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4 Física na Escola, v. 14, n. 1, 2016 Contos de espelho Apresentando os contos: O espelho A crítica especializada em estudar Machado de Assis e Guimarães Rosa já analisou, em diversos contextos, as possibilidades de existir um diálogo entre os textos intitulados O espelho [1]. Alguns estudiosos afirmam ser o texto de Guimarães Rosa uma resposta ao conto de Machado de Assis. Esse de- bate se mostra enriquecedor no contexto escolar, no entendimento da produção das obras e possibilita uma abordagem dialógica entre modernismo e realismo brasileiro. Para tal efeito, no âmbito das leituras, defende-se que é possível perceber uma perspectiva mais significativa do pri- meiro quando o segundo já é conhecido, ou seja, entende-se melhor a interlocução do conto de Rosa uma vez que já tenha sido realizada a leitura de Machado. Publicado pela primeira vez no ano de 1882, em Papéis Avulsos [2], o texto de Machado de Assis cria com maestria a história de um jovem que se torna alferes aos 25 anos e passa a ser conhecido como Nhô Alferes, Senhor Alferes, ou, O Alferes. Quando se vê sozinho, sem pessoas para nomeá-lo como tal, perde a identidade, revelada no texto co- mo a perda da própria imagem no espelho. Essa imagem é recu- perada quando a per- sonagem veste a farda de alferes, embora se encontre em uma fa- zenda, sem estar cumprindo essa fun- ção. Talvez, por isso, o texto receba o nome de O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana. O conto de Guimarães Rosa, publica- do em 1962, faz parte de diversas narra- tivas encontradas no livro Primeiras Estó- rias [3]. Nele, o narrador, em primeira Graciella Watanabe Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil E-mail: [email protected] Graça Betânia Moraes Hosokawa Escola Viva, São Paulo, SP, Brasil E-mail: [email protected] Os contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa, intitulados O espelho, já foram ampla- mente discutidos na pesquisa em literatura no Brasil. No entanto, pouco desses textos é apresentado na sala de aula sob o ponto de vista da física. Neste artigo, propomos um diálogo entre duas disciplinas – literatura e física – a fim de agregar novas interfaces na aprendi- zagem de conteúdos disciplinares. pessoa, dialoga com um interlocutor, lei- tor culto, discutindo a própria existência humana, as muitas máscaras por detrás de um só homem, ou seja, a identidade da psique humana. Já no primeiro pará- grafo faz menção ao conhecimento da física: O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho? De- mais, decerto, das noções de física, com que se familia- rizou, as leis da óptica. A partir de experimentações, o nar- rador de Rosa quer ir além da máscara nele refletida, além do rosto externo, for- mado pelas impressões cristalizadas que ele tem de si próprio, construídas social- mente. Com esse intuito, observa-se no espelho com várias expressões – ira, alegria, tristeza, medo – a fim de apagá- las de sua imagem; o mesmo narrador faz em relação a outras impressões. Essas experimentações ocorrem por um tempo, até que, abandonadas, o narrador olha para o espelho e não vê nenhuma imagem definida, nada em que possa se reconhecer. Anos mais tarde, ele volta a ver-se com um “ainda-nem-quase- rosto”. A partir de uma série de reflexões e indagações, o conto é finalizado e se encer- ra com uma pergunta - “Sim?” – possibili- tando ao interlocutor fazer suas próprias conclusões. No âmbito dos conhecimentos cientí- ficos que os contos abordam, em especial, no texto de Guimarães Rosa, ainda pouco é debatido nos estudos em ensino de física. A relevância da abordagem da ótica, em partes, pode ser entendida pela formação Alguns estudiosos afirmam ser O espelho de Guimarães Rosa uma resposta ao conto do mesmo nome escrito por Machado de Assis. Esse debate se mostra enriquecedor no contexto escolar, e possibilita uma abordagem dialógica entre modernismo e realismo brasileiro

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Page 1: Apresentando os contos: pessoa, dialoga com um ... · Contos de espelho Apresentando os contos: O espelhoA crítica especializada em estudar ... Publicado pela primeira vez no ano

4 Física na Escola, v. 14, n. 1, 2016

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Contos de espelho

Apresentando os contos:O espelho

Acrítica especializada em estudarMachado de Assis e GuimarãesRosa já analisou, em diversos

contextos, as possibilidades de existir umdiálogo entre os textos intitulados Oespelho [1]. Alguns estudiosos afirmam sero texto de Guimarães Rosa uma respostaao conto de Machado de Assis. Esse de-bate se mostra enriquecedor no contextoescolar, no entendimento da produção dasobras e possibilita uma abordagemdialógica entre modernismo e realismobrasileiro. Para tal efeito, no âmbito dasleituras, defende-se que é possível perceberuma perspectiva mais significativa do pri-meiro quando o segundo já é conhecido,ou seja, entende-se melhor a interlocuçãodo conto de Rosa uma vez que já tenhasido realizada a leitura de Machado.

