sacrifÍcio, rivalidade mimÉtica e “bode expiatÓrio” em r. girard

24
Griot – Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036 Sacrifício, rivalidade mimética e “bode expiatório” em R.Girard – Márcio Meruje; José Maria Silva Rosa Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 151 SACRIFÍCIO, RIVALIDADE MIMÉTICA E “BODE EXPIATÓRIO” EM R. GIRARD Márcio Meruje 1 Universidade da Beira Interior (UBI/FCT) José Maria Silva Rosa Universidade da Beira Interior (UBI) RESUMO: Tendo como ponto de partida a obra de René Girard, o presente artigo pretende apresentar a dimensão antropológica presente na obra deste autor, destacando a sua originalidade e novidade ao pensar o homem como animal socialmente desejante. A teoria mimética, como Girard a formula, pretende ser uma teoria que, colocando no centro da sua reflexão o desejo e a imitação, permita compreender como se estruturam as sociedades arcaicas e actuais, partindo de mecanismos marcadamente antropológicos, para afirmar que as sociedades se estruturam a partir do desejo, do sacrifício e da necessidade de existência de «bodes expiatórios». A partir deste pressuposto, o sacrifício é a primeira instituição humana, com a capacidade farmacológica de preservar a sociedade e de permitir a sua subsistência no tempo. A cultura, por seu lado, emerge a partir do desejo mimético; e o mecanismo do bode expiatório, mecanismo vitimário por excelência, regula a sociedade ao solucionar as suas tensões internas. Considerando estes três conceitos – sacrifício, desejo mimético e mecanismo do bode expiatório – este artigo expõe o modo como se relacionam estes conceitos. Apesar de constatar a sua presença e eficácia na história, Girard não os legitima de jure, desvelando o segredo da sua eficácia – a ignorância inocente das vítimas – que, paradoxalmente, persiste mesmo depois de denunciada nas suas escusas razões. Posto isto, perguntemo-nos: como proteger o homem da sua própria violência? PALAVRAS CHAVE: René Girard; Teoria Mimética; Sacrifício; Bode Expiatório; Desejo; Imitação. 1 Bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) desde 2012; doutorando e pesquisador integrado do Instituto de Filosofia Prática da Universidade da Beira Interior (UBI), Covilhã – Portugal. E-mail: [email protected]

Upload: mathausschimidt

Post on 16-Dec-2015

217 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Márcio Meruje1 Universidade da Beira Interior (UBI/FCT) José Maria Silva Rosa Universidade da Beira Interior (UBI)

TRANSCRIPT

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 151

    SACRIFCIO, RIVALIDADE MIMTICA E BODE EXPIATRIO EM R. GIRARD

    Mrcio Meruje1 Universidade da Beira Interior (UBI/FCT)

    Jos Maria Silva Rosa Universidade da Beira Interior (UBI)

    RESUMO: Tendo como ponto de partida a obra de Ren Girard, o presente artigo pretende apresentar a dimenso antropolgica presente na obra deste autor, destacando a sua originalidade e novidade ao pensar o homem como animal socialmente desejante. A teoria mimtica, como Girard a formula, pretende ser uma teoria que, colocando no centro da sua reflexo o desejo e a imitao, permita compreender como se estruturam as sociedades arcaicas e actuais, partindo de mecanismos marcadamente antropolgicos, para afirmar que as sociedades se estruturam a partir do desejo, do sacrifcio e da necessidade de existncia de bodes expiatrios. A partir deste pressuposto, o sacrifcio a primeira instituio humana, com a capacidade farmacolgica de preservar a sociedade e de permitir a sua subsistncia no tempo. A cultura, por seu lado, emerge a partir do desejo mimtico; e o mecanismo do bode expiatrio, mecanismo vitimrio por excelncia, regula a sociedade ao solucionar as suas tenses internas. Considerando estes trs conceitos sacrifcio, desejo mimtico e mecanismo do bode expiatrio este artigo expe o modo como se relacionam estes conceitos. Apesar de constatar a sua presena e eficcia na histria, Girard no os legitima de jure, desvelando o segredo da sua eficcia a ignorncia inocente das vtimas que, paradoxalmente, persiste mesmo depois de denunciada nas suas escusas razes. Posto isto, perguntemo-nos: como proteger o homem da sua prpria violncia?

    PALAVRAS CHAVE: Ren Girard; Teoria Mimtica; Sacrifcio; Bode Expiatrio; Desejo; Imitao.

    1Bolsista da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT) desde 2012; doutorando e pesquisador integrado do Instituto de Filosofia Prtica da Universidade da Beira Interior (UBI), Covilh Portugal. E-mail: [email protected]

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 152

    SACRIFICE, MIMETIC RIVALRY AND SCAPEGOAT IN R. GIRARD

    ABSTRACT: Taking as starting point the work of Ren Girard this article aims to present the anthropological dimension present in the work of this author, highlighting its originality and novelty when thinking man as a social desiring animal. The mimetic theory, as Girard formules, intended to be a theory, placing in the center of its reflection desire and imitation. To understand how to structure the current and archaic societies, starting from anthropological mechanisms to assert that societies structure from the desire of the sacrifices, and the necessity of always being the mechanism of the scapegoat It is from this premise that sacrifice is the first human institution, with the ability to preserve the pharmacological society and enable their subsistence over time. Culture, in turn, is created from the mimetic desire, and the mechanism of the scapegoat mechanism victimizer par excellence that structure society. Considering these three concepts - sacrifice, mimetic desire and the scapegoat mechanism - the article shows how these concepts are related and how they can enrich previous studies on these topics. Unlike other ideas about mimesis, Girard recognizes her role essentially harmful and assigns it along with the desire, the main motive of the subject to violence. That said, let us ask ourselves, how to protect man from his own violence?

    KEYWORDS: Ren Girard; Mimetic Theory; Sacrifice; Scapegoat Mechanism; Desire; Imitation.

    A teoria mimtica de Ren Girard, iniciada com a obra La Violence et le Sacr, evidencia uma estrutura trilgica fundamental do agir humano, ficando o desejo mimtico como figura central em todas as restantes anlises, trilogia que aqui pretendemos evidenciar. Em primeiro lugar, mostrar o desejo mimtico como estrutura actante fundamental do ser humano; em segundo lugar, perspectivar de que modo as origens do sagrado podem ser remetidas para uma violncia fundadora presente em todas as culturas e, por ltimo, compreender de que modo a leitura girardiana dos evangelhos e da figura de Cristo pode iniciar uma fora de denncia singular que permita o (re)comear de uma nova histria ou odisseia antropolgica do homem.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 153

    O Sacrifcio: Primeira Instituio Humana

    Ren Girard define o sacrifcio, na sua obra La Violence et le Sacr2, como o instrumento de preveno contra a violncia emergente nas sociedades, isto , o mecanismo que se apresenta como o meio pelo qual toda a comunidade protegida da sua prpria violncia.

    O sacrifcio apresenta-se como uma estrutura simblica que, ao envolver um elemento de mistrio em aco tem a funo de impedir que a violncia, tida como interna sociedade, atinja repercusses tais todos contra todos - que coloque em causa a sobrevivncia da prpria sociedade, levando-a a uma situao de colapso. A funo do sacrifcio, enquanto ritual (ELIADE, 2002, p. 31), nem mais nem menos que purificar a violncia. (GIRARD, 1979, p.18). Assim, este efeito catrtico do sacrifcio coloca uma fronteira prpria violncia acabando apenas por se manifestar num processo ritual, levando a que todas as pulses e tenses que existiam na sociedade sejam transferidas para esse ritual, o qual envolve sempre uma vtima expiatria permitindo assim a subsistncia da sociedade, j que mediante tal transfert a violncia foi satisfeita, pelo menos por algum tempo.

    Girard apresenta o sacrifcio como a primeira instituio humana que permite justificar a existncia em sociedade. Ou seja, o sacrifcio ritual constitui o vnculo ou essa arcaica cola que permite passar do eu ao ns. Assim, o ritual para Girard a origem de todas as outras instituies sociais e, por isso, a primeira instituio humana. Em que consiste ento o sacrifcio? O sacrifcio consiste em descarregar sobre uma vtima (o bode expiatrio) todas as tenses existentes na sociedade as quais ameaam romper a ordem que a mantm. O sacrifcio o regulador da homeostase do corpo social. Por outras palavras, o sacrifcio permite expulsar do meio social toda a forma de violncia que ameaa a sociedade. Essa violncia resulta muitas vezes de dissdios que se acumulam entre os membros da sociedade, pois tais tenses surgem da incapacidade dos homens conseguirem conciliar os seus desejos, desenvolvendo uma rivalidade mimtica, assunto que retomaremos no prximo ponto desta parte.

