análise do discurso fundamentos teórico-metodológicos

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Revista Diálogos Interdisciplinares 2014, vol. 3, n°.1, ISSN 2317-3793 Análise do Discurso: Fundamentos Teórico-Metodológicos Andréa Paulon 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Jarbas Vargas do Nascimento 2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil Mauro Maia Laruccia 3 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Braz Cubas e Fundacentro, SP, Brasil A Análise do Discurso é uma metodologia flexível de leitura de texto que tem como objeto de estudo o discurso. Embora interdisciplinar porque busca complementação na História e na Psicanálise, pertence ao campo da Linguística. É uma disciplina que vem trilhando seu caminho por meio de várias mudanças e, por isso, nesse trabalho, apresentamos um percurso teórico e epistemológico desta metodologia de análise para nortear pesquisas qualitativas e, em seguida, discorremos sobre os seus fundamentos. Para recorremos à Análise do Discurso de linha francesa, utilizando-nos dos estudos de Bakhtin, de releituras sobre esse autor, amparando-nos pelas novas tendências da Análise do Discurso (doravante AD), segundo Maingueneau. Palavras-chave: Analise do Discurso. Gênero discursivo. Interdiscurso. The Discourse Analysis is a flexible methodology for reading text that has as its object of study the speech. Although interdisciplinary because it seeks achievement in History and Psychoanalysis belongs to the field of linguistics. It is a discipline that has been moving its way through various changes and, therefore, in this paper, we present a theoretical approach and epistemological analysis of this methodology to conduct qualitative research, then, we talk about the reasons. To choice to French Discourse Analysis, using the studies of Bakhtin, re-readings about this author, sustaining us by the new trends of Discourse Analysis (hereafter AD), the second Maingueneau. Keywords: Discourse analysis. gender discourse. interdiscourse.

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Fundamentos teóricos

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  • Revista Dilogos Interdisciplinares

    2014, vol. 3, n.1, ISSN 2317-3793

    Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos

    Andra Paulon1

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, SP, Brasil

    Jarbas Vargas do Nascimento2

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, SP, Brasil

    Mauro Maia Laruccia3

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Universidade Braz Cubas e Fundacentro, SP, Brasil

    A Anlise do Discurso uma metodologia flexvel de leitura de texto que tem como objeto de estudo o

    discurso. Embora interdisciplinar porque busca complementao na Histria e na Psicanlise, pertence ao

    campo da Lingustica. uma disciplina que vem trilhando seu caminho por meio de vrias mudanas e,

    por isso, nesse trabalho, apresentamos um percurso terico e epistemolgico desta metodologia de anlise

    para nortear pesquisas qualitativas e, em seguida, discorremos sobre os seus fundamentos. Para recorremos

    Anlise do Discurso de linha francesa, utilizando-nos dos estudos de Bakhtin, de releituras sobre esse

    autor, amparando-nos pelas novas tendncias da Anlise do Discurso (doravante AD), segundo

    Maingueneau.

    Palavras-chave: Analise do Discurso. Gnero discursivo. Interdiscurso.

    The Discourse Analysis is a flexible methodology for reading text that has as its object of study the speech.

    Although interdisciplinary because it seeks achievement in History and Psychoanalysis belongs to the field

    of linguistics. It is a discipline that has been moving its way through various changes and, therefore, in this

    paper, we present a theoretical approach and epistemological analysis of this methodology to conduct

    qualitative research, then, we talk about the reasons. To choice to French Discourse Analysis, using the

    studies of Bakhtin, re-readings about this author, sustaining us by the new trends of Discourse Analysis

    (hereafter AD), the second Maingueneau.

    Keywords: Discourse analysis. gender discourse. interdiscourse.

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 26

    Introduo

    Segundo Bakhtin (2006a), os gneros de discurso, tipos relativamente estveis de

    enunciados, se constituem, historicamente, a partir de situaes de interao verbal que, por

    serem inesgotveis, resultam numa variedade de gneros. Logo, cada nova situao de

    interao verbal constitui um novo gnero discursivo que, por sua vez, reflete as condies e

    as finalidades dessa situao por meio da fuso de trs elementos: o contedo temtico, o

    estilo verbal e a construo composicional. No entanto, esses elementos, que permitem a

    verificao de regularidades de um mesmo gnero, de acordo com Maingueneau (1997:36),

    precisam estar articulados ao conjunto de fatores do ritual enunciativo.

    Segundo Maingueneau (1997), interdiscursividade um conjunto de discursos que

    mantm uma relao discursiva entre si, ou seja, termos de outras esferas ou discursos,

    atuando numa relao discursiva conflituosa (ou no), num determinado discurso. Para o

    autor, o interdiscurso que deve ser estudado, porque se caracteriza como um espao de

    trocas entre vrios discursos selecionados, numa determinada situao discursiva, e, por isso,

    responsvel pela atualizao do j-dito.

    Maingueneau (2007), com o intuito de melhor esclarecer interdiscurso, faz uma

    distino entre universo, campo e espao discursivo. Afirma, ainda, que o discurso se

    constitui no interior do campo discursivo (determinado agrupamento de formaes

    discursivas) e que, restrito a um determinado grupo de formaes discursivas, permite uma

    disperso de texto com certa regularidade entre eles. No entanto, reconhece ser necessrio ao

    analista o isolamento dos espaos discursivos, ao investigar tal regularidade.

