narrativas visuais: histÓria em quadrinhos como...

18
ISSN 2176-1396 NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO ESTRATÉGIA DE AQUISIÇÃO DO SIGNWRITING SISTEMA DE ESCRITA DE LÍNGUA DE SINAIS Cayley Guimarães 1 - UTFPR Milton César Oliveira Machado 2 - UTFPR Jefferson Diego de Jesus 3 - UFPR Sueli Fernandes 4 - UFPR Eixo Alfabetização, Leitura e Escrita Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo As pessoas Surdas usam a Língua de Sinais (LS) para a comunicação e outras atividades humanas que envolvem o uso de uma língua. Isto inclui, entre outras possibilidades, a aprendizagem da modalidade escrita, cujo uso potencializa as formas de expressão e registro da língua, sobretudo no contexto educacional. A Libras é um sistema linguístico completo de modalidade visual-espacial e requer um sistema de escrita adequado, capaz de mapear as propriedades da LS e o desafio de tentar representar linearmente sua tridimensionalidade. Dentre as especificidades do processo de alfabetização/letramento dos Surdos, está o fato do ensino e aprendizagem de um sistema de escrita de sinais, com base na premissa que a constituição dos sentidos na escrita decorrerá de processos simbólicos visuais, nos quais a mediação da Língua de Sinais assume centralidade, de forma diferenciada dos encaminhamentos adotados nos sistemas de escrita de línguas orais que se pautam nas relações fonema-grafema. O SignWriting é um sistema de escrita adequado para a natureza visual e espacial das LS e tem sido utilizado como importante ferramenta no processo de aquisição de escrita de crianças Surdas. Diante desse cenário, esta pesquisa tem como objetivo apresentar uma proposta de narrativa visual no gênero História em Quadrinhos (HQ), de modo a introduzir o ensino de aspectos do SignWriting, de maneira mais natural e contextual. Os procedimentos metodológicos da pesquisa envolvem o estabelecimento do contexto e situação comunicacional, apresentação do sinal/enunciado em Libras, elementos composicionais do SignWriting e atividades de escrita de sinais. Como resultados, apresentados foram destacadas a importância da HQ como estratégia pedagógica adequada ao ensino da escrita de crianças e jovens surdos, o uso da LS na narrativa visual, a seleção de sinais icônicos nas primeiras lições de SignWriting e as atividades de prática do traçado da escrita em SignWriting adequadas à faixa etária. 1 Doutor em Ciência da Computação: UFPR. Professor da UTFPR. E-mail: [email protected] 2 Tecnólogo em Design Gráfico: UTFPR. E-mail: [email protected] 3 Mestre em Educação: Professor da UFPR. E-mail: [email protected] 4 Doutora em Educação. Professora da UFPR. E-mail: [email protected]

Upload: trankien

Post on 22-Nov-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

ISSN 2176-1396

NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO

ESTRATÉGIA DE AQUISIÇÃO DO SIGNWRITING – SISTEMA DE

ESCRITA DE LÍNGUA DE SINAIS

Cayley Guimarães 1 - UTFPR

Milton César Oliveira Machado 2 - UTFPR

Jefferson Diego de Jesus 3 - UFPR

Sueli Fernandes 4 - UFPR

Eixo – Alfabetização, Leitura e Escrita

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

As pessoas Surdas usam a Língua de Sinais (LS) para a comunicação e outras atividades

humanas que envolvem o uso de uma língua. Isto inclui, entre outras possibilidades, a

aprendizagem da modalidade escrita, cujo uso potencializa as formas de expressão e registro da

língua, sobretudo no contexto educacional. A Libras é um sistema linguístico completo de

modalidade visual-espacial e requer um sistema de escrita adequado, capaz de mapear as

propriedades da LS e o desafio de tentar representar linearmente sua tridimensionalidade.

Dentre as especificidades do processo de alfabetização/letramento dos Surdos, está o fato do

ensino e aprendizagem de um sistema de escrita de sinais, com base na premissa que a

constituição dos sentidos na escrita decorrerá de processos simbólicos visuais, nos quais a

mediação da Língua de Sinais assume centralidade, de forma diferenciada dos

encaminhamentos adotados nos sistemas de escrita de línguas orais que se pautam nas relações

fonema-grafema. O SignWriting é um sistema de escrita adequado para a natureza visual e

espacial das LS e tem sido utilizado como importante ferramenta no processo de aquisição de

escrita de crianças Surdas. Diante desse cenário, esta pesquisa tem como objetivo apresentar

uma proposta de narrativa visual no gênero História em Quadrinhos (HQ), de modo a introduzir

o ensino de aspectos do SignWriting, de maneira mais natural e contextual. Os procedimentos

metodológicos da pesquisa envolvem o estabelecimento do contexto e situação comunicacional,

apresentação do sinal/enunciado em Libras, elementos composicionais do SignWriting e

atividades de escrita de sinais. Como resultados, apresentados foram destacadas a importância

da HQ como estratégia pedagógica adequada ao ensino da escrita de crianças e jovens surdos,

o uso da LS na narrativa visual, a seleção de sinais icônicos nas primeiras lições de SignWriting

e as atividades de prática do traçado da escrita em SignWriting adequadas à faixa etária.

