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CAMINHOS DE GEOGRAFIA - revista on line http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/ ISSN 1678-6343 Instituto de Geografia UFU Programa de Pós-graduação em Geografia Caminhos de Geografia Uberlândia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 38–47 Página 38 AS TRANSFORMAÇÕES SÓCIO-CULTURAIS ACARRETADAS PELO REASSENTAMENTO DE FAMÍLIAS ATINGIDAS PELA BARRAGEM DE IRAPÉ NO VALE DO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 1 Gilmar Fialho de Freitas Mestrando em Extensão Rural – UFV Bolsista FAPEMIG [email protected] Marcelo Leles Romarco de Oliveira Professor Adjunto I do Departamento de Economia Rural – UFV [email protected] Dayane Rouse Neves Sousa Mestranda em Extensão Rural – UFV [email protected] RESUMO A construção dos grandes empreendimentos hidrelétricos impõe às famílias atingidas uma mudança forçada de seus territórios, bem como de seus meios de vida. Sendo assim, este estudo buscou entender como estão estruturadas as relações sociais desses segmentos afetados, de suas estratégias adaptativas em articulação com o território e com o lugar que atualmente ocupam, como também do universo de valores que dão sentido a estas relações, nos reassentamentos da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Para tanto, utilizou-se como procedimentos metodológicos, coleta de dados através de questionários direcionados a 61 reassentados, distribuídos em 10 associações de moradores localizados em cinco municípios diferentes: Turmalina, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Capelinha e Água Boa. Através deste estudo foi possível perceber que, as ações desenvolvidas pelo consórcio responsável pelo empreendimento, em relação à preservação e manutenção da cultura de origem, dos costumes, das práticas culturais e religiosas dos reassentados, foram insuficientes, sobretudo quando se tem em vista a complexidade das relações sociais que circundam a vida das populações tradicionais do Brasil. Palavras-chave: Reassentados. Vale do Jequitinhonha. Território. Lugar. SÓCIO-CULTURAL TRANSFORMATIONS BROUGHT ABOUT BY RESETTLEMENT OF FAMILIES AFFECTED BY DAM IRAPÉ IN JEQUITINHONHA VALLEY – MINAS GERAIS ABSTRACT The construction of big hydroelectric projects imposes the affected families a displacement from their original area and a change in their lifestyle. Therefore, this study aims to comprehend how the social relations of those segments are structured as well as their strategies to adapt to the new territory, including the set of values which provides meaning to their relationship in the settlements of hydropower plant of Irapé in Jequitinhonha Valley, Minas Gerais state. In order to achieve such goals, the project uses the collection of data as a methodological procedure. The collection is made through guided inquiries addressed to 61 settlers, who were distributed through 10 associations of dwellers placed in five different towns: Turmalina, José Gonçalves de Lima, Leme de Prado, Capelinha and Água Boa. It was possible to detect through this survey that the actions concerning the maintenance and preservation of the local culture developed by the consortium responsible for the project were insufficient, especially when taking into consideration the complexity of relations involving the social life of traditional people from the interior of Brazil. Keywords: Resettled. Vale do Jequitinhonha. Territory. Place. 1 Recebido em 23/01/2013 Aprovado para publicação em 18/11/2013

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trata-se de um artigo sobre conflitos ambientais.

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  • CAMINHOS DE GEOGRAFIA - revista on line http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/ ISSN 1678-6343

    Instituto de Geografia UFU Programa de Ps-graduao em Geografia

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 3847 Pgina 38

    AS TRANSFORMAES SCIO-CULTURAIS ACARRETADAS PELO REASSENTAMENTO DE FAMLIAS ATINGIDAS PELA BARRAGEM DE IRAP NO VALE DO JEQUITINHONHA

    MINAS GERAIS1

    Gilmar Fialho de Freitas Mestrando em Extenso Rural UFV

    Bolsista FAPEMIG [email protected]

    Marcelo Leles Romarco de Oliveira Professor Adjunto I do Departamento de Economia Rural UFV

    [email protected]

    Dayane Rouse Neves Sousa Mestranda em Extenso Rural UFV

    [email protected]

    RESUMO

    A construo dos grandes empreendimentos hidreltricos impe s famlias atingidas uma mudana forada de seus territrios, bem como de seus meios de vida. Sendo assim, este estudo buscou entender como esto estruturadas as relaes sociais desses segmentos afetados, de suas estratgias adaptativas em articulao com o territrio e com o lugar que atualmente ocupam, como tambm do universo de valores que do sentido a estas relaes, nos reassentamentos da Usina Hidreltrica de Irap, no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Para tanto, utilizou-se como procedimentos metodolgicos, coleta de dados atravs de questionrios direcionados a 61 reassentados, distribudos em 10 associaes de moradores localizados em cinco municpios diferentes: Turmalina, Jos Gonalves de Minas, Leme do Prado, Capelinha e gua Boa. Atravs deste estudo foi possvel perceber que, as aes desenvolvidas pelo consrcio responsvel pelo empreendimento, em relao preservao e manuteno da cultura de origem, dos costumes, das prticas culturais e religiosas dos reassentados, foram insuficientes, sobretudo quando se tem em vista a complexidade das relaes sociais que circundam a vida das populaes tradicionais do Brasil.

