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JULHO/AGOSTO DE 2014 | N O 2 WWW.BAHIACIENCIA.COM.BR PROJETO DO SENAI CIMATEC LIGA UNIVERSIDADE À INDÚSTRIA VERMES ATENUAM RESPOSTA ALÉRGICA DA ASMA ENTREVISTA ROBERTO SANTOS INFINDÁVEIS BATALHAS DE UM MESTRE PERSISTENTE A bruxa já não está tão solta Pesquisas ajudam recuperação da economia cacaueira

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  • julho/agosto de 2014 | no 2 www.bahiaciencia.com.br

    projeto do senai cimatec liga universidade indstria

    vermes atenuam resposta alrgica da asma

    entrevistaroberto santos

    infindveis batalhas de um mestre persistente

    A bruxa j no est

    to soltaPesquisas ajudam recuperao

    da economia cacaueira

  • 10 EntrEvista roberto Figueira santosAo falar de seu trajeto, da pesquisa na rea mdica s altas esferas da poltica, o ex-governador reflete sobre a construo do Brasil contemporneo e desvela uma Bahia fundamental na formulao de futuros

    26 CapaCom tratos culturais corretos e clones resistentes, produtores conseguem manter vassoura-de-bruxa sob controle

    sees

    3 Outros olhares

    4 Carta da editora

    5 Rememria

    6 Cartas

    8 Poucas e boas

    72 Resenhas

    74 Charge

    artigos

    24 Glauco Arbix e Fernanda Stiebler

    34 Roberto Paulo M. Lopes

    2

    capa Ilustrao: Cau Gomez

    poltica

    36 ideias inovadorasFapesb distribui 12 prmios e lana edital do concurso 2014

    40 reconhecimentoLuana Serrat, coordenadora da Escola Picolino, recebe o Prmio Fundao Bunge por contribuio s artes circenses

    produo do conhecimento

    42 sadePesquisadores identificam parasitas que atenuam ecloso da asma alrgica

    48 Qumica Fungos de plantas coletadas em rea de proteo ambiental em Salvador servem de molde para sensores microscpicos de ouro

    pesquisa e desenvolvimento

    52 parceriaProttipo para inspeo veicular do Senai Cimatec um exemplo da aproximao da pesquisa acadmica com a indstria

    cultura e humanidades

    56 artes plsticasInterrompida h 46 anos, Bienal da Bahia volta a existir, tateando relaes entre o Nordeste, o Brasil e o mundo

    58Conexes entre a arte e o imaginrio tornam visvel a experincia histrica e do voz aos que foram silenciados

    66 perfilJoo Ubaldo Ribeiro traou o mais profundo retrato da cultura e da psicologia nacionais

    70Florisvaldo Mattos homenageia o amigo em prosa e verso

    10

    56

    48

  • bahiaCinCia | 3

    outros olhares

    aviao e pensamentoGonalo M. Tavares

    1. Ludwig Wittgenstein em 1908, com 19 anos, queria construir um aeroplano. Estudava engenharia.Bertrand Russell, que o recebe na universidade de Cambridge, escreve sobre o jovem Wittgenstein (tratava-o por o meu alemo), que ainda no conhecia bem, e diz: O meu alemo vacila entre a filosofia e a aviao.

    2. Um filsofo passar a sua juventude a querer construir um volume que suspenda por momentos, minutos, horas a fora da gravidade.

    Gonalo M. Tavares escritor, portugus, autor de Imagens dos Espacialistas, entre outras obrasFO

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    3. Pensar de certa maneira isto: planar dois metros, cem metros, acima do que est a acontecer neste momento; mil metros, digamos assim, acima do presente. Pensar de forma concentrada no ver o que est frente, ver outra coisa. E ter um projecto na cabea sempre construir mentalmente, mesmo que simbolicamente, um aeroplano. Quem no quiser construir um aeroplano que no entre nesta sala! eis o que a cincia poderia exclamar.

    4. Pensar, pois, numa escola de artistas e cientistas que recusa a entrada a qualquer elemento da multido conhecida como a multido daqueles que nunca quiseram construir um aeroplano.Dividir, portanto, a espcie humana em:a. seres vivos que um dia pensaram em construir sozinhos um aeroplano.b. seres vivos que nunca na vida pensaram em construir um aeroplano.

    5. Uma questo ainda: como se desenha um aeroplano? A mo que desenha um aeroplano move-se milimetricamente, move-se quase em imobilidade por cima do papel exactamente da mesma maneira que se move aquela outra mo que em vez de desenhar um aeroplano desenha um carro? Eis uma pergunta.

    6. Interessante tambm pensar na questo do peso. Um aeroplano, mesmo que com igual nmero de quilogramas (kg) de um automvel, pesa sempre menos. Sem dvida alguma.O que voa no pesa o seu peso; o seu peso no vem em gramas, mas em expectativa e algum espanto; metade espanto, metade expectativa.

    7. Cincia que apenas pesa o seu peso versus cincia que tem peso e expectativa. Duas cincias.Quem deixar de querer construir um aeroplano deixou de ser cientista.

  • 4 | julho/agosto de 2014

    MariluCE Moura

    Um coro afinado e colorido

    H quem no aprecie especialmente a msica vocal e se deleite mais com a profuso das conversas entre cor-

    das, madeiras, metais e percusso da msi-ca instrumental. De todo modo, mesmo os que no curtem especialmente os vocais, se amantes da msica em termos amplos, sabe-ro reconhecer quando um coro se apresen-ta bem afinado, harmonioso, marcado por uma notvel riqueza de sons e belos timbres bem entrosados para oferecer algo que soa como uma unidade. Essa imagem me vem de repente nos momentos finais do fecha-mento da segunda edio de Bahiacincia. Observo a revista como um belo e colorido coro, atravessada por uma sensao quase fsica do movimento das vozes que se foram somando, s vezes inesperadamente, dos fluxos de inteligncia que foram convergin-do para estruturar solidamente um projeto que se pode ter, enfim, concreto nas mos. E para mim h sempre algo de apaixonante nessa construo coletiva.

    Os leitores podero perceber neste coro--revista a fora das vozes do professor Roberto Santos, rico personagem da entrevista pingue--pongue desta edio (pgina 10), e do pneu-mologista lvaro Cruz, interlocutor central na reportagem sobre as pesquisas da asma levadas a cabo por grupos baianos, elaborada pela jornalista Raza Tourinho (pgina 42). Ser audvel a imensa contribuio ao coro dos pesquisadores Gonalo Pereira, Daniela Thomazella, Carlos Priminho Pirovani e Jo-s Marques Pereira, alm dos cacauicultores Rogrio Sampaio, Edmond Ganen e Thomas Hartmann, para a bela reportagem de capa regida pela jornalista Dinorah Ereno sobre as pesquisas que permitem esperar que, daqui por diante, a ameaadora vassoura-de-bruxa possa ser mantida sob estrito controle (p-gina 26). Tambm as vozes dos pesquisado-

    res Llian Guarieiro e Jailson Bittencourt de Andrade (pgina 52), e Marcos Malta (pgina 48), capturadas respectivamente pelos jorna-listas Fabrcio Marques e Ricardo Zorzetto, ressoam nas revelaes do mundo da pes-quisa cientfica da Bahia.

    O tema da capa , alis, timo pretexto para destacar a contribuio fundamental qualidade da obra de todos que nesse espao lidam com o visual e o grfico. Comeando por Cau Gomez, criador genial da capa, e chegando a Gentil, o excelente chargista que fecha esta edio, percorremos um caminho facilitado pelas extraordinrias imagens fotogrficas de Lo Ramos e de Luciano Andrade, trabalhadas com sensi-bilidade por nossa editora de arte, Mayumi Okuyama, e viabilizadas espacialmente por nossa designer, Cia Felli.

    Esta obra coletiva se nutre ainda das con-tribuies notveis de Glauco Arbix e Roberto Paulo Lopes, de Florisvaldo Mattos e de Ro-drigo Lacerda, de Jos Bento Ferreira, Silvana de Souza Ramos, Juliana Serzedello e, num lance quase mgico, da ajuda de Antonio Nery Filho e Ligia Vieira, que se mobilizaram para nos contar uma histria de um antigo clube de cincias tocado pelo doutor Anibal Silvany Filho, cujo filho, Paulo, ainda nos brindou com fotos dos anos 1940-1960. E no posso encerrar sem juntar a tantos nomes o do jornalista Luis Guilherme Pontes Tavares, entusiasmado e altamente colaborativo, que rapidamente, a meu pedido, enviou o livro do professor Luis Henrique resenhado na pgina 72 e ainda nos deu notcias e imagens do abraao ao Palcio Arquiepiscopal, em 13 de agosto (pgina 8).

    Todos ns, e mais uns tantos no cita-dos, fizemos juntos esta revista. A mim coube honrosamente reger o coro. Toro para que apreciem!

    carta da editora

    editora

    Mariluce Moura

    editora de arte

    Mayumi Okuyama

    Maria Cecilia Felli (designer)

    editor de fotografia

    Lo Ramos

    colaboradores

    Ana Luiza Abreu, Cau Gomez,

    Dinorah Ereno, Florisvaldo Mattos,

    Fabrcio Marques, Fernanda

    Stiebler, Fernando Vivas, Glauco

    Arbix, Gonalo Tavares, Gustavo

    Fioratti, Jos Bento Ferreira,

    Juliana Serzedello Crespim

    Lopes, Luciano Andrade, Mauro

    de Barros, Ricardo Zorzetto,

    Raza Tourinho, Roberto Paulo M.

    Lopes, Rodrigo Lacerda, Silvana

    de Souza Ramos

    tiragem

    10.500 exemplares

    impresso

    Plural Indstria Grfica

    distribuio

    Jornal A Tarde

    proibida a reproduo total

    ou parcial de textos e imagens

    sem prvia autorizao

    contato

    [email protected]

    T: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

    www.bahiaciencia.com.br

    bahiacincia uma revista

    bimestral da

    aret editora e comunicao

    Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 61

    CEP 05415-012

    Pinheiros, So Paulo, SP

    T: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

    ISSN 2358-4548

  • o professor silvany Filho assumiu o

    curso de embriologia para minha turma

    em 1965. no ano seguinte, levou para

    o hospital aristides Maltez os alunos

    que mais se aproximaram dele: roque

    andrade, hoje renomado quimiotera-

    peuta, ex-presidente da associao

    baiana de Medicina (abM); augusto

    Castilho, residente em Manaus e pato-

    logista, certamente por influncia do

    professor silvany; Jos Francisco da

    silva, que viveu muitos anos em Cam-

    pinas (sp) e hoje o diretor do labora-

    trio de patologia clnica do hospital aliana; acho Gilson Fei-

    tosa, tambm de nossa turma, professor de clnica mdica da

    Escola bahiana e renomado cardiologista; e robson souza,

    jornalista de formao, que iniciou com silvany seu percurso

    como patologista e que vive hoje, salvo engano, em so paulo.

    no posso me deixar de fora! Em 1966, fui com mais alguns

    colegas, contratado como auxiliar acadmico, o que nos permitiu

    dedicar mais tempo e organizar o Clube de Cincias. ns de me-

    dicina, como estvamos saindo do curso de anatomia e entrando

    na fisiologia, nos responsabilizamos por estas matrias. assim,

    anestesiamos inmeros camundongos e vimos seus pequenos

    coraes e pulmes funcionando, sob o olhar maravilhado de

    nossos alunos. Evidentemente, raramente aqueles pequenos

    camundongos escapavam da morte!