1 Doutor em Ciência da Computação: UFPR. Professor da UTFPR. E-mail: [email protected] 2 Tecnólogo em Design Gráfico: UTFPR. E-mail: [email protected] 3 Mestre em Educação: Professor da UFPR. E-mail: [email protected] 4 Doutora em Educação. Professora da UFPR. E-mail: [email protected]

Page 2: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9066

Palavras-chave: História em Quadrinhos. Língua de Sinais. SignWriting. Língua de Sinais

Escrita. Narrativas visuais.

Introdução

As pessoas Surdas5 têm o direito ao acesso às possibilidades humanas: a comunicação

simbólica, as interações sociais, a aprendizagem, entre outras, em Língua de Sinais (LS). A

Língua Brasileira de Sinais (Libras), de modalidade visual-espacial, é a LS usada pelas

comunidades Surdas urbanas, brasileiras, capaz de prover funcionalidades linguísticas

complexas aos seus usuário (FERNANDES, 2012). Mais de 90% das crianças Surdas nascem

em famílias de pais ouvintes, e não tem acesso à língua materna oral e, tampouco, à aquisição

da Libras na infância, o que acarreta sérias consequências: no desenvolvimento linguístico,

intelectual, cultural e na cidadania (SKLIAR, 1999). Um processo educacional bilíngue

(BRASIL, 2008), que viabilizasse o acesso e aquisição da Libras, desde a educação infantil,

possibilitaria um desenvolvimento qualitativo semelhante ao de qualquer criança da mesma

faixa etária.

Adicionalmente, a criança Surda tem dificuldades em adquirir um sistema de escrita,

mesmo da língua oral, considerando-se as metodologias existentes enfatizarem relações letra-

som, para ela inacessíveis. O acesso a um sistema de escrita em LS representaria um ganho

significativo nesse processo, pois envolveria aprender um processo de registro de uma língua

visualmente, sem barreiras de ordem fisiológica para sua aprendizagem. Ao contrário do que

se imagina, o registro da LS é possível na forma escrita, e não somente na forma de vídeo, como

se costuma veicular. SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

registro das Línguas de Sinais no mundo, e tem sido ensinado em experiências educacionais

bilíngues (SUTTON, 2006). Os Sistemas de Escrita (i.e. uma sequência de caracteres usados

para representar simbolicamente uma língua) servem de suporte e base para a sociedade

moderna e são considerados um avanço para as LS, oferecendo possibilidades de registro de

sua literatura, preservação cultural, armazenamento e recuperação da informação, ciência,

criação e disseminação de conhecimento, comunicação e outras atividades que as visibilizam

como línguas de cultura.

5 Neste texto, a grafia Surdo/os, Surda/as em letra maiúscula segue uma convenção no campo dos Estudos

Surdos (Deaf Studies) em Educação que diferencia a surdez audiológica (letra minúscula) da experiência cultural

de Ser Surdo como grupo cultural. Do mesmo modo, o uso da letra maiúscula será empregado sempre que se

tratar da representação de produtos culturais das comunidades Surdas.

Page 3: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9067

As crianças Surdas, que teoricamente têm todas as possibilidades de se tornarem leitores

e escritores, não possuem ainda estas competências devido às suas condições sociais, familiares

e até mesmo escolares que restringem suas experiências a processos metodológicos e produtos

culturais pensados e desenvolvidos para crianças que ouvem. Para que possam adquirir a

modalidade escrita da língua, há a necessidade de um desenvolvimento natural da linguagem,

da inteligência e uma imersão de quem aprende nas práticas sociais da língua escrita

(SÁNCHEZ, 1991; HOFFMEISTER, 1999).

São ainda iniciais as experiências e metodologias envolvendo o ensino e a aprendizagem

da escrita de sinais capazes de prover à criança Surda e seus interlocutores com um suporte

educacional adequado (HOFFMEISTER, 1999; GUIMARÃES et al., 2013). Há um acervo

restrito, com poucas publicações registradas em um sistema de escrita de LS, uma situação que

priva a Comunidade Surda de um grande componente de valorização de sua Cultura (SUTTON,

2006), por meio da construção de sua identidade em uma comunidade linguística minoritária

(SKLIAR, 1999). Não se deve mais esperar que a criança Surda tenha sucesso acadêmico no

ensino e aprendizagem por meio da língua oral majoritária, que lhe é inacessível. Um chamado

claro para a criação de ferramentas em LS (JOHNSON, LIDDELL, ERTING, 1989).

O desafio de prover ferramentas para o acesso de SE de sinais para as pessoas Surdas e

seus interlocutores é urgente, e requer uma abordagem inovadora, sob risco de nos depararmos

com uma comunidade inteira sem história escrita. Entendemos que a base da sociedade moderna

é dependente da memória. Para Vygotsky (1974) a leitura deve conter uma miríade de

significados para quem aprende, senão a palavra é apenas um vazio. Para o autor, a

aprendizagem da escrita equivale à aquisição de uma nova linguagem em toda a sua função

social e individual – um letramento que, mais do que o simples ato de ler e escrever, pressupõe

um entendimento e um uso adequado de tais habilidades na sociedade e no contexto em que o

texto está inserido (LODI, 2002).

Assim, nesse trabalho, propõe-se uma abordagem na qual o letramento é um processo

em que a escrita de sinais ocorre em um contexto de uso, por meio de uma narrativa visual

desenvolvida no gênero de História em Quadrinhos (HQ) que utiliza SignWriting como sistema

de escrita da LS. Adicionalmente, apresenta um HQ em Libras como ferramenta de ensino e

aprendizagem que dá autonomia ao Surdo, debatida e avaliada por professores e alunos de um

curso de licenciatura em Letras/Libras.

