arte-educação na escola: em busca do sucesso escolar mitsuko

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1 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Secretaria de Educação de Guarulhos ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (Sub-região MERCOSUL) Narrativas educativas. Arte-Educação na escola: em busca do Sucesso Escolar Mitsuko Aparecida Makino Antunes Coordenadora Pedagógica do Projeto: Patricia Maddonni Responsável Pedagógica da Documentação: Adriana Serulnikov Responsável Editorial: Fernanda Benítez Liberali PROJETO HEMISFÉRICO Elaboração de Políticas para a Prevenção do Fracaso Escolar Documentação de experiências escolares no contexto de programas nacionais de inclusão para o ensino fundamental

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1

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Secretaria de Educação de Guarulhos

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS

(Sub-região MERCOSUL)

Narrativas educativas.

Arte-Educação na escola: em busca do Sucesso Escolar

Mitsuko Aparecida Makino Antunes

Coordenadora Pedagógica do Projeto: Patricia Maddonni

Responsável Pedagógica da Documentação: Adriana Serulnikov

Responsável Editorial: Fernanda Benítez Liberali

PROJETO HEMISFÉRICO Elaboração de Políticas para a Prevenção do Fracaso Escolar

Documentação de experiências escolares no contexto de programas nacionais de inclusão para o ensino fundamental

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ÍNDICE

Arte-educação na escola: em busca do sucesso escolar Apresentação

3

A escola

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O trabalho pedagógico da escola

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Uma experiência de arte-educação: Casa de Brinquedos 15

Casa de Brinquedos: Aprendizagem, enfrentamento do fracasso escolar e inclusão

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O caso da aluna Y 25

O caso da aluna A 27

A arte-educação no projeto político-pedagógico da rede municipal de educação de Guarulhos

29

O Projeto Político-pedagógico, o Programa de Formação de Educadores e os Projetos de Arte-educação

31

Os Projetos de Arte-educação

32

À guisa de conclusão: uma escola inclusiva

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3

Arte-educação na escola: em busca do sucesso escolar1 Apresentação

Esta é uma narrativa que conta a experiência de uma escola que consegue enfrentar

o fracasso escolar com ações compartilhadas por todos os seus protagonistas (alunos, professores, gestores, pais, funcionários, arte-educadores e profissionais da Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos), tendo a arte-educação como eixo do trabalho pedagógico.

Vamos contar uma experiência desenvolvida por essa escola, a montagem da peça teatral “Casa de Brinquedos”, por duas professoras e seus alunos. Ao longo da narrativa, procuraremos mostrar como se desenvolveu esse trabalho e as condições que foram dadas e criadas para que se tornasse um sucesso e, principalmente, o envolvimento dos alunos e as conseqüências para a aprendizagem e o desenvolvimento deles.

Nossa primeira decisão, ao receber o convite para elaborar essa narrativa, foi conhecer melhor os muitos projetos de arte-educação desenvolvidos pelas escolas, para escolher aquele que seria aqui relatado. Para isso, conversamos inicialmente com alguns arte-educadores e com profissionais da Secretaria Municipal de Educação – SME de Guarulhos.

Não foi fácil escolher, entre tantas, a experiência em foco nesta narrativa. Encontramos experiências muito ricas, que trabalhavam com música, teatro, artes plásticas e dança; todas elas com resultados positivos para os alunos. Mas eram muitas escolas, com experiências igualmente interessantes, e não poderíamos trabalhar com todas, se quiséssemos fazer um relato mais extenso, acompanhando e ouvindo os protagonistas do projeto.

Escolhemos a Escola Municipal Evanira Vieira Romão por vários motivos. Essa escola foi citada por todos os arte-educadores e profissionais da Secretaria de Educação com quem conversamos, por ser considerada uma das experiências mais completas e com resultados pedagógicos muito interessantes.

Os arte-educadores referiam-se à peça teatral “Casa de Brinquedos” como um excelente trabalho, que havia sido apresentado em vários eventos e muito elogiado por todos que o assistiram. Embora seja uma peça teatral, também a música, a dança e as artes plásticas foram incorporadas ao trabalho, mostrando a possibilidade de unir várias linguagens e expressões artísticas numa única atividade. Outra razão para essa escolha foi o fato de que esse projeto nasceu da iniciativa das educadoras da escola, aproveitando os cursos oferecidos pela Secretaria de Educação, mas criando uma experiência própria e original.

A coordenadora2 e a assessora do Núcleo de Educação Fundamental3 também apontam essas mesmas razões para considerar a experiência dessa escola como algo que deve ser compartilhado com outros educadores, mas acrescentam outro motivo, de natureza pedagógica, que é a participação de toda a equipe escolar nos projetos desenvolvidos pela escola e pela Secretaria de Educação.

Escolhida a escola, a tarefa seguinte foi a de formar uma equipe de trabalho e com ela decidir a estratégia de investigação para compor esta narrativa.

1 Participaram desta pesquisa alunas do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: Psicologia da Educação (PED)

e do Curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e uma psicóloga escolar da Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos, a saber: Andréa Wuo e Delcimar Cunha (doutorandas); Daniela Leal, Edna Tanaka, Fátima Oliveira de Carvalho Araújo (mestrandas); Helena Borges (graduanda em Pedagogia); Zilma Nascimento (psicóloga escolar; assesssora da SME de Guarulhos); Mitsuko Aparecida Makino Antunes (professora do PED-PUCSP; coordenadora da psequisa). 2 Professora Neri da Silveira e Professora Maria Aparecida Contim, respectivamente. 3 A Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos é organizada por diretorias, sendo uma delas a Diretoria de Orientações Educacionais e Pedagógicas – DOEP, que é composta pelos Núcleos de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Inclusiva, Educação de Jovens e Adultos e Supervisão.

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Era necessário que a equipe fosse formada por educadores que tivessem experiência em pesquisa e interesse pela escola pública. Para compor a narrativa, seria necessário visitar a escola e realizar observações e entrevistas com os vários participantes do projeto, daí a importância da experiência em pesquisa. Também seria importante que esses pesquisadores fossem educadores, com experiência escolar e compromisso com a educação de crianças das classes populares.

A estratégia adotada para compor esta narrativa envolveu vários passos, que podem ser assim resumidos: (1) obter informações gerais sobre o município e especificamente sobre a Rede Municipal de Educação; (2) conhecer o Projeto Político-pedagógico da Secretaria de Educação; (3) conhecer os Projetos de Arte-educação da Secretaria Municipal de Educação; (4) entrar em contato com a escola, apresentar o projeto de investigação e obter autorização para a realização do trabalho; (5) conhecer a escola, as pessoas que dela fazem parte, seu Projeto Pedagógico, recursos humanos e materiais, atividades desenvolvidas; (5) conhecer os projetos desenvolvidos; (6) observar as atividades da escola em diferentes momentos e em diferentes atividades; (7) entrevistar gestores, professores, alunos e pais, tendo como foco os projetos de arte-educação e, em especial, a peça “Casa de Brinquedos”; (8) entrevistar arte-educadores; (9) elaborar relatórios de observação e transcrever entrevistas, organizar os dados e sintetizar a experiência; (10) elaborar o texto da narrativa.

Para obter informações sobre o município de Guarulhos foi consultado o “site” da Prefeitura4, no qual foram obtidos dados históricos e demográficos.

Sobre a Rede Municipal de Educação e seu Projeto Político-pedagógico foram pesquisados documentos5 e realizadas entrevistas. Foram entrevistados a secretária de Educação, assessores e profissionais do Núcleo de Educação Fundamental. Com estes foram discutidas as diretrizes da educação municipal e principalmente o Projeto Político-pedagógico, com ênfase nos Projetos de Arte-educação e sua articulação com os Programas de Formação de Professores.

Para melhor conhecer os Projetos de Arte-educação foram consultados registros, fotos e vídeos desses projetos6 e realizadas entrevistas com arte-educadores; também assistimos a eventos em que ocorreram apresentações artísticas de alunos e professores, como a apresentação da Orquestra Pimentinhas, Coral Educanção e peças teatrais.

Com as informações mais gerais sobre a Rede de Educação e os Projetos de Arte-educação, entramos em contato com a escola escolhida para apresentar o “Proyecto ‘Elaboración de políticas para la prevención del fracasso escolar’ – OEA – Sub-región Mercosur” e entregar os documentos relativos ao referido Programa, para que os gestores da escola tivessem todas as informações sobre o trabalho que seria realizado. Nesse momento foram explicados os motivos da escolha daquela escola e foram apresentadas as estratégias de investigação para a elaboração da narrativa pela equipe de educadores-pesquisadores. Em seguida foi solicitada autorização da equipe escolar para a realização do trabalho.

Fomos recebidos de maneira muito calorosa pelas gestoras7, que estavam muito felizes por ter sido a Escola Evanira Vieira Romão selecionada para este relato. Para elas, essa escolha significava um reconhecimento pelo trabalho desenvolvido por todos na escola. Ainda que nosso foco fosse sobre a realização da peça “Casa de Brinquedos”, elas afirmavam que, naquela escola, todos participavam de todas as atividades e tudo o que lá é realizado é fruto da participação de alunos, professores, gestores, pais, funcionários, arte-educadores e outros profissionais da Secretaria de Educação. Assim sendo, a escolha desse trabalho para a narrativa era motivo de orgulho para toda a comunidade escolar.

Nossa primeira iniciativa foi conhecer mais a escola, seus espaços, as pessoas que dela fazem parte, seu Projeto Pedagógico e as atividades desenvolvidas. Houve total 4 Ver: www.guarulhos.sp.gov.br. 5 Ver documentos anexos. 6 Ver documentos, fotos e vídeos anexos. 7 A gestão escolar é formada por diretora, professora coordenadora (responsável pela coordenação pedagógica) e professora referência de ciclo (responsável pela integração dos projetos pedagógicos da escola entre os diferentes professores e alunos).

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disponibilidade da equipe escolar para nos mostrar a escola, seus projetos documentados e registrados em fotos e vídeos, nos apresentar crianças e seus pais, professores e funcionários. Por todos fomos muito bem recebidos.

Em seguida, os documentos em que são registrados os projetos da escola, as fotos e vídeos foram vistos por todos os membros da equipe de pesquisa e iniciou-se o processo de sistematização desses dados, que serão apresentados no relato.

Um dos momentos mais importantes para elaboração desse relato foi a observação das atividades da escola em diferentes momentos e em diferentes atividades. Inicialmente foram à escola a coordenadora da pesquisa e a psicóloga escolar da Secretaria de Educação, para apresentar o projeto, estabelecer os primeiros contatos e propor a realização da narrativa. Obtida a aprovação pela escola, foi marcado um dia para que toda a equipe de pesquisadores visitasse a escola, o que foi feito num dia e horário em que lá estavam os professores, os pais e os alunos, para que o projeto fosse apresentado a todos. Nesse encontro, percebemos que todos os membros da escola não apenas aprovaram a realização do projeto, como também sentiram-se felizes e reconhecidos por terem sido escolhidos. Houve, portanto, um excelente acolhimento e pudemos contar com a colaboração de todos para a realização do trabalho. Entrevistamos os gestores, os professores, alguns alunos e pais, em várias situações. É importante destacar que algumas professoras nos receberam em suas próprias casas para nos ceder entrevistas, algumas delas por várias horas. Um fato relevante é que, além dessas pessoas cederem seus depoimentos e nos dedicarem seu tempo de descanso, todas elas nos agradeciam pela oportunidade de poder contar sobre seus trabalhos. Muitas entrevistas foram sobre a montagem de “Casa de Brinquedos”, mas em geral outras questões relativas à escola e à educação em geral eram abordadas.

A disponibilidade dos arte-educadores também merece destaque. Todos os entrevistados atenderam aos nossos pedidos, cedendo seus depoimentos e seu tempo. Merece destaque também o fato de que vários foram à universidade ou à própria casa dos educadores-pesquisadores para cederem suas entrevistas, dedicando várias horas para nosso trabalho.

O passo seguinte foi a sistematização dos relatórios de observação, escritos durante ou imediatamente após as visitas à escola ou outros espaços da Secretaria de Educação (principalmente os locais onde ocorreram eventos com apresentações artísticas de alunos e professores, como o Teatro Adamastor). Esses relatórios foram importantes para oferecer uma descrição da escola, de suas atividades e das apresentações, assim como socializar com todos os membros da equipe de educadores-pesquisadores os dados obtidos por cada um dos participantes. Da mesma maneira foram transcritas e sistematizadas as entrevistas realizadas com os diversos protagonistas da escola.

A partir disso, os dados foram organizados e analisados com a finalidade de identificar os vários aspectos que constituíam a experiência, direta e indiretamente. A partir daí, foi elaborada a primeira versão da narrativa, de cunho mais descritivo e analítico. Em seguida, a partir das sugestões da coordenação do Proyeto “Elaboración de políticas para la prevención del fracasso escolar”, foi redigida a segunda versão da narrativa, com a inclusão de imagens da escola e dos projetos de arte-educação por ela desenvolvidos.

Esta narrativa tem início com a apresentação da escola, de seu Projeto Pedagógico, da experiência da montagem de “Casa de Brinquedos” e a dinâmica dessa escola que permite o desenvolvimento de projetos deste tipo. Em seguida, são apresentados o Projeto Político-pedagógico da Rede de Educação em Guarulhos, seu Programa de Formação Permanente de Educadores e o lugar que neste ocupam os Projetos de Arte-educação.

A escola A Escola Municipal Evanira Vieira Romão é uma escola antiga de Guarulhos, um

município fundado em 1560, como núcleo indígena “Nossa Senhora da Conceição de Guarulhos”, e seu nome tem origem na língua Tupi. Hoje, com quase 1.300.000 habitantes,

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esse município situa-se na Região Metropolitana de São Paulo, a mais rica do país. A maioria de sua população, no entanto, pertence às classes populares, em geral trabalhadores com baixa remuneração, vivendo em condições precárias. Um fato interessante é que são muitas as famílias que têm a mulher como chefe e provedora do lar. A população da cidade, por suas condições, revela a desigualdade que há séculos caracteriza a sociedade brasileira, fruto de políticas sócio-econômicas comprometidas com as classes dominantes, o que identifica a cidade e o país com a sociedade latino-americana como um todo. Desde 2001, no entanto, a cidade conta com uma gestão municipal que tem realizado um intenso trabalho de inclusão social.

A escola está situada na Vila Augusta, um dos mais antigos bairros do município de Guarulhos, muito perto de onde ficava uma das estações da linha férrea que ligava a cidade à capital, e que incentivou o crescimento do bairro. Está construída num amplo espaço que abrigava a residência de uma antiga família de Guarulhos, que dá nome ao Parque Fracalanza, um espaço de lazer para os moradores das redondezas e um dos Centros de Formação de Professores, além da Escola Evanira Vieira Romão.

O bairro é residencial, arborizado, possui todas as benfeitorias próprias das regiões urbanas e habitado principalmente por pessoas das camadas médias, com muitos idosos. Entretanto, a escola atende muitas crianças das classes populares, moradoras de alguns núcleos de favelas próximos. Não se notam diferenças sociais entre as crianças, pois todos usam uniformes escolares, novos e coloridos, cedidos gratuitamente pela Prefeitura. No período noturno, é oferecida a Educação de Jovens e Adultos, para alunos das classes populares, que não completaram ou realizaram a escolarização básica. Assim, embora não esteja situada na periferia da cidade, essa escola atende alunos típicos da Rede de Ensino como um todo.

Embora diferente das novas escolas – construídas nos últimos sete anos, com arquitetura adequada às necessidades pedagógicas, amplas, coloridas e ajardinadas –, essa escola foi reformada e ampliada, e se apresenta, logo à primeira vista, como um espaço bonito e adequado às atividades pedagógicas, bem cuidado e acolhedor. Há salas de aula amplas, claras e arejadas; um pátio situado no centro da escola, integrando os espaços, com um palco que possibilita sua utilização como um teatro; há uma horta atrás do prédio, onde são cultivadas plantas comestíveis; o entorno da escola é cercado por um amplo arvoredo, que tem árvores altas, provavelmente muito antigas, pertencentes ao bosque que está até hoje preservado em todo o parque, dando sombra e frescor a toda a escola.

