.
Recentemente soubemos que há em andamento processos de
professores contra estudantes, todos de Letras, que têm como
objeto de “acusação” supostas “injúrias” que os alunos supos-
tamente cometeram contra aqueles professores (os “supos-
tos” repetidos são propositais). Estes alunos, consideramos,
fizeram nada mais que “avaliar” a atuação dos seus mestres,
ainda que não tenha sido uma avaliação das mais favoráveis.
Depois de saber disso, questionamos: como é que nós, estu-
dantes, poderíamos avaliar ou ao menos emitir opinião a res-
peito dos docentes se, na primeira tentativa, recebemos como
prêmio um processo, no âmbito judicial comum, inclusive, ou
coisa pior, como perseguição e assédio moral? Perguntamos
também se, depois que o CAL puser em prática o Sistema de
Avaliação de Docentes e Disciplinas, ou talvez depois da publi-
cação desta matéria, teremos alguma agradável surpresa, do
mesmo tipo da que receberam aqueles alunos do parágrafo an-
terior? Um caso a se pensar, senhores. O coordenador sempre
insiste que temos que avaliar nossos professores da mesma
maneira que eles nos avaliam, como uma espécie de reciproci
dade. Não podemos esquecer que a avaliação de que trata este
texto não é um concurso de popularidade nem uma batalha de
egos. Não estamos aqui preocupados com a reputação de ne-
nhuma sumidade das Letras e/ou da Educação, mas sim com a
qualidade do ensino dos que, como formigas, trabalharão para
o sucesso na formação de pessoas e, consequentemente, do
progresso deste país.
ufpr
o CaSo da aValiaçãoclaudio luciano ornellas
acesse www.letras.ufpr e confira os resultados da avaliação
Em uma família normal de classe média, numa bela ninhada
de três filhotes, nasceu um urubu branco; todos os urubus
nascem com uma penugem branca e são muito fedorentos,
obviamente, mas depois da troca de penas tornam-se as si-
nistras aves negras e de mal agouro que conhecemos. Fre-
qüentes comensais de lautos banquetes, promovidos sempre
por algum ser que já era. Um deles insistia em permanecer
alvo... O pimpolho recebeu o nome de Albino, nome de um
tio-avô que fora padre, teve uma infância tranqüila embora
um pouco atribulada pelo preconceito e gozações de seus co-
leguinhas. Se algum piazinho enchia as fraldas, o branquinho
azedo era sempre o Bino. Dissabores estes compensados, é
claro, pelo amor materno: - Meu Nuvenzinha de coco, você é o
urubu branco mais lindo do jardim de infância! - Sou sempre o
único, mamãe! O pai era autoritário e repressor, sempre res-
sabiado com a idéia de ovo trocado na maternidade. Todavia,
o maior drama de Albino foi na puberdade, fase traumática
para qualquer adolescente, com as decorrentes crises de afir-
mação da auto-imagem; principalmente porque os garotos de
sua idade apelidaram-no de pombinha. A rejeição causou em
Albi, era assim que mamãe lhe chamava, uma forte tendên-
cia à introspecção. Algo paranóica. A fuga da dura realidade
levou-o a ser um eterno sonhador, andava sempre sonhando,
era sonâmbulo! Fantasiava um futuro diferente para si, não o
negócio funerário da família, marcado pelo negro rigor. Guar-
necido de batatas ele seria um prato cheio para a Clarice Lis-
pector. Albino era muito meticuloso em tudo o que fazia, sua
aterrissagem era coreográfica, tinha talento para acrobacias
aéreas e pendor para o ballet clássico. Superou dolorosamen-
te a fase crítica da adolescência, o patinho feio transformou-
se em um cisne, mas, não se anime, esta é uma outra estória.
Embora possuísse um forte sex appeal, ele parecia não ter
interesse pelas urubuas, até mesmo quando eram uruboas.
O complexo de inferioridade nele se revestiu de uma couraça
de presunção: garboso e solene, agora Albi era um misto de
oficial de marinha de guerra e pai de santo baiano. Sempre
branco da cabeça aos pés. Vivemos tempos difíceis, tem uru-
bu brigando por emprego de galinha de macumba e, quando
se presta a este triste papel acaba se acabando na cachaça do
despacho. Não existe nada mais melancólico que urubu be-
bum. Albino não queria passar em brancas nuvens, onde se-
quer seria visto, desistiu de seus devaneios, seguiu a carreira
do papai, era mais prático e economicamente mais garantido.
Também aí sempre sofria discriminações; quando chegava ao
trabalho e ia, digamos... botar as mãos na massa, seus colegas
gritavam em coro: - Chegou tarde, Doutor! O paciente morreu...
Ao final do expediente o nosso herói parecia à bandeira da
Polônia.
Depois de diversas crises, depressões profundas, altos e bai-
xos, ascensões e quedas, é difícil se suicidar assim quando se
tem asas, ele resolveu se assumir, coisa temerária na sua pro-
vinciana terra natal. Sumiu! Migrou! Foi atrás de uma ofer-
ta de emprego que ninguém queria aceitar, lá em um local
distante que fora a antiga Babilônia, na Mesopotâmia, lá a
terra chora lágrimas negras. É nova área de caça da Grande
Águia do Norte. Dizem que Albino não trabalha na função
pretendida, continua no ofício de sua espécie, e, apesar de ser
alvo, tem uma vantagem: na guerra ninguém atira na Pomba
Branca da Paz, ou... em qualquer outra ave branca. É possível
fazer humor negro com urubu branco, no entanto, urubus
existem de todas as cores, tamanhos, envergaduras, sexos,
idades e credos. Sempre muito preocupados com suas ima-
gens, carreiras, prestígio e poder junto a seus bandos. Alguns
se alimentam de cérebros jovens.
Dedicado a Ferenc Hoffmann
crônica
quadro negro para urubuaguinaldo roberto moreira
o processo de avaliação é muito importante para a proposição
de diretrizes para mudanças e para a revisão de procedimentos e
recursos de maneira a melhorar a estrutura e o funcionamento
de cada curso. todavia, há alguns impedimentos de ordem nem
sempre profissional e técnica quando se trata de avaliar.
Estava eu a caminhar apressadamente pela rua, voltando do
cartório com documentos na mão e um bocado de problemas
na cabeça. Descendo uma das ruas que fazem parte de um
trajeto que há muito conheço, surpreendo-me com um carro
saindo da garagem do prédio e avançando em minha direção.
Eu estava na calçada, lugar onde pedestres mandam e moto-
ristas pedem licença. Fiquei surpreso e irritado com o carro
prateado que por pouco não me encostava. Parei ao seu lado
e tentei enxergar o motorista por trás do vidro escuro. O con-
dutor do veículo, então, baixou o vidro da porta do passageiro,
ao lado da qual eu me encontrava, e esboçou um sermão sobre
como ele estava certo e sobre como eu deveria ter esperado
sua majestade passar com sua carruagem. Aquilo me deixou
puto. Então, sem esperar o homem grisalho terminar o que
dizia, despejei sobre ele as palavras de quem tem razão. O ho-
mem, protegido por sua armadura de quatro rodas, disse ao
término do meu esbravejo: “Não, meu amigo, você não está
certo coisa nenhuma. O que acontece é que vocês são mui-
to abusados”. Vocês? Vocês quem? Nós, os pedestres? Não,
creio que estivesse se referindo aos jovens. Concluí então que
aquele senhor possuía alguma desavença com um filho, o que
talvez o tenha feito pensar que todo jovem é errado e incon-
seqüente e não sabe como se comportar em uma calçada. Um
bando de abusados. Sendo assim, respirei fundo, despedi-me
do homem com um aceno em tom de zombaria (para fazer jus
ao rótulo de “abusado) e continuei o meu caminho, o meu dia,
a minha vida.
crônica
arMaduracrônica
literatura CoMo reFúgio
a inCríVel experiênCia de VaneSSinHa atraVéS de rérgio e andré Sant’anna
victor conrado s. eschholz teurra vailatti e talita garcia
cal ufpr . boca do inferno . 8 cal ufpr . boca do inferno . 9
Vanessinha era uma carioquinha tão apimentada, que consul-
tava as zonas de maior índice de crimes sexuais no periódico
de sua cidade, e no vai e vem, quando acalmava a correria, ela
passeava por lá, fazendo figas para ser contemplada. Foi aí que
nessas lidas e idas, nada lhe pareceu mais sensato que o tro-
peço no caderno C de um jornalzinho daqueles, que dizia as-
sim: “O Paraíso é bem bacana”. Não sabendo se o sujeito, que
escreveu a sinopse daquele livro, era ignorante ou mal inten-
cionado, ela já foi correndo querer saber qual era daquele su-
jeitinho da pós-modernidade, o tal André SantAnna. E acabou
caindo na conversa de dois caras, um carioca fluminense, e o
tal sujeitinho-pós-moderno, filho do primeiro. Fervoroso que
era, o carioca, começou entabulando a conversa da seguinte
maneira, “Particularmente, eu leio sempre antes de dormir,
lógico, que quando tem jogo do fluminense e a coisa vai até
meia noite, a gente deixa pro outro dia”. Para a surpresa do
público leitor, para Vanessinha, tal declaração não lhe pareceu
nem pedante, nem rasa, nem besta. Ela queria saber, porém,
qual era o gabarito do tal fluminense, pra dar dica literária,
quando ela mesma, que se julgava tão letrada, era vascaína. E
assim, no andamento da prosopopéia, descobriu um mundo
novo, porque nada faz sentido se não compartilhado – lan-
çando aqui citação de Paulo Coelho, ou se bem quiseres aca-
dêmico, ta aí aquele velho negócio do exercício da alteridade.