Page 4: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9068

Língua de Sinais, escrita e leitura

A falta de aquisição na tenra idade da Libras impede a criança Surda de aprender

conceitos cotidianos (MAcNAMARA, 1982). Consequentemente, a criança não aprende a fazer

perguntas para clarificar dúvidas, e assim não formam relações que possam alterar suas

estruturas cognitivas: combinando, comparando, inferindo, deduzindo e extrapolando

conhecimentos antigos e novos, em um processo mental que é mediado pelas experiências

sociais e linguísticas. A língua é mais do que um meio de comunicação (SÁNCHEZ,1991). A

língua inclui uma função reguladora do pensamento e é essencial para o desenvolvimento

intelectual, pois permite criar primeiro conceitos concretos, que depois servirão de bases para

a criação de conceitos abstratos (VYGOTSKY, 1974).

A falta da aquisição da língua materna é uma barreira para o desenvolvimento intelectual

que acarreta consequências severas: a inabilidade de realizar tarefas cotidianos de ações

inteligentes; a inabilidade de aprender e planejar; a dependência única e exclusiva das situações

concretas e visuais; dificuldades de socialização entre outras. As crianças Surdas crescem em

uma realidade em que há pouco material escrito em língua de sinais (LODI, 2002).

Johnson, Liddell e Erting (1989) argumentam que não basta apresentar à criança Surda

conceitos na língua oral e esperar que elas possam criar conceitos na sua própria cultura. Este

modelo monolíngue tem privado as crianças Surda de conquistas mais elevadas quando

comparadas com suas colegas não-Surdas. Já Petito (1994) nos diz que a criança Surda possui

em si e a seu dispor todos os dispositivos, sistemas, capacidades e mecanismos de aquisição de

língua, sobretudo a de sinais. Mas, para que atingir o seu potencial elas devem ser imersas na

LS como língua materna, para que tenham os benefícios do desenvolvimento intelectual. Temos

Cummins (1984) que propõe uma teoria de interdependência – uma interação entre a língua de

instrução e o tipo de competência que a criança desenvolveu em sua língua antes da educação

formal. Os autores Nover e Andrews (1998) nos dizem que à criança Surda deve ser oferecida

a possibilidade de criar seu próprio conhecimento, e o conhecimento em sua própria língua, o

que inclui o uso de um sistema de escrita em língua de sinais. O processo de letramento é

dependente da constituição de seu sentido na língua de sinais.

Se a questão da alfabetização segue sendo objeto de pesquisa e reflexão no campo de

aquisição da modalidade escrita da língua oral como segunda língua por aprendizes surdos (L2),

fazemos ideia dos complexos desafios das reflexões envolvendo a aquisição, ensino e

aprendizagem da escrita em língua de sinais (FERNANDES, 2006). Apesar da temática da

Page 5: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9069

aquisição da escrita ser recorrente e de diversas experiências serem desenvolvidas em

decorrência das políticas de inclusão de Surdos em salas regulares, os níveis de aprendizado e

desenvolvimento continuam aquém do esperado e inferior ao das crianças não-Surdas (ALLEN,

1986). Para a pessoa Surda, a premissa de um ambiente de letramento que potencialize o contato

com os símbolos da escrita não se aplica.

Fernandes (2006) pontua que, ao se discutir práticas de letramento na educação de

Surdos, temos como duplo desafio promover práticas que permitam a aquisição e

desenvolvimento da língua de sinais, como língua materna, além da vivência de experiências

que possibilitem a apropriação de um sistema de escrita pelas crianças Surdas pela via visual,

e não oral-auditiva como ocorre com as demais crianças. Dito de outra forma, a incursão no

mundo da escrita não se dará pela oralidade, mas por processos visuais de significação que têm

na língua de sinais seu principal elemento fundador.

A inserção social da língua materna inicia o processo de desenvolvimento intelectual da

criança e é, portanto, essencial que cada criança traga para o letramento a sua própria

experiência nas vivências de letramento na infância. Para fazer uso de tais experiências, o

educador deve entender a maneira em que a criança aprende não somente as matérias de uma

determinada disciplina, mas deve buscar também saber como ela se apropria de seus

componentes sociais, culturais e linguísticos (CAGLIARI, 1989).

O ambiente de aprendizagem deve fazer sentido e apresentar um contexto, de forma que

sirva para a criação coletiva do texto cotidiano, que eventualmente se tornará simbólico. O

letramento ocorre nas interações mediadas, e a compreensão e o entendimento estão no uso do

texto – não são meras fragmentações das palavras, as quais, fora de contexto, não fazem sentido

– o que nos trás as várias possibilidades de aprendizagem de leitura e escrita. Concordamos

com Schneuwly (2002) quando nos diz da “sedimentação” no sentido dado por Vygotsky

(1974): o comportamento humano é sedimentado em camadas sucessivas nas quais as novas

são construídas com base nas anteriores. Isto pode ser construído com narrativas visuais. Então,

antes das letras, o primeiro conhecimento é o da palavra: o texto e o contexto são pertinentes à

cultura em que a criança se encontra. Procede-se então a uma ampliação de visão de mundo, e

a habilidade da criança sentir, pensar e agir sobre este mundo.

Os Surdos se apropriam do conhecimento prioritariamente pela experiência visual.

