artigo por amor ao traco -um ligeitura de memorias do cego de derrida

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artigo por amor ao traço derrida

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  • taca 19 Edio Especial Por amor ao trao: uma leitura de Memrias de Cego

    Maria Continentino Freire 186

    Por amor ao trao: uma leitura de "Memrias de

    Cego"

    In love with the trace: a reading of Memoirs of the Blind

    Maria Continentino Freire

    doutoranda em filosofia pela PUC-Rio

    bolsista CNPQ

    Resumo: Este texto uma leitura de Memrias de cego de Jacques Derrida, livro que foi publicado na Frana pela primeira vez por

    ocasio de uma exposio de mesmo nome organizada pelo filsofo,

    no museu do Louvre, entre outubro de 1990 e janeiro de 1991. A

    exposio e o texto de Derrida partem do tema da cegueira mostrando

    como tanto o desenho como a escrita so marcados por um intrnseco

    no ver que deixa ver.

    Palavras-chave: Derrida; cegueira; trao; escrita, desenho.

    Abstract: This text is a reading of Jacques Derridas Memoirs of the blind. The book was first published in France as a catalogue of an exhibition with the same name organized by Derrida and shown in

    Louvre museum from October of 1990 to January of 1991. Derridas exhibition and text start from the theme of blindness, letting see how

    drawing, as much as writing, comes from a certain impossibility of the

    gaze.

    Keywords: Derrida, blindness, trace, writing, drawing.

  • taca 19 Edio Especial Por amor ao trao: uma leitura de Memrias de Cego

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    De outubro de 1990 a janeiro de 1991 foi exibida no

    museu do Louvre, em Paris, a primeira de uma srie de

    exposies chamada partis-pris em que o museu convidava uma

    pessoa que no fosse diretamente ligada s artes plsticas, mas

    que, de algum modo, tivesse relao com um discurso crtico,

    para assumir a curadoria e propor uma exposio a partir de seu

    acervo. O filsofo Jacques Derrida estreiou essa srie com a

    exposio denominada por ele Memrias de cego: o auto-

    retrato e outras runas, cujo catlogo traz um texto, sobre o

    qual, proponho aqui uma leitura.

    O texto de Derrida vai muito alm de guiar o visitante

    ou o leitor do catlogo de obra a obra, apenas como um fio

    condutor na demonstrao dos desenhos que compem a

    exposio. O texto escrito no aparece aqui como suplemento

    de menor importncia em relao ao desenho. Pelo contrrio,

    num gesto tipicamente derridiano de valorizao do

    suplemento, ele mostra como que uma necessidade de

    suplementariedade de trao a trao, do desenho escrita,

    tecendo entre os dois uma declarao de amor ao que parece ser

    "comum" a eles: o carter grfico, sua possibilidade de

    impresso, de marca, de rastro, numa palavra: de escritura.

    A montagem de Derrida composta apenas por

    desenhos que, de alguma forma, trazem luz o tema da

    cegueira, construindo, assim, uma narrativa da perspectiva

    derridiana: uma desconstruo da certeza do olhar e do olhar

    como fonte de certeza, enxerto de um ponto cego em toda

    perspectiva e, portanto, de uma dvida, uma suspeita, no

    corao de toda tese. Segundo o filsofo, haveria em todo ponto

    de vista (point de vue) uma espcie de vista nenhuma (point de

    vue), um invisvel constituinte de toda viso. A expresso

    francesa usada por Derrida point de vue, j possui, nela mesma,

    essa dupla possibilidade de leitura, indecidvel, que tanto se

    pode entender como um ponto de vista, uma perspectiva, quanto

    como uma falta de viso, um nada a ver. Desse modo, entre os

    desenhos e as palavras, Derrida vai apresentando suas hipteses

    de trabalho: para ele, o desenho tem algo a ver com a cegueira,

  • taca 19 Edio Especial Por amor ao trao: uma leitura de Memrias de Cego

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    hiptese que ele chama de "abocular", sem os olhos. Nela "h

    que entender isto: o cego pode ser um vidente, tem por vezes

    vocao de um visionrio"1, em outras palavras, todo

    desenhador seria um cego visionrio na medida em que d a ver

    a partir do que no v, a partir de uma falta de modelo que

    nunca est plenamente presente diante de seus olhos. Para

    completar esta hiptese abocular, Derrida lana uma segunda

    que chama de "auto-retrato" do desenho, afirmando que "um

    desenho de cego um desenho de cego"2, ou seja, que um

    desenho que tematiza a cegueira sempre um desenho feito por

    um cego, revelando, assim, o que seria a condio de todo

    desenho:

