ana godino - proust ou a teoria das essências

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Ana Godinho Linhas do Estilo Estética e Ontologia em Gilles Deleuze RELÓGIO D’ ÁGUA

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Ana Godino - Proust ou a Teoria Das Essências

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  • Ana Godinho

    Linhas do Estilo

    Esttica e Ontologia em Gilles Deleuze

    RELGIO D GUA

  • 2

    S pela arte podemos sair de ns mesmos, saber o que outra pessoa

    v deste universo que no o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam

    permanecido para ns to desconhecidas como as que podero existir na

    Lua. Graas arte, em lugar de vermos um s mundo, o nosso, vemo-lo

    multiplicar-se e, quanto mais artistas originais houver, mais mundos

    teremos nossa disposio, mais diferentes uns dos outros que os que

    rolam no infinito...

    PROUST, Em Busca do Tempo Perdido

  • 3

    Sumrio

    INTRODUO. 8

    PRIMEIRA PARTE 24

    Proust ou a teoria da essncia 24

    1. Signos. 25

    2. Verdade e aprendizagem. 29

    3. Estilo 35

    a. Estilo hierglifo 35

    b. Estilo Anti-logos... 40

    c. Ressonncia e movimento forado.. 51

    4. Essncia. 55

    5. Concluso: a imagem do pensamento Uma nova ordem

    para o pensamento 59

    SEGUNDA PARTE 72

    Exposio do pensamento ontolgico deleuziano... 72

  • 4

    A. Crtica dos pressupostos da ontologia tradicional... 72

    1. Categorias.. 72

    2. Representao.. 74

    a. Recognio... 77

    b. Juzo.. 84

    c. Crtica/Novas categorias. 88

    3. Concluso: nota sobre o empirismo ou o uso

    minoritrio da ontologia. 92

    B. Princpios da ontologia deleuziana.. 105

    C. Gnese do sensvel e programa de ontologia... 124

    1. O virtual e o actual: dinamismos espcio-temporais. 124

    a. Intensidades. A gnese do negativo.. 141

    b. Profundidade.. 152

    2. Soluo de Deleuze: como colmatar a ciso?... 160

    a. O eterno retorno ou o ser do devir.. 164

    b. O jogo ideal. 177

  • 5

    3. Arte, eterno retorno e jogo ideal: para no termos rvores na

    cabea .. 186

    TERCEIRA PARTE 189

    Esttica.. 189

    1. A gnese do estilo.. 189

    a. Que artista pode ento ter tais caractersticas?.. 213

    b. O que um ritornelo?.. 215

    2. Estilo e heterognese da obra de arte Descrio do processo

    criativo: do bloco de sensaes ao plano do cosmos... 220

    3. O que o estilo?. 234

    4. Da negao da fenomenologia da arte necessidade

    do Corpo sem rgos. 257

    5. Diagrama e Corpo sem rgos 274

    a. O que um diagrama? 274

    b. A importncia do Corpo sem rgos

    na esttica de Deleuze. 297

  • 6

    CONCLUSO: Esttica e Ontologia - A Imagem-Cristal. 321

    BIBLIOGRAFIA 356

    1. Obras do autor.. 356

    2. Estudos sobre o autor. 359

    3. Bibliografia geral 363

  • 7

    ABREVIATURAS

    CC- Critique et clinique

    D- Dialogues

    DR- Diffrence et rptition

    FB- Francis Bacon: Logique de la sensation

    IM- LImage - mouvement

    IT- LImage - temps

    IUV- LImmanence: Une Vie...

    LS- Logique du sens

    MP- Mille Plateaux

    N- Nietzsche et la philosophie

    P- Pourparlers

    PS- Proust et les signes

    QF- Quest-ce que la Philosophie?

  • 8

    INTRODUO

    O nosso estudo tem, como ponto de partida, duas questes:

    como compreender o projecto ontolgico de Deleuze no quadro do

    seu sistema filosfico? Que lugar ocupa a esttica neste

    Pensamento?

    Pode afirmar-se que s h, na filosofia deleuziana, um projecto

    de ontologia, por muitas razes que adiante procuraremos elucidar,

    mas tambm pode defender-se a ideia de que Deleuze elabora j uma

    ontologia nas suas duas primeiras obras-matrizes (Diffrence et

    Rptition e Logique du Sens).

    Adianta-se, desde j, como hiptese, que, se o projecto de

    elaborao de uma ontologia no pode restringir-se esfera

    exclusiva dos conceitos filosficos, haver domnios que oferecem

    tipos privilegiados de experincia decisivos para essa tarefa. Deleuze

    encontrou um desses domnios na esttica, num plano nico da

    esttica, da verdadeira esttica, na obra de arte moderna que

    abandonou o domnio da representao para se tornar experincia,

    [...] ou cincia do sensvel.1

    Falamos de uma verdadeira esttica para reforar

    precisamente este plano nico que resolveria o problema da ciso

    entre duas estticas: cognitiva/sensvel e artstica. Neste plano

    confundir-se-iam os dois sentidos a ponto de o ser do sensvel se

    revelar na obra de arte ao mesmo tempo que a obra de arte aparece

    como experimentao2.

    A proposta deleuziana que est em discusso em Diffrence et

    rptition afasta irremediavelmente a possibilidade da velha

    ontologia cumprir de facto essas condies. Condies que o

    renascimento da ontologia, que Deleuze evoca, apesar do ar dos

    1 Gilles Deleuze, Diffrence et rptition, Paris, PUF, 1968. (Doravante utilizamos a abreviatura DR, e usaremos a edio portuguesa ). DR, p. 123. 2 DR, p. 139.

  • 9

    tempos lhe ser favorvel, tambm no satisfaz3. Mas as referncias

    esttica e obra de arte moderna so aqui j suficientemente claras

    para se compreender que teremos por a uma porta de entrada e

    instrumentos para a fundamentao da nossa hiptese. Embora

    devamos examinar o que levou ciso das duas estticas, to

    infelizmente dissociadas, a teoria das formas da experincia e a da

    obra de arte como experimentao4, temos j o pressentimento de

    poder encontrar noes que testemunham esse novo plano da

    esttica.

    verdade que a esttica sofre de uma dualidade gritante. Ela

    designa por um lado, a teoria da sensibilidade como forma da

    experincia possvel; por outro, a teoria da arte como reflexo da

    experincia real. Para que os dois sentidos se reencontrem, preciso

    que as condies da experincia em geral se tornem, elas mesmas,

    condies da experincia real; a obra de arte, por seu lado, aparece

    ento, realmente, como experimentao.5

    E de que esttica (como teoria do sensvel) estamos a falar?6

    Na perspectiva deleuziana, no se trata de uma esttica

    unificadora ou que trate a diferena a partir de uma mesma unidade

    convergente, mas, pelo contrrio, a partir de uma divergncia

    primeira. com ela que tudo muda, e com ela teremos a

    determinao das condies da experincia real e no j da

    experincia possvel. Condies em que o ser se revela. J no h

    significao, nem relao, nem ligao, interpretao, finalmente,

    representao, quer dizer, as coordenadas habituais com que se

    pensam os elementos do sensvel. A esttica aparecer como a nica

    oportunidade da ontologia.

    3 DR, p. 322. 4 DR, p. 450. 5 Gilles Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969, p. 300. (Doravante utilizaremos a abreviatura LS). 6 Veremos mais adiante como Deleuze tratar esta questo, por exemplo em DR, pp. 138-139.

  • 10

    Teremos de esclarecer: que fios ataro a ontologia esttica?

    Elas confundem-se? Como se confundem os dois sentidos da

    esttica, num s?

    Deleuze dir que a obra de arte moderna parece mesmo

    indicar filosofia um caminho que conduz ao abandono da

    representao7. Uma filosofia que nasce ou produzida de fora

    como o pintor, o msico ou o escritor fazem nascer os seus blocos de

    sensaes. Ou ainda: A pesquisa de novos meios de expresso

    filosfica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje,

    relacionada com a renovao de outras artes, como, por exemplo, o

    teatro ou o cinema.8

    A obra de arte, pela experimentao cria uma rede mais

    estreita, onde s cabe um sentido da esttica - o que recolhe a

    realidade do real. Pela arte e pela ontologia, chegar-se- a uma

    gnese, ou melhor, heterognese do mundo, ao caosmos de onde o

    cosmos sai.

    O que diz e o que faz ento o filsofo? Derruba a velha

    ontologia. Procura chegar o mais rapidamente possvel

    experincia real e ser atravessado por, ou construir, um plano de

    imanncia. Talvez possa fazer como faz a criana pequena que no

    pra de dizer aquilo que faz ou que tenta fazer, que est em todos os

    momentos mergulhada num meio. Nesse lugar, meio, plano, entre

    as coisas e onde elas tomam a sua velocidade e vitalidade mximas.

    Em Quest-ce que la Philosophie?9 Deleuze fala de uma fadiga da

    filosofia. Fadiga porque, incapaz de se manter no plano de

    imanncia, o pensamento fatigado no pode j suportar as

    velocidades infinitas ento remetido para as velocidades relativas

    que s dizem respeito sucesso do movimento de um ponto a outro,

    de uma componente extensiva a outra, de uma ideia a outra, e que 7 DR, p. 139. 8 DR, p. 39. 9 Gilles Deleuze, e Felix Guattari, Quest-ce que la Philosophie?, Paris, Minuit, 1991. (Doravante utilizamos a abreviatura QF, e usaremos a edio portuguesa).

  • 11

    medem simples associaes sem poderem reconstituir qualquer

    conceito. Fadiga porque incapaz do fora. Derrubar a ontologia

    trazer-lhe um fora que pode ser a esttica da Diferena.

    O projecto ontolgico seria j em 1964, em Proust et les signes,

    um projecto sobre a origem, a gnese do mundo, a gnese de tudo

    quanto h, projecto que ter continuidade, parece-nos, em 68 e 69.

    Mas como sempre afirmar, uma origem/gnese que no tem

    comeo, nem acaba. Uma gnese do meio10.

    Na obra de 64, dir-se- da diferena/essncia: ela que

    constitui o ser, que nos faz conceber o serMas o que uma

    diferena ltima e absoluta? No uma diferena emprica entre duas

    coisas ou dois objectos, sempre extrnseca. Proust faz uma primeira

    aproximao quando diz da essncia que ela qualquer coisa num

    sujeito - como a presena de uma qualidade ltima no corao de um

    sujeito: diferena interna, diferena qualitativa que existe na maneira

    como o mundo nos aparece, diferena que, se no houvesse arte,

    permaneceria o eterno segredo de cada um. [] O que uma

    essncia, tal como revelada na obra de arte? uma diferena, a

    Diferena ltima e absoluta. ela que constitui o ser, que nos faz

    conceber o ser. por isso que a arte, enquanto manifesta as

    essncias, a nica capaz de nos dar o que ns procuramos em vo

    na vida11.