    A noo de sacrifcio remonta, qui, ao mito da queda e encontra-se to difundida na cultura humana3 que, na actualidade, falar em sacrifcio parece remeter para uma recuperao do passado. Vejamos, por exemplo, o rito de iniciao do Cristianismo, designado Baptismo, que teve especial significao no Apstolo Paulo, e aparece no sexto captulo da Epstola aos

    2 Ren Girard, Violence and the Sacred (Traduo inglesa de Patrick Gregory), The John

    Hopkins University Press, Baltimore, 1979. 3 Cf. George Steiner, No Castelo do Barba Azul. Algumas notas para uma redefinio de

    cultura, Lisboa, Relgio dgua, 1992, pp. 13 e ss. Este texto, especialmente o captulo segundo, importante para a reflexo sobre a condio de bode expiatrio dos judeus, no Ocidente.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 154

    Romanos (Rm 6, 3-4) e escrito por volta do ano de 54 d.C (cf. BRANDON, 2003, p.102). Aqui o sacrifcio, tido como forma ritual religiosa, neste caso rito primeiro de iniciao vida crist, no implica uma morte fsica ou qualquer substituio para retomar a paz no seio da comunidade. Poderemos dizer que os ritos iniciticos, bem como os ritos de comemorao, se apresentam como rituais com um contedo profilctico. A vtima do Baptismo no vtima fsica mas espiritual - agora parte da comunidade e identifica-se com esta, melhor dizendo, identifica-se nesta.

    Noutro contexto paralelo, os tragedigrafos gregos squilo, Sfocles e Eurpides so exemplares na representao do sacrifcio. Aristteles testemunhou (cf. LEBEAU, 1999, p. 13) que a tragdia o resultado do poder catrtico que esta tem na audincia, ainda que algumas das tragdias no resultem num verdadeiro final catrtico, podendo ter finais neutros ou mesmo com um certo grau de felicidade4. Contudo, devemos notar que o poder catrtico que a tragdia gera na audincia explica o motivo de o espectador apreciar um sofrimento que dramatizado: assistir a um sofrimento que no seu, mas que o liberta. O verdadeiro sacrifcio no era contudo simulado, dramatizado: era real. O sacrifcio, fora das portas da cidade, de um animal, geralmente um bode era um exemplo desta prtica catrtica como purificao pessoal ou da comunidade (plis)5. Persona, que em latim significa mscara (no grego prspon, aquilo que se pe diante dos olhos) significa a personagem que na representao dramtica encarna outrem. Aquele que vestia a pele do bode encarnava com essa mscara o verdadeiro bode. J o significado de tragdia, do grego tragos e odos, tem na sua gnese o poder catrtico que dela resulta pois tragdia significa literalmente canto do bode, mas, curiosamente, significa tambm caminho do bode (BAILLY, 1969)6. este caminho, autntico beco sem sada, que o bode tem at sua morte que constitui a tragdia. A tragdia , assim, de entre todas as formas literrias a que apresenta uma estrutura mais sacrificial (GANS, 2000).

    Como instituio humana o sacrifcio representa, enquanto forma simblica, a aco que em si mesma desencadeia um rol de outras aces. Passemos agora anlise da estrutura

    4 Esta classificao no unnime. Seguimos a este propsito a classificao aristotlica da

    tragdia (cf. Les Tragiques Grecs, p. 15). 5 No Livro do Gnesis (Gn 22, 1-2) evidenciada a substituio de uma vtima humana por

    uma vtima animal. 6 O canto do bode que se expressa nos dois termos que constituem a palavra tragdia,

    respectivamente tragos e odos, estava associado ao caminho do bode. Literalmente, como nos diz Bailly, tragdia significa o canto do bode, canto religioso que acompanha o sacrifcio de um bode nas festas do Deus Baco, equivalente ao Deus Dionsio, na mitologia romana. graas a este acompanhamento, a esta cerimnia de despedida, que, por derivao, tragdia significa igualmente o caminho que o bode realiza at sua morte, ao mesmo tempo que o seu caminho era acompanhado por cnticos de cariz religioso (Cf. BAILLY, 1969, p. 878 - 879)

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 155

    sacrificial. O sacrifcio tem muitas vezes, seno na sua totalidade, um cariz religioso e um poder catrtico para a religio. Afirmamos aqui, com Girard, que religio e sociedade so indissociveis e uma no poderia existir sem a outra; uma depende da outra. (GIRARD, GOUNELLE, 2007, p.55)

    A estrutura sacrificial tem trs dimenses que, acima de tudo, envolvem os actores principais do sacrifcio Deus/deuses (enquanto formas simblicas religiosas), o social e a vtima. Estas trs dimenses, enquanto constituidoras do horizonte humano, fazem do sacrifcio a estrutura antropolgica fundamental que possibilita por um fim vingana sem que esta seja devolvida sociedade (TEIXEIRA, 1995, p. 32).

    Deus , no contexto sacrificial humano, a entidade suprema que recebe os sacrifcios, animais ou humanos, de um certo ritual e do qual se espera que uma aco no futuro seja a recompensa desse sacrifcio, p.ex.: uma boa cultura, fertilidade das mulheres, etc.. este rito, esta sinalizao evidente do religioso, que torna inseparvel a religio da segunda dimenso, o social. O social, enquanto criao de cultura, tem como seu pressuposto uma violncia fundadora (TEIXEIRA, 1995, p. 27), e atravs dela que a sociedade se cria, se estrutura. A originalidade de Girard , a este propsito, notria visto que apresenta a violncia como um meio para a estruturao da sociedade, mas que aps cumprir essa tarefa tem de ser expulsa da sociedade. E como? Precisamente pelo sacrifcio, pela imolao de uma vtima substituda que representa todo o grupo (social).

    A vtima, terceira dimenso sacrificial, a que apresenta um maior papel performativo e simultaneamente onde recai toda a aco do social. Ao analisarmos o papel da vtima testemunhamos o papel das sociedades humanas como fazedoras de vtimas e a maneira extremamente criativa e multiforme como as inventa. As histrias do patinho feio ou do Calimero so coisas que remontam criao do mundo. E no somos todos ns, afinal, como afirmou Sartre, metade vtimas e metade cmplices (SARTRE, 2002)? Ao analisarmos a vtima cingimo-nos neste primeiro momento ao processo sacrificial primordial, no denominando aqui o significado actual de vtima, com especial conotao jurdica.

    O sacrifcio, como constituinte da sociedade, consiste em transferir para outro objecto, uma vtima arbitrria, todas as tenses e dios que criam mal-estar na sociedade. O carcter teraputico da vtima leva a que esta tenha de fazer parte da sociedade que suposto purificar, para que esta se identifique com ela, mas contudo no pode ser uma parte ou um elemento fundamental desta. Se a vtima sacrificial fosse uma parte fundamental na nossa sociedade, por exemplo, uma figura poltica esta geraria uma violncia de vingana, de retorno, no meio da sociedade e levava igualmente ao seu colapso. A vtima escolhida entre o todo da sociedade e tem de pertencer, digamos, a um grupo desprezado. Na impossibilidade de esta ser um ser humano, a simblica sacrificial transfere esta vtima para uma vtima

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 156

    animal: um bode, um carneiro, um cordeiro7. O animal, em substituio de uma vtima humana, passa a ser durante algum tempo alvo de culto e adorao estabelecendo por um processo de transfert psicolgico uma paz provisria que liberta o todo social das tenses que este sofria anteriormente.

    A vtima sacrificada, que pertencia inicialmente a um grupo desprezado da sociedade, mas que possua ainda assim alguma similitude com a sociedade, adquire, com o seu sacrifcio, um papel fundamental e de superioridade em relao aos restantes. Quer falemos de uma vtima humana quer falemos de uma vtima animal, notamos que ao serem vtimas sacrificiais adquirem uma conotao religiosa. A vtima, que at ser sacrificada objecto odioso em razo da transferncia para ela da violncia que desestabiliza a sociedade, adquire com o sacrifcio uma venerao, um estatuto parte8. esta violncia que a alma secreta do sagrado9 em que o rito uma expresso evidente de indissolubilidade entre sociedade e religio (GIRARD, 1979, p. 31).

    Sabemos, atravs das dinmicas de grupo que nos chegam da psicologia, que criar um bode expiatrio no tarefa difcil. Mas de que modo, na actualidade, se geram estes bodes expiatrios? Falar de sacrifcio como estrutura perene e eficaz de um ritual reconhecer-lhe, na actualidade, estruturas que se metamorfosearam. Ainda que existam na nossa sociedade bodes expiatrios, de algum modo, com a complexificao social ao longo da histria, parece que perderam a sua funo catrtica e chegamos ao que Girard denomina, em vrias das suas obras, de crise sacrificial: isto , quando as vtimas que deveriam expulsar a violncia da sociedade deixam de possuir este papel e a violncia se perpetua na sociedade, na medida em que, instintivamente, para superar essa ineficcia se tendem a multiplicar ainda mais as vtimas. Tem sempre de haver bodes expiatrios.