Chama a atenção, logo à entrada da escola, num longo declive, uma escadaria toda

decorada por um mosaico colorido. Esse mosaico foi feito pelos alunos e educadores, junto com os arte-educadores de Artes Plásticas.

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A escola tem 6 salas (5 salas de aula e uma de informática), funciona das 7h às 23h,

totalizando 16 turmas, totalizando 449 alunos. Atende à Educação Infantil (alunos de 3 a 5 anos de idade); Ano Inicial da Educação Fundamental (6 anos); Educação Fundamental (7 a 10 anos) e Educação de Jovens e Adultos (no período noturno). A equipe de gestores é formada por: diretora, professora coordenadora e professora referência de ciclo; são 18 professoras; 2 formadores de Arte-educação; um funcionário administrativo; 10 funcionários, responsáveis pela alimentação escolar (3), limpeza e manutenção (3) e controle de acesso à escola (4).

Há um Conselho Escolar, composto por pais ou avós de alunos; professores (eleitos por seus pares) e diretora. Nessa escola, o Conselho Escolar é muito atuante; pais e professores participam das decisões e atividades realizadas na escola. Muitas crianças são cuidadas pelos avós, daí a grande participação destes na escola.

O que mais chama a atenção, no entanto, é o clima alegre e receptivo das pessoas; o som de vozes e cantos de crianças; a circulação de gestores, professores, funcionários, mães e alunos pela escola. Há movimento, atividade, liberdade e, principalmente, alegria, que convivem harmoniosamente com um espaço organizado e bem arrumado.

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É nesse espaço que a escola realiza seu trabalho pedagógico, que envolve toda a comunidade escolar, criando condições para a aprendizagem e o desenvolvimento integral de seus alunos, com um trabalho criativo, participativo e inclusivo. Uma das razões para o sucesso desse trabalho é que a escola tem um Projeto Pedagógico vinculado ao Projeto Político-pedagógico da Secretaria de Educação, e este tem nos Programas de Arte-educação uma das bases do currículo e da formação de educadores.

O trabalho pedagógico da escola Nas muitas conversas com os educadores, alunos e pais, todos falam da qualidade

do trabalho pedagógico da escola e do envolvimento de todos nas atividades realizadas. Todos parecem ter consciência de que naquela escola é oferecida uma educação de qualidade e têm orgulho disso. Por esse motivo, talvez, todos querem falar e mostrar o que é realizado. Ao falarem, jamais o relato é sobre o próprio trabalho, mas sempre sobre os resultados da participação do grupo, utilizando todos os recursos, humanos e materiais, disponíveis na escola, na SME e no município. São muitos os exemplos que mostram que esses recursos são utilizados com criatividade e originalidade, tendo sempre em vista a vida escolar de seus alunos.

O êxito dessa escola é resultado de muitos fatores. É uma escola que tem um

Projeto Pedagógico voltado para a aprendizagem do aluno; professoras, gestoras e pais envolvidos com a escola; participação dos educadores nos programas de formação e eventos oferecidos pela Secretaria de Educação; atividades participativas e coletivas; inclusão da Arte-educação no trabalho pedagógico; e, sobretudo, relações de cooperação, respeito e solidariedade entre educadores, alunos e pais.

A gestão da escola é realizada por um grupo composto por diretora, professora-coordenadora e professora referência de ciclo8. A primeira impressão que se tem ao adentrar o espaço da escola é a integração entre as gestoras, que trabalham juntas, cada qual exercendo sua função específica, mas tendo como foco as atividades pedagógicas da

8 A gestão escolar é formada por diretora, professora coordenadora (responsável pela coordenação pedagógica) e professora referência de ciclo (responsável pela integração dos projetos pedagógicos da escola entre os professores e os alunos).

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escola como um todo. Percebe-se que o compromisso com a aprendizagem dos educandos é a diretriz do trabalho desenvolvido, baseado na troca de experiências, discussão, reflexão e tomada de decisões com base no consenso. As relações entre as gestoras e entre estas e a comunidade escolar é baseada no respeito mútuo e tem como foco a construção de uma escola que ofereça um ensino de boa qualidade, que busca garantir a aprendizagem e o desenvolvimento de todos: alunos, educadores, funcionários e famílias.

A diretora, Zenaide Evangelista Clemente Cobucci, é uma pessoa muito comprometida com a educação e com a comunidade escolar, ativa, organizada, alegre, gentil e sensível. A professora referência de ciclo9, Miriam Augusto da Silva, é alguém que consegue articular com muita eficiência sua formação em educação física, artes cênicas e pedagogia com o Projeto Pedagógico da escola e, principalmente, com os Projetos de Arte-educação, com competência e sensibilidade. A elas soma-se o trabalho da professora coordenadora, Antonieta de Melo, que se ocupa da integração entre os professores pela troca de experiências, reflexão e busca de soluções para os problemas pedagógicos do cotidiano escolar. Cada uma delas tem sua função específica, mas suas ações são compartilhadas e há participação delas em todas as atividades desenvolvidas. Para falar da atuação de cada uma delas é necessário contar um pouco sobre essas educadoras.

Trabalhando há muito tempo na SME, Zenaide Evangelista Clemente Cobucci ocupou vários cargos na administração e assumiu a direção dessa escola há um ano. É uma pessoa participativa e muito comprometida com a educação e com a escola, sobretudo em fazer dela uma escola de boa qualidade, com a participação de toda a comunidade. Chama a nossa atenção seu entusiasmo e a maneira apaixonada de falar sobre os alunos, os projetos, o trabalho coletivo da escola.

Antonieta de Melo é uma professora que assumiu a coordenação pedagógica da escola recentemente, afirmando que esse “é o tempo de conhecimento que tenho do projeto por meio dos relatos das professoras e direção, que sempre falam com grande entusiasmo sobre o que a escola faz, relacionado à Arte-educação”. Ela traz uma grande experiência em Educação de Jovens e Adultos, o que lhe dá uma sensibilidade especial para pensar a escola como um espaço de inclusão de todos os educandos, rompendo com preconceitos e estigmas. Apesar do pouco tempo, ela apóia os Projetos de Arte-educação, vendo neles uma possibilidade efetiva de promover uma educação realmente inclusiva.

Miriam Augusto da Silva está há 3 anos nessa escola e é uma das responsáveis pelo desenvolvimento dos Projetos de Arte-educação, uma grande incentivadora e entusiasta do trabalho realizado, exercendo um papel fundamental na criação e desenvolvimento das atividades. Sua história pessoal e profissional está muito ligada ao trabalho que ela desenvolve na escola.

Conversando com elas, chama a atenção o uso recorrente do pronome “nós”. O pronome “eu” só é utilizado quando elas se referem a fatores pessoais. Isso revela, sutilmente, o padrão das relações entre elas e as atividades desenvolvidas na escola.

Essas características também se revelam nas relações entre elas e as professoras, funcionários, alunos e seus familiares. Atitudes de cooperação, respeito e consideração parecem caracterizar as relações estabelecidas entre toda a comunidade escolar. Miriam fala da participação dos pais e das mudanças que essa participação provoca neles e nos alunos:

“Há uma das mães que participam, é colaboradora, tudo o que pede ela

busca. No começo era uma mãe muito distante; hoje fica dois períodos na escola, um como mãe e um período como aluna da EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Seu filho está satisfeito, demorou a se alfabetizar, hoje escreve texto, se expressa quando tem oportunidade.”

9 A SME adota o sistema de ciclos, com base nos Tempos da Vida, que, segundo Arroyo (1996), permite ao aluno um tempo mais longo e flexível para sua formação do que o sistema de seriação, respeitando a individualidade de cada educando em seu processo de desenvolvimento. O professor referência de ciclo faz parte da equipe gestora da escola e tem a tarefa de integrar as atividades pedagógicas entre os alunos dos diversos estágios e os professores.

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Todos os educadores dessa escola fazem ou já fizeram todos os cursos oferecidos pela Secretaria de Educação10. Os professores são incentivados a fazer os cursos e socializar depois suas aprendizagens com os outros docentes da escola, o que ocorre nos encontros coletivos, realizados nas horas-atividade11. Além dos cursos de Arte-educação (Teatro, Dança, Artes Plásticas, Canto Coral e Contar Histórias), os professores dessa escola participam dos cursos de línguas (espanhol, italiano, francês, inglês e Libras), Informática, Pró-letramento (sobre alfabetização; quase todos os professores da escola participam desse curso), Educação Infantil, Ano Inicial (formação pedagógica para a inserção de crianças de 6 anos em sua transição para o Ensino Fundamental), Ciência Hoje (curso que visa divulgar os conhecimentos científicos e incentivar a atitude investigativa), Estrada para a Cidadania e outros.

Além dos cursos, a Secretaria de Educação promove vários eventos ao longo do

ano, como as Semanas da Educação; Semana da Consciência Negra; Festa das Nações; Semana da Pátria; Semana de Artes, Ciência e Tecnologia; Semana do Livro e do Contar Histórias e muitas outras, cuja finalidade é oferecer a oportunidade de ouvir e debater temas de interesse educacional, cultural e científico com especialistas; expor os trabalhos realizados nas escolas por alunos e professores; incentivar a troca de experiências entre educadores e divulgar os trabalhos realizados para a comunidade em geral. Todos os educadores dessa escola participam dos eventos realizados pela Secretaria, não apenas como ouvintes, mas também como expositores. É marcante o fato de que todos os eventos da Secretaria de Educação têm em sua programação a apresentação de atividades culturais realizadas por alunos; a Escola Municipal Evanira Vieira Romão é uma das escolas que sempre apresentam suas produções artísticas, reconhecida por todos pela qualidade e criatividade de suas apresentações.

10 Os cursos que compõem o Programa de Formação Permanente, oferecidos pela SME, são criados, organizados e administrados pelo Departamento de Orientações Educacionais e Pedagógicas. Esses cursos são oferecidos a todos os educadores da Rede de Ensino, gratuitamente, de livre escolha pelo educador, não sendo, portanto, obrigatórios. A freqüência aos cursos é contada para ascensão no Plano Carreira Docente. 11 Todos os professores têm uma jornada semanal de 25 horas, das quais 20 horas são dedicadas ao trabalho direto com os alunos e 5 horas-atividade, para encontros de discussão, reflexão e aprofundamento pedagógico, sob a coordenação da professora coordenadora.

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A diretora da escola acredita que os educadores devem aproveitar ao máximo esses

cursos e eventos; para isso, ela os incentiva e cria condições para que todos possam deles participar. Ela diz que essas atividades são muito importantes para a melhoria do trabalho pedagógico, pois além de contribuir diretamente para a aprendizagem dos alunos, contribui também para o professor como pessoa, pois eles “se transformam nos cursos”; o professor, como aluno desses cursos, participa como sujeito ativo, como quem é capaz de fruir e produzir arte. Nessa escola, há professores que fazem parte do Coral Educanção, formado apenas por professores, de peças de teatro e outras atividades artísticas da Secretaria. Como afirma a diretora, “todos participam de tudo”.

Os saberes adquiridos por cada professor nos cursos são compartilhados no trabalho cotidiano. Cada professora tem sob sua responsabilidade uma classe, um agrupamento de alunos; entretanto, elas não trabalham apenas com seus alunos, mas com os alunos de outras professoras, compartilhando com eles os saberes que elas dominam mais, que têm maior afinidade e facilidade para trabalhar. Os alunos têm contato com vários professores, assim como os professores conhecem e se relacionam com um grupo maior de alunos, permitindo um maior entrosamento entre todos. Com isso, cria-se para o conjunto de alunos a experiência comunitária e para os professores a importância do trabalho em equipe.

O que percebemos nas visitas à escola é que ela funciona como uma comunidade real. Isso se mostra de várias maneiras, até em coisas muito simples. Logo na entrada da escola há um grande painel de fotografias que retrata as atividades desenvolvidas pela escola; aparecem nessas fotos alunos de todas as turmas, em atividades diversas, em sala de aula, no pátio, em passeios e em apresentações públicas; aparecem professores, gestoras e funcionários e, muito significativo, é o fato de que em várias fotos aparecem pais, avós e irmãos dos alunos na escola, ora assistindo apresentações dos alunos, ora participando das atividades da escola.

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É interessante notar que, além do uso constante do “nós”, nas falas das educadoras uma palavra é o tempo todo repetida: “todos”. Elas falam de todos os alunos, todos os professores, toda a escola, assim como falam de todos os cursos, todos os eventos... Como diz a diretora:

“(...) na verdade é um movimento de todos da escola. É a escola como

um todo, são todas as crianças, todos os educadores, incluindo desde o agente de portaria, a cozinheira, a menina da limpeza, todos. Quando você trabalha Arte-educação na escola, você movimenta a escola. Tem o pai que traz o filho em horário diferente para uma apresentação. Vem para assistir ao ensaio. (...) Todos se movimentam, desde o pessoal da limpeza que se preocupa com a limpeza do pátio, o pessoal da merenda colabora, pois pode ocorrer atraso para o horário do almoço. A escola tem que acreditar. É tão gostoso quando você vê o pessoal parando o serviço para assistir... Sinto que eles também acreditam e começam a fazer parte, por isso a Arte-educação é um movimento da escola. Todos trabalham e colaboram.

O projeto mudou a cara da escola, ele movimenta a escola, desde o agente de portaria até o diretor. Quando há ensaio, a escola toda se movimenta naturalmente. Todas as pessoas se soltam mais, não só as crianças, mas todos os funcionários da escola. As pessoas estão acreditando mais na arte, não só os pais, mas os alunos, funcionários.” Uma foto estampada na tela do computador da sala das gestoras revela a força da

vida comunitária na escola. Nessa foto estão todas as educadoras da escola, em pose que demonstra satisfação e camaradagem, num passeio por elas realizado a um espaço de preservação ambiental. Percebe-se que há entre elas laços de companheirismo que ultrapassam as relações de trabalho.

É muito interessante que as educadoras, ao falarem sobre os projetos realizados, contam que alguns alunos revelaram desempenho excepcional em alguma atividade, principalmente em alguma expressão artística. Falam de crianças que revelaram um jeito especial para o teatro, uma habilidade para a música e outros tantos casos muito interessantes. Mas, elas também falam, com muito orgulho, de educandos que tinham algum tipo de dificuldade e que, por sua participação nesses projetos, passaram por mudanças importantes, demonstrando melhoria no processo de aprendizagem e desenvolvimento, inclusive superando muitos problemas.

Nessa escola, para participar dos projetos de arte, os alunos não são “escolhidos” por suas habilidades, para produzir um resultado de “alto nível técnico-artístico”. Ao contrário, nessa escola, todos os alunos são incentivados e estimulados a participar de todas as atividades, mas a escolha é feita pela criança. O que interessa é a participação da criança numa atividade prazerosa e produtiva, para que ela possa revelar, desenvolver e aperfeiçoar suas potencialidades, que podem ser desconhecidas até por ela própria e, sobretudo, por professores e família. Essa atitude, ainda que pareça simples e óbvia, é muito importante para uma educação realmente inclusiva, como diz Antonieta de Melo, a professora coordenadora:

“Quando vejo o projeto acontecendo na rede, penso na inclusão. A

Arte-educação é um grande leque que possibilita a participação de todos, independente de crença, de condição social, independente da leitura e da escrita. Ele [o aluno] começa a se apropriar da fala, do conhecimento do outro e toma liberdade para se expor por meio da arte. Ao se apropriar da arte, percebe que tem capacidade para aprender o que parece tão impossível: a leitura e a escrita; e descobre que é por meio da escrita que pode registrar o que acontece na sua vida cotidiana. Ao trabalhar em grupo, no qual todos têm a oportunidade de participar pela fala, canto, dança, ele

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percebe que é diferente e que para ser aceito é preciso respeitar a diferença do outro.” O resultado dessa atitude pode ser comprovado na aprendizagem e no expressivo

desenvolvimento observado nos educandos, principalmente naquelas crianças que poderiam vir a ser vítimas do processo de produção do fracasso escolar.