    o estudante de fsica Carlos Eduardo veloso de almeida (co-

    nhecido na bahia como um dos rapazes mais bonitos da terra,

    tinha o apelido de Cacu, provavelmente corruptela de seu nome,

    pronunciado por sua irm mais nova). Carlos Eduardo dedicou-se

    cancerologia e fsica das radiaes, tendo sido diretor do ins-

    tituto nacional de Fsica. Foi um dos 50 cientistas homenageados

    na Europa por sua contribuio ao tratamento radioterpico. aps

    sua aposentadoria, fez concurso para a uErJ, onde mantm im-

    portante laboratrio de pesquisa.

    talvez valha lembrar que o Clube de Cincias foi para ns,

    estudantes de medicina, o ponto de partida para inmeros traba-

    lhos. Da surgiu, mais tarde, a proposta de realizao do i Encon-

    tro Cientfico de Estudantes de Medicina (Ecem), realizado em

    rememrias

    1969 sob minha presidncia, certamente o mais importante even-

    to estudantil durante perodo difcil da histria do brasil. Final-

    mente, lembro-me que silvany organizava verdadeiras excurses

    pelas praias e em seu stio Caratinga, em itacimirim, para obser-

    vao de organismos marinhos e vegetais. para surpresa de silvany,

    em 1968 decidi que minha vida profissional seria na psiquiatria,

    deixando a cirurgia iniciada com lair ribeiro, Carlos Maltez, Coracy

    bessa e adriano Gordilho. Creio que merece ser mencionado o

    apoio irrestrito que o diretor do hospital aristides Maltez, doutor

    luiz de oliveira neves, emprestou a todas as

    iniciativas acadmicas do professor anbal

    Muniz silvany Filho.

    o que me lembro.

    antonio nery Filho

    Professor Associado IV da Faculdade de Medicina

    da UFBA (aposentado)

    o Clube de Cincias foi organizado pelo dou-

    tor anbal Muniz silvany Filho, mdico patolo-

    gista que era tambm um educador e vivia

    cercado de estudantes de medicina. seus dois

    filhos, anbal neto e Eugenia Cristina silva

    silvany, estudaram no Colgio de aplicao da

    uFba. Eugnia foi minha colega desde o curso primrio [primeiros

    cinco anos do atual curso fundamental] no Colgio pedro Calmon,

    no Matatu. Doutor silvany queria desenvolver a curiosidade cien-

    tfica em estudantes secundaristas e teve a ideia de organizar esse

    clube. Convidou colegas de Eugenia e de neto do aplicao da

    a participao de Mrcia porto, de rivane e minha, colegas dela, e

    de paulo Costa lima e Chico santos pereira, colegas de neto. tam-

    bm havia filhos de outros mdicos amigos de silvany, como an-

    gela Garcez senna. nossos professores no Clube eram os estudan-

    tes de medicina robson souza, antonio nery, Jairnilson paim e, de

    fsica, Cacu [Carlos Eduardo veloso de almeida].

    todos os sbados, amos ao hospital aristides Maltez para ter

    aulas prticas de biologia, dissecando animais de pequeno porte.

    amos a praias observar as algas e animais. a ida ao cais do porto,

    creio que estava ligada a alguma aula prtica de fsica, j no

    lembramos muito bem. as aulas eram de qumica, fsica e biologia.

    Desse grupo, vrios vieram a cursar medicina, como paulo

    Costa lima, Maria romilda e angela Garcez. Mrcia porto fez ini-

    cialmente engenharia e depois medicina. paulo lima abandonou

    o curso de medicina e foi ser msico e compositor com uma

    trajetria acadmica importante. Eu fiz inicialmente uma residn-

    cia em anatomia patolgica e meu trabalho de iniciao cientfi-

    ca foi nessa rea, numa clara influncia do Clube de Cincias. Em

    seu memorial para o concurso de titular, em 2001, Jairnilson diz

    que tambm a experincia do clube foi importante para ele.

    ligia maria vieira da silva

    Professora Associada do Instituto de Sade Coletiva da UFBA (aposentada)

    dUas lembranas e Um clUbe de cincias inesqUecvel

    bahiaCinCia | 5

    silvany conversando com alunos da medicina que faziam parte do clube de cincias

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  • 6 | julho/agosto de 2014

    cartas

    Bahiacincia n 1 - repercusso

    w Ao terminar a leitura minu-ciosa da edio nmero 1 da revista Bahiacincia veiculada pelo jornal A Tarde, apresso--me em enviar a presente mensagem parabenizando a senhora Mariluce Moura e demais responsveis pela iniciativa de gerar matria de to fundamental impor-tncia para o pblico baia-no. Acrescento estas minhas congratulaes aos que assi-nam os vrios captulos do suplemento e aos que foram entrevistados pela redao.

    Em pesquisa encomenda-da pela Academia de Cincias da Bahia sobre a percepo pblica dos habitantes da ci-dade de Salvador quanto aos assuntos de desenvolvimen-to cientfico e tecnolgico, ficou evidente a escassez de meios de informao habi-tualmente consultados pelos entrevistados, nossos coes-taduanos. Por isso mesmo, ficou evidente o acerto da escolha dos que, por serem conhecedores profundos da nossa realidade, apontaram os temas dos quais se ocu-pam os diferentes captulos da primeira edio do suple-mento. Fao votos de que

    seja esta edio a primeira de uma longa srie com a mesma qualidade, na certeza de que os baianos leitores da A Tarde tero muito a apro-veitar da leitura do suple-mento Bahiacincia. Cordiais saudaes.roberto Figueira santos

    Professor aposentado e ex-reitor

    da UFBA. Presidente da

    Academia de Cincias da Bahia

    w Parabns pelo lanamen-to do encarte da revista Bahiacincia. Tal iniciativa contribuir, em muito, pa-ra ampliar a percepo da importncia da CT&I pela sociedade baiana. roberto paulo machado lopes

    Diretor-geral da Fundao de

    Amparo Pesquisa do Estado

    da Bahia (Fapesb)

    via Facebook

    w Hoje, no plenrio, elogiei iniciativa da revista Bahia-cincia. Parabns editora e equipe!ldice da mata

    Senadora pelo PSB do estado

    da Bahia

    Senhor presidente, senhoras e senhores senadores, quero registrar nossa satisfao com o lanamento, no ltimo dia 25 de maio, da revista Bahiacin-cia, voltada especificamente para a divulgao do conheci-mento cientfico produzido por pesquisadores, empresas e aca-

    dmicos da Bahia. Trata-se da primeira publicao com esse teor surgida em nosso estado e, ainda que tardia, merece todas as nossas homenagens, por sua meritria iniciativa de levar um tema pouco acessvel ao grande pblico e que, por isso mesmo, ignora a produo cientfica e tecnolgica realizada ou em desenvolvimento na Bahia.

    Neste primeiro nmero, a publicao apresenta uma re-portagem sobre o potencial que a Bahia tem para se tornar o maior exportador de energia elica do Brasil, graas sua posio geogrfica e sua vasta extenso territorial, que per-mite a instalao de parques elicos em reas inabitadas e onde os ventos sopram a sete metros por segundo em sete regies diferentes. Esta con-fluncia de fatores permite ao estado a capacidade de gerar 70 mil megawatts de potncia eltrica, mais do que a produ-o somada das seis maiores hidreltricas do mundo.

    Tambm quero destacar tra-balho registrado pela Bahia-cincia de pesquisadores que, de forma incansvel, esto desen-volvendo estudos para conter os avanos da lagarta Helicoverpa, uma praga que j provocou per-das avaliadas em R$ 2 bilhes safra baiana, especialmente nas plantaes de soja, milho e feijo do oeste do estado.

    A revista traz, ainda, arti-go do reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia, pro-fessor Naomar Almeida, em

    maio/junho de 2014 | edio no 1

    interior baiano pode se tornar grande exportador de energia elica

    quilombos inauguraram luta por cidadania empreendida at hoje

    eventos marcam os 120 anos do instituto geogrfico e histrico

    entrevistazilton andrade

    contribuies ao conhecimento da esquistossomose

    parque tecnolgico da bahia

    Um territrio de inovao

    www.bahiaciencia.com.br

    001_CAPA_No1.indd 1 19/05/14 16:15

    que aborda o projeto poltico--pedaggico da nova universi-dade federal e sua adequao ao desenvolvimento da Bahia.

    Nunca demais lembrar que tivemos a oportunidade de ter na Comisso de Educao, Cultura e Esporte do Senado, o reitor desta Universidade, dou-tor Naomar, oportunidade em que debatemos o Plano Orien-tador Institucional e Poltico--Pedaggico da Universidade Federal do Sul da Bahia, sesso que ocorreu em 3 de julho do ano passado.

    Portanto, senhor presidente, quero parabenizar os jornalistas desta revista, a editora Marilu-ce Moura e toda a redao e a produo pelo lanamento da publicao que vem preencher uma lacuna enorme do jornalis-mo baiano, de tanta importncia para a divulgao daquilo que acontece exatamente na rea do desenvolvimento cientfico-tec-nolgico no estado da Bahia. (Senado Federal, 02/06/2014)

    w Estou encantada com o n-mero de maio/junho de 2014 da revista Bahiacincia, que traz importantes entrevistas do doutor Zilton Andrade, do historiador Joo Jos Reis e uma matria excelente so-bre o Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia, que est completando 120 anos de servio Bahia. Seria interes-sante que a Secretaria de Es-tado da Cincia e Tecnologia da Bahia concedesse apoio a esse importante peridi-

  • bahiaCinCia | 7

    co editado pela competente jornalista baiana Mariluce Moura, que foi minha aluna na UFBA. Quem receber essa revista considere o seu valor e preserve esse nmero para a posteridade .consuelo pond de sena

    Presidente do Instituto

    Geogrfico e Histrico da Bahia

    w Contedo raro de interes-se do jornalismo cotidiano, embora apaream de quando em vez reportagens e pginas em jornais sobre esse campo do conhecimento, circula ho-je encartado na edio de A Tarde o primeiro nmero da revista bimestral Bahiacin-cia, que tem como editora a jornalista Mariluce Moura e traz entre seus colabora-dores nomes como Claudio Bandeira, especialista em jornalismo cientfico, dois ex-reitores da UFBA, Eliane Azevedo e Naomar de Almei-da Filho, e o ex-presidente da Federao das Indstrias da Bahia e atual vice-presidente da Confederao Nacional da Indstria, Jos de Frei-tas Mascarenhas. Alm do competente elenco de textos dentro da sua especializa-o editorial, chamou-me a ateno trazer a revista em sua contracapa um poema, e um poema justamente do simbolista baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), talvez por se tratar de um poeta de lavra esquisita, na linha de um Augusto dos Anjos,

    que a melhor crtica classi-fica de protomodernistas, isto , primeiro que os mo-dernistas. Embora no fosse de extrao romntica, Kil-kerry morreu jovem, de tu-berculose, em consequncia de uma traqueotomia. Era de Santo Antnio de Jesus. O que permanece da obra dele se deve ao concretista Augus-to de Campos, que publicou em 1970 o livro intitulado Re-Viso de Kilkerry, aps laboriosa pesquisa. Florisvaldo mattos

    Jornalista e poeta

    w O recomendvel distri-buir mais uma vez o nmero 1 da revista Bahiacincia. Em meados de maio ltimo, o peridico chegou ao pblico encartado em A Tarde, mas essa distribuio no foi su-ficiente para alcanar mais e mais leitores interessados em produtos jornalsticos de qualidade. H, todavia, uma verso eletrnica: www.bahiaciencia.com.br. A revis-ta editada pela jornalista Mariluce Moura, tambm editora da conceituada re-vista Pesquisa FAPESP, da Fundao de Amparo Pes-quisa do Estado de So Pau-lo. Li com agrado as 58 p-ginas do primeiro nmero e no temo informar que ali esto as melhores matrias sobre o Parque Tecnolgico da Bahia, sobre a implanta-o de fontes de energia e-lica em nosso estado e sobre

    o Projeto Neojiba (Ncleos Estaduais de Orquestras Ju-venis e Infantis da Bahia). Sem demrito das demais reportagens, todas de muito boa qualidade.

