as narrativas visuais de nan gloldin - fotografia, arte, cinema

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http://www.revistas.unilasalle.edu.br/indez.php/mouseion Canoas, n. 15, ago. 2013 As narrativas visuais de Nan Goldin: Fotografia, Arte, Cinema Gabriela Machado Ramos de Almeida 1 Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão a respeito dos slideshows Ballad of Sexual Dependency e Heartbeat, da fotógrafa norte-americana Nan Goldin, a partir de dois aspectos principais: a fotografia entre a arte e o documento e o trabalho da artista como um híbrido entre fotografia e audiovisual. Para tanto, aborda questões conceituais relativas à afirmação da fotografia como arte e, em seguida, inicia uma discussão relacionada ao modo como o valor estético da obra de Goldin é devedor da narrativa e do dispositivo por meio do qual as imagens são apresentadas, que as aproxima da experiência de fruição do cinema. Palavras-chave: Fotografia; cinema; arte contemporânea; dispositivo; Nan Goldin. Nan Goldin’s Visual Narratives: Photography, Art, Cinema Abstract: This paper presents a reflection about two slideshows produced by american photographer Nan Goldin, Ballad of Sexual Dependency and Heartbeat, as from these main aspects: photography between art and document and Goldin’s work as a hybrid between photography and audiovisual. For this purpose, we approach conceptual questions relative to the affirmation of photography as art and then we begin a discussion about how the aesthetic value of Goldin’s work owes to the narrative and device through which images are presented, approximating them to the fruition experience of cinema. Keywords: Photography; cinema; contemporary art; device; Nan Goldin. 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Deliberativo da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual). Email: [email protected].

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Artigo publicado na revista Mouseion.

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  • http://www.revistas.unilasalle.edu.br/indez.php/mouseion Canoas, n. 15, ago. 2013

    As narrativas visuais de Nan Goldin: Fotografia, Arte, Cinema

    Gabriela Machado Ramos de Almeida1

    Resumo: Este artigo apresenta uma reflexo a respeito dos slideshows Ballad of Sexual Dependency e Heartbeat, da fotgrafa norte-americana Nan Goldin, a partir de dois aspectos principais: a fotografia entre a arte e o documento e o trabalho da artista como um hbrido entre fotografia e audiovisual. Para tanto, aborda questes conceituais relativas afirmao da fotografia como arte e, em seguida, inicia uma discusso relacionada ao modo como o valor esttico da obra de Goldin devedor da narrativa e do dispositivo por meio do qual as imagens so apresentadas, que as aproxima da experincia de fruio do cinema. Palavras-chave: Fotografia; cinema; arte contempornea; dispositivo; Nan Goldin.

    Nan Goldins Visual Narratives: Photography, Art, Cinema

    Abstract: This paper presents a reflection about two slideshows produced by american photographer Nan Goldin, Ballad of Sexual Dependency and Heartbeat, as from these main aspects: photography between art and document and Goldins work as a hybrid between photography and audiovisual. For this purpose, we approach conceptual questions relative to the affirmation of photography as art and then we begin a discussion about how the aesthetic value of Goldins work owes to the narrative and device through which images are presented, approximating them to the fruition experience of cinema. Keywords: Photography; cinema; contemporary art; device; Nan Goldin.

    1 Doutoranda no Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Informao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Deliberativo da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual). Email: [email protected].

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    Introduo

    Figura-chave no debate mais recente, envolvendo a legitimao da fotografia como material expressivo no seio das prticas artsticas, travado por autores como Andr Rouill, Charlotte Cotton e Michel Poivert, Nan Goldin costuma ter a sua obra olhada a partir de algumas chaves de leitura recorrentes, que orbitam um grande ncleo comum, e dizem respeito aos temas retratados e ao teor altamente pessoal e subjetivo das fotos que produz: a fotografia ntima (COTTON, 2010); a explorao do banal e do cotidiano na composio de micronarrativas (ROUILL, 2009) ou mesmo o seu papel precursor na exposio do eu nos circuitos miditicos contemporneos (JAGUARIBE, 2006).