Fomentando sua empolgação, Vanessinha descobriu o prazer
que a leitura traz consigo; deixou de lado seu Orkut, seu Twit-
ter, seu Facebook e seu Fotolog, e jurou pra ela mesma que a
partir daquele dia iria começar a economizar a primeira parce-
la do seu E-reader. E gozando da mais pura tentação, se ateve
a tal frase do tricolor, “Lógico que se eu visse Clarice Lispector
lendo para um público qualquer, eu ficaria sensivelmente in-
teressado em ouvir”. E para os leitores, se isso não for ficar
enfadonho, Vanessinha largou toda aquela história de consul-
tar periódico, e foi procurar a tal da Clarice”... Depois daquele
dia, leitura para ela não se tornou mais hábito, como era com
o periódico. Virou vício. Embora ela ainda não abrisse mão do
seu Blog e não perdesse um jogo do Vasco, a leitura passou
a fazer parte de sua rotina. E, como diria Sérgio SantAnna,
é tudo questão de decisão! E depois, tem os que dizem, que
literatura fica aí só marcando bobeira nas universidades e não
transforma a vida do povão.
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INTRODUÇÃO No contexto do seminário Literaturas Africanas de Expres-
são Portuguesa, este trabalho irá se preocupar com o trilogia
Teatro do Imaginário Angolar de S. Tomé e Príncipe de Fer-
nando de Macedo, que inclui três peças: Rei do Óbó, Capitan-
go e Cloçon Son. Convém também destacar que não existe
quase nenhuma documentação, nem estudos científicos que
elaboram a obra literária deste dramaturgo contemporâneo.
A hipótese deste trabalho é que, usando os fatos históricos
para determinar a nacionalidade angolar que foi defendida ao
longo de quase cinco séculos, Fernando de Macedo, nas nar-
rativas dessas três peças, estabelece a nacionalidade das Ilhas
de São Tomé e Príncipe que ganharam independência após a
Revolução dos Cravos.
O objetivo deste trabalho é, depois de uma breve exposição
da vida e da obra de Fernando de Macedo, analisar como é que
os fatos históricos foram elaborados na trilogia teatral e veri-
ficar de que maneira o autor constrói e revela a nacionalidade
são-tomense.
VIDA E OBRA DE FERNANDO DE MACEDOProfessor, etnógrafo, poeta, dramaturgo e ativista político,
de ascendência são-tomense-angolar, Fernando Macedo Fer-
reira da Costa nasceu em 1928 em Lisboa.
Como sequaz de política anti-salazarista, durante a sua for-
mação universitária e depois de se ter licenciado em estudos
de Ciências-Histórico-Filosóficas, o dramaturgo empenhou-
se politicamente na luta pela independência das colónias por-
tuguesas. Foi também recusado pela instituição militar “não
apenas pela objeção de consciência, mas porque o associati-
vismo era proibido pelo regime salazarista”2 e “por não ter ca-
racterísticas de raça branca”3. Esteve preso durante dois anos.
As suas convicções anti-salazaristas levavam-no pela segun-
da vez à prisão, à suspensão dos direitos cívicos e à proibição
de se deslocar a São Tomé. Formou parte do movimento cris-
tão Metanóia, um grupo de precursores da vida em comuni-
dade, que se estabeleceu em Trás-os-Montes para alfabetizar
a população local4. As ideias políticas do escritor estão presen-
tes no seu primeiro livro, O movimento cooperativo britânico,
que, prefaciado por António Sérgio, seu professor universitá-
rio, foi publicado em 1956.5 Depois de 25 de Abril de 1974,
Fernando de Macedo e Henrique Barros fundaram o Instituto
António Sérgio. O dramaturgo foi eleito presidente.
Em 1975, Fernando de Macedo participou de uma missão no
Timor e em vários países de língua oficial portuguesa, dentre
os quais as Ilhas de São Tomé e Príncipe. Depois veio a ser “di-
rigente” da CoopÁfrica, uma associação que contribui para a
estruturação da sociedade civil, especialmente em regiões afri-
canas menos desenvolvidas”6. Nos anos 1980, foi afastado da
presidência de Instituto e, embora tivesse lecionado na Facul-
dade de Economia de Lisboa, dedicou-se ao cooperativismo.
Assinando como Fernando Ferreira da Costa, o escritor criou
uma ampla obra científica; contudo, é mais conhecido pela sua
produção literária, que foi escrita a partir do fim da década de
1990 e publicada sob o nome de Fernando de Macedo. A obra
envolve duas coletâneas de poesia, Anguéné, Gesta Africana do
Povo Angolar de S. Tomé e Príncipe (1989) e Mar e Magoa (1994);
um ensaio, O Povo Angolar de S. Tomé e Príncipe (1996)7; e, no
fim, a trilogia Teatro de Imaginário Angolar de S. Tomé e Prín-
cipe, incluindo as peças Rei do Óbó (1997), Capitango (1998)
e Cloçon Son (1997). O fato de o escritor ser mais conhecido
por sua obra literária, atribui-se às encenações de Capitango e
Cloçon Son (a segunda estreou na Ilha de São Tomé em 1997, e
a primeira na Expo 98, em Lisboa).
Pela contribuição ao “fortalecimento da sociedade civil lusó-
fona”8, Fernando de Macedo, em 1997, foi condecorado com a
Ordem do Infante D. Henrique. Morreu em Lisboa em 2006.
A LENDA DO POVO ANGOLAR E DO SEUS REISPor causa de escassos documentos, arquivos e fontes etnó-
grafos e históricos, existem várias hipóteses da história e da
origem do povo angolar (habitantes da zona sul da Ilha de São
Tomé) e do seu rei Amador. Segundo uma das hipóteses, os
angolares teriam sido escravos de proveniência angolana9. So-
breviveram ao naufrágio de um “barco de escravo”10, ocorrido
na região de Sete Pedras, localizada a sudoeste da Ilha de São
Tomé. De acordo com outra hipótese, os angolares teriam sido
escravos fugidos dos seus donos na época depois do descobri-
mento das ilhas do arquipélago pelos colonizadores portugue-
ses, em 1470. Tendo escapado aos colonizadores, começaram
FatoS HiStóriCoS na ConStrução da naCionalidade São-toMeenSe na obra teatro iMaginário angolar de S. toMé e prínCipe de Fernando de MaCedo
ana kaniški1
a construir kilombos, pequenas povoações na floresta densa,
de administrações próprias e autônomas de fazendas coloni-
zadoras. Uma terceira hipótese: os angolares seriam descen-
dentes de tribos africanas que chegaram à ilha muito antes
que os portugueses e iniciaram o povoamento do interior da
ilha. É necessário acentuar que, apesar de nenhuma das teo-
rias revelar a data da chegada dos angolares à ilha são-tomen-
se, o historiador português Joaquim Veríssimo Serão (1980)
acha que os escravos chegaram por volta de 154011.
Seja como for, de acordo coma a história contemporânea,
Amador era o rei do povo angolano. Recentemente, o historia-
dor Gerhard Seibert (2005), no seu trabalho científico, provou
que o rei Amador de fato não era o rei dos angolares, mas o
iniciador da revolta dos escravos em 1595. Seibert conclui que
os únicos documentos existentes testemunham que a revolta
dos escravos foi chefiada pelo negro fugido, Amador, que se
proclamou rei12. Algumas fontes dizem respeito aos seus do-
nos fazendeiros: o seu dono poderia ter sido Don Fernando.
Mas nenhum dos autores dessas fontes relaciona o rei Ama-
dor com o povo angolar.
O escritor que pela primeira vez relacionou o povo angolar
com o rei Amador foi o geógrafo e poeta são-tomense José
Francisco Tenreiro que na obra A Ilha de São Tomé” (1961)
escreveu: “De 1595 e 1596 esta [a ilha de São Tomé] chega
mesmo de cair nas mãos dos angolares, chefiados pela figura,
já lendária, de Amador”13. Todos os historiadores e escritores
aceitaram esta versão da história. E a mesma está presente no
pequeno texto Esboço Histórico das Ilhas de S. Tomé e Príncipe,
escrito pelo historiador Carlos Neves, publicado em 1975, em
que ele escreveu o seguinte: “A 9 de Julho de 1595 o célebre
Amador, à frente dos Angolares, levanta o estandarte da re-
volta, mas é preso e morto em 1596”14.