    A estreia de Bahiacincia lembrou-me da iniciativa da professora Tatiana Teixei-ra, quando, na coordenao do Curso de Jornalismo da FIB/Estcio, criou o jornal--laboratrio Infocincia, que obteve reconhecimento e elo-gio da comunidade cientfica baiana. Lembrei, ademais, do incentivo que do profes-sor Othon Jambeiro, ento na Facom/UFBA, para im-plantar, no final da dcada de 1970/ incio da dcada de 1980, um ncleo de jornalis-mo cientfico em nosso esta-do. Na ocasio, o jornalista Carlos Ribeiro, ento seu aluno, viveu a experincia extraordinria de ter passado alguns dias na estao brasi-leira da Antrtica (polo Sul).lus Guilherme pontes

    tavares

    Presidente da ABI

    w Iniciativas como estas so muitssimo bem-vindas!!!! Que o jornalismo cientfico ganhe cada vez mais corpo em nossa sociedade e que haja efetivo apoio para que possa se popularizar, afinal, ter acesso a informaes so-bre o desenvolvimento da cincia em nosso pais, bem como sobre as atuais pol-ticas de cincia, tecnologia

    Cartas devem ser enviadas para o email [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, conj. 61 - CEP 05415-012 - Pinheiros, So Paulo, SP. As cartas podero ser resumidas por razes de espao e clareza.

    e inovao, um direito de todo cidado. Parabns!tattiana teixeira

    Professora da Universidade

    Federal de Santa Catarina (UFSC)

    w A Bahia acaba de ganhar a revista Bahiacincia. Quero compartilhar com os amigos da rede que me sinto dupla-mente contemplada: primeiro, pelos enlaces familiares, por-que quem gestou e pariu a revista foi minha irm, a jornalista Mariluce Moura, atravs de sua empresa de co-municao Aret; e , segundo, como professora e pesqui-sadora, por ser a revista um espao que mira, nas palavras da prpria Mariluce, irrigar o debate sobre uma face pouco visvel e debatida do estado da Bahia, ou seja, sua capacidade de contribuir para a expanso do conhecimento cientfico no Brasil e para a ampliao da capacidade nacional de ino-var em mltiplos campos da atividade econmica. Bahia-cincia d corpo a um dilogo entre as produes do conhe-cimento cientfico, incluindo as humanidades e o campo da cultura, local em consonncia com os contextos nacional e internacional. solange moura

    Professora de artes visuais do

    Colgio Oficina

  • 8 | julho/agosto de 2014

    Um abrao no palcio de 300 anos

    um abraao do palcio arquiepis-

    copal, em salvador, reuniu arquitetos,

    jornalistas, professores e estudantes

    na manh de 13 de agosto. o even-

    to foi promovido pe la associao

    bahiana de imprensa (abi) e pelo

    instituto Geogrfico e histrico da

    bahia (iGhb), representados, respec-

    tivamente, pe los seus presidentes,

    jornalista Walter pinheiro e profes-

    sora Consuelo pond de sena. o

    abrao foi motivado pelo estado de

    arruinamento do imvel que, em

    2015, completar 300 anos de exis-

    tncia. o instituto do patrimnio

    histrico e artstico nacional (iphan)

    informou em julho arquidiocese

    de salvador que a restaurao ser

    iniciada em setembro, com recursos

    do banco nacional de Desenvolvi-

    mento Econmico e social (bnDEs)

    e do banco ita. aps esse anncio,

    o instituto para o Desenvolvimento

    humano (iDh), que administrar os

    recursos e a obra, advertiu que os

    pilares posteriores do grande prdio

    Abraao

    reuniu arquitetos,

    jornalistas,

    professores e

    estudantes no

    dia 13 de agosto

    Isolados gentIcos

    reportagem de capa da edio

    de agosto da revista Pesquisa

    FAPESP, da Fundao de am-

    paro pesquisa do Estado de

    so paulo, fez uma incurso ao

    municpio de Monte santo, no

    serto baiano, onde h uma

    concentrao anormal de doen-

    as raras, fruto de casamentos

    entre parentes. pesquisadores

    de salvador j diagnosticaram

    13 portadores de mucopolissa-

    caridose tipo 6, proporo 240

    vezes maior do que a mdia

    nacional a doena causa pre-

    juzos em diversos rgos. oi-

    tenta e quatro pessoas tm

    deficincia auditiva de possvel

    origem gentica, 12 sofrem de

    hipotireoidismo congnito, no-

    ve de fenilcetonria, entre ou-

    tros exemplos. a reportagem

    trata do Censo nacional de

    isolados (Ceniso), levantamen-

    to que lista 81 municpios onde

    h 4.136 pessoas com caracte-

    rsticas genticas especficas,

    nem sempre doenas, os cha-

    mados isolados genticos.

    da praa da s requerem imediata

    recuperao, sob pena de desabarem

    e levarem o restante do imvel. a

    abi e o iGhb esto empenhados na

    luta pela restaurao do palcio h

    mais de dois anos. Em abril e maio

    de 2014, as duas instituies pro-

    moveram as palestras do professor

    e arquiteto Francisco senna e do

    arcebispo de salvador e primaz do

    brasil, dom Murilo Krieger, sobre o

    assunto. os dois enalteceram a im-

    portncia do edifcio, sobretudo por-

    que funcionou como a primeira se-

    de da administrao da igreja Cat-

    lica no brasil. o professor e arqui teto

    Mrio Mendona, que prestigiou o

    abraao, concordou que os pilares

    exigem cuidados urgentes, at por-

    que a rea em que se assenta o pr-

    dio uma falsa rocha e sua resis-

    tncia no das mais confiveis.

    o palcio arquiepiscopal integra

    a mancha urbana tombada pela

    unesco e se constitui patrimnio da

    humanidade.

    poucas e Boas

  • bahiaCinCia | 9

    FOT

    OS

    j

    os

    ea

    nn

    e g

    ue

    de

    s

    na

    sa

    s

    ec

    ti

    uma vertente de um projeto que

    busca transformar a vida de comu-

    nidades rurais da bahia comea a

    exibir resultados. no mbito do pro-

    jeto tecsol, que patrocinado pela

    Financiadora de Estudos e projetos

    (Finep) e executado pela secretaria

    de Cincia e tecnologia da bahia

    (secti), a comunidade de Caldeiro

    Grande, no semirido, ganhou mais

    estmulo para produzir renda com

    o licuri, palmeira nativa da caatinga

    cujos frutos so comestveis e as

    sementes, fonte de leo vegetal. na

    Instrumentos do rob que vaI a marte

    a nasa, agncia espacial americana,

    escolheu os instrumentos cientficos

    do veculo-rob de uma misso a

    Marte programada para 2020. um

    deles o Mars oxygen isru Experi-

    ment (Moxie), que tentar produzir

    oxignio a partir de dixido do car-

    bono presente no planeta vermelho.

    o rob tambm ser municiado com

    uma cmera panormica e com ou-

    tra capaz de analisar a composio

    mineral e qumica das rochas. J o

    planetary instrument for X-ray litho-

    chemistry (piXl) ajudar a determinar

    a composio elementar de minerais

    concepo artstica do veculo: viagem em 2020

    Para aProveItar o lIcurI

    Plataformas do conhecImento

    o governo federal lanou em

    junho o programa nacional de

    plataformas do Conhecimen-

    to, que busca criar parcerias

    entre empresas e grupos de

    pesquisa em 10 reas do co-

    nhecimento para resolver de-

    safios tecnolgicos e criar pro-

    dutos inovadores. todas as

    plataformas precisam combi-

    nar a participao de grupos

    de excelncia em pesquisa e

    de uma ou mais empresas ou

    consrcios de empresas, ex-

    plicou a presidenta Dilma rous-

    sef. os setores escolhidos para

    gerar plataformas so: sade,

    energia, agricultura, aero-

    nutica, manufatura avanada,

    indstria naval e de equipa-

    mentos submarinos, tecnolo-

    gia da informao e das co-

    municaes, mineral, defesa

    e amaznia. o governo pla-

    neja investir cerca de r$ 20

    bilhes em dez anos cada

    parceria ter um comit gestor

    e lanar editais especficos.

    o trabalho na cooperativa: licuri como matria-prima de doces e bebidas

    da superfcie, enquanto um equipa-

    mento batizado de sherloc usar raios

    ultravioleta para detectar compostos

    orgnicos. a ferramenta Mars Envi-

    ronmental Dynamics analyzer (Meda)

    vai monitorar as condies ambien-

    tais do planeta e o radar imager for

    Mars subsurface Exploration (riMFaX)

    ir rastrear o que est abaixo da su-

    perfcie do planeta. o conjunto de

    equipamentos vai custar us$ 130

    milhes. o novo veculo rob ajuda-

    r a planejar a primeira misso tripu-

    lada a Marte, que poder ir ao espa-

    o dentro de 15 anos.

    Cooperativa dos produtores e bene-

    ficiadores do licuri de Caldeiro

    Grande (Cooperlic), foram adquiridos

    equipamentos para o aproveitamen-

    to total do licuri. ali, 36 famlias coo-

    peradas produzem artesanato e ali-

    mentos. Com a palha possvel

    produzir esteiras, vassouras, penei-

    ras, bolsas e chapus. a amndoa

    do licuri ingrediente de doce, bar-

    ra de cereal, paoca, licor e leite de

    licuri. h pesquisas para o uso do

    licuri em cosmticos, leos e na ali-

    mentao animal.

  • 10 | julho/agosto de 2014

    entrevista roBerto FiGueira santos

  • bahiaCinCia | 11

    MariluCE Moura

    fotos lo raMos

    um lder de concretas

    crIaes

    cada um, uma multiplicidade de pontos de partida na in-teno de apresent-lo. A seu prprio juzo, por exemplo, duas construes marcam mais profundamente que outras seu trajeto pela vida e pelo mundo: primeiro, ter formado novas geraes de mdicos, instilando neles o gosto pela pesquisa cientfica; em segundo lugar, haver gerado e iniciado a formao de meia dzia de baianas e baianos, tambm brasileiras e brasileiros, que por sua vez esto gerando outras e outros que iro enfrentar o futuro que a Deus pertence. uma forma de enfatizar com inegvel graa seus papis de mestre e de pai atento e amoroso de 6 filhos, ou, se preferirmos ainda, seu exerccio essencial de lder nas esferas intelectual, educativa e afetiva.

    Originrio de uma tradicional famlia da elite baia-na, filho do fundador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Edgard Rego dos Santos, e de Carmen Figueira Santos, casado por cerca de meio sculo com Maria Amlia Menezes Santos, de quem ficou vivo em 2010, Roberto Santos foi reitor da UFBA, governador da Bahia, presiden-

    Um senhor de notvel elegncia em suas roupas bem cortadas segura com naturalidade na mo direita a bengala que lhe d apoio na caminhada. fcil

    notar a seguir seu sorriso afvel com vocao para tornar--se caloroso riso aberto e eventualmente se transmutar em sonora gargalhada, as palavras leves e bem medidas que capturam delicada e rapidamente a ateno do inter-locutor, e o intenso azul das ris espantosamente crista-linas por trs dos culos que no conseguem barrar uma singular mistura de acuidade, inteligncia, autoridade e determinao do olhar. Toda a gestalt, digamos assim, ali apresentada de chofre, sugere que se est diante de um lder formado para se exercer como tal por toda a vida.