    O objetivo deste trabalho discutir um aspecto da obra de Goldin, aqui considerado fundamental, embora parea menos lembrado nos estudos a ela dedicados: a tnue linha entre a fotografia e o audiovisual, que marca o seu trabalho, uma vez que, tanto do ponto de vista esttico quanto dos ambientes expositivos, a experincia de fruio dos slideshows se aproxima daquela comumente associada ao cinema e a outras expresses audiovisuais. As fotografias so inseridas num contexto de montagem flmica, sugerindo uma narrativa audiovisual; Goldin nos d a ver narrativas visuais em srie de longos perodos da vida das pessoas retratadas; o uso da msica e o ambiente de projeo so determinantes para os efeitos sensveis das obras.

    As videoinstalaes, tal como foram expostas no Brasil, entre 9 de fevereiro e 8 de abril de 2012, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, aproximam a experincia de fruio de Ballad of Sexual Dependency e Heartbeat do cinema: sala escura, projeo, tela grande, som alto e apreciao coletiva so caractersticas do dispositivo cinematogrfico que compem o modo de apresentao desses trabalhos da artista norte-americana.

    Deslocamentos da fotografia: do registro documental ao valor artstico

    A afirmao da fotografia no campo da arte tem sido discutida nos ltimos anos por diversos autores, a partir de pontos de vista diferentes e, por vezes, complementares. Algumas das leituras mais importantes so de teor historiogrfico, talvez pelo fato mesmo de que essa legitimao recente e vem sendo notada sobretudo desde os anos 1970 quando, segundo Rouill, a fotografia passou a transitar definitivamente entre o territrio do til e o da cultura e da arte (2009, p. 15).

    O movimento de autores como o prprio Rouill, mas tambm de Charlotte Cotton e Michel Poivert, tem sido no sentido de identificar momentos-chave na histria e no estudo da

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    arte contempornea, quando houve uma reviso do valor intrinsecamente documental da fotografia, o que provocou uma alterao de carter ontolgico, relativa ao que seria a natureza do meio. O que artistas e tericos buscaram relativizar ou em alguns casos, negar foi a noo corrente at ento de que existe uma fotografia, e no umas fotografias, e ainda que a sua natureza seria, necessariamente, de registro: a imagem estaria relacionada existncia prvia das coisas, cujas marcas elas, passivamente, apenas registraram (ROUILL, 2009, p. 17). Tal crena ainda perpetuada pelo fotojornalismo e pela fotografia documental, que, baseados no mito do instante decisivo, seguem desconsiderando que esse valor documental pode variar e que o investimento por parte dos artistas no valor esttico da imagem nem sempre objetiva retirar dela o seu valor documental (ou seja, os dois aspectos em destaque no necessariamente se opem).

    Poivert problematiza a suposta natureza documental da fotografia, colocando algumas questes: a fotografia pode encarnar uma forma de modernismo? Como se constitui a autoridade adquirida pela fotografia, na arte contempornea? (2002, p. 87). O que imprescindvel traar, segundo o autor, a inscrio da fotografia na histria da crtica de arte, no contexto da controvrsia entre o ps-modernismo e o modernismo. Para Poivert, a legitimao da fotografia contempornea se d em dois nveis: o empreendimento poltico e a estratgia artstica (Ibid., p. 88).

    A aplicao de um conceito modernista de arte fotografia permitiria criar uma alternativa ao ps-modernismo, bem como introduzir uma viso bastante doutrinria da imagem construda (digirida): a recusa de todo o naturalismo. Poivert defende que uma reviso modernista na fotografia possibilitaria observar a reatribuio de uma dimenso crtica arte moderna no mais como um instrumento, mas como valor. No seio da ambiguidade entre a funo esttica e a funo documental da fotografia, tantas vezes postas em oposio, o autor afirma que a fotografia no encontraria alternativa que no a descrio, uma vez que seria da natureza do meio descrever as coisas. No entanto, ir associar a artisticidade da fotografia, entre outros fatores, aos modos de exposio das imagens.

    De acordo com Poivert, o modernismo na fotografia residiria no uso do formato quadro no como objeto, no como dipositivo, mas como conceito (Ibid., p. 113). Ao optar pelo formato do quadro, os artistas estariam colocando em questo tambm o lugar e o espao dedicados fruio espectatorial (e essa discusso nos interessa especialmente, visto Nan Goldin ser uma artista que pensa a dimenso da experincia esttica oferecida por sua obra a partir do lugar e do espao de fruio espectatorial).