Os projetos de Arte-educação têm papel privilegiado no Projeto Pedagógico dessa escola e permitem concretizar uma efetiva educação inclusiva. Eles estão incorporados a todas as atividades dessa escola. A “Construção do Bom Cidadão” foi o tema-gerador do Projeto Pedagógico da escola em 2007; em torno dele todas as atividades da escola foram desenvolvidas. Segue abaixo um quadro com os projetos desenvolvidos pela escola em 2007.

PROJETOS 2007 – TEMA GERADOR: CONSTRUÇÃO DO BOM CIDADÃO . Alfabetização Significativa . Construção da história . O cidadão conhecendo o mundo, descobrindo seus espaços e direitos (visita ao Poupatempo – RG, visita ao

Correio – carta social) . Danças Folclóricas (culminância na Festa Junina) . Casa de brinquedos ¨- dança, teatro, canto coral e artes plásticas . Projeto Tamar (preservação de tartarugas marinhas) . Ciência Hoje . Estrada para a Cidadania . Movimento: resgate de brincadeiras, cantigas, jogos e danças . Canto Coral . Ciranda da leitura – Proposta de leitura em casa com a participação dos pais . Leitura de fruição . Leitura (Visteon): cidadania e folclore . Jogo do bom cidadão . Trazendo o teatro para a escola - como a reciclagem pode gerar frutos . História do bairro . Informática Educativa . Compartilhando a leitura – ensinando a ler livros mais extensos, por partes, com questionamento, interpretação e

crítica (parceria com o Lions Clube de Guarulhos) . Correspondência – intercâmbio com alunos da Escola Municipal Manuel de Paiva . Paulo Freire – Pesquisa, elaboração de palestras feitas pelos educandos, confecção de cartazes e adereços do

desfile de sete de setembro - culminância na escola e na avenida (participação de toda a comunidade escolar) . Projeto Itinerante de Educação para o Trânsito – Cidade Mirim . Campanha de combate aos roedores (com a Secretaria de Saúde - Divisão Técnica de Zoonoses) . Implantação do Self-Service: valorizando o espaço da alimentação . Projeto História do Bairro . Feira de Arte e Cultura PROJETOS DESENVOLVIDOS EM RODÍZIOS DE PROFESSORES E ALUNOS . Espanhol/Literatura . Contar Histórias/Brincadeiras . Contar Histórias/Música . Inglês/Artes . Jogos Matemáticos/Contar Literatura PARTICIPAÇÃO EM EVENTOS DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO . Encontro de Corais . Dia do Desafio . Semana da Educação (com a apresentação de “Casa de Brinquedos”, no Teatro do Centro Municipal de Educação

Adamastor e Praça Getúlio Vargas) . Apresentação de “Casa de Brinquedos”, no Encontro com Entidades Conveniadas, no Teatro do Centro Municipal

de Educação Adamastor . Desfile de 7 de setembro . Mostra EJA (educação de Jovens e Adultos), no Teatro do Centro Municipal de Educação Adamastor . Encontro de Corais II . Semana da Consciência Negra ATIVIDADES DESENVOLVIDAS EM HORÁRIO EXTRA-AULA . Iniciação musical e flauta – aulas de flauta (o professor é um pai, voluntário, participante do Conselho Escolar,

Militar, músico da Banda do Exército) . Iniciação Musical – com Maestro Marcio Demazo– Teatro do Centro Municipal de Educação Adamastor, aos

sábados

14

PALESTRAS . Pediculose e Verminose – com pediatra voluntária . Código do Consumidor – Procon - DST/AIDS – Secretaria da Saúde

Este quadro mostra a riqueza das atividades desenvolvidas pela escola; os muitos

temas trabalhados; a articulação entre eles; a preocupação com questões afins ao processo de escolarização, como saúde e trânsito por exemplo; temas de natureza social; tendo, no entanto, como prioridade a garantia do ensino efetivo das matérias escolares. Percebe-se a ênfase na alfabetização – envolvendo leitura e escrita – e na matemática, chamando atenção a maneira como os conteúdos são tratados, a partir de atividades prazerosas e sensíveis, tornando-se efetivamente significativas tanto para educandos como para educadores.

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Uma experiência de arte-educação: Casa de Brinquedos A montagem da peça teatral “Casa de Brinquedos” é uma das atividades

desenvolvidas na Escola Municipal Evanira Vieira Romão. Essa experiência nasceu da iniciativa de duas professoras, Maria Regina Mendonça de Alvarenga Dini e Maria Célia Mendonça de Alvarenga12, e do apoio da professora Miriam, com a participação de toda a comunidade escolar. Esse trabalho faz parte do Projeto Pedagógico da escola, é articulado ao Projeto Político-pedagógico da Secretaria de Educação, incluindo os Programas de Formação de Professores e, dentro destes, os Programas de Arte-educação. Esse trabalho foi escolhido para ser aqui narrado, pois revela as possibilidades de um trabalho pedagógico que pode ser, além de um importante meio para o enfrentamento do fracasso escolar, uma experiência de aprendizagem para todos.

O Projeto Casa de Brinquedos13 foi desenvolvido em 2007. O primeiro projeto do grupo foi a montagem de “Os Saltimbancos”14, em 2005; depois, em 2006, “Panos e Lendas”15. As educadoras consideram que o trabalho realizado é um processo de construção que vem sendo realizado ao longo desses três anos, que vai se somando, crescendo e melhorando não só a qualidade da apresentação, mas o envolvimento e a aprendizagem das crianças que, nesse processo, se desenvolvem significativamente. Acreditam que é esse processo de construção que leva, a cada ano, as crianças a se desenvolverem e participarem cada vez mais das atividades dos Projetos de Arte-Educação.

12 Maria Regina Mendonça de Alvarenga Dini e Maria Célia Mendonça de Alvarenga são irmãs gêmeas, têm muito em comum em suas trajetórias profissionais, concepções de educação e práticas pedagógicas. Elas trabalham na mesma escola e são parceiras no Projeto Casa de Brinquedos e em outros que foram realizados, assim como participam do Coral Educanção. As duas professoras têm formação em Magistério (nível médio), cursaram Pedagogia e são pós-graduadas em Educação Especial. Elas serão chamadas, respectivamente, de Regina e Célia daqui por diante. 13 Peça teatral infantil, de gênero musical, com trilha sonora desenvolvida pelo cantor e compositor Toquinho, estreada em 1999. 14 Peça teatral infantil, de gênero musical, com texto de Sergio Bardotti, música de Luiz Enriquez e tradução e adaptação de Chico Buarque, inspirada em “Os músicos de Bremen”, dos Irmãos Grimm. 15 Essa peça conta a história entre o começo e o fim do mundo, com mestres de cerimônia e contadores de histórias, abordando costumes, crendices, cantos e brincadeiras do folclore brasileiro, utilizando-se de canto e dança, tendo como finalidade mostrar nossa cultura e raízes. São utilizados panos (tecidos) variados que são manipulados pelos atores, criando no palco cenários e personagens.

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A professora Miriam narra a origem e o desenvolvimento do Projeto “Casa de

Brinquedos” como atividade pedagógica construída coletivamente. Diz ela sobre a origem do projeto:

“O projeto Casa de Brinquedos é continuidade de um projeto que

fizemos há três anos atrás, em uma parceria com a professora Regina; fizemos uma adaptação dos ‘Saltimbancos’. Ela trabalhou canto-coral e eu trabalhei artes-cênicas (quando adaptei os textos), pois percebi que era uma forma de as crianças conhecerem os textos da dramaturgia. Essas crianças [já] estiveram comigo [antes].

A professora Regina, há 18 anos havia levado seus filhos para assistir Casa de Brinquedos, ela gostava muito do texto, da montagem, mas eu não conhecia a montagem, foi quando encaminhamos um e-mail para o Toquinho. Seu irmão nos respondeu e enviou uma fita sobre a montagem da Casa de Brinquedos. Fiz adaptação textual, selecionamos as músicas, as professoras Regina e Célia trabalharam o coral. O marido de uma delas fez o arranjo, nós montamos o CD.” O maestro Vanderlei Banci, responsável pela formação em Canto Coral, para alunos

e professores, conta como iniciou o Projeto Casa de Brinquedos:

“Na Escola Evanira, nós temos duas professoras; o marido de uma delas toca violão. E eles começaram a fazer um trabalho com a escola, montando a peça do Toquinho [Casa de Brinquedos]. É uma peça que envolve vários aspectos: musical, cênico, artes plásticas e dança.

Foi um trabalho associado, porque as professoras trabalharam bem a parte musical da peça, e o marido de uma delas, que toca violão, acompanhou, dando apoio. E aí [a idéia] casou com os outros projetos e ficou super bacana. Eles escolheram duas peças com as quais as crianças se identificaram muito; eles criaram um vínculo com a música. Fizeram antes Saltimbancos e neste ano Casa de Brinquedos.” A Professora Regina relata que, “para a Casa de Brinquedos, especificamente, teve

todo um trabalho antes [da apresentação]”. Segundo ela, ambas conheciam as músicas de Toquinho, autor da peça, mas não conheciam o enredo, embora ela já tivesse assistido com os filhos. Para ter acesso ao texto da peça, ela conta:

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“(...) eu, muita atrevida, mandei um e-mail para o site do Toquinho, perguntando aonde poderia encontrar o enredo da peça. Mandei [o email] achando que não ia ter resposta, quando veio a surpresa: o irmão do Toquinho, que é empresário dele, respondeu que tinha uma fita em VHS, de uma montagem caseira da peça, e que eu poderia ir à casa dele, em São Paulo, buscar a fita”.

Elas foram buscar a fita, a professora Miriam fez o enredo e a montagem da peça, e

as duas professoras se ocuparam do desenvolvimento da parte musical. Como não daria para fazer a montagem da peça inteira, pois ficaria muito extensa, delegaram aos alunos a decisão de escolher as músicas que iriam ser incluídas para a apresentação; assim, “os alunos foram envolvidos desde o começo! Conheceram [a vida] do Toquinho, assistiram ao filme que [eles] mandaram”, para depois realizarem as escolhas. Em outras palavras, esse trabalho não foi algo desenvolvido pelas professoras e imposto aos alunos; a presença destes foi ativa desde o início, implicando escolhas e participação.

Esse projeto incorpora várias expressões artísticas: artes cênicas, música, dança e artes plásticas, envolvendo um complexo trabalho de pesquisa, adaptação, articulação das várias expressões artísticas num todo coerente, produção, sensibilização das crianças e de seus pais para o projeto, ensaios, mudanças no cotidiano da escola para preparação e organização do trabalho e apresentações na escola e em outros espaços públicos. A Professora Regina conta que o trabalho com o coral na escola já vem sendo desenvolvido há três anos, em uma parceria com o teatro, que é trabalhado pela professora Miriam. Diz ela:

“Tudo começou há três anos atrás. Na verdade, nós falamos Projeto

Casa de Brinquedos, mas não é o projeto Casa de Brinquedos! É um projeto de união entre teatro, música e, esse ano, nós colocamos a dança e as artes plásticas também!”.

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A realização de um projeto desse tipo envolve planejamento e organização de várias ações, o que exige disponibilidade e compromisso de todos, além de uma atitude de coletivismo. As professoras contam as várias providências que foram tomadas antes do início do trabalho com os alunos e todo o processo de criação e preparação para os ensaios.

Para a diretora Zenaide, os professores, principais mediadores entre os alunos e as atividades de arte-educação, são considerados por ela como pessoas que não apenas contribuem para o desenvolvimento dos alunos, mas também eles se transformam. Segundo ela, todos crescem, todos aprendem e se transformam. Diz ela:

“Temos um grupo de educadores otimistas e quando paramos para

avaliar o trabalho com arte sempre nos surpreendemos com o progresso das crianças, elas foram além das nossas expectativas. Todos crescemos, começamos a falar a mesma linguagem.” Para a diretora, os pais também são chamados a participar, são informados e

sensibilizados para cooperar e fruir dos resultados:

“Fazemos uma reunião e apresentamos o projeto aos pais, que são informados sobre o que está acontecendo. Nos ensaios e apresentações contamos com a participação [deles].” Há uma preocupação em fazer da atividade algo significativo para a criança e esse é

um dos traços marcantes do projeto, assim como a preocupação com a construção coletiva da peça, o que se percebe no trabalho de desenvolvimento dos personagens. Uma das atividades básicas é a elaboração do texto pelos professores e a leitura pelo aluno. A Professora Miriam conta como ocorre o processo de criação e produção da atividade artística:

“A partir do texto fazemos a adaptação, montamos o diálogo e os

alunos realizam a leitura. Quando iniciamos a parte cênica, os alunos já não vão com o texto; cada criança dá o próprio significado para as falas, que vão se modificando de acordo com o que cada criança assimilou. Das brincadeiras de improviso são retiradas as marcas e a construção dos personagens. Interfiro nos gestos, expressões dos sentimentos; brincando construímos. O interessante é que tem uma criança que faz um personagem, mas todos os outros sabem sobre esse personagem. Quando uma criança falta, os outros podem assumir o seu papel.” São trabalhados a expressão corporal, o movimento e a musicalidade e, ao mesmo

tempo, os alunos se divertem e aprendem. Assim, promove-se o desenvolvimento e a melhoria da auto-estima, autonomia e confiança da criança; isso contribui não apenas para o desempenho escolar, mas se estende para a vida como um todo. A professora fala sobre isso ao descrever a maneira como se trabalha a dança no projeto:

“Na dança cada um faz um gesto, depois imitamos os movimentos uns

dos outros e daí surgem os gestos que irão para a coreografia. Eles ficam felizes, sentem prazer porque o projeto sai deles. O projeto trabalha a desenvoltura, auto-estima, prazer em estar na escola, auto-confiança. Eles não demonstram insegurança em participar. Crianças que no início não queriam participar hoje participam.” Ao se referir aos Projetos de Arte-educação, associa-os sempre às idéias de

coletividade e movimento, diz Miriam: “(...) na verdade é um movimento de todos da escola. É a escola como um todo”.

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A sensibilização para a participação das crianças faz parte do trabalho das educadoras, mas elas também consideram e respeitam a escolha de cada um. Assim, é exercido na prática um dos princípios da educação inclusiva: o reconhecimento, respeito e acolhimento das diferenças individuais, que implica não só a aceitação de quem não quer participar, como o reconhecimento das habilidades individuais das crianças e a criação de oportunidades para que seus potenciais sejam desenvolvidos, como diz Miriam:

“Na primeira montagem poucas crianças queriam participar; teve um

que começou e depois desistiu, outro que não queria no primeiro momento e depois quis participar. Há crianças que querem sempre. Sempre deixo que eles decidam entre participar ou não. Há os talentos; por exemplo, a An.16 tem um talento artístico: em todas as montagens ela aparece, tem muita propriedade de fala e colabora muito com o processo. Temos que olhar os dois lados, não podemos desprezar os talentos e nem os que têm dificuldade. Tinha uma criança que não falava e quis participar do sorteio de um personagem com muita fala. Será que essa menina vai agüentar a pressão? Hoje em dia ela canta. Você olha e pensa que ela não faz, ela é tímida, mas se propõe e faz.” O trabalho é desenvolvido ao longo de todo o ano e envolve muitas atividades,

ligadas entre si e com outras que têm também outros objetivos, promovendo uma efetiva integração de saberes e fazeres, que de forma lúdica e prazerosa vão envolvendo os alunos e contribuindo para seu processo de escolarização. A professora Regina relata como se dá esse processo:

“Para finalizar [o projeto], nós trabalhamos o ano inteiro. Você vai

trabalhar um texto, você pega uma música... [Assim, os alunos] não percebem que eles têm a obrigação de fazer, de aprender. É uma coisa tão livre, tão natural, que o conteúdo flui naturalmente. [Por exemplo], demos uma atividade com gêneros textuais, com base em uma fábula; eles poderiam utilizar qualquer gênero textual para contar aquela fábula, e muitos utilizaram a música. Uns criaram a música, outros pegaram uma música da ‘Caixa de Brinquedos’ e colocaram a fábula em cima da música, [ou seja], uso do mesmo ritmo como suporte de criação.” As crianças apresentaram o projeto Casa de Brinquedos pela primeira vez no

Encontro de Corais, a convite do Maestro Vanderlei Banci17, e isso teve um forte impacto sobre elas, como conta a Professora Regina:

“A primeira participação nossa foi no Encontro de Corais, que o

professor Vanderlei nos convidou. Esse Encontro de Corais é, na verdade, a apresentação [dos projetos] montados pelas professoras que fazem parte do Educanção18 em suas escolas, e que levam para o Encontro de Corais. Só que nós não fomos só com o coral, nós fomos com o coral e o teatro juntos! [Levamos] um trecho da ‘Casa de Brinquedos’, que estava bem no começo (...). Aí, quando nós voltamos, fomos a única escola com teatro e coral; as outras só tiveram coral. O A., [um aluno, dizia] assim: ‘Arrasamos! Arrasamos!’”