    Roberto Figueira Santos, ele o personagem, 88 anos a serem completados em 15 de setembro prximo, , entre outras qualificaes, uma referncia viva sem competido-res quando se trata do tema da produo do conhecimento cientfico e tecnolgico na Bahia. De todo modo, sua rica e multifacetada biografia permite que se tome, ao gosto de

    ao Falar DE sEu traJEto, Da pEsQuisa na

    rEa MDiCa s altas EsFEras Da poltiCa,

    o EX-GovErnaDor rEFlEtE sobrE a

    Construo Do brasil ContEMpornEo

    E DEsvEla uMa bahia FunDaMEntal na

    ForMulao DE Futuros

  • 12 | julho/agosto de 2014

    te do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e ministro da Sade, entre outras fun-es proeminentes que exerceu. Ocupou cargos polticos relevantes nos anos da ditadura mantendo-se ao largo e na ignorncia, ressalta, dos mtodos violentos adotados pelo regime militar para esmagar toda e qualquer oposio ou contestao. Transitou para a redemocratizao ao lado de Tancredo Neves, atuando na formao do Partido Popular, integrou-se adiante ao PMDB, posteriormente ao PSDB, e tem uma interlocuo tranquila e aberta com o governador Jacques Wagner e outros polticos do PT. No so poucos, na verdade, os admiradores e amigos de Roberto Santos que estiveram em campo oposto quele em que se dava sua ao poltica e administrativa em muitos momentos do passado.

    Culto, a curiosidade intelectual estendida sobre amplos domnios, sempre s voltas com a leitura em paralelo de pelo menos trs diferentes livros e ardoroso devorador de boas biografias, sua formao de pesquisador cientfico da rea mdica foi slida e sofisticada. Ela incluiu trs anos nos Estados Unidos, especialmente no Massachusetts Ge-neral Hospital da Universidade Harvard, onde trabalhou com temas ento de ponta do metabolismo hidromineral humano e, entusiasta da aventura do conhecimento, no viu problema em fazer-se cobaia de um pequeno experi-mento -- o que minimiza sob a ponderao de que isso era muito comum na poca. Adiante, Inglaterra, Alemanha e Frana entrariam no circuito de sua formao contnua.

    Roberto Santos, com todo o seu conhecimento do campo, tem uma viso crtica aguda do processo de desenvolvimen-to cientfico no Brasil, onde v largamente a emergncia de uma cincia que apenas faz acrscimos ao conhecimen-to j estabelecido, pobre em ideias inovadoras e em sua articulao com o processo de inovao no setor produtivo. Uma chave central para transformar isso, em sua viso, sem-pre esteve no mbito da educao, e no gratuito, assim, que sua criao mais recente, a Academia de Cincias da Bahia, fundada em 2010 e da qual presidente, tenha na educao das crianas para a cincia um norte fundamental.

    A entrevista a seguir, concedida especialmente para a Ba-hiacincia, aprofunda algumas questes abordadas 10 anos antes para a revista Pesquisa FAPESP (revistapesquisa.fapesp.br/2004/11/01/observacoes-de-um-espectador-engajado/) e trata de forma sinttica temas mais largamente esmiuados em uma srie de conversas gravadas em 2012 e 2013 (e que devero ter em breve aproveitamento adequado). Registre--se a propsito que, a par de outras caractersticas que o tor-nam a personalidade que , com sua poderosa coerncia e humanas contradies, o professor Roberto Figueira Santos domina como poucos a arte de narrar histrias e conversar descortinando mundos para o interlocutor.

    y Vamos comear pela Academia de Cincias da Bahia. Co-mo foi criar essa academia em 2010?O que me levou a cogitar a criao de uma Academia de Cincias na Bahia foi uma motivao de vrias dcadas:

    contribuir para maior evidncia da participao dos insti-tutos bsicos dentro da universidade. Uma retrospectiva histrica permite esclarecer melhor essa questo.

    y Antes da retrospectiva, o senhor nos diria como funciona a instituio?A Academia est com 54 membros, todos pesquisadores em algum ramo da cincia. Aos poucos constitumos tambm um grupo com personalidades da filosofia e das artes, e isso nos levou, em seguida, formao de novos grupos. Por exemplo, o tema do ensino das cincias no nvel funda-mental despertou muito interesse, e formou-se um grupo a esse respeito. Tomou corpo no Brasil ultimamente a ideia de que o pas tem pouco trabalho que represente inovao em comparao ao que aconteceu com a produo cientfica. Medida em publicao de artigos em peridicos e livros, esta cresceu muito. O nmero de patentes resultantes de ideias inovadoras que tiveram sucesso em empreendimen-tos econmicos muito menos frequente que o nmero de pesquisas em cincia que apenas complementam tra-balhos j feitos e que no representam, portanto, avano. Assim, entendemos que para o Brasil se tornar mais ino-vador na pesquisa cientfica preciso que a formao do futuro cientista nesse sentido inovador ocorra desde os primeiros tempos de escola, quando se pode incutir num grande nmero de brasileiros a vontade de inovar. E ento, quando eles chegarem idade de trabalhar com a aplicao dos princpios cientficos, teremos uma chance maior de ver aparecerem ideias verdadeiramente inovadoras.

    y Por que difcil que as ideias verdadeiramente inovado-ras ganhem corpo?Se olharmos para a pesquisa no ambiente baiano, vemos que uma criatividade muito grande logo se manifestou no campo das artes da msica, da dana, do teatro e de outras expres-ses da atividade artstica e que ela no foi to intensa no campo das cincias, embora tenhamos, sobretudo na rea de sade, alguns pesquisadores que se destacaram. Nos anos 50 do sculo XIX, entre 1856 e 1857, surgiu na Bahia a primeira

    para o brasil sE tornar Mais inovaDor na pEsQuisa CiEntFiCa prECiso QuE a ForMao Do Futuro CiEntista oCorra DEsDE os priMEiros tEMpos DE EsCola

  • bahiaCinCia | 13

    revista cientfica, a Gazeta Mdica da Bahia, que perdurou por vrias dcadas, depois foi interrompida, atravessou uma segun-da fase de publicao e sofreu depois uma nova interrupo. Assim, a pesquisa em sade foi precoce, especialmente em virtude da projeo da nossa Faculdade de Medicina desde o comeo dos oitocentos. Os nmeros da Gazeta Mdica da Bahia, hoje digitalizados e disponveis na internet, mostram que muitos dos primeiros pesquisadores descreveram doen-as incidentes na Bahia antes descritas em outros lugares -- portanto, eram pesquisas no to inovadoras. Mas um de-les, [Manuel Augusto] Piraj da Silva, sustentou por meio de trabalhos realmente inovadores uma intensa polmica com alguns tropicalistas internacionalmente reconhecidos sobre a espcie de schistosoma que existia na Bahia. Eles entendiam que se tratava apenas de uma variedade do que j tinha sido descrito no Egito enquanto Piraj da Silva sustentou que eram duas espcies diferentes: o Schistosoma japonicum e o Schisto-soma mansoni, muito espalhado na Bahia. Por muito tempo aqui era comum se encontrar, nos hospitais que recolhiam os doentes mais graves, pacientes com a forma avanada da esquistossomose desse segundo tipo, incidente com muita frequncia no sistema porta da circulao que atinge o fga-do. E era igualmente frequente um tipo de cirrose resultante dessa hipertenso portal, que levava inclusive hematmese,

    vmito de sangue. Isso j no visto com tanta frequncia nos hospitais, embora a incidncia de Schistosoma mansoni continue bastante alta no estado, mesmo na vizinhana de Salvador. Mas ela vem sendo tratada em suas fases iniciais e as pessoas esto comendo melhor, ento h provavelmente um fator nutricional associado reduo notada.

    y A Academia de Cincias da Bahia foi criada com o apoio da Federao das Indstrias do Estado da Bahia, a Fieb.Como est hoje essa articulao? Inauguramos a Academia na sede da Federao das Inds-trias da Bahia (Fieb). Seu presidente era Jos de Freitas Mascarenhas, um grande realizador que teve a seus cui-dados, nos anos 1970, a organizao do Polo Petroqumico de Camaari, de enorme importncia para o estado. Na verdade, o Polo seguiu desempenhando pelos anos afora seu papel transformador na economia baiana, uma vez que, a partir do complexo petroqumico, surgiram vrias outras indstrias que transformaram Camaari num polo industrial muito mais abrangente. O modo como a Fieb foi conduzida at recentemente resultou na criao do Cimatec [Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia], que tem levado adiante a modernizao dos equipamentos destinados ao aproveitamento da cincia na indstria. Sob a gesto de Mascarenhas foram instalados, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Robtica e trs supercomputadores no complexo Senai Cimatec, dois deles com apoio da Petro-bras, que so os de maior capacidade de processamento da Amrica do Sul. O Cimatec comeou formando artesos e tcnicos no nvel secundrio de educao e cresceu a pon-to de criar uma Faculdade de Engenharia e at implantar mestrado e doutorado nas reas cientficas. Houve muita colaborao entre a Academia e a Federao.

    y Como a Academia apresenta os resultados de seu trabalho?Publicamos trs livros de memrias, um por ano, e um quar-to est sendo preparado para sair no comeo de 2015. Neles se tem uma viso das atividades da Academia: as palestras, em sua maioria proferidas por acadmicos convidados das reas dos setores bsicos do conhecimento, e os simpsios e seminrios. Tema de grande evidncia, como a tica na cincia, j mereceu a publicao de um livro [ver resenha na pgina 73] com a participao de vrios membros da Academia.

    y Poderamos passar retrospectiva histrica a que o se-nhor se referiu no comeo?Sim. Durante mais de 300 anos, desde o descobrimento do Brasil, a Metrpole Portuguesa impediu a criao de uni-versidades em seu territrio. O assunto s foi acolhido pela Corte Portuguesa quando o regente Dom Joo chegou ao Brasil, em 1808. E s em 1934 surgiria a primeira universida-de no pas, a Universidade de So Paulo (USP). No bastasse essa carncia, foi muito reduzido o nmero de profissionais que frequentaram escola superior na Europa e vieram para c. Assim, houve grande escassez de profissionais de nvel

  • 14 | julho/agosto de 2014

    superior no Brasil ao longo dos referidos 300 anos. Por isso as primeiras escolas superiores aqui formadas se destina-ram a suprir essa falta. Em 1808 foram criadas as primeiras escolas na rea da sade - a de Cirurgia no Real Hospital Militar da Bahia em fevereiro, enquanto a famlia real es-tava em Salvador, e em novembro a de Medicina no Rio de Janeiro, que era desde 1763 a sede do governo central da colnia. Pouco depois se formaram as duas primeiras Facul-dades de Direito, uma em Olinda e outra em So Paulo. E, mais tarde, criou-se no Rio de Janeiro a Escola Central do Exrcito, destinada a formar militares, porm oferecendo cursos equivalentes aos de uma escola politcnica. Todas ofereciam o ensino dos setores bsicos do conhecimento necessrios compreenso das prticas necessrias ao futuro profissional e, em seguida, no mesmo currculo, as disciplinas profissionalizantes. Isto perdurou ao longo do sculo XIX e na maior parte do sculo XX, quando todas as escolas criadas no Brasil tiveram esse feitio. Houve vrias tentativas de criao de universidades desde o sculo XIX, que no foram adiante. Em 1934 o governo do Estado de So Paulo criou a Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras e, na mesma poca, a Universidade de So Paulo (USP). Por acaso isso se deu numa poca propcia vinda de personalidades mundiais de excepcional valor, em razo das perseguies aos israelitas na Alemanha nazista de Adolf Hitler e na It-lia fascista de Benito Mussolini. A Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de So Paulo formou professores para o ensino bsico e iniciou a formao de pesquisadores nos setores bsicos do conhecimento (matemtica, fsica, qu-mica, geocincias, cincias humanas, letras, filosofia), o que teve importncia decisiva na educao superior no Brasil. Outras Faculdades de Filosofia, Cincias e Letras foram implantadas em vrios estados, nas quais era ministrado o ensino e se realizavam pesquisas nas disciplinas referentes aos citados setores bsicos do conhecimento. A seguir, em algumas cidades do Brasil, foram implantadas universida-des pela aglutinao de faculdades at ento isoladas. As universidades da Bahia e de Pernambuco datam de 1946.