    Na obra de 68, Diffrence et rptition, Deleuze dar corpo ao

    projecto e no sair de l sem um corpo a corpo com uma mesma

    voz para todo o mltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as

    gotas, um s clamor do Ser para todos os entes. Por outras palavras:

    no fim da obra, as condies parecem reunidas para a construo da

    nova ontologia que se esboa no estudo sobre Proust. Tal como o

    terceiro captulo daquela mesma obra A imagem do pensamento -

    10 Meio, no metade ou mediano ao contrrio o lugar onde as coisas ganham velocidade. Desenvolveremos a noo mais adiante. 11 Gilles Deleuze, Proust et les signes, ed. Presses Universitaires de France, 1996 (1 edio:1964), p.53. (Doravante, PS).

  • 12

    bem podia ser uma nova concluso da primeira parte de Proust et les

    signes (tambm intitulada A imagem do pensamento).

    Neste contexto, Logique du sens retomar tambm com a obra

    de arte o caminho da ontologia, nem que seja numa fulgurao.

    Problemtica que continuar a atravessar as obras ulteriores,

    nomeadamente Mille Plateaux12, Francis Bacon: Logique de la

    sensation13, LImage-temps,14 Critique et clinique15.

    A nossa investigao no implica uma ordem cronolgica mas

    procura as obras fundamentais para compreender o desenvolvimento

    e as transformaes do pensamento de Deleuze; pretende, pois:

    1. Mostrar que no existem duas estticas, a da sensao no

    conhecimento e a da sensibilidade na arte, mas um plano nico da

    esttica, uma nica esttica.

    2. Que a ontologia e a esttica tm necessariamente de

    conectar-se. Articulando-se, permitem um alcance que vai at ao

    nascimento do Tempo.

    A primeira parte deste trabalho inicia-se com uma anlise de

    Proust et les signes. A escolha desta obra prende-se com o facto de

    julgarmos poder encontrar nela esboado um pensamento que s

    encontraremos em definitivo nas ltimas obras de Deleuze.

    Neste ensaio, a problemtica centra-se em torno dos signos

    que, enquanto matrias, na sua emisso, produo e multiplicao,

    so expresso do ser e do mundo, meios de conhecimento, mas

    tambm chaves que abrem para mltiplos mundos. O problema situa-

    se, pois, em torno do pensamento e de uma teoria dos signos, nos

    seus diferentes regimes, tipologias, sries, etc.

    12 Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, (Doravante, MP). 13 Gilles Deleuze, Francis Bacon Logique de la sensation, Paris, La Diffrence, 1981. (Doravante, FB). 14 Gilles Deleuze, LImage-Temps, Paris, Minuit, 1985. (Doravante, IT). 15 Gilles Deleuze, Critique et clinique, Minuit, 1993. (Doravante, CC e usaremos a edio portuguesa).

  • 13

    A classificao que Deleuze faz dos signos, em Proust et les

    signes, permitir-nos- chegar a uma tipologia especfica que orientar

    todo o nosso trabalho. Os signos artsticos (so especialmente estes

    ltimos que nos interessam) tm um poder sobre todos os outros.

    Poder esse que lhes vem da possibilidade de introduzirem um Tempo

    que no existe nos outros signos, que opera transformaes das

    matrias e dos materiais. Trata-se de um tempo de criao que d

    arte, ao plano artstico, uma unidade de compreenso que vai muito

    para alm do seu campo de aco.

    A criao artstica (mesmo a criao em geral), aponta j nesta

    obra, para o que h de mais fundamental, quer dizer, a gnese do

    acto de pensar, a necessidade mesma do que dado a pensar no

    pensamento. Ambas, tm uma consistncia (na experimentao, na

    aprendizagem) que pode at ser somente uma pr-compreenso

    das essncias.

    O segredo da essncia, do qual se tem um pressentimento,

    desvendar-se- na obra de arte, manifestando-se na literatura, na

    pintura, na msica, no cinema, etc. Trata-se neste momento de uma

    primeira hiptese de trabalho.

    O nosso problema anuncia-se em primeiro lugar por um trajecto

    esttico que no se desliga de um trajecto ontolgico. H um

    momento em que o pensamento se confronta com a sua prpria

    impossibilidade para pensar. Teremos de chegar a, o que nem

    sequer tarefa fcil, se pensarmos que a doxa invade e contamina o

    pensamento inteiro. Paradoxalmente, para atingir o ponto desrtico, o

    Saara, de onde se poder voltar a pensar, preciso j que a

    impotncia se transforme numa potncia capaz de produzir e criar.

    O estilo aparece, neste sentido, como o operador do

    movimento de criao que pode ligar os dois trajectos o esttico e o

    ontolgico -, e que faz nascer o mundo. Analisaremos, em primeiro

    lugar, o estilo e da tiraremos consequncias.

  • 14

    1. O estilo ser entendido como essncia, mas tem para

    Deleuze, como veremos, o sentido de diferena. No se pode

    aprender por assimilao, identificao, semelhana. O estilo devir.

    Devir e diferena, sem relaes de semelhana, num tempo

    reencontrado que se encarna numa matria adequada. O devir-estilo

    anuncia-se como a possibilidade que faz nascer o Tempo e portanto o

    cosmos.

    2. Esta noo de estilo no fcil de compreender porque no

    tem regras, nem metodologias ou estratgias. Veremos, contudo,

    procedimentos vrios para se chegar a um estilo (na pintura, na

    literatura, na filosofia, na msica, no cinema).

    3. Da complexidade inicial desta noo iro nascer

    modificaes que a clarificaro, quer dizer, que a faro tornar-se num

    estilo que no-estilo. Atravessado por uma dissoluo, por um caos,

    um estilhaamento, acabar definitivamente com uma certa ordem do

    cosmos. J no ser estilo-essncia. As relaes com o pensamento

    e a sua gnese alterar-se-o. Veremos desenvolvidamente tambm

    as relaes que vai estabelecer com a arte. Neste processo

    inevitvel que uma certa noo de finalidade do mundo desaparea,

    emergindo no seu lugar um caos que amplificar os seus efeitos.

    O estilo no-estilo dever aparecer como a unidade das partes

    que no unifica (e aparecer num corpo) num plano criador do acto de

    pensar no pensamento, num corpo sem rgos.

    4. O estilo, afirmmos no ponto anterior, provoca efeitos,

    ressonncias que induzem movimentos forados, melhor dizendo, o

    estilo produz ele prprio movimentos que abrem domnios e nveis de

    intensidades antes impensveis. Efeitos tanto no corpo como no

    pensamento.

    O nascimento do mundo e a sua expresso, numa palavra a

    essncia deleuziana, tm um sentido ontolgico que se articula com o

    sentido esttico. Pensar acontece directamente nas coisas.

  • 15

    Este primeiro desenvolvimento e anlise a partir dos textos

    deleuzianos permitir-nos- comear a pensar na possibilidade de uma

    segunda articulao (ou unificao das duas estticas). Esta ser

    essencial e determinante para a primeira. Numa palavra, para conceber

    o ser enquanto realidade ontolgica necessrio que ele se revele ou

    expresse na e pela arte.

    A nossa tese constitui-se, ento, partindo de uma problemtica

    que se pode traduzir da seguinte maneira: a arte a expresso

    ontolgica. As relaes de articulao, confronto, encadeamento, e a

    sua possibilidade real, eis o que preciso deslindar.

    O nosso trabalho consistir em mostrar como pode a arte ter

    esse privilgio de se articular com a ontologia fundando-a, de certa

    maneira. Como podem ambas constituir-se num plano nico? Em que

    medida a esttica artstica pode integrar uma teoria do ser? So muitos

    os problemas, de tal modo que podemos ainda perguntar: o que faz a

    diferenciao ou a separao entre o espao artstico-ontolgico e o

    espao emprico?

    O plano em que se insere a nossa investigao determinar-se-

    a partir de uma anlise crtica da representao, do figurativo, do

    sistema tradicional de categorizao. Anlise que nos coloca diante de

    um outro problema. Como devemos entender neste contexto o

    pensamento deleuziano?

    Est em causa para Deleuze, parece evidente, uma imagem do

    pensamento. portanto a sua crtica que necessrio fazer.

    Em Proust et les signes, uma nova imagem do pensamento

    implica que ele para pensar precisa de ser forado. Veremos pois, o

    que, segundo Deleuze, o fora a pensar, que espcie de violncia se

    exerce para que o pensamento deixe de ser dogmtico, para se tornar

    num pensamento da diferena. Veremos, em primeiro lugar, em

    Nietzsche et la philosophie16, depois em Proust et les signes, em

    16 Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962. (Doravante, N).

  • 16

    Diffrence et rptition, e finalmente em Quest-ce que la Philosophie?

    que imagem esta.

    Na primeira parte pretende-se introduzir a problemtica geral.

    Apresentar a sintomatologia que se vai desenvolver ao longo de

    todo o trabalho.

    Ver-se- na segunda parte que a verdadeira gnese do

    pensamento est no signo. Primeiro, atravs da exposio do

    pensamento ontolgico deleuziano, j que ele aparece como o

    primeiro elemento de articulao que pretendemos discutir. A obra a

    que deveremos dar mais nfase ser Diffrence et rptition. Ser a

    ela mesma que recorreremos vezes sem conta.

    Num primeiro ponto (A), faremos a anlise da crtica que

    Deleuze faz dos pressupostos da ontologia tradicional: as categorias,

    a representao, a recognio, o juzo.

    A crtica levar-nos- mais longe, para um domnio que no se

    deixa representar a ontologia da diferena torna-se empirismo

    transcendental. No depende de um sistema de categorias e, para

    Deleuze, no se trata de substituir um modelo (ou categorias) por

    outro. A nossa dificuldade das maiores. Averiguaremos o que

    poder fazer-se depois da crtica, pretendemos saber como se forma

    esta nova filosofia deleuziana que pretende encontrar o movimento

    real do pensamento.

    Parece-nos desde j que um certo caminho far com que seja

    inevitvel passar pela obra de arte moderna. A nova ontologia

    deleuziana dir do ser que ele unvoco na diferena. A univocidade

    do ser, no sentido deleuziano, um tema difcil que exige ser

    esclarecido. Deleuze querer elaborar uma tbua de categorias no

    maneira de Kant, mas sim de Whitehead. Categorias que no so

    bem categorias, so noes fantsticas, abertas, aproximando-se

    de noes emprico-ideais.

  • 17

    O empirismo transcendental, a experimentao, surgiro no

    pensamento deleuziano como surge um abalo ssmico. No sero j

    o sujeito e o objecto que estaro em causa, sero outros domnios,

    um verdadeiro campo ou plano (transcendental), um rizoma. Deleuze

    diz partir sempre do emprico e da coisa dada, do concreto. Mas

    precisa resolver o problema do emprico, j que ele aparece sempre

    desvalorizado, ou desnaturado relativamente a um actual no

    recoberto pela qualidade e pela extenso.