    O sacrifcio, que em sociedades antigas era a ltima palavra da violncia e que ciclicamente, por um certo tempo, at novas tenses se acumularem, era capaz de manter a paz na sociedade, possua um modo prprio de existir, pois era devido vtima sacrificial ser escolhida aleatoriamente, mas no irracionalmente, que ela, ou os da sua estirpe, no podiam jamais devolver a violncia sociedade atravs do acto de vingana (TEIXEIRA, 1995, p. 31, 32). Em dipo Rei, de Sfocles, vemos exactamente este papel catrtico do sacrifcio onde a vtima se determina por si mesma, desconhecedora da tragdia que cada gesto seu arrasta,

    7 Relembremos a este propsito uma vez mais a passagem do Livro do Gnesis onde

    Abrao substitudo pelo cordeiro provido por Deus. Cf. Gen: 22; 1-9. 8O homo sacer representa uma estrutura fundamental no plano social (MERUJE, 2009). O exemplo mais notrio na literatura clssica o dipo em Colono, de Sfocles. E o processo de paixo e morte de Cristo pode ser visto pelo mesmo prisma. 9 Para Girard, a alma secreta do sagrado a violncia. uma violncia organizada para

    que a vida seja possvel. (TEIXEIRA, 1995, p.34)

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 157

    operando aqui Girard uma anlise distante da psicanlise de Freud (FREUD, 1990).

    A crise sacrificial, que tomou o lugar do sacrifcio nas sociedades modernas, a expresso de que, aquilo que antes se apresentava como obrigao sagrada, se tornou agora numa actividade quase-criminal, que engloba riscos de similar amplitude aos que esto envolvidos nessa obrigao sacrificante. O poder jurdico que se afirma na modernidade condena o sacrifcio como actividade criminal, a menos que seja legitimado atravs da criao de outras instituies humanas substitutas e legitimadoras por exemplo o direito penal da primeira instituio humana, que era o sacrifcio. O sacrifcio toma como meio a utilizao da violncia, sobretudo fsica numa primeira instncia, que ao longo da histria se foi transformando cada vez mais em formas dissimuladas e muito mais subtis. Essa subtilizao exprime tambm, a seu modo, a crise sacrificial de que falamos. Actualmente, a interposio de muitas mediaes tcnicas e de discursos entre as vtimas e os seus sacerdotes/carrascos, visam muitas vezes negar essa violncia e camuflar tal registo, levando a uma disfuno do acto sacrificial. Contudo, negar a violncia, quer num registo primitivo ou moderno, afirmar o seu poder metamrfico pelo qual ela vai sempre encontrando uma ou outra vtima sobre quem se exerce (GIRARD, 1979, p.2), porque para a boa conscincia do todo social so sempre precisas vtimas. A conduta sacrificial, que nas sociedades antigas permitia expulsar a violncia atravs do bode expiatrio, como ser a seguir demonstrado, impossibilitada qua talis pelo sistema jurdico racional presente nas sociedades modernas que se apresenta como substituto racional daquela. O sacrifcio j no um instrumento de preveno contra a violncia, em virtude da sua impossibilidade de se apresentar como um ritual sacrificial, pelo menos de modo claro, sem mediaes tcnicas. A que se deve ento esta impossibilidade? Em especial porque o sistema jurdico compete directamente contra o sistema sacrificial por aquele ser exactamente um outro modo sacrificial metamorfoseado (RICOEUR, 2000, p. 347). O sistema jurdico, em grande medida, funciona na actualidade como um filtro da violncia fsica directa que fazia o sistema sacrificial do bode expiatrio funcionar. O sistema jurdico-penal substitui o sistema sacrificial por este ser mais efectivo como legitimador da violncia. O sistema jurdico-penal ao actuar de modo legtimo no plano social ir colocar o mecanismo sacrificial como ilegtimo de modo a legitimar-se a si prprio racionalmente, mesmo se no cria menos vtimas. Existe uma desmistificao do sacrifcio e este passa apenas a ser possvel pelo sistema jurdico-penal v.g., a justia pelas prprias mos, o linchamento colectivo, legitimados pelo mecanismo sacrificial quando a multido tinha uma posio unnime, no so permitidos mas punidos neste novo sistema de gesto da violncia.

    Resulta assim, desta crise sacrificial, a sua proliferao (da violncia) em formas dissimuladas as quais invadem a sociedade ao serem

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 158

    legitimadas pelos diferentes modos de poder (poder poltico, econmico, social, cientfico, tecnolgico, etc.): onde quer que a violncia esteja presente a impureza sacrificial estar presente. (GIRARD, 1979, p.34)

    Importa assim formular uma questo: de que modo passamos de um registo sacrificial para a crise sacrificial? No vale a pensa tentar relaes do tipo causa-efeito, mas devemos sublinhar alguns acontecimentos que decorrem desta alterao: quando ficamos privados da realizao do sacrifcio e o bode expiatrio deixa de funcionar, que mais facilmente a violncia do todos contra todos retorna como forma de regulao homeosttica da sociedade. Esta violncia totalizante, ou a sua possibilidade iminente10 , instaura a crise sacrificial e a sociedade torna-se incapaz de recuperar a anterior eficcia do sacrifcio ritual. O sistema sacrificial anterior metamorfoseia-se, assim, nas sociedades modernas, em legitimao das leis do poder poltico-jurdico e as suas formas prprias de violncia, no sentido weberiano11.

    O sacrifcio, ao apresentar uma duplicidade na sua expresso transfere a violncia que se acumula na sociedade para uma vtima expiatria e confere vtima um poder transcendental d violncia sacrificial uma eficcia mais imediata que a violncia jurdica pois esta, afinal, mostra no ter efeitos farmacolgicos anlogos aos que a violncia sacrificial tinha.

    As instituies racionais da sociedade moderna Estado, leis, trabalho, educao, economia, etc. tornam presente o processo sacrificial atravs de uma dissimulao da violncia que o re-vela, i.e., o mostra e simultaneamente o esconde. O sacrifcio deixa de ter a sua forma primordial, pura, e torna-se numa justia legtima que manifestado por outras suas instituies obedienciais: por exemplo penais, prisionais, escolares, hospitais psiquitricos, sanatrios, etc..

    Para alm do sacrifcio cruento que se torna ilegtimo com o desenvolvimento das instituies sociais a primeira forma de instituio humana fundamental, especialmente na modernidade, o interdito legal, o qual, na modernidade, segundo Girard, tende a substituir o sacrifcio. Entende Girard que a funo do interdito a regulao e proibio do mimetismo que, caso no tenha qualquer controlo social, acabaria por levar aniquilao da prpria sociedade em causa. Deste modo, sustentvel afirmar que os interditos se opem e combatem a rivalidade mimtica, reprimindo, por conseguinte, as condutas que em funo da obteno do mesmo objecto tendem a proliferar o mimetismo e a violncia12. Para tal, 10

    Que a Europa conheceu ciclicamente; e remetemos de novo para a j referida obra de G. Steiner. Mas talvez o esquema se possa verificar noutras latitudes, v.g.. na ndia do Mahabharata. 11

    O estado reclama para si o monoplio da violncia fsica legtima [] ele a nica forma do direito violncia. Cf. Max Weber, s/d. 12

    V.g., pelo roubo; pelo que uma das funes principais da lei proteger a propriedade dos bens, a segurana, etc..

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 159

    necessrio que a sociedade no repita as suas prprias palavras, no use os seus nomes (interdito do dizer) nem as suas prprias aces (interdito da aco) (GIRARD, 1978, p.19). Assim, a comunidade procurar livrar-se deles com o menor grau de violncia possvel para no responder seduo mimtica. (TEIXEIRA, 1995, p.36).

    A funo dos interditos criar zonas protegidas na sociedade, esferas onde exista ncleos fundamentais protegidos, em princpio, contra a violncia. Girard reconhece existir a possibilidade de um ncleo de no-violncia no seio da sociedade moderna13 e este, por sua vez, o regulador que permite desempenhar funes essenciais como a educao cultural, a sobrevivncia das geraes, etc.. (GIRARD, 1979, p. 301-302)

    Se como instituio primacial o interdito visa eliminar a imitao (a apropriao do alheio) no seio da comunidade, os ritos visam, como Girard sustenta, a utilizao da violncia em doses pequenas (GIRARD, 1979, pp. 37-48). Perante os males, optar-se- por uma padronizao do mal a lei do mal menor , isto , no se substitui a violncia por qualquer outra forma de violncia equivalente, mas legtimo us-la como um medicamento, em doses o quanto baste: o rito fundamentalmente um sacrifcio ritualizado que encontra a sua gnese e estrutura no mecanismo fundador; ele reproduz todos os estdios da crise mimtica incluindo a sua resoluo. (TEIXEIRA, 1995, p. 38).

    Por conseguinte, a fundao e estruturao da cultura humana sobre o mecanismo vitimrio a exaltao de uma das instituies mais importante: o mythos. O mito no ser, pois, mais do que a inveno narrativa da vtima, apesar de esta ser uma qualquer vtima arbitrria. Esse poder fabulador liberta os sacrificadores das suas recriminaes recprocas. J a, a palavra substitui eficazmente a violncia. Assim, essa contaminao, ao ser erradicada, volve-se simultaneamente poder salvfico, pelo benefcio social que capaz de gerar (a cruz revela-se graa, no caso da narrativa crist). Nas palavras de Alfredo Teixeira, os mitos narram, de facto, crises mimticas e processos vitimrios bem-sucedidos, concretizados, frequentemente, na morte de um heri divinizado, rejeitado pela comunidade. (TEIXEIRA, 1995, p.30)

    Estas instituies, que nada mais so que o fundamento do mecanismo vitimrio, esto longe ainda das instituies sociais nas pretendemos encontrar uma ligao com o mecanismo sacrificial.

