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René GiRaRd

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nOReXia e deSeJO MiMéTiCO

Título Original: Anorexie et Désir MimétiqueAutor: René GirardTradução: Pedro Elói DuarteRevisão: Gabinete Editorial Texto & GrafiaGrafismo: Cristina LealPaginação: Vitor Pedro

© Éditions de L’Herne, 2008

Todos os direitos reservados para

Edições Texto & Grafia, Lda.Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.1000-217 LisboaTelefone: 21 797 70 66Fax: 21 797 81 03E-mail:[email protected]

Impressão e acabamento:Papelmunde, SMG, Lda.1.ª edição, Maio de 2009

ISBN: 978-989-95884-8-6Depósito Legal n.º 293721/09

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzidano todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,sem a autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei do Direito de Autorserá passível de procedimento judicial.

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É em torno da ideia de conhecimento articulado com as necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que se projecta a colecção “Biblioteca Universal”.

Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de autores e temas – dos quais se destacarão as áreas das Ciências Sociais e Humanas –, pretende-se que a colecção esteja aberta a todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica, científica ou artística.

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Se o apetite leva um indivíduo a comer, a falta de apetite, ou anorexia, leva-o a não comer. É, pois, evidente que a necessidade natural de comer, de nos alimentarmos,

pode ser mimeticamente amplificada para se transformar em desejo e, depois, em paixão: desejo passional de emagrecer ou desejo passional de se empanturrar. Por conseguinte, a anorexia, tal como a bulimia, são doenças do desejo, e é neste sentido que René Girard se interessa por estes fenómenos. Toda a gente sabe que, para René Girard, o desejo é mimético e, por isso, rival: todo o desejo é rival e toda a rivalidae é desejo.

O desejo é indiferente à saúde, e a paixão, quando se apo-dera do psicológico, não se preocupa com essa instância. Nas perturbações dos comportamentos alimentares, a necessidade é, de forma exemplar, a reboque do desejo, capaz de o desviar, de o perverter e até de o suprimir.

Dois desejos opostos podem apoderar-se de um ser humano e perverter a sua necessidade de se alimentar: o desejo de jejuar e o desejo de se empanturrar, a anorexia e a bulimia, que implicam a magreza extrema ou a obesidade. Estes dois desejos opostos são representados pelas esculturas e pinturas dos dois maiores artistas de finais do século XX: Alberto Giacometti e Fernando Botero. As silhuetas filiformes de Giacometti são claramente resultado de um desejo feroz de não comer, enquanto que as esculturas e pinturas de Botero representam um mundo de gordos, onde não só os homens e as mulheres são obesos, mas também os gatos e as aves. A arte é aqui um modelo certamente a imitar, mas é sobretudo anunciador e revelador das patologias do desejo que marcam o final do século XX e inícios do século XXI.

PReFÁCiO

Jean‑Michel Oughourlian

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O anoréctico mental foi isolado numa entidade nosológica caracterizada pela sigla AEA: anorexia, emagrecimento e ame-norreia. A supressão do mênstruo é uma condição fundamental para o diagnóstico, uma vez que se trata de uma doença típica nas raparigas. Afecta maioritariamente as jovens, apesar de se observar também uma incidência nos rapazes.

A anorexia pode apresentar-se na forma clínica simples da rejeição da alimentação ou na forma mais complexa da bulimia, seguida de vómitos voluntariamente induzidos. A perda de peso pode dever-se também à prática intensiva de desporto ou ao uso de laxantes e diuréticos.

De um ponto de vista mimético, é fácil perceber que o ideal

feminino de beleza é, actualmente, a magreza. As manequins são cada vez mais filiformes e assemelham-se às esculturas de Giacometti. Em contrapartida, não há estrela, manequim ou top model que se assemelhe a uma personagem de Botero. Uma primeira análise mimética leva a pensar que a epidemia actual da anorexia é um contágio entre as adolescentes desse modelo anoréctico e filiforme, e que elas contraem mimeticamente o desejo de emagrecer para se assemelharem àquelas deusas cuja magreza é procurada pelo cinema, pela televisão e pelas revistas.

Mas o desejo mimético é também rival. Esta parece ser a conclusão da psiquiatra americana Hilde Bruch, quando liga a anorexia a um sentimento de impotência e a uma tentativa de revolta contra essa impotência. A anorexia seria, antes de tudo, uma tentativa de domínio e uma rejeição de qualquer relação que escape a esse domínio, nomeadamente a relação amorosa e a sexualidade. Esta abordagem parece-me interessante no sentido em que se afasta das interpretações psicanalíticas sobre a rejeição da feminilidade e a identificação com a mãe, para fazer da anorexia uma verdadeira doença da rivalidade e, por isso, do desejo.