    Palavras-chave: Reassentados. Vale do Jequitinhonha. Territrio. Lugar.

    SCIO-CULTURAL TRANSFORMATIONS BROUGHT ABOUT BY RESETTLEMENT OF FAMILIES AFFECTED BY DAM IRAP IN

    JEQUITINHONHA VALLEY MINAS GERAIS

    ABSTRACT

    The construction of big hydroelectric projects imposes the affected families a displacement from their original area and a change in their lifestyle. Therefore, this study aims to comprehend how the social relations of those segments are structured as well as their strategies to adapt to the new territory, including the set of values which provides meaning to their relationship in the settlements of hydropower plant of Irap in Jequitinhonha Valley, Minas Gerais state. In order to achieve such goals, the project uses the collection of data as a methodological procedure. The collection is made through guided inquiries addressed to 61 settlers, who were distributed through 10 associations of dwellers placed in five different towns: Turmalina, Jos Gonalves de Lima, Leme de Prado, Capelinha and gua Boa. It was possible to detect through this survey that the actions concerning the maintenance and preservation of the local culture developed by the consortium responsible for the project were insufficient, especially when taking into consideration the complexity of relations involving the social life of traditional people from the interior of Brazil.

    Keywords: Resettled. Vale do Jequitinhonha. Territory. Place.

    1 Recebido em 23/01/2013

    Aprovado para publicao em 18/11/2013

  • As transformaes scio-culturais acarretadas pelo reassentamento de famlias atingidas pela barragem de Irap no Vale do Jequitinhonha Minas Gerais

    Gilmar Fialho de Freitas Marcelo Leles Romarco de Oliveira

    Dayane Rouse Neves Sousa

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 3847 Pgina 39

    1- INTRODUO A gerao de energia eltrica imposta pelas intensas necessidades da sociedade, tendo em vista os atuais nveis de desenvolvimento da economia nacional, contribuiu para a intensificao de inmeros impactos sociais e ambientais ocasionados pela construo das usinas hidreltricas no Brasil. Apesar da energia gerada pelas hidreltricas, ser a principal fonte de eletricidade do pas, principalmente quando se constata a abundncia de rios aproveitveis que compem seu territrio, inmeras problemticas podem ser observadas desde a elaborao dos projetos at operao das hidreltricas j construdas. As diversas formas de gerao de energia podem representar, ao mesmo tempo, sinnimo de desenvolvimento desde escalas locais global, ou tambm retrocessos insustentveis em questes ambientais e socioculturais. Em seus estudos, Bermann (2007) destaca que apesar da hidreletricidade ser considerada uma das formas mais eficientes e limpas de gerao de energia, registra-se experincias onde sociedades viram suas bases econmicas, polticas, simblicas e culturais, sendo dizimadas pelas construes de barragens. Desta forma esse paradigma trs a tona um tipo de modelo que tende a ser insustentvel, pois leva ao esgotamento dos recurso natural em questo, da diversidade biolgica e vem provocando srios impactos sociais, econmicos e culturais nas comunidades afetadas pelos empreendimentos hidreltricos. Nesse sentido, Rebouas (2000), aponta que:

    Os habitantes das reas a serem alagadas, na maioria das vezes no so indenizados com valores suficientes para proporcionar a aquisio de terras na mesma proporo e qualidade semelhantes em outros locais, o que acaba por causar a descapitalizao da populao atingida e por incentivar o xodo rural. Em outras palavras, sem capital suficiente para reconstruir o patrimnio literalmente inundado pelas hidreltricas, os atingidos tm sria dificuldade de restabelecimento das atividades produtivas em outro ambiente natural, levando total transformao do modo de vida tradicional desses grupos, que optam, na maioria das vezes, por migrar para a rea urbana, onde os problemas desencadeados pelos empreendimentos hidreltricos tm continuidade. (REBOUAS, 2000, p. 28).

    Neste contexto, citamos a construo da Usina Hidreltrica de Irap no Vale do Jequitinhonha, estado de Minas Gerais, que imps s famlias diretamente atingidas uma mudana forada de seu territrio e, consequentemente, de seus meios de vida. Mesmo aquelas que optaram em permanecer prximas ao rio, no remanescente de suas propriedades atingidas, tiveram de se adequar ao novo ambiente que foi formado e s restries de uso impostas pela formao do reservatrio. Diante desse panorama, importante ressaltar que as comunidades atingidas possuam formas diferenciadas de relaes sociais, culturais, econmicas e territoriais que dificilmente podero ser reaplicadas em outra realidade, que neste caso, se trata do reassentamento forado, ou seja, a esse novo espao produzido com o advindo do empreendimento, pois tende a homogeneizao da diversidade sociocultural das comunidades que foram deslocadas pela implantao da hidreltrica. Assim, a disperso das famlias em diversas propriedades distantes umas das outras inviabilizou inmeras festividades religiosas e culturais e, o significado destas festas est sendo perdido ao longo do tempo na memria das pessoas. Assim sendo, este trabalho tem como objetivo entender e analisar como esto estruturadas as relaes sociais das famlias atingidas pela Barragem de Irap e as estratgias adaptativas em articulao com o territrio que atualmente ocupam, bem como o universo de valores que d sentido a estas relaes nos reassentamentos da Usina Hidreltrica de Irap.