    1 Mestre em Lngua Portuguesa pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. E-mail: [email protected].

    2 Ps-doutor em Letras - UNESP, So Paulo, Brasil, Professor do Departamento de Portugus da Faculdade de Filosofia,

    Comunicao, Letras e Artes da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Email: [email protected]

    3Doutor em Comunicao e Semitica PUC So Paulo, Professor da Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes, So

    Paulo, Brasil, Professor da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e Analista de Inovao da Fundacentro, So

    Paulo, Brasil. Email: [email protected]

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 27

    A identidade discursiva, de acordo com Maingueneau (2007), estrutura-se a partir de

    relaes interdiscursivas, que estabelecem uma interao semntica entre os discursos, isto ,

    um sistema de regras define a especificidade de uma enunciao com base numa coerncia

    global, por conseguinte, no [se] apreende o discurso privilegiando esse ou aquele dentre

    seus planos, mas integrando-os todos ao mesmo tempo, tanto na ordem do enunciado

    quanto da enunciao (op. cit.:75). Essa Semntica Global proposta pelo autor est pautada

    na anlise dos seguintes elementos: intertextualidade, vocabulrio, temas, dixis enunciativa,

    modos de enunciao e modos de coeso. Quanto ao estudo da Semntica Global, optamos

    pela anlise das restries semnticas referentes aos planos do vocabulrio e do tema.

    Sabendo-se, portanto, que a AD nos permite estudar os enunciados alm de sua

    materialidade lingustica, visto que abarca tambm o contexto histrico-social do enunciador,

    por esse caminho que trilhamos a nossa pesquisa, priorizando, contudo, como categorias

    de anlise o gnero de discurso, o interdiscurso, o vocabulrio e o tema, planos da semntica

    global objetivos especficos.

    Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos

    A obra Discourse Analysis (1952), de Zellig Harris, pode ser considerada o marco inicial da

    anlise do discurso, visto que nela o autor j prope a descrio de um mtodo de anlise

    para alm de uma simples frase. Apesar disso, o trabalho da anlise do discurso ainda uma

    extenso da Lingustica porque aplica procedimentos de anlise de unidades da Lngua aos

    enunciados, distante de qualquer reflexo sobre a significao e as consideraes scio

    histricas de produo, que distinguem atualmente a Anlise do Discurso.

    No entanto, nos anos 1960 h um contexto intelectual que se mostra afetado por duas

    rupturas: a primeira, o progresso da Lingustica, em que linguagem passou a ser vista como

    um ramo de estudo muito complexo para estar limitada ao sistema saussuriano, isto , no

    mais se considera o sentido apenas como contedo, mas redireciona-se a anlise para como

    um texto funciona; e a segunda, a mudana no modo como os intelectuais concebem a

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 28

    leitura. A leitura passa a aparecer no mais como decodificao, mas como a construo

    de um dispositivo terico. A fala, o sujeito, a ideologia, o social, a histria e a semntica so

    trazidas para as discusses lingusticas. Surge, ento, a Anlise de Discurso Francesa. A AD

    passa a colocar a questo da interpretao (ela interroga a interpretao). Reconhece-se a

    impossibilidade de se ter acesso a um sentido escondido em algum lugar atrs do texto,

    procura-se compreender a lngua no s como uma estrutura mas sobretudo como

    acontecimento, conforme Orlandi (2007:19).

    Os estudiosos passam a buscar uma compreenso do fenmeno da linguagem no mais

    centrado apenas na lngua, sistema ideologicamente neutro, mas num nvel situado fora

    desse polo da dicotomia saussureana. E essa instncia da linguagem o discurso.

    A AD se constitui pela relao entre trs domnios disciplinares: a Lingustica, o

    Marxismo e a Psicanlise. Nasce, portanto, da interdisciplinaridade.

    Para Pcheux, o nascimento da AD foi presidido por uma trplice aliana: o

    materialismo histrico, para explicar os fenmenos das formaes sociais; a Lingustica,

    para explicar os processos de enunciao; e a teoria do Sujeito, para explicar a subjetividade

    e a relao do sujeito com o simblico. Como vimos, o discurso um objeto de estudo que

    no tem fronteiras definidas. Ele tridimensional - est na interseco do lingustico, do

    histrico e do ideolgico.

    Insere-se nesse quadro terico a noo de formao discursiva (daqui em diante, FD),

    advinda da obra Arqueologia do Saber, de Michel Foucault (apud Maingueneau, 1997:14),

    que consiste em

    um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo e no

    espao que definiram uma poca dada, e para uma rea social, econmica,

    geogrfica ou lingstica dada, as condies de exerccio da funo enunciativa.

    Nesse sentido, a formao discursiva, permeada pela noo de formao ideolgica

    perspectiva de mundo de uma determinada classe social -, estabelece o que pode e deve ser

    dito a partir de uma posio dada, em uma conjuntura dada. Em decorrncia nova forma de

    concepo de processo discursivo, a noo de sujeito da enunciao, por sua vez, sofre

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 29

    alterao. Visto que esse sujeito exerce vrios papis em diferentes espaos discursivos, ele

    apresenta-se dividido e heterogneo.

    O sentido das palavras se d no interior da formao discursiva, no espao em que elas

    so produzidas, o que confirma o carter material do sentido e do discurso. importante

    ressaltar que no h homogeneidade numa formao discursiva, como bem explicita

    Courtine et Marandin (apud Brando, 1993:40):

    Uma formao discursiva , portanto, heterognea a ela prpria: o fechamento de

    formao discursiva fundamentalmente instvel, ela no consiste em um limite

    traado de forma definitiva, separando um exterior de um interior, mas se inscreve

    entre diversas formaes discursivas como uma fronteira que se desloca em funo

    dos embates da luta ideolgica.