    De entre as mais diversificadas instituies, a que melhor afirma a existncia de um mecanismo sacrificial, destitudo de qualquer forma mtica ou religiosa, ainda que nele seja fundado, o sistema jurdico-penal existente nas sociedades modernas, como j referimos. Para Girard, no existe no sistema penal qualquer princpio de justia diferente de um princpio de vingana existente na reciprocidade violenta aquando do 13

    Talvez se possa esclarecer melhor este ncleo que distinguirmos violncia fundadora e violncia conservadora do direito: esta segunda protege da primeira.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 160

    colapso do mecanismo sacrificial, ou crise sacrificial: o princpio das reciprocidades violentas e da retribuio est presente []. No h diferena essencial entre a vingana pblica e vingana privada, mas sobre o plano social existe uma diferena enorme. (TEIXEIRA, 1995, p.38) Que diferena se d no plano social? A violncia aparece nos nossos sistemas judiciais com uma autonomia conceptual que permite isolar o crime da pena devido transcendncia social dos sistemas judiciais. Alfredo Teixeira reitera que se esta transcendncia judiciria perder a sua eficcia, encontrar por baixo o carcter imitativo da violncia tal como se concretiza nas sociedades primitivas. Deste modo, possvel sustentar que a crise sacrificial que deu lugar ao encobrimento do mecanismo vitimrio (TEIXEIRA, 1995, p.40), que nas sociedades modernas se outorga pelo politicamente correcto (BENTO, 2009), essa mesma crise sacrificial que est em risco de colapsar caso as instituies onde esta se apoia perderem a sua eficcia. Em primeiro lugar, perder a sua transcendncia significa que o carcter imitativo da violncia acabar por ressurgir, agora fora de um contexto sacrificial que o reinstitua como bom remdio, protector, etc..

    Como referido atrs, Paul Ricoeur, na obra O Conflito das Interpretaes, denuncia, mediante a interpretao, o que chama o mito da pena, realando um conjunto de aporias que tm especial interesse analisar a este propsito. Diz-nos Ricoeur que no h uma lei mais forte do que a lei da pena pela qual o mito foi quebrado. (RICOEUR, 2000, p. 347) e a sua anlise dirige-se sobretudo tomada de conscincia (e racional) deste processo mtico. Crime e pena, crime e castigo, inscrevem-se em dois lugares antropolgicos diferentes: o do padecer e do agir. Ricoeur, ao reconhecer, para denunciar, a relao entre o religioso e o jurdico adianta que o sagrado sacraliza incessantemente o jurdico e, por outro lado, o jurdico juridiciza incessantemente o sagrado, dialctica onde notamos uma vez mais a relao que se estabelece entre sociedade e religio agora no tocante ao poder poltico-jurdico, no qual o registo sacrificial se testemunha de modo diferente, por exemplo, atravs da razo de estado (RICOEUR, 2000, p. 346-350). Interpretar assim o mito da pena denunciar a associao arcaica, mtica e narrativa entre crime e castigo, sobretudo quando se pretendeu racionalizar no direito moderno.

    A palavra sacrifcio significa tornar sagrado e o sacrifcio exprime, assim, o mecanismo social para produz o prprio sagrado, especialmente quando a sua carestia deixa adivinhar o caos. A vtima expiatria que ritualmente sacrificada produz a unio da comunidade como um todo e, ao mesmo tempo, manifesta uma dimenso sagrada (i.e., separada do resto): a vtima passa de maldita a bendita, a violncia sobre ela santifica-a; nasce da indiferenciao e produz a diferenciao; funda a cultura. Ela tem poder malfico por condensar a maldade social enquanto bode expiatrio, mas tem poder redentor ao libertar os perseguidores de suas recriminaes recprocas e, ao mesmo tempo, trazer benefcios sociais.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 161

    Em que medida o sistema jurdico-penal moderno ocupa o lugar da estrutura sacrificial primitiva? Por um lado, como dissemos, o sistema judicial apresenta uma estrutura similar sacrificial, mas substitui-a na medida em no funciona. Apresenta a violncia sacrificial dissimulada pelas suas justificaes racionais, tarefa dos penalistas. O sistema jurdico-penal pretende, tal como a estrutura sacrificial, inibir a violncia recproca, no permitir a vingana e pretende ser inquestionvel, isto , arroga-se o poder inquestionvel de ministrar a justia e assim, em ltima instncia, deter o exerccio legtimo da violncia sob todas as suas formas.

    O Desejo Mimtico: A Origem Cultural

    Aristteles, na Potica, acerca da imitao, diz que imitar congnito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, ele o mais imitador e, por imitao, apreende as primeiras noes), e os homens se comprazem no imitado. (ARISTTELES, 1448 b 4 - 1448 b 33) , pois, evidente para o Estagirita a tendncia originria e natural do homem no respeitante imitao e, importa notar, ao contrrio de Girard, onde tem conotao sobretudo negativa, a mimsis evidenciada por Aristteles patenteia comprazimento humano (v.g., na repetio das boas sensaes), determinando-lhe assim um importantssimo papel pedaggico. No excluindo esta capacidade noutros animais, o homem aprende especialmente pela imitao, no apenas devido sua racionalidade, mas sobretudo ao seu fraco apetrechamento natural, sento assim fundamental no processo da paidia (latu senso), desde a criana ao estado adulto, onde a mimsis, no termina mas se requinta (vg., na arte, na tragdia, ). na relao com o outro que a criana comea o processo imitativo que a leva a apreender as primeiras noes e nesta evoluo so vrios os modelos a seguir: os pais, os colegas da escola, a televiso, etc. O outro que se coloca diante de mim pode ser um modelo para mim e os artigos de psicologia abundam nesta temtica, ligando-a aos vrios processos de aquisies cognitivas14. Vemos mesmo que esta mimsis, presente no reino animal (e talvez at vegetal, no fototropismo), uma poderosa arma dissimuladora e leva, atravs da seleco natural, a uma vantagem na luta pela sobrevivncia. Assim, se o homem a espcie mais imitativa de todas, esta ento a que detm a maior vantagem na luta pela sobrevivncia, mecanismo que a racionalidade ainda apurou mais, como Nietzsche no deixou de notar com feroz ironia. A imitao prpria ao Homem desencadeou no seio da sociedade o que Girard designa origem cultural da espcie humana e que o leva a afirmar um novo processo de hominizao e humanizao.

    14

    Os estudos de Melanie Klein, na psicologia, e os de Konrad Lorenz, na etologia, so ptimas fontes de pesquisa para aprofundar esta linha de pensamento.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 162

    A mimsis, para Girard, uma estrutura dinmica na qual o que se imita pode numa fase seguinte ser obstculo e rival atravs do que o autor denomina como double bind (GIRARD, GOUNELLE, 2007, p. 59), i.e., duplo vnculo ou vinculao recproca, no sentido de recolher a anfibologia profunda que perpassa o processo imitativo. A mimsis do homem poder ser ento representada por este esquema:

    Entre o sujeito e o objecto (de desejo) estabelece-se um outro sujeito que pode, numa primeira fase, ser modelo do sujeito mas que, numa segunda, um obstculo para a conquista do objecto. Numa terceira fase, o sujeito e o obstculo apenas esto interessados no objecto uma possvel quarta fase seria a extino do objecto e a perpetuao de uma rivalidade subtilizada, transcendente, infinita, entre sujeito e o rival imitado. J no se quer nada que o outro tem, mas quer-se ser o outro. Mas recuemos: quando estamos perante aquela trade fundamental, originria na filosofia de Girard, apresenta-se o que o autor denomina tecnicamente como rivalidade mimtica. esta concepo que nos permite falar da triangularidade do desejo, pois a mimsis liga-se intimamente a esta noo. atravs da mimsis que o sujeito deseja o objecto (pois copia o outro no seu desejo), mas pelo desejo que o sujeito entra em conflito e rivalidade (GIRARD, 2007, p. 50-60).