    2 CAMINHOS PARA A REALIZAO DO TRABALHO Para bem atingir os objetivos desta pesquisa foi utilizado como mtodo o estudo de caso. A utilizao deste mtodo justifica-se pela necessidade do estudo de uma realidade social que deve ser compreendida profundamente, destacando o detalhamento do ambiente em que se realiza o trabalho. Portanto, busca-se tambm, atravs deste mtodo, extrair da vivncia de tal realidade os elementos que contribuam para anlise do problema apresentado, tendo em vista que as caractersticas sociais apresentadas em tal rea so complexas e dinmicas, sobretudo

  • As transformaes scio-culturais acarretadas pelo reassentamento de famlias atingidas pela barragem de Irap no Vale do Jequitinhonha Minas Gerais

    Gilmar Fialho de Freitas Marcelo Leles Romarco de Oliveira

    Dayane Rouse Neves Sousa

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 3847 Pgina 40

    no momento do processo de reassentamento de suas famlias. Durante o percurso metodolgico foi tambm de fundamental valia a utilizao da pesquisa bibliogrfica e documental. Essa etapa foi importante para que pudssemos estar embasados teoricamente com a temtica estudada, pois, atravs da pesquisa documental proporcionou-se um maior conhecimento sobre o local estudado, alm de evitar fazer perguntas desnecessrias aos participantes da pesquisa. Outro instrumento de coleta dos dados foi a pesquisa de campo, com apoio da tcnica do questionrio e da tcnica de observao da paisagem.

    No estudo em questo, os dados foram obtidos a partir da construo de escalas de felicidade das pessoas em relao aos temas que lhes foram apresentados, atravs do preenchimento de 61 questionrios. O uso desses ndices se deve ao fato de que a falta de felicidade pode constituir um problema social, na medida em que so inquietaes que condicionam as expectativas e a ao dos indivduos em sociedade, e que no se reduzem a meros desejos individuais, sem fundamentao no contexto social.

    A seguir apresentado um quadro detalhando do universo da pesquisa, destacando os municpios e suas respectivas associaes que foram selecionadas, assim como a apresentao do nmero de famlias que foram reassentadas nas associaes e as famlias que foram selecionadas para este estudo:

    Quadro 1 O universo de pesquisa

    Fonte: Dados da pesquisa, 2010

    A escolha de trabalhar com tal ndice se deve ao fato de que, no campo das cincias sociais, ressalta-se a World Values Surveys (WVS), que se trata de uma investigao em escala mundial sobre convices e valores das pessoas em mais de 65 sociedades de todos os continentes. Esses estudos foram conduzidos atravs da aplicao de questionrios por amostras representativas das populaes em questo. Para se considerar um indicador como sendo vlido, segundo esses ndices de felicidade, ele deve demonstravelmente ter influncia positiva ou negativa na felicidade. Os indicadores apresentados devem cobrir tanto as esferas objetivas quanto as subjetivas, conferindo pesos idnticos tanto para os aspectos funcionais da sociedade humana como para o lado emocional da existncia da mesma. Tanto no primeiro como no segundo caso, os estudos apontam que o ndice de Felicidade de uma populao pode contribuir para que o Estado desenhe polticas pblicas e avaliem suas gestes. Os estudos que utilizam os ndices de Felicidade como ferramenta de anlise conseguem, com bastante xito, tornar questes subjetivas da vida de uma determinada pessoa ou grupo em manifestaes positivas ou negativas no seu modo de vida.

    O interesse por estudar o impacto de importantes variveis socioculturais na determinao do bem-estar de reassentados em reas rurais dos municpios de Jos Gonalves de Minas, Leme do Prado, Capelinha, gua Boa e Turmalina, imps definir e desdobrar tais variveis de modo a revelar graus de felicidade dos participantes da pesquisa. Estes municpios foram selecionados devido a sua proximidade e tambm devido maior facilidade de acesso s suas reas rurais aonde se situavam os lotes dos reassentados e suas respectivas associaes de moradores.