    Duplo genitivo. No h aqui nenhuma

    tautologia, mas uma fatalidade do auto-

    retrato. De cada vez que um desenhador se

    deixa fascinar pelo cego, de cada vez que ele

    faz do cego um tema do seu desenho, projeta,

    sonha ou alucina uma figura de desenhador

    (...). Mais precisamente ainda, comea a

    representar uma potncia desenhadora a

    operar, o prprio ato do desenho. Inventa o

    desenho. (...) Subttulo ento de todas as

    cenas de cego: a origem do desenho. Ou, se

    preferirem, o pensamento do desenho.

    (DERRIDA, 2010, p. 10).

    Estas duas hipteses do desenho lanadas logo no

    incio do texto, servem, segundo Derrida, como antenas para

    orient-lo na errncia do pensamento. Como as mos de um

    cego adiantadas ao resto do corpo, tateando no escuro, como

    que enviadas frente em reconhecimento para proteger da

    queda, do acidente, esta reflexo do desenho tambm se

    inscreve num tatear.

    1 DERRIDA, 2010, p. 10. 2 DERRIDA, 2010, p. 10.

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    A desconstruo da plenitude do olhar no pretende

    eleger um outro sentido mais adequado para substituir os olhos

    na aventura do pensamento, mas sim, mostrar a necessidade de

    suplementariedade dos sentidos e a falta de uma orientao

    precisa, segura, neste percurso. Assumindo o risco da queda, as

    mos adiantadas ao corpo no gesto da inscrio o prprio

    retrato da inveno do pensamento.

    Retomando um pouco o fio "auto-biogrfico" de

    Derrida na narrativa da composio desta exposio,

    importante observar que na data em que ocorreria a primeira

    reunio com os responsveis do museu, o filsofo estava

    sofrendo, j h alguns dias, de uma paralisia facial de origem

    viral dita a frigore que ele descreve assim: "desfigurao, o

    nervo facial inflamado, o lado esquerdo do rosto atingido de

    rigidez, o olho esquerdo fixo e terrvel de se ver num espelho, a

    plpebra no se fecha mais normalmente: privao da piscadela

    do olho, logo deste instante de cegamento que assegura vista

    sua respirao"3. Depois de duas semanas de intensa vigilncia

    e inspeo mdica, Derrida est curado: "sentimento de

    converso ou ressurreio, a plpebra pestaneja de novo, mas o

    meu rosto permanece assombrado por um fantasma de

    desfigurao"4. nesse estado que acontece, ento, a primeira

    reunio no Louvre. Na volta pra casa, ainda no carro, impe-se

    a ele o tema da exposio. Rabisca, sem ver, em um pedao de

    papel ao seu lado, enquanto dirige, um ttulo provisrio para

    ordenar suas notas "L'ouvre o ne pas voir", "Louvre onde no

    ver" que tambm se pode entender em francs como "o aberto

    onde no ver" e, ainda, por uma proximidade fnica, "a obra

    onde no ver". Quando chega em casa, esse ttulo se torna um

    cone, uma janela a "abrir" na tela de seu computador.

    Dessa experincia de escrever sem ver, to recorrente

    e que acabava de lhe acontecer no carro, Derrida aproveita para

    3 DERRIDA, 2010, p. 39. 4 DERRIDA, 2010, p. 39.

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    tom-la como exemplo da experincia de toda escrita e de todo

    trao:

    O que que se passa quando se escreve sem

    ver? uma mo de cego aventura-se solitria ou

    dissociada, num espao mal delimitado, tateia,

    apalpa, acaricia tanto quanto inscreve, fia-se

    na memria dos fios e suplementa a vista,

    como se um olho sem plpebra se abrisse na

    ponta dos dedos: o olho a mais acaba de brotar

    rente unha, um nico olho, um olho de

    zarolho ou de ciclope e dirige o traado -

    uma lmpada de mineiro na ponta da escrita,

    um substituto curioso e vigilante, a prtese de

    um vidente ele mesmo invisvel. Do

    movimento das letras, do que assim inscreve

    este olho no dedo, a imagem esboa-se sem

    dvida em mim. A partir do retraimento

    absoluto de um centro de comando invisvel,

    um poder oculto assegura distncia uma

    espcie de sinergia que coordena as

    possibilidades de ver, de tocar e de mover. E

    de ouvir e entender, porque so j palavras de

    cego que eu assim desenho. (DERRIDA, 2010,

    p 11 e 12).