16 Todas as crianças serão aqui identificadas com iniciais, para que não sejam identificadas, respeitando aos critérios da ética em pesquisa,

já que algumas delas serão retratadas a partir de problemas se escolarização ou saúde que a acometeram. 17 Arte-educador que será apresentado adiante. 18 Educanção é um coral formado pelas professoras que estão no estágio mais avançado da formação em Canto Coral, sob a coordenação do Maestro Vanderlei Banci.

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O maestro Vanderlei Banci, falando do trabalho da Escola Evanira Vieira Romão, lembra que são promovidos os Encontros de Corais, eventos nos quais os professores trazem seus alunos para se apresentarem para públicos externos à escola; nesses encontros há uma inversão de papéis, pois o professor passa a ser o maestro e as crianças os cantores. Esse é um momento importante para se verificar a extensão do trabalho desenvolvido por ele nos cursos oferecidos aos professores, pois neste ele é o maestro e os professores são os cantores; na escola, os professores tornam-se maestros e os alunos assumem a função de cantores. Dessa maneira, o trabalho se amplia, de maneira que cada professor que faz o curso pode multiplicar as atividades desenvolvidas e, principalmente, criar novas atividades com os alunos da escola. Esse foi um fenômeno demonstrado nessa escola, pois as professoras trouxeram o que aprenderam no curso, mas ampliaram criaram para muito além do que o curso em si oferecia.

A Professora Célia recorda a fala de um aluno, que disse: “Professora, toda vez que eu escutar a música ‘Aquarela’, eu vou me lembrar de você’. Segundo ela, porque “‘Aquarela’ foi a música que eles mais gostaram de cantar”. Conta a Professora Regina que toda vez que havia um evento na escola e a diretora pedia uma música para eles cantarem, eles sempre escolhiam ‘Aquarela’. O gosto por essa música foi ainda mais longe, como conta a Professora Célia, pois na festa do final de ano, na confraternização entre alunos e professores, para a surpresa delas, dois alunos apareceram com violão:

“Durante nossas apresentações, o marido da Regina tocava violão. Nós

tínhamos alguns alunos que estavam aprendendo violão e que ficavam perguntando para ele que nota ele fazia [ao tocar a música]. No encerramento, não tinha nada marcado, mas eles tocaram ‘Aquarela’ no palco. Eles começaram a tocar ‘Aquarela’ e a criançada toda começou a cantar”. A Professora Regina relata que, muitas vezes, durante os ensaios, em vez de

cantar, os alunos perguntavam as notas da música e as anotavam, o que era incentivado por elas e pelo músico, Ismar Dini19.

Ainda em relação às atitudes e comentários dos alunos, a Professora Regina lembra outro episódio interessante, relacionado às vivências proporcionadas pelos projetos:

“Além desse trabalho, eles dançaram a ‘Ciranda’, na Semana da

Consciência Negra e na Festa Junina. A ciranda foi trabalhada, a dança, o ritmo... e quando nós fomos assistir o encontro de corais, no final do ano, uma escola apresentou uma ciranda, mas não era a mesma ciranda, era uma outra ciranda. Eu e ela, a bem da verdade, não tínhamos percebido que era uma ciranda, e veio um aluno nosso, dizendo: ‘Professora, olha esse ritmo! É uma ciranda!’. Quer dizer, ele transportou a aprendizagem que ele teve para um outro momento, para uma outra música, que ele lembrou que era a mesma batida, o mesmo ritmo, de uma ciranda”. A Professora Célia completa os dizeres do aluno: “Dá até para fazer a dança igual a

nossa”. Foi nesse momento que elas notaram que era bastante apropriado e estava realmente correto o que dizia o aluno: “Isso para nós é muito gratificante!”

Deve-se destacar o trabalho realizado pelas educadoras com os pais, pois elas consideram que é importante que eles conheçam o projeto, compreendam o significado da experiência para a aprendizagem e o desenvolvimento de seus filhos e que, também, participem e contribuam com as atividades. Durante toda a montagem de “Casa de Brinquedos”, a escola manteve suas portas abertas para que os pais pudessem assistir aos

19 Ismar Dini, músico, é marido da professora Regina e contribui voluntariamente com o desenvolvimento do projeto Casa de Brinquedos, fazendo os arranjos musicais e o acompanhamento da apresentação com violão.

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ensaios das crianças, chamados de “ensaio aberto”. Os ensaios são realizados dessa maneira para que as crianças sintam-se mais à vontade, que percebam o caráter lúdico da atividade, e não como algo obrigatório, como historicamente têm sido sentidas pelas crianças as atividades rotineiras da escola. Para as crianças isso foi muito importante, segundo a Professora Regina, pois, dessa forma, “tinha que sair tudo certinho, porque tinha gente assistindo. Mas se tivesse que parar, parava; nós corrigíamos, e eles ficavam contentes”.

Para ambas as professoras, o projeto é algo que saiu dos muros da escola, pois as

crianças levam para casa e os pais acabam se envolvendo também. Um outro fator importante para o sucesso desse projeto é que as músicas da peça são conhecidas pelos pais; como diz Célia:

“[Como] o Toquinho é mais da geração dos pais dos alunos, então foi

um projeto que, além de envolver os alunos, envolveu os pais! Isso contribuiu para que os pais se recordassem dos tempos de infância. [Ela ouviu] algumas falas, como: ‘Eu adorei [o projeto]! Porque meu filho, agora, só quer escutar Toquinho e eu adoro o Toquinho!’”. Para Miriam, os projetos da escola atraem os pais; que passam a freqüentar o

espaço escolar como pessoas que a ele pertencem, que são acolhidas, respeitadas e chamadas à participação. É comum as escolas queixarem-se da pouca participação da família; entretanto, quando a família é acolhida como parte integrante da vida escolar e, principalmente, para participar e ver as possibilidades de desenvolvimento de seus filhos, sua presença passa a ser rotineira. É muito interessante o depoimento da professora, que conta como uma mãe tornou-se, também ela, aluna da própria escola:

“Há uma das mães que participam, é colaboradora, tudo o que pede ela

busca. No começo era uma mãe muito distante; hoje fica dois períodos na escola, um como mãe e um período como aluna da EJA [Educação de Jovens e Adultos]. No desfile, ajudou muito. Seu filho está satisfeito, demorou a se alfabetizar, hoje escreve texto, se expressa quando tem oportunidade.” A Professora Célia conta outra passagem que a surpreendeu, dessa vez relacionada

às mães dos alunos:

“Algumas mães ensaiaram um coral, com as crianças, para eles cantarem para nós, professoras, diretora e coordenadora! A mãe falava: ‘Eu não sei se é assim, mas foi assim que a gente ensaiou’. A mãe foi lá na

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frente, regeu o coral de alunos para nós. Uma homenagem que elas fizeram para nós! Isso mostra o quanto elas estavam envolvidas, participando das atividades. Foi um trabalho do qual nós colhemos muitos frutos! Ficou mesmo marcado! Emocionada, uma aluna falou: ‘Professora, nós fomos aplaudidos de pé, professora!’” Esse trabalho, seja por proporcionar às crianças o acesso à arte, seja pela maneira

como foi realizado, com a participação ativa de educadores, alunos e pais, trouxe muitos frutos. Entretanto, é no âmbito da aprendizagem que podemos perceber o quanto essa atividade foi importante principalmente para os alunos, inclusive permitindo a transferência dos conteúdos aprendidos para outras situações de ensino.

Embora a relação do projeto de arte-educação com a aprendizagem não seja a única dimensão e o único motivo para o desenvolvimento desse trabalho pela escola, por sua importância e pelo tema dessa narrativa, será esta mais aprofundada a seguir.

Casa de Brinquedos: Aprendizagem, enfrentamento do fracasso escolar e inclusão Esse projeto mostra como o trabalho pedagógico pode ser enriquecido com a arte-

educação. O acesso à arte é um direito de todos e faz parte do processo de humanização. O trabalho com a expressão artística propicia uma atividade prazerosa às crianças, fazendo da escola um lugar agradável. Mas, além disso, a arte pode ser um poderoso instrumento para o trabalho pedagógico, contribuindo para a aprendizagem das matérias escolares. A arte-educação incorporada às atividades escolares é um facilitador da aprendizagem e, por esse motivo, um meio para o enfrentamento do fracasso escolar e, portanto, um instrumento para evitar a exclusão de milhares de alunos da escola. Em outras palavras, a arte-educação é uma grande parceira para a realização de uma escola verdadeiramente inclusiva.

Muitos são os relatos das educadoras da Escola Municipal Evanira Vieira Romão que mostram como a atividade de montagem da peça Casa de Brinquedos contribuiu para a aprendizagem dos conteúdos escolares pelos alunos, inclusive para muitos que estavam tendo problemas em seu processo de escolarização.

Segundo as professoras, a realização das atividades dos Projetos de Arte-educação permite demonstrar o quanto a música, por exemplo, contribui para o processo de alfabetização. Todos os alunos que participaram do projeto estão alfabetizados, com exceção apenas de dois que, no entanto, caminham para lograr essa condição. Com os alunos mais novos também se observa um significativo avanço no processo de alfabetização. Diz a Professora Célia:

“No ano passado, quando trabalhamos ‘Panos e Lendas’ com o

primeiro e segundo estágios, no primeiro eles não estão alfabéticos e no segundo ainda alguns não conseguem. [Mas] percebe-se o quanto eles crescem com a música. A música ajuda na alfabetização! [No começo], apesar deles lerem apenas alguns trechos que ficaram gravados da música, no final do ano eles chegam lendo e escrevendo a música [toda]”. Contam as professoras que, além de canto, teatro, dança e artes plásticas, o Projeto

“Casa de Brinquedos” foi além, pois foi levado ao trabalho de informática. Elas relatam que os alunos estavam na sala de informática, desenvolvendo um trabalho sobre história em quadrinhos, quando uma das alunas “(...) pegou uma das músicas da ‘Casa de Brinquedos’ e a transformou em história em quadrinhos. Olha o que ela fez! Não era essa a proposta; o tema era livre”. Segundo elas, isso “fugiu das nossas expectativas e do nosso planejamento. Partiu da aluna!”. Vemos, nesse caso, o que se denomina transferência de aprendizagem, isto é, a criança aprende um determinado conteúdo ou habilidade e o aplica a uma situação inteiramente nova.

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Vários casos são relatados pelas professoras, mostrando como esse trabalho provocou uma melhora real no desempenho escolar de muitos alunos. Miriam conta o caso de várias crianças que, com esse projeto, romperam com o ciclo vicioso da produção do fracasso escolar. Isso significa que projetos como esse podem reverter a situação de escolas que, pela maneira como organizam as atividades pedagógicas e tratam a criança das classes populares, acabam por produzir o fracasso escolar. A criança passa a ser vista como portadora de dificuldades para aprender e se desenvolver, porque a escola desconsidera seus saberes e suas necessidades. Nesse projeto, é a escola que cria situações e contribui efetivamente para que crianças que estão sob o risco do fracasso escolar possam superar suas dificuldades e desenvolver-se. Sobre isso, conta a professora:

“Na terceira montagem, tivemos outras surpresas que quero citar: Am.,

C., D. e R. eram crianças com dificuldades de aprendizagem. Am. e C. vieram para a 2ª série e não estavam alfabetizadas. O projeto colaborou para que se alfabetizassem. C. fez três, quatro participações diferentes; hoje ela lê e escreve.

A grande surpresa neste ano foi a Ac., ela veio no primeiro estágio, não lia e não escrevia, não gostava da escola. No 2º ano já se sentiu integrante daquele grupo, até perguntei se ela queria ficar comigo no 2º ano, mas ela quis ir com o grupo; o grupo passou a ter muita importância na vida da Ac. Ela já fez montagem, fez várias participações, tivemos mais dois projetos que contribuíram para a alfabetização da Ac., um que é o PAS – Programa de Alfabetização Significativa, e outro que é o Projeto Paulo Freire, no qual ela se propôs a ser palestrante. Ela tinha uma relação difícil com a linguagem, mas soube falar a data e local de nascimento do Paulo Freire, falou do jeito dela, mas falou. Hoje está alfabética, lê, conhece todos os tipos de letras. A Ac. é minha paixão, é muito satisfatório ver o resultado e a vontade dela de vencer. Ela, muitas vezes, ficava dois períodos na escola. Aqui há várias fotos dela como faxineira, estudante, bailarina, fazendo e vencendo.

Jc. é uma criança tímida, que hoje quis falar. G., que hoje se propôs a fazer personagem com fala, venceu a timidez, seus próprios limites, pela necessidade de fazer. A mãe deu um depoimento sobre a satisfação em ver a superação dos seus próprios limites pela vontade do fazer.”

Temos crianças que sentem prazer em vir para a escola; são campeões, porque se sentem capazes, querem dar idéias, interferem bastante no processo, fica uma aula bem agitada.” Complementando, a diretora Zenaide diz que a arte-educação trata a todos de forma

igualitária ao considerar e valorizar o potencial de cada aluno e isso tem um efeito importante sobre a aprendizagem, além de também mostrar aos pais as possibilidades dos filhos. Diz ela:

“A arte-educação trata a todos igualmente, isso reflete também na sala

de aula. O aluno pensa que não vai conseguir e de repente ele pega o microfone e começa a falar. Até o mesmo o pai que não acreditava no potencial do filho, se surpreende. Quando vemos as fotos das apresentações, constatamos que são vários casos de crianças que tinham dificuldade na leitura, na escrita, na matemática e eles começaram a dar um retorno positivo depois que começaram a participar do projeto de arte-educação. A escola trabalha arte-educação o ano inteiro e o tempo todo junto às atividades curriculares normais.”