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Rivalidade com quem ou com quê? Desde logo, consigo mesmo, com o próprio corpo, com as suas necessidades, num esforço de controlo e de autodomínio que seria, simultaneamente, um desafio e uma forma de ascese. Mas também rivalidade com os outros, luta pelo poder: a anoréctica torna-se rapidamente o centro da atenção familiar e o seu prato torna-se uma espécie de circo romano onde se defrontam os desejos rivais daqueles que a rodeiam – e que querem que ela coma – e o seu próprio desejo, a sua rejeição, mantendo na expectativa a família envolvida nesse combate quotidiano, que se conclui com o recurso ao «poder médico», que manifestará a derrota e a demissão dos seus pais e o aparecimento de um adversário finalmente à medida.

A anorexia confere, pois, um poder e assegura o triunfo daquela que recusa alimentar-se sobre toda a gente que a rodeia. Deste ponto de vista, tem relações com o terrorismo, na medida em que a anoréctica se toma a si mesma como refém para sujeitar toda a gente à sua vontade.

Este poder custosamente adquirido, conquistado a custo da saúde e até da própria vida, será apenas e sempre negativo? Traduzirá apenas um arrebatamento da rivalidade, uma doença do desejo que encontra a sua única justificação numa vitória à Pirro?

Há um belo exemplo que lança uma nova luz sobre este com-portamento: os célebres jejuns de Mahatma Gandhi. Quando a violência assolava todo o subcontinente indiano, opondo os muçulmanos e os hindus, quando nada nem ninguém, nenhuma força do mundo parecia poder travar a violência cega, os massacres, os incêndios de mesquitas e de templos, Gandhi deixou de comer!

A pouco e pouco, ao longo de dias de jejum, Mahatma enfraquecia e o seu domínio sobre o povo aumentava. Em breve, centenas de milhões de Indianos concentravam-se apenas no prato de Gandhi, temiam pela saúde do líder e estavam hipnotizadas pela sua «anorexia». Dia após dia, os jornais e as rádios davam

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conta da deterioração do seu estado de saúde, do seu enfraque-cimento, e temia-se o pior. Então, este idoso débil e comatoso, pela simples recusa inflexível de se alimentar, conseguiu travar a violência de centenas de milhões de homens. Foi preciso que Nehru recebesse o compromisso formal dos líderes de todas as confissões de pararem os combates, foi preciso que Nehru se encontrasse com o moribundo e lhe certificasse que a Índia estava totalmente pacificada para que este aceitasse finalmente uma malga de sopa. E toda a Índia se reanimou à medida que Mahatma ia recuperando forças.

Num mundo que René Girard nos descreve como apoca-líptico, como um mundo povoado de modelos que são rivais e de rivais que são modelos, será que se pode pensar que as jovens deixam de se alimentar e arriscam a vida para travarem a violência que as rodeia? A tensão rival dos pais, a violência entre os irmãos, no grupo de amigos, na escola e talvez até a violência no mundo em geral à qual teriam – sobretudo elas – uma sensibilidade especial?

Se esta hipótese tivesse alguma validade, a anorexia seria, com efeito, uma doença do desejo e da rivalidade, mas não seria uma loucura sem sentido. Ao invés de ser motivo de desespero e de desânimo para o corpo médico, a epidemia actual seria então portadora de um sentido menos negativo do que parece para a humanidade.

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Há modas até na forma de sofrer… André Gide

A moda está no peso das vítimas.

René Girard

hin is in, stout is out 1. Mas nem sempre foi assim. Em 1911, um médico francês, F. Heckel, observou em algumas das suas pacientes uma resistência em perder

peso devido aos imperativos da moda. A fim de ter um decote impressionante, recorda ele, qualquer mulher tinha de engordar a parte superior do corpo, do pescoço aos seios, o que não era possível sem que o resto do corpo não engordasse também. Se, por razões de saúde, tivesse de perder barriga, devia também aceitar perder peso ao nível do busto. Ora, tratava-se de um verdadeiro sacrifício, observa Heckel, pois significava renunciar àquilo que as pessoas consideravam belo 2.