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    Em A Fotografia: entre documento e arte contempornea, Rouill dedica especial ateno contaminao entre a fotografia e a arte, no apenas do ponto de vista das prticas artsticas, mas tambm e muitas vezes num tom bastante crtico das fronteiras entre os dois campos, defendendo haver muito mais uma apropriao da fotografia pelos artistas do que um trnsito efetivo entre os universos da fotografia e da arte:

    Tudo separa, de fato, os universos da arte e da fotografia: as problemticas e as formas das produes, os horizontes culturais, os espaos sociais, os lugares, as redes, os atores, embora as passagens de um universo a outro sejam realmente raras. A arte dos fotgrafos designa um procedimento artstico interno ao campo fotogrfico; enquanto a fotografia dos artistas se remete prtica da fotografia por artistas ou utilizao da fotografia pelos artistas, no cenrio de sua arte, como resposta a questes especificamente artsticas. (ROUILL: 2009, p. 20)

    Ao assinalar de modo recorrente, em seu livro, que os artistas buscaram a fotografia, e no os fotgrafos que fizeram o movimento de expor os seus trabalhos em galerias e museus, Rouill traz discusso um dado essencial: ao se valer da fotografia, os artistas buscavam problematizar o real e no apenas represent-lo. Essa mudana de essncia ontolgica nos usos e funes da fotografia, a qual contribui para marcar ainda mais a distncia entre os campos da fotografia e da arte, remete ao momento em que, na dcada de 1980, a fotografia teve suas funes prticas diminudas em benefcio de uma valorizao esttica das imagens, favorecendo a ascenso de uma arte e um mercado de arte fotogrficos, conforme Rouill (Ibid., p. 340), e contribuindo de maneira definitiva para alar a fotografia ao patamar de material artstico.

    Nesse contexto de surgimento do que o autor chama de arte-fotografia2, destacam-se artistas como Christian Boltanski, Sherrie Levine ou Nan Goldin que, embora com propostas bastante distintas, produziram obras fotogrficas extremamente provocadoras e de indiscutvel valor esttico. Rouill assinala uma interessante simultaneidade: a arte contempornea passa a se ocupar do banal, do cotidiano, no mesmo momento em que a fotografia se torna um dos principais materiais para a arte (Ibid., p. 355). Dos grandes aos pequenos relatos, s micronarrativas, Nan Goldin torna-se, a partir dos anos de 1980, figura protagonista na valorizao da esttica do ordinrio, ao lado de outros nomes, como Severio Lucariello, Dominique Auerbacher, e Peter Fischli & David Weiss. 2 Termo que Rouill utiliza para designar a adoo da fotografia como matria nas obras de arte: A arte-fotografia rompe radicalmente com todas as prticas artsticas anteriores, para apoiar-se no emprego assumido, plenamente dominado e, muitas vezes, exclusivo da fotografia, enquanto confere fotografia um status original de material artstico. (Ibid., p. 335).

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    Charlotte Cotton tambm dedica especial ateno aos cruzamentos entre arte e fotografia no volume A fotografia como arte contempornea. Num captulo especfico, dedicado fotografia ntima, debrua-se sobre as contribuies de Goldin e de outros artistas para a afirmao de um redirecionamento da linguagem da fotografia domstica e dos instantneos de famlia, que passam a ganhar exposio pblica.

    Tais deslocamentos so importantes, segundo Cotton, na medida em que o estilo subjetivo, cotidiano, despreocupado e confessional da fotografia ntima ganha outros contornos e a vida se torna objeto de exposio para consumo como obra de arte. A autora sinaliza dois pontos importantes: 1) a forma como a fotografia, num primeiro olhar, precria ou inbil, torna-se recurso intencional que denota a intimidade entre o fotgrafo e o seu tema; 2) as micronarrativas se expandem e deixam de dizer respeito apenas s pessoas diretamente envolvidas, adquirindo contornos metonmicos.