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A própria professora Miriam, ao falar do projeto e da importância do movimento e do corpo, lembra-se de problemas que também vivenciou em sua vida escolar e como a arte foi importante para superá-los:

“Sou formada em Educação Física. Acredito muito no movimento para

evolução no aprendizado. Acredito muito na relação corporal com a aprendizagem. Fiz Artes Cênicas. Fui uma criança muito tímida e sei que essas têm poucas oportunidades. O que passei na minha vida escolar procurei mudar na minha sala de aula. Você não pode deixar de acreditar na criança só por que ela não fala ou não consegue levantar a mão na hora que todo mundo levanta. Por isso, tenho um olhar para a criança tímida, que tem vontade e não consegue se colocar. Quando comecei a fazer teatro, comecei a falar, graças a Deus! Quando tinha 10 anos, uma pessoa foi fazer arte-educação na escola e acabei me interessando. Quando minha mãe me viu falando, ela chorou, pois achava que eu não era capaz de falar. O teatro, na minha adolescência, me trouxe muitos benefícios como, por exemplo, ler e falar em público. Fui uma criança mal alfabetizada, apresentava troca de letras. O teatro me possibilitou superar a timidez. Agora mesmo ministrei uma palestra e eu não gosto de falar ao microfone, gosto de falar mais solta, mas hoje pensei: vou falar ao microfone, é questão de pensar que você vai vencer. As crianças passam pelo mesmo que eu passei.” Entre as várias experiências e casos contados pelas educadoras, vale a pena

destacar a maneira como crianças com diferentes tipos de deficiência são incluídas nas atividades, participando delas ativamente, integrando-se à coletividade escolar, contribuindo com suas participações e, principalmente, vivenciando situações que promovem sua aprendizagem e seu desenvolvimento. É muito interessante que, sendo a música uma expressão que é percebida pela audição, as professoras contam como incluem uma criança surda nas atividades que, à primeira vista, estaria fora do alcance dela, como conta Célia:

“Nós tínhamos uma aluna que tinha deficiência auditiva e ela participou

tanto do coral como da dança (...). Ela chegou a puxar a fila! Ela era muito observadora; não ouvia, mas observava muito (...). Ninguém percebeu a deficiência dela! Então, quer dizer, é a inclusão... A leitura, a escrita dela, no ano passado ainda não estava firme, mas naquele momento não era isso o importante! Ela participou de todas as atividades (...), não deixando nada a desejar”. A Professora Regina completa o relato, lembrando-se também de uma outra aluna,

que tinha comprometimentos físicos e intelectuais significativos, que só se locomovia em cadeira de rodas:

“(...) era uma menina muito difícil de se lidar! Muito revoltada com a

situação (...), mas ela participou, justamente em uma parte que o anjo [um personagem] subia na cadeira dela. Se ela não estivesse presente, isso não seria possível”. As professoras fazem referência, também, ao caso de A. (que será abordado

adiante), que possui uma doença que deforma toda a pele da pessoa. Elas contam que houve muitos progressos no comportamento e no desempenho escolar da aluna como conseqüência de sua participação nos projetos de arte-educação realizados na escola, como conta Célia:

“Como ela cresceu! A auto-estima dela foi lá em cima! Era uma menina

quietinha, fechada, o aprendizado era muito problemático. Com a montagem

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de ‘Caixa de Brinquedos’, a A. foi sorteada para ser a ‘Mulher Maravilha’. Era tudo o que ela precisava: ser a Mulher Maravilha! Ela era uma menina que não falava conosco; agora ela vem, cumprimenta, beija, elogia. Nós devolvemos isso para ela, também.” Apesar de A. já ser aluna da escola, ela ainda não havia conseguido uma

aproximação com os colegas, por causa da aparência causada pela doença de pele. Além disso, o diálogo com a mãe era muito difícil, por ela ser muito “fechada e super-protetora”. Após a apresentação da peça, tanto A. como a mãe mudaram suas atitudes com a escola.

“É engraçado que nós nos questionamos quanto a nossa sensibilidade

como professor! Porque no ano passado, ela participou do nosso projeto, mas nós não percebemos. Por mais que convivamos todos os dias com as crianças, alguma coisa passa! Você não consegue observar tudo. Observar [a mudança em A.] foi muito bom!”. As professoras acreditam que daqui em diante o trabalho com A. irá se desenvolver,

ela conseguirá aprender e se desenvolver muito mais, pois com sua auto-estima elevada, o aprendizado será uma conseqüência.

Outra aluna, M., não foi aluna delas, mas elas acompanharam parte do trabalho com ela. Conta Miriam:

“Como nós temos um projeto em que fazemos a reorganização dos

espaços, [M. ficou] um pouco com a Célia. Nós conhecemos a aluna, sabemos das dificuldades... ela tem uma dificuldade muito grande. Mas foi uma aluna que nós vimos nela muito crescimento durante esse ano, em termos de socialização, participação. Porque ela é uma aluna que tem vontade de fazer, ela quer fazer, ela quer aparecer. Diferente da A., ela não se inibe com as dificuldades dela (...); parece que ela nem percebe as dificuldades. Ela demonstra esse querer fazer, o que já é muito importante.” Dentre os muitos casos contados pelas educadoras, todos muito ricos e que

demonstram os efeitos do projeto de arte-educação para a superação de muitos escolares, apresentaremos, a seguir, os casos de duas alunas que participaram do projeto; nesses dois casos, era iminente o risco de fracasso escolar e, no entanto, os relatos mostram como essas crianças estão superando seus problemas, ficando evidente como foi possível fazer com que elas aprendessem e se desenvolvessem.

O caso da aluna Y. Y. é uma aluna de 7 anos e freqüenta o ano Inicial da Educação Fundamental.

Entrou na escola aos 4 anos de idade e, desde então, logo se percebeu que ela não falava. Foi encaminhada, pela escola, para o Núcleo de Apoio à Aprendizagem e ao Desenvolvimento – NAAD, uma das unidades que compõem a Rede de Apoio à Educação Inclusiva da Secretaria de Educação, iniciando o atendimento com uma psicóloga, no qual permanece até hoje.

É sua mãe quem conta como ela era e as mudanças por que passou na escola e, especialmente, seu envolvimento nos Projetos de Arte-educação. A mãe iniciou sua fala contando um pouco sobre a história de vida de Y.:

“Com a Y. foi um pouco diferente... Eu tive dois filhos que não foram

iguais a ela. Ela nasceu normal e eu a levava para o meu serviço... Foi somente a partir dos 2, 3 anos que eles ficaram impressionados porque ela não falava”.

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Naquele momento, a mãe consultou uma fonoaudióloga, que lhe falou que quando

Y. começasse a freqüentar a escola, ela iria se desenvolver e, conseqüentemente, falar bem. Apesar de Y. ter entrado na escola com 4 anos, a mãe relata que ela apresentava muitas dificuldades:

“Tinha muito medo (...). Ela tinha dificuldades para relacionar-se com

as demais crianças. Não falava... Então, tudo o que ela precisava se apoiava em um amiguinho para apresentar um trabalho, para falar na frente da sala de aula (...). O que foi dificultando cada vez mais sua vida escolar”. Segundo a mãe, o atendimento com a psicóloga tem sido importante, pois tem

contribuído para sua melhora:

“(...) tem auxiliado bastante no seu desenvolvimento, principalmente aqui na escola, [pois] ela está indo muito bem. Até no meu serviço (...) todo mundo está abismado! Às vezes, eu tenho que frear, [pois] ela extrapola um pouquinho”. A mãe acredita que Y. está se desenvolvendo muito bem, pois desde que entrou na

escola passou por uma grande transformação. Ela acredita que os projetos realizados na escola contribuem muito para o desenvolvimento e o aprendizado de Y. No primeiro momento, ao saber do projeto e da apresentação em um espaço público, teve a seguinte reação, expressa em palavras: “Tenho certeza que ela não vai, que não vai conseguir!”.

Mas Y participou dos ensaios e, no dia agendado, foi ao Teatro Adamastor, com os demais alunos da escola. Conta a mãe que, quando chegaram ao teatro, a professora a colocou separada de seus familiares e Y. ficou sentada na escada, dizendo que não iria. No entanto, para sua surpresa, ela subiu ao palco e participou da apresentação com todos os colegas; mais do que isso, ficou totalmente desinibida no palco, mandando beijos e “tchaus” para todos que estavam no auditório. A primeira reação da mãe foi dizer: “Não é a Y. que está ali na frente!”.

Depois da apresentação de Y., a mãe contou que, ao assistir as apresentações de outras escolas, Y. manifestou o desejo de voltar ao palco, com as crianças de outras turmas e escolas, para se apresentar novamente; o que causou espanto e satisfação com os resultados do projeto: “Como ela era muito tímida, os projetos que estão sendo realizados, essa apresentação ao público, estão sendo muito bons para ela!”.

A mãe relatou que a psicóloga ficou surpresa ao ouvir seu relato e o de Y. no encontro seguinte à apresentação. Para a mãe, “Com o trabalho dela [psicóloga] e com o trabalho da escola, noto que os dois estão sendo bons para a Y”.

Apesar de Y. ainda falar pouco, para a mãe essa atividade [apresentação no Teatro Adamastor] marcou-a tanto que, até hoje, ela conta o que aconteceu, como foi, e que gostaria de ir novamente. Além da apresentação em si, que ajudou bastante Y. a se desinibir em público, a mãe relata que os projetos “incentivam Y.; pois sempre que falo alguma coisa, ela relaciona com o que fez na escola”.

Sua aprovação aos projetos desenvolvidos na escola se revela na afirmação de que deveriam existir mais projetos e atividades, pois segundo ela: “Não somente para Y., mas também para as demais crianças, o projeto tem beneficiado bastante. Ainda mais passear, ter uma atividade fora, mostrar o que eles sabem, fora [da escola]... é ótimo! Mas eu queria que fosse um pouco mais: mais atividades, mais apresentações, pois para eles isso é muito bom”.

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O caso da aluna A. Desde os primeiros contatos com a escola, a aluna A. é citada como um exemplo do

caráter inclusivo dos projetos de Arte-educação. Essa aluna tem uma doença que produz graves lesões na pele, que acometem todo seu corpo e rosto; são lesões visíveis que, em momentos mais críticos, apresentam purulências, de maneira que sua aparência não passa despercebida pelas pessoas. Como é sabido, afecções dermatológicas desse tipo provocam o distanciamento das pessoas, o que sem dúvida articula-se ao preconceito e às atitudes a ele relacionadas. O retraimento e o afastamento do convívio social são alguns dos efeitos sobre o sujeito que é vítima de preconceitos, o que contribui, entre muitas outras conseqüências negativas, para uma auto-imagem negativa, um dos fatores determinantes da produção do fracasso escolar. Familiares e professores tendem a proteger excessivamente a criança, dificultando seu desenvolvimento autônomo e pleno, o que também se constitui em fator que contribui para a produção do fracasso escolar. Essa era a situação vivida por A., como contada por sua mãe.

A doença começou a se manifestar antes de A. completar 2 anos, mas não foi diagnosticada, agravou-se, e só quando encaminhada para atendimento médico-hospitalar de ponta, o diagnóstico foi dado e o tratamento adequado iniciado, como conta a mãe:

“Ela começou a ter esse probleminha desde um ano e sete meses,

mais ou menos, mas a gente não sabia [o que era]; passava como alergia. A gente tinha convênio [médico], passava com dermatologista, pediatra... e eles só passavam aquela pomadinha. Chegou num ponto em que essa alergia começou a aumentar; ela ficou bem ruim nessa idade de 3 para 4 anos. Ela estava aqui na escola... e ela se afastou daqui da escola.

A. está na escola desde a recreação [antiga denominação da educação infantil para a criança de zero a 3 anos]. Quando começou [a pré-escola] ela teve uma alergia muito forte; ela quase morreu. No começo do ano ela ficou internada uns doze dias na Santa Casa, depois ela ficou na recuperação e foi encaminhada para o Hospital das Clínicas, e faz tratamento até hoje, com vários médicos, psicólogos, nutricionistas e outros médicos que fazem parte de lá.” Nessa Rede de Ensino, todas as crianças recebem duas refeições no período em

que estão na escola, com base num Programa de Alimentação Escolar, que tem a finalidade de oferecer os nutrientes necessários para promover a saúde do aluno. Entretanto, o tratamento de A. exige uma severa restrição alimentar, como relata a mãe:

“Tem [restrição] de leite, conservante, ovo, chocolate, bicho... tem

muitas coisas. É tudo controlado. Ela traz café com leite de soja, que ela pode comer, e tem que ficar

olhando se ela não está comendo o que não pode; às vezes é difícil. A gente tem controle, explica, mas é difícil!” Segundo a mãe, a escola foi informada sobre as restrições alimentares de A. e

contribui para que ela seja mantida, preocupando-se, inclusive, em buscar informações para algumas situações especiais:

“Nas reuniões de pais eu falo para as professoras o que ela pode

comer. Eu trago de casa as coisas que ela pode comer; às vezes pergunto se tem alguma coisa do dia que ela pode comer, ou o que vai ter no passeio [para comer].

Eu trouxe uma lista de coisas que ela não pode comer. Eles atendem bem; às vezes ligam para avisar quando estão assistindo filme, [para perguntar] se ela pode comer pipoca, essas coisas... E eu achei muito legal da parte delas fazer isso.

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A escola tem algumas pessoas na cozinha que são demais, nossa! Cuidam dela; na hora do recreio abrem a sacolinha do lanche e põem na mão dela para ela comer. Antes, o horário dela [na escola] não era esse, era [o horário] do almoço; ela tinha que trazer marmitinha e elas colocavam para esquentar, para ela comer a comida quentinha, com uma frutinha.” Muito marcante na fala da mãe são os comprometimentos psicológicos provocados

pela manifestação da doença de A. Percebe-se, em sua fala, carregada de emoção, que não apenas a criança, mas também ela foi muito afetada não só pela doença, mas pelo temor da rejeição e do preconceito. Diz a mãe de A.:

“Foi um período muito difícil, que ela não se aceitava, que não gostava

que ninguém olhasse pra ela, só usava manga comprida. E foi muito difícil a parte emocional. Ela não aceitava, não se olhava no espelho, não se aceitava.” Essa condição psicológica refletia-se nas atividades escolares de A., que

apresentava várias dificuldades, tendo sido inclusive encaminhada, pela escola, para atendimento psicológico, no já citado NAAD.

“Era muita dificuldade! Até o ano passado, até o meio do ano passado,

ela ainda tinha aquela dificuldade. Foi encaminhada [para o NAAD], mas não deu para ir.

Tem coisa que ela melhorou bastante. Coisa que ela não conseguia ler até o ano passado. Ela estava com uma dificuldade enorme.

Ela não conseguia terminar a lição. Ela melhorou da metade do ano passado para cá. Acho que a cabeça dela começou a abrir, fazendo atividade física, ginástica, essas coisas que eles fazem aí [os Projetos de Arte-educação]. Eu vi que já mudou muito. Ela participa. O desempenho dela está bem melhor que antes, mesmo que ela [ainda] tenha dificuldade hoje, mas como antes não.” É muito interessante que a mãe detém-se pouco no relato das dificuldades de A. e

logo começa a narrar as mudanças que ocorreram a partir do trabalho realizado na escola.

“Ela começou a ir bem, começou a fazer uns trabalhos aqui da escola. A parte do teatro mudou bastante o jeito dela de lidar com o público. Ela fez esse trabalho no Adamastor, uma peça de teatro que estão ensaiando desde o ano passado e se apresentando; esse ano fizeram de novo, não sei se é a mesma peça, mas [havia] mais pessoas, e eu vi que ela já estava 100% na parte de se comunicar com muitas pessoas. Eu até brincava com ela: ‘olha, A., a mãe tem mais vergonha que você... no meio de tanta gente assim. Quando eles se apresentaram lá no Adamastor tinha aquele público enorme e ela lá no meio de todo mundo... eu vi que ela não ficou com vergonha; no meio de tanta gente, ela lá assim à vontade, não ficou com vergonha, se entrosando com os outros amiguinhos dela, ela fazendo a parte dela que tinha que fazer no palco... eu achei que foi muito bom.” Quando solicitada a falar sobre as dificuldades e as mudanças de A., a mãe pouco

enfatiza os aspectos relacionados ao processo de escolarização, mas refere-se muito mais às interações entre a menina e as outras pessoas, revelando estar nesse aspecto sua maior preocupação, o que já havia sido evidenciado anteriormente quando expressava sua angústia frente à possibilidade de A. ser alvo de discriminação e preconceito. Assim, a

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escola é vista pela mãe como um lugar de amigos e as apresentações como um espaço de sociabilidade, que reúne inclusive a família:

“O que é importante para ela é a amizade; ela põe muito a amizade

em primeiro lugar. Ela sentiu muita falta [dos amigos] nesse período que ela ficou em casa; ela se sentia muito só, achava que ela não ia ter mais amigos; e agora ela tem os amigos.