    A elaborao ontolgica torna-se uma exigncia da natureza

    do ser e ter de dar conta dessa exigncia. A expressividade do ser

    materializa-se realmente.

    Num segundo ponto (B) trataremos dos cinco princpios da

    ontologia deleuziana. Um terceiro (C) dir respeito gnese do

    sensvel e ao programa ontolgico. O projecto de constituio da

    ontologia deleuziana constri-se sob a ciso fundamental, ciso que

    est mesmo no mago do sensvel. Mais uma vez se pergunta: como

    unificar as duas estticas (cognitiva e artstica) sem recorrer a uma

    transcendncia?

    Deleuze ter de construir com a imanncia e a univocidade um

    pensamento de uma esttica nica. Se isto possvel, ento, parece-

    nos fundamental para a sua realizao o Estilo, que julgamos ser

    pensvel no quadro da ontologia. O estilo abre domnios, provoca

    efeitos. Neste caso sero efeitos no prprio ser que se exprime numa

    multiplicidade de vozes. Na investigao da gnese do sensvel

    encontramos uma outra gnese a origem e formao do mundo. Do

    virtual ao actual; a actualizao como criao. Destacaremos o papel

    dos dinamismos espcio-temporais, procuraremos respostas a partir

    do modelo da embriologia, tal como Deleuze a formao do ovo ou

    a formao do mundo tambm a formao de um estilo.

    Ainda no ponto C, em 2., procurar-se- responder

    concretamente questo da ciso das duas estticas. A soluo

    deleuziana, j o referimos, passa pela obra de arte moderna. Para

  • 18

    Deleuze, s ela consegue reunir as condies de composio e

    consistncia que do ao objecto a sua realidade. Estas condies

    passam por uma nova concepo do crebro-rizoma, pela

    constituio de blocos de sensaes, corpos sem rgos. Numa

    palavra, as condies passam pela imanncia.

    A noo de eterno retorno aparece neste momento,

    exclusivamente circunscrita exposio deleuziana, para quem o

    eterno retorno no o retorno do idntico (como tradicionalmente se

    expe), mas um pensamento que subverte completamente o mundo

    da representao e afirma o ser do devir. Esta noo vai aparecer

    ligada ao poder de seleco, vai ser concebida como um pensamento

    selectivo que pode, portanto, eliminar o que no lhe interessa. A vida

    no pode mais ser negativa e deve afirmar-se na sua mais elevada

    potncia. O eterno retorno criador, capaz de afirmar a diferena pela

    repetio. Esta ltima ser tambm objecto de anlise, dado que

    podemos distinguir: entre a repetio nua, vestida e ontolgica. A

    pertinncia desta repetio ontolgica tem a ver, como no podia

    deixar de ser, com a arte.

    O jogo ideal (alnea seguinte) articula-se com o pensamento do

    eterno retorno, no sentido mesmo de nos ajudar a responder s

    nossas questes. S jogando este jogo de um s lance fazemos voltar

    o eterno retorno, na afirmao de todo o acaso que a afirmao na

    arte e pela obra de arte. Num s lance o artista faz irromper uma

    poderosa produo (de vida) que se sustm por si, quer dizer, que se

    conserva. A arte aparece como uma terceira repetio, ontolgica,

    capaz de operar uma verdadeira transmutao da matria, uma

    verdadeira criao.

    A terceira e ltima parte consistir na exposio mais

    desenvolvida e aprofundada do estilo. Nesta parte, a esttica, a

    orientao determinante.

  • 19

    At aqui julgamos ter destacado alguns dos aspectos mais

    essenciais do nosso problema, a saber, a articulao do pensamento

    ontolgico com a esttica. Em seguida, atravs do exame de algumas

    das obras, do filsofo, mais significativas neste domnio, estudaremos

    as linhas centrais que entretecem esta articulao que pretendemos

    consistente.

    As obras de Deleuze sobre a esttica e onde se desenvolve

    mesmo a sua teoria atravessam todas as artes: a pintura, a literatura,

    msica, cinema, etc. No sendo possvel um estudo exaustivo,

    optmos pelas que nos parecem mais decisivas e importantes:

    Francis Bacon: Logique de la sensation, Mille Plateaux, Quest-ce

    que la Philosophie?, LImage-temps, Critique et clinique. No

    esquecendo que na primeira parte deste trabalho Proust et les signes

    ser a obra de referncia.

    A pergunta que orientar esta ltima parte aquela que

    pergunta pelo comeo da arte, do estilo. Pergunta pelo comeo ou

    gnese do mundo. Ou ainda, de que feito o Universo?

    Inevitavelmente a ontologia e a esttica confundem-se. Quem

    o artista capaz de fazer tais perguntas? Quais os procedimentos, o

    mtodo que utiliza? Quando comea o seu estilo ou o seu no-

    estilo?

    Saber o que o caos para poder sair dele. Entrar e sair vezes

    sem conta. Sair do caos, da dissoluo das formas e das matrias ou

    produzir o prprio caos, que sempre uma ameaa, produzindo

    variedades de mundo. o trajecto de um movimento de criao

    poderoso. Movimento incessante que, com intensidades e

    velocidades variveis, est nas prprias coisas, em cada uma, em

    cada ente, no ser.

    O ritornelo, segundo Deleuze e Guattari, surge precisamente

    na formao e gnese do cosmos, nele concorrendo foras diferentes.

    uma fbrica do tempo com potncia para extrair, seleccionar e

    eliminar. Cria territrios, agencia o espao e tempo no lugar prprio

  • 20

    onde as foras germinativas podem fazer eclodir a obra, o ser, o ente,

    a pedra, a cor, o som, a palavra, o cosmos

    Parte-se do caos, dos meios e dos ritmos, agencia-se. Com o

    territrio, a desterritorializao, a reterritorializao chega-se a um

    corpo-a-corpo de energias.

    Mais do que a filosofia e a ontologia, que se confundem, ou a

    ontologia e a esttica, tambm a Terra se confunde com os e nos

    seus movimentos territoriais ou desterritorializantes. A confuso a que

    Deleuze se refere compreender-se- com a clarificao destas

    noes. A noo de zona de indiscernibilidade, mas tambm a

    noo de transduo, ritmo, expressividade, autonomia.

    A arte de que aqui se fala, na perspectiva deleuziana,

    anterior, ou melhor, no espera pelo ser humano para comear. Tem

    um solo, um alicerce na Terra. Comea com a marca, formao

    ainda aleatria (desenha, traa marcas, que correspondero em

    Bacon s marcas livres ao acaso), a que Deleuze chamar arte

    bruta, enquanto libertao especfica de certos materiais de

    expresso e transformar-se- tornando-se estilo.

    Ser necessrio ver que no possvel deixar de passar pela

    arte bruta at se poder afirmar a arte ou o estilo. At se definir

    claramente a linha de variao contnua (= Estilo) que nos conecta

    ao Cosmos. Chega-se arte pelo estilo e ao estilo pelo estilo. A arte

    passar por lugares improvveis, a ontologia tambm, at se tornar

    consistente, at entrar no plano csmico, at chegar ao estado

    celeste. Daqui decorrero outros problemas. Para esta arte teremos

    um artista com caractersticas prprias, materiais e matrias de

    expresso? Quais?

    Na descrio da gnese ou da heterognese, sem comeo,

    encontramos lugares de passagem (o ritornelo um deles), planos

    (consistncia, composio), devires, cristais de espao-tempo,

    finalmente um caosmos. Lugares que ajudam a aproximarmo-nos

    disso que o processo criativo. De acordo com a linha deleuziana o

  • 21

    processo criativo que aqui pertinente o da obra de arte moderna.

    A exposio deste processo permite-nos, mais uma vez, reencontrar o

    estilo. Ele j l est, sempre esteve, mesmo quando ainda no

    estava. Aparente contradio que ser necessrio explicitar.

    Este trajecto leva-nos ao processo de criao, de produo.

    Chegados a, ao que parece decisivo, como obter isso mesmo que a

    arte e que est na obra de arte?

    As coisas existem ou conservam-se, tm vida enquanto se

    mantm de p. Fixam-se em devires, blocos (de afectos e

    perceptos). So o vivido de um corpo, mas no o corpo vivido da

    fenomenologia. Vida e vivido mudam de sentido na filosofia

    deleuziana. O artista faz com sensaes, com blocos de devir e

    expresso, seres autnomos. Neste sentido, o artista, no plano da

    esttica est necessariamente no plano ontolgico. Produz o que e

    no pode deixar de o produzir. As consequncias sero inevitveis:

    h no mundo seres que se conservam e conservam, tm um Tempo,

    esto num Tempo.

    Sensaes e corpo so condies para devir outra coisa.

    Processos complexos anunciam-se, mudanas de percepo,

    excessos, mtodos (na pintura, na literatura, na msica, etc.)

    Como se chega ao plano ontolgico-esttico o que se

    pergunta por outras palavras, quando se pergunta: o que o estilo?

    Tanto na arte em geral como na filosofia, o estilo considerado

    por Deleuze como uma questo de sintaxe (ou seu equivalente). a

    coisa mais natural do mundo17. Criao sintctica, estilo, este o

    devir da lngua. Arranca, abre, fende, extrai, escava, gagueja, at

    saturao, para depois inventar, compor, dar consistncia, devir corpo

    sem rgos. No falhar o estilo, eis o que necessrio (com

    procedimentos, frmulas, tratamentos que minoram, fragmentam,

    etc.). De todo este processo sair um corpo sem rgos, e dele, uma

    17 MP, p. 123.

  • 22

    linha de indiscernibilidade que se confunde com uma linha de

    variao contnua.

    Bacon pinta sensaes com cores. Estas tornaram-se visveis

    pela sua mo e pelo seu desejo. Tarefa comum ao pintor, ao escritor,

    ao filsofo ser a tarefa de tornar o Tempo sensvel, cristal de espao-

    tempo.

    Veremos que tambm se aplica ao cinema. A imagem

    deleuziana aproximar-se- sempre do signo, enquanto exprime um

    sentido ou uma Ideia. Em Proust et les signes, em Mille Plateaux, por

    exemplo. Poderemos v-lo ainda na imagem do cinema. O cinema

    produz signos especficos, mas a literatura e a pintura tambm.

    Deleuze procur-los- nos grandes autores de cinema mas estes

    so como os grandes pintores ou os grandes msicos: so eles que

    falam melhor do que fazem. Mas falando, tornam-se outra coisa18.

    Portanto mais do que falar sobre o cinema, um filsofo pode

    falar de um certo pensamento do mundo e do ser que lhe corresponde.

    Os conceitos de cinema no so dados no cinema. O cinema ele

    prprio uma nova prtica de imagens e de signos19.