A lenda do ex-escrevo e rei Amador, que conhecemos hoje,
foi divulgada depois da independência das Ilhas de São Tomé
e Príncipe. Desde o início da exploração da cana-de-açúcar na
Ilha de São Tomé em 1501, o tráfico negreiro era imensamen-
te praticado pelos colonizadores portugueses e acabou em nu-
merosas agressões contra os negros. A única maneira para que
os escravos evitassem as opressões era revoltar-se ou escapar
para o interior, ou seja, para as florestas.
Amador, escravo de um capitão-de-mato, fugiu para o in-
terior da ilha, onde numerosos escravos angolares já viviam
nos kilombos. No dia 9 de Julho de 1595, acompanhado pelos
outros angolares e escravos com os quais estipulou a aliança,
Amador avançou de dentro dos kilombos para fazendas co-
lonizadoras com a intenção de libertar o povo servil. Supos-
tamente arvorando um estandarte frente aos portugueses15,
Amador proclamou-se rei de São Tomé e Príncipe e marcou
os inícios do reino angolar. Ao longo desta revolta, os com-
batentes e já ex-escravos angolares queimavam as igrejas,
destruíam as fazendas ou convertiam-nas para que os negros
pudessem viver nelas. Rei Amador libertou efctivamente mais
de metade do território são-tomense e ocupou a administra-
ção colonial localizada na capital. A luta pela liberdade acabou
no ano seguinte. Alguns membros da sua família16 e do exér-
cito atraiçoaram-no. Rei Amador foi capturado e enforcado
pelas autoridades coloniais portugueses no dia 4 de Janeiro
de 1596.
Ao longo da história, o reino angolar foi governado pela su-
cessão dos reis. Isto comprova uma fotografia tirada em 1895
pelo Sr. Almada Negreiro17. Ela representa o Rei Simão Andre-
za, o último conhecido rei angolar, que Fernando de Macedo
(2000), na sua obra, descreve como “rei dos Angolares falecido
no primeiro quartel do século vinte… quando da ocupação de
Santa Cruz (Anguéné) pelos Portugueses, em 1879, passou a
ser denominado “Capitão” por imposição dos ocupantes.”18
TEATRO DO IMAGINÁRIO ANGOLARAntes da análise da história do povo angolar, dos seus reis
heróicos e da maneira como Fernando de Macedo usa essa his-
tória para construir a nacionalidade são-tomense, temos de
apresentar uma sinopse de Teatro do Imaginário Angolar. Dado
que o tema deste trabalho é o papel da história nacional na
construção da nacionalidade, a obra que mais nos interessa é a
primeira peça – Rei do Óbô. Contudo, será proveitosa também
a analise das outras duas peças que, tal como a primeira, reve-
lam algumas partes da história em questão.
REI DO ÓBÔA narrativa da Rei do Óbô é apresentada ao leitor através de
dois narradores – Luísa Bôbô, “Mulher da Virtude” conhecida
pelo seu conhecimento deste mundo e do mundo do Além, e
Mantana, o homem mais velho de Anguéné e o melhor conhe-
cedor da história e tradição angolares. Eles são testemunhos
da revolta histórica dos angolares em 1595.
Luísa Bôbô e Mantana, acompanhados pela sua mulher Hi-
rondina, deveriam participar, em Djambi, de uma cerimonia
secreta de comunicação com as almas e forças sobrenaturais.
Por isso foram para interior onde, depois que a medrosa Hi-
rondina os desamparou, avistaram a silhueta da mãe de Ama-
dor. Ela exigiu de Luísa Bôbô e de Mantana que, esfregando as
mãos com as folhas da planta mangungu, comprovassem suas
cal ufpr . boca do inferno . 12 cal ufpr . boca do inferno . 13
boas intenções. Ambos testemunharam a coroação do novo
rei – Amador, um jovem inquieto que, depois de estar infor-
mado pela sua mãe da morte do seu pai, se tornou rei de seu
povo. Sua mãe aconselhou-o a ir à montanha Budo-Bachana e
a sua mulher Amada pediu-lhe que libertasse os cativos e es-
cravos. Enquanto o rei Amador avançava e libertava a metade
da ilha, no terceiro ato da peça, ao leitor é revelada a conduta
dos colonizadores portugueses. O Capataz, representante dos
portugueses, recusou-se a tentar salvar a vida do Corsário,
representante dos piratas brancos. Depois de ter chegado ao
engenho para libertar os escravos, Amador poupou a vida de
Corsário, mas recusou a ideia de que ambos estão unidos na
luta pela independência dos portugueses.
As posições da igreja sobre a escravatura são apresentadas
pela personagem do frei Afonso. Frente à entrada de uma
pequena igreja frei Afonso, inicialmente desaprovando e cri-
ticando as ações de “Alforriada”, mulher liberada da sua es-
cravidão depois de ter dado à luz a criança concebida com seu
fazendeiro Sr. Basílio, finalmente concordou em esconder o
escravo fugido N’Gola. Ao mesmo tempo quando N’Gola es-
tava a esconder-se sob o pórtico da igreja, Sr. Basílio interro-
gava e informava o frei Afonso sobre as últimas novidades:
os guerrilheiros libertavam os engenhos, queimavam as admi-
nistrações colonizadores e os ex-escravos juntaram-se ao povo
angolar. Os capatazes portugueses fugiram rumo à Povoação
para se preparar para lutar.
Avançando em sua viagem, Luísa Bôbô e Mantana toparam
com dois guerrilheiros que estavam a procurar por João de
Pina, um fazendeiro português e proprietário de uma égua
branca que estava a esconder-se dos angolares. Ele disse à Lu-
ísa Bobo que os colonizadores tinham atacado os nativos e ti-
nham matado Conde Silvestre, o capitão favorito de Amador.
Duarte Amarroco, o general do exército angolar, aproximou-
se de Luísa Bôbô para lhe dizer que os portugueses tinham
bombardeado os guerrilheiros. Pouco depois, um grupo de
nativos liderado pela mãe de Amador e Amada, agora grávi-
da, aproximava-se dos “narradores”. As mulheres mostraram
o cadáver do rei Amador à Luísa Bôbô e Mantana. Enquanto
Amada e Luísa Bôbô rezando evocavam os líderes mortos do
exército angolar, Amada agasalhou-se com a capa vermelha do
seu marido morto. O povo presente, juntamente com as crian-
ças que vinham correndo, começou a cantar louvores.
CAPITANGOTrês “Bobos”, representantes do povo angolar, debatiam en-
tre si o valor das tradições angolares para ensinar um ignoran-
te “Bobo” a tradição angolar. Tendo ouvido que pau-kími – uma
árvore cujas partes secas, depois que tinham sido relocadas no
campo do rei Simão Andreza, recuperaram e cresceram abun-
dantemente em ramos e folhas – foi cortado pelos portugue-
ses, “Bobos” e “Anjos de Cantar” lamentavam esse infortúnio.
Inicialmente os “Bobos” resistiram a duas tentações: Pé-de-
pau, a personagem de “Danço Congo” e representante da parte
de angolares que consideram si mesmos superiores em relação
aos outros que obrigava “Bobos” a reconhecer que os coloniza-
dores portugueses tinham influenciado de maneira positiva o
povo angolar; e Lúcifer, representante das tentações “demóni-
cas” e oposto à união do povo angolar que começou a glorificar
os europeus, dizendo que seria melhor se os angolares cola-
borassem com os portugueses para atingirem a prosperidade
do seu povo. “Feiticeiro”, um homem com conhecimentos e
poderes especiais, apareceu no fim da conversa e afastou Lúci-
fer e Pé-de-pau do palco.
Neste momento, acompanhada pelo executor “Algoz”, Rai-
nha entrou no palco e expulsou “Feiticeiro”, seu assistente
“Zugo-Zugo” e Lúcifer. Ela opôs-se às tentativas do “Feiti-
ceiro” em aproximar o povo angolar à sua tradição e Lúcifer
para aproximá-lo dos portugueses. Em vez disso queria que os
angolares rejeitassem a sua tradição e se submetessem às su-
periores forças exteriores que ela representa. Cinco membros
de “Guias dos Lados” e “Anjos de Cantar” foram expulsos do
palco pela Rainha. Neste momento, “Feiticeiro” voltou para
anunciar a chegada do último de “Bobos”, o pai de um deles
– velho Juiz.
Conversando com a Rainha, velho Juiz queixou-se da des-
truição de pau-kími, do cemitério e da sepultura do rei Andre-
za, cujos ossos foram arremessados a uma fossa. Por ele ter
defendido a história e tradição angolar, Rainha proclamou-o
traidor. Na confusão que se seguiu, o carrasco matou velho
Juiz. Depois desta agitação os restantes do “Guias dos Lados”
e “Anjos de Cantar”, começaram a cantar, o cadáver de Juiz de-
sapareceu e “Capitango” e seus assistentes entraram no palco.