[Para a apresentação] do Adamastor, eu chamei as tias para verem, para incentivar, para dar essa alegria para ela; para ela estar lá se apresentando e estar vendo todo mundo que ela gosta assistindo, todo mundo que ela ama assistindo. Ela ficou toda contente! Ela gosta de participar das coisas da escola, ela gosta muito. E eu fiquei contente, muito feliz, quando ela foi se apresentar; até falei: ‘nossa, A., daqui a pouco você vai estar na Globo, vai ser atriz!’” Ainda que sua preocupação seja com as interações sociais de A., mais do que com

seu processo de escolarização, a mãe aponta para um fator que tem extrema importância para a aprendizagem, pois permite que a criança não se sinta excluída, sentindo-se aceita, acolhida, o que fortalece sua auto-estima, sua autonomia, seu prazer em fazer parte de um determinado grupo. Esses fatores são indubitavelmente fundamentais para que o educando alcance o sucesso escolar e, portanto, necessários para a construção de uma escola que seja capaz de promover a aprendizagem e o desenvolvimento integral de todos, reconhecendo e respeitando as diferenças de cada um.

O relato da mãe indica que a melhora de A. é confirmada pelo encaminhamento dado pela psicóloga [do hospital]:

“A psicóloga falou que ela está bem nessa parte emocional. A

psicóloga diminuiu [a freqüência das] consultas e a gente vai [agora] uma vez a cada quinze dias ou uma vez ao mês; mas no início era uma vez por semana, até mais um pouco, era até difícil; eu falava ‘Meu Deus! Duas, três vezes na semana para ir até lá era difícil’.” Em um breve diálogo com A., esta disse que gostaria de ser professora e que gosta

muito de participar do “teatro” na escola. Indagada sobre seu futuro, sua fisionomia cobriu-se de tristeza por ter que mudar de escola, pois ela concluirá agora o 4º. Estágio da Educação Fundamental, último ano oferecido pela Rede Municipal, quando então os educandos passam para a Rede Estadual de Ensino. O apoio da escola e os projetos oferecidos foram de suma importância para que A. pudesse expressar seus desejos e sentir-se aceita sem restrições. Essa nova situação traz um novo desafio a ela, pois ao mudar de escola terá que enfrentar todo um processo de adaptação. Entretanto, pode-se constatar que A. sente-se fortalecida, sua auto-imagem é bastante positiva, desenvolveu sua autonomia e auto-confiança, tem um bom domínio dos saberes escolares e esse ultimo ano na escola poderá solidificar-se ainda mais e torná-la mais segura, condições essas necessárias para que ela possa enfrentar novas situações com sucesso.

Além disso, a Secretaria Municipal de Educação tem possibilitado a continuidade da participação de ex-alunos em Projetos Especiais de Arte-educação, criados justamente para que não sejam interrompidos processos de desenvolvimento como esse observado na aluna A., o que será abordado também na apresentação dos relatos dos arte-educadores.

A arte-educação no projeto político-pedagógico da rede municipal de educação de Guarulhos

O trabalho desenvolvido na Escola Municipal Evanira Vieira Romão é fruto do

trabalho coletivo, competente e comprometido de suas educadoras, da participação dos

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pais e de toda a equipe de funcionários da escola e, principalmente, do envolvimento dos alunos, da alegria e da maneira como eles recriam, cada qual com suas potencialidades e particularidades, o desenvolvimento das atividades de arte-educação.

Entretanto, é preciso considerar também o Projeto Político Pedagógico da Rede Municipal de Educação, que dá base a esse trabalho, para se compreender as condições dadas para que o projeto se desenvolva.

São as próprias professoras que destacam a importância dos cursos oferecidos pela Secretaria de Educação, a qualidade e o custo deles. Elas têm consciência das condições que são dadas, mas consideram que é necessária também a boa vontade dos professores em realizá-los e levá-los para as escolas, como diz Regina:

“(...) nós não pagamos por eles, são cursos caros. O que mais nos

angustia é ver [que há] professores que não estão aproveitando tudo isso. [Com isso], você oferece oportunidades para uns e outros não estão tendo essa oportunidade [referindo-se aos alunos], por causa do professor que não está indo atrás, não está procurando. Isso é uma questão de consciência de cada um. Nós estamos fazendo, só não fazemos mais porque somos mães de família, temos casa, mas se pudéssemos... estávamos lá fazendo [mais] cursos”. É muito interessante notar a consciência e o compromisso dessas professoras.

Mesmo realizando um trabalho de tanta qualidade e com todos esses resultados, elas ainda avaliam que deveriam fazer mais. Elas ressaltam que nem todos os cursos são excelentes, mas que em todos existe aproveitamento, como diz Regina: “Tentamos aproveitar o que cada curso teve de bom, de legal, para levarmos para a sala de aula”. Contudo, afirma que, muitas vezes, o professor faz o curso, mas não aplica, não leva para a sala de aula o que aprendeu: “Não sei se ele não se sente preparado... Acho que você tem que ser arrojado mesmo! Tem que abusar para ver o que é que dá. Se não está dando certo aqui, vamos por ali”. As professoras acreditam que os projetos devem continuar e sentem que o compromisso delas é cada vez maior:

“Parece que a cada ano o nosso compromisso é cada vez maior,

porque a gente não pode fazer menos! Tem que fazer igual ou mais! Então, não pode deixar de ser feito. Nós temos uma cobrança, até da própria comunidade. Agora, [até] do pessoal da Secretaria [de Educação]. É um compromisso que nós estamos assumindo e ele vai aumentando cada vez mais”. O relato dessas professoras é fundamental para se compreender os principais

determinantes do êxito desse projeto para a aprendizagem e o desenvolvimento de todos alunos e, em especial, para o enfrentamento do fracasso escolar. O mais correto seria dizer que esse projeto tem como finalidade a promoção do sucesso escolar para todos. E é importante dizer que, num trabalho como esse, a ação do professor não é o único fator, mas é sem dúvida o mais importante.

Sabe-se que as condições oferecidas para que se realize a contento o processo ensino-aprendizagem são fundamentais para a transformação da escola. O rompimento do trágico ciclo da produção do fracasso escolar das crianças das classes populares depende de políticas públicas comprometidas com essa finalidade, estabelecendo um Projeto Político-pedagógico coerente e conseqüente; depende dos recursos materiais oferecidos; de uma gestão escolar democrática, comprometida e articuladora do Projeto Pedagógico da escola com o Projeto Político-pedagógico da Rede de Ensino; depende, enfim, de condições várias e de muito compromisso político e educacional. Assim, é na ação direta com o educando que essa tarefa se concretiza e seu principal protagonista é o professor.

O relato dessas professoras demonstra que há coerência entre o Projeto Político-pedagógico da Rede e o Projeto Pedagógico da escola. Para se concretizar no dia-a-dia

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dos alunos, as gestoras incentivam e apóiam o trabalho coletivo dos professores. São oferecidas condições para a realização do trabalho, desde a existência de espaço físico ao incentivo para a produção e divulgação dos trabalhos realizados na escola.

Entretanto, uma condição de fundamental importância é o Programa de Formação Permanente e, neste, os Projetos de Arte-educação. São condições necessárias para a realização do trabalho, embora a responsabilidade do trabalho cotidiano, que produz esses resultados, está nas mãos de professores comprometidos com a tarefa educativa, com a escola e, sobretudo, com seus alunos. Deve-se destacar, inclusive, que a participação dos pais não é condição para que o trabalho se realize, mas é também conseqüência do trabalho realizado pelas professoras e pela escola como um todo.

Para que se compreenda o contexto em que esse trabalho se desenvolveu, as condições oferecidas e a política educacional que dá base a esse trabalho, serão apresentados a seguir o Projeto Político-pedagógico da Rede de Educação do município e o lugar que ocupa a Arte-educação no Programa de Formação de Professores. Para isso, serão trazidas as vozes de arte-educadores que conta, a partir de suas perspectivas, o trabalho desenvolvido com os professores e com os alunos.

O Projeto Político-pedagógico, o Programa de Formação de Educadores e os Projetos de Arte-educação

A educação brasileira foi construída, ao longo da história, para as classes

dominantes e para garantir seus privilégios. Há cerca de meio século, vem se ampliando o acesso das classes populares à escolarização; mas, com qualidade precária, produzindo o fracasso escolar de um grande contingente de crianças.

O fracasso escolar tem sido atribuído às características próprias da criança e de sua família. A organização da escola, sua linguagem, valores, atitudes e expectativas em relação às crianças das classes populares são fatores que produzem o fracasso escolar, e como conseqüência, de exclusão social. A escola, estranha à realidade de vida do aluno, dificulta o processo de aprendizagem e o desenvolvimento do educando, afetando sua auto-estima, levando-o a sentir-se incapaz de lograr sucesso na escola, o que acaba por determinar o fracasso escolar, que afeta a identidade do indivíduo como um todo.

Para se contrapor isso, o Projeto Político-pedagógico da Rede Municipal de Ensino de Guarulhos “(...) afirma a perspectiva da educação como direito social fundamental, assumindo o desafio de construir uma prática pedagógica verdadeiramente democrática,

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que socialize o conhecimento (...) em suas várias expressões, e que acolha e dialogue com os saberes populares”20

Esse projeto propõe uma prática pedagógica humanizadora, que procura respeitar o educando em seu tempo de vida, suas condições sócio-econômicas e culturais, buscando romper com preconceitos e barreiras sociais e procurando construir uma educação afirmativa, tendo em vista “a construção de uma escola democrática, inclusiva, solidária e de qualidade” (obra citada, p. 3).

A escola é vista como “(...) espaço privilegiado para o desenvolvimento integral do educando, que contempla as diferentes dimensões do humano e o trabalho com as diversas linguagens, (...) como espaço de sistematização, descoberta e criação de saberes; de diálogo de culturas e de afirmação de valores democráticos e solidários. (...) Uma escola criativa, que faz da sala de aula um espaço de múltiplas experiências sociais e culturais, partindo da realidade local e avançando para o conhecimento do mundo” (obra citada, p. 4).

A Formação Permanente dos Educadores é a base do Projeto Político-pedagógico e tem como base “(...) o reconhecimento de seus profissionais como sujeitos que têm uma história de práticas e de construção de saberes; estimula a troca de vivências e experiências e o processo de construção coletiva” (obra citada, p. 23).

O Projeto de Formação de Professores inclui programas de formação inicial (formação em Pedagogia, para educadores que não tinham formação superior) e de formação continuada. Este último tem recebido grandes investimentos e é composto, entre outras coisas, por cursos específicos sobre temas pedagógicos, acompanhamento e assessoria técnica nas escolas, encontros temáticos, cursos de cultura e línguas estrangeiras e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) e, particularmente importante para esta narrativa, cursos de Arte-educação.

Os Projetos de Arte-educação Os Projetos de Arte-educação são fundamentais para o Projeto Político Pedagógico

e uma das bases do Programa de Formação de Educadores. Sua finalidade é democratizar o acesso aos bens culturais a todos os educandos e educadores.

20 Dados obtidos da publicação: Os caminhos da Educação Municipal em Guarulhos: da inclusão educacional a uma cidade educadora (gestão 2001-2004), publicada pela Prefeitura Municipal de Guarulhos – Secretaria de Educação, em 2005, p. 3.

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A arte não é um conteúdo curricular isolado, mas integra-se ao trabalho pedagógico coletivo; considerada como atividade artística, ela permite à criança desenvolver “(...) um sentido de organização de suas experiências. Por meio da expressão artística, a criança busca sentido para sua existência e percebe seu ‘eu’ no mundo.”21. Cabe, pois, aos educadores, oferecer, pela atividade artística, “(...) a ampliação de suas possibilidades de expressão e de leitura do mundo, favorecendo a vivência de diferentes formas de conhecimento humano e de cultura. (obra citada, p. 5).

A presença ativa do professor como sujeito dos cursos de arte-educação diferencia esse projeto de muitos outros. O professor não é um mero intermediário entre a arte e os alunos, mas alguém que também usufrui e produz arte. Acredita-se que “(...) uma educação sensível só pode ser levada a efeito por educadores cujas sensibilidades tenham sido desenvolvidas e cuidadas, tenham sido trabalhadas, como fonte primeira dos saberes e conhecimentos que se pode obter acerca do mundo.”22 (Duarte Júnior6, obra citada, p. 12)

Os professores que participam dos cursos de Arte-educação desenvolvem suas potencialidades artísticas e, ao mesmo tempo, levam para o coletivo da escola, e não apenas para seus alunos, a experiência educativa da arte. Há uma tripla função dos cursos de Arte-educação: desenvolvimento pessoal do educador, incentivo ao trabalho pedagógico coletivo e ampliação das oportunidades de ensino-aprendizagem e desenvolvimento integral do aluno.

Os Projetos de Arte Educação adotam uma base reflexiva levando em conta a dimensão pessoal do professor, a maneira pela qual se constitui como sujeito e ao considerar sua dimensão histórica e social, a formação atinge a “pessoa” do professor. Essa proposta supera a idéia que o educador deva ser somente um multiplicador de conhecimentos. Ao compreender os processos de formação dos quais participam, os educadores podem elaborar novos saberes e novas alternativas pessoais e profissionais, contribuindo para a elaboração de práticas pedagógicas que possam transformar a realidade educacional local da escola em que atua.

Os cursos atualmente oferecidos são: Teatro; Danças Brasileiras; Artes Plásticas; Canto Coral; Música: Universo dos Clássicos; Violino nas Escolas e Artes e Saberes do Contador de Histórias.

Há também a continuidade de alguns projetos de arte-educação para ex-alunos, hoje jovens que estão hoje na Rede Estadual de Ensino. Além dos Projetos de Arte-educação, há também os Projetos de Línguas Estrangeiras, que oferecem cursos de Espanhol, Italiano, Francês e Inglês, e Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, que são integrados às atividades de arte-educação, como, por exemplo, músicas italianas no repertório dos corais, Canto Coral com interpretação em LIBRAS, danças estrangeiras e muitas outras experiências que enriquecem o trabalho pedagógico e a aprendizagem das crianças.

Como foi visto, o canto Coral é um dos componentes básicos de Casa de Brinquedos. O Arte-educador Maestro Vanderlei Banci é o responsável por todo o trabalho relativo a essa expressão artística. Seu curso, hoje, é dirigido a professores, em 5 módulos semestrais, cada qual com 17 encontros. O último módulo é chamado Educanção, com maior aprofundamento e se constitui na montagem de um coral, que se apresenta em diversos eventos. Os professores do Educanção tornam-se regentes dos corais de alunos, nas escolas. O curso envolve aulas e ensaios de canto e oficinas que preparam os professores para montar e reger os corais formados por alunos de todos os níveis de ensino, da pré-escola à Educação de Jovens e Adultos.

Ele estabelece seu trabalho na Rede Municipal de Educação de Guarulhos a partir de dois objetivos complementares: desenvolver a percepção da música e incentivar a prática do Canto Coral nas escolas. Resumindo, o curso de Canto Coral tem um objetivo

21 Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos – DOEP – Departamento de Orientações Educacionais e Pedagógicas. Aprendizagem e Desenvolvimento dos Educandos da Rede Municipal de Educação de Guarulhos: a contribuição das Artes e Línguas como Currículo. Guarulhos, 2007. Este texto é o manuscrito de um livro que está no prelo; p. 7. 22

DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Educação Estésica ou a Educação (do) Sensível. Obra citada.