Assim, um ambiente de letramento deve oportunizar atividades de leitura, principalmente na

fase inicial, contextualizadas em referências visuais, em que a Língua de Sinais tem destaque,

na compreensão dos sentidos mobilizados pelo texto. A leitura de imagens conduzirá o processo

Page 6: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9070

de reflexão e de inferências sobre a leitura da palavra, por meio da mediação da língua de sinais

como língua materna (FERNANDES, 2006)

As narrativas visuais são um caminho comum a ser trilhado, seja por crianças Surdas,

ou não. Há, no entanto, diferenças decorrentes da forma de apropriação do sentido mediado

pela palavra. A narrativa visual proposta em HQ não apresenta texto da língua oral – apresenta

o personagem falando em língua de sinais, e o SignWriting. O sistema de escrita se difere do

desenho pela associação simbólica que a criança Surda faz do sinal com a sua forma grafada.

Assim, o desenho é algo no mundo sobre o qual se podem tecer comentários. Já quando as

grafias representam possibilidades de significados linguísticos, a criança que escreve e lê

desenvolve uma intencionalidade, um ponto crucial no letramento, segundo Ferreiro e

Teberosky (2008). Estes autores nos dizem que a aquisição da leitura e da escrita são mais

relacionadas à cultura, deixando claro que o processo de apropriação da língua escrita formal

ocorre nas práticas sociais com o mundo de leitura e escrita, no mundo das história lidas,

contadas – o que nos leva a propor uma metodologia de contexto de língua, conforme

apresentado mais adiante.

Importância de um sistema de escrita para a Língua de Sinais

Sistemas de escrita servem para várias funções: eles reproduzem a fala, pensamentos e

conceitos abstratos. Eles são as ferramentas humanas de conhecimento, necessários para o

desenvolvimento da ciência, disseminação da informação, permitem a expressão de conceitos

abstratos, dos sonhos; eles estão enraizados na necessidade humana de se comunicar no tempo

e no espaço; eles ajudam a organizar nossas vidas, registrar pensamentos, sentimentos,

descobertas – a escrita preenche funções humanas e significados específicos que requerem

ações analíticas deliberadas capazes de construir uma estrutura interna. Mais do que transmitir

ideias, a escrita transmite nossa maneira de ver, sentir, interpretar e pensar o mundo (STUMPF,

2005).

Escrita e leitura são processos inter-relacionados – quem lê deve, inicialmente,

reconhecer o código necessário para a escrita. Uma das habilidades da leitura é a de poder

decodificar o sistema de escrita. A aquisição deste código é contingente no fato do leitor se

considerar escritor, segundo Ferreiro e Teberosky (2008). Portanto, temos a necessidade de um

sistema de escrita para as línguas de sinais que esteja em relação direta com o processo de

pensamento da pessoa Surda. Tal visão do processo é usualmente associada à alfabetização:

Page 7: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9071

“[...] condition nécessaire, bien que non suffisante, de la comprehension des textes [...]”6,um

passo que não se produz sem instruções explícitas, um processo que tem implicações positivas

na aprendizagem da escrita. Porém, considera-se que não faz sentido uma alfabetização que

não seja também letramento – que venha em forma de um conhecimento cultural compartilhado,

uma das formas que a pessoa Surda tem de buscar a sua inclusão social e seus direitos básicos

de cidadania (OBSERVATOIRE NATIONAL DE LA LECTURE, 1998).

Há um equívoco ao se pensar que as línguas de sinais não possuem um sistema de

escrita, e que pouco se pode ganhar com o seu uso pelas crianças Surdas que falam Libras. A

Libras é um sistema linguístico completo de modalidade visual-espacial, e requer um sistema

de escrita adequado, capaz de mapear as propriedades da língua de sinais e o desafio de tentar

representar linearmente uma língua tridimensional. Portanto, pode-se pensar que a aquisição de

um sistema de escrita e o letramento são processos interconectados: a alfabetização deve se

desenvolver no contexto de uso e de significados de práticas sociais de leitura e escrita, ou seja,

de atividades de letramento, em um processo e um comportamento social valorizado. O uso de

um sistema de escrita adequado para as línguas de sinais é um processo que aumenta as

habilidades linguísticas e cognitivas, promovendo assim uma valorização da identidade e da

Cultura Surda.

Há alguns sistemas de escrita propostos para as línguas de sinais tais como Mimographie

notation (BÉBIAN, 1825); Stokoe notation (STOKOE, 1960); D’Sign (JOUISON, 1995); Neve

notation (NEVE, 1982); HamNoSys (HANKE, 2004); SignWriting (SUTTON, 2006); no Brasil

temos a Escrita das Línguas de Sinais - Elis (BARROS, 2008), o Sistema de Escrita para Libras

- SEL (LESSA-DE-OLIVEIRA, 2012) entre outros. Apesar dessas possibilidades de registro,

por ser de uso universal, o SignWriting é o sistema sobre o qual focaremos nossos estudos.

No âmbito pedagógico, o debate situa-se nas especificidades do processo de

alfabetização dos surdos, já que a escrita de sinais constituiria um elemento mediador na

apropriação da escrita alfabética, posto que o aprendizado do português pelos estudantes surdos

tem como premissa que a constituição dos sentidos na escrita decorrerá de processos simbólicos

visuais, nos quais a mediação da língua de sinais assume centralidade. Esse pressuposto

demanda um processo metodológico que difere dos encaminhamentos adotados no ensino de

português como língua materna, os quais se pautam nas relações entre fonema-grafema pelos

falantes nativos.