    Municpios Associaes Selecionadas N de Famlias Reassentadas N de Famlias selecionadas

    Jos Gonalves de Minas 29 Famlias 18 Famlias

    Leme do Prado 40 Famlias 17 Famlias

    Turmalina Povoado Peixe Cru 22 Famlias 11 Famlias

    Capelinha 19 Famlias 7 Famlias

    gua Boa 14 Famlias 8 Famlias

    Total 11 Associaes 124 Famlias 61 Famlias

    Corao de Maria e Unio de TodosQuilombo Boa Sorte, Corao de Jesus e Mandassaia

    Fartura, So Caetano e Santa BrbaraNovo Horizonte e Ribeiro Vermelho

  • As transformaes scio-culturais acarretadas pelo reassentamento de famlias atingidas pela barragem de Irap no Vale do Jequitinhonha Minas Gerais

    Gilmar Fialho de Freitas Marcelo Leles Romarco de Oliveira

    Dayane Rouse Neves Sousa

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 3847 Pgina 41

    Inspirados na pesquisa World Values Surveys, definimos dois temas (As aes de preservao da cultura de origem dos reassentados e o outro relativo preservao das suas manifestaes religiosas) que foram apresentados aos 61 participantes da pesquisa, na forma de enunciados, para que atribussem, numa escala de 1 a 4 (sendo que 1=Infeliz; 2=No muito feliz; 3= Feliz e 4=Muito Feliz), o valor que mais adequadamente correspondesse a seu modo de avaliar as aes de preservao da culturas e das manifestaes religiosas no interior dos reassentamentos.

    Os valores atribudos pelos participantes a cada questo proposta foram tabulados por municpio, separadamente, e serviram de base para um estudo comparativo. Os dados foram sintetizados em tabelas que esto apresentadas no decorrer desse trabalho. Por fim, foi apresentada aos participantes da pesquisa uma questo referente falta de se conviver com amigos e parentes que ficaram na regio de origem. Estes, em sua maioria, so pessoas que continuam morando s margens do reservatrio da Usina Hidreltrica de Irap, e que pelo fato de suas propriedades no terem sido atingidas, no precisaram ser reassentadas.

    3 - REA DE ESTUDO O Vale do Jequitinhonha ainda uma regio de grandes incompletudes sociais, sendo imprescindvel uma anlise sociolgica da diversidade que o caracteriza. A realidade e a diversidade sociocultural do vale uma marca fundamental na sua identidade. A ligao singular entre as caractersticas naturais da regio com a populao que ao longo de trs sculos a ocupa, exemplifica o estreitamento de suas disparidades. Nesse sentido, o vale compreende em um mesmo lugar multiplicidades tnicas, religiosas, paisagens histrico-culturais e perfis geogrficos. Todo o processo de ocupao, inspirados pela nsia da riqueza e do exerccio da territorialidade, forjou, de certa maneira, a singularidade do territrio em torno da identidade e da multiplicidade de suas paisagens, intercalando histria e cultura com as novas e potentes foras da contemporaneidade. Alm disso, o acmulo de vrios sculos da ao humana sobre suas paisagens, principalmente, para explorao de riquezas naturais, imprimiu ao Vale do Jequitinhonha um amplo e rico acervo cultural, em boa parte ainda preservado, e uma grande modificao nas caractersticas geogrficas de sua regio. A preservao de hbitos culturais e de construes histricas erguidas por sculos de ocupao, tambm hoje, so ameaadas por foras tecnolgicas que esto contribuindo para a supresso da paisagem, destacando-se o atual aproveitamento do potencial energtico do Rio Jequitinhonha para a gerao de energia eltrica. Um dos maiores acontecimentos de sua histria foi a construo da Usina Hidreltrica Presidente Juscelino Kubitschek, mais conhecida como Usina de Irap, que pertence Companhia Energtica do Estado de Minas Gerais (CEMIG). A obra foi concluda em oito de junho de 2006, tendo suas origens com os primeiros estudos energticos realizados no estado de Minas Gerais, elaborados em 1963. Cerca de quarenta anos depois, avaliou-se que, tecnicamente, o Projeto de Irap era complexo e desafiador, por combinar caractersticas fsicas e geolgicas adversas. Por outro lado, representava investimento em infraestrutura para o crescimento da regio, significando milhares de empregos, oportunidade de qualificao de mo de obra, aumento da receita dos municpios atingidos com os 'royalties', ativao do comrcio e ofertas de servios. Porm, a construo de tal obra, acarretou o remanejamento de cerca de mil famlias ribeirinhas. Alm disso, o alagamento resultante atingiu ncleos urbanos e reas rurais numa extenso de 115 quilmetros do Rio Jequitinhonha e de 50 quilmetros de um dos seus afluentes, o Rio Itacambiruu. Em torno de 3.564 pessoas, residentes em 47 comunidades ribeirinhas, em reas dos municpios mineiros de Berilo, Jos Gonalves de Minas, Leme do Prado, Turmalina, Gro Mogol, Cristlia e Botumirim, foram afetadas e deslocadas ou at mesmo expulsas de suas terras. Os municpios mencionados esto representados na figura 1. Alm disso, o reservatrio de Irap ocupou territrios formados por comunidades tradicionais, dedicadas majoritariamente s atividades agropecurias. Esses atingidos eram lavradores, roceiros, vaqueiros e cortadores de cana. Alm desse grupo, aparecem os pequenos comerciantes; os pequenos garimpeiros de diamante, ouro e cristal; os trabalhadores

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    domsticos; e os que trabalham em estabelecimentos industriais ligados aos recursos naturais da regio, tais como fbricas de farinha, de cachaa, de rapadura, de doces e de telhas.