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voltado para o professor em seu trabalho pedagógico, cuja finalidade é a criança e o processo ensino-aprendizagem; e outro que é voltado para o próprio professor, buscando o aprofundamento do conceito estético, na teoria e na prática musical. Diz ele:

“O objetivo não é pôr a música na escola; a música sempre esteve na

escola. O objetivo é aprofundar o conceito estético. Há dois caminhos: a música como um instrumento poderosíssimo para se desenvolver o conteúdo programático, como um meio para atingir um fim; o outro, a música como um fim em si, um instrumento para desenvolver o conceito estético, o significado da música na vida das pessoas, uma formação musical para desenvolver a percepção estética.” O Maestro considera a música também por sua perspectiva antropológica,

considerando-a como uma das manifestações da presença de culturas diversas na constituição do povo brasileiro: africana, indígena, portuguesa etc. Para ele, isso tudo está na música e contribui para o desenvolvimento da percepção do professor, de seu conceito estético.

Sobre a experiência com professoras, admite que há algo que vai além do que se considera estritamente como senso estético. As professoras, ao se apresentarem em vários palcos e para vários públicos, transformam-se não apenas como professoras, mas como pessoas inteiras. Para ele:

“Isso é o conceito de arte. Que envolve a emoção. E, no palco, a

pessoa também tem que controlar a emoção. E elas vão e têm que enfrentar a insegurança. Nesse processo, elas se reformulam. E aí entram muitas histórias, gente que acha que não tem voz, que é desafinada, que não tem ritmo, e elas acabam revendo essas coisas. Isso as faz também pensar em seus alunos e perceber que, como elas, as crianças também podem. Isso é o mais importante, ver pessoas que não acreditam [em si mesmas] e ver que elas podem. Com a arte nós renovamos as pessoas” Para ele, estar no palco, ser aplaudido, admirado, reconhecido, muda a auto-estima

das pessoas. O Maestro diz perceber isso o tempo todo e há elementos indicativos que lhe permitem afirmar isso:

“A gente percebe isso no brilho dos olhos das pessoas. Isso é

percebido nas aulas, nos momentos de reflexão, porque as aulas não são apenas técnicas. Tem jogos, dinâmicas, trocas de experiências; então, em determinados momentos, eles começam a contar coisas. Isso acaba mostrando como eles se relacionam na escola com as crianças. No fundo, ele revê seu próprio papel de professor, de educador.” É muito importante destacar a importância de um Programa de Formação que

considera o professor em sua integralidade, como pessoa humana inteira. Acolher e respeitar seus saberes, suas potencialidades e considerá-lo também como sujeito do processo educativo e não apenas como intermediário entre as políticas educacionais e os alunos, é uma condição fundamental para que ele se transforme como pessoa e, nesse processo, transforme sua prática pedagógica, realizando um trabalho educativo que promova a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os alunos. Quando esses professores percebem que são capazes, eles transferem isso para o aluno também, percebendo que todo aluno pode, todo aluno é capaz de aprender.

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O Maestro

percebe isso em seu trabalho. Para ele, ao trabalhar com professores que se envolvem com o curso por prazer pessoal e por compromisso com a educação de seus alunos, percebe-se o potencial da Arte-educação como contribuição para o processo pedagógico. Diz ele:

“Essa é a diferença de dar aula de música para professores que não

têm formação musical; eles não estão conectados com a música sob o ponto de vista técnico; com o tempo eles vão avançando na parte técnica, vão se aprofundando, porém a base é a relação com os alunos.” Lembra ele também que a música é uma expressão artística acessível a todos e

lembra o caso de uma diretora de escola e de um de seus alunos que, pelo trabalho realizado por ela na escola, pôde perceber como a música é um instrumento para a transformação. Ela se transformou ao descobrir as possibilidades da arte-educação no processo de ensino-aprendizagem e o aluno ao superar seus problemas. Conta ele:

“Havia uma diretora [aluna de seu curso], que tinha um aluno que não

falava, que começou a cantar no coral e virou um tagarela, muito mais sociável. Era uma criança muito fechada, tímida, tinha um histórico que a levava a isso, por uma série de razões. Quando ela passou a ter confiança em si mesma, pela música, ela mudou. O bacana é isso. A música é a expressão mais democrática possível, quase todo mundo pode cantar.” Os bons resultados obtidos por esses projetos levaram a Secretaria de Educação a

manter alguns alunos nas atividades artísticas, mesmo quando saíssem da Rede Municipal. Assim, dando continuidade ao trabalho, o Maestro criou o Grupo de Musicalização Infantil da Comunidade. Esse grupo é composto por ex-alunos de três escolas, entre elas a Escola Municipal Evanira Vieira Romão. Nesses projetos, os pais assumem a responsabilidade de levá-los aos cursos e apresentações, como conta o Maestro:

“É realizada uma reunião com as crianças e os pais interessados. Na

Escola Evanira, os pais se juntaram e cada semana um deles acompanha as crianças; todas se encontram na escola e um dos pais fica com elas no Teatro o tempo todo. Neste ano [2008] serão três grupos [de escolas]. Não dá para fazer com todos, então fazemos com aqueles que têm mais interesse.” Para o Maestro, o comprometimento tem muito a ver com a escola, com as relações

que se estabelecem entre gestores, professores, alunos e pais:

“Cada escola tem um histórico. É um professor ou a direção da escola que é muito envolvida, sempre tem alguém da escola que acaba contagiando

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as crianças e os pais. E se percebe que as crianças respondem a esse chamado. No caso [da Escola Municipal do Jardim] Bananal, por exemplo, é uma professora; tem uma professora lá que é fantástica. Ela faz Canto Coral, músicas portuguesas, ela faz isso com língua portuguesa, matemática, história, geografia. Ela faz esse trabalho e os pais se articulam para dar continuidade. E as crianças vão muito bem na nova escola [da Rede Estadual], que é muito diferente da escola municipal.” Em relação à Escola Evanira Vieira Romão, o Maestro considera, como se vem

mostrando ao longo desta narrativa, que não é o trabalho de uma só pessoa, mas o envolvimento e o comprometimento coletivo, como diz ele:

“O que a gente percebe no Evanira é o coletivismo, porque lá tem

também o envolvimento da diretora, da coordenadora [Professora Referência de Ciclo]. Esse trabalho do Evanira é um trabalho coletivo; não é só uma postura de respeito à arte; tem outros trabalhos com arte também; tem quem puxa e o trabalho vai. Tem quem puxa e o coletivo responde. Tem uma direção bastante envolvida... as relações, os vínculos.” Solicitado a contar casos de crianças que tinham alguma dificuldade no processo de

escolarização e de crianças que demonstram altas habilidades para o trabalho artístico e que se revelam nas atividades desenvolvidas nos projetos de Arte-educação, o Maestro cita um exemplo que, segundo ele, sintetiza as duas coisas.

“Eu tenho um exemplo que é o casamento das duas coisas. Em 2002,

quando eu entrei na Prefeitura, eu fui trabalhar na [Escola Municipal Herbert de Souza], e tinha um menino, o nome dele é D. Ele era um menino sapeca, era sapeca mesmo, ia mal na escola, as professoras o achavam um mal aluno. Mas quando eu comecei a dar aula lá eu não o percebi como bagunceiro. Os professores diziam que ele era muito bagunceiro, mas na minha aula ele não era. Eu gostava dele na minha aula; ele era um aluno que se concentrava. Com o tempo, eu comecei a perceber que ele tinha uma afinação diferenciada dos outros, uma maneira diferente de segurar a flauta. Há algumas pessoas que têm o que é chamado de ouvido absoluto. A afinação desse menino era muito centrada, e ele tocava afinadíssimo. E

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quando ele pegava a flauta e produzia um som, se percebia uma coisa só, o que me mostrava a concentração dele. E isso começou a mudar o relacionamento dele com a escola. Eu comecei a dar coisas mais difíceis para ele. Dei um solo para ele quando teve uma apresentação; eu fiz um arranjo, foi uma apresentação com outros músicos [profissionais], um quarteto de sopros, e eu coloquei esse menino com outro menino que tocava bem para fazer um solo de uma música. Eu ponho dois, porque numa apresentação, o aspecto emocional é bastante forte e em dois dá mais segurança. Era uma música italiana, “Doce é sentir”, cantada por um tenor.

Essas coisas mudaram a relação dele com a escola. E os professores também começaram a vê-lo de forma diferente.

Hoje ele toca saxofone na Orquestra Pimentinhas. Foi um dos nossos melhores alunos, é um dos nossos melhores músicos. Ele está terminando o Ensino Fundamental agora e ele toca muito bem. Ele está indo bem na escola, não repetiu de ano. Eu posso dizer que ele teve sucesso escolar, eu não tenho dúvida nenhuma.” É importante destacar que todos se transformam nesse processo. Os educandos, os

educadores, os pais se transformam, mas não basta a disponibilidade das pessoas, pois é necessário que sejam dadas condições para que os interesses e os potenciais desabrochem. Enfim, é uma conjunção de muitos fatores que permitem que o trabalho seja desenvolvido. O maestro ressalta, nesse conjunto de fatores, os aspectos pessoais das pessoas que assumem o trabalho: “São os potenciais, a percepção de determinadas pessoas. Isso tem a ver com o envolvimento mesmo. A gente sente o envolvimento.”

A fala do Maestro Vanderlei Banci mostra, pela perspectiva do arte-educador, o significado da arte-educação como elemento integrante e integrador do currículo escolar. A função transformadora da educação comprometida com os interesses das classes populares pode ser realizada a partir de práticas que incorporam a arte-educação no cotidiano das escolas, atingindo todos os seus protagonistas, promovendo a aprendizagem e o desenvolvimento de todos.

Um outro arte-educador é o também maestro, Marcio Demazo. Embora não

participando diretamente dos projetos desenvolvidos pela Escola Municipal Evanira Vieira Romão, o depoimento do Maestro Marcio também é importante para demonstrar os resultados obtidos pelos Projetos de Arte-educação com os alunos.

Seu trabalho na Rede Municipal de Ensino, denominado Projeto Violinos na Escola, constitui-se de iniciação musical, ensino de violino e montagem de orquestra de cordas, com crianças da Educação Fundamental. Ele insiste no sorteio de alunos para ingresso no grupo, como uma forma de evitar a seleção prévia de crianças com características pessoais e sócio-culturais em situação mais vantajosa, pois sua intenção é democratizar o acesso a uma experiência que sempre foi acessível apenas a uns poucos privilegiados.

A experiência inicial atendeu, inicialmente, 100 crianças; logo depois esse número dobrou. Hoje são quase 2 mil crianças, em 10 escolas da periferia. Há também um projeto específico para educadores, que forma a Camerata de Educadores.

Para garantir o atendimento a um número maior de alunos e, ao mesmo tempo, manter no projeto alguns jovens que participaram dele com

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sucesso no passado, o Maestro adota o sistema de monitoria. Os monitores são escolhidos entre jovens que demonstram interesse e habilidade musical e didática e que assumem o compromisso de continuar os estudos regulares, recebendo ajuda financeira. A principal finalidade do trabalho com monitoria é, além da multiplicação da experiência para um número maior de alunos, permitir a esses jovens monitores a possibilidade de dar continuidade aos estudos musicais.

O Maestro cita alguns casos de monitores que trabalham com as crianças das

escolas municipais e que lograram êxito em suas vidas escolares, o que vem demonstrar como projetos desse tipo podem ser fatores importantes para promover o sucesso escolar.

Um dos monitores, filho de imigrantes bolivianos, quando chegou ao projeto, era uma das milhares de crianças vítimas do trabalho infantil; conta o Maestro que suas mãos tinham feridas crônicas, causadas por cortes produzidos no trabalho. Essas mesmas mãos maltratadas pelo trabalho infantil se revelaram no manuseio delicado de um violino. Esse jovem concluiu, no final de 2007, seu curso universitário em Educação Artística. Há outros jovens também concluindo seus cursos superiores, um em Educação Artística e outro em Musicoterapia.

Por causa do sucesso obtido com os educandos do Projeto Violinos na Escola, não só em relação à aprendizagem musical, mas em sua escolarização, a Secretaria Municipal de Educação decidiu criar um projeto que permitisse a continuidade das atividades. Sob a coordenação do Maestro Marcio Demazo, foi criado o Projeto Orquestra Pimentinhas, formado por alunos que saem da Rede Municipal e ingressam na Rede Estadual de Ensino. Esse projeto financia os arte-educadores e fornece instrumentos, materiais necessários e espaço físico, e conta com a participação dos pais dos alunos.

O maestro destaca, entre vários casos de alunos, um que se revelou como excelente músico e que tem participação importante na Orquestra Pimentinhas. Ele apresentava vários problemas de escolarização, que foram superados; atualmente, está concluindo a Educação Fundamental e ingressando no Ensino Médio, com o firme objetivo de ingressar, no futuro, num curso superior de Música. Este e outros alunos provavelmente poderão vir a se tornar monitores do Projeto, estudantes de Música, professores, artistas... e as dificuldades na escola não serão nada mais do que remotas lembranças de um passado cada vez mais distante.

Para ilustrar o impacto desses projetos nas vidas desses alunos, seguem abaixo alguns depoimentos de mães de integrantes da Orquestra Pimentinhas:

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“Minha filha iniciou no Projeto Violinos aos 9 anos. Ela melhorou

muito o raciocínio, educação e disciplina. A minha filha hoje está com 13 anos, estuda na escola estadual.”

“Meu filho está com 13 anos e começou a fazer aulas de violino aos 9

anos. Foi um incentivo para a música. Melhorou mais na escola: a disciplina, o raciocínio, a responsabilidade. Hoje estuda na escola estadual.”

“Meu filho iniciou na escola municipal aos 9 anos e começou a tocar

violino. Desenvolveu muito a criatividade, o raciocínio, a socialização e o interesse por outros estilos de música. Hoje tem 14 anos, estuda na escola estadual.”

Para demonstrar o

significado que esse projeto assumiu na vida desses alunos, seguem alguns depoimentos, obtidos no palco do Teatro do Centro Municipal Adamastor, antes de uma apresentação pública. Suas falas dizem respeito ao significado do Projeto Violinos e da Orquestra Pimentinhas e as mudanças que essas experiências produziram em suas vidas:

“Sim, eu era meio

arteiro, agora sou mais sossegado, mais por causa do violino. O violino ajuda a querer estudar mais, porque ajuda a desenvolver a mente e você se esforça mais para atingir seu objetivo.”

“Na escola já era dedicada, e agora sou mais ainda.” “Meus pais viram que eu tinha capacidade e podia fazer alguma coisa

a mais na minha vida.” “É muito importante para mim porque ajuda a desenvolver a mente.” “Mudou. Agora estou mais feliz, arranjei mais amizades. Na escola eu

consegui desenvolver mais a mente, fazer as lições direito.” “Eu estou muito feliz porque quando a gente começou, como eu era

muito pequena, eu precisava de um incentivo, porque eu gostava, mas não gostava como gosto agora de violino. Várias vezes eu pensava em desistir, no começo, e meus pais ficavam ali: ‘não, continua, filha’, e ao mesmo tempo eu não queria perder essa oportunidade. Agora eu vejo que eu gosto mesmo do violino, eu gosto de verdade!”

“Na minha família, quando tem um almoço, alguma coisa, eles pedem

‘toca alguma coisa’. E eles gostam. Tanto na escola como no violino eu fiz mais amizades. Todos nós aqui somos uma família: todos nós somos irmãos, primos, é muito legal!”

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“Nos estudos, eu vejo que estou estudando com mais vontade, mais feliz.”

“E eu gosto também do violino porque quando eu estou triste, eu começo a tocar, tocar, tocar e desabafo tudo.”

“Significa muito porque é uma coisa que eu não esperava; uma

surpresa que me alegrou demais, porque eu fui a última a ser sorteada. Aí, eu comecei a fazer as apresentações, que é muito emocionante. Fiz apresentações em vários locais e é uma sensação muito boa. É uma coisa que eu não esperava, eu nunca me imaginava tocando violino e agora eu estou aqui.

“Eu me sinto melhor tocando. Se eu estou triste, toco uma música, se

estou alegre, eu toco outra.” “A família ficou mais unida, meus pais, irmãos vêm assistir a

apresentação, tios, primos, parentes.” “Quando eu fui sorteada eu fiquei muito feliz porque eu nem sabia

que existia violino. Foi uma coisa inesperada, tudo era novo no começo, depois a gente foi ficando mais unido, a amizade entre a gente, um colabora com o outro. Quem perdeu a música colabora com o outro. É tudo irmão.”