    Significa dizer que o processo discursivo construdo pela relao de conflitos (ou no)

    travados na disputa de espao das diferentes formaes discursivas. Em consequncia, o

    sujeito definido pelo lugar de onde fala, pelo espao de representao social que ocupa no

    desempenhar de seus vrios papis, revelando, portanto, a sua posio ideolgica. Assim, o

    analista relaciona a linguagem sua exterioridade, ou seja, considera o homem na sua

    histria, os processos e as condies de produo da linguagem por meio da anlise da

    relao da lngua com os sujeitos que a falam e as situaes em que se produz o dizer.

    A hegemonia sustentada pelo discurso; logo, no difcil chegar concluso de que

    o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao,

    mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar, j diria

    Foucault (1999:10). Tomar a palavra jamais representa um gesto ingnuo, pois sempre est

    ligado a relaes de poder.

    Dessa forma, a Anlise do Discurso no foi projetada para ser apenas um simples campo

    de estudo, mas para ser um instrumento de luta poltica. Dentre outras funes, pretendia

    desmascarar as verdades construdas por polticos oportunistas, pois a verdade sempre

    uma reta em direo ao poder, afirma Silva (2004:178).

    Ser conhecedor da produo, da circulao e da recepo dos discursos tornou-se uma

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 30

    atitude revolucionria, pois expunha as entranhas da relao do saber cientfico com as

    tcnicas de poder. Essa a importncia de relacionar um acontecimento discursivo s

    condies histricas, econmicas e polticas de seu aparecimento.

    Conforme Orlandi (2007:26), A anlise do discurso visa compreenso de como um

    objeto simblico produz sentidos, como ele est investido de significncia para e por

    sujeitos. A AD no busca uma verdade nuclear do signo, pois contra a imanncia

    estruturalista. O que ela pretende reconstruir as falas que criam uma vontade de verdade

    cientfica em certo momento histrico. Busca-se verificar as condies que permitiram o

    aparecimento do discurso. Explicar por que tomou esse sentido e no outro. Sempre

    relacionando o lingustico com a histria e com o ideolgico.

    Considerando que a linguagem no transparente, a AD questiona como um texto

    significa, j que a verdade uma construo discursiva. A evidente naturalidade, na verdade,

    uma miragem discursiva. Sendo assim, a anlise de discurso vem ocupar um lugar em que

    se reconhece a impossibilidade de um acesso direto ao sentido e, por conseguinte, como

    caracterstica, considera a interpretao objeto de reflexo.

    Buscar o sentido que se constri a partir da/na materialidade lingustica e histrica o

    propsito da AD, isto , no se ater somente s palavras, pois os sentidos esto intimamente

    ligados exterioridade, s condies de produo. Conforme Orlandi (2007:40),

    As condies de produo implicam o que material (a lngua sujeita a equvoco e

    a historicidade), o que institucional (a formao social, em sua ordem) e o

    mecanismo imaginrio. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como

    do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura scio-histrica. Temos assim a

    imagem da posio sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar assim?) mas

    tambm da posio do sujeito interlocutor (quem ele para me falar assim, ou para

    que eu lhe fale assim?, e tambm a do objeto do discurso (do que estou lhe falando,

    do que ele me fala? pois todo um jogo imaginrio que preside a troca de

    palavras.

    A linguagem, nessa perspectiva, estabelecida entre o mesmo e o diferente entre a

    parfrase e a polissemia. Por parfrase entende-se retomada dos dizeres para a atualizao

    das palavras j ditas - uma nova significao e uma significao nova devido polissemia,

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 31

    ou seja, atribuio de novos sentidos aos dizeres, por meio da criatividade. Segundo

    Maingueneau (1997:96), a parafrasagem ocupa um lugar de destaque na AD, j que tenta

    controlar a polissemia que a lngua e o interdiscurso permitem:

    Fingindo dizer diferentemente a mesma coisa para restituir uma equivalncia

    preexistente, a parfrase, abre na realidade, o bem-estar que pretende absorver, ela

    define uma rede de desvios cuja figura desenha a identidade de uma formao

    discursiva.

    Nessa perspectiva, cabe AD identificar as marcas que podem determinar os meandros

    de uma arquitetura discursiva e que, embora no identificadas de forma mecnica, atuam

    como referncias seguras que, teoricamente, representam as formaes discursivas

    resultantes de uma formao ideolgica. De acordo com Orlandi (2007:30),

    Os dizeres no so, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. So

    efeitos de sentidos que so produzidos em condies determinadas e que esto de

    alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestgios que o analista de

    discurso tem de apreender. So pistas que ele aprende a seguir para compreender

    os sentidos a produzidos, pondo em relao o dizer com sua exterioridade, suas

    condies de produo. Esses sentidos tm a ver com o que dito ali mas tambm

    em outros lugares, assim como com o que no dito, e com o que poderia ser dito

    e no foi.

    A noo de Texto e Discurso

    Ao articular o lingustico e o social, a AD concebe a linguagem como mediao entre o

    homem e a realidade natural e social; tem como base a interdisciplinaridade e seu objetivo

    descrever o funcionamento do texto, explicitando como ele produz sentido.

    O texto na AD a unidade de que o analista parte a fim de mostrar os mecanismos dos

    processos de significao que presidem a textualizao da discursividade, mas, segundo

    Orlandi (2007:72), no ponto de partida absoluto (dadas as relaes de sentidos) nem de

    chegada. A autora tambm afirma que no definimos texto pela sua extenso ou pelo fato

    de ser escrito ou falado; a organizao lingustica no o mais importante; o que interessa

    como o texto organiza a relao lngua-histria-mundo. Pode-se dizer que, para a AD, de

    acordo com Orlandi (2004:72), o texto objeto de interpretao e permite o acesso ao

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 32

    discurso.