Publicado pela primeira vez no anode 1882, em Papéis Avulsos [2], o texto deMachado de Assis cria com maestria ahistória de um jovem que se torna alferesaos 25 anos e passa a ser conhecido comoNhô Alferes, Senhor Alferes, ou, O Alferes.Quando se vê sozinho, sem pessoas paranomeá-lo como tal, perde a identidade,revelada no texto co-mo a perda da própriaimagem no espelho.Essa imagem é recu-perada quando a per-sonagem veste a fardade alferes, embora seencontre em uma fa-zenda, sem estarcumprindo essa fun-ção. Talvez, por isso,o texto receba o nomede O espelho – esboço de uma nova teoria daalma humana.

O conto de Guimarães Rosa, publica-do em 1962, faz parte de diversas narra-tivas encontradas no livro Primeiras Estó-rias [3]. Nele, o narrador, em primeira

Graciella WatanabeFaculdade de Educação, Universidadede Brasília, Brasília, DF, BrasilE-mail: [email protected]

Graça Betânia Moraes HosokawaEscola Viva, São Paulo, SP, BrasilE-mail: [email protected]

Os contos de Machado de Assis e GuimarãesRosa, intitulados O espelho, já foram ampla-mente discutidos na pesquisa em literatura noBrasil. No entanto, pouco desses textos éapresentado na sala de aula sob o ponto de vistada física. Neste artigo, propomos um diálogoentre duas disciplinas – literatura e física – afim de agregar novas interfaces na aprendi-zagem de conteúdos disciplinares.

pessoa, dialoga com um interlocutor, lei-tor culto, discutindo a própria existênciahumana, as muitas máscaras por detrásde um só homem, ou seja, a identidadeda psique humana. Já no primeiro pará-grafo faz menção ao conhecimento dafísica:

O senhor, por exemplo, quesabe e estuda, suponho nemtenha ideia do que seja naverdade – um espelho? De-mais, decerto, das noções defísica, com que se familia-rizou, as leis da óptica.

A partir de experimentações, o nar-rador de Rosa quer ir além da máscaranele refletida, além do rosto externo, for-mado pelas impressões cristalizadas queele tem de si próprio, construídas social-mente. Com esse intuito, observa-se noespelho com várias expressões – ira,alegria, tristeza, medo – a fim de apagá-las de sua imagem; o mesmo narradorfaz em relação a outras impressões. Essasexperimentações ocorrem por um tempo,até que, abandonadas, o narrador olhapara o espelho e não vê nenhuma imagemdefinida, nada em que possa se reconhecer.

Anos mais tarde, elevolta a ver-se com um“ainda-nem-quase-rosto”. A partir deuma série de reflexõese indagações, o contoé finalizado e se encer-ra com uma pergunta- “Sim?” – possibili-tando ao interlocutorfazer suas própriasconclusões.

No âmbito dos conhecimentos cientí-ficos que os contos abordam, em especial,no texto de Guimarães Rosa, ainda poucoé debatido nos estudos em ensino de física.A relevância da abordagem da ótica, empartes, pode ser entendida pela formação

Alguns estudiosos afirmam serO espelho de Guimarães Rosa

uma resposta ao conto domesmo nome escrito por

Machado de Assis. Esse debatese mostra enriquecedor no

contexto escolar, e possibilitauma abordagem dialógica

entre modernismo e realismobrasileiro

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adquirida no curso de medicina frequen-tado pelo autor mineiro. Portanto, se reco-nhece que ambos possuem forte relaçãocom a física e, no decorrer do conto,trazem muitos aspectos da ótica. A partirde uma articulação entre conhecimentoliterário e científico, busca-se nesse tra-balho apresentar uma tentativa de abordaresse diálogo entre os contos de Machadoe Rosa em uma atividade para o EnsinoMédio através da interlocução entreconhecimentos inicialmente separados nasdisciplinas escolares: física e literatura.