    Figura 1 Municpios atingidos pelo reservatrio de Irap.

    Fonte: Companhia Energtica do Estado de Minas Gerais (CEMIG) O Projeto Irap previa que os grupos atingidos recebessem terras de qualidade, assessoria e assistncia tcnica nos reassentamentos, mas isso no aconteceu plenamente. Devido a isso, posteriormente, a CEMIG elaborou um plano de aes voltadas preservao das comunidades de origem, das relaes de vizinhana e da base produtiva existente. Atualmente, esse plano ainda est em vigor e vem tentando organizar, ou mesmo auxiliar, a vida dos atingidos em suas novas localidades.

    4 TRANSFORMAES SOCIOCULTURAIS: CONTRIBUIES DOS CONCEITOS DE TERRITRIO E LUGAR A identidade cultural de um povo, com todas as suas peculiaridades, construda atravs da interpretao de um mundo que marcado por signos e smbolos, que esto situados em um determinado lugar e que so frutos da acumulao de uma experincia histrica. As festas, as msicas, as celebraes religiosas, as comidas, as danas e outras manifestaes culturais, so os elementos que do sentido a existncia dessa sociedade como grupo. Por isso, quando tratamos das construes das grandes barragens, a inundao e o descolamento forado de uma determinada populao, podem significar perdas irreparveis do ponto de vista sociocultural, alm de carregar consigo processos sociais marcados por processos de desterritorializao e pela reterritorializao dos atingidos. Quando os atingidos so reassentados implica-se numa nova forma de apropriao do territrio, que refletir na construo dos novos lugares, que apesar de tantos rompimentos estar centrada na experincia do passado para a reconstruo destes espaos, e por consequente, da vida de seus moradores. Sendo assim, Silva (2007, p. 22) enfatiza que A mobilidade permite que se criem novos lugares. Isso significa que o lugar antigo ou o lugar que tenha passado por um processo de transformao ainda ter, por certo tempo, um significado para aqueles que o viveram [...]. Nesta perspectiva, o processo de reconstruo dos lugares no passa apenas pelos elementos fsicos do espao, mas sim, sobretudo, por um processo de reconstruo da vida em sociedade. Apesar das experincias construdas nas antigas localidades, novas relaes e expresses culturais so impostas e incorporadas pelas pessoas. Portanto, sabendo que so as relaes do dia a dia que produzem o lugar, podemos inferir que a implantao de uma hidreltrica deve passar por um grande planejamento, a fim de que se respeitem as peculiaridades e dimenses do lugar vivido pelos atingidos.

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    Outro conceito-chave da Geografia para o entendimento do dilema apresentado se trata do Territrio. Este deve ser entendido como a base fsica para a materializao das relaes sociais, em que diferentes sujeitos/atores sociais, em diferentes momentos histricos, se interagem. No caso das construes dos empreendimentos hidreltricos, identifica-se no territrio um campo de conflitos, pois, de um lado posicionam-se as populaes atingidas, apegadas ao territrio em que vivem, e de outro lado, a demanda por energia que sustenta o elevado consumo e o atual nvel de crescimento do pas. Contudo, observa-se que, os maiores prejudicados so as populaes atingidas, que so obrigados a desestruturar, ou mesmo desconstruir, o seu territrio histrico-cultural. Portanto, como bem afirma Haesbaert (2004), a perda do territrio por sua populaes, como acontece nos casos dos atingidos por barragens, implica num processo de desterritorializao, aonde o enfraquecimento do controle sobre o territrio resulta na mobilidade, que no caso em questo compulsria e involuntria. A partir deste momento estes iniciam um novo processo identificado pelo autor como reterritorializao, ou seja, estabelecimento de novas relaes que iro propiciar as condies de reproduo e permanncia nos novos lugares. Seguindo essa linha de raciocnio, Santos (2006, p. 13) afirma que: o territrio o lugar em que desembocam todas as aes, todas as paixes, todos os poderes, todas as foras, todas as fraquezas, isto , onde a histria do homem plenamente se realiza a partir das manifestaes da sua existncia. Assim, a construo histrica de um territrio apresenta traos de uma cultura que ali foi consolidada e vivenciada por vrias geraes passadas. Muitas das vezes, estas caractersticas peculiares podem possuir significados apenas para as pessoas que, de certa maneira, se incorporaram ao processo de construo subjetiva ocorrida naquele espao. Nesse contexto, estas pessoas podem ser caracterizadas como camponeses, que conforme Sabourin (2009), no devem ser enxergados apenas como uma categoria poltica, mas tambm como uma categoria social que possui uma expresso especfica na sociedade brasileira. Algumas caractersticas, como: relao ntima com os recursos naturais, valorizao da ajuda mtua, distanciamento das lgicas do mercado capitalista e sua grande capacidade de autonomia, exprimem a essa classe social um contexto de particularidade. Tambm se constata a permanncia de suas prticas de reciprocidade, aonde o sentimento de pertencimento a um grupo, a identidade coletiva e o compartilhamento de prticas e saberes se do constantemente. Nesta perspectiva, Petersen (2009) afirma que o atual processo de desaparecimento do campesinato seria uma consequncia do avano de uma lgica capitalista de organizao da sociedade, nos afirmando uma necessidade fundamental de se pensar uma sociedade que privilegiasse a vontade coletiva. As manifestaes e expresses culturais e religiosas de um povo so marcadas por uma indissociabilidade com a ideia do coletivo, que envolve uma forte relao com os vnculos sociais construdos ao longo dos anos entre suas famlias e aos elementos da natureza que so parte da essncia de suas vidas, logo, envolve tambm um forte vnculo com o territrio campons. Por outro lado, a insero da dinmica capitalista nesses lugares so sinais visveis de transformaes, seja desde a forma de produzir o sustento da famlia, at mesmo s formas mais subjetivas de expresso de sua existncia. Godbout (1999) tambm, contribui com essa ideia, quando em seu estudo busca compreender a questo da generosidade, dos vnculos sociais na esfera domstica, da reciprocidade e da confiana entre as pessoas que formam um determinado grupo. Conforme o mesmo autor, a ddiva constitui um sistema de relaes sociais que no se reduzem a nenhuma relao que envolva interesse econmico ou por poder, sobretudo, quando se analisa esta relao na ento chamada esfera domstica, ou seja, o lugar natural dos vnculos interpessoais. Neste sentido, Candido (2003) refora, atravs de suas teorias, que a busca do equilbrio social se d em grande parte na correlao existente entre as necessidades do homem e sua satisfao. Nesse aspecto, as formas de sobrevivncia do chamado homem simples no devem ser compreendidas de modo separado s reaes que so delineadas por sua cultura. Assim, A existncia de todo grupo social pressupe a obteno de um equilbrio relativo entre as suas necessidades e os recursos do meio fsico, requerendo solues mais ou menos adequadas e completas (CANDIDO, 2003, p.29). Para tanto, fundamental a este estudo a perspectiva apresentada pelo autor de que homem e meio aparecem em uma solidariedade indissocivel. O meio aparece como oportunidade real de sustento da famlia, e por