    Na relao dual que existia entre sujeito que deseja e objecto desejado interpe-se agora um mediador, um outro. atravs deste outro que nasce o desejo. O sujeito deseja o objecto de desejo de um outro sujeito; deseja porque o outro deseja, e no um objecto indesejado. S interessa o objecto porque ele de um outro, ou porque o outro tambm o deseja. O desejo do outro excita e mediador do desejo prprio. Girard denomina este processo de mimsis de apropriao ou imitao da apropriao (cf. GIRARD, 1987, p. 7-10). E, por conseguinte, a rivalidade mimtica a rivalidade que se gera entre os sujeitos devido aquisio, posse e fruio

    2. Fase

    1. Fase

    Sujeito Objecto

    Sujeito Modelo

    Sujeito Obstculo

    Sujeito Objecto

    Sujeito Obstculo

    Sujeito Objecto

    3. Fase

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 163

    de um objecto. Os dois sujeitos tornam-se rivais devido disputa do mesmo objecto, podendo este deixar de interessar, se o que move ambos os rivais desejar o desejo (liquidando-o) do outro sujeito. O objecto pode deixar de existir, pode desaparecer, mas a rivalidade continua, como se disse.

    pela rivalidade do desejo que a violncia nasce e se desenvolve nas sociedades. O que acabmos de reconhecer entre dois sujeitos, acontece de modo semelhante entre todos os sujeitos num registo societal, gerando-se assim um conflito generalizado de todos contra todos pela posse do objecto A, objecto B, etc.., numa espiral infinda e exponenciada. Quando um sujeito quer imitar o desejo do outro, mas verifica que tal impossvel (nem quanto ao objecto nem quanto ao desejo), essoutro passa de modelo a obstculo, passa a ser o rival: dune rive au rivage rival, diria M. Serres. Girard denomina esta noo double bind, conforme j referimos. Girard mostra de forma exemplar, ao longo das suas obras, que este double bind que se encontra em aco nos romances de Stendhal, Flaubert, Proust ou Dostoievsk15. O desaparecimento do objecto, devido ao desejo recproco de ambos os sujeitos, conduz a violncia a um segundo grau mais intenso: espiritualiza-se, radicaliza-se16. Objecto, sujeito e modelo no apresentam agora qualquer diferenciao, mas so antes um todo indiferenciado que permutam as suas posies, processo onde se perde a conscincia de quem rival de quem, porque cada um um misto de tudo. Certamente se se questionar algum sobre o porqu da rivalidade, ser dada uma longa lista de razes; mas so razes tardias, pensadas, de m-f no sentido sartriano, ou demodo inconsciente, relembrando Freud; nesse fundo involuntrio que esse double bind tem origem, podendo contudo autojustificar-se de forma quase transcendente quando chega conscincia e s razes. Reside aqui a gnese da imprevisvel escalada da violncia, at aniquilao de um rival. ros e thnatos danam, desde sempre enlaados, uma dana perigosa. Na filosofia hobbesiana est bem presente a afirmao desta competio mortfera na luta pelo mesmo objecto, que acaba por legitimar o Estado (e a sua violncia): se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que impossvel ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para o seu fim [] esforam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. (HOBBES, 2002, p.111).

    De toda a histria da violncia mimtica, de que nos fala Girard, esclarecedora a histria bblica de Caim e Abel17 pois os mitos presentes na 15

    Outros exemplos mtico-lendrios ou histricos seriam Osris e Seth, Caim e Abel, Esa e Jacob, Rmulo e Remo, etc.. Ou talvez mesmo pudssemos recuar ao mito de Lcifer. 16

    Nesta violncia de segundo grau apenas interessa a aniquilao do outro. Podemos inferir da psicanlise freudiana a rivalidade que se gera no seio desta estrutura tridica familiar: pai, me e filho/a. 17

    Presente em Gn 4, 1-16, o mito de Caim e Abel mostra o nascimento de uma sociedade com base na violncia e na rivalidade pastores e agricultores (os segundos detestam os rebanhos depredadores dos primeiros, porque lhes atacam as hortas, as vinhas, etc., pelo que se vingam no dono do rebanho, levando a que Deus vingue Abel, etc., etc., at hoje!),

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 164

    Bblia so para Girard uma das estruturas fundamentais que des-velam a violncia e desocultam o segredo de uma lgica sacrificial e vitimria. E por a apresentarem como lgica sacrificial que irrompem nesta significao e a alteram. tambm atravs de outras passagens da Bblia, mormente neotestamentrias, que Girard reconhece a inverso sacrificial, pois esta no prope qualquer vingana, mas antes um perdo e uma dignificao da vtima como tal.

    Caim e Abel18 revelam o perigo do nascimento de uma sociedade atravs da violncia. Abel morre para que seja possvel a sociedade agrria, o povo sedentrio (no sentido tambm de povoao); o gesto homicida de Caim apresentado por Girard como clmax e crise mimtica, pois Caim no desparece no grupo annimo dos agricultores; identificado, declarado culpado, deveria morrer segundo Talio, mas acaba por ser poupado, ainda que marcado. Se o mecanismo do bode expiatrio fora desvelado, o culpado teria de morrer para garantir o efeito catrtico e farmacolgico do primeiro sacrifcio, o de Abel; mas permanece vivo e esta inverso sacrificial que cria um novo modelo na histria, segundo Girard. Ningum pode vingar Abel, fazendo correr o sangue de Caim, pois tambm este foi sacrificado para que a sociedade fundada possa prosseguir fora do crculo infernal da violncia que gera violncia; existe aqui uma hetero-regulao (mandamento divino que vem de fora) da sociedade que impede essa vingana. A vtima sacrificada agora vtima santificada, i.e., separada, ermada, posta parte.

    Foi, pois, o mimetismo da inveja que introduziu o mal no mundo, segundo a perspectiva bblica e crist. A fundao da Humanidade revela a rivalidade nica no seio da sociedade e, de modo contra-exemplar, pretende fundar a fraternidade na sociedade, onde os sujeitos se alegram com a presena e os bens do outro, permitindo a comunho e graa futuras, em ordem a uma comunidade escatolgica de todos os bens.

    Tambm no Novo Testamento, o episdio do apedrejamento da mulher adltera (Jo 8, 1-11) tem toda a estrutura da crise mimtica: o grupo est em crise (ou crise fingida para questionar Jesus) porque a presena de uma adltera face Lei afecta toda a sociedade, pelo que a mesma deveria ser apedrejada (Lv 20, 10; Dt 22, 22). A soluo expiatria requer sangue, uma vtima cruenta. Esta, no caso uma mulher adltera, ipso facto marginal sociedade que se reconhece (farisaicamente?) na Lei. Acontece que Jesus no entrou na lgica do todos contra um, a lgica da violncia annima do linchamento colectivo, onde cada um se esconde por detrs do outro; pelo que face pergunta: Moiss manda esta mulher. E tu que

    o que partida se revela como parte de um mecanismo sacrificial; mas este revelado, permitindo a inverso sacrificial, isto a revelao das estruturas fundamentais da sociedade. 18

    Ainda que Girard no escreva directamente sobre o mito de Caim e Abel, vide a este propsito Teixeira, 1995, p. 64.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 165

    dizes? Jesus no responde como se esperaria, entrando na armadilha de dizer uma coisa diferente, contra Moiss; ou confirmar o apedrejamento, contra si a sua lgica de amor e perdo. Jesus deixa a exegese, do discurso e vira-se para a aco: escreve na areia, ao mesmo tempo que lana um enunciado performativo. Quem no tiver pecado atire a primeira pedra deixa-os perplexos, perdidos, destri o grupo, a violncia annima e individualiza cada um, responsabilizando-o pelos seus prprios actos. desmontando o mecanismo do linchamento colectivo da vtima, que Jesus acaba propondo o perdo. S o perdo pode terminar a violncia sem a mediao da violncia. Os evangelhos so o maior exemplo de desvelamento do segredo presente na estrutura vitimria do sacrifcio (de que o prprio Cristo ser vtima consciente) e nele que Girard v a novidade crist que irrompe contra todas as lgicas sacrificiais presentes nas sociedades ontem, hoje e sempre(?). O episdio de Caim e Abel, tal como o da mulher adltera, mesmo que diferentes entre si, indicam uma reconciliao social na qual a violncia sacrificial mortfera no ocupa j qualquer lugar. Ainda que de incio estes episdios tenham tudo para serem episdios sacrificiais, no seu desenvolvimento e, consequentemente, no seu fim, que revelada e recusada a mediao sacrificial. Os evangelhos revelam a mensagem do perdo e reconciliao como capazes de fundar a convivncia entre os homens fora do circuito da violncia, e pretendem colocar assim um fim crise mimtica sem recorrer utilizao ao sacrifcio de um por todos. Jesus mostra que o mal comea na esfera do desejo (Mt 27), mas no coloca um fim definitivo ao mimetismo intrnseco do homem; apresenta-lhe outras possibilidades. Pretende antes que a violncia seja ultrapassada pela no-violncia, desencadeando um novo par mimtico onde as imagens de Joo Baptista e dele prprio so exemplos vtimas da violncia, mas mansos e humildes corao de um novo crculo onde no exista rivalidade, inveja ou vingana reparadora. As figuras de Joo Baptista e Jesus so, a este propsito, as precursoras de um novo modelo no-violento de relao entre os homens.