    y A da Bahia com seu pai, o professor Edgard Santos, frente do processo.Exatamente. Ele foi fundador e primeiro reitor de nossa primeira universidade federal. Mas houve um precursor, na pessoa de Ernesto Souza Campos, professor de micro-biologia da USP, que tinha o ttulo de doutor em medicina preventiva pela famosa Universidade John Hopkins. O pro-fessor Gustavo Capanema, que ocupou o cargo de Ministro da Educao no governo Vargas, valeu-se muito do profes-sor Souza Campos como assessor de altssimo nvel para as iniciativas nas reas acadmicas ligadas sade, inclusive quando da criao do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da Bahia, hoje Hospital Universitrio Profes-sor Edgard Santos (HUPES). O Professor Souza Campos foi trazido Bahia em 1935, quando meu pai era diretor da Faculdade de Medicina, e se tornou, desde ento, um pro-fundo conhecedor da situao do ensino superior na Bahia. A pedra fundamental do Hospital das Clnicas foi lanada em 1938 e s 10 anos mais tarde ocorreu a sua inaugurao.

    y H um fio que liga esse processo sua motivao para criar a Academia de Cincias da Bahia?Sim, o meu entendimento sobre a formao do ensino supe-rior no Brasil. Considero um problema fundamental que as escolas superiores destinadas a formar profissionais, mesmo depois da constituio das universidades, tenham continua-do a abrigar o ensino dos setores bsicos do conhecimento, juntamente com o das disciplinas referentes s prticas das profisses que exigem nvel superior de educao. Assim, na Bahia, por exemplo, havia ctedras de matemtica na Escola Politcnica e outras nas Faculdades de Arquitetura, Economia, e mais outras na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras. Dessa forma, as ctedras de matemtica eram distribudas em vrias faculdades e no adquiriram massa crtica para a ps-graduao stricto sensu (ttulos de mestre e doutor) nem para a formao de pesquisadores e a realizao de atividades de pesquisa. O mesmo se aplicava fsica, qumica, bio-logia bsica, s geocincias, s cincias humanas e s letras.

    y Mas essa era, na verdade, uma condio geral do ensino superior no pas, no? Sim, todas as universidades federais sofreram com o atraso nos setores bsicos do conhecimento. A primeira mudana a esse respeito nasceu na Universidade de Braslia (UnB), concebida sob a orientao de Ansio Teixeira, um baiano, e de seu disc-pulo Darcy Ribeiro. No havia, pela forma como fora concebida a construo da nova capital do pas, faculdades isoladas que viessem a ser aglutinadas para formar a universidade local. Ansio e Darcy a idealizaram, ento, desde o seu incio, com a implantao de unidades responsveis pelo ensino e a pes-quisa nos setores bsicos do conhecimento. Assim comeou a UnB a funcionar em 1961. Mas poucos anos aps, em 1964, ocorreu a grave crise poltica, da qual resultou a implantao do governo militar, com profundos reflexos na recm-criada UnBa. Assim, a concepo original da estrutura desta insti-

    as priMEiras EsColas supEriorEs aQui ForMaDas

    DEstinaraM-sE a suprir uMa EsCassEz DE

    proFissionais QuE pErDurou por 300 anos

  • bahiaCinCia | 15

    tuio foi sofrendo alteraes. Pouco depois, no Conselho Federal de Educao (CFE), alguns conselheiros, inclusive Walmir Chagas e Nilton Sucupira, entre outros que haviam conhecido a estrutura originariamente proposta para a UnB, concentraram-se sobre o tema da reformulao das universi-dades brasileiras a partir daquele modelo inovador. Eu fazia parte daquele Conselho ao apreciar o assunto, que era ento presidido por Deolindo Couto, professor de neurologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), uma grande personali-dade, dono de uma inteligncia fora do comum. Era ele amigo ntimo de Luiz Vianna Filho, ento ministro da Casa Civil do presidente [Humberto] Castello Branco, e essa relao faci-litou a assinatura por Castello Branco dos dois decretos-leis que, pelo destaque dado aos setores bsicos do conhecimento, representaram a grande reforma nas universidades federais do Brasil: o 53, de 1966, e o 252, do comeo de 1967. Conto toda essa histria porque houve nas universidades quem es-quecesse, talvez propositadamente, esses dois decretos-leis por consider-los leis do governo militar. Mas sua origem era outra. Eles favoreceram o avano das universidades e foram esquecidos em favor de outros decretos-leis, atribudos aos acordos MEC-Usaid [convnios de cooperao tcnica assi-nados entre o Ministrio da Educao brasileiro e a Agncia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], cujo pessoal no chegou a se reunir, e no teve efeito nenhum.

    y Mas se tratava de uma luta poltica, no ?Sim, era uma luta poltica. Logo depois que entraram em vi-gor os dois decretos-leis, no final do governo Castello Bran-co, fui eleito e nomeado reitor da UFBA. Pouco antes eu fora escolhido por Luiz Viana, ento indicado para o governo da Bahia, para ser secretrio da Sade do estado. Assumi a Se-cretaria em 7 de abril de 1968 e fiquei no cargo durante me-nos de trs meses, devido minha nomeao para a reitoria.

    y Gostaria que o senhor abordasse, antes de sua gesto como reitor da UFBA, sua trajetria de pesquisador. Logo depois de formado em medicina, fui em 1950 para os Estados Unidos com uma bolsa da Fundao Kellogg, e l permaneci por trs anos. Tive a oportunidade de fazer uma adaptao da medicina de influncia francesa que havia aprendido na Bahia, para o estilo de ensino e o exerccio da profisso com a orientao anglo-sax, especialmente norte-americana. Depois de seis meses dessa adaptao na Universidade Cornell, fui para a Universidade de Michigan, em Ann Arbor, onde trabalhei como residente no hospital da universidade. No final desse perodo fui para o Massa-chuesets General Hospital, em Boston, na Universidade Har-vard, onde estava o mximo da pesquisa mdica nos Estados Unidos. O Massachusetts General Hospital funcionava em terreno onde havia ento 13 pavilhes, alguns dedicados s pesquisa mdica. Fui para aquele onde estava comeando a funcionar o Laboratrio de Metabolismo Hidromineral, chefiado pelo professor Alexander Leaf [1920-2012]. Ele

    sara do famoso laboratrio do professor Fuller Albright [1900-1969], que cuidava, sobretudo, do metabolismo de fsforo e clcio no sistema sseo, e comeara pesquisas so-bre gua, sdio e potssio no novo laboratrio, cujo equipa-mento principal foi o fotmetro de chama, posteriormente industrializado e que facilitava enormemente a dosagem de sdio e de potssio nos vrios lquidos do organismo hu-mano, incluindo sangue e urina. Fiz a minha iniciao em pesquisa mdica de elevado nvel. Entre outros temas, Leaf estava ento trabalhando com o que na poca se chamava, abreviadamente, de receptores de volume.

    y Como estudante na Bahia, o senhor pesquisara algo nes-se campo?No, o metabolismo hidromineral como objeto de pesquisa sofisticada estava apenas comeando. Era j bem estabe-lecido que as pequenas variaes da presso osmtica do sangue, regulada principalmente pelo sdio do organismo, resultavam em alteraes do hormnio antidiurtico secre-tado pela hipfise, ou seja, era importante fator de regula-o na liberao do pitressin. Mas suspeitava-se de que o contedo lquido do organismo tambm tivesse influncia sobre tal regulao. Por isso procuravam-se os receptores de volume, que se imaginava ser de regulao muito mais lenta e menos exata do que as variaes da presso osm-tica. Trabalhei mais de perto sobre isso e por orientao do professor Leaf, para identificar melhor a desidratao que resultava na diminuio do volume, me internei na enfer-maria metablica do Massachusetts General Hospital. Ali me submeti experimentalmente a uma desidratao que resultou numa variao de volume e tornou claro, por meio da medio do sdio na urina, que havia realmente essa regulao pelo volume do contedo lquido do organismo, embora fosse um mecanismo mais lento e menos preciso do que o da variao da presso osmtica.

    y O senhor foi ento objeto de sua prpria pesquisa?Sim, junto com um colega ingls que trabalhava no mesmo laboratrio, sob a orientao do professor Leaf, e que tambm

    Fiz no laboratrio DE MEtabolisMo hiDroMinEral ChEFiaDo por alEXanDEr lEaF, EM harvarD, Minha iniCiao EM pEsQuisa MDiCa DE alto nvEl

  • 16 | julho/agosto de 2014

    se submeteu a experincia semelhante. E tudo isso depois foi publicado num artigo cujos autores eram Leaf e colaboradores.

    y Resumindo, quais so as principais concluses desse artigo?Que existem realmente os receptores de volume regulados pelo contedo lquido do organismo e que influenciam a liberao do pitressin, o hormnio antidiurtico da hipfise.

    y Onde se encontram esses receptores?Sobretudo no segmento ceflico do corpo, provavelmente na vizinhana da prpria glndula hipfise. Tinha sido pub-licado um primeiro artigo no Journal of Clinical Investiga-tion, sob o ttulo Evidence in man that urinary electrolyte loss induced by Pitressin is a function of water retention.

    y outro artigo que leva sua assinatura.Outro sobre o mesmo tema que assino como coautor. O primeiro autor o professor Leaf. Depois, j na Bahia, fiz uma tese de doutoramento trabalhando com a literatura por mim levantada em torno do assunto e com a demons-trao mais minuciosa dos vrios exames feitos durante a experincia da ao dos receptores de volume. Havia, at 1929, uma tradio de exigncia das teses de doutoramen-to na Faculdade de Medicina para o exerccio da profisso. Depois essa tradio foi abandonada e essas teses passaram a constituir apenas uma forma de desencadear a carreira universitria, como foi o meu caso.

    y Na tese foi possvel agregar dados locais aos achados da pesquisa em Harvad?Fiz experincias em torno do metabolismo hidromineral co-mo aprendera em Harvard, mas com material baiano, depois da tese de doutoramento. Com isso, elaborei durante dois anos a tese submetida ao concurso para a docncia livre da Clnica Propedutica Mdica, cujo ttulo A prova de tolern-cia a gua nas hepatopatias crnicas. Havia no Hospital das Clnicas muitos pacientes com aquele quadro a que me referi da esquistossomose avanada, cirrose heptica e desnutrio, com consequente hipertenso no sistema portal, que resulta-va em vmitos de sangue e terminava com bito do paciente. Estudei, ento, o metabolismo hidromineral dos portadores de hepatopatias crnicas, com e sem ascite [barriga dgua] e ede-ma. Para isso submeti prova da tolerncia a gua trs grupos distintos. Ou seja: a) pessoas jovens e saudveis, b) portadores de hepatopatias crnicas sem ascite nem edema, e c) portado-res de hepatopatias crnicas com ascite e edema. A principal concluso foi de que nos pacientes do terceiro grupo existiam fatores que levavam reteno primria de gua, somada que deve ocorrer secundariamente reteno do sdio. E essa prova de tolerncia a gua tanto serviu de matria para o con-curso como foi objeto de publicaes, uma delas no sofisticado Journal of Clinical Investigation. Mais tarde fiz uma outra srie de estudos que serviu para a minha tese de ctedra, sob o ttulo Da regulao renal e extra-renal do equilbrio cido-bsico. A tese foi objeto de publicaes em jornais internacionais, como o