Para começo de conversa:motivações

Existe na área de ensino de ciênciasum forte apreço pelos trabalhos conside-rados de cunho cultural. Assim, toda pos-sibilidade de inserção de temas que eramconsiderados à priori distantes das discus-sões científicas passaram, ao longo dosanos, a serem compreendidos como im-portantes instrumentos de contextuali-zação e aprendizagem da própria ciên-cia [4].

João Zanetic enfatiza que qualquerpossibilidade de interlocução entre duasou mais áreas do saber encaminha os jo-vens estudantes para estabelecer laços como conhecimento, permitindo que a inte-ração desses jovens com o mundo sejapautada em um diálogo inteligente, pro-blematizando de forma crítica os saberesescolares e os saberes para além da sala deaula, como defendia Paulo Freire [5].

David Jou, estudioso das relações dasciências da natureza com as artes, aindalembra que, mais do que tentar explicaros resultados da ciência, as manifestaçõesartísticas possibilitam a compreensão dopapel da ciência na sociedade e explica aossujeitos, que não fazem parte desse con-texto, a importância de seu conhecimento.O autor ainda defende que a física, maisdo que ser uma máquina fria de cálculos,é um encontro de seres humanos com oslimites pessoais e sociais de sua época [6].

No entanto, é Klaus Mecke quem nosindica uma nova forma de perceber aliteratura e a física enquanto produtosculturais. Mecke propõe um olhar para afísica além do conteúdo específico e impõe,aos que a ensinam, a apresentação de suaface filosófica, histórica e cultural. O autoracredita que é possível ensinar a históriada física utilizando a história da litera-tura [7].

Nesse contexto, o que parecia apenasa amizade, iniciada na sala dos professo-res, entre a professora de física e a de lite-ratura, do Ensino Médio, tornou-se umapossibilidade de exercício científico signi-ficativo, ainda mais que a relação entre

elas e os alunos do 3º ano do mesmo seg-mento, também, era de afeto. Cenário per-feito para investigações e descobertas,motivadas por essa relação e pelo desejode trabalhar conteúdos complexos de ma-neira interessante e provocadora. Estetrabalho é resultado da atividade desen-volvida a partir dos textos de GuimarãesRosa e Machado de Assis, trazendo para ocontexto de sala de aula uma possibilidadede reflexão, para os alunos e para essasprofessoras, sob a legitimidade da ciência,o permear filosófico de seu pensamento eo papel do conhecimento da ótica físicano trabalho desses dois grandes nomes daliteratura nacional.

Diálogos reflexivos na sala deaula

A atividade aqui relatada foi realizadana Viverde – Escola de Educação Básica,na cidade de Bragança Paulista. Osestudantes que participaram das ativida-des propostas foram alunos do 3º ano doEnsino Médio de duas turmas de aproxi-madamente 25 alunos cada. A escolaViverde é uma associada Pueri Domus.Portanto, o material utilizado nas aulasregulares é dessa editora e tem comocaracterística uma abordagem reflexivados conteúdos, o que possibilitou a

elaboração de uma atividade que cami-nhasse nessa direção. No momento emque ela foi realizada, já haviam sido traba-lhados os conteúdos de ótica, previstos nagrade curricular do 3º ano, assim comoos ligados ao realismo e ao modernismo,no cenário da literatura brasileira. Os alu-nos foram convidados a participar desseexercício em período fora do horário nor-mal de aula, como atividade extracurricu-lar. Participaram, aproximadamente, 85%de todos os alunos convidados.

Para iniciar a discussão, apresentamosaos alunos as intenções da atividade emgrupo, como segue:

Caro(a)s aluno(a)s,Esta atividade o(a)s convidaà reflexão, a partir de umolhar poético-científico-filo-sófico, sobre a função física emetafísica do espelho, símbo-lo dos questionamentos sobreo eterno limiar entre a apa-rência e a essência do Brasil.Esperamos que este exercíciolhes revele o quanto a arte e aciência estão próximas, uni-das, e cada uma cumpre, aseu modo, a função de nosconstituir como sujeitos his-

Contos de espelho

Figura 1. René Magritte, La Reproduction Interdite, 1937 [10].