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    consequente, a reproduo da vida do homem no campo.

    5 - RESULTADOS E DISCUSSES Ao iniciar a discusso sobre a felicidade, necessrio esclarecer que h uma importncia da cultura material e imaterial na composio da felicidade das famlias reassentadas, tendo em vista que houve um processo de migrao forado destas em que nem tudo, ou quase nada, foi levado com as famlias. Neste estudo, a felicidade entendida enquanto sentimento, sujeito a evolues, transformaes e flutuaes e que est relacionado e condicionado pelas vrias dimenses da vida dos sujeitos sociais, inclusive no que diz respeito ao contexto sociocultural que estes ocupam. A anlise destas vrias dimenses nas trajetrias sociais dos sujeitos sociais permitiu captar os valores subjetivos de cada um, assim como, as expectativas individuais e os sentimentos que constituem os seus projetos de vida, na sua relao com a felicidade. Como pode ser observado atravs da Tabela 1, com exceo dos entrevistados nos reassentamentos localizados em Turmalina MG, em todos os outros municpios uma significativa maioria se sente infeliz ou pouco feliz nos atuais reassentamentos em relao preservao da cultura do local de origem. Em Turmalina que a maior cidade entre as demais que receberam os atingidos pela Hidreltrica Presidente JK 63,64% dos agricultores reassentados responderam que se sentem felizes em relao preservao da cultura de origem. Talvez por ser uma cidade de maior porte, Turmalina possa oferecer mais atividades culturais e suprir, ao menos parcialmente, a cultura anterior.

    Tabela 1 Avaliao da preservao da cultura de origem dos atingidos pela Barragem de Irap nos reassentamentos estudados

    Escala/Municpio Jos Gonalves de Minas

    Leme do Prado

    Capelinha gua Boa Turmalina

    Infeliz 61,13% 41,18% 57,15% 75,00% 27,27% No Muito Feliz 27,77% 17,64% 28,57% 25,00% 9,09%

    Feliz 5,55% 35,30% 14,28% 0,00% 63,64% Muito feliz 5,55% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00%

    No se aplica 0,00% 5,88% 0,00% 0,00% 0,00% Fonte: Dados da pesquisa 2010.