Após a dança, o único homem que ficou no palco foi Lúcifer.
CLOÇON SONPalayê, uma vendedora de peixe no mercado citadino, e seu
marido Simão, um pescador, estão a enfrentar a provável per-
da da sua última filha Madalena, uma menina acometida por
uma doença desconhecida. Por terem medo de que a história
se repetisse – os seus seis filhos morreram “em terra com as
febres”, e na esperança e no desejo de determinar a doença de
Madalena e encontrar o meio da curá-la, os pais consultam
vários médicos. Damião, “doutor encartado” que além dos
conhecimentos da medicina tradicional, tratava as doenças
rezando aos Santos Damião e Cosme, ordenou a Palayê tratar
Madalena com planta cloçon son e com orações que iam pro-
tegê-la das maldições possíveis. A “Santificada”, uma mulher
que adivinhava as doenças dos enfermos disse a Madalena que
ela não ia morrer porque ia dar à luz um filho – o seguinte rei e
líder dos angolares, e que ficaria grávida de um homem que re-
conheceria pelo tremor do seu coração quando o encontrasse.
Um stilijon local que tratava adoentados através da análise da
urina, concluiu, depois de ter analisado a de Madalena, que ela
era possuída por uma alma inquieta de um seu antepassado.
Ele aconselhou Simão a fazer uma cerimonia em que todas as
pessoas da aldeia rezariam pelas almas dos antepassados.
Durante esta cerimónia, inspirados pela história da avó da
Madalena, as moças da aldeia encenaram um espectáculo de
marionete: a história de uma mulher idosa que perdeu a sua
única filha e que foi consolada por uma galinha, que, por sua
vez, perdeu onze pintos. Depois do espectáculo, a avó evocou
as aparições de “mutilados”, de todas as pessoas que foram
capturadas, mortas e torturadas na batalha, assim como Ama-
dor e Simão Andreza. No ato final, Madalena conheceu um
engenheiro florestal, futuro pai de seu filho.
CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE
Mesmo usando na sua obra muitos elementos do misti-
cismo, teatro de fantoches e da dança angolar, Fernando de
Macedo narra pormenorizadamente a história heróica sobre
dois reis principais, porque, como Gilbert e Thompkins (1996)
afirmam, “o líder de uma revolta contra as forças coloniais ou
alguém geralmente historiado como malicioso, é frequente-
mente reconstruído no teatro pós-colonial para desempenhar
um grande papel proeminente na luta pela liberdade do poder
imperial.19” Agora analisaremos o modo como isto foi conse-
guido na obra do autor.
Inserindo a personagem materna na narrativa da primeira
peça – a mãe do Amador – através de conhecimentos dessa
personagem sobre as propriedades de terra e de plantas, seu
misticismo, o respeito que ela recebe de Luísa Bôbô e Man-
tana e especialmente através da percepção dela como uma
metáfora da mãe em geral, como uma terra que alimenta os
seus habitantes e como uma rainha que deu à luz a criança
que virá a ser um rei após a morte do seu pai –, Fernando de
Macedo insinuar a continuidade do Reino angolar desde a sua
fundação por volta de 1540 , ou seja, depois de os primeiros
colonos angolares terem chegado à ilha. Quer dizer, o Reino
angolar tem sido governado por uma sucessão de reis. Isto foi
o seu direito por eles serem filhos da família. Sustentamos
esta hipótese com a frase dita pela mãe de Amador: “Toma!
(Desdobra o pano vermelho que encobria o bastão). Agora é teu,
pois as febres já tiraram a vida àquele que o segurava por amor
ao nosso povo.”20
Frases como estas levam a imaginar que o Reino angolar foi
formado muito antes da revolta em 1595 porque, segundo
a narrativa, Amador era apenas o novo rei na sucessão dos
reis angolares – fato que não corresponde completamente às
fontes sobre a origem de Amador, que o revelam só como um
ex-escravo que escapou da fazenda. Este último fato foi cons-
tatado pela documentação histórica existente (Seibert, 2005).
Uma outra personagem feminina ocupa um lugar de destaque
no teatro de Fernando de Macedo – a mulher de Amador –
Amada, que suplica ao seu marido liberdade para o seu povo:
“Liberta primeiro cativos e os escravos! Eles te ajudarão na
luta juntando-se aos nossos.”21 Portanto, pela atuação das per-
sonagens da mãe e da mulher de Amador, o leitor acaba por
se familiarizar com Amador como um jovem governante, que
chegou a ser rei depois da morte do seu pai e como alguém que
vai se tornar o libertador de seu povo. Por agora, vamos deixar
de lado uma outra interpretação da personagem de Amada a
que voltaremos mais adiante.
Amada gritou a sua súplica ao marido e o rei Amador pas-
sou a liberar o seu próprio povo e os escravizados. Por quê? A
resposta à esta pergunta é revelada no diálogo entre Capataz
do engenho e Corsário – é indicativo da conduta dos coloniza-
dores portugueses para com os indígenas escravizados e pira-
tas brancos, ou seja, ladrões. Mesmo que este relacionamento
possa ser tratado como um outro aspecto na obra de Fernando
de Macedo, no contexto de nossa hipótese é importante por-
que, na sua essência, é a razão da revolta do povo angolar.
Através da personagem do frei Afonso, o leitor vem a saber
das atitudes da Igreja Católica sobre o povo colonizado, sua
religião e tradição, bem como a sua relação com os coloniza-
dores. O frei Afonso torna-se uma personagem importante na
narrativa porque através da sua conversa com Sr. Basílio e En-
carregado o leitor toma conhecimento das ações heróicas dos
angolares que constroem um forte sentido da continuidade na
luta pela sua independência.
Como foi elaborado em nosso trabalho, uma das hipóteses
sobre a origem dos angolares é a de que eles são ascendentes
dos angolanos, e a isso se opõe Eugénio Luís da Costa Almeida
(1991) no seu trabalho. Costa Almeida afirma que não deve-
cal ufpr . boca do inferno . 14 cal ufpr . boca do inferno . 15
ríamos misturar os angolares com os angolanos que “se inti-
tulavam Ngola e não N’Gola” 22. Seja como for, é interessante
que uma personagem escravizada na narrativa leva o nome
N’Gola. Portanto, Fernando de Macedo fez referência ao “pro-
blema” da origem dos angolares. Como? A resposta do frei
Afonso indica que ele não se importa se o angolares chegaram
à ilha após o naufrágio ou vieram de Angola. Mas, deveríamos
tomar em conta que o autor faz uma outra referência, cuja
premissa se justifica na resposta do escravo fugido N’Gola que
no final da sua conversa com Luísa Bôbô e Mantana declara:
“Dona, as crianças são sagradas. Nós arriscamos a vida por
elas, e muitos morrem na luta. Apesar da tristeza, é bom que
os meninos vejam para que não esqueçam amanhã o preço da
liberdade.” 23 Segundo isso, N’Gola alude ao futuro possível
dos angolares e para que a luta pela nacionalidade não seja
esquecida. Voltemos agora à personagem da mulher de Ama-
dor, Amada, que, no ato final da peça revela-se muito impor-
tante: ela está grávida com a criança que será a futuro rei dos
angolares e, portanto, ela cobre-se com a capa vermelha para
se proclamar regente do trono real. Assim, a continuidade do
povo angolar (nação, tradição e cultura) será preservada.
Através das personagens do fazendeiro português João de
Pina e líder bélico Duarte Amarroco, o leitor acaba por ser in-
formado que no campo de batalha cada lado confrontado está
a ponto de ganhar ou perder. Também, o leitor aprende que
Amador está morto. Os fatos históricos da sua morte – Ama-
dor foi traído pelos seus soldados mais próximos e membros
da família – não estão presentes no drama. Fernando de Ma-
cedo omite-os e implementa o misticismo. Na peça, a “pro-
cissão” dos angolares acabou no sopé de Budo-Bachana, uma
montanha que, segundo a superstição popular, possui pode-
res místicos.