    Da mesma forma, quando se desenha, mesmo que se

    tenha o modelo disposio, h que se fazer uma escolha do

    ponto de vista: ou bem se olha para o modelo e no se v o que

    se est traando, ou se olha para o desenho e perde-se o modelo

    de vista. Desse modo, pode-se dizer que o trao est sempre em

    memria, endividado, num louco desejo de guardar a

    singularidade da viso fantasmtica. Por isso, pode-se dizer que

    h, na origem desse endividamento do trao, como estamos

    vendo, uma desconstruo da prpria percepo. Para Derrida, a

    percepo est j na ordem da recordao, e, portanto, traz em

    si tambm o esquecimento. O trao a marca deste ponto cego,

    desta impossibilidade do olhar. Toda viso funciona, para o

    filsofo, no que ele chama de uma lei da entrevista. Isto , uma

    viso que leva em conta a piscadela do olho e que no pode ver

  • taca 19 Edio Especial Por amor ao trao: uma leitura de Memrias de Cego

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    seno no intervalo. A piscadela no apenas o que priva a vista,

    mas tambm o que permite ver, assim como todo sentido s

    pode se dar nas falhas, nos brancos da escritura. A piscadela do

    olho o enxerto da diferena no meio da viso, que condena o

    pensamento a um ritmo elptico, a se construir na

    descontinuidade, na articulao de diferenas. Dessa forma, o

    trao testemunha desta disjuno do olhar:

    No seu momento de rompimento originrio,

    na potncia traante do trao, no instante em

    que a ponta na ponta da mo (...) avana para

    o contato com a superfcie, a inscrio do

    inscrevvel no se v. Improvisada ou no, a

    inveno do trao no segue, no se regula

    pelo que presentemente visvel, e estaria ali

    pousado, diante de mim, como um tema.

    Mesmo se o desenho mimtico, como se diz,

    reprodutivo, figurativo, representativo,

    mesmo se o modelo est presentemente diante

    do artista, preciso que o trao proceda na

    noite. Ele escapa ao campo da viso. No

    somente porque no ainda visvel, mas

    porque no pertence ordem do espetculo,

    da objetividade especular - e aquilo ento que

    ele faz advir no pode ser mimtico em si. A

    heterogeneidade permanece abissal entre a

    coisa desenhada e o trao desenhando, seja ele

    entre uma coisa representada e a sua

    representao, o modelo e a imagem. (...) (o

    desenhador no v presentemente, mas viu e

    ver: a perspectiva a perspectiva

    antecipadora ou a retrospectiva anamnsica).

    (DERRIDA, 2010, p. 51 e 52).

    A articulao do trao no pretende, portanto, criar

    uma linearidade, um contnuo do pensamento sem brechas, pelo

    contrrio, ela evidencia justamente a divisibilidade da linha. O

    trao da representao a prpria divisibilidade. Ele articula e

    ao mesmo tempo denuncia a disjuno do olhar que nunca v

    presentemente.

  • taca 19 Edio Especial Por amor ao trao: uma leitura de Memrias de Cego

    Maria Continentino Freire 192

    Observamos, ento, o jogo de dobras e reflexos em

    que Derrida nos enreda aqui. Articulando as duas hipteses para

    um pensamento do desenho (a hiptese da cegueira e a hiptese

    do auto-retrato), vemos que esse texto reflete sobre a

    (im)possibilidade do prprio texto. Desdobrando o trao do

    desenho no trao da escrita, esta reflexo, tambm a reflexo

    da escrita sobre si mesma. Lembrando que Derrida no separa o

    pensamento da escritura, isto , de seu carter grfico, este texto

    aparece como uma dobra do pensamento sobre si, uma reflexo

    sobre a reflexo na aperspectiva do trao. Assim, o tema da

    cegueira tambm um auto-retrato do pensamento, refletindo,

    de uma s vez, a impossibilidade tanto do pensamento como do

    auto-retrato. Pois se o pensamento, como trao, precisa se

    desdobrar para se pensar, para refletir-se, j no est no terreno

    da propriedade, da pureza, mas sempre numa relao de

    alteridade, numa necessidade de suplementariedade, trao a

    trao, sem imagem prpria de si.