    Journal of Clinical Investigation e o American Journal of Physiology (Extra-renal action of adrenal glands on potassium metabolism), ambos muito exigentes na aceitao das matrias.

    y Seu trabalho com funo renal, metabolismo hidromine-ral, regulao do sdio etc., sempre lidou com a fisiologia do corpo humano?Fisiologia clnica, muitas delas experincias feitas no ser humano. A tese submetida ao concurso para a ctedra de clnica mdica, por exemplo, tomou por base dois trabalhos referentes ao metabolismo hidromineral. Um deles tratava da regulao renal do equilbrio cido-bsico e resultou de experincias realizadas em pessoas saudveis para pr prova a hiptese de que a depleo sdica [perda de sdio] seria o estmulo essencial para o aumento da excreo urinria de amnia resultante da ao de sais cido-formadores. A con-cluso das experincias-testemunho em seis adultos normais foi que o aumento da excreo renal de amnia em resposta ao uso de sais cido-formadores, em vrios dias consecu-tivos,noresulta necessariamente no estado de depleo sdica. O segundo trabalho refere-se regulao tecidual do equilbrio cido-bsico. Alguns autores negam e outros admitem a influncia dos hormnios das suprarrenais sobre a permeabilidade ao potssio das clulas do organismo em seu conjunto. Eu queria conhecer melhor o mecanismo de ao desses hormnios e os fatores que influenciam o transporte de iontes atravs da membrana celular, diante de perturba-es do equilbrio cido-bsico. Para isso pesquisamos em animais adreno-privos [sem funo da suprarrenal], com a supresso da funo renal, se a resposta a sobrecargas cidas e alcalinas estaria ou no modificada. Realizamos experin-cias em ces submetidos a nefrectomia bilateral [extrao dos rins] quando ainda em situao de normalidade e em outros previamente adrenalectomizados [com as glndulas suprarrenais extirpadas]. A concluso dessas experincias mostrou que, suprimida a funo renal no co, os produtos das suprarrenais no exercem influncia sobre as relaes entre as alteraes do equilbrio cido-bsico do lquido extra-celular e a permeabilidade ao potssio da membrana das clulas do organismo em seu conjunto. Nos trabalhos ento realizados, na parte que envolveu seres humanos, assim como tinha ocorrido comigo no estudo em Harvard, alguns alunos de Medicina que se prestaram a experincias ainda hoje se lembram disso com muita alegria.

    y Isso no levava problemas ticos pesquisa?As experincias no ofereciam riscos, perigos reais. Tudo era levado at certo ponto, de modo que no causassem perturbaes metablicas.

    y Em sua experincia no Massachusetts, por quantas horas o senhor ficou desidratado?No foi um processo implantado subitamente em poucas horas. Durou trs ou quatro dias, foi gradual, com uma die-ta muito cuidadosamente feita pelas supernutricionistas

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    e enfermeiras da Enfermaria 04, chefiada pelo professor Albright. Ele era uma figura extraordinria, um homem ainda relativamente jovem com um parkinsonismo muito avanado. Vejo o livro dele sobre fisiopatologia de clcio e fsforo no metabolismo sseo como uma das coisas mais bonitas de toda a literatura mdica. Em sua enfermaria sempre trabalhavam em regime de rodzio trs ou quatro estudantes e, justamente por causa de seu problema de sade, uma das condies para se merecer trabalhar na Enfermaria 04 era o estudante poder conduzi-lo de casa para o hospital e vice-versa em automvel prprio.

    y O senhor chegou ao topo da carreira de professor ainda muito jovem. Com quantos anos? Cumpri em pouco tempo as vrias exigncias acadmicas e me tornei catedrtico exatamente com 30 anos, em outu-bro ou novembro de 1956. E nesse momento, a Fundao Kellogg, que me concedera a primeira bolsa para os Estados Unidos e, por meu intermdio, para vrios alunos recm--formados em medicina e em enfermagem que haviam trabalhado comigo, proporcionou recursos para eu montar meu laboratrio de metabolismo hidromineral, no 6 an-dar do Hospital das Clnicas. Estava desocupado, e ento o fui ocupando. Depois vieram outros laboratrios dos ex--alunos da Faculdade que tinham recebido bolsa da Kellogg. Foram vrios: o meu, o de gentica clnica da professora Eliane Azevedo, o do metabolismo do ps-operatrio do professor lvaro Rabelo, entre outros.

    y Nesse momento o senhor tinha dedicao exclusiva?Passei a fazer dedicao exclusiva por minha conta. Eu no estava casado -- namorei e casei pouco depois de ter feito essa carrei-ra muito puxada em direo ctedra --, morava na casa de meus pais, de modo que tinha pouca despesa e o salrio de tempo parcial era suficiente para eu sobreviver.

    y O senhor no queria o caminho tradicio-nal do mdico formado na poca: trabalhar metade do tempo no consultrio privado e dividir a outra metade entre o hospital e Faculdade de Medicina?Exatamente. E foi a maneira de eu conseguir me preparar para a ctedra em pouco tem-po. Gostaria de observar que at o comeo da Segunda Guerra Mundial a influncia na medicina brasileira e latino-americana era francesa. Depois dos 10 anos seguin-tes, da guerra at o fim do famoso Plano Marshall, quando os Estados Unidos es-tiveram mergulhados na recuperao da Europa, este pas se voltou ento bastante para a Amrica Latina. Escolheram entida-des beneficentes que criaram laos com a

    regio e, em relao s faculdades de medicina, a escolhi-da foi a Fundao Kellogg, da empresa fabricante de corn flakes, grande operadora do mercado de cereais na Bolsa de Chicago. Durante aqueles 10 anos entre guerra e Plano Marshall, o Brasil ficou desligado dos pases que tinham uma evoluo maior em cincia e tecnologia, dessa forma tivemos um atraso tanto na parte clnica quanto na parte da fisiologia e da bioqumica aplicadas medicina clni-ca. Mais ou menos a essa altura assumi a ctedra e senti necessidade de uma atualizao das nossas faculdades de medicina. Comecei a trabalhar sobre a questo do ensino da medicina, do currculo e da concepo das vrias dis-ciplinas do ponto de vista do contedo, e em decorrncia disso fui me desligando da pesquisa. Nessa poca criamos a Associao Brasileira de Educao Mdica, com a nossa mobilizao e a de vrios professores de outras faculdades de medicina do Brasil mais avanadas, caso das escolas da USP, UFRJ, universidades federais de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul (UFMG e UFRGS), entre outras. O primeiro a presidir a Associao foi Oscar Versiani Caldeira, de Mi-nas. Eu fui o segundo presidente e depois foi Clementino Fraga Filho, do Rio, meu amigo-irmo durante dcadas. E a Associao segue viva e atuante.

    y Como o senhor passou da Faculdade de Medicina para a reitoria da UFBA?Em 1966, Miguel Calmon tinha iniciado seu reitorado como uma renovao da Universidade. Meu pai tinha sido reitor

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    at 1962, fora reeleito como primeiro da lista trplice para ocupar o cargo novamente, mas o presidente Jnio Quadros resolveu nomear Albrico Fraga. Meu pai ficou muito des-norteado, at porque consultara Jnio antes para saber se seria nomeado, caso entrasse na lista e, diante da certeza que o presidente lhe dera, se preparara para o sexto man-dato juntando recursos num fundo de reserva que resultava das sobras de oramento de um ano para o outro. Assim, ao assumir, Albrico encontrou a Universidade em situao confortvel, mas ao fim dos quatro anos ela entrara em crise financeira. Miguel o substituiu e, alm de ser da Politcnica, ele era um banqueiro, sabia lidar com finanas, embora no fosse to rico como muita gente pensava. Muito bem rela-cionado no ambiente financeiro brasileiro e internacional, consertou as finanas da Universidade. E ele me convidou para dirigir o Departamento Cultural da Universidade.

    y Que misso tinha esse departamento?Bastante ampla, porque passava a coordenar as reflexes e a definir junto com o reitor as aes para a moderniza-o da Universidade. Alm disso, criei ali o Jornal Uni-

    versitrio, um meio de informar as diferentes faculdades sobre o que as outras estavam fazendo. O jornal era feito por estudantes de jornalismo que, alm das condies de espao para preparar as reportagens, tinham um labora-trio de fotografia para fazer as imagens corresponden-tes. Enquanto Miguel estava como reitor, a expectativa geral, inclusive minha e de minha famlia, era de que seu substituto fosse Orlando Gomes, que tinha sido vice-rei-tor durante trs dos cinco mandatos do meu pai, sempre com um esprito de lealdade e de colaborao enorme. Ele tambm desempenhara um papel muito importante junto Faculdade de Direito, cujo prdio novo, no Vale do Ca-nela, foi construdo enquanto ele era vice-reitor, e tinha uma liderana fortssima no Conselho Universitrio na poca, todo-poderoso. Mas havia outro candidato fazendo campanha, um mdico. Ao mesmo tempo, como Orlando pertencera na dcada de 1930 ao Partido Socialista romn-tico, a que muitos baianos depois eminentes haviam sido

    ligados, transformaram isso em suspeita de que ele era comunista, ento uma palavra feia como o demnio. Eu estava satisfeito na Secretaria de Sade, mas amigos de meu pai, e entre eles muito amigos de Orlando, comea-ram a suspeitar que Braslia vetaria seu nome e a insistir para que eu fosse candidato.

    y Existia uma lista trplice prvia?Existia, e nela figuravam os nomes de Orlando Gomes em primeiro lugar, por unanimidade, o mdico em segundo, e o terceiro era Hernani Sobral, professor da Politcnica e da Arquitetura que foi depois meu vice-reitor, uma pessoa excelente. Quando comearam a me pressionar, eu dizia que esperava um dia ser reitor, mas no naquela hora. Mas, diante da insistncia, me afastei da Secretaria um pouco antes da lista ser fechada, para fazer campanha.

    y Luiz Viana entendia bem todo o caso, no?Sim, ele e Miguel eram casados com duas irms, entendiam--se muito bem e representaram durante muito tempo um mesmo pensamento na poltica baiana. Orlando foi eleito em primeiro lugar por unanimidade, fiquei em segundo, e Hernani em terceiro. E eu estava na reunio mensal do Conselho de Educao em Braslia quando o ministro Tarso Dutra mandou me chamar. Ele tinha sido senador pelo Rio Grande do Sul e fora o presidente da Comisso de Finan-as da Cmara e do Senado num tempo em que meu pai ia muito ao Congresso num esforo para incluir no oramento recursos para a UFBA, e especialmente para construir o Hospital das Clnicas. Quando desci para o gabinete dele, no 2 andar, j estava ali o vice-reitor Adriano Pond, que fora levar a lista preparada pelo Conselho Universitrio -- Miguel Calmon tinha falecido. Tarso Dutra disse que me chamara porque ia me nomear reitor da UFBA. Argumentei que espervamos que o nomeado fosse Orlando Gomes dos Santos. Ele disse que reconhecia o gabarito de Orlando, mas que ele no poderia ser nomeado reitor e acrescentou que me nomeava pelo meu passado to atuante, apesar de ser ainda um jovem professor, mas tambm por minha famlia e por meu pai. Fiz uma ardente defesa de Orlando, mas ele respondeu que, se eu no aceitasse, devolveria a lista para o Conselho Universitrio reconsiderar os nomes, o que ja-mais se fizera. Adriano e eu pedimos a ele que sustasse a nomeao at falarmos com Orlando. O telefone era um problema na poca, mas conseguimos falar com Orlando e, quando expliquei a situao, ele disse que no haveria devoluo de lista. Voc aceita a nomeao e eu vou lhe ajudar naquilo que voc precisar. Voltamos ao ministro e dissemos qual fora a deciso.

    y Foram momentos difceis?Muito difceis. Nem terminei minha participao na ses-so do Conselho de Educao, pegamos o avio e viemos para Salvador. Quando chegamos, j foi aquela aclamao, e eu sem jeito. Mas fui ser reitor.

    nEM tErMinEi Minha partiCipao na sEsso Do

    ConsElho DE EDuCao, viEMos para salvaDor.