Apesar das diferenças entre as peças Rei do Óbô e Cloçon Son
(cujo enredo é colocado num período temporal posterior),
elas possuem um “denominador comum” na personagem de
rei Simão Andreza. Com o objetivo de provar uma certa con-
tinuidade da nacionalidade e da cultura angolar, Fernando
de Macedo implementa a personagem do último rei angolar
conhecido que, como o seu antecedente rei Amador, lutou
contra os portugueses, embora mais tarde, em 1878. Na peça
Cloçon Son, o rei Simão Andreza lembra ao seu povo o perigo
do esquecimento da própria história pela qual os reis e o povo
lutavam, caso contrario tudo será em vão: “Filha, pior do que
a guerra é o esquecimento! E pior do que o inimigo, é o nosso
irmão quando o imita!”24
Na peça Capitango, cuja narrativa é colocada no início século
20, temos uma problematização complementar. Apoiando-se
nos temas e nos valores da dança tradicional angolar – Danço
Congo, Fernando de Macedo, através das personagens de Ca-
pitango problematiza a relação entre a vida moderna, repre-
sentada pelos colonizadores e uma vida tradicional, represen-
tada pelos angolares. Nesse aspecto, o velho Juiz, referindo-se
à personagem do rei Andreza, lembra aos presentes a velha
história, cultura e tradição angolar que os angolares deveriam
honrar. Portanto, ele utiliza a árvore real, cortada pelos por-
tugueses, como uma metáfora para o possível perigo em rela-
ção aos colonizadores. Um dos Bobos diz: “ […]cortaram o que
não lhes fazia falta arrancando raízes da nossa memória…”25
Bobo continua: “Até ao Rei Andreza, decorrem quasi quatro
séculos de “guerra do mato”. Não foi só o Amador que entrou
na capital, antes e depois dele idêntico feito foi conseguido
por outros Reis. Temos uma bela e longa história escrita com
o sangue do nosso povo!”26 Não acha que aqui o velho Juiz
está a referir-se à nacionalidade angolar, a mesma defendida
por ambos os reis? Desta forma, mais uma vez, o autor alude
à continuidade da nacionalidade angolar.
CONCLUSÃO
A cada narrativa ficcional podemos atribuir a definição que a
ficção é, diferentemente dos fatos históricos, inventada, mu-
tável, e subjetiva, mas na questão da narrativa da trilogia es-
crita por Fernando de Macedo, somos confrontados com uma
certa confusão. Manipulando, acrescentando ou omitindo fa-
tos históricos da vida e do heroísmo dos dois maiores reis an-
golares, os guardiões do coletivo e forças unificadoras do povo
angolar, Fernando de Macedo pertence à sucessão de tantos
outros escritores que antes dele têm representado o escravo
libertado Amador como o líder dos angolares, fato o qual con-
trariam os documentos históricos existentes.
Além disso, através das personagens da mãe de Amador, sua
mulher Amada (as personagens da narrativa não existentes
nas fontes históricas) e da personagem historicamente docu-
mentada de rei Andreza, o autor constrói a narrativa de um
povo oprimido que, ao longo da história, defendeu sua pró-
pria cultura, sociedade e tradição – em outras palavras, a sua
própria nacionalidade. Os dois reis - Amador e Simão Andreza
– tornaram-se símbolos da revolução anti-imperialista.
Em conclusão, como o Reino angolar era localizado na ilha de
São Tomé, o objetivo de Fernando de Macedo é mostrar que
os angolares são parte da história, cultura, tradição do povo
são-tomense e, portanto, da nacionalidade são-tomense que
foi defendida no século 20. Em outras palavras, essa naciona-
lidade, fortalecida pelos fatos históricos, valida e justifica cada
resistência anti-colonial e esforço do povo de São Tomé contra
os portugueses.
1 Aluna de graduação do curso de Língua e Literatura Portuguesa, Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas,Universidade de Zagreb.2 Publico.PT. “Morreu Fernando Ferreira da Costa”, URL: http://ultimaho-
ra.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1246416&idCanal=36, (11 de Agosto de
2009) 3 Macedo, Fernando de. Teatro do Imaginário Angolar de S. Tomé e Príncipe,
Cena Lusófona: Associação Portuguesa para o Intercâmbio Teatral, Coimbra,
2000, pg.: 141 4 Op. cit. 15 Biblioteca Nacional de Portugal, URL: http://www.bnportugal.pt/, (11 de
Agosto de 2009) 6 Op. cit. 2 7 Op. cit. 3, pg.: 141 8 Op. cit. 3, pg.: 1429 Grada Kilomba. „Rei Amador“ URL: http://www.gradakilomba.com/Essays.
htm, (16 de Agosto de 2009)10 S. Tomé e Príncipe – Os Angolares. „O Reino dos Angolares“, URL: http://
angolares.no.sapo.pt/, (15 Agosto de 2009)11 Serão, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: Volume IV: governo dos
reis espanhóis (1580-1640), Editorial Verbo, Lisboa, 1980, 23412 Seibert, Gerhard. „A verdadeira origem do célebre Rei Amador, líder da
revolta dos escravos em 1595“, Instituto de Investigação Científica Tropical
(IICT), Lisboa“, 2005, URL: http://culturastp.blogspot.com/2005/05/verda-
deira-origem-do-clebre-rei-amador.html, (20 de Agosto de 2009) 13 Op. cit. 11 14 Op. cit. 1115 Op. cit. 816 São Tomé e Príncipe. „O preço da liberdade; A história do Rei Amador, ícone
da luta de emancipação de São Tomé e Príncipe”, URL: http://opatifundio.
com/descobriapolvora/?cat=30, (11 de Agosto de 2009) 17 Op. cit. 9 18 Op. cit. 3, pg.: 13919 „The leader of a rebellion against colonial forces or someone generally his-
toricised as villainous is often reconstructed in post-colonial theatre to play
a highly prominent role in the struggle for freedom from imperial rule. focus
on a local legendary figure, loosen imperialism’s stranglehold on historical re-
presentation.” Veja: Gilbert, Helen; Tompkins, Joanne. Post-colonial Drama;
Theory, Practice, Politics, Routledge, London and New York, 1996, pg.: 116 20 Op. cit. 3, pg.: 28 21 Op. cit. 3, pg.: 2822 Almeida, Eugénio Luís da Costa. “São Tomé e Príncipe: Notas para um estu-
do sócio-político. Universidade Lusíada, Lisboa, 1991”, URL: http://elcalmei-
da.home.sapo.pt/Naopublicados/STPrincipe.htm, (21 de Agosto de 2008) 23 Op. cit. 3, pg.: 5124 Op. cit. 3, pg.: 131 25 Op. cit. 3, pg.: 89 26 Op. cit. 3, pg.: 90
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2009) S. Tomé e Príncipe – Os Angolares. „O Reino dos Angolares“, URL:
http://angolares.no.sapo.pt/, (16 Agosto de 2009) São Tomé e Príncipe. „O
preço da liberdade; A história do Rei Amador, ícone da luta de emancipação
de São Tomé e Príncipe“, URL:
http://opatifundio.com/descobriapolvora/?cat=30, (11 de Agosto de 2009)
cal ufpr . boca do inferno . 16 cal ufpr . boca do inferno . 17
En el 2º Seminario Internacional de Educación cultural bi-
lingüe y educación indígena realizado en julio por la Embajada
de Brasil en Asunción tuve ocasión de asistir a la conferencia
de la Dra. Sylvia Duarte Dantas, psicóloga y profesora de la
USP. La doctora disertaba sobre la importancia del apoyo psi-
cosocial en el proceso de inserción cultural. Eso porque, según
ella, el contacto con una nueva cultura es un contacto crítico,
hay una crisis de identidad generada por la ruptura de las ver-
dades y paradigmas del “yo” en contacto con el “otro”. Igual-
mente crítico sería el retorno a la cultura de origen después
de ese período de inserción. No puedo citarla textualmente
ni asegurar que realmente la entendí –el ritmo de habla de los
psicólogos me suele parecer aburrido, siempre tan tranquilo
y didáctico– pero sí que por primera vez, dos años después
de haber participado del programa de movilidad académica de
AUGM, sentí que realmente alguien me entendía.
Había sido que los estudiosos del tema bien sabían del lío
por el que iba a pasar durante el intercambio pero nadie hizo
nada para ayudarme. Al final de la conferencia de la Dra. Syl-
via sentí que hubiese sido bueno haber pasado por el apoyo
psicosocial o por lo menos haberla escuchado antes de subir a
aquel colectivo que me iba a llevar a un sitio relativamente cer-
cano en el mapa, pero absolutamente lejano y desconocido en
su realidad bilingüe y toda la riqueza cultural que eso implica.
Pero seguramente que si hubo algún problema no fue porque
en UFPR no haya un grupo de investigación y extensión como
el de la Doctora Dantas en la USP. La verdad es que ignoro
completamente las investigaciones que se hacen en psicología
en el ámbito de nuestra universidad.