    Algumas breves observaes sobre a escolha das principais

    obras comentadas: deixmos praticamente de lado uma obra

    importante, Le Pli, que muito nos diz sobre a esttica deleuziana (que

    alguns mesmo classificam como barroca). Mas dada a especificidade

    controversa da questo a esttica de Deleuze antes de mais

    barroca? E o barroco para Deleuze no fundamentalmente o barroco

    musical? e porque no centro da tese que defendamos a

    importncia de uma esttica geral na formao da ontologia optmos

    por no recorrer a Le Pli, adiando talvez a discusso daquelas

    questes para outros trabalhos.

    Pelas mesmas razes, quer dizer, pelo carcter de

    generalidade que revestia a nossa problemtica, no tocmos em 18 IT, p. 366. 19 Idem.

  • 23

    pequenos textos, de que uma anlise minuciosa extrairia sem dvida

    concluses importantes. Refiro-me a Superpositions sobre Carmelo

    Bene, a LEpuis sobre Beckett, e mesmo ao primeiro volume de

    Cinema: LImage-Mouvement de que um brevssimo resumo da

    questo da imagem no cinema clssico introduz a questo que nos

    interessa essencialmente: a estrutura cristalina da imagem-tempo.

    Como o subttulo indica, o fio condutor que nos fez atravessar

    as leituras e anlises que fizemos das obras de Deleuze foi a noo

    de estilo. No seguimos uma linha cronolgica, se bem que a primeira

    obra analisada seja Proust et les signes. Este fio levou-nos a uma

    espcie de espiral de tal maneira que no fim (que nunca um fim

    numa espiral aberta), ou mesmo a cada etapa da anlise, todo o

    pensamento anterior de Deleuze que se repensa, alarga e inventa

    novos conceitos que entram em conexo com os anteriores. Foi

    tambm para mostrar essa forma espiralar (ou ondeante como a linha

    gtica de Wrringer) na obra deleuziana, quer dizer para pr em

    evidncia o seu estilo filosfico que, de modo muito geral, o trajecto

    percorrido pode parecer seguir uma ordem cronolgica.

    Quanto ao mtodo de anlise e comentrio, procurmos tratar

    o problema que nos interessava talvez de maneira heterogentica,

    seguindo o prprio conselho de Deleuze. Temos conscincia de que

    este trabalho no representa, dessa imensa tarefa (que implica a

    busca das fontes, das influncias, do surgimento de tal conceito

    diferente que parte de mltiplos autores, etc.), seno uma nfima

    tentativa quando, sobretudo, se trata de um pensamento como o de

    Deleuze que se alimentou de tantos autores dos modos mais

    diversos.

    Resta-nos a consolao de ter porventura isolado, o mais

    sistematicamente que nos foi possvel, um problema o das relaes

    do estilo e da ontologia muito pouco tratado pelos comentadores,

    mas que, estamos certos, o vir a ser, como tem acontecido a

    mltiplos outros temas deleuzianos.

  • 24

    PRIMEIRA PARTE

    Proust ou a teoria da essncia

    No comentrio que a seguir propomos de Proust et les signes,

    surge sempre uma dificuldade que geral para muitas obras de

    Deleuze, sobretudo as de comentador de histria da filosofia, que

    escreveu sobre Hume, Bergson, Leibniz que no tem talvez uma

    soluo absolutamente adequada: o que pertence a Proust e o que

    vem de Deleuze? E, muitas vezes, o que parece obra do pensamento

    de Proust (sobre os signos ou sobre o estilo, por exemplo), no

    resultar de uma projeco de preocupaes, seno j, de conceitos

    deleuzianos?

    Esta dificuldade levanta certamente obstculos metodolgicos. A

    nossa leitura de Proust tenta contorn-los, adoptando certos critrios

    pragmticos: onde o comentrio de Proust por Deleuze revela

    problemticas propriamente deleuzianas como no caso da

    aprendizagem - que reaparecem noutras obras e noutros contextos,

    podemos estar certos de que a marca do filsofo impe uma

    interpretao prpria do pensamento de Proust.

    Assim: sobre a aprendizagem (de que Diffrence et rptition

    retoma longamente a anlise); sobre as essncias (que Deleuze

    abandona definitivamente nas obras subsequentes, mas a que d j

    em Proust et les signes um sentido no-platnico, como Diferena);

    sobre o estilo, tema que preocupou Deleuze at ao fim da vida,

    apresentando longos desenvolvimentos sobre a questo em Mille

    Plateaux, Quest-ce que la Philosophie?, Dialogues20, Critique et

    Clinique, - sobre todos estes temas pode adiantar-se que Proust et les

    20 Deleuze, Gilles, Dialogues (com Claire Parnet), Paris, Flammarion, 1996. (Doravante, D e usaremos a edio portuguesa).

  • 25

    signes contm em germe (e s vezes mais do que em germe) o

    pensamento ulterior de Deleuze.

    O nosso comentrio de Proust et les signes mistura pois

    necessariamente o que no facilmente destrinvel: o pensamento

    de Proust e o de Deleuze. Mas aqueles critrios pragmticos permitem-

    nos detectar nesta obra qualquer coisa como esboos da matriz do

    pensamento definitivo de Deleuze sobre, por exemplo, o estilo. No

    atribumos a Deleuze o que de Proust, se bem que s vezes seja o

    prprio Deleuze a estabelecer a confuso, apropriando-se de ideias

    dos outros para as reformular sua maneira. Insistimos no que se

    pode mais facilmente isolar como pertencente filosofia deleuziana j

    em Proust et les signes - o que se confirmar, esperamos, com a

    anlise dos mesmos temas em obras ulteriores.

    Eis o esforo metodolgico a que nos obrigamos, com a

    conscincia da grande complexidade dos problemas assim levantados.

    1. Signos

    O tema principal deste ensaio diz respeito aos signos. Todas as

    espcies de signos esto em causa. necessrio descobrir-lhes a

    natureza, os meios, o modo de emisso, interpretao, produo e

    multiplicao e tambm as matrias de que so feitos, os regimes, a

    classificao.

    A anlise deleuziana de certa forma inaugural e anunciadora,

    trata-se, como atrs se disse, em nosso entender de um livro matricial

    no contexto do pensamento deleuziano.

    Numa primeira definio os signos reenviam a modos de vida, a

    possibilidades de existncia, so especficos, heterogneos e no

    homogneos. Constituem a matria dos mundos, exprimem-nos, so

    eles mesmos feitos de mltiplas matrias. Diferenciam-se em gneros,

  • 26

    classes, famlias, regimes. So emisses de partculas que formam a

    unidade dos mundos, emitidas por pessoas, objectos, matrias e

    materiais. No tm a mesma maneira de aparecer, nem se deixam

    decifrar do mesmo modo, exigem uma aprendizagem (sempre a fazer-

    se). Traduzir um signo pensar e implica necessariamente o

    pensamento. Os signos ligam-se entre si e ligam-se vida, s vezes

    em excesso, so potncias no orgnicas, acontecimentos,

    agenciamentos.

    Na sua multiplicidade (de sistemas, organizaes,

    funcionamentos e tipologias) destacam-se em primeiro lugar os signos

    da mundanidade estes esto num meio que mais do que qualquer

    outro emite e concentra signos num espao reduzido e a uma

    velocidade enorme. No sendo homogneos a sua unidade consiste

    em no pensar nem agir, no reenviar a nada, antecipando a aco

    como o pensamento, anulam o pensamento como a aco21, so

    vazios porque no se pensa nem se age, mas enquanto signos

    aparecem e produzem efeitos (provocam, por exemplo, uma exaltao

    nervosa). No podem ser ignorados, a aprendizagem faz-se tambm

    com eles.

    Em seguida os signos amorosos individualizam, exprimem

    mundos desconhecidos, implicam, envolvem e aprisionam os mundos.

    Amar, procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos

    que permanecem ocultos no amado.22 No so como os primeiros,

    vazios de pensamento e aco, mas so enganadores, contraditrios e

    escondem o que exprimem, no provocam uma exaltao nervosa

    superficial, mas sofrimento. O amado aparece como signo, um signo

    desconhecido.

    Os terceiros, signos sensveis so impresses ou qualidades

    sensveis, signos materiais, verdicos que nos do imediatamente uma

    alegria extraordinria. Aparecem no como uma propriedade do

    objecto (), mas como o signo de um qualquer outro objecto, que

    21 PS, p.13. 22 PS, p.14.

  • 27

    devemos tentar decifrar23. Parece que aprisionam a alma de um outro,

    diferente daquele que designam. E quando os deciframos, no ainda

    suficiente, no so suficientes. So signos de alterao e

    desaparecimento. Representam um esforo da vida para nos preparar

    para a arte e para a sua revelao final.

    No so vazios nem enganadores, so afirmativos, materiais,

    alegram-nos imediatamente. No so nada, se no reenviam para uma

    essncia ideal que incarna no seu sentido, mas ns no estamos

    ainda em estado de compreender o que esta essncia ideal, nem

    porque que sentimos tanta alegria.24 Visa-se uma ltima etapa.

    Procura-se o sentido do signo.

    Finalmente os signos artsticos o ltimo dos mundos, a etapa

    que faltava. Estes signos do mundo da arte so antecipaes (neles

    existe um tempo original absoluto que compreende todos os outros e

    os domina), desmaterializados, imateriais, essenciais, transformam

    todos os outros, os que so materiais e todos os que convergem para

    eles. Desde logo, o mundo revelado da Arte reage a todos os outros,

    especialmente aos signos sensveis; integra-os, d-lhes um sentido

    esttico e penetra no que eles tinham ainda de opaco.25 S estes

    ltimos permitem a revelao das essncias. So primordiais, alegria

    pura, os nicos capazes de nos fazer encontrar o que procurmos em

    vo na vida o sentido. Com eles podemos ter esse encontro

    revelador e essencial. H neles uma unidade, uma superioridade

    imaterial, que uma diferena, ltima ou primeira, radical e absoluta.

    Revelados na obra de arte operam uma verdadeira transmutao da

    matria - em essncia. Todas as aprendizagens a fazer so

    aprendizagens inconscientes e passaro pela arte.

    De que matrias so feitos todos estes signos? Qual a sua

    natureza e o seu sentido? As matrias so heterogneas, mais

    23 PS, p.18. 24 PS, p. 21. 25 PS, p. 21.

  • 28

    espaciais ou temporais, mais ou menos materiais, quer dizer, umas

    mais desmaterializadas do que outras, espirituais. Cada tipo de signos

    tem uma linha particular de tempo e cruza-se combinando-se com

    mltiplas outras (como numa mesma linha se podem misturar e

    implicar vrias espcies de signos).

    Um trao mnimo de um rosto, efeito da passagem do tempo, da

    precariedade, pode cruzar-se com um odor, uma preocupao, um

    cime, uma simpatia, um sorriso ou um silncio (qualquer coisa se

    desanuvia e altera e o rosto fica transparente ou aparece um rubor, ou

    um rosto fechado ou pesado). H ainda um resto material.