    Em 1985, Nan Goldin exps o slideshow Ballad of Sexual Dependency na Bienal do Whitney Museum, em Nova York, e um ano depois publicou um livro homnimo, com a reproduo de imagens que cumpunham o trabalho. Essas duas aes marcaram a insero definitiva de Goldin no universo da arte e tambm o momento em que a sua obra ganhou popularidade, e passando a ser conhecida por um pblico mais amplo:

    Nessa altura, Goldin estava deliberadamente sequenciando suas fotos em temas que conduziam o pensamento do espectador para alm dos dados especficos da vida daquelas pessoas, atingindo as narrativas mais gerais da experincia universal. The Ballad of Sexual Dependency, por exemplo, era uma contemplao personalizada da natureza dos modelos, seus relacionamentos sexuais, o isolamento social dos homens, a violncia domstica, o abuso de drogas. (COTTON, 2010, p. 139)

    Rouill tambm se refere ao carter metonmico da obra de Nan Goldin que, embora no se pretenda retrato de uma gerao, no deixa de se apresentar como registro continuado da sua prpria vida e de significativos perodos das vidas dos amigos/personagens, que se constituram motivos permanentes das suas imagens, orbitando todos um mesmo circuito: o underground novaiorquino do Bowery e do Lower East Side. Atravs das fotografias da artista, acompanhamos sua amiga-irm Cookie Mueller, de 1976 a 1989, quando morre vtima de AIDS, mesma doena que atingiria muitos dos seus amigos mais prximos durante a dcada de 1980. Os pequenos dramas da vida preenchem a partir da toda a obra. O cotidiano individual apaga a histria social, a constatao local substitui o relato global, afirma Rouill (Ibid., p. 359).

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    A Figura 1 apresenta uma seleo de algumas fotografias de Cookie Mueller, feitas por Goldin ao longo de treze anos, formando uma espcie de narrativa visual da vida da personagem retratada: nas quatro imagens da primeira linha, Cookie Mueller vista em diferentes situaes festivas (na de nmero 3, aparece abraada prpria Nan Goldin). Nas demais fotografias, acompanhamos Mueller em seu casamento; no velrio do marido, vtima de AIDS; no leito em que padeceu tambm vtima da mesma doena e, por fim, no seu prprio velrio. Em 1989, o registro interrompido em funo da sua morte.

    Figura 1: Cookie Mueller em 1976, 1983, 1984, 1986, 1986, 1989, 1989, 1989

    Assim, a obra de Goldin no deixa de ser documental, ao passo que serializa registros

    de pessoas recorrentemente tomadas como temas das imagens: acompanhamos, atravs de instantneos verdadeiramente epifnicos, uma micronarrativa acerca da vida delas, sobretudo das transformaes fsicas pelas quais passam em funo do desgaste provocado pelo tempo. Ao mesmo tempo, no documental no sentido tradicionalmente associado ao valor de registro fotogrfico e no se baseia nas premissas adotadas pela fotografia documental. Conforme afirma Beatriz Jaguaribe,

    No se trata propriamente do retrato de uma gerao de contracultura porque esta j havia se sedimentado antes. Se h alguma mensagem poltica nessa exibio da intimidade dos amigos aos olhos do grande pblico, essa mensagem sobre a beleza do pertencimento fora dos padres de classe mdia e alm das noes demarcadas de gnero, raa e famlia. (...) a tribo de Nan configura-se de outra forma porque nela indivduos extrados do mbito americano tecem uma aposta numa automodelao fora dos padres da famlia, religio e moralidade que caracterizam um certo legado do puritanismo americano e do grande aparato do sistema de recompensas do american way of life. (JAGUARIBE, 2006, p. 133-135)

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    A ampliao da experincia do cinema e da fotografia nos slideshows de Nan Goldin Os limites entre as diversas formas de expresso baseadas na imagem ou a ausncia

    deles tm sido analisados nos ltimos anos por autores das reas da comunicao e das artes que vm se dedicando ao estudo da produo de imagens fronteirias no contexto tanto dos circuitos miditicos quanto dos circuitos artsticos contemporneos: aquelas que passeiam por diferentes gneros e formatos so geradas a partir de diferentes procedimentos e materiais e, principalmente, circulam em ambientes distintos, desde as tradicionais salas de cinema at as exposies em museus e outros espaos dedicados arte contempornea. Trata-se de filmes, vdeos, fotografias exibidas por meio de slideshows, videoinstalaes e outros tipos de obras marcadas pelo dilogo entre diversas expresses artsticas e justamente nesse hibridismo residem os obstculos que se impem ao tentarmos encerrar as obras em destaque em categorias muito rgidas.