6 Tradução livre: “[…] condição necessária, embora não suficiente, da compreensão dos textos […]”.

Page 8: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9072

São significativos os estudos desenvolvidos em diferentes países sobre as

especificidades do processo de letramento dos surdos (SÁNCHEZ, 1991; HOFFMEISTER,

1999; FERNANDES, 2006), os quais propõem desconsiderar o domínio das relações letra-som

como pressuposto para o acesso à escrita. Para os pesquisadores, a questão é simples: admitir a

língua de sinais como simbolismo mediador no aprendizado da escrita e adotar

encaminhamentos metodológicos utilizadas no ensino de segundas línguas para estrangeiros

possibilitará a inserção dos surdos em práticas de letramento, nos mesmos moldes dos demais

estudantes. Ler sem estar “alfabetizado” corresponde à realidade de sujeitos que tem uma língua

não-alfabética como língua materna e dominam a escrita de uma segunda língua alfabética,

ainda que não se comuniquem oralmente por meio dela (FERNANDES, 2006).

Nesse sentido, o sistema de escrita visual direta SignWriting representa um elemento

mediador entre a primeira língua, a Língua de Sinais, e a escrita alfabética do português como

segunda língua, contribuindo para a complexificação das funções psicológicas superiores

(memória, abstração, generalização, metalinguagem etc.) das crianças surdas, bem como

potencializando seu letramento. Em que pesem os inúmeras aspectos positivos relativos à

acessibilidade e inclusão que a sistematização e difusão de um sistema de escrita da língua de

sinais para a comunidade surda brasileira oportunizaria, são ainda precárias as publicações e

suportes informacionais registrados em SignWriting.

Do ponto de vista dos suportes informacionais que veiculam o SignWriting, há total

carência e precariedade de produtos. Justifica-se, desse modo, a criação de narrativa visual, do

gênero história em quadrinhos que contempla sinais em Libras, para a aquisição da escrita da

língua de sinais, por se tratar de um recurso inovador como processo intermediário na aquisição

da escrita alfabética pelos surdos. A narrativa visual possibilita o estabelecimento de novas

relações para a construção do conhecimento e novas formas de atividade mental, considerando-

se o potencial dos meios eletrônicos de informação e comunicação, para complementar e

aperfeiçoar o processo de ensino e aprendizagem de estudantes surdos.

SignWriting

O trabalho de Stokoe (1960) foi pioneiro em identificar alguns parâmetros das línguas

de sinais, tais como configuração de mão, contato (locação), orientação da palma da mão,

movimentos locais e globais e expressões não manuais. Por sua vez, Sutton (2006), em meados

dos anos 70, propôs o SignWriting como um sistema de escrita para as línguas de sinais, que

vem sido adotado no mundo inteiro. Esses elementos constitutivos do sinal, articulados com as

Page 9: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9073

mãos, olhos, partes do corpo, ocupam o espaço tridimensional, de forma simultânea. Assim, o

grande desafio do registro escrito repousa na forma de representação de cada um desses

elementos no espaço, já que não se apresentam de forma linear como os signos acústicos das

línguas orais. O SignWriting preserva as características tridimensionais das línguas de sinais ao

contemplar várias representações para os diversos parâmetros da fonologia proposta por Stokoe

(1960). A figura 1 nos mostra uma configuração de mão em três orientações diferentes. Alguns

dos símbolos são icônicos, e permitem uma melhor associação com o sinal representado.

Figura 1 – Exemplo de SignWriting: configuração de mão à direita e o símbolo correspondente à esquerda.

Fonte: Sutton (2006).

Conforme vimos na Figura 1, o SignWriting se adequa à representação das línguas orais,

quaisquer que sejam elas. Mas, apesar dos diversos aspectos relacionados à acessibilidade e

inclusão que uma sistematização e disseminação de um sistema de escritas em língua de sinais

possa trazer para a pessoa Surda, há poucas publicações em escrita de sinal, e menos ainda

textos, ferramentas e metodologias em SignWriting, sendo os mesmos considerados precários

(STUMPF, 2005).

Stumpf (2005) nos mostra que o SignWriting é, para o surdo, visualmente fonético;

permite operações metalinguísticas em relação à Libras; permite a transmissão direta do

pensamento para a escrita; é mais espontâneo e coerente; fortalece a autoestima; ajuda a

construir a identidade Surda; é limitado apenas pela sofisticação da pessoa que vai usar. O

desafio de introduzir a escrita na escola é grande, pois há uma carência de material adequado;

e a autora conclui que o uso de um sistema de escrita em língua de sinais é um marco importante

na educação do Surdo.

Page 10: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9074

Narrativa Visual: a História em Quadrinhos em Libras

As HQs fazem parte de nosso cotidiano, e têm sido usadas para divulgar e produzir

cultura e conhecimento. Quando as HQs são usadas como ferramentas pedagógicas, elas

deixam de ser apenas ilustrativa ou um meio de diversão, tornando-se uma maneira de melhorar

a compreensão e de tornar o processo de ensino e aprendizagem mais prazeroso. Considera-se

que uma HQ se caracteriza pelo uso de balões com texto, mas a maioria contém textos da língua

oral (GOMES e GOMES, 2015). Porém, sendo a língua de sinais de modalidade visual espacial,

ela se adequa ao gênero, uma vez que a sinalização pode ser representada visualmente – e esta

é a base da ferramenta proposta: HQ em Libras para ensino de SignWriting.