1 Cf. Hugh Klein e K. S. Shiffman, «Thin is “in” and stout is “out”: what animated cartoons tell viewers about body weight», Eating and Weight Disorders, vol. 10, Junho de 2005, pp. 107-116, estudo que demonstra que, até nos desenhos animados, o número de personagens magras, e sobretudo de personagens femininas magras, aumenta ao longo do tempo, desde os anos 30 aos anos 90.

2 Francis Heckel, Les Grandes et Petites Obésités. Paris, Masson, 1911; citado por Hilde Bruch, Eating Disorders, Obesity, Anorexia Nervosa,

inTROdUÇÃO

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Mark R. Anspach

T

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Uma passagem do célebre tratado de interpretação dos sonhos, publicado poucos anos antes por um psiquiatra vienense, confirma que, nessa época, a magreza ainda não era o critério supremo da beleza feminina. Sigmund Freud relata as palavras seguintes de uma paciente que teve este sonho a respeito da comida:

Quero oferecer um jantar, mas só tenho em casa um pouco de salmão fumado. Queria fazer compras, mas lembro-me que é uma tarde de domingo e que todas as lojas estão fechadas. Quero telefonar a alguns fornecedores, mas o telefone não funciona. Tenho então de renunciar ao desejo de oferecer um jantar 3. Durante a sessão analítica, Freud descobre que a paciente

visitara recentemente uma amiga louca por salmão, de quem tem ciúmes porque o marido diz muito bem dela. «Felizmente», observa Freud, «a amiga é fina e magra, e o seu marido gosta das formas cheias». A paciente não teria então grandes motivos de preocupação se a amiga magra não tivesse evocado o desejo de engordar, perguntando-lhe: «Quando é que nos convidam outra vez? Comemos sempre tão bem em vossa casa.» E Freud explica à paciente o sentido do seu sonho: «É exactamente como se a senhora lhe tivesse respondido mentalmente: “Sim, claro! Vou convidar-te para que comas bem, para que engor-des e agrades ainda mais ao meu marido! Preferia nunca mais oferecer um jantar!” 4»

and the Person Within, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, pp. 18-19.

3 Sigmund Freud, L’Interprétation dês rêves [A Interpretação dos Sonhos], trad. I. Meyerson, Paris, PUF, ed. revista, 1967. p. 133. Agra-decemos ao doutor Henri Grivois por nos ter assinalado o interesse desta passagem no contexto de uma discussão a propósito da anorexia.

4 Ibid., p. 135.

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Mas Freud explica que este sonho comporta também «outra interpretação mais delicada». A paciente quer que o desejo da amiga, o desejo de engordar, não se realize, mas, no seu sonho, é um dos seus próprios sonhos que não se realiza. Freud vê aqui o sinal de que a paciente se pôs, de alguma forma, no lugar da amiga, de que, por outras palavras, «se identificou 5 com ela». Assim, enquanto que a primeira interpretação revela uma rivali-dade entre a paciente e a amiga, a segunda interpretação, «mais delicada», postula uma identificação entre as duas mulheres.

Uma relação de rivalidade entre duas pessoas que se iden-tificam mutuamente é aquilo a que René Girard chama uma rivalidade mimética. Para Girard, nada há de estranho numa identificação entre rivais. Pelo contrário, quanto mais uma pessoa se põe no lugar da outra, mais ela a imita, mais hipó-teses tem de entrar em competição com a outra, sobretudo se a imitação se estender ao domínio do desejo: duas pessoas que têm o mesmo desejo – por exemplo, o de ter formas mais cheias a fim de agradar aos homens – correm o risco de se tornarem rivais. Girard explica a anorexia como o resultado extremo de uma rivalidade mimética análoga, que funciona não só entre duas pessoas, mas à escala de toda a sociedade.

Deste modo, Girard contraria as interpretações correntes, psicanalíticas ou outras, que situam a origem do problema no inconsciente do indivíduo, invocando, por exemplo, «a rejeição da sexualidade normal». Para quê procurar tal motivação oculta no desejo de emagrecer das anorécticas, pergunta Girard, quanto todos desejamos emagrecer? Longe de estar profundamente escon-dida no espírito do paciente, a motivação é perfeitamente visível no espírito do tempo. Basta ligar a televisão ou folhear uma revista feminina para compreender o carácter eminentemente mimético do desejo de emagrecer. É por isso que Girard vê no crescimento actual da anorexia uma confirmação dramática

5 Ibid., pp. 135-136. Sublinhados de Freud.

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da força cada vez mais irresistível exercida pelo mimetismo na sociedade contemporânea.