    Cada um sua maneira, estes autores, entre os quais possvel citar Phillipe Dubois, Raymond Bellour, Andr Parente, Ktia Maciel e Arlindo Machado, vm se ocupando com uma questo que parece inquiet-los: uma certa crise da imagem e a valorizao de um cinema3 que se quer impuro, que se vale de todas as demais artes e cujo valor se localiza exatamente na forma como processa metalinguisticamente inmeras referncias e influncias, enquanto, ao mesmo tempo, pensa o prprio fazer-cinema em funo de apresentar-se fruio de formas distintas daquelas associadas, via de regra, experincia cinematogrfica (sala escura, filme narrativo com duas horas de durao etc). Bellour, Dubois, Parente e Maciel iro tratar da contaminao entre o cinema e as demais artes, sobretudo o vdeo e as artes visuais, a partir do conceito fundador de cinema expandido, formulado por Gene Youngblood, em 1970.

    Dubois, em seus escritos mais recentes, vem se ocupando com um efeito-cinema na arte contempornea e tambm com o cinema de exposio. Para o autor, o efeito-cinema se mostra h pelo menos vinte anos nos nveis institucional, artstico e terico (2009, p. 181). Ao expor obras envolvendo o cinema e a arte contempornea, colocaria em xeque as identidades de cada uma dessas expresses e tornaria habituais as misturas, semeando a dvida e a inquietao acerca da questo da natureza dos fenmenos que acompanhamos. (Ibid., p. 182). Segundo Dubois, 3 Estes autores partem do cinema e nomeiam por meio de expresses como transcinemas ou cinema impuro diversas experincias que, muitas vezes, parecem mais associadas s artes visuais do que ao cinema propriamente. No entanto, por uma questo de formao/filiao terica, assumiremos essas expresses e outras afins para fazer referncia ao trabalho de Nan Goldin sem que nos parea um problema o fato de a artista nunca ter se afirmado cineasta.

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    Um dos pontos centrais do problema este: o que vemos nas exposies (ainda) cinema? Foi o cinema que migrou (Pani, 2001), como se diz, abandonando suas salas escuras por outras mais luminosas de museu por que, com que propsito? Ou o cinema foi renegado, deturpado, transformado, metamorfoseado em qu? Haveria um para alm ou um depois do cinema, como se este no existisse mais? (...) Cinema de exposio? Ps-cinema? Outro cinema? Terceiro cinema? Pouco importam os rtulos. evidente que a questo posta justamente a da identidade ou natureza do cinema, uma natureza, portanto, suposta, que se descobre e se revela hipottica (l onde ela se acreditaria segura de si, slida em sua particularidade); uma natureza que se sente hoje questionada, relativizada, abalada, transformada, quem sabe trada, para no dizer em via de desaparecimento (o cinema, vanishing art?). (Ibid., p. 182-183).

    A discusso proposta por Dubois engloba no apenas o questionamento acerca de uma natureza maculada do cinema a partir do contato com a arte (e atribuda sobretudo videoarte e ao cinema experimental, os grandes responsveis pela conexo entre os dois universos), mas tambm s questes dos dispositivos cinematogrfico e artstico e da fruio espectatorial. Ainda que, em um primeiro momento, a abordagem de Dubois por um vis bourdieriano, buscando mostrar que o entrecruzamento entre arte e cinema no se restringe ao plano esttico e deve ser considerado tambm a partir do ponto de vista da legitimao simblica de cada um dos dois campos, a preocupao central do autor tentar identificar os pontos-chave desse dilogo e os mecanismos que propiciaram o contato. Dubois questiona: Nessas transferncias e deseres, nessas migraes e nesses cruzamentos, quem do cinema ou da arte contempornea ganha e quem perde? E quem ganha ou perde o qu? (Ibid., p. 183).