Pensando a Libras em seus aspectos de enunciação e discurso, a compreendemos como

atividade social, histórica e cognitiva, com papel comunicacional, e escolhemos o gênero HQ

para apresentar o sistema de escrita a ser aprendido (OLIVEIRA e BRANCO, 2015). Toppel,

Camargo e Chicória (2015, p. 10581) apontam uma série de vantagens do uso de HQ para o

ensino de Física, por exemplo: “[...] a facilidade de leitura, a forma de disposição quadrinizada,

os desenhos ilustrativos e o enredo tornam as HQs uma leitura divertida e ao mesmo tempo um

estímulo para o conhecimento”. O HQ em nossa proposta poderia ser classificada pelos autores

como sendo Construtivista, uma vez que foi desenvolvida para levar conhecimento ao aprendiz.

Este uso é fundamental para a autonomia da pessoa Surda, que pode aprender de maneira

divertida, criando o seu conhecimento.

Guimarães, Guardezi e Fernandes (2014), apresentam um framework computacional em

que o sinal é associado ao contexto lexical pela iconicidade, e o contexto semântico por meio

de vídeos, em um contexto de aprendizagem. O sistema proposto aqui segue esta orientação

pedagógica, em que o contexto é apresentado por meio de uma narrativa visual, que acompanha

o personagem até uma situação real de sinalização na Língua de Sinais. É feita uma

sobreposição dos símbolos relacionados do SignWriting no sinal. A narrativa visual é feita sob

a forma de ilustração em HQ desenvolvida em Libras (BONGCO, 2000). Para efeitos deste

artigo, iremos apresentar apenas recortes da narrativa, pontuando aspectos significativos para a

compreensão dos objetivos do material proposto que apresenta como procedimentos: o

estabelecimento do contexto e situação comunicacional, apresentação do sinal/enunciação em

Libras, elementos composicionais do SignWriting e atividades de escrita de sinais.

Em nosso material, a narrativa se inicia com um robô (ainda misterioso, pois não se

sabe de onde ele veio, onde ele está, o que está fazendo; seria o robô uma ameaça? Teria sido

Page 11: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9075

enviado por conhecidos? Seria hostil? etc.). Todos estes elementos da narrativa compõem o que

Sutton-Spence e Kaneko (2016) chamariam de Literatura Surda: uma literatura de efeito

estético, em LS, possuidora de uma estética visual, que possa representar e valorizar aspectos

da cultura visual. Na Figura 2, vemos que o robô vem do espaço (não se sabe se retornando, ou

se enviado por outras civilizações) mas vemos que assim que pousa ele permanece imóvel.

Figura 2 – Ilustração da História que apresenta um personagem Robô vindo do espaço.

Fonte: Os Autores.

Devido às circunstâncias externas (a queda de uma pinha), apresentado parcialmente

na figura 3, o robô é ativado, e inicia a sua jornada.

Figura 3 – Ilustração da História que apresenta um personagem.

Fonte: Os Autores.

Note-se que até este momento, nenhum texto escrito foi utilizado. Os recursos são

totalmente visuais não-verbais. O robô se reconfigura, e começa a caminhar (também ainda não

se sabe se em busca de algo específico, ou se de forma aleatória), até que chega ao Santuário

das Borboletas, mostrado na Figura 4 (permanece o mistério: o que vem a ser este santuário,

quem o construiu, para que serve?). Este local parece dedicado à preservação das borboletas

Page 12: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9076

(mas ainda persiste o mistério sobre a importância deste local. O próprio monumento do local

é uma representação estática do que seria o sinal em Libras para BORBOLETA7.

Figura 4 - O Santuário das Borboletas.

Fonte: Os Autores.

Neste momento, ao ver a borboleta, o robô reconhece em suas mãos o sinal representado

pelo monumento, sinaliza BORBOLETA em Libras e envia a mensagem para seus

interlocutores (ainda não se sabe para quem o robô está sinalizando) conforme a figura 5.

Figura 5 – O SignWriting sobreposto à mão; robô sinalizando BORBOLETA.

Fonte: Os Autores.

A partir daí, o SignWriting é apresentado, conforme a figura 6, e pode-se então, de forma

direcionada, reconhecer a escrita no próprio ato de sinalizar – considerando que o sinal

selecionado tem a característica icônica que permite associar escrita e imagem sobrepostas.

Vemos, na Figura 6, o sinal BORBOLETA e sua escrita em SignWriting. Em seguida é

7 Seguindo convenção de glosa adotada por Felipe (2007), os sinais em Libras serão grafados em caixa-alta.

Page 13: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9077

proposta a atividade de prática do traçado da configuração de mão na escrita, a partir desse

contexto narrativo. Os dois diacríticos que acompanham a configuração de mão (^^ e +)

representam o movimento das asas da borboleta e o tipo de toque, respectivamente no sistema

SignWriting.

Figura 6 – O Monumento, o sinal e a escrita de BORBOLETA em língua de sinais.

Fonte: Os Autores.

À medida que a história vai se desenvolvendo, novos personagens vão surgindo, bem

como novas situações comunicacionais com enunciados mais extensos, conforme podemos ver

na Figura 6, em que o robô vê uma borboleta amarela no meio das outras borboletas azuis, e

sinaliza A BORBOLETA AMARELA É BONITA para seus interlocutores. Novamente a

metodologia apresenta o SignWriting equivalente, e convida a criança leitora/escritora a fazer

sentido do código usado, aprendendo assim os fundamentos da escrita, praticando a escrita

proposta.