    Mas, em matrias mais maleveis e soltas, como por exemplo:

    a cor para o pintor, como o amarelo de Ver Meer, o som para o

    msico, a palavra para o escritor26, tudo imaterial, ao mesmo tempo

    que o seu sentido se torna espiritual.

    O signo relaciona-se com o seu sentido, mas no sabemos bem

    de que natureza esta relao. Sabemos que os signos mundanos so

    vazios, pretendendo ser o seu sentido, que os signos amorosos so

    falsos, havendo uma contradio entre o que revelam e o que

    pretendem esconder. E os terceiros, os signos sensveis, so verdicos,

    sendo o seu sentido ainda material. E quando nos aproximamos dos

    ltimos a relao do signo e do sentido cada vez mais prxima e

    ntima. A arte a bela unidade final de um signo imaterial e de um

    sentido espiritual.27

    Na verdade, sem a arte no poderamos compreender essa

    essncia ideal de que falmos antes. Deleuze afirma mesmo que

    nela que est o essencial, a revelao final. A esttica confundir-se-

    com a criao de mundos. Espaos e tempos que a obra de arte unir,

    pois nela unem-se todas as outras dimenses e encontra-se a

    verdade.

    26 PS, p. 60 27 PS, p. 105.

  • 29

    2. Verdade e aprendizagem

    Procurar a verdade, eis o que num certo momento est em

    causa. Procurar ser a mesma coisa que interpretar, decifrar, explicar,

    traduzir. Apreender ou aprender a partir de qualquer emisso de signos

    liga-se procura da verdade por uma espcie de determinao.

    Estamos determinados porque numa situao concreta somos

    forados, exerce-se sobre ns uma violncia que nos incita a procurar.

    Dos signos vem uma violncia (mundana, amorosa, sensvel) que nos

    fora a pensar. Uma espcie de encontro forado com a verdade.

    Porque aprendemos que cada tipo de signos se relaciona com o

    objecto ou coisa que emite e com o sujeito que apreende.

    Depois, ou melhor, simultaneamente, interpretamos. No

    descobrimos nenhuma verdade, no aprendemos nada, seno por

    decifrao e interpretao28. A verdade no se encontra por afinidade

    ou amizade, nem sequer por boa vontade, alcana-se num encontro

    inevitvel, contingente, fortuito e involuntrio. H, portanto, signos que

    nesses encontros nos foram e garantem a necessidade do que dado

    a pensar. Sofremos, pois, uma espcie de violncia no pensamento

    para podermos pensar.

    O acto de pensar no decorre de uma simples possibilidade

    natural. O que lhe essencial, diz respeito ao aprender,

    interpretao, diz respeito nica criao verdadeira. Criao que a

    gnese do acto de pensar no prprio pensamento. Quando se quer a

    verdade, quer-se necessariamente esse encontro com a criao, que

    ento a mesma coisa que interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o

    sentido do signo, a unidade do signo e do sentido.

    No incio da procura, fundamental ver e escutar, reconhecer.

    No caso dos signos sensveis preciso, especificamente, observar e

    descrever. Podemos, mesmo assim, trabalhando e com esforo para

    28 PS, p. 11.

  • 30

    compreender as significaes e os valores objectivos, no alcanar o

    que desejvamos. Decepcionados, lanamo-nos no jogo das

    associaes subjectivas. Mas para cada espcie de signos, estes dois

    momentos da aprendizagem tm um ritmo e relaes especficas.29

    Os signos no se desenvolvem, no se explicam se no se

    compreendem as combinaes complexas que constituem o sistema

    de verdade e mesmo assim preciso algo mais do que a

    compreenso. Os signos so foras, no so representaes. Foras

    que implicam e envolvem sentidos. So eles que so o objecto da

    aprendizagem.

    A noo de aprendizagem, presente ao longo de todo o ensaio,

    aparece como um movimento fundamental que permite compreender e

    decifrar a complexidade da constituio do sistema da verdade.

    Deleuze no se cansar de dizer que o que essencial

    aprender, como no se cansar depois de dizer que

    aprender=experimentar, percorrer relaes heterogneas (as que

    atravessam a experincia pura), segui-las e coloc-las em srie. A

    condio para aprender que uma matria, um objecto, um ser,

    emitam signos, porque sero eles que, mesmo obscuros, se podem

    decifrar, interpretar, traduzir, pensar. preciso ser sensvel aos signos,

    estar atento, e isso sem dvida um dom. A aprendizagem, como a

    procura da verdade, so tarefas infinitas (que dizem sempre respeito

    aos signos), so uma vocao ou predestinao. No sabemos

    claramente o que so. Provavelmente, toda a problemtica da arte

    como experimentao comea a esboar-se desta maneira, o acaso

    dos encontros, a presso dos constrangimentos, o fortuito.

    Vimos que os signos so objecto de uma aprendizagem e no

    de um saber abstracto, ser sempre por meio deles que algum

    aprende, embora no saibamos como. Mas, sabemos que sua

    maneira no h aprendiz que no seja egiptlogo de qualquer coisa.

    Um objecto, uma matria, um ser, emitem signos/hierglifos que

    29 PS, p. 105.

  • 31

    preciso ter sempre em considerao, a que preciso ser sensvel, quer

    dizer, interpretar/decifrar. No fim, mesmo que no se saiba nada, h

    qualquer coisa que se revela, porque h qualquer coisa que se

    pressente (as essncias), para l dos objectos, uma certa

    aprendizagem dos signos.

    Os signos no so, assim, somente veculos do conhecimento,

    no so s objectivos ou subjectivos, mas como Deleuze bem viu, so

    uma espcie de chaves que uma vez decifradas abrem para mltiplos

    mundos.

    Prosseguimos a nossa aprendizagem at chegar revelao

    final. Apesar do mundo vacilar (e o mundo vacila na corrente da

    aprendizagem), apesar das decepes, mesmo no sabendo como

    que se aprende, h um progressivamente pressentido nas vrias

    etapas. Aprender ter um pressentimento. No descobrir, estudar,

    ordenar, associar, classificar e organizar ideias. Em Logique du sens,

    Deleuze designar o pressentimento como uma pr-compreenso

    dessa revelao final.

    Mesmo que no se saiba como que aprendemos, sabemos

    que no aprendemos nunca fazendo como qualquer um, mas fazendo

    com qualquer um, que no tenha relao de semelhana com o que

    aprendemos.30 Inevitavelmente, a decepo aparece como um

    momento fundamental da aprendizagem.

    De facto, num determinado momento decepcionamo-nos porque

    tentamos interpretar objectivamente e o objecto no nos d o que

    espervamos, tentamos ento, numa espcie de compensao,

    remediar a decepo interpretando subjectivamente. Nem uma nem

    outra so, contudo, suficientes. Estamos ainda, segundo Deleuze,

    numa falsa aprendizagem. Saltamos de uma para outra, remediamos,

    compensamos, mas no chega. E num momento qualquer

    pressentimos, pressentimos a insuficincia, a impossibilidade de

    chegar a uma revelao definitiva.

    30 PS, p. 32.

  • 32

    Para l destes dualismos, dos objectos designados, para alm

    das verdades formuladas, das associaes subjectivas, existe uma

    terceira possibilidade, uma outra possibilidade de mundo, um terceiro

    termo: a essncia que constitui a verdadeira unidade do signo e do

    sentido (). ela a ltima palavra da aprendizagem ou a revelao

    final.31 Quer dizer, a revelao (que a aprendizagem, o

    pressentimento), enquanto procedimento de traduo pode revelar o

    que h de mais profundo, mais do que o objecto e mais do que o

    sujeito um meio povoado de essncias. Se ela [a revelao] se deve

    fazer, l [na arte] que se far. O segredo da essncia pressente-se,

    capta-se e manifesta-se pela obra de arte. A aprendizagem tem ento

    a, plenamente, o seu campo de aco.

    Revelados na obra de arte os signos reagem a todos os outros

    domnios, reagem a todos os outros signos (os que so incapazes de

    captar o segredo da essncia). So signos, essncias, algicos ou

    supra-lgicos. Ultrapassam tanto os estados de subjectividade como

    as propriedades do objecto.32

    No existem leis mecnicas entre as coisas, nem comunicaes

    voluntrias entre os espritos, dir Deleuze. A verdadeira

    aprendizagem, pressentida (a aprendizagem da arte, portanto,

    esttica), sempre um encontro involuntrio. Se atravs das etapas

    progressivas da aprendizagem no chegarmos a uma revelao final

    (da arte), no compreenderemos nada da essncia. preciso, pois,

    progressivamente, por etapas, pressentindo, chegar arte. Aquele que

    aprende, percorre um trajecto esttico, far necessariamente uma

    iniciao, etapa a etapa, signo a signo at ao ltimo.

    o caso do egiptlogo que, pela aprendizagem, ultrapassa

    etapas e progressivamente atinge os ltimos signos; pelo estilo

    transforma-os e atinge a finalidade do mundo. A memria involuntria

    31 PS, p. 50. 32 Idem.

  • 33

    no seu papel secundrio, na incarnao das essncias, prepara-o para

    o segredo, quer dizer, prepara-o para a revelao.

    Sobre esta questo, retenhamos o que de essencial Deleuze

    dir em Diffrence et rptition: o aprendiz aquele que pode reunir

    todos os elementos e inventar problemas prticos ou especulativos,

    mas ser forado que o faz, porque no est de modo nenhum

    tranquilo. Aprender distinguir-se- e ser diferente de saber. O

    primeiro designa o que convm aos actos subjectivos operados em

    face da objectividade do problema (Ideia) e evolui progressivamente

    na compreenso dos problemas; o segundo diz respeito

    generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das

    solues, quer dizer, que nada se fora e a calma posse traz

    tranquilidade.

    Ora, a soluo de um problema no vem de uma calma posse,

    mas de uma conjugao ou correlao, de um ajustamento, ideal e

    intranquilo, das nossas percepes com os elementos.

    O aprendiz o que faz ento , explorar a Ideia/hierglifo

    (elemento do aprender), elevar as faculdades ao seu uso paradoxal,

    fazendo do seu aprender uma verdadeira estrutura transcendental que

    une, sem as mediatizar, a diferena diferena, a dissemelhana

    dissemelhana33.