Actualmente, esta força levaria a gorda paciente de Freud a invejar a magreza da amiga. Não forçosamente por querer agradar mais aos homens – há sempre maridos que gostam das mulheres roliças –, mas por querer ajustar-se melhor a um ideal cultural de beleza feminina.

Com efeito, mesmo que o desejo de agradar aos homens se encontre inicialmente presente, as rivalidades miméticas tendem a adquirir vida própria. Quando se exacerbam para lá de um certo limite, a intenção inicial perde-se facilmente de vista. Tudo o que resta, então, é o desejo de superar o adversário. No caso presente, implica ser a mais magra, custe o que custar. É verdade que, sendo os homens igualmente miméticos, podem desejar as mulheres magras não por as considerarem intrinsecamente mais atraentes, mas por se assemelharem mais aos modelos de mulheres desejáveis propostos pelo cinema, televisão e publici-dade. Estes modelos mediáticos encarnam o padrão pelo qual as outras mulheres devem medir-se. Mas este padrão não é estável, uma vez que as mulheres que servem de modelos estão também em concorrência entre si. Para Girard, o motor do movimento reside na própria dinâmica da rivalidade. Como as actrizes e manequins tentam superar-se umas às outras, tornam-se cada vez mais magras e as raparigas normais sentem-se cada vez mais gordas. Em 1995, na altura em que Girard apresentava num colóquio nos Estados Unidos o texto aqui publicado, um terço das alunas americanas do secundário pensava ter peso a mais; actualmente, 90 % das jovens americanas julgam ter demasiado peso 6.

As rivalidades miméticas caracterizam-se por uma tendên-cia para o exagero. Esta tendência é visível nas palavras que

6 Holly Brubach, «Starved to Perfection», The New York Times, 15 de Abril de 2007.

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Freud atribui à sua paciente para exprimir a rejeição da ideia de convidar para jantar a amiga que quer engordar: Preferia nunca mais oferecer um jantar! As raparigas anorécticas praticam o exagero na vontade de não engordarem. É como se disses-sem: Preferia nunca mais ir a um jantar! Numa obra clássica publicada pela primeira vez em 1963, Mara Selvini Palazzoli observa: «Todas as pacientes têm em comum o facto de não comerem deliberadamente com os outros. Têm horror à mesa de família: preferem comer sozinhas, de pé, na cozinha ou no quarto, sem porem a mesa, de maneira aleatória e provisória.» 7 Como observa Girard, tal atitude faz agora parte do espírito do tempo. Aquilo que distingue a verdadeira anoréctica é o facto de comer tão pouco que se torna perigosamente magra, afirmando não ter fome.

An‑orexia significa falta de apetite 8, e Girard destaca a justo título o carácter enganador do termo. O mesmo é observado pelos autores da monografia Anorexia Nervosa:

O apetite pode estar ausente, mas pode também estar presente, aumentado ou pervertido. Algumas pacientes sofrem de uma autêntica anorexia e não têm qualquer desejo de comida. Outras desejam a comida, mas recusam comer. Outras ainda, comem e depois vomitam; noutros casos, escondem a comida

7 Mara Selvini Palazzoli, L’anoressia mentale. Dalla terapia indi‑viduale alla terapia familiare, nova edição, Milão, Raffaello Cortina, 2006, p. 23.

8 O termo é usado para designar a entidade clínica moderna em 1873 por Lasègue, que evoca uma «anorexia histérica», seguida de perto por Gull, que, depois de ter falado inicialmente de uma «apepsia his-térica», introduz a expressão anorexia nervosa, ainda hoje utilizada nos países anglófonos. Em 1883, Huchard propõe a denominação «anorexia mental», que se imporá em França e na Itália. [Na língua portuguesa, é dominante o termo «anorexia nervosa»; cf. DSM‑IV, vv.aa. Climepsi Editores, Lisboa, 1996, pp. 553-559. (N.T.)]

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e desembaraçam-se dela às escondidas, para não levantarem suspeitas ou provocarem a desaprovação dos próximos ou do médico. […] Mas, em todos os casos, e embora as razões e os estratagemas possam variar, o resultado final é: redução da ingestão de calorias, perda de peso e semi-inanição 9. Selvini Palazzoli coloca o acento tónico na perda de peso,

sugerindo que a essência da patologia é melhor descrita pelo termo alemão Pubertätsmagersucht: «procura adolescente da magreza». Ou, como ela me disse, mania da magreza 10. O mesmo ponto de vista é partilhado por outros grandes especialistas, como Hilde Bruch, que define a anorexia como «a procura implacável da magreza», ou G. F. M. Russell, que vê na doença um «medo mórbido de ser gordo» 11.