    Para Orlandi (2007), definir discurso pede, sobretudo, distanci-lo do esquema

    elementar da comunicao - emissor, receptor, cdigo, referente e mensagem , visto que

    no apenas uma transmisso de informao, mas um complexo processo de constituio de

    sujeitos afetados pela lngua e pela histria, que se relacionam no ato da linguagem. As

    relaes de linguagem so relaes de sujeitos e de sentidos e seus efeitos so mltiplos e

    variados. Da a definio de discurso: o discurso efeito de sentidos entre locutores

    (Orlandi, 2007:21). necessrio complementar que os efeitos de sentidos produzidos pelo

    discurso no so predeterminados por propriedades da lngua; as palavras no tm sentido

    nelas mesmas, mas em decorrncia das formaes discursivas de que fazem parte e que, por

    conseguinte, representam as formaes ideolgicas.

    Pcheux, a base da AD, foi um dos primeiros a romper com o modo como os

    intelectuais da poca concebiam a leitura; desejava encontrar uma metodologia para

    romper com a tradio francesa; sabia que o texto no se reduzia a sua materialidade,

    desejando ver o texto enquanto discurso. Segundo o autor, o discursivo amplo para ser

    analisado, sendo necessrio ter categorias de anlise e, para tanto, utiliza as cincias sociais

    para buscar essas categorias (Quem diz o qu? Para quem? Onde? Quando?) e usa tambm a

    geografia para situar o lugar (as pessoas falam de lugares).

    Pcheux destaca que existe uma formao discursiva (conjunto de regras que controlam

    os enunciados o que o indivduo pode e deve falar); afirma, ainda, que a discursividade,

    controlada pela ideologia e que age na temporalidade sendo contnua, advm da formao

    discursiva. Como o enunciado se repete apesar de ser um ato nico, o autor afirma que a

    formao discursiva traz uma heterogeneidade discursiva, devido s formaes ideolgicas.

    Dominique Maingueneau, estudioso da Anlise do Discurso, 20 anos depois de Pcheux,

    mostra que a Anlise do Discurso adquiriu novas tendncias atravs do seu desenvolvimento.

    Para Maingueneau (2004), o discurso uma prtica social - est submetido a regras de

    organizao de um determinado grupo social; uma forma de ao; contextualizado, pois

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 33

    um mesmo enunciado adquire sentidos diferentes quando pronunciado em lugares diferentes;

    assumido por um sujeito, j que necessita que o seu enunciador se posicione como fonte de

    referncias pessoais, temporais e espaciais em relao ao que diz e na interao com o seu

    co-enunciador; regido por normas porque deve adaptar-se s situaes de comunicao e,

    para que seja interpretado, deve ser relacionado a outros discursos o interdiscurso. Desse

    modo, a identidade discursiva se estrutura a partir de relaes interdiscursivas,

    caracterizadas por se fazer como uma interao semntica entre discursos.

    A distino entre texto e discurso, ora realizada, tem por objetivo esclarecer que o

    interessante para a Anlise do Discurso como o texto estabelece a relao da lngua com a

    histria de significao do sujeito em sua relao com o mundo natureza

    lingustico-histrica. remetendo o texto ao discurso e esclarecendo como este ltimo se

    relaciona com as formaes discursivas, relacionadas com a ideologia, que se chega ao

    processo discursivo, responsvel pelo modo como o texto significa - de acordo com Orlandi

    (2007). Compreender os processos de produo de sentidos e de constituio dos sujeitos em

    suas posies o que a Anlise do Discurso apresenta como produto.

    O primado do interdiscurso e a semntica global

    Segundo Orlandi (2007), as condies de produo os sujeitos e a situao bem

    como a memria, mais especificamente o modo como ela acionada, fazem parte da

    produo do discurso. Quanto memria, relacionada ao discurso e denominada memria

    discursiva, deve-se entender saber discursivo, ou seja, tudo o que j fora dito em algum

    lugar e em outro momento e que, numa dada situao do agora, sob a forma de

    pr-construdo, torna possvel todo dizer/outros dizeres. Outros sentidos j construdos

    afetam o modo como o sujeito significar uma dada situao discursiva o interdiscurso,

    pressuposio do Outro que se d por meio da heterogeneidade mostrada (explcita) e da

    heterogeneidade constitutiva (implcita).

    A heterogeneidade mostrada, que pode ser marcada e no-marcada, quando marcada,

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 34

    traz marcas da presena do Outro, ou seja, a alteridade se manifesta ao longo do discurso,

    da ordem da enunciao e visvel na materialidade lingustica como, por exemplo, o discurso

    direto, as palavras entre aspas etc; j a no-marcada no se apresenta na organizao linear

    do discurso, visto que a alteridade no revelada e, por conseguinte, permanece no

    interdiscurso. Portanto, verifica-se a presena das diferentes vozes constitutivas dos sujeitos

    nos discursos polifonia.

    Na perspectiva adotada por Maingueneau (2008b), o interdiscurso precede o discurso,

    soberano ao discurso, por isso, primado do interdiscurso. A unidade de anlise importante

    para o autor no o discurso, mas o espao de trocas entre vrios discursos selecionados,

    numa determinada situao discursiva, ou seja, o interdiscurso. Isso significa dizer que um

    discurso estudado na sua relao com outros discursos, tornando-se, pois, espao de

    regularidade importante que permite a entrada de outros discursos na sua composio.