    Em sntese: aprender pode ser definido de duas maneiras

    complementares que se opem igualmente representao no saber:

    ou aprender penetrar na Ideia, nas suas variedades e nos seus

    pontos notveis; ou aprender elevar uma faculdade ao seu exerccio

    transcendental disjunto, elev-la a este encontro e a esta violncia que

    se comunica s outras.34

    Em qualquer dos casos, aprender pressentir,

    progressivamente num salto. qualquer coisa da ordem de um outro

    tempo e espao, onde se joga de uma s vez todo o hierglifo, tudo o

    que est por vir e por acontecer, qualquer coisa mais mnima que o

    33 DR, p. 280. 34 DR, p. 320.

  • 34

    mnimo, como uma imperceptvel mudana atmosfrica. Pressentimos

    sem compreender e tendo j decidido o que quer que seja, que no

    sabemos ainda, o futuro. Vai-se at uma extremidade (do cordo da

    violncia) mxima, fica-se numa espcie de estado segundo, numa

    suspenso de um intervalo, de um qualquer tempo ou espao. Deste

    modo, aprender passa sempre pelo inconsciente, passa-se sempre

    no inconsciente, estabelecendo, entre natureza e o esprito, o liame de

    uma cumplicidade profunda.35

    Neste ponto extremo em que estamos num momento qualquer,

    na aprendizagem, pode estar a origem radical das Ideias36, o

    pensamento puro no seu mximo impoder. Est o Eu fendido de um

    cogito dissolvido, neste impreciso momento e lugar, nesta zona jamais

    recoberta, est um corpo aberto, rasgado e estilhaado, um corpo

    tambm ele fendido e afundado de pressentimentos, uma matria que

    emite signos a decifrar.

    Quando se sai e se pergunta de onde se vem e no se sabe,

    da mesmo que se vem. Desse ponto extremo. Deleuze chama-lhe,

    citando Nietzsche: algo irredutvel no fundo do esprito: um bloco

    monoltico de Fatum, de deciso j tomada sobre todos os problemas

    na sua medida e na sua relao connosco; e, ao mesmo tempo, um

    direito que temos de aceder a certos problemas, como a sua marca

    feita com ferro em brasa sobre os nossos nomes.37 Ou ainda,

    chegados ao ponto desrtico, aleatrio, original, cego, acfalo, afsico,

    que designa a impossibilidade de pensar o que o pensamento e que

    se desenvolve na obra como problema e onde o impoder se

    transmuta em potncia, chegados a, nesse pressentimento,

    afundados, capturamos antecipadamente a correspondncia entre o

    signo e o sentido (numa antecipao preferencial decisiva). Esta

    espcie de afundamento faz ressonncia, produz efeitos, produzindo

    uma outra natureza a essncia. Uma nova forma de unidade.

    35 DR, pp. 277-278. 36 DR, p. 321. 37 DR, p. 329.

  • 35

    3. Estilo

    a. Estilo hierglifo

    A concepo de estilo na primeira parte (1964) de Proust et les

    signes no a mesma que se desenvolve na segunda parte (1970).

    No se pode afirmar que a segunda surja por oposio primeira. Esta

    ltima, certo, no define ainda com clareza a noo de estilo. O que

    acontecer depois. Podemos assim falar primeiro de um estilo-

    hierglifo, que aparece como um esboo imperfeito (com

    determinaes porventura mesmo opostas) da segunda concepo a

    que Deleuze chamar estilo Anti-logos.

    Como antes vimos a aprendizagem (o aprendiz) ultrapassa

    etapas e progressivamente atinge os ltimos signos, que se revelam na

    arte. O estilo transforma-os e atinge a finalidade do mundo a

    revelao final. Esta finalidade ressoa pelo estilo, produzindo uma

    outra natureza que ser a essncia, como a essncia ser ela mesma

    a diferena. Ainda no um estilo Anti-logos mas tambm no ser um

    estilo logos porque este se recusa (quebra-se o logos). S h

    hierglifos, interpretao de hierglifos. O egiptlogo trabalha

    decifrando o que est cifrado. ele o aprendiz.

    Mas, o seu trabalho no qualquer coisa que se aprenda por

    imitao ou assimilao, fazendo como se. Se h aprendizagem, se h

    estilo, por uma evoluo no paralela. A definio geral de evoluo

    diz que a aprendizagem se produz por uma sequncia de movimentos,

    de transformaes orientadas numa certa direco, num

    desenvolvimento processual. Mas, evoluo a-paralela quer dizer outra

    coisa - devir. No , portanto, uma s coisa que se produz. So duas

    diferentes que se ligam mudando ambas as suas determinaes.

    Muda o aprendiz e o hierglifo. uma evoluo entre dois seres que

  • 36

    no tm nada a ver um com o outro38. O meio revelador, etapa ltima

    para alcanar a essncia, o estilo.

    Pode dizer-se dele que uma fora genial, liberdade da

    natureza ou a coisa mais natural do mundo, etc. Mas uma das

    caractersticas que melhor o definem , precisamente, o privilgio

    desse pressentir. Privilgio que se exprime como qualidade comum39

    e se manifesta de mltiplas maneiras: na arte em geral, na filosofia, na

    cincia, nas vidas, etc. Aprendemos pressentindo numa antecipao

    preferencial decisiva, enquanto devir (Os devires so o que h de mais

    imperceptvel. So actos que s podem estar contidos numa vida e

    expressos num estilo. Os estilos, tal como os modos de vida, no so

    construes.40). Mudamos como numa metamorfose. Um devir toma

    forma, encarna-se nas matrias, faz-se corpo. isso que faz o estilo,

    uma metamorfose.

    O estilo comea quando dois objectos diferentes, mesmo

    vizinhos mas distantes, se misturam de alguma maneira, se ligam,

    trocam ou associam, embora no formem uma unidade. Precisamente

    porque a unidade que est posta em causa. Movimento de dupla

    captura (evoluo a-paralela), fazendo com algum que no tem

    relao de semelhana com o que aprendemos uma espcie de

    sistema de passagem (se aprendo a nadar, diz Deleuze, preciso que

    os meus movimentos e os meus repousos, as minhas velocidades e as

    minhas lentides apanhem ou capturem um ritmo comum com os do

    mar, de acordo com um ajustamento mais ou menos durvel e com o

    qual no tenho relao de semelhana. Perdendo e ganhando tempo

    nesse ajustamento indeterminado. Qualquer tipo de aprendizagem pe

    em correspondncia pontos notveis, atravs de ritmos e do resultado,

    e quando a aprendizagem est feita, nasce o estilo. Outro exemplo: a

    criana que aprende a andar de bicicleta faz progressivamente

    38 D, p. 13. 39 PS, p. 61. 40 D, p. 13.

  • 37

    corresponder o peso do tronco, a sua inclinao com o peso e a

    velocidade da bicicleta, a posio dos braos, da cabea, das pernas

    com a posio do volante, das rodas, etc. do veculo, de maneira a

    obter um equilbrio nico, uma unidade de equilbrio entre o equilbrio

    da bicicleta e o equilbrio do seu corpo e isto em todos os graus de

    velocidade, lentido, acelerao, etc., do movimento. O corpo e a

    bicicleta formam um nico equilbrio, s tornado possvel pela maneira

    prpria como o corpo entrou em conexo consistente com o veculo e

    essa maneira define o estilo, o estilo daquela criana a andar de

    bicicleta). Fazendo com, sem formar uma unidade.

    Qual ento a natureza especial desta no unidade, que no

    resulta de uma unificao prvia? Esta no unidade sem relao de

    semelhana que num instante qualquer surge evolui e assegura a troca

    dos pontos de vista, a comunicao das essncias, a coerncia das

    qualidades, surgir ela segundo a lei da essncia ou do tempo, como

    uma parte ao lado das outras, signo ou pedao localizado, fragmento

    sem unidade anterior? Nesta primeira etapa, a formao do estilo ainda

    s uma espcie paradoxal de tratamento ou transmutao,

    movimento de incarnao de uma matria numa outra matria

    luminosa. E, Incarnar, modular, desmaterializar adequar essncia,

    diferenciar.

    Ser sem lei, comear num momento qualquer porque o

    tempo tem o estranho poder ( a sua lei) de afirmar simultaneamente

    pedaos que no fazem um todo no espao, como no formam um por

    sucesso no tempo. E ser sempre necessrio tempo para interpretar

    um signo, todo o tempo o de uma interpretao, quer dizer de um

    desenvolvimento.41 Seja o tempo que perdemos (signos mundanos), e

    o tempo perdido (signos amorosos), seja uma nova estrutura do tempo,

    o tempo que reencontramos (signos sensveis), e finalmente o tempo

    reencontrado (signos artsticos). No tempo existiro quatro linhas.

    41 PS, p. 106.

  • 38

    No contexto da obra que analisamos, ainda que s na primeira

    parte, o estilo define-se como uma certa interpretao/traduo dos

    signos, a velocidades de desenvolvimento diferentes, como um

    movimento que cruza diferenas de potencial, entre as quais qualquer

    coisa se pode passar ou produzir, que j uma necessidade paradoxal

    do pensamento fortuita e inevitvel.

    Movimento de criao que vai at ao ponto em que a cadeia

    associativa quebrada e as matrias se rompem, saltam, transmutam,

    desmaterializam, espiritualizando-se, refractando-se e exprimindo-se

    em palavras, conceitos, cores, sons.

    H aqui um tratamento da matria para que ela sofra uma

    metamorfose, que a torna qualidade de um mundo e determinao que

    diferena. Tal a imagem, o produto do estilo. matria-movimento

    na qual o signo talhado em diferena.

    Sendo qualidade de um mundo, a essncia no se confunde

    jamais com um objecto, mas ao contrrio re-aproxima dois objectos

    completamente diferentes, que no tm absolutamente nada a ver um

    com o outro, apercebendo-nos ns ou pressentindo que eles tm esta

    qualidade num meio revelador. Ao mesmo tempo que a essncia se

    incarna numa matria, a qualidade ltima que a constitui exprime-se

    ento como a qualidade comum a dois objectos diferentes, modulados

    nesta matria luminosa, mergulhados neste meio refractante42.

    Contida numa vida, a essncia, exprime-se por um estilo. Uma espcie

    de nascimento continuado do mundo. Reencontrado nas matrias

    adequadas s essncias, nascimento que pe os objectos em devir.

    O estilo no uma criao psicolgica individual, particular, uma

    construo, mas sim uma potncia de vida que se afirma com uma

    fora individualizante, uma obstinao da prpria essncia, um dom.

    O nascimento/criao do mundo o nascimento extraordinrio

    do Tempo. Para espiritualizar a matria e torn-la adequada

    42 PS, p. 61.

  • 39

    essncia, o estilo reproduz a instvel oposio, a complicao original,

    a luta e a troca dos elementos primordiais43.

    Contudo, pode dizer-se que no h nada na definio que o

    defina, tratando-se mesmo de um conceito dos mais difceis de

    analisar. No h metodologias, regras, nada seno uma longa

    preparao. Digamos que um procedimento ou tratamento da

    matria, adequao que d identidade a um signo; indicando, j

    vimos, como dois objectos completamente diferentes mudaram,

    determinando-se, mudando mesmo de nome.44 Simultaneamente a

    diferena ltima absoluta (matria e essncia no sero duas mas uma

    s) que indica e reproduz. Indica uma possibilidade de devir e ao

    mesmo tempo reproduz (interpreta, como se pode interpretar uma

    grande msica) de forma continuada o comeo do mundo. Numa

    palavra, o estilo a prpria essncia.