“Com a família mudou muito, porque minha mãe e minhas irmãs

estão sempre me acompanhando. Ficamos mais unidas.” “A vida ficou bem diferente, porque antes eu era bem mais agitado.

Depois que eu comecei a tocar violino, eu fiquei bem mais calmo.” “Na família todo mundo fala, ‘ah! Tenho um neto, um sobrinho

músico!’. Também melhorou nos estudos.” “Minha vida mudou porque agora eu estou tocando, estou vendo algo

novo.” “Nos estudos, o violino abriu mais a minha mente.”

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O significado que a participação nesses projetos assume na vida desses alunos pode ser resumido na análise feita por uma das entrevistadoras, Andréa Soares Wuo, a partir dos depoimentos:

“De um modo geral, foi possível observar o valor que os “pimentinhas”

dão ao violino. Na maioria, eles parecem conscientes das mudanças que a orquestra causou na vida deles e incorporam essas mudanças no dia-a-dia: na escola, na família, na convivência com os amigos. A disciplina e a concentração parecem ser um dos pontos principais, além da relação que se estabelece entre os integrantes da orquestra, formando uma família. A impressão que passa é de um sentimento de realização, de ‘poder’ e de amor à arte.” O Arte-educador Jorge Rodrigo

Nascimento Spinola é um dos coordenadores do Curso de Teatro23, que tem formação inicial de professor, mas dedica sua vida ao teatro. Sua formação, como ele diz:

“Foi toda livre. Não tenho

o modelo acadêmico, que eu lamento, mas aprendi muitas linguagens, muitas metodologias, isso também foi muito interessante para mim, porque foi uma formação também muito popular, foi uma formação muito prática”. Conta Jorge que um dos desafios era agregar o trabalho dos arte-educadores às

escolas. Conta ele que:

“O arte-educador tem que ter consciência de que ele tem uma intencionalidade política de transformar a escola. Nós temos que entender que (...) estamos lá para isso, para transformar a escola. Aos poucos, vamos criando estratégias para inserir as atividades.”

Diz Jorge Spinola que o arte-educador deve penetrar na dinâmica da escola aos

poucos, nas horas-atividade, adotando estratégias para atingir os educadores e sensibilizá-los. Para ele, o fator mais importante para o sucesso do trabalho é a parceria, principalmente quando se conta com os gestores: “(...) quando temos a diretora, a coordenadora, a [professora] referência de ciclo, o grupo funciona”.

O aluno é o principal foco das atividades, mas é necessário contar com a participação de todos; para isso, é necessário conquistar o educador para que ele possa dar continuidade e multiplicar o trabalho desenvolvido. Diz ele:

23 Ele trabalha com monitores que, por sua vez, trabalham nas escolas como os alunos. Sonia Rusche, outra coordenadora dos cursos de Teatro, trabalha com professores.

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“A nossa maravilha é o aluno. O caminho é esse, nós temos que trabalhar com os professores, os gestores, o aluno, o todo escolar. [Para isso, é necessário planejar] o que nós vamos fazer para seduzir e propor, pois quando a gente sai, tem que ficar o multiplicador, o professor. A gente conquista um espaço, mas na hora em que o arte-educador sai [é preciso que o professor dê continuidade ao trabalho].”

Um importante diferencial na maneira como a escola assume a integração dos projetos de arte-educação em seu Projeto Pedagógico, segundo esse arte-educador, é quando o professor faz, ele próprio, o curso de teatro: “(...) aí ele já está contaminado, o vírus já pegou, não precisa mais do arte-educador”. Para ele, é o professor quem tem que sustentar o trabalho.

Na fala desse arte-educador fica muito claro que a maneira como o teatro é trabalhado com o aluno permite que este vivencie, na escola, experiências acolhedoras e lúdicas, o que pode contribuir para a superação de vários problemas; diz ele que há muitas crianças que se revelam:

“Nós temos várias experiências registradas. É impressionante! Na

hora que o arte-educador entra, a criança se sente acolhida do jeito que ela é; ela é estimulada o tempo todo a se colocar; não existe erro; [a criança é levada a perceber] que está o tempo todo acertando. E quando a proposta é lúdica, ela toca.

Alunos indisciplinados, por exemplo, [as professoras] acham que o teatro vai ‘consertar’ [o aluno]. E aí você percebe que eles não são indisciplinados, [eles] só não aceitam aquele modelo de escola. Se o aluno não está rendendo na escrita, [é preciso entender que] ele tem um potencial para realizar. A criança argumenta, se mostra, seu corpo se expressa. Se o educador fala ‘vamos bolar a história’, ele escreve; se ele for incentivado a escrever, ele produz com facilidade. Aí, eles começam com uma coisa genial; eles dizem ‘eu tive uma idéia’, e o auge desse momento é quando a escola se rende, a comunidade aceita, e o aluno percebe. Isso ocorre na produção final, na apresentação. É uma comoção que se transforma em credibilidade. É visível aquele resultado. A menina que não fala, falou; aquele que não escreve, fez o roteiro, claro que com erros, mas escreveu.” Ele afirma que o teatro rompe com o modelo tradicional de escola; segundo ele, “o

teatro desorganiza a escola”. Um exemplo disso é que é necessário tirar as carteiras, abrir espaço, o que faz barulho; isso parece, ao olhar desacostumado, um exercício de indisciplina. Conta ele que, na primeira vez, há muito barulho: carteiras arrastadas, vozes altas, encontrões entre alunos. Entretanto, partindo do pressuposto de que é preciso respeitar o tempo do aluno, agir de maneira lúdica e proporcionar experiências de aprendizagem, no segundo encontro a organização do espaço é feita a partir de um exercício em que os alunos devem realizar todos os movimentos em câmera lenta. Isso os

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leva, a partir de um exercício teatral, corporal, a agir de outra maneira sobre o ambiente, a perceber que pode haver outras formas de agir e de mudar o espaço físico, ao mesmo tempo em que vivenciam a oportunidade de conhecer melhor o próprio corpo, “a partir de um estímulo cênico”.

Em sua opinião, a arte deve ser vista como elemento integrante da vida escolar, que tem, ao mesmo tempo, um valor em si e um valor que se agrega à tarefa da escola de democratizar saberes, expressões e valores universais e grupais.

Essa visão de Jorge Spinola vem ao encontro da realidade encontrada na Escola Municipal Evanira Vieira Romão, pois nela encontram-se um forte compromisso das gestoras, a participação das professoras nos cursos de arte-educação, o desenvolvimento de um trabalho coletivo com toda a comunidade escolar e, sobretudo, a integração do trabalho de arte-educação às atividades pedagógicas como um todo, implicando uma transformação dos tempos e espaços da escola.

À guisa de conclusão: uma escola inclusiva O sucesso do trabalho pedagógico dessa escola é produto de muitos fatores,

externos e internos à própria escola. É um Projeto Político-pedagógico estabelecido pela Secretaria de Educação,

coerente, consistente e comprometido com a educação das classes populares, que se concretiza no cotidiano pelo Projeto Pedagógico da Escola, que assume seus princípios, criando e recriando a tarefa pedagógica a partir dele. É uma gestão pública que estabelece suas prioridades com base num compromisso radical com os interesses das classes populares e as materializa na realidade concreta.

É a gestão da escola, que assume seus compromissos com competência profissional e, principalmente, com envolvimento e vínculo afetivo com a comunidade escolar. São características grupais e individuais daqueles que protagonizam essas ações, que traduzem competência, disponibilidade e compromisso social. São condições materiais e são, sobretudo, recursos humanos os fatores que diferenciam essa escola de tantas outras.

Muitas são as maneiras de se demonstrar o trabalho realizado pela escola e seu sucesso no cumprimento da tarefa de promover a aprendizagem e o desenvolvimento de educandos e educadores. É na gestão democrática, na participação dos professores, no trabalho coletivo, no aproveitamento dos recursos oferecidos pela Secretaria de Educação, no modo como as famílias são acolhidas e como elas respondem a esse acolhimento com sua participação, na criatividade e na disposição de produzir sempre algo melhor.

Mas é na vida das crianças que esse trabalho ganha seu maior sentido. É na possibilidade de promover a aprendizagem de todos e de cada um dos educandos, de provocar o desenvolvimento integral de cada um deles, que o trabalho dessa escola cumpre sua função histórica e social.

A variedade de atividades,

a originalidade delas, a presença do lúdico, a maneira leve como se aprendem coisas que, em outras situações, se apresentam como tão difíceis, o uso flexível e criativo dos espaços, a maneira como se dispõem os tempos da escola, a presença do riso e do acolhimento afetivo, a preocupação com todas as crianças e a intervenção e acompanhamento naquilo que cada uma delas necessita, a

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preocupação com a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os educandos como responsabilidade do coletivo da escola, a consideração de que a escola tem que transcender seus muros, a participação nas atividades da Secretaria, da Prefeitura e outras instituições públicas ou privadas, tornam essa uma escola verdadeiramente inclusiva.

Entendemos como escola inclusiva aquela que entende que é sua função promover a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os educandos. É a escola que acolhe todas as crianças, respeita cada uma em sua singularidade e se compromete com a tarefa de garantir a ela a possibilidade de vivenciar o sucesso na escola, buscando, para todas e para cada uma, os recursos necessários para garantir seu desenvolvimento. É a escola que não discrimina a criança diferente, mas faz da diferença seu desafio. É a escola que assume sua responsabilidade de prover a todos de um dos direitos fundamentais e universais de todo ser humano: a educação, uma das condições para uma cidadania plena.

Muitos são os fatores que propiciam a concretização desse fim, como já foi demonstrado ao longo desta narrativa, mas é importante que se explicite como esse trabalho afeta a criança, fazendo dela um sujeito de aprendizagem e de desenvolvimento, participando do processo de constituição de sua identidade.

Ciampa24 compreende a identidade humana como processo que se desenvolve nas relações sociais que o sujeito estabelece ao longo de toda a sua vida. Nessa perspectiva, o ser humano não nasce com uma identidade determinada, mas esta se constrói nas interações com os “outros-significativos” para o sujeito, inicialmente na família e, em seguida, na escola, isto é, o início da socialização secundária tem a escola como seu lócus mais importante.

Assim, a escola cumpre, em nossa sociedade, uma função extremamente importante, pois é a partir dela que a criança projeta-se, pela primeira vez, para o mundo além do núcleo familiar, e é por meio dela que a criança deve receber os recursos básicos para sua inserção em outras esferas do mundo humano.

A escola não é a única instituição formadora do sujeito, mas é certamente fundamental. Assim, a vida escolar, sobretudo nos anos iniciais, será um dos mais importantes alicerces para o desenvolvimento da identidade da criança, devendo garantir recursos básicos e necessários para uma inclusão plenamente cidadã da criança na sociedade.

Oferecer, de fato, condições para a aprendizagem e o desenvolvimento da criança, permitindo que ela de fato se perceba como sujeito capaz de aprender e se desenvolver, que ela experimente o sucesso, é uma das tarefas mais essenciais da escola.

Essa não tem sido, no entanto, a realidade de muitas escolas. No Brasil, a experiência do fracasso escolar produzida, ou pelo menos mantida, pelas relações que se estabelecem no interior de um grande número de escolas, tem gerado um contingente enorme de crianças, jovens e adultos que, apesar de passar pela escola, não consegue dominar conhecimentos básicos que lhe permitam viver uma existência minimamente digna. Esse é, entre muitos outros, um dos mais perversos processos de exclusão social impostos a milhares de seres humanos.

O fracasso escolar não atinge o aluno apenas no âmbito da escolarização e de sua inserção no mundo do trabalho. O fracasso escolar atinge esse sujeito como um todo. A experiência do fracasso é um fator de negação do sujeito que, ao ser negado, nega-se também como pessoa. O fracasso escolar, vivido tão prematuramente na vida da criança, pode torná-la desacreditada de si mesma nas atividades escolares e em outras dimensões da vida. Em outras palavras, o fracasso escolar compromete o desenvolvimento de uma identidade autônoma.

Assim, a produção do fracasso escolar é uma das mais perversas formas de

exclusão, de geração de desigualdade, de injustiça social. A experiência psicossocial do

24 CIAMPA, A. da C. A história da Severina e a estória do Severino: um ensaio de psicologia social. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1994.

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fracasso escolar é uma condição de humilhação, que produz sofrimento ético-social, tal como definido por Sawaia25:

“Em síntese, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções

do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente aquela que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto. (p. 102)

Para a construção de uma sociedade melhor para todos: igualitária, justa, inclusiva,

solidária e feliz, o combate à produção do fracasso escolar é um dos elementos mais essenciais. Combater, pois, o fracasso escolar é necessário porque é desigual a distribuição do fracasso escolar e porque o fracasso escolar produz e reproduz a desigualdade; porque é profundamente injusto condenar um ser humano a uma vida desprovida de recursos que lhe são de direito inalienável; porque todos têm o direito de não ser excluído, de pertencer, ser respeitado e ter condições para desenvolver seus potenciais; porque ser solidário é um ato de amor e de respeito para com o outro, e só ama outrem aquele que aprendeu a se amar e se respeitar também; porque a felicidade é condição humana, como defende Sawaia. Em contraponto ao sofrimento ético-político, essa autora afirma o que ela denomina de “felicidade pública”, isto é, “A felicidade ético-política [que] é sentida quando se ultrapassa a prática do individualismo e do corporativismo para abrir-se à humanidade.” (Obra Citada, p. 105)

É nessa perspectiva que se incluem, nessa escola, os Projetos de Arte-educação. Ao introduzir na escola a vivência da arte, ao possibilitar a todos os alunos sua expressão própria, ao fazer da arte elemento integrante e integrador das atividades escolares, ao fazer isso de forma inclusiva e coletiva, essa escola, como demonstrado nesta narrativa, cumpre seu papel histórico e social.

Dentre tantas situações criadas pela escola com os Projetos de Arte-educação, pode-se destacar uma, que geralmente não é considerada como foco de análise. A apresentação, nos palcos e praças públicas, de um trabalho bem feito, organizado e bonito, realizado pelas crianças, traduz-se em aplausos, aprovação, elogios. São momentos em que cada criança se vê reconhecida e valorizada, capaz de aprender, de fazer e de fazer bem. Essa é uma experiência de sucesso, de todos e de cada um. Essa experiência e, sobretudo, sua continuidade constituem-se em elementos que serão integrados à história de vida dessas crianças e, certamente, farão parte de uma identidade que acredita nas possibilidades de realização que cada um possui. Isso não é pouco. Isso pode

25 SAWAIA, B. B. As artimanhas da exclusão. São Paulo, Brasiliense, 2002.

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ser preservado pela criança ao longo de sua vida. E a escola pode ser o espaço em que coisas tão importantes podem ser geradas.

Assim, uma escola que trabalha coletivamente para incluir todos, que se transforma,

se desorganiza e se reorganiza para cumprir seu papel de ensinar, dirige suas ações para que todos aprendam e se desenvolvam, que usa seriamente todos os recursos que lhe são oferecidos, que cria e recria a partir deles, que faz da finalidade de atingir todos o compromisso com cada um... é uma escola inclusiva na mais ampla acepção dessa palavra. É numa escola como essa que cada ser humano poderá ser diferente, mas jamais desigual.

Essa escola articula-se e conta com uma gestão pública que estabelece um Projeto Político-pedagógico consistente, comprometido com a educação de qualidade para as classes trabalhadoras e que garante condições para a realização de seu Projeto Pedagógico. Essa escola conta com um grupo de gestoras que se comprometem com o trabalho, com professoras que se constroem como verdadeiras mestras, com pais que participam da vida escolar e da vida de seus filhos, com educandos que estão se tornando verdadeiros cidadãos.