    Para melhor explicar interdiscurso, o autor faz a distino entre universo discursivo,

    campo discursivo e espao discursivo. Sendo assim, universo discursivo o conjunto de

    formaes discursivas de todos os tipos que interagem num dado momento, o limite a

    partir do qual domnios aptos a serem estudados sero construdos (campos discursivos);

    campo discursivo o termo designador de formao discursiva, que, em concorrncia,

    delimitam-se reciprocamente numa determinada regio do universo discursivo so

    discursos de mesma funo social, mas divergentes em relao ao modo como operam; e,

    por ltimo, espaos discursivos, subconjuntos de formaes discursivas com os quais o

    analista julga relevante estabelecer relao, dependendo do objetivo em questo. Trata-se de

    um recorte resultante de hipteses baseadas no conhecimento dos textos e na histria destes

    que, no decorrer da pesquisa, podero ser confirmadas ou rejeitadas.

    Utilizando as palavras de Possenti (2004:197), a respeito da perspectiva de

    Maingueneau sobre o interdiscurso:

    (...) a questo no haver dois ou mais discursos em contato, ou um enunciado ter

    mais de um sentido ou ressoar mais de uma voz. Para Maingueneau, o

    interdiscurso precede o discurso de fato, no seguinte sentido: o Outro desenhado

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 35

    a partir do UM. Mesmo no havendo outro (...), seu discurso, na forma de

    simulacro, poderia ser criado a partir de um discurso existente. Se isso ocorre ou

    no, depende de haver confronto entre discursos.

    Ainda na perspectiva de Maingueneau, a materializao do discurso, advinda de sua

    indissocivel relao com as questes presentes no social e no momento a exterioridade ,

    definida como uma prtica discursiva, que, ao mesmo tempo, incorpora formao

    discursiva e comunidade discursiva. Pode-se afirmar, assim, o carter dialgico de todo

    enunciado do discurso, o que impossibilita a dissociao entre as interaes dos discursos do

    funcionamento do intradiscursivo.

    Vale ressaltar que a heterogeneidade constitutiva abarca, entre outros, uma gama de

    discursos constituintes, ou seja, os dotados de um nmero considervel de propriedades

    quanto s suas condies de emergncia, de funcionamento e de circulao e, por isso,

    denominados fundadores de outros discursos. E, partindo do princpio de que o discurso

    constituinte abrange um espao de produo demasiadamente heterogneo, para apreender o

    seu funcionamento, deve-se tomar como unidade de anlise o conjunto da hierarquia que

    estabelece. Maingueneau (2000:07) ainda complementa,

    Uma anlise da constituio dos discursos constituintes deve assim se ater a

    mostrar a articulao entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a intricao entre

    uma representao do mundo e uma atividade enunciativa. Sua enunciao

    inseparvel da maneira pela qual ela gere sua prpria emergncia, o ato de fala que

    ela institui. Atravs das operaes enunciativas pelas quais se institui o discurso,

    se articulam a organizao textual e a organizao institucional que a um s tempo

    ele pressupe e estrutura.

    Maingueneau (2008b) esclarece, portanto, que a ampla interdiscursividade exige uma

    integrao mltipla de dimenses textuais que possibilite ao analista a identificao da

    alteridade nos textos. Para tanto, o autor prope uma Semntica Global para o estudo dos

    textos, visando uma integrao entre todos os planos do enunciado e da enunciao,

    entretanto, sem privilegiar esse ou aquele de seus planos, denominados intertextualidade,

    vocabulrio, temtica e instncias de enunciao.

    Para o autor, no que tange intertextualidade, h um paralelo entre intertextualidade

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 36

    interna (emprstimos de textos de outras formaes discursivas, de mesmo espao

    discursivo) e intertextualidade externa (emprstimos textuais de formaes discursivas

    pertencentes a campos discursivos diferentes). Entenda-se por intertextualidade os tipos de

    relaes intertextuais que a competncia discursiva legitima. Vale ressaltar que

    Maingueneau atribui competncia discursiva dos sujeitos a capacidade de aceitar ou refutar

    determinados discursos, a partir de uma rede de restries semnticas, responsvel por

    estabelecer critrios na seleo de textos que pertencem a formaes discursivas diferentes.

    De acordo com Maingueneau (2008b), trabalhar sob a perspectiva de uma semntica

    global no significa privilegiar um plano em detrimento de outros, mas integr-los, ao

    mesmo tempo, na ordem do enunciado e da enunciao. Como o analista trabalha com o

    discurso e no com a lngua, para se alcanar a compreenso do todo unificado que uma

    lngua forma, seu esquema construtor no h uma ordem a ser seguida na anlise dos

    planos e, esta ltima no tem a inteno de definir um modelo da textualidade. A finalidade

    de uma anlise por meio dessa perspectiva a de investigar a congruncia da multiplicidade

    das dimenses de um discurso, quanto significao lingustica e a rede semntica.

    Quanto ao vocabulrio, este deve ser considerado como um sistema de restries do

    espao discursivo, visto que, conforme Maingueneau (op.cit.:81), a restrio do universo

    lexical inseparvel da constituio de um territrio de conivncia. Logo, os enunciadores

    sero levados a utilizar termos que marcam sua posio no campo discursivo. , portanto, o

    tratamento semntico dado ao vocabulrio, bem como ao tema que os delimitaro. No que se

    refere ao tema, Maingueneau (op.cit:83) tambm atribui ao sistema de restries semnticas

    de cada discurso o poder de desfazer possveis divergncias, porque um tema desenvolvido

    por um s discurso estar logicamente em estrita conformidade com ele. Segundo

    Maingueneau (2008b), um discurso no apenas um contedo atrelado a uma dixis e a um

    estatuto de enunciador e de destinatrio, mas tambm uma maneira de dizer especfica, um

    modo de enunciao. Portanto, deve-se levar em considerao o tom desse modo de

    enunciao que se apoia sobre uma dupla figura do enunciador, a de um carter e a de uma

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 37

    corporalidade, estreitamente associadas (op.cit:92). A especificidade de um discurso

    definida por sua formao discursiva.