    Entre autores brasileiros, possvel destacar as contribuies de Andr Parente e Ktia Maciel, que se alinham mais perspectiva de Dubois, no sentido de pensar o cinema em sua interseco com a arte. Maciel cria o conceito de transcinemas para referir-se a (...) formas hbridas entre a experincia das artes visuais e do cinema na criao de um espao para o envolvimento sensorial do espectador. (MACIEL, 2009, p. 17), enquanto Parente aponta variaes e rupturas na forma cinema, sobretudo quanto aos aspectos conceituais, histricos e tcnicos do dispositivo cinematogrfico, e uma mudana de olhar do ponto de vista terico: a imagem tomada no mais como objeto, mas como acontecimento (Ibid., p. 23).

    As transformaes apontadas no dispositivo cinematogrfico teriam sido mais visveis, segundo Parente, em cinco momentos fortes: cinema do dispositivo, cinema experimental, arte do vdeo, cinema expandido4 e cinema interativo (2009, p. 25). O autor busca ampliar a 4 Conceito formulado por Gene Youngblood, no j considerado clssico Expanded cinema, publicado em 1970.

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    noo de cinema expandido, pensada por Youngblood, caracterizando-o a partir de duas vertentes:

    (...) as instalaes que reiventam a sala de cinema em outros espaos e as instalaes que radicalizam processos de hibridizao entre diferentes mdias. Enquanto o cinema experimental se restringe a experimentaes com o cinema e a videoarte se notabiliza pelo uso da imagem eletrnica, o cinema expandido o cinema ampliado, o cinema ambiental, o cinema hibridizado. (Ibid., p. 41)

    As perspectivas de Parente e Maciel convergem na direo do pensar uma experincia contempornea de cinema que necessariamente imersiva e que no se completa sem o espectador estar incluso na obra, num tipo de demanda fruitiva muito distinta daquela associada mais comumente ao dispositivo do cinema (sala escura, tela, projeo).

    neste ponto que a reflexo relacionada ao cinema, vigente at agora, encontra Nan Goldin. Em 1979, a fotgrafa norte-americana promoveu as primeiras exibies pblicas do conjunto de fotografias que compunham a obra Ballad of Sexual Dependency, na forma de imagens projetadas nas paredes de bares e inferninhos do Bowery e do Lower East Side, de Manhattan grande parte deles cenrios mesmos das prprias imagens. As projees eram acompanhadas de trilhas sonoras selecionadas pela artista, ou executadas ao vivo por bandas tambm comuns ao universo registrado por Goldin em suas fotografias: um crculo bomio de amigos que, entre o final dos anos 1970 e meados dos 1980, conviveu em uma rea ento considerada decadente na cidade de Nova Iorque e constituiu o objeto de interesse primeiro do seu olhar.

    Trata-se da primeira srie de fotografias feitas por Nan Goldin em Nova Iorque, para onde se mudou, em 1978. No entanto, o hbito de fotografar os amigos prximos remete ao incio da dcada de 1970, quando viveu em Boston e morou com um grupo de drag queens, amplamente fotografado por ela. Nessas primeiras experincias de registro, estava prenunciado o fascnio de Goldin pelo universo marginalizado da noite e seus personagens, das festas e casas noturnas, das drogas e, sobretudo, da euforia de gnero5.

    J neste momento aparece sua preocupao com o modo de exposio do prprio trabalho e o interesse em apresentar as fotografias por meio de projees acompanhadas de msica, o que se tornar um trao recorrente em sua trajetria: alm de Ballad of Sexual Dependency (1981-1996), tambm outras obras, como Heartbeat (2001) e The Other Side (1972-2006) ganharam a forma de slideshows. 5 Gender euphoria, como a prpria Nan Goldin define no livro The Other Side (2000), refere-se maneira livre e aberta como os seus amigos as pessoas fotografadas decidiram lidar com a prpria sexualidade, buscando romper amarras de gneros e identidades sexuais.