    Segundo Eric Auerbach, a grande diferena do homem actual o carcter dinmico ou histrico que possui, ao contrrio do homem antigo que era visto numa situao esttica (AUERBACH, 1974, p. 32). O homem da sociedade actual mostra as constantes mudanas do meio em que est inserido. Este autor afirma que a literatura da antiguidade no revela as condies do homem, mas antes condies da f e da interpretao da vontade divina. Plato introduz a noo de mimsis como emulao, transformao ou ainda como criao de similitudes, produtores da aparncia e da iluso e nesta mimsis platnica que Gebauer e Wulf (AUERBARCH, 1974, p.32) no vem qualquer unidade. O ponto mais

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 166

    importante da anlise realizada por Plato acerca da mimsis19 , para o contexto girardiano, a noo de apropriao, visto que Plato nunca desenvolveu aprofundadamente na sua filosofia ao carcter conflitual da mimsis em mbito religioso ou poltico, como gerador da violncia. V.g., no Banquete at o contrrio: a mimsis se relaciona-se com o desejo conduzindo este, graduadamente, do amor dos belos corpos ao amor das belas almas e, da, ao amor da Ideia de Belo e de Bem. Neste sentido, a mimsis ertica at pode ser vista em Plato um phrmakon 20 , e reconhecemos at aqui que Girard afirma essa mimsis fundamental para a fundao da cultura. Se a mimsis um phrmakon e, simultaneamente, fundamento da cultura, poderemos defend-la aqui, tal como parece faz-lo Girard, j que ao mesmo tempo transporta um potencial de violncia? Por outras palavras: ainda que a mimsis detenha, como j referimos, um carcter pedaggico, no ser ela responsvel pela proliferao da violncia nas sociedades demonstrando assim o seu carcter negativo a partir do qual se desenvolve um mimetismo violento? Se sim, de que forma poder a sociedade reprimir esse mimetismo violento? Perguntamos ns: ter sido a instituio escolar a grande descoberta para o transfert da violncia destrutiva para uma violncia (disciplina) criativa, se verdade, como quer Aristteles, que aprendemos (tudo?) pela imitao e que isso congnito em ns? Quanto a Girard fala-nos de dois tipos de mediadores no desejo21 : um interno e outro externo: no caso da mediao externa, a distncia entre sujeito e modelo previne que estes sejam competidores um do outro []. Mediao interna, por outro lado, surge quando a distncia para com o modelo diminui. (DEPOORTERE, 2008, p.36). Inferimos desta citao, o que Girard mostra em Deceit, Desire and the Novel: o objecto apenas um meio para chegar ao mediador (DEPOORTERE, 2008, p. 37). 19

    Plato atribui nos seus textos (v.g., na Repblica ou no Mnon) um duplo sentido mimsis, tendo em considerao os diferentes planos do seu uso. Do ponto de vista gnosiolgico, a mimsis importante na medida em que nos ajuda a remorar a Ideia, patente no tpos inteligvel mimsis evidenciada como positiva no processo de anamnese. Alm do exemplo do escravo, no Mnon, veja-se tambm a mimsis positiva apreciada no Fdon, no Fedro, ou no Crton. Por outro lado, Plato refere tambm a mimsis como negativa, no mbito da teoria da participao, que se compara a Ideia com as suas materializaes objectivas em actos ou objectos. No Livro X, da Repblica Plato, o clebre mito dos trs leitos refere-se mimsis negativamente, como um processo de degradao ontolgica, onde o marceneiro e, depois, o pintor, agravam cada vez mais a distncia dos seus produtos (um leito e a pintura de um leito, respectivamente) em relao ao original. Copiar, imitar degradar. A mimsis apresenta-se, pois, neste aspecto, e segundo um ponto de vista ontolgico, como qualquer coisas a no imitar, sobretudo porque destri a inteligncia, tendo por conseguinte as piores consequncias tico-polticas. 20

    A reflexo da mimsis como phrmakon pode ser encontrada na obra de Lacoe-Labarthe (LACOE-LABARTHE, 1998, pp. 248 265). 21

    O desejo liga-se pois noo de mimsis e desenvolve o que Girard afirma de rivalidade mimtica.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 167

    precisamente na chegada ao mediador que se realiza a rivalidade mimtica, pois o sujeito que at ento era modelo e possua o segredo de o ser desvelado: O homem deseja ser algo que ele prprio e [simultaneamente] algo que outra pessoa possui [ou ] e ele carece de ter. (DEPOORTERE, 2008, p. 37)

    A rivalidade mimtica de que nos fala Girard , assim, um ponto paradoxal: porque aglutinador da sociedade onde objecto, sujeito e desejo deixam de estar diferenciados; e porque transporta j os conflitos. A rivalidade mimtica a passagem do todos contra todos para o todos contra um que apazigua a crise e, por conseguinte, a violncia inventando um bode expiatrio que previne (phrmakon) a generalizao da violncia e o colapso. A diferenciao que se cria permite a seleco da vtima a sacrificar, a santificar. Que caractersticas dever ento possuir tal vtima? Veremos isso a seguir, mas queremos desde j sublinhar-lhe a importncia.

    Girard afirma, numa conferncia ao Le Monde (GIRARD, 2001), que a situao que se vive na actualidade (refere-se em geral s relaes internacionais, polticas, econmicas, sociais, culturais, etc.) a de uma rivalidade mimtica instalada a nvel mundial, que visvel atravs da crise que enfrentamos actualmente. Girard diz-nos que o problema no reside concretamente na diferenciao, na difference, mas antes na competio:

    A competio o desejo de imitar o outro em ordem a obter a mesma coisa que ele ou ela possui atravs da violncia, se assim for preciso. Sem dvida alguma, o territrio a barreira para um mundo diferente do nosso, mas o que permite o terrorismo no reside nessa diferena que o remove para longe e que o torna inconcebvel. Antes pelo contrrio, reside num desejo para a igualdade e semelhana. As relaes humanas so essencialmente relaes de imitao, de rivalidade. (GIRARD, 2001).

    curiosa esta incurso pelo terrorismo actual, vendo nele no a afirmao extremista de uma diferena identitria que quer exterminar a outra diferena, mas antes um desejo do mesmo, ao contrrio de outras teorias actuais sobre o assunto (v.g., Samuel Huntington). Talvez a psicologia do terrorista suporte parcialmente a tese de Girard (v.g., comportamentos de consumo dos mesmos smbolos que dizem odiar) se bem que por outro lado parea infirm-la (v.g., as clulas terroristas camalenicas, totalmente mimetizadas, que vivem nas sociedades ocidentais e que um dia acordam). A actualidade , pois, como as sociedades arcaicas, produtora de vtimas sacrificiais, de bodes expiatrios, mas de um modo mais dissimulado como ser a seguir apresentado. A padronizao glocal dos comportamentos nas sociedades actuais, impulsionados pelo consumo mimtico planetarizado (v.g. pela Amazon; ou no recente

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 168

    lanamento da PS4) no estranha a Girard. Da ele referir, na entrevista, que o problema da rivalidade mimtica , sobretudo, o caminhar para um desejo de igualdade e de semelhana indiferenciadoras. Sem dvida que a homogeneizao massiva de comportamentos e de produtos idnticos comporta algo de muito violento, no s mas tambm do ponto de vista simblico, para a diferenciao cultural das sociedades tradicionais (especialmente minorias que, apesar de resistirem, depois desaparecem simplesmente na enxurrada), bodes expiatrios atrasados de um progresso cuja finalidade no se vislumbra no fog que avana.

    O Mecanismo Vitimrio: O Bode Expiatrio

    A vtima expiatria que se produz no seio da sociedade a vtima expiatria que funda a cultura (i.e., o valor, o princpio de valorizao de tudo, do que deve ser feito, prescrito; e do que deve ser proibido, proscrito). A sua morte sacralizadora. A existncia de uma vtima expiatria o desaparecimento da diferenciao entre sujeito, objecto e desejo, mas simultaneamente ela representa o medo da sociedade: os indivduos em luta, j que cada um o rival, duplo e modelo do outro, um pouco por acaso, vo dar-se conta que esto todos do mesmo lado (unanimidade violenta) contra um s. (LOPES, 200, p. 149). Toda a sociedade acusa, exprobra essa vtima, arbitrariamente, de todos os males que enfrenta e a nica forma de garantir futuro sociedade santificar a vtima (sancire, santificar, quer dizer separar) pois uma determinada violncia, para que possa estancar acaba sempre por encontrar uma vtima-objecto de descarga. (LOPES, 2000, p. 150). Segundo esta teoria, se no existissem bodes expiatrios, as sociedades acabariam destrudas pela violncia de que elas prprias so produtoras. As vtimas propiciatrias geram uma dupla transferncia pela representao do seu (prprio) sacrifcio (homo sacer); por outras palavras, a vtima que foi escolhida arbitrariamente no seio social era acusada de todos os males da sociedade e essa vtima malfica que tinha de ser aniquilada; aps ser sacrificada, ela reencarna renasce! como vtima que instaura a paz, que permite sociedade subsistir: o facto de se terem reconciliado entre si, por causa da mesma vtima, vai criar a iluso de que ela, tendo sido responsvel por todos os males malficos, tambm responsvel pela sua prpria reconciliao (duplo transfert) e por isso tem uma natureza diferente de poderes sobrenaturais que tanto podem desencadear a violncia e o castigo, como a paz e a reconciliao (da tambm o seu carcter monstruoso) (LOPES, 2000, p. 149)22. pelo seu papel facilitador da dupla transferncia, mas simultaneamente 22

    O carcter monstruoso do bode expiatrio, da vtima, expresso na sua dupla funcionalidade pois a vtima simultaneamente benfica e malfica. A sua monstruosidade reside na bifidez que se produz naturalmente na sociedade quando reconhecida por todos (violncia unnime).