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tóricos.Este exercício será avaliadoconsiderando os conhecimen-tos da física demonstradosnas respostas e sua capaci-dade argumentativa.Boa leitura! Boa escrita!Excelentes descobertas!

Em seguida, foi apresentado aos alu-nos o texto de Contardo Calligaris intitu-lado A moda: belezas extremas e indecisas[8], o fragmento da poesia de Álvaro deCampos/Fernando Pessoa de 1928, Taba-caria [9] e a obra de Rene Magritte sob otítulo de La reproduction Interdite de 1937[10]. O intuito de apresentar esses textose obra foi o de suscitar discussões nos gru-pos a fim de conduzi-los a uma reflexãomais profunda sobre as questões queseriam apresentadas em seguida.

A atividade

Ao término das primeiras discussões,foram apresentadas aos alunos 8 questõesque envolviam o conteúdo de ótica, maisespecificamente os estudos associados aoespelho. Também foram feitas perguntasrelacionadas ao contexto do conto e queapresentaram, do ponto de vista filosófico,conexões com o próprio pensar da ciência.Finalmente, a questão que fecha o ciclobuscou, a partir dos conhecimentos emliteratura, trazer uma reflexão sobre apossível interlocução entre os textos dosdois escritores brasileiros. Nas linhas quese seguem, demonstraremos as perguntasapresentadas aos estudantes com umapequena discussão acerca de suas finali-dades. Todas as questões iniciam-se comtrechos retirados dos contos indicandoM.A. para o trabalho de Machado de Assise G.R. para Guimarães Rosa.

Nesse primeiro momento os estudan-tes se mostraram confusos, questionandoas relações entre a física e a literatura. Nes-se sentido, queriam saber como a propostase mostrava significativa no ponto devista da ciência. Os questionamentos fo-ram considerados positivos, pois refletem,também na prática docente das autoras,um distanciamento até aquele momentode nossas conduções na sala de aula sobretemáticas particularmente disciplinares.Os alunos, curiosos, sentiram-se insti-gados a prosseguir e tentar compreendera proposta que as docentes traziam na-quele contexto.

Um aspecto significativo ao tentar in-troduzir, sob o ponto de vista do conheci-mento científico, as questões iniciais,tiveram por princípio debater questõesconsideradas mais simplificadas e diretas.Esse primeiro contato entre os alunos eas questões surtiram o efeito esperado de

promover de maneira pontual a relaçãoentre a física e a literatura proposta naatividade. Pode-se perceber que os estu-dantes iniciaram os debates lembrandodos conceitos de ótica e aos poucos foramtrazendo articulações com o contextoliterário envolvido.

Assim, a apresentação das questõesorganizou-se em dois blocos: o primeirodirecionado à interpretação de texto, comprioridade na dimensão física do conteú-do; no segundo momento, foi solicitadaaos estudantes uma reflexão mais profun-da sobre a relação entre física e literatura,por meio de uma análise entre os doiscontos.

A primeira pergunta teve como obje-tivo iniciar uma discussão sobre os con-teúdos de ótica, redirecionando o grupopara o enfoque a ser dado durante asquestões que se seguiam. Como resposta,esperava-se que o aluno discutisse a difu-são e a ordenação no feixe de luz, assimcomo o papel da superfície (rugosa ou lisa)para a reflexão da luz:

O senhor, por exemplo, quesabe e estuda, suponho nemtenha ideia do que seja naverdade – um espelho? (G.R.)Um espelho reflete totalmente(ou quase) a luz que nele inci-de, bem como uma paredebranca. Em que diferem umespelho e uma parede brancaentão? Ou seja, o que é naverdade um espelho? De queele é feito? Quais são as con-dições necessárias para quesua superfície seja refletora?

A segunda questão discute o olhar aalma sob dois pontos de vista (fora edentro). Na pergunta que segue, propu-semos que os alunos discutissem o quesignifica, do ponto de vista de uma defi-nição conceitual, as imagens real e vir-tual. É importante salientar que o temahavia sido apresentado aos alunos em ummomento que antecedeu as atividades.Apesar de não haver, para as docentes,uma resposta considerada correta, espe-rava-se que os alunos tivessem a capaci-dade de articular o contexto do conto como papel das definições na ciência.