La problemática del intercambio empieza por el mal uso o
desconocimiento del propio término, porque el Intercambio,
entendido como reciprocidad de relaciones entre naciones;
como reciprocidad e igualdad de consideraciones y servicios
entre entidades, corporaciones; como trueque, permuta, no
existe sino en la justificación de AUGM. Ninguna condición es
creada para que haya realmente ese intercambio de relaciones,
no hay igualdad de condiciones sino en el papel, por lo menos
no había en 2008. En el texto de bienvenida del programa de
escala estudiantil de AUGM, disponible en internet, se dice
que la movilidad académica tiene como uno de los objetivos
“integrar a sus instituciones miembro en un espacio acadé-
mico e intercultural común ampliado y a las sociedades a las
que ellas pertenecen, a partir del conocimiento y comprensi-
ón de la gran riqueza que subyace en la diversidad cultural de
esta región”. Me pregunto ¿qué clase de integración hay en
un intercambio en el que algunos estudiantes pasan hambre
por recibir apenas 800.000 guaraníes y otros hacen la buena
vida con una beca de 1.500.000, siendo ambos participantes
del mismo programa de movilidad académica? ¿Cómo algunos
acaban juntando boletas de colectivo en la calle para cambiar
por plata y tener para comer mientras otros pueden viajar por
todo el país con la beca de intercambio? ¿Cómo se permite que
un grupo de intercambistas se tenga que humillar pidiendo la
posibilidad de tener agua fría en una primavera de 40ºC mien-
tras otros quedan en un hotel con piscina y aire acondiciona-
do? ¿Cómo una organización, una asociación, permite tamaño
disparate? Perdónenme los que no conocen el Paraguay y no
saben ni cuánto vale tantos ceros en el sistema monetario ni
cuán importante es tener un aire acondicionado en este país,
lo que les quiero hacer sentir es que ni siquiera hay un “espa-
cio académico común”, no hay condiciones administrativas y
burocráticas que debían ser iguales entre instituciones que fir-
man un mismo documento, no hay la “cooperación científica,
tecnológica, educativa, cultural” que el sitio web menciona en
el momento de definir la dicha Asociación.
Algunos dirán que fui demasiado lejos afirmando que la Aso-
ciación de Universidades del Grupo Montevideo no existe re-
almente. No se engañen, sí existe. Firmé un acuerdo de inter-
cambio, presenté documentos, una carta de intenciones, hice
un test de nivel de lengua, fui entrevistada. Llegué a tomar
un bus y a cursar un semestre académico en la universidad
de destino, en mi caso la Universidad Nacional de Asunción.
Después, me hicieron rellenar un formulario de evaluación
de intercambio, aunque ello no pasara de poner una X en una
lista de “sí” o “no” y “bueno” o “malo” o “razonable”, con un
espacio de no más de 200 caracteres para comentar. La AUGM
existe, vi sus miembros principales en las XVI Jornadas de
Jóvenes investigadores, en la propia Montevideo, cuando
irónicamente se dedicó el encuentro a la investigación y a la
innovación para la inclusión social [sic] en un encuentro en el
in(ter)CaMbio: FalloS del prograMa de augM
daiane pereira rodrigues27
que las Ciencias Sociales y Humanas casi no tienen lugar en
medio de la ingeniería kuera, en un encuentro en el que las
normas de publicación ignoran completamente las particula-
ridades de las investigaciones en el campo de Humanidades
obligándonos a someter nuestro trabajo a un modelo inhuma-
no de “objetivo, hipótesis, materiales y métodos, desarrollo,
conclusión”. Pues bien, la Asociación existe, como existen los
escenarios kafkianos y barrettianos. Lo que no existe, tanto
en un caso como en los otros, es el verdadero respeto y la ver-
dadera cooperación entre instituciones, entre países y entre
campos de investigación.
En el ámbito cultural, volviendo al tema de la crisis en el pro-
ceso de inserción, mucho de la inexistencia o precariedad de
la relación mutua, del inter-cambio, se da por los prejuicios y
desconocimientos que tenemos hacia el país de destino. En
un intercambio de no más de cuatro meses (un semestre aca-
démico) no hay tiempo para superarlos o para por lo menos
entender el proceso de crisis por el que pasamos, a la vuelta
del intercambio uno sigue desconociendo prácticamente por
completo el país en el que estuvo porque no logró desarrollar
una verdadera relación con el otro, tal vez por eso me haya
quedado la sensación de que debía haberla escuchado a la
Dra. Dantas antes. Por supuesto que ese desconocimiento en
el regreso no es regla, la manera como uno se identifica y se
relaciona con la cultura del otro va a variar caso a caso, pero
hay estereotipos que ayudan o perjudican ese proceso de in-
terrelación. Seguramente que los estudiantes que van a la Ar-
gentina tienden a pensar que se están yendo a un fenómeno
académico y cultural de primer nivel, el mundo del tango, la
tierra de Borges, y rápidamente se insertan positivamente en
este paraíso turístico. Los que vienen a Paraguay, sin embar-
go, vienen con la creencia de que salen de la civilización para
entrar en la barbarie, adonde uno no vendría si realmente qui-
siera estudiar, según dicen los propios profesores, en el curso
de letras por lo menos –que quede claro que no fue ninguno
de los profesores de castellano que dijo tamaño disparate, por
lo menos no a mí.
Martin Buber considera las relaciones humanas como re-
laciones en las que “la coexistencia es fundamental para el
redescubrimiento del sentido del otro como otredad que in-
terpela, cuyo encuentro se concreta en el diálogo que implica
disponibilidad, reciprocidad y responsabilidad”. ¿No debía un
programa de intercambio que tiene como objetivo crear un
“espacio académico e intercultural común a partir del cono-
cimiento y comprensión de la gran riqueza que subyace en la
diversidad cultural” promover ese tipo de diálogo? No he te-
nido ningún tipo de taller o cursillo que promoviera el conoci-
miento y la comprensión de la realidad paraguaya. Me subí al
bus con todos mis estereotipos intactos: a comer sopa sólida y
a tomar tereré en el país del comercio ilegal. Nada se sabe so-
bre literatura paraguaya en el curso de letras de UFPR, y nada
se hace para que no vayamos al país vecino con la vergonzosa
idea de que es un país sin literatura, porque aunque sepamos
de la existencia de Augusto Roa Bastos, nos hacemos la ilu-
sión de que nada más de importante se ha escrito en el país
del premio Cervantes de 1989. Un compañero que también
estuvo de intercambio en Paraguay y yo hemos insistido con
un proyecto de seminario de literatura hispanoamericana en
la carrera de letras, teniendo como una de las justificaciones
la necesidad de conocer algo sobre los países vecinos, con los
cuales tenemos relaciones geográficas, académicas, políticas…
teníamos la intención de lograr que los próximos estudian-
tes en inmersión tengan mejores condiciones para una rela-
ción de reciprocidad durante el intercambio. Hasta ahora no
tenemos ningún resultado, seguimos ignorando a nuestros
vecinos aun habiendo firmado con ellos un contrato de inter-
relación. Un ejemplo clave es el caso de Rafael Barrett, que
he mencionado a propósito en párrafo anterior. Quizás nadie
nunca jamás volvió a entender la realidad paraguaya y latino-
americana como este español que vino a insertarse y a hacerse
hombre en nuestro continente. Sin embargo, la mayoría de
los intercambistas vuelven a sus universidades de destino sin
haber tenido siquiera una mención de su existencia. No será
el mejor ejemplo porque sólo hay un especialista en Barrett
en todo el Brasil: la Profª. Dra. Alai García Diniz de la UFSC,
y no mucho más que eso en el propio Paraguay, en donde
se puede destacar al profesor Miguel Ángel Fernández. A lo
mejor no hubiese tamaño desconocimiento si hubiese mejor
voluntad política y diplomática de ambos países, del todo el
Grupo Montevideo, si hubiese un programa de colaboración
que realmente objetive el contacto multicultural. El problema
es que no nos interesa hacer saber que en Paraguay hace más
de 40ºC porque ya no hay vegetación, gran parte del territorio
fue devastado para plantar la soja transgénica de los hacen-
dados brasileños; que si parecemos super-desarrollados en
comparación con nuestros vecinos es porque con el apoyo de
Argentina y el patrocinio de Inglaterra le sacamos todo lo que
podíamos sacar en la mayor guerra genocida de la historia, le
quitamos su territorio, matamos más de la mitad de su po-
blación y acabamos con el único régimen económico y social
realmente auto-suficiente que existió en nuestro continente y
el país más desarrollado que había en la región a fines del siglo
cal ufpr . boca do inferno . 18 cal ufpr . boca do inferno . 19
XIX. Población esta que todavía se recupera de la más larga
dictadura que ya tuvo América, que todavía posee una univer-
sidad stronista que no logra una reforma que posibilite la pro-
ducción de conocimiento y no la mera repetición de lugares
comunes. ¿Pero para qué intentar entenderlo si es más fácil
dejar que sigamos en crisis de identidad y que se mantengan
los estereotipos? ¿Qué tiene que ver todo el programa de in-
tercambio con estas cuestiones sociales, históricas, políticas?
Al fin y al cabo es un programa académico, y la universidad
tiene su compromiso con la Ciencia.
Lastimosamente no hay espacio en este texto para romper
estereotipos y mucho menos para discurrir con la debida y
merecida atención sobre el El dolor paraguayo, El terror ar-
gentino, las Moralidades actuales y tantas obras maestras que
en el Paraguay se produjeron, además de las obras de Roa Bas-
tos y su maestra Josefina Plá –extraordinaria escritora que en
algunas universidades brasileñas poco a poco empieza a ser
estudiada. Quiero nomás mencionar que realmente me descu-
brí como brasileña y como ser humano al tener contacto con
esa realidad otra, que voy superando las crisis y siguiendo ade-
lante en este país en donde descubrí el amor y que elegí para
vivir y educar a mi hijo, con el que me solidarizo y me siento
realmente comprometida como nunca había sentido en Bra-
sil. Si los fallos del programa de intercambio tienen algo que
ver con eso se lo agradezco. Esto ciertamente sería analizado
como un proceso de aculturación, y para mi suerte no les inte-
resa a los de la AUGM y puedo seguir tranquila.