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    Na exposio que pde ser vista pelo pblico brasileiro entre 9 de fevereiro e 8 de abril de 2012, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, os trabalhos foram exibidos do seguinte modo: Ballad of Sexual Dependency, 720 fotografias realizadas entre 1978 e 1986, expostas na forma de slideshow (videoinstalao com aproximadamente 45 minutos de durao) e Heartbeat, 245 slides compilados entre 2000 e 2001, a partir de cinco ensaios fotogrficos com registros da intimidade de casais franceses. Em Ballad of Sexual Dependency, a trilha sonora era formada por canes de diferentes artistas, como Velvet Underground e Maria Callas. J em Heartbeat, a trilha sonora consistia na composio Prayer of the Heart, de Sir John Tavener, interpretada pela cantora islandesa Bjrk, juntamente com o grupo Brodsky Quartet6.

    O que nos permitiu observar uma aproximao entre os dois slideshows de Nan Goldin e o cinema foi o modo como o dispositivo de exibio contribui para a sugesto de uma narrativa audiovisual, posta em curso pela fotgrafa. As obras so expostas sob a forma de instalaes audiovisuais, e no se trata exclusivamente de fotografia nem de cinema, mas de uma associao entre esses dois meios expressivos. Embora muitas das fotografias que compem os slideshows possam ser vistas expostas, na forma de quadros, em diversos museus, galerias e espaos de arte contempornea, a experincia de fruio das imagens potencializada sobremaneira pelo dispositivo cinematogrfico adotado pela artista: sala escura, projeo em tela nica e com a proporo de tela de cinema, experincia coletiva de apreciao e msica.

    Ligia Canongia, curadora da exposio de Nan Goldin no Brasil e organizadora do livro lanado na ocasio, afirma que o trabalho da artista se localiza justamente na fissura entre fotografia e cinema, num estado intermedirio entre as duas linguagens, que se institui por sucesso livre de fragmentos, projeo de cenas isoladas e superposio de imagens e fissuras (CANONGIA, 2012, p. 21). O fundamental, para Canongia, o modo como Goldin, por meio da montagem, imobiliza aes e gestos nos seus momentos de maior intensidade:

    O trabalho da artista parece isolar os fotogramas de uma pelcula imaginria, como a querer imobilizar determinadas aes e gestos em momentos de sua maior intensidade. O efeito semelhante ao de uma

    6 A exposio tinha tambm o slideshow The Other Side e uma srie de fotografias de paisagens, Landscape, com dezessete imagens expostas sob a forma quadro. Vale notar que a verso de Heartbeat exibida no Rio de Janeiro pertence ao Centre Georges Pompidou, em Paris, e foi exibida novamente na cidade em 2013, como parte da exposio Elles, que trouxe ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) um conjunto de obras de artistas femininas que compem o acervo do Pompidou. J Ballad of Sexual Dependency uma obra que Goldin costuma alterar a cada exposio. Uma verso nunca igual outra: ela subtrai, substitui ou acrescenta imagens, muda a trilha sonora e os modos de audio das msicas (ora banda ao vivo, ora canes selecionadas e pr-gravadas numa determinada sequncia).

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    parada abrupta e cortante sobre certos frames, buscando destacar aqueles que manifestam estados excepcionais de tenso e expresso dos personagens. Com o slideshow, Goldin ativa a dinmica cinemtica da viso, que a foto, isoladamente, no produziria, mas ao tempo tempo e inversamente, ratifica a identidade e a independncia da matria fotogrfica. (Ibid., p. 22)

    As fotografias so exibidas num contexto de montagem cinematogrfica em que determinados personagens aparecem de forma recorrente, o que aumenta a impresso de contemplao de uma narrativa a respeito da vida de Goldin e dos seus amigos. A ordem em que a artista escolhe colocar as fotografias direciona a apreciao e fortalece a sugesto de narrativa, mas no apenas a montagem determinante nesse sentido: a msica tambm responsvel pela costura narrativa do material.

    No por acaso que Goldin se vale de msicas do Velvet Underground ou de Lou Reed para montar a trilha sonora de Ballad of Sexual Dependency. Trata-se de artistas que, sua semelhana, haviam registrado em suas obras crnicas de um estilo de vida de submundo, desregrado e trangressor, tanto por meio das letras quanto da agressividade das sonoridades. Em dados momentos, a msica parece operar como uma verdadeira narrao, um discurso verbal que sublinha o que as imagens sugerem.