Nada menos de duas almas.Cada criatura humana trazduas almas consigo: uma queolha de dentro para fora, ou-tra que olha de fora para den-tro...O autor cita duas maneirasdiferentes de observar a alma.Discuta, a partir dos conceitosda física, quais devem ser a

imagem real e a virtual paraessas duas definições: “(...)uma que olha de dentro parafora, outra que olha de forapara dentro... (M.A.)

A terceira questão traz, a partir dasdiscussões de Rosa, uma possível formade avaliar o que seria um espelho hon-esto, ou seja, um espelho que não modificaa imagem (espelho plano). Em seguida,propusemos aos alunos uma reflexãosobre o que distingue a imagem do objeto.

O espelho, são muitos, captan-do-lhe as feições; todos refle-tem-lhe o rosto, e o senhorcrê-se com aspecto próprio epraticamente imudado, doqual lhe dão imagem fiel. Mas– que espelho? Há-os “bons” e“maus”, os que favorecem e osque detraem; e os que sãoapenas honestos, pois não. Eonde situar o nível e pontodessa honestidade ou fidedig-nidade? Como é que o senhor,eu, os restantes próximos,somos, no visível? (G.R.)Dentre os espelhos estudados,quais são “honestos”, ou seja,quais refletem imagens fiéisdos objetos?

O trecho do conto de Machado deAssis indica uma multiplicação de almassegundo o reflexo do espelho. A propostafeita aos estudantes era discutir sobre asmaneiras, segundo a física, de se multi-plicar as imagens. Nesse sentido, tambémfoi esperado que os estudantes trouxessemdiscussões acerca das diferenças associadasaos distintos “reflexos” da literatura e osreflexos da física.

Pela minha parte, conheçouma senhora, - na verdade,gentilíssima, - que muda dealma exterior cinco, seis vezespor ano. Durante a estaçãolírica é a ópera; cessando aestação, a alma exterior subs-titui-se por outra: um con-certo, um baile do Cassino, aRua Ouvidor, Petrópolis...(M.A.)Considerando que a alma,segundo o narrador, pode sero reflexo do espelho, que ma-neira física você utilizariapara multiplicar a “alma hu-mana”? Com este artifíciovocê poderia adquirir infini-tas almas?

Na questão que se segue, procuramosinstigar os alunos a pensar em outras for-

Contos de espelho

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mas possíveis de reflexão que não somenteo espelho plano, do contexto do conto.

“A realidade das leis físicas nãopermite negar que o espelhoreproduziu-me textualmente,com os mesmos contornos efeições;...”. (M.A.)Discuta, a partir das reflexõesdas aulas de física, quais tiposde espelhos produzem ima-gens com “os mesmos con-tornos e feições”.

A questão seguinte pediu ao estudan-te que discutisse sobre ausência de luz esua reflexão. Buscou-se, nesse momento,articular a relação entre conhecimentocultural e o saber científico. Tinha-se apretensão de que os estudantes pudessemtrazer algumas considerações da ciênciapara percepções ditas populares.

O espelho inspirava receio su-persticioso aos primitivos,aqueles povos com a ideia deque o reflexo de uma pessoafosse a alma. Via de regra,sabe-o o senhor, é a supersti-ção fecundo ponto de partidapara a pesquisa. A alma doespelho - anote-a – esplêndidametáfora. Outros, aliás, iden-tificavam a alma com a som-bra do corpo; e não lhe teráescapado a polarização: luz-treva. (G.R.)No campo das ideias supers-ticiosas populares, para uns,o reflexo de uma pessoa é suaalma, mas, para outros, asombra é que é a alma. E nocampo científico, o que são oreflexo e a sombra?

Na questão seguinte foi sugerida umadiscussão sobre a decodificação e a repro-dução das imagens no processo neuroló-gico dos seres humanos. O tema apresen-tado foi trabalhado em sala de aula emmomento anterior à atividade.

Por começo a criancinha vê osobjetos invertidos, daí seudesajeitado tatear; só a poucoe pouco é que consegue reti-ficar, sobre a postura dos vo-lumes externos, uma precáriavisão. (G.R.)Por que a criancinha vê osobjetos invertidos? E nós, nãoos vemos invertidos por quê?

