tese bruno borja

Post on 08-Jan-2016

56 Views

Category:

Documents

0 Downloads

Preview:

Click to see full reader

DESCRIPTION

Tese em economia politica.

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECONOMIA POLTICA INTERNACIONAL

    TESE DE DOUTORADO

    A Formao da Teoria do Subdesenvolvimento

    de Celso Furtado

    Bruno Borja

    Orientadora:

    Profa. Dra. Maria Mello de Malta

    Rio de Janeiro Setembro de 2013

  • 2

  • 3

    BRUNO NOGUEIRA FERREIRA BORJA A FORMAO DA TEORIA DO SUBDESENVOLVIMENTO DE CELSO FURTADO

    Tese apresentada ao Corpo Docente do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de DOUTOR em Economia Poltica Internacional.

    _BANCA EXAMINADORA_

    __________________________________________ Profa. Dra. Maria Mello de Malta (orientadora)

    __________________________________________ Prof. Dr. Carlos Aguiar de Medeiros

    __________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Bielschowsky

    __________________________________________ Prof. Dr. Plinio Soares de Arruda Sampaio Junior

    ___________________________________________ Prof. Dr. Pedro Cezar Dutra Fonseca

    Rio de Janeiro Instituto de Economia UFRJ

    Setembro de 2013

  • 4

  • 5

    _RESUMO_

    Este trabalho busca surpreender a teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado em

    seu processo histrico de formao, isto , explicitando suas fontes, principais inflexes

    e snteses originais. Para tanto, adota-se o materialismo histrico como mtodo de

    anlise, contextualizando historicamente as formulaes do pensamento e situando-as

    em controvrsias terico-polticas, onde participam autores com vises de mundo e

    referenciais analticos distintos. Aps mapear as controvrsias mais importantes da obra

    de Furtado, no que se refere a sua teoria do subdesenvolvimento, apresenta-se duas

    delas, desenroladas nos anos 1950, quando o autor alcana suas primeiras snteses

    originais. Uma envolve autores considerados interpretes do Brasil e precursores da

    histria econmica do pas, Roberto Simonsen e Caio Prado Jr., e deu origem ao livro

    Formao Econmica do Brasil (1959); outra teve grande destaque no debate

    internacional aps a segunda guerra mundial, entre autores da economia do

    desenvolvimento e a Cepal, com as proposies de Ral Prebisch sobre o sistema

    centro-periferia e a teoria do subdesenvolvimento de Furtado, consolidada no livro

    Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961).

  • 6

    _ABSTRACT_

    This work seeks to surprise the theory of underdevelopment of Celso Furtado in its

    historical process of formation, that is, explaining their sources, main inflections and

    original synthesis. Therefore, we adopt historical materialism as a method of analysis, to

    historically contextualize the formulations of thought and place them in theoretical-

    political controversies, where participate authors with different worldviews and

    analytical frameworks. After mapping the most important controversies of Furtado's

    work, regarding his theory of underdevelopment, presents two of them, unrolled in the

    1950s, when the author reaches his first original syntheses. One involves authors

    considered interpreters of Brazil and precursors of the country's economic history,

    Roberto Simonsen and Caio Prado Jr., and gave rise to the book Formao Econmica

    do Brasil (1959); the other one had great prominence in the international debate after

    the second world war, between authors of development economics and ECLAC, with

    the propositions of Raul Prebisch on the center-periphery system and the theory of

    underdevelopment of Furtado, consolidated in the book Desenvolvimento e

    Subdesenvolvimento (1961).

  • 7

    _AGRADECIMENTOS_

    Gostaria de agradecer aos companheiros do Laboratrio de Estudos Marxistas (Lema IE/UFRJ) por todo apoio e suporte ao longo do curso de doutorado, o que me permitiu

    dar prosseguimento pesquisa consolidada neste trabalho.

    Meu agradecimento a Carla Curty, Pablo Bielschowsky, Marco Antonio Rocha, Marina

    Machado, Juliana Nascimento, Larissa Mazolli, Allan Mesentier, Laura Amaral,

    Luciano Coutinho e aos demais membros do coletivo.

    Pelo intenso debate, troca de ideias e leitura crtica de parte deste trabalho, mas antes de

    tudo pela amizade, meu agradecimento a Rodrigo Castelo e Fernando Prado.

    A Maria Malta coordenadora do Lema, minha orientadora e parceira de infinitos trabalhos deixo minha gratido e amizade.

    Em memria dos professores Jos Ricardo Tauile, Fabio Erber e Aloisio Teixeira, pelo

    que contriburam em minha formao no tempo em que nos foi dada a convivncia.

    Aos familiares e amigos que me deram suporte emocional, sentimental, afetivo e,

    tambm, material para a realizao deste trabalho.