As pacientes afirmam sempre ter sido «demasiado gordas» quando iniciaram as respectivas dietas. Na maioria dos casos, não eram verdadeiramente obesas, mas aceitaram mal o facto de se terem tornado mais largas ou rechonchudas na adolescência. Bruch relata um caso típico que remonta à época em que a anorexia se impôs pela primeira vez como doença reconhecida pela medicina moderna. Em 1868, uma rapariga de 15 anos, descrita como pequena, mas de formas bonitas, «olha com inveja as amigas elegantes e queixa-se da sua “gordura exage-rada”». Um ano depois, tendo o seu peso aumentado de maneira embaraçosa, inicia uma dieta e transforma-se completamente, tornando-se débil e pálida, com o rosto enrugado, após apenas oito meses 12.

9 E. L. Bliss e C. H. Branch, Anorexia Nervosa, Nova Iorque, Hoeber, 1960; citado por Selvini Palazzoli, op. cit., p. 27.

10 Selvini Palazzoli, op. cit., p. 25.11 Ver Bruch, op. cit., pp. 223-224, que, por sua vez, cita Russell.12 Bruch, pp. 212, 258.

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Ao falar das suas próprias pacientes, Bruch observa que nada parece distinguir a decisão inicial de fazer dieta da deci-são análoga tomada por «numerosas adolescentes que vigiam o peso na nossa sociedade tão preocupada com a magreza». Como sublinha Girard, a mania da magreza faz parte do espí-rito do tempo. A diferença entre essas raparigas e as outras só se manifesta depois, quando um «regime explicitamente feito com a finalidade de se tornarem mais atraentes e mais respei-tadas não produz uma melhoria nas relações com as outras à medida que o peso vai diminuindo, mas leva-as a afastarem-se mais da sociedade, chegando em muitos casos a um isolamento extremo» 13. Poder-se-ia dizer, para traduzir esta observação em termos girardianos, que a questão inicial desaparece nos casos em que o desejo competitivo de ser a mais magra a leva a outros resultados.

As rivalidades miméticas têm, como dissemos, tendência para o exagero. Esta tendência é particularmente visível nas guerras, caracterizadas por aquilo a que Girard chama, na sua releitura de Clausewitz, a «subida aos extremos» 14. Com o fenómeno anoréctico, encontramos uma subida aos extremos mais discreta e mais enigmática. A escalada da violência que leva os homens a matarem-se uns aos outros num campo de batalha é mais fácil de compreender do que este exagero do emagrecimento que leva mulheres a morrerem de inanição. A necessidade mais imperiosa de todos não é a de se alimentar? Poderá o mimetismo dominar o mais elementar dos apetites e obrigar o corpo a ajustar-se ao seu molde?

Desde a época em que Girard desenvolveu a sua leitura mimética das perturbações alimentares, um número cada vez maior de estudos científicos descreveu o papel desempenhado

13 Id., pp. 225, 258.14 Ver René Girard, Achever Clausewitz, Paris, Carnets Nord,

2007.

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neste domínio pela imitação de modelos mediáticos. Num estudo sobre adolescentes americanas, por exemplo, 69 % das participantes afirmaram que as fotografias de mulheres nas revistas influenciavam a sua noção do corpo perfeito, e 47 % disseram querer perder peso por causa dessas fotografias; a percentagem total das participantes que queriam emagrecer (66 %) representava mais do dobro da percentagem das que tinham efectivamente peso a mais (29 %) 15. Uma experiência de laboratório realizada em Inglaterra testou directamente a influência exercida por fotografias de mulheres nas revistas de moda sobre pacientes anorécticas ou bulímicas. Depois de terem passado apenas seis ou sete minutos a observarem a essas fotografias, a estimativa da dimensão corporal própria por parte das pacientes aumentou 25 % 16.