    De acordo com Pcheux (apud Maingueneau, 2008b:82),

    Uma palavra, uma expresso ou uma proposio no tm um sentido que lhes seria

    prprio, como se estivesse preso a sua literalidade. Ao contrrio, seu sentido se

    constitui em cada formao discursiva, nas relaes que tais palavras, expresses

    ou proposies mantm com outras palavras, expresses ou proposies da mesma

    formao discursiva.

    Em consequncia ao sistema de restries semnticas, que subordinado lgica

    institucional, remodela-se a noo de discurso, ou seja, a imbricao semntica entre

    aspectos textuais e institucionais (no-textuais) passa a ser denominada, segundo

    Maingueneau, prtica discursiva.

    Nota-se, diante do exposto, a relevncia em se estudar o interdiscurso, memria e

    histria de um j-dito que, apresentando-se como um jamais-dito, por meio do papel ativo de

    um sujeito mediador, re-constri o significado de uma formao discursiva, autorizando,

    dessa forma, a construo de novos discursos e possveis inferncias discursivas. Contudo,

    papel do analista investigar, por meio dos sistemas de restries semnticas, a possibilidade

    de leitura de um determinado enunciado e no de outro pela globalidade do texto e, por

    conseguinte, entender o funcionamento das relaes interdiscursivas.

    Gnero de discurso e contexto social

    Segundo Bakhtin (2006b:42),

    As palavras so tecidas a partir de uma multido de fios ideolgicos e servem de

    trama a todas as relaes sociais em todos os domnios. , portanto, claro que a

    palavra ser sempre o indicador mais sensvel de todas as transformaes sociais,

    mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda no tomaram forma, que ainda

    no abriram caminho para sistemas ideolgicos estruturados e bem-formados. A

    palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulaes quantitativas de

    mudanas que ainda no tiveram tempo de adquirir qualidade ideolgica, que

    ainda no tiveram tempo de engendrar uma forma ideolgica nova e acabada. A

    palavra capaz de registrar as fases transitrias mais ntimas, mais efmeras das

    mudanas sociais.

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 38

    Esse penetrar da palavra em todas as relaes entre indivduos bem como os seus

    reflexos scio histricos, segundo Bakhtin (2006b), amparado pela teoria de Plekhanov e da

    maioria dos marxistas - denominada psicologia do corpo social - a ligao entre a estrutura

    sociopoltica e a ideologia, num sentido estrito do termo, concretiza-se somente sob a forma

    de interao verbal. A psicologia do corpo social se encontra exteriorizada na palavra, no

    gesto, no ato; ela o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espcie, o lugar em que

    se acham submersas todas as formas e aspectos da infindvel criao ideolgica. Todos os

    contatos verbais possveis entre os indivduos, todas as formas e meios de comunicao

    esto intimamente ligados s condies de uma dada situao social, o que desencadeia

    reflexos na atmosfera social.

    Uma anlise mais minuciosa revelaria a importncia incomensurvel do

    componente hierrquico no processo de interao verbal, a influncia poderosa que

    exerce a organizao hierarquizada das relaes sociais sobre as formas de

    enunciao. O respeito s regras de etiqueta, do bem-falar e as demais formas

    de adaptao da enunciao organizao hierarquizada da sociedade tm uma

    importncia imensa no processo de explicitao dos principais modos de

    comportamento. (Bakhtin, 2006b:44-45)

    Nota-se, assim, que as formas de enunciao, por estarem subordinadas hierarquia das

    relaes sociais, devem se adaptar s situaes de comunicao, que se realizam por meio de

    um processo de interao entre indivduos socialmente organizados. Bakhtin (2006b:117)

    afirma, ainda, que toda palavra serve de expresso a um em relao ao outro. Atravs da

    palavra, defino-me em relao ao outro, isto , em ltima anlise, em relao

    coletividade.

    Logo, se as palavras penetram todas as relaes entre indivduos, os diversos campos da

    atividade humana esto ligados ao uso da linguagem, multiforme pela diversidade daqueles.

    De acordo com Bakhtin (2006a), os enunciados, orais ou escritos, concretos e nicos, ao

    serem proferidos por integrantes de um determinado campo da atividade humana, refletem

    as condies especficas e as finalidades do campo em questo, por meio do seu contedo

    (temtico), pelo estilo da linguagem (seleo dos recursos lexicais, fraseolgicos e

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 39

    gramaticais), e, sobretudo, sua construo composicional (procedimentos composicionais

    para a organizao, disposio e acabamento da totalidade discursiva e da relao dos

    participantes da comunicao discursiva), conforme Rodrigues (in Meurer et alii,

    2007:167). Esses elementos esto, de forma indissolvel, ligados no todo do enunciado, e,

    igualmente, so determinados pela especificidade de um dado campo de comunicao.