Asunción, 15 de setiembre de 2010, 17:33
27 Aluna do quinto ano de Letras Espanhol. Foi intercambista da AUGM entre julho e novembro de 2008.
* adaptación y traducción mía del original en portugués disponible en http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/9763
28 Aluna do quarto período de Física da UFPR
Arranjadas por ano, ali no chão, estavam todas as cartas. Or-
ganizadas em pilhas por ano. Depois, por cor e por forma de
papel. E, além disso, todas ali organizadas cronologicamente.
As de cima das pilhas foram desorganizadas por uma rajada de
vento. Era inverno. Garoava. Estava frio. Sempre estava frio.
Havia um bom tempo desde a última vez que o sol apareceu.
As tais flores prometidas e ansiadas da primavera nem deram
sinal de que vão um dia ainda aparecer. Duvido. Levantei e
fechei a janela. A cortina, de um tecido de um amarelo fos-
co, tinha agora uma mancha marrom molhado feita pela chu-
va que invadiu. Lá fora, o céu pintava o rosto das pessoas de
cinza; as árvores da calçada pareciam de cimento; os carros
pretos e pratas sobre o calçamento de cimento. Cinza. Horas
depois, voltei ao chão. Às cartas. Havia algumas espalhadas.
Pensei em organizar tudo de novo. Àquela hora, o fogo da la-
reira já ia alto. Talvez se eu organizasse por remetente, eu ia
entender o que tudo aquilo tinha a ver com nada. Sentei-me
na frente da lareira e resolvi não ler nenhuma daquelas linhas.
Resolvi apenas contemplá-las: organizadas e belas e cheias de
letras. Deitei-me no chão. Sem pensar em números, assisti,
sem pensar, o caminhar vagaroso dos ponteiros do relógio.
Sem pensar. Pensei em não pensar, mas pensei. Pensamentos
me devoravam vagarosos. O fogo da lareira se apagava. Àquela
hora a sala estava bem escura. A chama ia logo se apagar. Jo-
guei no fogo minha mão esquerda. A sala brilhou e logo voltou
ao escuro. Meu braço, em seguida, fez brilharem meus pensa-
mentos por mais tempo. O silêncio daquela casa me destruía.
Achei melhor me levantar e por uma música pra me distrair.
Pus fogo em minha perna e fui aos pulos até a estante. A per-
na esquerda. Nas prateleiras escolhi cinco dos meus melhores
cds e coloquei na bandeja. Músicas calmas. Eu queria ouvir
músicas calmas. Agarrei o controle remoto e voltei pro chão.
“Tudo o que eu precisava, eu não mais precisei”: era, então,
minha perna esquerda que iluminava meus escritos, ali, joga-
E como uma criança feliz ela caminhava à beira do precipício.
Lá em baixo um mar um tanto agitado batia nas pedras. As
ondas iam e vinham, como que dançando por entre elas. Não
era dia, nem era noite. Era tarde. Uma tarde dourada. Se ela
apurasse o nariz, poderia sentir um certo cheiro da tarde. As
gaivotas voavam perto dela, parecia que se entendiam. Ela,
com os braços abertos, sem sapatos e com seu leve vestido
negro, contornava a beira daquele abismo. Não se importa-
va se poderia morrer com uma possível queda. “Sou imortal”,
pensara. “Além disso, tenho minhas asas negras, que posso
usar quando eu quiser.”. Ali, à beira do abismo, ela rodopiava
feliz, apesar da tarde dourada. Atrevi-me a olhar no fundo de
seus olhos, notei que eles não acompanhavam a felicidade de
seu corpo. Sua alma não acompanhava... Achei estranho que,
sozinha, ela dançasse, pois além de não haver música, seus
olhos não pediam dança. Por um instante ela parou, já um
tanto cansada, colocando as mãos no rosto para afastar seus
cabelos, que lhe encobriam os olhos naquele instante, depois
de tanto dançar. Começou a andar devagar, para sentir cada
pedrinha, por menor que fosse, em seus pés. Parou para sentir
o vento no rosto. Parou para observar aquela triste tarde dou-
rada. Parou para observar as ondas lá em baixo... Agora seus
olhos faziam certo sentido com seu corpo. Este parado. Aque-
les, hipnotizados pelas ondas batendo nas rochas. Seus dedos
tocavam novamente seus cabelos para tirá-los do rosto, pois o
vento era incessante. Por alguns instantes o hipnotismo do vai
e vem das ondas foi quebrado e ela começou a contemplar o
horizonte. Começou a contemplar a tarde dourada. Um filme
começou a passar por sua cabeça. Se é longo ou curto, depen-
de. O tempo corre de muitas maneiras diferentes. Ao contem-
plar aquele dourado e o filme em sua mente, começou a tirar
os brincos. Ao terminar isso, abriu os braços, com a ilusão de
que possuía negras asas. Começou a contemplar novamente o
vai e vem das ondas. Ela sorriu. Um sorriso triste, mas ainda
assim um sorriso. Sorriu ao contemplar o filme em sua men-
te. Apenas sorriu. Aproximou-se um pouco mais da beira do
precipício e olhou para cima para observar o céu. Olhou para
o horizonte. Olhou para baixo, para as ondas, e permaneceu
assim. Os relógios terrestres não são capazes de quantificar o
tempo dela. Simplesmente olhou por tempo suficiente. Com
seus pés descalços, um sorriso um tanto perturbado nos lá-
bios, suas ilusórias asas e seus braços abertos, ela se jogou.
“Sou imortal”, pensara ela antes de se jogar. Estava enganada.
No fundo ela sabia que não era imortal, mas tanto faz agora.
Ela se espatifara junto às pedras; um certo tom de vermelho
misturava-se com a água, com as ondas. As asas imaginárias
se foram junto com ela. Agora seus olhos faziam sentido com
o seu corpo. Agora os dois estavam no mesmo ritmo. Em rit-
mo nenhum.
sub-realidade
Coração inFlaMáVel
produção literária
Ciranda no abiSMo
willian pinheiro [sub-realidade.blogspot.com]
fran canestraro28
dos no chão. Eu nunca mais ia querer lê-los. Nem vê-los. Nem
mais ninguém. Meus olhos lacrimejavam com a luz do fogo.
As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu não queria pensar.
Eu não conseguia pensar. Eu já não pensava. A luz me cegava
e eu ainda não tinha deixado de prestar atenção no relógio.
“Eu te dei minha mão, disse ‘tudo bem abandonar, é hora de
sair daqui’”. Não queria nunca mais ouvir nem o relógio nem
o gemido dos alto-falantes. Aquelas glândulas lacrimais esta-
vam já velhas e ultrapassadas. Eu não precisava delas. Nunca
mais precisei Sem hesitar, embora com muito cuidado, eu tirei
minha cabeça do pescoço. Sem sentir nada, ela logo estava no
fogo. Dali em diante, escuridão total e silêncio. Não via mais
nada. Não ouvia mais nada. Não havia mais nada. Só então
percebi o que era não pensar tão obstinadamente naquela
mesma coisa. Sem pensar, consegui deixar de pensar. Sem po-
der saber que música tocava, me arrastei com dificuldade pra
dentro da lareira. Não pude sequer ver o brilho que emanou
do meu resto de corpo. Espero que estivesse tocando Beatles.
Acho que ninguém viu.
cal ufpr . boca do inferno . 20 cal ufpr . boca do inferno . 21
O sol lá fora quase havia se posto. A casa já iluminada com
suas luzes artificiais. A lâmpada do quarto em uma redoma
de vidro em formato de gota, parecendo escultura de gelo
inderretível pendente no teto. Ao atravessar o objeto, a luz
perdia um pouco sua intensidade. Mas era ainda luz, e alguns
inséculos minúsculos voavam ao seu redor. Muito próximos,
mas não chegavam a tocar o lustre. Amavam a luz, sobretu-
do a artificial, e passavam o dia inteiro pousados em qualquer
canto a espreita do pôr-do-sol. Quando finalmente chegava,
as luzes da casa se acendiam, e estavam livres para fazer o que
amavam: voar ao redor das lâmpadas. A natureza os fez seguir
o luar como orientação, mas os pequenos cérebros se confun-
diam ao ver uma fonte luminosa mais próxima e mais intensa.
Um dos inséculos voava mais rápido que todos os outros. O
vôo em espiral foi ficando cada vez mais ligeiro e violento. Já
cego pelo gozo incontrolável, em uma de suas curvas, tocou
a fonte. E foi como se de repente passasse a existir. Havia ele
agora, na forma primitiva e original. Entrava não para aquela
vida já tão rançosa, mas para a outra vida que era, em realida-
de, a única verdadeira. E como o suspiro do poeta gera espa-
ço em branco no verso, o espaço entre ele e o mundo estava
recheado de coisa alguma. O zumbido, silêncio. Sentiu frio
nas pequenas articulações. Quis pousar, mas não havia cor-
po que pousasse. Era qualquer coisa que sente, e sentia qual-
quer coisa próxima ao prazer. Não era a luz, mas a busca por
ela. A espreita do crepúsculo. A doce ansiedade da véspera.