Figura 6 – A borboleta amarela é bonita – em Libras.

Page 14: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9078

Fonte: Os Autores.

Nos estudos realizados para a validação desse material, seguimos Dolz e Schneuwly

(2004), a perspectiva multi/interdisciplinar foi efetivada pela participação de profissionais

especialistas em Línguas de Sinais (professor surdo, linguista bilíngue), tecnólogo em desenho

gráfico e pesquisador/professor na área da Ciência de Computação, cuja abordagem teórico-

metodológica fosse consistente do ponto de vista da interlocução efetiva com a literatura na

área, cumprindo o critério de relevância social e abordagem inovadora do objeto em estudo.

Além disso, foram realizadas reuniões com psicólogas, pedagogas, professores e alunos Surdos,

no âmbito de um curso de Letras Libras, a fim de que o material fosse qualitativamente

analisado , considerando sua importância e aplicabilidade no ensino da Libras no contexto

escolar de crianças surdas.

Como aspectos positivos da avaliação, foram destacadas a HQ como estratégia

pedagógica adequada para o contexto de escolarização de crianças e jovens surdos, o fato de o

personagem robô falar Língua de Sinais, e a estratégia do uso de sinais icônicos para a

representação das primeiras lições de SignWriting, complementadas com enunciados

contextualmente significativos na narrativa visual. As atividades de prática do traçado da escrita

em SignWriting também foram consideradas fáceis e adequadas à faixa etária.

A partir dessa validação, as próximas etapas da pesquisa preveem a validação em

diferentes grupos de controle (crianças Surdas, acadêmicos do Letras Libras, professores de

Libras), analisando detalhadamente a aplicabilidade dos princípios teórico-metodológicos

pressupostos na investigação.

Page 15: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9079

Considerações Finais

A questão da alfabetização/letramento de Surdos em Língua de Sinais é uma temática

que ainda se encontra em aberto no campo aplicado. É inegável a necessidade de um sistema

de escrita para as Línguas de Sinais e o SignWriting é o sistema de escrita com maior difusão e

uso, atualmente, no cenário nacional e internacional da educação de Surdos. Contudo, há uma

carência de trabalhos que pesquisem abordagens metodológicas para o ensino e a aprendizagem

pela pessoa Surda em contextos de letramento bilíngue, ou seja, que levem em consideração a

Libras como língua materna.

Assim, esta pesquisa propõe a criação de um encaminhamento metodológico que se vale

da narrativa visual, por meio da História em Quadrinhos como gênero para apresentar um

sistema de escrita da Língua de Sinais às crianças Surdas. A Língua de Sinais é apresentada em

um contexto (fictício, no exemplo), de forma visual, com o SignWriting contemplado na

ilustração, sobrepondo-se e acompanhando o sinal/palavra/enunciado da língua, possibilitando

associações simbólicas entre os parâmetros constitutivos da Libras sinalizada (configuração de

mãos, movimento, orientação de mãos...) aos grafemas de sistema de escrita.

Neste novo universo proposto, por meio da criação de uma narrativa visual que integra

a Literatura Surda, Surdos e demais membros da comunidade assumem a perspectiva de

leitores/escritores, contribuindo para a criação coletiva de outros materiais que valorizem a

Língua de Sinais como língua de Cultura.

A narrativa visual, suas formas de apresentar a história e o uso da língua de sinais, bem

como a metodologia pedagógica proposta para o ensino do SignWriting, planejada e discutida

com membros da comunidade surda, conhecedores do SignWriting, foi abraçada e aprovada

como ferramenta que faz avançar o estado da arte no ensino e na aprendizagem da escrita de

sinais.

Certamente, uma proposta como esta deve cumprir as exigências de rigor técnico-

científico e passar por rigorosos testes de validação, por um longo período de tempo, que

permitirão apreender reflexões e possíveis mudanças no produto final. A incorporação de

testagem em participantes que não utilizam Libras como língua materna e, tampouco,

conhecessem o SignWriting, permitirá ampliar o escopo de variáveis de análise quanto ao

processo de aquisição da escrita de sinais que permitissem observar aspectos relativos à

abstração e generalização da proposta. Estas e outras questões integram nossa problemática de

pesquisa em trabalhos futuros.

Page 16: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9080

REFERÊNCIAS

ALLEN, T. Patterns of academic achievement among hearing impaired students. In:

SCHILDROTH, A., KARCHMER, M. (Eds.) Deaf children in America. p. 161- 205. San

Francisco, C.A.: College-Hill Press. 1986. P. 161-205.

BARROS, M. E. ELIS – Escrita das Línguas de Sinais: proposta teórica e verificação

prática. 2008. 192 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Comunicação e

Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

BÉBIAN, R. C. Mimographie, or essai d’écriture mimique. Paris, 1825. Disponível em:

<http://www.culturasorda.eu/resources/Bebian_mimographie/1825.pdf>. Acesso em 10 maio

de 2017.

BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.

Brasília, DF: MEC, 2008.

BONGCO, M. Reading Comics: language, culture and the concepto of the superhero in

comic books. New York, N.Y.: Routledge, 2000.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo, S.P.: Scipione, 1989.

CUMMINS, J. Bilingual Education and Special Education: Issues in Assessment and

Pedagogy. San Diego: College, Hill. 1984.

DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de

Letras, 2004.