    Cada enunciado particular individual, no entanto, cada campo de utilizao da lngua

    elabora seus tipos relativamente estveis de enunciados, aos quais denominamos gneros do

    discurso (Bakhtin, 2006a:262). Como a riqueza e a diversidade dos gneros do discurso so

    infinitas e inesgotveis, a sua peculiar caracterstica de heterogeneidade compromete a

    definio da natureza geral do enunciado. Por isso, segundo Machado (in Brait, 2006),

    Bakhtin decide desenvolver um estudo sobre gneros discursivos que contemple no uma

    classificao das espcies, mas o dialogismo do processo comunicativo, que se d por meio

    das relaes interativas. Gneros e discursos passam a compreender s esferas de uso da

    linguagem verbal ou da comunicao fundada na palavra. Em outras palavras, Stella (in

    Brait 2006:181) melhor esclarece:

    Em Esttica da criao verbal, diz-se que a palavra inoculada pelos gneros do

    discurso no projeto discursivo do sujeito. O projeto discursivo refere-se ao

    esgotamento do objeto de sentido, ou seja, o que eu quero dizer deve ser dito,

    considerando-se os interlocutores e os contextos de circulao especficos. E as

    palavras, escolhidas para constiturem o projeto discursivo, possuem, em seu bojo,

    traos que permitem sua utilizao, de acordo com determinado gnero, em uma

    determinada situao. A escolha das palavras possveis em um contexto de

    utilizao, por sua vez, s possvel, porque elas j foram experimentadas por

    outros locutores em situaes semelhantes.

    Sendo assim, pode-se entender que, para Bakhtin, os gneros do discurso se constituem

    na relao com a atividade humana e, de certa forma, se estabilizam a partir de novas

    situaes sociais de interao verbal. Bakhtin (2006a) subdivide os gneros do discurso em

    dois grupos: gneros primrios e gneros secundrios. De acordo com o autor, os gneros

    primrios ou simples so constitudos em circunstncias de comunicao verbal espontnea,

    vinculada s experincias cotidianas e/ou ntimas, como por exemplo: conversas entre

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 40

    amigos, cartas pessoais, anotaes particulares, convites informais etc. Os gneros

    secundrios aparecem em circunstncias de uma comunicao cultural mais complexa, mais

    evoluda e tm um carter relativamente mais formal, como por exemplo: palestras, aulas,

    reportagens, contos, poemas, teatro, tese, monografia, etc. Alm de chamar ateno para as

    relaes intercambiveis entre os gneros primrios e secundrios, visto que so relaes de

    incluso e de transmutao em que um gnero absorvido por outro, Bakhtin (2006a:283)

    afirma que,

    Os gneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o

    organizam as formas gramaticais (sintticas). Ns aprendemos a moldar o nosso

    em formas de gnero e, quando ouvimos o discurso alheio, j adivinhamos o seu

    gnero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto , uma

    extenso aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construo

    composicional, prevemos o fim, isto , desde o incio temos a sensao do

    conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala.

    No que tange ao quadro terico da Anlise do Discurso, de acordo com Maingueneau

    (2004:59), todo texto pertence a uma categoria de discurso, a um gnero de discurso, que

    varia de acordo com as necessidades da vida social, ou seja, pela funo social a ser

    contemplada. Por isso, ignorar o modo de produo de determinados gneros pode significar,

    social e politicamente, marginalizao e excluso.

    Furlanetto (in Meurer et alii, 2009) observa que, para Maingueneau, a organizao

    textual em si mesma (como objeto acabado) e a situao de comunicao (como limite)

    devem ser consideradas na sua interinfluncia. a atividade enunciativa que, inserida num

    lugar social, produz um contexto amplo e, a partir deste, se d a compreenso interdiscursiva

    e a definio de um arquivo constituio da memria discursiva. A produo e a

    interpretao de um discurso, isto , enquadrar o seu dizer em um gnero e reconhecer os

    gneros em que os enunciados se apresentam, so domnios da competncia genrica,

    especialmente associada competncia enciclopdica (conhecimentos ilimitados sobre

    mundo) que, constituem, pois, a competncia comunicativa.

    Maingueneau (2004) afirma que a importncia de se dominar vrios gneros de

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 41

    discurso um fator de considervel economia cognitiva, pois, em um instante somos

    capazes de identificar o gnero de um dado enunciado, podendo nos concentrar apenas em

    um nmero reduzido de elementos, assegurando, portanto, a comunicao verbal e evitando

    mal-entendidos entre participantes de trocas verbais. O autor, ento, apoiado na nfase que

    Bakhtin d aos gneros do discurso por meio de uma hiptese, faz a seguinte citao: [...]

    Se os gneros do discurso no existissem e ns no os dominssemos, se tivssemos de

    cri-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira

    vez cada enunciado, a comunicao discursiva seria quase impossvel.

    Na perspectiva adotada por Maingueneau (2004), as diferentes formas de apreenso do

    discurso correspondem a tipologias de diferentes ordens: a) tipologias comunicacionais, [...]

    que indicam aquilo que se faz com o enunciado, qual a sua orientao comunicacional.

    Elas apresentam-se ora como classificaes por funes da linguagem (os discursos so

    classificados de acordo com a funo predominante), ora por funes sociais (funes que

    seriam necessrias sociedade, por exemplo, funo religiosa); b) tipologias de situaes

    de comunicao, gneros do discurso (sempre vinculados a um contexto scio-histrico),

    gneros e tipos (os gneros de discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a

    vrios setores de atividade social) e outras classificaes, seja pelo lugar institucional, pelo

    estatuto dos parceiros dos discursos ou pelo posicionamento ideolgico; c) tipologias

    lingusticas e discursivas: tipologias enunciativas (baseada em propriedades

    lingusticas/enunciativas), tipologias discursivas (a serem desenvolvidas, pois, por um lado,

    no separariam as caracterizaes ligadas s funes, aos tipos e aos gneros de discurso e,

    por outro, as caracterizaes enunciativas).