    QuanDo ChEGaMos, J Foi aQuEla aClaMao, E Eu sEM

    JEito. Mas Fui sEr rEitor

  • bahiaCinCia | 19

    y O senhor assumiu em meio ao crescimento do movimento estudantil, generalizao das passeatas e de outras for-mas de protesto e luta poltica que se intensificaram at o final de 1968.Exatamente. Fui nomeado reitor em meados de 1967 e peguei o movimento estudantil em sua maior intensi-dade at dezembro de 1968, quando da edio do AI-5 [o Ato Institucional nmero 5, que suspendeu as garantias constitucionais e restringiu dramaticamente a liberdade de expresso, entre outros efeitos, assinalando o comeo do perodo mais duro dos governos militares].

    y Lembro-me de v-lo vez por outra circulando nas galerias em torno do salo nobre da reitoria, observando as assem-bleias estudantis.Eu franqueei ao DCE [Diretrio Central dos Estudantes] o salo nobre para o debate dos estudantes. Em determinado momento, em 1968, houve uma greve, a polcia foi adver-tida e procurou desmanchar a manifestao. Os estudan-tes, como de costume, dirigiram-se ao prdio da reitoria, entraram no salo nobre, e a polcia quis entrar. Eu estava no andar de cima, junto com outros professores que foram prestar solidariedade diante da confuso que reinava na ci-dade universitria e tentar impedir que a polcia entrasse.

    y O senhor, ento, desceu at a porta de entrada da reitoria.Sim, e ao meu lado estava Jorge Hage, hoje ministro-chefe da Controladoria Geral da Unio (CGU), ento meu chefe de gabinete, que colaborou muito para acalmar as coisas e impedir que a polcia entrasse. Mas o fato que coube a mim aplicar os dois decretos-leis da reestruturao.

    y Com a universidade reagindo...Interessante, a reao no foi tanto dos estudantes, e sim dos professores das escolas profissionalizantes.

    y Eles acharam que era um esvaziamento profundo dessas escolas.Exatamente. Na medicina houve um esvaziamento no dos setores bsicos das cincias em geral, mas da biologia. As disciplinas de anatomia, fisiologia, bioqumica etc., passa-ram todas ao Instituto de Cincias da Sade. Portanto, foi na minha primeira fase no Conselho de Educao e, depois, na reitoria, que cresceu em mim a paixo pelos setores b-sicos do conhecimento. Minha nomeao para o Conselho, em 1963, foi decorrncia do trabalho numa comisso de ensino mdico criada pelo Ministrio da Educao, em que tambm estavam Clementino Fraga Filho, Rubem Maciel, do Rio Grande do Sul, e vrias pessoas que se destacaram de-pois na vida pblica do pas. Fui presidente dessa comisso.

    y De seu ponto de vista, quais foram suas realizaes mais importantes como reitor da UFBA?Passei os quatro anos implantando os institutos que j tinham sido cogitados por Miguel Calmon. Alm da co-misso de reestruturao, graas s suas relaes finan-

    ceiras internacionais, ele tinha bolado um financiamento do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] para a construo dos prdios dos institutos e para trazer do exterior para a Bahia at trs professores de matemtica, de fsica, de qumica etc., escolhidos pela Unesco [Conselho das Naes Unidas para a Educao e a Cultura]. A libera-o desse financiamento s foi ocorrer em meu perodo de reitor, quando foram implantados nove institutos e elaborados seus regimentos, atividade na qual Orlando Gomes e Calmon dos Passos me ajudaram muito. O Ins-tituto de Biologia s foi concludo mais tarde. Quando os professores estrangeiros foram embora, os docentes que os substituram, assim como os reitores seguintes, no deram aos setores bsicos do conhecimento o suporte necessrio. Resultado: eles no tiveram a projeo social que eu esperava nem provocaram aquele impulso que ima-ginei. Os professores das disciplinas profissionalizantes continuaram governando a universidade e projetando--a junto sociedade baiana. Acontece que, antes mesmo do primeiro decreto-lei de 1966 de que falamos, Newton Sucupira j tinha emitido, em 1965, o famoso parecer que criava os cursos de ps-graduao stricto sensu. Os institu-tos de pesquisa so, assim, simultneos estruturao da ps-graduao e da pesquisa. Nesse meio tempo, o Con-selho Nacional de Pesquisa, depois Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), criado em 1951, tomou impulso. E tudo isso ganhou fora junto.

    y Findo seu perodo na reitoria, o senhor se mudou para Braslia? Quando meu mandato foi chegando ao fim e na poca no era possvel reconduo , comecei a frequentar o Hospital das Clnicas. Mas a reitoria era to exigente que me afastei. E ento, findo o reitorado, me tornei presidente do Con-selho de Educao e me mudei para Braslia. O primeiro presidente tinha sido meu pai, o segundo, Deolindo Couto, depois foi Raimundo Muniz de Arago, baiano que vivia no Rio. Durante a gesto de Muniz de Arago o Conselho foi transferido do Rio para Braslia. Ele ainda ficou um tempo,

    os sEtorEs bsiCos Do ConhECiMEnto no tivEraM a proJEo soCial QuE Eu EspErava nEM provoCaraM aQuElE iMpulso QuE iMaGinEi

  • 20 | julho/agosto de 2014

    mas no quis a reconduo, e ento se abriu uma vaga para meu comeo de vida na comunidade de educao. O Con-selho era muito prestigiado pelo Ministrio da Educao, e como membro passei a ter contato com o mundo poltico.

    y Foi ento no Conselho Federal de Educao que se ampliou a base poltica para sua conduo ao governo da Bahia?Certamente. Entre as figuras polticas com quem comecei a conviver se destacou Petrnio Portela, senador pelo Piau e presidente da Arena, um poltico de grande habilidade, e estou certo de que, se ele no tivesse escondido o infarto que o acometeu, a transio para a democracia teria sido melhor e ocorrido mais cedo. Foi Petrnio quem realmente me introduziu no meio federal. Ney Braga era ministro da Educao e colaborou com ele para isso e, acima de tudo, Luiz Viana Filho. Petrnio percebeu, ao tempo em que o MDB [Movimento Democrtico Brasileiro, depois PMDB] era muito pequeno em todo o Nordeste, que havia na Are-na da Bahia quatro faces que brigavam entre si como co e gato. Eram os grupos de Luiz Viana Filho, de Jutahy Magalhes Juracy, o patriarca, j havia se afastado , de Lomanto Jnior e de Antonio Carlos Magalhes. O presi-dente Ernesto Geisel, junto com Golbery do Couto e Silva de quem eu no gostava e que tambm no gostava de mim, assim como [Joo Baptista] Figueiredo, enquanto achavam todos muita graa em Antnio Carlos Magalhes autorizara cada uma dessas quatro faces a apresentar trs nomes de candidatos ao governo da Bahia. Todas in-dicaram nomes que no eram aceitos pelas outras faces.

    y O que criava um impasse. Sim, mas trs das quatro faces admitiam ter meu nome como segundo em suas listas. A exceo era a de Antnio Carlos. E, como parte do processo de escolha, ele dizia na Bahia que os polticos, sequer seriam recebidos por mim, e em Braslia dizia para no me nomearem porque eu no seria escolhido pela Assembleia Legislativa. A essa altura, Geisel havia nomeado Petrnio para percorrer todas as

    assembleias estaduais do pas colhendo impresses sobre os candidatos. Antnio Carlos ento armou uma situao para que eu no conseguisse estar na Bahia no dia mar-cado para Petrnio conversar com os deputados. Mas foi em vo, cheguei na vspera. Petrnio constatou que todos me admitiam como segundo nome e levou isso a Braslia.

    y O senhor o desarmou com um contragolpe. E isso o deixou furioso. Ele tinha indicado, alm de Clriston Andrade, Lus Sande e, em terceiro lugar, Barbosa Romeu. Quando Sande percebeu que no tinha chance, comeou a se afastar e acabou brigado mesmo com ele. Um dia, Joo Falco, o dono do Jornal da Bahia, que estava numa guerra acesa com Antnio Carlos, me visitou em Braslia. Antnio Carlos soube disso, foi ao Golbery e disse que no podiam indicar ao governo baiano uma pessoa que recebera em seu gabinete na presidncia do Conselho de Educao o seu ini-migo, portanto, tinham que me tirar da lista. Golbery disse que os nomes j tinham sido indicados. Ele props ento colocar em sua lista, em vez de mim, Jos Mascarenhas, um tcnico jovem e muito competente, mas Golbery no aceitou e eu fiquei como o segundo na lista de todos. Fui nomeado e voltei Bahia para preparar o governo.

    y Quais foram, em sua viso, suas mais importantes reali-zaes como governador?Como disse em um de meus livros, Na Bahia das ltimas dca-das do sculo XX, publicado pela Edufba em 2008, dedicar-me preparao dos planos de governo foi uma das tarefas mais gratas de toda a minha vida pblica. Para isso contei com o auxlio de uma equipe que fez um excelente trabalho sob a di-reo geral do professor Raimundo Vasconcelos. Preocupava--me especialmente atribuir grande destaque aos projetos da rea social, porque bastava a simples anlise das estatsticas de sade e educao para verificar a situao constrangedo-ra em que nos encontrvamos, baianos e brasileiros, mesmo quando comparada com a de alguns pases cuja economia era menos desenvolvida que a nossa. Assim, prevaleceu em nosso programa a ideia de que a atenuao da pobreza e das grandes desigualdades sociais da populao exigia prioridade absoluta por parte dos rgos oficiais responsveis pela educao, pela sade e pelo bem-estar social. E no fizemos outra coisa ao lon-go dos quatro anos em que fui governador. Ao mesmo tempo, era fundamental promover o desenvolvimento econmico para dar sustentao aos ambiciosos projetos relativos melhoria da qualidade de vida dos grandes segmentos populacionais, o que ocorreu, prioritariamente, com a implantao acelerada do Polo Petroqumico de Camaari, que estava em seu incio. No final, os indicadores da economia do estado revelariam com clareza o acerto dessas escolhas: por exemplo, o PIB estadual cresceu impressionante taxa mdia anual de 13,1% entre 1975 e 1978, apesar da grande seca de 1976, e a renda per capita dos baianos subiu de US$ 302 em 1975 para US$ 582 em 1978, 43% acima da elevao registrada no Brasil e 24% superior ao crescimento verificado em So Paulo.