FELIPE, T. Libras em Contexto: curso básico, livro do estudante. Rio de Janeiro: Wallprint

Gráfica e Editora, 2007.

FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba:

SEED, 2006.

FERNANDES, S. F. Educação dos Surdos. Curitiba, Paraná: IBPEX. 2012.

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Art Med,

2008.

GOMES, H. J. P.; GOMES, S. R. P. História em quadrinhos como ferramenta para o ensino

de evolução nos anos finais do ensino fundamental. In: Congresso Nacional de Educação

(Educere) 12. 2015, Curitiba. Anais do EDUCERE 12. Curitiba: PUCPR EDUCERE 12 ,

2015. p. 6818—6830.

GUIMARÃES, Cayley. et al., “Pedagogical Architecture – Internet Artifacts for Bilingualism

of the Deaf (Sign Language/Portuguese). In: Congresso HICSS, 46, 2013, Havaí. Anais do

46th IEEE/HICSS. Kona, Havaí: IEEE, 2013. p. 40-49.

Page 17: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9081

GUIMARÃES, C.; GUARDEZI, J. F.; FERNANDES, S. F. Sign Language Writing

Acquisition – technology for a writing system. In: Congresso HICSS, 47, 2014, Havaí. Anais

do 47th IEEE/HICSS. Havaí: IEEE, 2014. P. 120—129.

HANKE, T. HamNoSys: representing sign language data in language resources and language

processing contexts. Lisboa, 2004. In: STREITER, O. e VETTORI, C. (Eds.): LREC’04:

Representation and processing of sign languages. Paris: ELRA. 2004. P. 1-7.

HOFFMEISTER, R., Famílias, crianças surdas, o mundo dos surdos e os profissionais de

audiologia, In: SKLIAR, C. (Org.) Atualidade da educação bilíngue para surdos. V. 2.

Porto Alegre: Mediação. 1999.

JONHSON, R.; LIDDELL, S.; ERTING, C. Unlocking the curriculum: Principles for

achieving access in deaf education. Washington, DC: Gallaudet University Research Institute.

1989.

JOUISON, P. Écrits sur la langue des signes française. Paris: Harmattan.1995.

LESSA-DE-OLIVEIRA, A.S.C. Libras escrita. Revista Virtual de Estudos da Linguagem,

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, v.10, n.19. p. 150-184. 2012. Disponível em:

<http://revel.inf.br> Acesso em 10 maio 2017.

LODI, A.C.B. Letramento e minorias. Porto Alegre: Mediação. 2002.

MAcNAMARA, J. Names for things: a study of human learning. Cambridge, MA: The MIT

Press. 1982.

NEVE, F.-X. Phonologie or gestematique des langue de signes des sourds: gestèmes,

allogestes et neutralisations? La Linguistic. v.28, 1982. p. 69—93.

NOVER, S.; ANDREWS, J. Critical pedagogy in deaf education: Bilingual methodology

and staff development. New Mexico: New Mexico School for the Deaf. 1998.

OBSERVATOIRE NATIONAL DE LA LECTURE. Apprendre à lire au cycle des

apprentissages fondamentaux. Ministère de l’Éducation Nationale de la Recherche et de la

Technologie, Éditions Odile Jacob, Paris, 1998.

OLIVEIRA, H. R. A.; BRANCO, V. Práticas de leitura no 3o ano do ensino fundamental: a

sequência didática no trabalho com o gênero histórias em quadrinhos. 2015. In: Congresso

Nacional de Educação (Educere) 12. Anais Educere 12. Curitiba: PUCPR. 2015 p. 8270—

8283.

PETITO, L. On the equipotentiality of signed and spoken language in early language

ontogeny. In: SNIDER, D.D. Post Milan. ASL and English literacy: issues, trends and

research. 1994. Washington, D.C.: Gallaudet University College of Continuing Education.

1994. P. 195.223.

Page 18: NARRATIVAS VISUAIS: HISTÓRIA EM QUADRINHOS COMO …educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24841_12328.pdf · SignWriting, criado por Sutton, é o sistema de escrita mais usado para

9082

SÁNCHEZ, Carlos. La educación de los sordos en un modelo bilíngue. Mérida: Diakona.

1991.

SCHNEUWLY, B. L’ecriture et son apprentissage: le point de vue de la didactique: elements

de synthèse. Repères - recherches en didactique du français langue maternelle. 2002. V.

26, n. 1. P. 317-329.

SKLIAR, Carlos. Atualidade de educação bilíngue para Surdos. Porto Alegre: Mediação.

1999.

STUMPF, M.R., Aprendizagem de escrita de língua de sinais pelo sistema SignWriting.

Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. Porto

Alegre: UFRGS. 2005.

STOKOE, W.C., Sign Language structure. Silver Spring. CO: Linstok Press. 1960.

SUTTON, V. Lessons in SignWriting. La Jolla, CA. 2006. Disponível em:

<http://www.signwriting.org> Acesso em 10 maio de 2017

SUTTON-SPENCE, R.; KANEKO, M. Introducing Sign Language Literature. London:

Palgrave. 2016.

TOPPEL, A.; CAMARGO, S.; CHICÓRIA, T. Analisando as propostas didáticas que

utilizam as histórias em quadrinhos para o ensino de física na educação básica. 2015. In:

Anais Educere 12. Curitiba: PUCPR. 2015. p. 10579—10592.

VYGOTSKY, L.S. Mind in society: the development of higher psychological processes.

Boston, M.A.: Harvard University Press, 1974.