    Alm dessa caracterizao tipolgica, para Maingueneau (2004:65-68), os gneros de

    discurso so atividades sociais submetidas a critrios e condies de xito: uma finalidade

    reconhecida (estamos aqui para dizer ou fazer o qu? - objetivo); o estatuto de parceiros

    legtimos (determina-se de quem parte e a quem se dirige a fala); o lugar e o momento

    legtimos (todo gnero de discurso implica um certo lugar e um certo momento, os quais no

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 42

    so evidentes - a temporalidade, por exemplo, implica vrios eixos: uma periodicidade, uma

    durao de encadeamento, uma continuidade, uma durao de validade); um suporte

    material (dimenso midiolgica dos enunciados o texto inseparvel de seu modo de

    existncia material); uma organizao textual (dominar um gnero de discurso ter uma

    conscincia mais ou menos clara dos modos de encadeamento de seus constituintes em

    diferentes nveis).

    Maingueneau (2004:69-70), ainda no que se refere caracterizao dos gneros de

    discurso, recorre utilizao de metforas (com valor pedaggico) emprestadas de trs

    domnios: jurdico (contrato), significa afirmar que ele fundamentalmente cooperativo e

    regido por normas; ldico (jogo), um gnero implica um nmero de regras

    preestabelecidas mutuamente conhecidas e cuja transgresso pe um participante fora do

    jogo; e teatral (papel), cada gnero de discurso implica os parceiros sob a tica de uma

    condio determinada e no de todas as suas determinaes possveis. [...] De um certo

    modo, nossa personalidade tecida com os papis em que atuamos.

    Diante do exposto, pode-se afirmar que os gneros do discurso regulam o como da

    enunciao sempre em relao a um outro, ou seja, no basta querer dizer, preciso saber o

    que se pode dizer, o que se deve dizer e como dizer-se-. Tudo depende do contexto em que

    se est inserido, do lugar que se ocupa socialmente, da imagem (de si) que se quer construir

    (ou desconstruir) e com que inteno, mas sempre em relao a um outro, j que o maior

    objetivo estabelecer uma interao verbal, a partir da e/ou na qual seja possvel uma

    construo assertiva de sentidos. A adaptao do dizer o dito, ainda que no-dito.

    Consideraes finais

    Para Maingueneau (1997), a dixis discursiva corresponde aos limites

    espaciotemporais em que se d o processo de produo do discurso, mas tambm define, no

    nvel discursivo, o universo de sentido construdo por um determinado posicionamento

    (ideolgico) no momento da enunciao; a cenografia de uma formao discursiva; est

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 43

    relacionada memria discursiva. A partir dessa relao entre discurso e memria,

    Maingueneau (1997) prope a noo de dixis fundadora, situaes de enunciao anteriores,

    e dixis instituda (atual), sendo que esta se utiliza daquela como repetio e parte de sua

    legitimidade. Ao concordar com o autor, Borges (2000:01) complementa:

    E o universo de sentido se d pela presena dos sujeitos do discurso, o

    tempo-espao de enunciao, constitudos a partir da interferncia da ideologia no

    processo de produo do discurso. Considera-se, assim, que na perspectiva da AD

    a identificao dos sujeitos do discurso no poder ser feita apenas pela

    identificao das marcas lingsticas que os representam como locutores e

    alocutrios, definidos pelas formas paradigmticas do eu e do tu. Os papis dos

    sujeitos na enunciao (locutor-alocutrio/enunciador-enunciatrio ou destinatrio)

    constituem um dos fatores da cenografia discursiva.

    As cenas da enunciao, para Maingueneau (1997), dependendo do ponto de vista que

    assumem, classificam-se em cena englobante, cena genrica e cenografia. A cena englobante

    corresponde ao tipo de discurso, por isso necessita de que nos situemos para interpret-lo, a

    fim de que reconheamos, por meio da sua organizao, a funo a que se presta e em nome

    de qu o discurso interpela o co-enunciador; j a cena genrica define o papel do discurso, o

    modo como ele se apresenta para o co-enunciador [...] parte de um contexto, a

    prpria cena que o gnero prescreve, enquanto a cenografia produzida pelo texto

    (Maingueneau, 2008a:155). Quanto cenografia, cena da enunciao em prtica, o prprio

    autor (op.cit:2000:10), define como:

    A situao de enunciao no um simples quadro emprico, ela construda

    como cenografia atravs da enunciao. Aqui -grafia um processo legitimante

    que traa um crculo paradoxal: o discurso implica um enunciador e um

    co-enunciador, um lugar e um momento da enunciao atravs dos quais se

    configura um mundo que, em contrapartida, os valida atravs de seu prprio

    desdobramento: nesse sentido, a cenografia est ao mesmo tempo a montante e a

    jusante da obra.

    Contudo, essa encenao da linguagem (legitimao do discurso) no implica somente

    uma articulao de proposies, mas tambm, conforme Maingueneau (2000:11),

    investimento imaginrio do corpo, a adeso fsica a um certo universo de sentido. As

  • Anlise do Discurso: Fundamentos Terico-Metodolgicos 44

    ideias se apresentam atravs de uma maneira de dizer, que tambm uma maneira de ser,

    associada a representaes e normas de postura do corpo em sociedade.

    Conclui-se, pois, que a cenografia, na sua inter-relao com o processo de construo

    da imagem de si refletida no discurso, por meio da adeso do sujeito ao seu discurso - o

    ethos discursivo - responsvel pelo modo de organizao do prprio discurso, que pode

    mostrar e atestar sua legitimao sua conformidade com o critrio de Verdade, de acordo

    do Maingueneau (2000:11).

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