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 169

    farmacolgico, que a vtima possui um rol de caractersticas essenciais para o correcto funcionamento da sociedade no processo sacrificial, pelo qual a violncia se aniquila a si prpria pela morte dela e permite vida do todo social prosseguir. Uma vtima expiatria no pode, de modo algum, ter um papel central no seio dessa sociedade. Deve ser do meio social, devendo apresentar um carcter marginal, parte facilmente sacrificvel, de algum modo transgressora, e que por isso gera e refora a unanimidade quando apresentada como bode expiatrio da sociedade. Por outras palavras, tem de ser j algum marginalizvel, excluvel e portanto excluda, Estas caractersticas permitem uma inverso paradoxal: o maldito vira bendito quando a vtima sacrificada: a ambiguidade gera-se precisamente porque a vtima que, supostamente, encerra nela os males da sociedade, ao ser sacrificada santifica-se e santifica, transcende assim a sociedade. Adquire um papel diferenciador e permite a reconstituio dos sistemas diferenciadores no meio social em especial dos meios diferenciadores entre sujeito, objecto e modelo. Como enfrentar este carcter monstruoso, este double bind, esta ambiguidade que faz da vtima um sub-ser social para depois o colocar como transcendente sociedade (super-ser social)?

    Mircea Eliade, na obra O Sagrado e o Profano, referiu a importncia da morte fundadora de todas as formas culturais e importa relembrar aqui o que ele nos diz do carcter mimtico, do imitatio dei: o homem s se reconhece verdadeiramente homem na medida em que imita os Deuses (ELIADE, 2000, p. 112), os seus gestos arquetpicos e exemplares. No que respeita morte integrada na vida, diz que ela, enquanto fundadora, que muda a existncia humana: este primeiro assassnio mudou radicalmente o modo de ser da existncia humana. (ELIADE, 2000, p. 113).

    Ningum pode vingar-se do sacrifcio do bode expiatrio, mesmo que tivesse uma relao prxima e directa com este (v.g., filho, pai ou irmo). Aqueles objectos, ou indivduos, que tiveram uma relao mais directa com a vtima sacrificada so agora tambm objecto de interdito. Importa notar que uma outra forma de instituio, como anteriormente referimos, intimamente associada ao sacrifcio, o interdito. E por ser uma instituio fulcral da sociedade que esta necessita de impedir a vingana daqueles que viveram perto do bode expiatrio23.

    Interrogvamo-nos anteriormente como poderia a sociedade ser criadora de vtimas e de que modo esta criava as suas prprias vtimas. Importa perguntar tambm: de que modo o bode expiatrio escolhido na aleatoriedade do todo? Vimos h instantes que esta vtima tem de apresentar alguma marginalidade. atravs dos estudos das dinmicas de grupo, que nos chegam da psicologia, que se torna mais claro o modo como estas 23

    Ainda que a morte seja, para Girard e Eliade, idntica, Zeferino Lopes lembra-nos, por seu lado, que se para Eliade a morte mais simblica (inicitica) que real, esta apresenta-se em Girard como bem real. (LOPES, 2000, p. 150).

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 170

    dinmicas se desenvolvem. A psicologia interdividual de que nos fala Maria da Graa Silva Lopes (SILVA LOPES, 2000, p. 161-180), num artigo sobre Girard, faz-nos entender melhor o modo como este autor contribuiu e continua contribuir para uma matizada concepo tica e antropolgica do humano: a escolha da vtima o alfa (comeo mimtico) e o mega (concluso vitimria) do desejo; separar desejo e mimetismo significaria mutilar. De onde se segue a no existncia de um desejo espontneo bem como uma forte reduo nas possibilidades inerentes noo de Eu autnomo no final de contas, todo o desejo metafsico (SILVA LOPES, 2000, p. 179).

    O bode expiatrio, no como realidade (a um coisa escondida desde a criao do mundo), mas como noo operatria, mostra-se presente j em registos mticos antigos, pr-bblicos, bblicos, nas literaturas poticas e sapienciais, etc., por exemplo na tragdia grega. Na Bblia, o livro do Levtico apresenta-no-lo concretamente: Aaro entra no santurio com um bezerro para o sacrifcio pelo cordeiro e um cordeiro para o holocausto. (Lev 16, 3). O processo de expiao consiste em transferir, mediante improprios, os pecados da comunidade para o cordeiro exposto em pblico e que de seguida sacrificado. A existncia de dois animais no sacrifcio demonstra sobretudo a dialctica do puro-impuro mas, modernamente, os dois animais foram interpretados tambm como a representao da tenso pblico-privado. Enquanto o primeiro era sacrificado aps ser alvo de expiao pelos prprios pecados de Aaro e pelos de sua famlia (esfera privada), o segundo no era imediatamente morto. Eram-lhe transferidos os pecados da comunidade e abandonado no deserto (esfera pblica). Este processo de expiao exalta a lei de Santidade: Ser para vs uma lei perptua: uma vez por ano ser feita a expiao de todos os pecados dos filhos de Israel (Lev 16, 34). O bode expiatrio depois transferido do domnio propriamente religioso e uma expresso utilizada em diversos contextos: os judeus sero acusados no regime nazi do colapso poltico, e por isso tem de ser sacrificados, de modo a limpar a sociedade alem da sua contaminao, etc.. Constatamos na histria que certos grupos que as vtimas do mecanismo vitimrio, que servem de bode expiatrio, podem variar. Mas, importa diz-lo, so geralmente de minorias reconhecidas e marginalizadas: leprosos, bruxas, negros, ciganos, prias, deficientes, estrangeiros, pobres so exemplos de bodes expiatrios existentes nas sociedades ao longo da histria. preciso haver sempre repositrios para a violncia potencial.

    Apesar de, na actualidade, as nossas sociedades ocidentais, pretensamente querem expulsar quaisquer revivescncias de ritos sacrificiais, incontestvel a transferncia destes ritos para outras esferas, hoje de modo particular na economia, que talvez ltimo grande sistema sacrificial. Grandes instituies bancrias detm hoje o poder de manejar, metamorfoseados, os mecanismos vitimrios sacrificiais de outrora, gerindo

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 171

    especiosamente os princpios e os mecanismos do que vale (do que deve valer, diria Nietzsche, piscando o olho) ou no vale na sociedade.

    A passagem do mecanismo vitimrio de um plano sacrificial, com conotao religiosa, aos planos econmico, poltico, jurdico e social (v.g. na moda), etc., ligado s instituies do valor, desligando-se sucessivamente da conotao exclusivamente religiosa, deve-se existncia do que Girard denomina crise sacrificial. Girard ao notar que o sacrifcio, presente em todos os rituais, tem duas facetas distintas este aparece certas vezes como obrigao sagrada e outras como actividade criminal (GIRARD, 1979, Cap. I) tem plena noo da dualidade do sacrifcio: se por um lado pode ser legtimo e legitimvel, por outro pode torna-se ilegtimo. Tal dualidade, que se manifesta nas sociedades primitivas onde os ritos sacrificiais se apresentam como uma estrutura simblica e agregadora da prpria disposio social, reside, na actualidade, na legitimao da violncia pelo Estado e suas instituies-satlite24.

    Merece especial ateno a relao que a vtima arbitrria no mecanismo vitimrio apresenta quando sai do mecanismo sacrificial ritual, e passa a ser vtima na sociedade sem qualquer conotao religiosa, ou com uma conotao religiosa irrelevante. A vtima, outrora smbolo (realizao) por excelncia do sacrifcio pela sobrevivncia da sociedade, agora apenas um expediente para justificar outras violncias (razo de Estado, manipulao dos mercados, etc.).

    Como foi j esboado este texto, o sacrifcio pressupe sempre a constituio clara de uma vtima arbitrria, contra os verdadeiros culpados, uma vez que a culpa pode ser difusa. a substituio vitimria que cria o bode expiatrio. Contudo, como se chega a uma crise sacrificial, que Girard diz ser a condio do homem moderno e contemporneo? A relao vtima-violncia e a sociedade-vtima alterou-se ao longo do processo histrico; a sociedade arcaica apresentava estruturas diferentes das relaes prprias das sociedades moderna e contempornea. O carcter sagrado da vtima, presente no sacrifcio ritual arcaico, perdeu-se na sociedade actual aquando da crise sacrificial. J no h vtimas inocentes. neste sentido, nesta perda de sentido simblico, que as sociedades so inundadas pela violncia recproca metamorfoseada, transferida. Como diria Dostoievski, somos todos culpados, e eu mais que todos. Num registo sacrificial a vtima sacrificial uma criatura inocente que paga o dbito pela parte culpada (GIRARD, 1979, p.4). Como j referimos esta vtima substituta pertence geralmente a grupos minoritrios na

    24

    Estado aquela comunidade humana que, dentro de um determinado territrio, reclama (com xito) para si o monoplio da violncia fsica legtima. O especfico do nosso tempo que a todas as outras associaes ou pessoas singulares s se lhes concede o direito violncia fsica na medida em que o Estado permite; ele a nica fonte de direito violncia. (WEBER, 2000).