    Numa obra em que tudo parece ser da ordem do anticonvencional sexualidade, hbitos, comportamentos etc , no por acaso que Nan Goldin utiliza uma cano como Ill be your mirror, cuja letra diz, entre outras coisas, Acho difcil que no saiba / O quo bonito / Mas se no sabe, me deixe ser os seus olhos / A mo na sua escurido, para que voc no tenha medo (Traduo livre)7.

    Ao escolher msicas que dizem respeito diretamente ao universo esttico e afetivo retratado nas imagens, a artista se revela extremamente hbil em moldar estados anmicos, amplificando a experincia de fruio das fotografias e envolvendo o espectador numa experincia de imerso total. E o tom de elogio que as msicas atribuem aos personagens tambm no sem propsito, uma vez que o olhar de Goldin em relao aos seus amigos-personagens sempre extremamente afetuoso. Trata-se de um dado a mais na grande homenagem que a artista parece querer fazer a todos os seus amigos fotografados (a sua famlia, como ela costuma afirmar em entrevistas).

    Retomando os conceitos de Dubois, Maciel e Parente aqui apresentados, e sem pretender responder em qual categoria a obra de Nan Goldin poderia ser includa (at por 7 No original: I find it hard to believe you don't know / The beauty that you are / But if you don't let me be your eyes / A hand in your darkness, so you won't be afraid.

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    acreditar que tal empreitada se revelaria impossvel), o que se busca afirmar o quanto a opo pelo formato de exibio do slideshow e as escolhas feitas pela artista, sobretudo no que respeita montagem e ao uso da msica, contribuem para aproximar fotografia, arte e cinema e borrar ainda mais as j indistintas fronteiras entre as trs expresses. Lgia Canongia prefere se referir obra de Goldin como um cinema fotogrfico:

    O ritmo impresso s imagens dos slideshows inteiramente dissociado da velocidade e do desdobramento dos fotogramas no cinema, o que torna o seu trabalho um processo transversal aos dois gneros: um cinema fotogrfico. Dispositivo tpico da obra de Goldin, o slideshow acontece na descontinuidade, mas, paradoxalmente, supe uma narrativa. [...] Nan Goldin, com os slideshows, enfatiza a natureza originalmente descontnua do filme, que se assume agora em sua dimenso verdadeira, isto , como pura extenso temporal da fotografia. (CANONGIA, 2012, p. 22).

    Em Ballad of Sexual Depedency e Heartbeat, Goldin atesta a impureza de formas artsticas que vm se permitindo cada vez mais a hibridizao, embora no cinema isso ocorra de maneira muito mais tmida, enquanto na arte talvez j configure uma questo suficientemente discutida.

    Se toda uma gama de tericos e artistas vem declinando, nas ltimas trs dcadas, a formulao de uma episteme prpria do cinema, da fotografia ou do vdeo e pensa tais expresses artsticas a partir de contaminaes, mestiagens, ausncia de fronteiras ou como se queira chamar, os slideshows de Nan Goldin aparecem como ambiente de materializao desse debate. Referncias CANONGIA, Ligia. (org.). Heartbeat. Nan Goldin. Rio de Janeiro: Barlu Edies, 2012. COTTON, Charlote. A fotografia como arte contempornea. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. ROUILE, Andr. A fotografia: entre documento e a arte contempornea. So Paulo: SENAC, 2009. POIVERT, Michel. Autorit de la photographie. In__________. La photographie contemporaine. Paris: Flammarion, 2002. DUBOIS, Philippe. Cinema, vdeo, Godard. So Paulo: Cosac Naify, 2004. ______. Um efeito-cinema na arte contempornea. In: COSTA, Luiz Cludio (org.). Dispositivos de registro na arte contempornea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 179-216.

  • As narrativas visuais de Nan Goldin: fotografia, arte... 81

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    JAGUARIBE, Beatriz. Realismo sujo e experincia autobiogrfica. In: FATORELLI, Antonio, BRUNO, Fernanda (orgs.). Limiares da imagem: tecnologia e esttica na cultura contempornea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. MACIEL, Ktia. Transcinemas. In:_________. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 13-20. PARENTE, Andr. A forma cinema: variaes e rupturas. In: MACIEL, Ktia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 23-47. YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. New York: J. P Dutton & Co, 1970.