Quanto às imagens televisivas, o seu poderoso efeito foi verificado de maneira dramática numa região das ilhas Fiji, onde a televisão não existia antes de 1995. No passado, era raro encontrar indígenas que fizessem dieta, já que a cultura tradicional fijiana valoriza o grande apetite e os corpos robustos. Ora, apenas três anos após a chegada do pequeno ecrã, 74 % das alunas do secundário inquiridas diziam sentir-se «demasiado gordas» pelo menos de vez em quando, e 69 % já haviam tentado fazer uma dieta para perderem peso. Mas o mais impressio-nante é que 11 % das inquiridas haviam recorrido ao vómito auto-induzido (em vez dos 0 % em 1995). Nas entrevistas, as raparigas confirmaram que as personagens vistas na televisão se haviam tornado modelos para elas. Uma rapariga exprimiu o

15 A. E. Field, L. Cheung, A. M. Wolf e outros, «Exposure to the Mass Media and Weight Concerns Among Girls», Pediatrics, vol. 103, nº 3, Março de 1999.

16 Kate Hamilton e Glen Waller, «Media Influences on Body Size Estimation in Anorexia and Bulimia. An Experimental Study», British Journal of Psychiatry, 162, 1993, p. 839.

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desejo de se tornar «maior e mais magra» para ser como Cindy Crawford, outra falou das amigas que queriam assemelhar-se às alunas ricas californianas da série Beverly Hills 90210. Outra disse ainda: «Quero imitar o modo de vida delas [das estrelas da série australiana Shortland Street], o tipo de comida que comem…» 17 Será esta jovem fijiana tão diferente da paciente anoréctica descrita por Bruch, que «observava mulheres elegantes ou rapazes altos […] e imitava aquilo que comiam» 18?

Algumas anorécticas levam ainda mais longe a identificação com as outras. Bruch descreve o caso extremo de uma paciente de 18 anos que chegava a satisfazer o próprio apetite observando os seus convivas, como se se colocasse directamente no lugar deles. Esta paciente «assumia a identidade de quem se encontrasse perto dela e, ao ver os outros a comerem, deixava-os “comer para que ela”, de certa maneira, “se sentisse saciada”, e isto sem ter comido fosse o que fosse». Após um período de jejum, a mesma rapariga explica: «Mantenho o espírito eternamente preocupado com a minha silhueta, esperando sempre que se torne mais fina. Comer exige demasiada energia mental para decidir o quê, quanto e porquê. Acordo todos os dias numa prisão, regozijando-me pelo facto de estar encerrada» 19.

É difícil não pensar aqui no conto de Kafka citado por Girard, «Um Artista da Fome», cujo protagonista, incapaz de encontrar qualquer alimento que lhe agradasse, resolveu exibir-se como campeão do jejum e viver literalmente fechado numa jaula sem comida. Para garantir ao público que não faria batota ao comer clandestinamente, era vigiado por guardiães durante toda

17 A. E. Becker, R. A. Burwell, S. E. Gilman e outros, «Eating behaviors and attitudes following prolonged exposure to television among ethnic Fijian adolescent girls», British Journal of Psychiatry, 180, 2002, pp. 509-511, 513.

18 Bruch, op. cit., p. 93.19 Ibid.

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a noite, e «o momento em que se sentia mais feliz era quando, de manhã, traziam aos seus guardas um belo pequeno-almoço pago por si»… 20 Como se, justamente, comessem por ele.

As pacientes de Mara Selvini Palazzoli exprimem geralmente grande interesse pela comida através do «passatempo de cozinhar “para os outros”, mesmo durante a doença, pratos e sobremesas muito delicados» 21. Podemos pensar que esta solicitude aparente esconde um pensamento dissimulado menos confessável. No jogo de «quem perde peso ganha», aquele que aceitar ganhar peso perde. Fazendo o outro comer, a anoréctica garante um maior avanço na corrida à magreza. É como se dissesse: eu preferia nunca mais ir a um jantar… mas vou convidar‑te, para que comas bem e engordes! Tal como no rito do potlatch evocado por Girard no texto aqui publicado, o não-consumo ostensivo é acompanhado pelo impulso de fazer os outros consumirem.

A pessoa que não come enquanto os outros comem assume a posição invejada de vítima. A competição para ser vítima pode conduzir a resultados trágicos. No fim do conto de Kafka, o campeão do jejum morre de inanição. Mas a preocupação moderna com as vítimas, que torna impossível o sacrifício ritu-alizado de bodes expiatórios, confere tal prestígio ao estatuto de vítima que este se torna objecto de rivalidade. As violências que já não encontram exutório ritual canalizam-se agora nesta concorrência de vítimas de que toda a gente fala. Assiste-se a uma autêntica escalada sacrificial na competição para uma pessoa se mostrar mais vítima do que as outras. A «moda está no peso das vítimas», observa Girard 22. Nos casos da anorexia, devemos

20 Franz Kafka, Un artiste de la faim, À la colonie pénitentiaire et autres récits, trad. de Cl. David, Paris, Gallimard, col. «Folio», 1990, p. 190.