Finalmente, a última questão teve aintenção de possibilitar aos grupos algoque lhes era peculiar, a defesa de um pontode vista, uma vez que não havia respostasim ou não, mas um espaço para discutire argumentar. Esta questão foi a única quenão abordou conceitos específicos de óticae, como os alunos sempre diziam duranteas aulas de português, eles puderam “via-jar” na construção da resposta, respeitan-do os limites indicados pelos textos.

“(...)Quando nada acontece,há um milagre que não esta-mos vendo. (...) Os olhos, porenquanto, são a porta doengano; duvide deles, dosseus, não de mim.” (G.R.)“(...) Os fatos explicarão me-lhor os sentimentos: os fatossão tudo.” (M.A.)Considerando os fragmentosacima, é possível afirmar queexiste uma incoerência entreos textos de Machado e deRosa. A partir da leiturarealizada pelo grupo, apre-sente uma relação possívelentre essas ideias, mostrandopontos de contato e/ou dis-cordância.

Se, no começo, os alunos se mostra-ram receosos em relação aos conteúdosde física e à proposta de um olhar a partirdos textos literários, percebeu-se que, aolongo das atividades, questões mais com-plexas foram sendo produzidas, tor-nando-se necessária a intervenção tantoda docente de literatura como da de física.Quando os alunos começaram a fazer asconexões e perceber que poderia haver di-mensões ainda inexploradas até pelasdocentes, sentiram-se instigados a discutire aprofundar as questões, como o sentidodo espelho para os autores ou os motivosdo uso dos conhecimentos da ótica porGuimarães Rosa em seu texto.

Descobertas

Os dois campos do saber – ciência eliteratura – são importantes instrumentosde aprendizagem quando apresentadoscomo complementares para os estudantesda escola básica. Assim, a maneira de li-dar com o texto literário pode ser modi-ficada quando o sujeito que o lê, de certaforma, reconhece presentes nele elementosdo conteúdo físico. Ao entender esse co-nhecimento em um contexto maior, o alu-no pode perceber que a ciência é uma

Referências

[1] Edna Maria F.S. Nascimento e Maria Cé-lia Leonel, Revista Anpoll 2, 24 (2008).

[2] Machado de Assis, in: Machado de Assis:Contos (Agir, Rio de Janeiro, 1973).

[3] João Guimarães Rosa, Primeiras Estórias(José Olympio, Rio de Janeiro, 1972).

[4] Ana M. Menezes e Andréia G. de Moraes,in: Anais do XVIII Simpósio Nacional deEnsino de Física, Vitória (2009).

[5] João Zanetic, Ciência e Cultura 57, 3(2005).

[6] Daniel Jou, in: Física de Cada Dia (Saba-dell, Madrid, 2007).

[7] Klaus R. Mecke, Gazeta de Física 27, 4(2005).

[8] Contardo Calligaris, Terra de Ninguém(Publifolha, São Paulo, 2004).

[9] Fernando Pessoa, Obra Poética (Ed.Aguilar, Rio de Janeiro, 1981).

[10] René Magritte, La Reproduction Interdite,in: Museu Boymans-van-Beuniguem,Rotterdam, 1937.

Contos de espelho

forma de expressão e construção da reali-dade. Esse tipo de relação implica em olhara literatura e a ciência como instrumentosda criação humana, diferentes em seus as-pectos de criação e linguagem, maspróximos por suas procuras mais primor-diais como questionamentos sobre nossaexistência.

A atividade apresentada neste traba-lho foi avaliada sob dois olhares – da físicae da literatura – procurando, na interfacecom essas duas formas do saber, criarvínculos afetivos com o próprio conheci-mento. Tal afetividade não se caracterizapela relação ingênua do “gostar da ciênciaou da literatura”, mas fazer-se entenderuma ciência não tão distante do escritor,e ao mesmo tempo, uma literatura quese próxima em muitos aspectos da física.

Assim, a intervenção com os alunosse mostrou positiva, pois os próprios estu-dantes demonstraram surpresa pela rela-ção estabelecida entre esses dois camposdo conhecimento. Tal reflexão possibilitouque outras instâncias da física pudessemser abordadas no contexto escolar e, con-sequentemente, que fossem criadas no-vas possibilidades de aprendizagem e deleitura do texto artístico.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer às Profas.Rosane Acedo Vieira, Maria Regina ZagoLeite da Silva e Viviane Moraes Alves, pelasindicações e sugestões durante o percursodo trabalho.