    A obra de um grande artista no envelhece seno quando, por

    usura do seu crebro, ele julga mais simples encontrar directamente

    na vida, como j construdo, o que ele no podia seno exprimir na sua

    obra (). O artista envelhecido confia na vida, na beleza da vida;

    mas, do que constitui a arte, ele no tem mais do que sucedneos,

    repeties que se tornaram mecnicas, porque exteriores, diferenas

    congeladas que recaem numa matria no sabendo j como a tornar

    leve e espiritual.45 No sabendo j como encontrar essa qualidade

    comum, no pode compreender a vida, no pode decifrar nem fazer

    esse tratamento da matria.

    Quem sabe como se tornar num grande escritor?46 H

    qualquer coisa que no podemos saber no comeo, podemos no

    entanto comeamos por isso, pelo meio e fazemos uma

    aprendizagem que parece tempo que perdemos, tempo perdido, mas

    tambm tempo que reencontramos, tempo reencontrado47.

    43 PS, P. 62. 44 Idem. 45 PS, p. 63. 46 PS, p. 32. 47 PS, p. 34.

  • 40

    b. Estilo Anti-logos

    Na segunda parte de Proust et les signes, que Deleuze

    acrescentou j depois de ter escrito Diffrence et rptition e Logique

    du sens, aparece um captulo expressamente dedicado ao estilo. Ser

    o ltimo antes da concluso48.

    Enquanto na primeira parte o estilo essncia/diferena,

    tratamento da matria na segunda ser: estrutura formal significante

    da obra49. Retoma-se, do incio, a problemtica da unidade, no j

    maneira de Plato, Deleuze considera que ela se encontra deslocada

    de uma maneira que preciso dizer moderna, essencial literatura

    moderna50.

    Antes, tinha-se um pressentimento do que era o estilo. Ele

    reproduzia a instvel oposio, a complicao original, a luta, etc.,

    reencontrava o mundo fazendo-o continuadamente nascer. O

    estilhaamento da ptria desconhecida51 (da unidade primeira) ainda

    no tinha acontecido, existia uma espcie de garantia que no se tinha

    dissolvido, mas havia j, tambm, um outro pressentimento o estilo

    no-estilo.

    Agora sabe-se que o estilo vale para todas as imagens. ele

    que substitui a experincia ou a maneira como falamos dela ou a

    frmula que a exprime, o indivduo no mundo pelo ponto de vista sobre

    o mundo52, ele a expresso do caos, de um mundo que se torna

    catico, violento. A violncia a violncia do caos que estilhaa

    definitivamente a ordem do cosmos e para o qual no existem mais

    garantias nem essncias estveis. A arte no encarna j as 48 Deleuze esclarece no prefcio da terceira edio de PS que a segunda parte tinha sido acrescentada segunda edio em 1970 e a concluso desta nova edio uma verso de um texto de 1973. 49 PS, p. 134. 50 Idem. 51 PS, p. 57. 52 Idem, p. 134.

  • 41

    essncias ideais. Talvez por isso, o problema da unidade se encontre

    deslocado. A relao entre essncias, pensamento e criao artstica

    inverteu-se. J no se trata mais de dizer: criar pensar mas,

    pensar criar, e em primeiro lugar criar o acto de pensar no

    pensamento.53 O que foi, ento que mudou?

    O que est agora em causa, numa concepo no dialctica da

    obra de arte moderna, um mundo em fragmentos, pedaos que j

    no pertencem a uma totalidade orgnica preestabelecida nem a uma

    unidade (logos) mesmo que perdida. As partes j no se deixam

    ajustar, no se desenvolvem ao mesmo ritmo nem com a mesma

    velocidade, so tantos os meandros que necessrio recolher cada

    pequeno fragmento e ajust-lo sua velocidade (diferente de todas as

    outras), cada um derivando/reenviando a uma srie diferente ou

    mesmo a nada.

    As partes e os fragmentos, na sua existncia ltima, falam e

    valem por si, no se apoiam mais num logos subsistente: s a

    estrutura formal da obra de arte ser capaz de decifrar o material

    fragmentrio que ela utiliza, sem referncia exterior, sem grelha

    alegrica ou analgica.54 S-lo-, porque entre todas as partes existir

    uma espcie de sistema de passagem que traar transversais

    entre os signos (que sero sempre fragmentos sem totalizao nem

    unificao).

    No primeiro captulo Deleuze tinha feito uma classificao

    proustiana dos signos que vai alterar no quarto captulo da segunda

    parte: numa primeira ordenao juntar signos naturais e artsticos;

    numa segunda, agrupar-se-o os prazeres e as dores, signos

    mundanos e amorosos; finalmente, a terceira, dizendo sempre

    respeito arte, mas definindo-se pela alterao universal, a morte e a

    ideia de morte, a produo de catstrofe55.

    53 PS, p.134. 54 PS, p.137. 55 PS, p. 179.

  • 42

    A primeira ordenao caracteriza-se por uma produo de

    objectos parciais, tal como foram definidos anteriormente, fragmentos

    sem totalidade (). O segundo tipo de mquina produz ressonncias,

    efeitos de ressonncia56 que j no repousam sobre os pedaos

    fornecidos pelos objectos parciais.

    O que mudou, o que novo, a forma como a obra de arte

    moderna no relaciona experincias extra-literrias mas produz uma

    experimentao artstica57. A obra de arte moderna uma mquina,

    produz simultaneamente em si e sobre si mesma ressonncias,

    preenche-se e alimenta-se delas. A ressonncia (a essncia) j no

    finalidade do mundo, produtora de um certo efeito mas em

    condies naturais dadas, objectivas e subjectivas58. Quer dizer, ela

    produz e extrai de si prpria os pedaos.

    A noo de finalidade do mundo desaparece. O estilo , nestas

    condies, o que faz ressoar dois objectos quaisquer e destaca uma

    imagem preciosa das condies naturais que a determinam.

    Enquanto as duas primeiras ordens eram produtivas (tornando a

    conciliao possvel), a terceira parece completamente improdutiva,

    absolutamente catastrfica, porque dominada pela ideia de caos e de

    morte. Mas, se nesta ltima ordenao considerarmos que esta ideia

    consiste num certo efeito do tempo, (um movimento que do passado ao

    presente se duplica e atravs de um segundo movimento forado de

    amplitude maior varre tanto o passado como o presente, dilatando

    infinitamente o tempo, enquanto a ressonncia o contrai ao mximo)

    ento, ela torna-se menos confusa e deixa de ser uma obstculo

    improdutividade referida. Podemos conect-la com uma ordem de

    produo, dando-lhe ento o seu lugar na obra de arte. O movimento

    forado de grande amplitude uma mquina que produz o efeito de

    recuo ou a ideia de morte.59

    56 PS, pp. 180-181. 57 PS, p. 184. 58 PS, p. 186. 59 PS, p. 192.

  • 43

    A amplitude portadora da ideia de morte embraia numa

    ressonncia e conecta o que no produtivo com a ordem de

    produo. O que se perde na amplitude do movimento forado ganha-

    se, como condio da forma, na obra.

    Talvez seja isso o tempo, escreve Deleuze: a existncia ltima

    das partes de tamanhos e de formas diferentes, que no se deixam

    adaptar, que no se desenvolvem ao mesmo ritmo, e que o rio do estilo

    no arrasta mesma velocidade.60

    Se no h totalizao nem unidade, se o mundo no tem mais

    contedos significantes, se as cadeias associativas se rasgaram,

    estilhaaram, a essncia j no pode ser a mesma. Ento, o que faz a

    unidade de uma obra? O que que nos faz comunicar com uma

    obra? O que que faz a unidade da arte, se que h uma unidade?

    Recusmos a ideia de procurar uma unidade que unificasse as partes,

    um todo que totalizasse os fragmentos. Parece natural que as partes

    ou os fragmentos excluam o logos assim como a unidade lgica e a

    totalidade orgnica. Mas h, deve haver uma unidade que a unidade

    deste mltiplo, desta multiplicidade, como um todo destes fragmentos:

    um Uno e um Todo que no sejam princpio, mas que sejam ao

    contrrio efeito do mltiplo e das suas partes desconexas. Uno e

    Todo que funcionem como efeito, efeito de mquinas, em vez de

    agirem como princpios.61

    Sendo assim, o problema da obra de arte moderna o de uma

    unidade/totalidade no lgicas, no orgnicas (unidade e totalidade

    no pressupostas nem formadas por um desenvolvimento), definindo-

    se melhor como uma questo de consistncia. O exemplo dado, por

    Deleuze, para este novo tipo de obra de arte, a nova literatura de

    Balzac, que soube produzir esse efeito. Embora no tenha estilo

    poder tambm dizer-se o mesmo de Proust. Este no estilo ter

    efeitos na literatura. Em Balzac, ele explica, e explica com imagens.

    Em Proust tambm. Ele [o estilo] no-estilo, porque se confunde

    60 PS, p. 137. 61 PS, p.195.

  • 44

    com o interpretar puro e sem sujeito (). O estilo explicao dos

    signos, a velocidades de desenvolvimento diferentes, seguindo cadeias

    associativas prprias a cada um deles, () comea com dois objectos

    diferentes, distantes, mesmo se so contguos: pode acontecer que

    estes dois objectos se paream objectivamente, sejam do mesmo

    gnero; pode acontecer que eles estejam ligados subjectivamente por

    uma cadeia de associao. O estilo ter arrastado tudo isso, como um

    rio arrasta os materiais do seu leito; mas o essencial no est l.62

    O estilo comea a, mas o essencial no est l, diz Deleuze.

    Estar, ento, nos efeitos produzidos (ressonncia, movimentos

    forados), na multiplicidade, na coexistncia numa nica frase de

    infinitos pontos que se deslocam, ressoam e amplificam. No seu interior

    (da frase, do som, do trao, da cor, etc.), no silncio e nas palavras, no

    que diz e no diz, na sintaxe, no vocabulrio particular, a onde se

    multiplicam os efeitos, produz-se o estilo. Esta produo em estado

    puro encontra-se na arte, pintura, literatura ou msica, sobretudo na

    msica63. Quer dizer, esta produo encontra-se nos ltimos signos,

    tal como foram definidos na primeira parte, o estilo explica-os, envolve-

    os e desenvolve-os. Mas quanto mais descemos nos graus da

    essncia, que correspondem aqui aos quatro tipos de signos (dos

    signos artsticos aos da natureza, sensveis; dos do amor aos do

    mundo), mais necessidade temos de introduzir um mnimo de

    descrio objectiva e de sugesto associativa. Estaremos ento,

    verdadeiramente, cada vez mais longe deste sentido de estilo, mais

    longe ainda de resolver o problema da unidade. Ainda assim, o estilo

    traz qualquer coisa, explica e confunde-se com o interpretar puro e

    sem sujeito, pode no ser ele a trazer a unidade, como no o ser

    certamente tambm a essncia. Para Deleuze, ela vem de outra fonte.