    prEvalECEu EM nosso GovErno a iDEia DE QuE a

    atEnuao Da pobrEza E Das GranDEs DEsiGualDaDEs

    soCiais Da populao EXiGia prioriDaDE absoluta

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    y Depois de governador da Bahia, o senhor foi presidente do CNPq e ministro da Sade. Como foi sua experincia nesses cargos em tempos de redemocratizao? Ao deixar o governo, a exemplo de outros governadores e prefeitos que tinham servido naquele perodo sem adotar os mtodos e processos do regime militar, comecei a me afastar da Arena. Aproximei-me de Tancredo Neves e de Magalhes Pinto, antigos adversrios que tinham se juntado e comeado a preparar um novo partido. Conseguimos no Congresso e contra a vontade do regime sair do bipartida-rismo e criar outros partidos, inclusive o Partido Popular (PP), a melhor coisa na rea poltica que j conheci no pas. Tancredo se apresentou como candidato a presidente pelo partido, e na Bahia eu seria o candidato a governador. En-quanto o PP ganhava o eleitorado que tinha sido da Arena, sobretudo no Nordeste, onde o MDB criara a imagem de um partido comunista e tinha um eleitorado pequenssimo, Golbery deu um golpe nesse novo partido: ele conseguiu passar no Congresso uma lei pela qual os partidos deveriam ter candidatos a todos os cargos abertos eleio em cada estado. O MDB na Bahia, mesmo sendo muito pequeno, tinha profundas divergncias internas, e os grupos de Chi-co Pinto e de Josaphat Marinho se digladiavam. Ao voltar do exlio, Waldir Pires assumiu o comando do partido e se tornou o candidato a governador pelo MDB. Mas, a minha candidatura pelo PP e a de Waldir pelo MDB, compunham uma frmula para nenhum de ns sequer se aproximar da eleio, porque, com a oposio dividida, a Arena, muito mais forte, acabava com qualquer veleidade de outra can-didatura. Nesse quadro pouco favorvel, a soluo proposta por Tancredo foi juntar o PP ao MDB de Ulisses Guimares e formar um partido s. Assim nasceu o PMDB. Importa dizer que fiquei pertencendo ao mesmo partido que Jos Sarney, que resolveram colocar como candidato a vice-presidente na chapa do PMDB. Ele estava em evidncia naquele tempo, no lembro por qu. Sarney hesitou, mas aceitou. Tancredo foi eleito e veio aquele perodo de sua doena e, como fize-ra Petrnio, Tancredo escondeu a doena. Quando, afinal, descobriram que ele estava com um processo inflamatrio grave, j estava grave demais. Tancredo morreu. Havia um dispositivo legal que indicaria levar para a presidncia da Repblica o presidente da Cmara, mas Ulysses Guimares, no sei por qu ele era uma figura interessante, mas tinha uns recuos e umas cerimnias no aceitou. E Sarney tinha sido escolhido vice-presidente, portanto, seria o presidente.

    y Ulysses dizia que, do ponto de vista legal, Sarney que deveria assumir., ele disse, mas foi ele quem no quis a presidncia que lhe foi oferecida com insistncia. Sarney comeou a preparar o governo de acordo com o que sabia que Tancredo montara. E respeitou que eu fosse presidente do CNPq, o rgo que desde 1950 comandava a rea da cincia e tecnologia. Ulys-ses teve direito a escolher trs ministros: Waldir Pires para a Previdncia, Almir Pazzianotto para o Trabalho e Renato

    Archer, que assumiu um ministrio que tinha de ser formado: o da Cincia e Tecnologia. Dentre os rgos que caberiam num tal ministrio, o CNPq, que eu estava presidindo, era o nico organizado, com uma estrutura e uma tradio. Ar-cher, acredito que com satisfao e liberdade, me confirmou no CNPq, que passara a ser o principal rgo do Ministrio da Cincia e Tecnologia. Os principais assistentes dele, com quem passei a conviver, eram o atual presidente do BNDES, Luciano Coutinho, secretrio-geral do Ministrio, e o atual ministro Celso Amorim, chefe de gabinete. De modo que for-mamos os trs o Ministrio da Cincia e Tecnologia da poca.

    y Mas o senhor ficou pouco tempo no CNPq. Por qu?No ministrio de Sarney tinha sido includo, por ser um de-putado de muito destaque, um ex-secretrio da Educao de meu governo, Carlos Santanna. Mas exatamente porque era um deputado destacado, ele precisou deixar o ministrio em 1986 para se tornar lder do governo Sarney na Assembleia Nacional Constituinte. Voltaria em janeiro de 1989, com a nova Constituio promulgada, para assumir a Educao. Eu fui convidado para o ministrio da Sade em fevereiro de 1986 em substituio a Santanna, creio que Sarney con-siderou aquilo uma promoo. Mas o Ministrio da Sade at a nova Constituio s atuava na rea preventiva, e todo o dinheiro da Sade ia efetivamente para o Ministrio da Previdncia, que lidava com a sade do trabalhador. Assim, o que para Sarney foi uma promoo, para mim foi um corte na carreira. No me ajeitei muito no Ministrio da Sade.

    y Adiante o senhor se candidatou a deputado e a governa-dor de novo. Quando exerci o cargo de governador, me esforcei muito para atingir assuntos prioritrios para a Bahia e, mesmo sem ter trabalhado especificamente para isso, fiz um elei-torado que ficou sem aproveitamento do ponto de vista poltico. Figueiredo, que se revelaria o pior e mais fraco dos presidentes militares, se entendia bem com Antnio Carlos Magalhes, ento j brigado comigo. Figueiredo jamais se entendeu bem comigo, nem como chefe do SNI, enquanto

    ConsEGuiMos no ConGrEsso, Contra a vontaDE Do rEGiME, sair Do bipartiDarisMo. CriaMos o pp, a MElhor Coisa na rEa poltiCa QuE J vi no pas

  • 22 | julho/agosto de 2014

    eu estive na reitoria e no governo, nem enquanto presi-dente. Ento, o que fez? Botou Antnio Carlos para me substituir. Isso era um problema para a poltica da Bahia, porque ele iria tentar destruir tudo que eu tinha feito. Pro-curando atenuar isso, o que pude fazer foi me candidatar a eleies partidrias para governador. Fui derrotado, dian-te do poder enorme que Antnio Carlos havia angariado. Mais tarde, quando me demiti do Ministrio da Sade e voltei para Salvador, Sarney me nomeou para representar o Brasil na Organizao Mundial da Sade (OMS). Fiquei por quatro anos e gostei muito dessa atividade internacional. Findo aquele perodo, voltei a Salvador e me candidatei a deputado federal. Fui eleito com a maior votao dos can-didatos de oposio e exerci o mandato por quatro anos.

    y Contrariado?Sim, porque a pessoa se mexe muito e no produz nada mais slido. Vi que no era conveniente para alimentar o eleitorado para continuar os mandatos e encerrei a carreira.

    y Sua biografia marcada por vrias criaes institucionais efetivas. Uma delas o Museu de Cincia e Tecnologia da Bahia, implantado quando o senhor era o governador, e cuja decadncia comeou logo depois. Haveria certo inte-resse em reativar essa instituio pioneira?Como governador, pude refletir no exerccio do cargo a minha formao. Da nasceram iniciativas como a cria-o do Museu de Cincia e Tecnologia. Eu visitara vrios desses museus nos perodos em que vivi no exterior e da me surgiu a ideia de que precisvamos fazer na Bahia algo similar. No seria um museu histrico nem artstico, mas didtico, e o primeiro da Amrica do Sul. Trouxemos um dos diretores do Museu de Cincia e Tecnologia de Londres, Keohane, e ele teve aqui um papel extraordinrio, por sua capacidade de organizar as tticas de um museu didtico e pela competncia cientfica em apontar caminhos para a demonstrao de princpios das cincias bsicas de forma ldica para as crianas das escolas de ensino fundamental.

    y O museu foi implantado dentro do Parque de Pituau, certo?Sim, dentro do parque, j na periferia, com espao previsto para ampliao. A topografia do Parque de Pituau permi-tia o uso de pedalinhos nesse pequeno lago, equipamento que insistimos em instalar pensando nas crianas.

    y Lembro-me de uma rplica de uma torre de petrleo no museu.A Petrobras, entre 1975 e 1979, nos ajudou muito. E talvez as peas mais caras do material de exposio fossem as molculas em trs dimenses de produtos do Polo Petro-qumico. Eram modelos especficos que incluam produtos intermedirios da indstria petroqumica, muito com-plexos, com informaes tanto sobre as matrias-primas usadas para faz-lo quanto sobre produtos de consumo resultantes do trabalho em torno delas. Outra coisa que despertava bastante interesse era o trabalho de um ana-

    tomista das faculdades de Medicina e de Odontologia da UFBA, Aldemiro Jos Brochado, que injetava corantes no sistema vascular. Parte foi feita em adultos e outra parte, em fetos, em modelos reais depois das autpsias. Ele usa-va um produto que fazia o que chamavam diafanizao tanto no msculo cardaco quanto no tecido que forma os pulmes, e por esse processo de tornar difanas essas massas de tecidos era possvel trabalhar as peas distintas com diferentes cores.

    y Algo parecido com as tcnicas usadas naquelas grandes exposies do corpo humano que vieram dos Estados Uni-dos nos anos 2000?Exatamente, essa tcnica representa um avano do que conseguimos aqui em 1975. Quanto torre de petrleo, sim, tinha um modelo que a Petrobras nos facilitou. J a Secretaria Estadual de Transporte providenciou camadas de estradas e trajetos, desenhos de estradas em diferentes pocas, desde os tempos mais remotos, passando pela Idade Mdia, chegando ao comeo do uso do asfalto, at finalmen-te as estradas asfaltadas contemporneas. A Aeronutica nos ofereceu um pequeno avio e a ento Rede Ferroviria Leste Brasileiro nos forneceu uma locomotiva e vages de estrada de ferro, em tamanho real.

    y O museu foi inaugurado em 1979, quando o senhor estava prestes a deixar o governo do estado.Isso. Depois houve um empenho do governo do estado em dificultar as coisas para o museu, at que entre 1992 e 1996 ele ficou fechado. Conseguiu-se reabri-lo, adiante foi entre-gue Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que instalou reas de trabalho de ordem burocrtica nas salas onde antes havia experincias. Mais recentemente surgiu um debate entre vrios rgos do governo estadual a respeito da des-tinao daquele espao.

    y Em que p est hoje o museu?Praticamente fechado, com o espao disputado e numa si-tuao de incerteza. Os equipamentos sumiram quase todos.

    y Parece-lhe haver alguma possibilidade de reativao do museu?Tem havido um empenho. O museu foi oficialmente trans-ferido para a SECTI por decreto do governador Jacques Wagner no final da gesto do secretrio Paulo Cmera, que se empenhou por essa transferncia. A secretria Andrea Mendona, que o substituiu, j demonstrou interesse em dar prosseguimento iniciativa.

    y O senhor acredita que h condies hoje favorveis na Bahia para que a produo do conhecimento cientfico e a capacidade de inovao tecnolgica consigam um status decisivo e socialmente reconhecido no processo de desen-volvimento deste estado? Essa minha expectativa e a minha esperana. Continuo trabalhando para isso na Academia de Cincias da Bahia. w

  • 24 | julho/agosto de 2014

    GlauCo arbiX E FErnanDa stiEblEr

    dado o grau de competitividade alcanado, ainda permanece como fonte de inspirao. Nesse sentido, no somente a maior qualificao dos agricultores, o valor do cmbio e a perspectiva exportadora foram fundamentais. Mecanizao e tec-nologia desempenharam papel de destaque: 42% das razes que ex-plicam o dinamismo da agricultura brasileira apontaram para a expan-so tecnolgica no campo.

    Com es