Percebeu-se inteiro. Teve medo e pela primeira vez, planejou.
Talvez a fuga da teia pudesse ser passando a língua áspera nas
partes em que estivesse preso. Poderia ser uma tentativa em
vão, mas a aranha tardava a chegar e isso lhe daria tempo para
pensar em outras possibilidades. Pensar. Lutar. Precisava com
urgência ser. Assim como a vida precisava ela mesma ser vivi-
da. O corpo, queimado e quase sem vida, foi ao chão. Natureza
sábia. A lua o protegia de duas maneiras: estava a uma distân-
cia bastante segura e, por não ter calor próprio, jamais faria
mal a qualquer inséculo apaixonado que percorresse tamanha
distância. Pareceu que ia morrer. E morreu.
Estava sentado num banco frio do calçadão da XV de Novem-
bro. Sentia o vento frio da madrugada congelar seus lábios.
Que horas eram? Meia noite? uma, duas? Não podia ter certe-
za... A outrora movimentada rua, agora padecia de um silêncio
trazido pelo vazio das pessoas que ali não andavam. Sentado
no banco, tateou algumas flores no úmido canteiro; levou uma
ao nariz e inspirou o doce odor exalado pelas macias pétalas.
Vez ou outra ouvia um leve ruído ao longe - ruídos não facil-
mente identificáveis: um carro, uma latinha que caía, talvez,
uma conversa entre pessoas que passavam tão longe que pa-
reciam cochichar, ouvia às vezes sons que não conseguia atri-
buir a nada que conhecia; ouvia também o som das folhas que
balançava com o vento e de desprendiam dos altos galhos de
cerejeiras e terminavam por pousar no chão, nos bancos e em
seu casaco. Sentia na boca - ainda - o gosto amargo do conha-
que que tomara horas atrás na tentativa de amenizar o frio
trazido com o sereno da noite. Meteu a mão em um dos bolsos
do longo casaco e dele sacou uma bala de canela. Desenrolou-a
pacientemente e pôs na boca. Certos gostos tinham para ele
um sabor especial de nostalgia; às vezes tinham gosto de dor,
de felicidade, de paixão. Canela. Lembrava-se bem do gosto
de seus lábios - canela -, da textura que tinham e da doçura
com que tocavam os seus. Lembrava-se da primeira vez que
tocara seu rosto, do calor por ele emanado; lembrava-se de
cada curva e de cada imperfeição do seu rosto - pra ele perfei-
to - e da forma como, ao seu toque, se aqueciam ainda mais
as bochechas arredondadas. Gostaria de saber que fim levara,
que caminhos seguira. Doce. Com um pulo desperta. Ouve
cair sua bengala. Abaixa-se e a traz para junto de si. Não sabe
por quanto tempo seus olhos ficaram fechados - o que pra ele
não faz, de fato, muita diferença. Ficou ali sentado por muito
tempo. Pensa em quanto tempo mais teria que esperar até que
alguém que enxergasse - e a ele também - o conduzisse até
sua casa. Talvez seus passeios noturnos sem destino deves-
sem deixar de existir... afinal, poderia fazê-los durante o dia - a
escuridão era a mesma.
Aqueles corredores faziam sua imaginação aflorar. Tantas his-
tórias, tantas vidas concentradas ali, lado a lado, numeradas
e organizadas em celas de diversos tamanhos. Os muitos cor-
pos que por ali passavam pareciam não se incomodar com a
presença delas. Na verdade, nem mesmo notavam que aquele
mundo era muito maior do que aparentava. Mas ele notava.
Sim, ele era capaz de ouvir todas aquelas vozes aprisionadas
ali. Ainda que não conhecesse quase nada, transportava-se
para o meio daqueles corredores e podia ouvir os gritos mu-
dos daquelas vidas sem corpos. Sentia-se observado, admira-
do, invejado. Era capaz de perceber o chamado daquelas almas
que lhe cercavam, sentindo-se tentado a atendê-los. Ficava
cada vez mais difícil não se deixar seduzir por tantos clamores
por liberdade, mas vagava por aqueles corredores buscando
uma vida em particular. Tinha um destino certo e não podia
perder-se no caminho. Sabia que tudo o que aquelas almas
queriam era um corpo onde pudessem voar livres. Até que, en-
fim, ele encontra o que procurava. Olha para aquela pequena
cela, com aquela vida ali dentro, sorrindo para ele. A admira
por um instante, ouve seu chamado e a liberta. Agora aquela
alma ganha um corpo: o dele.
inSéCuloSliMbo
labirintoS ViVoS
Caminho pela manhã. Não que isso faça muita diferença, mas,
uma vez que o sol não está tão alto no céu e que ainda sinto a
brisa gélida de uma noite já distante, é pertinente dizer que é
manhã, uma agradável manhã para caminhar. Mas quanto a
caminhar, não me foi dada escolha. Então eu caminho. Árvo-
res altas ao meu redor, umas esbeltas e retilíneas, outras secas
e retorcidas, como se quisessem fechar o ar que há para res-
pirar, e posso sentir isso. A cada passo o ar fica mais pesado,
mesmo com a brisa leve, a única coisa que passa pelas estreitas
passagens das copas das árvores são as nesgas de luz deste sol
matutino. Eu caminho então para encontrar novamente cam-
po aberto. O chão sob meus pés varia como as árvores que pas-
sam por mim. Ora duro e empedernido, ora macio e gramado.
Por vezes juncado de arbustos e flores, por vezes lamacento e
pantanoso. Não consigo ter um bom ritmo, mas em busca de
solos mais regulares, eu caminho. Paro para descansar, sento
em uma grande pedra sob uma árvore de abóbada acolhedora.
Embora ficasse às margens da minha trilha, não me arriscava
a olhar para trás. Nada me seguia, mas era como se estivesse.
De nada fugia, mas não podia ficar muito tempo ali. Levanto-
me do refúgio arbóreo e continuo caminhando. Minhas vestes
me parecem pesadas. O manto sob meus ombros ondula leve-
mente aos resquícios da brisa pesada da noite distante, que
as árvores retorcidas não conseguiam segurar. Mas mesmo
com a leveza de sua fazenda, estava pesado, como se não qui-
sesse que eu continuasse adentrando a trilha. Mas nada, nem
mesmo meu manto me impediria de caminhar. Não importa
porque caminho, porque comecei a caminhar e muito menos
para onde devo caminhar. Agora, tudo o que importa é que eu
caminho, e que não posso parar.
trilHando o CaMinHo, CaMinHando a trilHa
andante dos portões [thegatesandbeyond.blogspot.com]
iamni reche bezerrajulio cezar marques [escrevendodentrodofuracao.blogspot.com]
sara duim [minhaconstanteinconstancia.blogspot.com]
cal ufpr . boca do inferno . 22 cal ufpr . boca do inferno . 23
Life has moved on
But you’re still jumping on the lawn
Sometimes it feels like dancing
Primitively seducing
the creatures of the garden
Would they reach out to the flowers
Or to your hardly hidden burden?
It takes the hundreds of stings through
Your soft white skin
To take the pain within
But lately you’ve been
weirdly feeling fine
Sleepy sleepy little dog
Scream it woofing in my ear:
Is it our future to grow old and full of fear?
Their experiments on us work no more
What were the flowers really for
Dee dee little bee
Come flying from the streets
And kiss me in the mouth with love and greed
So scarlet I’d be for every tree to see
Your poison searching for the blood in me to feed
It takes the bunches of insects
Holding you down from near
The ones like you who actually succeed
Dancing around in line
Knowing of your state of mind, though
weirdly feeling fine.
Ontem vaguei antes de adormecer
Na intenção de caminhar em direção às minhas ilusões
Encontrei portas fechadas que um dia facilmente abri
Antes, explorava cada espaço que adentrava
Encontrando lacunas que me mantinham sonhando
Aproximando-me da beleza que nunca existiu
Subia degraus que rumavam ao nirvana
Nas camas em que deitava sentia odores um dia tão próximos
Sobre lençóis descompostos mergulhava em âmagos não vistos
As portas obstinadamente se mantiveram trancadas
Regressei, então, por um caminho tortuoso – adormeci, enfim
Num relógio exato avistei o início do meu dia.
(vinte e nove de março de dois mil e dez)
in tHe green SeM título
lucas vosch pacheco de carvalho dan
Boca do Inferno Jornal Acadêmico do Curso de Letras da UFPR
ISSN 2178-308X
Rua Gal. Carneiro, 460, 10° andar
editor
josé olivir de freitas junior
revisores
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elisa tisserant de castro
projeto gráfico
caius marcellus (coletivo095.com)
conselho editorial
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