    Contudo nos meandros e nos anis de um estilo Anti-logos que ela

    [a obra] faz tantos desvios quantos achar necessrios para juntar os

    pedaos ltimos, conduzindo-os a velocidades diferentes e onde cada

    62 PS, p.199. 63 PS, p. 200.

  • 45

    um reenvia a um conjunto diferente, ou no reenvia a nenhum conjunto

    de todo, ou ento, no reenvia a nenhum outro conjunto seno ao

    estilo.64

    Finalmente, pergunta pela unidade, essa unidade que surge

    como efeito e assegura a criao e o pensamento, Deleuze responde

    no final da segunda parte: num mundo reduzido a uma multiplicidade

    de caos, somente a estrutura formal da obra de arte, enquanto no

    reenvie a outra coisa que pode servir de unidade (). Mas todo o

    problema saber sobre qu repousa esta estrutura formal, e como

    que d s partes e ao estilo uma unidade que eles no tero sem ela.

    () a estrutura formal da obra ento a transversalidade65.

    A noo de transversalidade parece, num breve momento do

    pensamento de Deleuze, extremamente promissora. Em particular, no

    que respeita questo da ontologia. ela que permite, no unificando

    nem totalizando, um discurso, a possibilidade de uma ontologia, j que

    tem a potncia de ser o todo destas partes sem as totalizar, a unidade

    de todas estas partes sem as unificar66.

    Como soluo, no entanto, a noo de transversalidade revela-

    se ainda insuficiente. O pressentimento/aprendizagem, o estilo Anti-

    logos, a emisso e interpretao de signos, a sua no

    unidade/totalizao, a sua produo e multiplicao sero

    atravessados por, e correspondero a uma linha de tempo privilegiado

    (uma linha transversal de todos os espaos possveis espaos e

    tempos). Linha primordial que vai at ao ponto em que a cadeia

    associativa se rompe, salta para fora do indivduo constitudo67.

    Deleuze dir ainda mais tarde, na concluso deste ensaio, (texto

    acrescentado em 1973) que ser no j a transversalidade mas, o

    64 PS, p. 139. 65 PS, p. 202. Deleuze vai buscar o conceito de transversalidade a Felix Guattari. Ele mesmo, o refere em nota na pgina 201. 66 PS, p. 203. 67 PS, p. 134.

  • 46

    corpo sem rgos68 o corpo ideal para poder criar esse acto de

    pensar no pensamento.

    Esta questo atravessar, como veremos a seguir, toda a obra

    de Deleuze, talvez porque se trate sempre de uma questo de

    intensidade, sintaxe (um estado de tenso para qualquer coisa que

    no sintctico ) ou encanto69, porque os que no tm encanto no

    tm vida, so como mortos.70

    Diante deste mundo continuamente acabado de nascer, que

    vale a banalidade da vida? No valer nada se a prpria vida no for

    contaminada por esta incarnao, transmutao, por este corpo

    intenso, em tenso, sentido que contra-sentido, fonte de vida, xtase,

    beatitude, diferena ltima e absoluta; e, como veremos mais adiante,

    nada vale se ela no atravessar os meios mais opacos, mais materiais,

    num lance de dados necessariamente vencedor71.

    O estilo ser ento uma heterogeneidade que faz a diferena.

    No uma organizao reflectida, nem uma estrutura significante

    qualquer, nem ainda, uma inspirao espontnea. No somente

    particular, individual, mas sim individualizante, determina a posio,

    ajusta e marca, incarna e faz devir as matrias.

    Dirige-se ao novo, o novo no pensamento, no modo de ver e

    entender ou experimentar. Trata-se ento, de um poder que rasga a

    homogeneidade, criando as suas prprias impossibilidades e

    simultaneamente saindo delas.

    Duas coisas se lhe opem: uma linguagem homognea, j

    sabemos, ou ao contrrio uma heterogeneidade muito grande.

    Heterogeneidade e homogeneidade so ao mesmo tempo duas fortes

    possibilidades de oposio: a primeira quando to grande que se

    transforma em indiferena, a segunda porque reduz totalmente o novo,

    68 Noo retomada, a Antonin Artaud e depois desenvolvida por Deleuze, para marcar o grau zero das intensidades. (Doravante usaremos tambm a abreviatura que o prprio Deleuze utilizava: CsO) 69 Em francs charme. 70 D, p. 15. 71 Idem.

  • 47

    o diferente ao indistinto. Entre uma e outra deve haver uma tenso uma

    espcie de zigzag. o movimento que Deleuze desenha com a mo no

    Abecedrio72. E talvez seja o movimento elementar, o movimento que

    presidiu criao do mundo.

    Estilo - zigzag sempre necessrio, com ele elevam-se as

    percepes vividas ao percepto, as afeces vividas ao afecto73. a

    sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de um msico, os traos e

    cores de um pintor (). O escritor serve-se de palavras, mas criando

    uma sintaxe que as faz passar para a sensao, e que faz balbuciar a

    lngua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: o estilo, o

    tom, a linguagem das sensaes, ou a lngua desconhecida em toda a

    lngua, aquela que solicita um povo por vir, oh gente do velho Catawba,

    oh gente de Yoknapatawpha. O escritor retorce a linguagem, f-la

    vibrar, constrange-a, fende-a para arrancar o percepto s percepes,

    o afecto s afeces, a sensao s opinies tendo em vista,

    esperamo-lo, esse povo que no existe ainda. () precisamente a

    tarefa de toda a arte, e a pintura, a msica no fazem mais do que

    arrancar s cores e aos sons os novos acordes, as paisagens plsticas

    ou meldicas, as personagens rtmicas que as elevam at ao canto da

    terra e ao grito dos homens: o que constitui o tom, a sade, o devir, um

    bloco visual e sonoro.74

    O filsofo far o mesmo com os conceitos, eles so

    exactamente como os sons, as cores, ou as imagens, so

    intensidades75 que nos convm ou no. So criaes e entre elas h

    ressonncias e movimentos forados. Quer dizer, tambm para o

    filsofo uma questo de sintaxe76.

    72 Cf. L Abcdaire de Gilles Deleuze, Vido Editions Montparnasse, 1996. 73 Como veremos, o afecto e o percepto diferenciam-se respectivamente das afeces e das percepes, sobretudo pela intensidade e por no se referirem j a um vivido da conscincia. 74 QF, p.150 e 155. 75 D, p. 14. 76 Cf. Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990. (Doravante, P), p. 223. Mais la syntaxe est un tat de tension vers quelque chose qui nest pas syntaxique ni mme langagier (un dehors du langage). En philosophie, la syntaxe est tendue vers le mouvement du concept.

  • 48

    O estilo cria sensaes, e sensao, agenciamento de

    enunciao. Mas que agenciamento? Em Critique et clinique, Deleuze

    relaciona o estilo com a gaguez, detectando nesta uma forma especial

    de enunciado performativo: quando dizer, fazer operao potica,

    qualidade atmosfrica que faz balbuciar, gaguejar a lngua. Quando

    a gaguez que introduz as palavras que afecta; estas j no existem

    independentemente da gaguez que por si prpria selecciona e as

    liga.77 Ora o escritor e sobretudo o grande escritor introduz

    variaes inditas na lngua, abala-a, desestrutura-a, f-la gaguejar.

    essa a condio da criao de uma nova linguagem literria. O escritor

    toma as suas foras numa menoridade muda, desconhecida, que s

    lhe pertence a ele. um estrangeiro na sua prpria lngua: no mistura

    uma outra lngua sua prpria lngua, talha na sua lngua uma lngua

    estrangeira que no preexiste. Quando isto acontece a lngua vibra

    (como a teia de aranha recolhe a mais pequena vibrao que se

    propaga em ondas intensivas, sem olhos, sem nariz, sem boca, ela

    [aranha] responde unicamente aos signos78), balbucia, porque tudo

    est em perptuo desequilbrio, luta ou combate, corpo a corpo, tudo

    bifurca de acordo com o modo prprio com que cada um percorre esta

    zona de variao contnua.

    No h nada a compreender nem a interpretar, o estilo no-

    estilo, definir Deleuze. , a propriedade daqueles de quem dizemos

    habitualmente no tm estilo.79 Mesmo e tambm dos filsofos. O

    problema comum s artes, cincias e filosofia. Todas elas so

    criadoras. pergunta: como v hoje esta questo do estilo da

    filosofia?80, Deleuze responde:

    - Os grandes filsofos so tambm grandes estilistas. O estilo

    em filosofia o movimento do conceito. Com certeza, este no existe

    fora das frases, mas as frases no tm outro objecto seno o de lhe

    dar vida, uma vida independente. Construir uma variao contnua da

    77 CC, p. 146. 78 PS, p. 218. 79 D, p. 14. 80 Magazine Littraire, p. 19, 1988.

  • 49

    lngua e mant-la, modular e criar uma tenso de toda a linguagem

    para um fora eis o que fabricar o estilo. Em filosofia, como num

    romance: devemos perguntar-nos o que que vai acontecer?, o

    que que se passou?, somente os personagens so os conceitos e

    os meios, as paisagens so os espaos-tempos. Escrevemos sempre

    para dar a vida, para libertar a vida l onde ela est prisioneira, para

    traar linhas de fuga. Para isso, preciso que a linguagem no seja um

    sistema homogneo, mas um desequilbrio, sempre heterogneo: o

    estilo cruza a diferenas de potencial entre as quais qualquer coisa

    pode suceder81.

    Na verdade, estilo no uma boa palavra ( o prprio Deleuze

    que o diz), trata-se de qualquer coisa que est entre dois, que tem a

    sua prpria direco e orientao, a que se chama, como j vimos,

    uma evoluo a-paralela ou no-estilo.

    Como se chega ao no-estilo? Como se obtm este privilgio?

    Espinosa, Proust, Balzac, no tm estilo. Mas h um estilo em

    Espinosa que faz vibrar, em Balzac e Proust que explica. So

    variedades que vibram ou explicam. Trata-se de uma linguagem

    afectiva, intensiva, e no de uma afeco daquele que fala. O estilo

    no uma criao psicolgica, particular, no de natureza subjectiva.

    sim um estilo, que a velocidades diferentes ressoa e reenvia para um

    duplo processo: boom e krach (expanso e queda ou falncia

    ressonncia e movimento forado). O boom e o krach esto

    precisamente, longe do equilbrio. Fazer vibrar a lngua, faz-la

    gaguejar, desconect-la da lngua materna, inventar um uso menor da

    lngua maior, faz-la fugir, ir por uma linha de feiticeira82 mesmo

    esse processo duplo que nos faz progredir e responde pergunta.

    Arruinar, destruir, espalhar, desconstruir, desmaterializar, deformar,

    expandir, esticar, transformar o breve em longo, deslocar, ressoar,

    forar, decepcionar e remediar a decepo, contraco, distole,

    sstole