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 172

    sociedade em questo e, num registo mais progressivo de suposta civilizao, isto , menos ritualizante, onde algum assume responsabilidades perante todos, tal aco j no se d com seres humanos, mas antes com substitutos (animais) dos seres humanos25. Reparamos que num registo sacrificial existe uma violentao da vtima inocente que culpabilizada por actos que desconhece e pelos quais no tem culpa26. A necessidade de tal acto reside na existncia de uma aco profilctica essencialmente farmacolgica. A vtima ao ser violentada, servindo de bode expiatrio, possibilita no apenas afastar a violncia da sociedade como tambm expulsar dela a clera e o desejo de vingana: o sacrifcio [da vtima substituta no mecanismo do bode expiatrio] serve para proteger a inteira comunidade da sua prpria violncia (GIRARD, 1979, p. 8). A vtima, sacrificada apresenta nesta dimenso sacrificial uma identificao ambgua com a sociedade: ter de se identificar com a comunidade envolvida e, simultaneamente, no ser dela representativa em absoluto. Quando a vtima sacrificial j no funciona como contentor da violncia entra-se em crise sacrificial e a violncia perde as fronteiras, invadindo toda a sociedade. A partir deste momento, o registo sacrificial deixa de ter eficcia e de fazer sentido: onde quer que a violncia se instale a impureza ritual est presente (GIRARD, 1979, p. 34). Deste modo, o processo de sacrifcio no envolve apenas a completa separao entre a vtima sacrificada daqueles de que ela prpria substituta mas, tal processo implica, ainda assim, uma similitude entre ambas as partes. Este processo possibilitado a partir de um mecanismo de associaes entre os diversos elementos da sociedade: o sacrifcio um acto social.. (GIRARD, 1979, p. 42)

    A crise sacrificial, que o desaparecimento da eficcia dos ritos sacrificiais por as vtimas j saberem que o so, coincide com o desaparecimento da diferena entre violncia impura, que se d fora do processo sacrificial, e violncia purificante, a qual se d no seio do rito sacrificial. Por esta razo a violncia armadilha todos os mecanismos da sociedade (GIRARD, 1979, p. 51). Face crise sacrificial, que se situa entre outras instncias temporais tambm na actualidade, a funo catrtica do sacrifcio d lugar crise sacrificial e a violncia passa a ser recproca. Por no existir um bode expiatrio, passa a existir a possibilidade, de novo, da violncia de todos contra todos, que comea pelo acto de vingana e alastra

    25

    O sacrifcio de Isaac, pelo seu pai Abrao, e a sua substituio in extremis por um carneiro, tido como exemplar deste processo de substituio e, outrossim, de crtica bblica aos sacrifcios rituais de seres humanos, prprios se sociedades coev, portanto a recusa transcendental do mecanismo sacrificial humano. Jesus aparece como o primeiro a conseguir romper, de facto, com a estrutura sacrificial ao aceitar ele prprio uma morte no-sacrificial (TEIXEIRA, 1995, p. 204). 26

    Por exemplo, o caso de Job na Bblia.

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 173

    at justificaes de natureza teolgica (GIRARD, 1979, p. 135). Repare-se que, do mesmo modo que a crise sacrificial se separa de um registo religioso, a ltima palavra que fecha o ciclo da violncia ter de se afirmar como divina, isto , a violncia transcendente ao prprio homem: s um suposto ser superior encerra o ciclo da violncia. Num mecanismo sacrificial a vtima detm um carcter sagrado, ao passo que, numa crise sacrificial, a vtima, j sem qualquer carcter sagrado e sem eficcia expiatria, aliena-se e d lugar violncia recproca: a violncia recproca agora demoliu tudo que a violncia unnime erigiu. (GIRARD, 1979, p. 143).

    Em concluso, podemos referir que se nos referimos a aspectos essenciais do pensamento de Ren Girard, procuramos inscrev-los em estruturas histricas fundamentais, que nos permitam melhor compreender o ser humano na sua complexidade cultural. A sociedade actual europeia, ps-crist, encerrado o ciclo triunfal da religio crist, iniciado com Constantino, em 313, se colheu dela, experincia crist, a revelao e denncia de todos os sistemas sacrificiais assentes em bodes expiatrios, est capaz de recuperar de novo sacrifcios mais requintados. A prpria religio crist o reconhece, na recente Exortao Evangelii Gaudium do Papa Francisco, na qual alerta para o actual sistema econmico sacrificial, capitalismo de morte que precisa de vtimas, hordas de vtimas da crise econmica e de outras, e no apenas na Europa, mas um pouco por todo o Mundo. J antes, na sua viagem a Cagliari (Itlia)27, Francisco chamara a ateno e condenara veementemente a adorao do deus dinheiro fundamento do capitalismo selvagem, o ltimo e planetrio avatar dos grandes sistemas sacrificiais que a humanidade conheceu.

    Referncias Bibliogrficas

    ARISTTELES, Poitica, Impressa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 2002. AUERBACH, Erich, Mimesis The Representation of Reality in Western Literature, Princeton University Press, Nova Iorque, 1974 BAILLY, Abrg du dictionnaire Grec Franais, Libraire Hachette, Paris, 1901. BENTO, Antnio, A Lngua da Correco Poltica (http://www.lusosofia.net/textos/antonio_bento_a_lingua_da_correccao_politica.pdf, 01 Agosto 2009) in Lusosofia Biblioteca Online de Filosofia, Setembro de 2013. BRANDON, S.G.F., Ritual in Religion, S.G.F. Brandon, in The Dictionary of the History of Ideas, IV Vol, The Electronic Text Center (University of Virginia Library), Charlottesville, 2003. DEPOORTERE, Frederiek, Christ in Post Modern Philosophy: Gianni Vattimo, Ren Girard and Slavoj iek, T&T Clark Editions, Nova Iorque, 2008

    27

    Discurso do Papa Francisco na sua visita do Papa Francisco cidade de Cagliari (Itlia) em Setembro de 2013. (Jornal The Guardian, verso online, Setembro 2013).

  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 174

    ELIADE, Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: A Essncia das Religies, Edio Livros do Brasil, Lisboa, 2002. FREUD, Sigmund , Moiss e o Monotesmo (Traduo Portuguesa de Isabel de Almeida de Sousa), Relgio Dgua, Lisboa, 1990. GANS, Eric, Form Against Content: Ren Girards Theory of Tragedy in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVI (Jan. Jun. 2000), Faculdade de Filosofia de Braga, Braga, 2000. GIRARD, Ren, Things Hidden Since the Foundation of the, The Athlone Press, Londres, 1987. GIRARD, Ren, Entrevista ao Jornal Le Monde, 6 de Novembro de 2001, (Traduo Inglesa de Jim Williams) in COV&R (http://www.uibk.ac.at/theol/cover/girard_le_monde_interview.html), Setembro de 2013. GIRARD, Ren, Gounelle, Andr, Houzinaux, Alain, Dieu, Une Invention?, Les Editions de LAtelier, Paris, 2007. GIRARD, Ren, Violence and the Sacred, The John Hopkins University Press, Baltimore, 1979. HOBBES, Thomas, Leviat, Impressa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 2002, LACOE-LABARTHE, Philippe, Tipography: Mimesis, Philosophy, Politics (Traduo Inglesa de Christopher Fynsk), Stanford University Press, California, 1998 LEBEAU, Anne, Les Tragiques Grecs - Thtre Complet; Classiques Modernes, ditions de Fallois, Paris, 1999. LOPEs, Zeferino, Para uma Nova Cincia dos Mitos in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVI (Jan. Jun. 2000), Faculdade de Filosofia de Braga, Braga, 2000 MERUJE, Mrcio, A Violncia Como Phrmakon: Entre o (Des)velar do Segredo Cristo e a Possibilidade de um Novo Homem, em R. Girard, Universidade da Beira Interior,2009. PLATO, Republic, Vol VI, Harvard University, Cambridge, 1930. RICOEUR, Paul , Conflito das Interpretaes (Traduo Portuguesa de M.F. S Correia), Rs Editora, Porto, 2000. SARTRE, Jean-Paul, Les Mains Sales, Gallimard, Paris, 2002. SILVA, LOPES, Maria da Graa, Ren Girard e a Psicologia Interdividual in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVI (Jan. Jun. 2000), Faculdade de Filosofia de Braga, Braga, 2000, pp. 161 180 TEIXEIRA, Alfredo, A Pedra Rejeitada: O Eterno Retorno da Violncia e a Singularidade da Revelao Evanglica na Obra de Ren Girard, Universidade Catlica Portuguesa, Porto, 1995.