    Neste sentido, foi identificado que a maioria das pessoas durante as indagaes revelaram uma profunda saudade das festas religiosas e culturais no local de origem. Inclusive, nos chamou a ateno o intenso apego afetivo ao Rio Jequitinhonha pelo que significava a beleza natural, as pescarias que eram tidas como esporte, o lazer s suas margens com piqueniques, banhos e sustento alimentar, bem como o meio de transporte que oferecia. Estas facilidades so impossveis de serem transportadas para os reassentamentos. Disto decorre que, nvel local, entre os efeitos e constrangimentos resultantes da implantao de grandes barragens, destaca-se, como o mais penoso e traumtico, o deslocamento compulsrio das populaes ocupantes dos espaos requeridos pelo empreendimento. Portanto, observa-se uma situao precria de um desenraizamento, tambm entendido como desterritorializao, dessas populaes em relao as suas tradicionais estratgias de sobrevivncia. A mudana de localizao dos reassentados para uma nova rea, diferente daquela em que viviam, causaria um impacto grande no seu comportamento, principalmente, por se tratarem de uma populao ribeirinha altamente dependente das riquezas materiais e simblica que o Rio Jequitinhonha lhes ofereciam. A mudana de espao fsico gera uma nova postura na ao do homem, o que exige uma nova forma de interveno, a fim que suas necessidades sejam supridas. Umas das prticas essenciais aos seres humanos, seja em qualquer lugar que o homem ocupe, so aquelas ligadas s suas crenas. Nesse ponto, como resultado, foi possvel construir a Tabela 2 que demonstra o grau de felicidade dos entrevistados em relao s iniciativas dos rgos responsveis em preservar as prticas religiosas que existiam em seus locais de origem e que faziam parte de seus cotidianos, principalmente em relao s tradicionais festas dos santos da Igreja Catlica, respeitando as especificidades de cada comunidade reassentada:

  • As transformaes scio-culturais acarretadas pelo reassentamento de famlias atingidas pela barragem de Irap no Vale do Jequitinhonha Minas Gerais

    Gilmar Fialho de Freitas Marcelo Leles Romarco de Oliveira

    Dayane Rouse Neves Sousa

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 3847 Pgina 45

    Tabela 2 Avaliao da preservao de prticas religiosas do local de origem nos reassentamentos da Barragem de Irap

    Escala/Municpio Jos Gonalves

    de Minas Leme do

    Prado Capelinha gua Boa Turmalina

    Infeliz 44,46% 47,06% 42,86% 75,00% 27,27% No Muito Feliz 22,22% 11,76% 28,57% 25,00% 9,09%

    Feliz 22,22% 35,30% 28,57% 0,00% 63,64% Muito feliz 5,55% 5,88% 0,00% 0,00% 0,00%

    No se aplica 5,55% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% Fonte: Dados da pesquisa 2010.

    Vrias razes que valem para diversas variveis que esto sendo analisadas se devem ao fato da disperso das famlias nas novas propriedades. A preservao das prticas religiosas pode tambm sofrer as consequncias. Em primeiro lugar, no local de origem, em alguns casos, as reas das propriedades eram menores do que as atuais, ou mesmo as casas eram mais concentradas em certas reas perto do rio, devido s encostas muito ngremes. Assim tambm como muitas outras famlias que no eram proprietrias, mas que possuam alguma relao de parceria ou outros tipos de ligao com as terras que ocupavam, tambm receberam lotes para sua prpria atividade e moradia. Com isso, nas antigas localidades, os vizinhos certamente eram mais prximos e poderiam se reunir e manter traos religiosos com mais facilidade. As relaes de compadrio tambm seriam mais fceis e frequentes, enquanto a disperso para diversos reassentamentos em diferentes e distantes municpios inviabilizaram a maioria das prticas religiosas e culturais. Novamente, a maioria, com exceo de Turmalina, responderam que esto infelizes ou no muito felizes. Uma das manifestaes mais importante que foi relatada pelos reassentados se trata da Festa do Bom Jesus que realizada no Povoado de Peixe Cru, todo ms de agosto de cada ano. Assim, tambm, registram-se grupos de congado e folia de reis, que se apresentavam em diversas comunidades atingidas. Nos reassentamentos formados no municpio de Turmalina encontram-se as populaes que mantinham as festividades religiosas mais reconhecidas em seus locais de origem, por isso receberam maior ateno em serem preservadas, talvez seja um dos motivos de se sentirem felizes nesse novo territrio. Muito daquilo que est sendo perdido na memria dos atingidos est no fato da separao entre muitos parentes e amigos que continuaram na regio de origem, afirmando, portanto, que a existncia de muitas manifestaes culturais e religiosas s fazem sentido quando se leva em conta o universo das pessoas que formam os grupos, ou seja, a reproduo de suas prticas marcada pela permanncia entre o vnculo que existe entre essas pessoas. Nessa perspectiva, buscou-se atravs da Tabela 3, mostrar o quanto se tornou evidente o rompimento dos laos sociais entre as antigas amizades e parentesco no processo de reassentamento das famlias atingidas pela UHE Irap.

    Tabela 3 Sentimento de falta de convivncia com os parentes e amigos deixados na regio de origem

    Sentimento de falta de convivncia % Sente falta 73,76%

    Sente pouca falta 8,20% No sente falta 16,40% No se aplica 1,64%

    Fonte: Dados da pesquisa, 2010

    Atravs dos registros anteriores de que muitas famlias reassentadas deixaram em seus locais de origem alguns amigos ou parentes, busca-se nesta questo abordar as opinies dos reassentados sobre o sentimento de falta de convivncia com eles. Observa-se que 73,76% dos entrevistados afirmaram que sentem falta de conviver com esses amigos ou parentes, ao passo que apenas 16,40% dos entrevistados afirmaram no sentiram falta, ou mesmo, afirmaram que no deixaram nenhum parente ou amigo na antiga regio.