21 Selvini Palazzoli, op. cit., p. 26.22 René Girard, Je vois Satan tomber comme l’ éclair, Paris, Grasset,

1999, p. 256.

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considerar literalmente esta expressão metafórica. A vítima que pesa menos pesa mais; ganha o troféu.

Tal como a mania da magreza, a escalada vitimizante faz parte do espírito do tempo. Esta constatação pode ajudar-nos a compreender o crescimento actual da anorexia, mas não explica por que razão a forma grave da patologia afecta certas raparigas em particular. Todas as adolescentes estão expostas ao espírito do tempo, mas só uma pequena minoria adoece. Por que razão algumas se afundam mais do que outras no jogo perigoso de «quem perde ganha»? No seu texto aqui publicado e na entrevista que se segue, René Girard minimiza a importância do quadro familiar, insistindo antes na importância do contexto social. Embora esta abordagem seja mais que legítima, o terapeuta deve ocupar-se das pacientes individuais e das suas famílias. Portanto, não se pode fugir à questão de saber se existe alguma particularidade que caracterize essas famílias.

Mara Selvini Palazzoli fornece uma resposta surpreendente a esta questão. Nas famílias de que se ocupou, viu repetir-se em todos os casos a mesma forma distinta de interacção no seio do casal familiar, a saber, uma rivalidade para ocupar o papel de vítima. Cada parceiro assume o papel de mártir, tentando culpabilizar o outro. Cada qual apresenta-se como aquele que se sacrifica generosamente pelo bem da família. Se esta auto--representação é posta em causa por alguém, as mães tentam culpabilizar abertamente esse alguém, enquanto que os pais, «fechando-se num silêncio aflitivo, acusam toda a gente da injustiça e da incompreensão de que se sentem vítimas». Esta interacção produz uma escalada num jogo em que, justamente, é preciso perder para ganhar:

Dois cônjuges moralistas que se sentem ambos vítimas de uma relação compulsiva não podem deixar de entrar em competição pelo troféu mais cobiçado do ponto de vista moralista: qual dos dois é mais vítima. A posição recíproca na relação é, portanto,

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de tipo simétrico, mas com uma simetria muito particular: a posição de topo na relação será ocupada por aquele que se sentir mais sacrificado, em nome do dever, do comportamento irrepreensível e da estabilidade da instituição familiar. Por con-seguinte, não temos dúvidas em definir este tipo de simetria como sendo caracterizado por uma escalada sacrificial 23. Este jogo paradoxal coloca a paciente numa posição des-

confortável face aos pais. Com efeito, ambos querem captar a simpatia da filha, mas se esta se aproximar demasiado de um ou do outro, vê-se imediatamente repelida, pois o facto de ganhar a simpatia da filha diminuiria o estatuto de vítima detido pelo pai ou pela mãe 24.

Selvini Palazzoli sugere que, num sistema familiar em que qualquer tentativa de comunicação corre o risco de ser rejeitada, a rejeição da comida poderia constituir, por sua vez, uma res-posta adaptada 25. Por nossa parte, gostaríamos antes de chamar a atenção para a correspondência notável que existe entre a sua descrição do quadro familiar das anorécticas e a descrição que Girard faz do contexto social. Esta correspondência permite-nos ligar melhor os dois níveis da análise.

Uma rapariga criada num ambiente familiar caracterizado por uma concorrência sacrificial tem mais hipóteses de se lançar perdidamente na competição sacrificial ao nível social, que leva as mulheres a não se alimentarem devidamente. Felizmente, são ainda raras as vítimas que perdem a vida para ganharem esta competição. Mas o carácter excepcional da sua sorte não devia impedir-nos de ver o seu enraizamento em algo que partilham com as outras mulheres do seu tempo. É ao imitarem o mesmo modelo cultural que imitam as outras mulheres, é ao imitarem

23 Selvini Palazzoli, op. cit., p. 220.24 Ibid., p. 221.25 Ibid., p. 222.

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todas as que o imitam e levando essa imitação até ao extremo, que acabam por se sacrificar no altar da magreza. É por se identificarem às outras que morrem.