    Reconhecendo, portanto, o carter espectral da viso,

    toda inscrio parece querer dar graas a esse dom e ao mesmo

    tempo sua falha. A escrita, o registro do trao aparece como

    que para agradecer possibilidade do olhar, reconhecendo, ao

    mesmo tempo, sua fragilidade. Este ponto cego, a

    impossibilidade da viso se apresenta como a prpria

    possibilidade da escrita, do trao, do registro. Se as coisas

    realmente aparecessem, plenamente presentificadas, no seria

    preciso represent-las, registrar a memria delas. Elas seriam

    seu prprio registro, seu prprio arquivo e no permitiriam seu

    desdobramento no trao. O trao denuncia, ento, o carter

    espectral de toda presena, ele o registro da impropriedade de

    toda presena, mostrando, portanto, como o que deixa marca, o

    que inscreve, nunca exatamente a coisa como tal, mas um

    certo espectro, nem presena nem ausncia, que exige registro,

    memria e inveno.

    Numa espcie de confisso, na forma de uma auto-

    biografia impossvel, este texto vai se construindo como uma

    espcie de declarao de amor ao trao. Assim como

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    gramatologia, memrias de cego uma reflexo sobre o

    pensamento como escritura, mas se gramatologia se inscreve na

    perspectiva da desconstruo do privilgio do logos sobre o

    grama, refletindo as clausuras que o pensamento cria para si

    mesmo dentro dessa perspectiva da presena, memrias de

    cego, concentrando-se na estrutura em abismo do auto-retrato

    impossvel, dobra o grama sobre o grama no que poderamos

    chamar de uma gramatografia ou uma filografia, sublinhando

    uma paixo ("narcsica") do trao.

    Assim, a cegueira do trao remete tambm a uma

    cegueira do amor e a um louco desejo de tentativa de

    apropriao da inacessibilidade do outro. Nesse sentido,

    Derrida traz cena a narrativa de Dibutade to citada nas

    representaes sobre a origem das representaes grficas. Esta

    jovem corntia, "tendo de se separar de seu amado por alguns

    dias, sublinhou numa muralha a sombra deste jovem desenhada

    pela luz de um candeeiro. O amor lhe inspirou a ideia de se

    dotar desta imagem querida, traando na sombra uma linha que

    lhe seguiu e marcou exatamente o contorno"5. Seguindo os

    traos da silhueta do amado, essa narrativa de Dibutade, fala de

    uma skiagraphia, isto , uma escrita da sombra que inaugura

    uma arte da cegueira: "Ela escreve logo ela ama j na

    nostalgia."6 ... "como se o desenho fosse uma declarao de

    amor destinada ou ordenada invisibilidade do outro"7, essa

    declarao baseia-se na crena e na aposta da (im)possibilidade

    de preencher com amor as brechas da escritura como parece

    querer mostrar a epgrafe de Diderot com que Derrida abre seu

    texto: "Escrevo sem ver. Vim. Queria beijar-vos a mo (...) Eis

    a primeira vez que escrevo nas trevas (...) sem saber se formo

    caracteres. Por todo o lado em que no houver nada, lede que

    vos amo."8

    5 RUNCINAM apud Derrida, 2010, p. 55. 6 DERRIDA, 2010, p. 55 e 56. 7 DERRIDA, 2010, p. 55 e 56. 8 Diderot apud Derrida, 2010, p. 9.

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    Maria Continentino Freire 194

    Referncias bibliogrficas

    DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Traduo: Miriam

    Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. So Paulo: Perspectiva,

    2008.

    _________________. Memrias de Cego: O auto-retrato e

    outras runas. Traduo: Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundao

    Calouste Gulbenkian, 2010.