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    Muitos relatos emocionantes de ruptura dessas relaes afetivas foram registrados durante o contato com os reassentados. Isso se deve a um ndice bem elevado de famlias que afirmaram que no se adaptaram totalmente atual localidade, ou mesmo, que no conseguiram estabelecer as mesmas relaes que existiam na antiga regio.

    Assim, nas comunidades rurais estudadas, os argumentos fornecidos anteriormente por Godbout (2003) reforam o quanto ainda grande a presena da ddiva, ou seja, a necessidade de retribuio entre as famlias daquilo que uma oferece ou presta a outra, como o caso dos atingidos que foram estudados. Mas, o processo recente de reassentamento das famlias atingidas pela UHE Irap deixa evidente o quanto as relaes sociais se transformaram devido relocao. Em seus locais de origem, carregando toda uma relao particular de relao com um meio especfico ao decorrer do tempo, a ento chamada ddiva era mais evidente, j que as famlias sempre carregaram uma forte interdependncia entre elas. Destaca-se esta questo porque, conforme a demonstrao anterior, muitos laos de amizade e parentesco foram rompidos com o reassentamento das famlias atingidas, principalmente, pelo fato de se ter constitudo em municpios diferentes.

    6 - CONSIDERAES FINAIS A caracterstica tradicional dessa populao atingida permite situar o seu territrio como uma sucesso de paisagens, que retratam os distintos momentos de sua histria. Ao contrrio dos territrios ocupados por sociedades modernas, em que os elementos de paisagens passadas so rapidamente suprimidos, atualizados ou ressignificados, o territrio das comunidades ribeirinhas do Vale do Jequitinhonha mantm vivos e atuantes muitos dos elementos que contriburam para a formao histrica da regio. Porm, a implantao de um grande empreendimento, como foi o caso da Usina de Irap, significou um verdadeiro retrocesso quando se tem em mente a perda de laos sociais concretos e subjetivos que foram sendo construdos ao longo dos anos por estas populaes.

    De fato, existem bens materiais e imateriais que representam valores simblicos que dinheiro nenhum paga. As festas religiosas e culturais que aconteciam na comunidade de origem, no tempo em que as pequenas propriedades permitiam a proximidade das casas, j no existem mais. Os laos de parentesco, compadrio e amizade foram fragmentados, distanciados e enfraquecidos, pelo processo de reassentamentos em localidades distintas. O exemplo mais forte e lamentado pela maioria dos participantes foi a perca da estreita e cotidiana relao com o Rio Jequitinhonha. O rio fazia parte do quintal da casa, fornecia alimento, era a via de transporte, principal fonte de lazer e de renda sazonal para os garimpeiros da regio. Esse bem natural, o rio, no poderia reconstruir em outro lugar por nenhum arquiteto. A memria e as boas lembranas do rio permanecem vivas nas mentes de todos os desalojados. A construo da Barragem de Irap representa a edificao de uma catedral tecnolgica, sob a qual submergiram um grande acervo de elementos materiais e imateriais que produziram, na regio, um determinado modo de vida e de expresso simblica das populaes que sucessivamente a habitaram. Aqui, importante destacar que parte destas expresses materiais e simblicas se encontram num processo de ressignificao dentro dos novos reassentamentos formados.

    Estima-se que os resultados deste estudo possam lanar novas luzes nos debates, principalmente, em posies que questionem as aes necessrias de preservao da memria dessas populaes, que em muitas circunstncias, situa a essncia de suas vidas.

    7 - REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BERMANN, Clio. Impasses e controvrsias da hidroeletricidade. Revista de Estudos Avanados, So Paulo, Vol. 21, n. 59,p. 139 - 153 Jan./Abr. 2007. CANDIDO, Antnio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformao dos seus meios de vida. So Paulo. Livraria Duas Cidades, 2003. CEMIG. Companhia Energtica do Estado de Minas Gerais. . Acesso em 19 de Agosto de 2013.

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    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 14, n. 48 Dez/2013 p. 3847 Pgina 47

    GODBOUT, Jacques. O esprito da ddiva. Rio de Janeiro: FGV. 1999. PETERSEN, Paulo et al. A construo da Cincia a servio do campesinato In: Agricultura familiar camponesa na construo do futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2009. REBOUAS, Lidia Marcelino. O planejado e o vivido: o reassentamento de familias ribeirinhas no Pontal do Paranapanema. So Paulo: Annablume: Fapesp, 2000. SABOURIN, Eric. Camponeses do Brasil: entre a troca mercantil e a reciprocidade. Rio de Janeiro: Garamond Universitria, 2009. SANTOS, Milton. O dinheiro e o territrio. In: SANTOS, Milton. [et. al.]. Territrio, Territrios: Ensaios sobre o ordenamento territorial. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. P. 13 21. SILVA, Vicente de Paulo da. Grandes Projetos e Transformao no Sentido do Lugar. Caminhos de Geografia, Uberlndia, 2007, n. 21, p. 18 28.