Podemos aplicar a estas vítimas aquilo que Freud, no texto já citado, diz a propósito do tipo de identificação que observou entre a sua paciente e a amiga: «É graças a [esta identificação] que as doentes podem exprimir pelas suas manifestações mórbidas os estados interiores de grande número de pessoas e não apenas os seus; podem sofrer, de certa maneira, por uma multidão de gente…» 26. Deste modo, passaríamos de uma rivalidade mimética para o suplício de uma vítima que sofre no lugar da multidão. Se a mania da magreza faz parte do espírito do tempo, não será o mecanismo que desencadeia tão antigo quanto o mundo?

Agradecimentos

O autor desta introdução agradece a Françoise Domenach e a Matteo Selvini pela amabilidade em terem relido o seu texto, e a Peter Thiel, Robert Hamerton‑Kelly e à Imitatio Inc. pelo apoio dado ao seu trabalho. O autor é o único responsável pelas ideias aqui exprimidas.

26 Freud, op. cit., p. 136. Trata-se, mais particularmente, daquilo a que Freud chama «identificação histérica», que não seria «simples imitação, mas apropriação [de um sintoma] por causa de uma etiologia idêntica» (p. 137). A histeria era, de certa forma, a patologia feminina em voga nessa época. Recordemos que Lasègue e Gull haviam inicialmente descrito a anorexia como uma doença histérica.

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s perturbações alimentares que afectam as jovens estão a atingir proporções epidémicas. Destas perturbações, a mais disseminada é a bulimia

nervosa, caracterizada por um consumo exagerado de comida, seguido de uma «purga», por vezes provocada pela toma de laxantes ou diuréticos e, na maioria dos casos, por vómitos auto-induzidos. Alguns investigadores afirmam que, nas universidades americanas, o fenómeno afecta pelo menos um terço das estudantes. (Como nove em cada dez pacientes são mulheres, usarei aqui pronomes femininos, mas alguns estudantes de Stanford dizem-me que a epidemia começa também a afectar os rapazes.)

Costuma-se apresentar G. F. M. Russell, o primeiro investigador que descreveu os aspectos específicos da bulimia moderna, como o descobridor de uma nova doença. O título do seu artigo, publicado em 1979 na revista Psychological Medicine, contradiz esta ideia: «bulimia nervosa: variante preocupante da anorexia nervosa». Com efeito, todos os sintomas descritos por Russell foram ante-riormente citados a propósito da anorexia (ver Bruch).

As seguradoras e os médicos só se interessam por doen-ças bem definidas, e o mesmo acontece com o público. Todos tentamos distanciar-nos de uma contaminação patológica dando-lhe um nome. Fala-se muitas vezes das perturbações alimentares como se fossem novas variedades de sarampo ou de febre tifóide.

Por que se desconfia da distinção entre duas doenças com sintomas tão radicalmente opostos como os da

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anorexia e da bulimia? Porque vivemos num mundo em que comer demasiado e não comer o suficiente são duas maneiras opostas, mas indissociáveis, de fazer face ao imperativo de magreza que domina o imaginário colectivo. A maioria das pessoas oscila, durante toda a vida, entre formas atenuadas dessas duas patologias.

O homem comum não tem qualquer dificuldade em

compreender uma verdade que a maioria dos especialistas prefere não encarar. As perturbações da nossa alimen-tação devem-se ao nosso desejo compulsivo de perder peso. A maioria dos livros sobre este tema reconhece a existência desta fobia universal das calorias, mas não lhe presta realmente atenção, como se essa não pudesse ser a causa principal de uma doença grave. Como é que um desejo fundamentalmente saudável poderia provocar um comportamento patológico e até, em certos casos, levar à morte?

Uma vez que muitas pessoas deviam estar certamente mais saudáveis se comessem menos, não é descabido supor que, por detrás da anorexia, existirá outra motivação que não esse desejo saudável, ou algum impulso, certamente inconsciente, que provoca um comportamento anormal. Ao designarem a anorexia e a bulimia como duas pato-logias diferentes, os classificadores impedem-nos assim de conhecermos a sua base comum.

O falhanço das teorias modernas A procura das motivações ocultas é o alfa e o ómega

da cultura moderna. Temos como princípio de base que nenhum fenómeno humano é verdadeiramente aquilo que parece ser. Uma interpretação satisfatória deve recorrer a

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Jean‑Michel Ourghourlian Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Mark R. Anspach Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 René Girard Perturbações alimentares e desejo mimético . . . . . . . . 25 Mark R. Anspach e Laurence Tacou Uma conversa com René Girard . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

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