    A Tain Nogueira por todo amor-humor, presente e incondicional.

    Aos poetas mestres do passado. Aos poetas amigos contemporneos. Aos poetas futuro do porvir. Aos poetas.

  • 8

    _SUMRIO_

    APRESENTAO ______________________________________________________ 11 CAP. 1 - AS PRINCIPAIS CONTROVRSIAS DA OBRA DE CELSO FURTADO _________ 17 1.1 Questo de Mtodo _______________________________________________ 18 1.2 O Estudo da Histria do Pensamento Econmico Brasileiro _______________ 27 1.3 Celso Furtado: a obra e suas controvrsias _____________________________ 34 CAP. 2 FORMAO ECONMICA DO BRASIL ______________________________ 46 2.1 Roberto Simonsen: a histria econmica dos ciclos ______________________ 48

    2.1.1 Histria Econmica do Brasil (1500-1820) ________________________ 50 2.1.2 Aspectos da Histria Econmica do Caf _________________________ 59 2.1.3 Evoluo Industrial do Brasil ___________________________________ 62

    2.2 Caio Prado Jr: uma interpretao marxista do Brasil _____________________ 66

    2.2.1 Evoluo Poltica do Brasil ____________________________________ 68 2.2.2 Formao do Brasil Contemporneo - colnia ______________________ 71 2.2.3 Histria Econmica do Brasil ___________________________________ 76

    2.3 Celso Furtado: a formao de Formao Econmica do Brasil _____________ 83

    2.3.1 Economia Colonial no Brasil nos Sculos XVI e XVII _______________ 85 2.3.2 Caractersticas Gerais da Economia Brasileira ______________________91 2.3.3 A Economia Brasileira ________________________________________ 93 2.3.4 Formao Econmica do Brasil _________________________________ 98

    2.4 Sntese da Controvrsia ___________________________________________ 108 CAP. 3 DESENVOLVIMENTO E SUBDESENVOLVIMENTO _____________________ 114 3.1 A Economia do Desenvolvimento e a Perspectiva do Atraso ______________ 117

    3.1.1 Paul Rosenstein-Rodan e o Big Push ____________________________ 121 3.1.2 Ragnar Nurkse e o Crescimento Equilibrado ______________________ 123 3.1.3 Arthur Lewis e a Oferta Ilimitada de Mo-de-obra _________________ 127 3.1.4 Walt W. Rostow e as Etapas do Crescimento _____________________ 131

    3.2 Ral Prebisch e o Sistema Centro-Periferia ___________________________ 134

    3.2.1 O Desenvolvimento Econmico da Amrica Latina e Alguns de seus Principais Problemas ______________________________________________ 137 3.2.2 Crescimento, Desequilbrio e Disparidades: interpretao do processo de desenvolvimento econmico ________________________________________ 141 3.2.3 Problemas Tericos e Prticos do Crescimento Econmico __________ 145

  • 9

    3.3 Celso Furtado entre Desenvolvimento e Subdesenvolvimento _____________ 149

    3.3.1 Desenvolvimento: teoria e processo histrico _____________________ 153 3.3.2 Elementos de uma Teoria do Subdesenvolvimento _________________ 163 3.3.3 Anlise do Desenvolvimento Recente do Brasil ___________________ 172

    3.4 Sntese da Controvrsia ___________________________________________ 176 CONSIDERAES FINAIS ______________________________________________ 182 BIBLIOGRAFIA ______________________________________________________ 190

  • 10

    Em um pas como o nosso, em que os que detm o poder

    parecem obsessos pela mais estreita lgica economicista

    ditada pelos interesses de grupos privilegiados e empresas

    transnacionais, falar de desenvolvimento como reencontro

    com o gnio criativo de nossa cultura e como realizao das

    potencialidades humanas pode parecer simples fuga na

    utopia. Mas que a utopia seno o fruto da percepo de

    dimenses secretas da realidade, um afloramento de

    energias contidas que antecipa a ampliao do horizonte de

    possibilidades aberto ao homem?

    Celso Furtado,

    Cultura e Desenvolvimento em poca de Crise

  • 11

    _APRESENTAO_

    A brusca descoberta de que o conhecimento do mundo havia sido no passado incomensuravelmente maior e o desejo sem medida de abarcar esse conhecimento.

    Celso Furtado, Criatividade e Dependncia na Civilizao Industrial

    A contribuio milionria de todos os erros.

    Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil

    Com a contribuio milionria de todos os erros, Oswald de Andrade pretendeu

    fundar uma nova potica brasileira, liberta dos cnones portugueses e de seu lirismo

    derramado. Em 1924, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil reivindicava as origens

    culturais brasileiras em sua ampla dimenso, ressaltando os elementos indgenas e

    africanos, para superar o trao europeizante dos bons costumes nacionais. A aceitao

    das caractersticas originais da formao brasileira para se libertar dos recalques

    histricos, sociais, tnicos, os "erros" que se traduziam no sentimento de inferioridade

    frente ao branco puro sangue europeu e sua civilizao. A poesia pau-brasil era a

    tentativa de afirmao da nacionalidade no mundo, a primeira poesia brasileira de

    exportao. Oswald arremataria triunfante: pau-brasil, brbaro e nosso.

    Dando sequncia ao desenrolar de sua nova potica, lanaria, em 1928, o

    Manifesto Antropfago, onde prope o resgate metafrico das prticas antropofgicas

    dos povos originrios para devorar a cultura europia. Isso significou de fato a

    deglutio das vanguardas artsticas europias do incio do sculo, num pleno

    sincretismo com a cultura mais profunda do Brasil. Uma dialtica entre o

    cosmopolitismo da civilizao industrial e o localismo da cultura popular, do folclore e

  • 12

    das tradies indgenas e africanas. Em mais um brado de libertao, Oswald

    sentenciaria: tupi, or not tupi that is the question. Muito influenciado por Freud, buscava

    a redeno brasileira frente ao mundo pela transfigurao do tabu em totem. A exaltao

    dos recalques nacionais. A contribuio milionria de todos os erros.

    Substituindo as formas e os padres estticos importados do estrangeiro, o

    modernismo expressava culturalmente a mudana das foras produtivas com o incio da

    industrializao por substituio de importaes. So Paulo e a indstria, o despontar da

    paulicia desvairada, para lembrar Mrio de Andrade. O novo ritmo da vida urbana com

    seus bondes, postes, cinema, eletricidade, jornais, mquinas. Tudo isso tambm foi

    captado pelo novo pensamento social dos anos 1930, com a renovao dos estudos

    sobre a formao brasileira, que, tal qual os poetas, deglutiram as influncias

    estrangeiras, assimilando de forma no esquemtica as principais correntes de

    pensamento europias e estadunidenses para desvendar as particularidades do Brasil. A

    renovao cultural do modernismo e a industrializao por substituio de importaes

    constituem partes da transio da sociedade agro-exportadora para a sociedade urbano-

    industrial. Ou, mais explicitamente, da consolidao do poder da burguesia industrial no

    processo da revoluo burguesa no Brasil. Passado quase um sculo desta transio

    preciso reconhecer sua grandeza para assim poder captar seus limites. Refletindo sobre a revoluo burguesa na Europa, Celso Furtado fez a seguinte

    observao sobre a revoluo cultural representada pelo renascimento italiano no sculo

    15: a brusca descoberta de que o conhecimento do mundo havia sido no passado

    incomensuravelmente maior e o desejo sem medida de abarcar esse conhecimento.

    Furtado se refere cultura grega clssica assimilada nas cidades-estado italianas e

    difundida pelas novssimas prensas, no momento em que principiava a grande expanso

    comercial martima europeia. Atualmente, em poca de virtualidades extremas,

    acostumados a ver no futuro a fronteira do pensamento, quanto estranhamento no

    causa pensar que no passado esta fronteira foi bem mais ampla... Entre a brusca

    descoberta de Furtado e a contribuio de todos os erros de Oswald situa-se a histria

    do pensamento.

    Colocando a necessidade da histria do pensamento, Ricardo Tolipan (1982)

    lembra a vocao de verdade contida no discurso cientfico, cuja consequncia a

    tendncia para se apresentar como um resultado e no como um processo. Ao olhar seu

    passado, a cincia presente alterna entre a execrao de seus erros e a exaltao dos

  • 13

    gnios que conseguiram revelar a verdade, mas perde, em geral, sua processualidade e

    sua historicidade. Exime-se o carter social e coletivo da construo do pensamento,

    assim como o condicionamento histrico que lhe d cores prprias. Eis um desafio

    histria do pensamento: abarcar o conhecimento incomensuravelmente maior do

    passado e a contribuio de seus erros para a formao do novo pensamento. Isto , a

    potencialidade e o limite do passado, abrindo caminho superao pelo novo.

    Bem se sabe que o novo surge de dentro do velho. E aqui outro ponto da

    necessidade da histria do pensamento: ela atua como metalinguagem. Pesquisar as

    condies em que se desenvolveu o pensamento passado tambm esclarecer o

    processo de formao do pensamento presente. As fontes tericas, a insero social, a

    viso de mundo, tudo que elucida os condicionamentos do pensamento passado serve

    tambm reflexo sobre o novo. Da a desconfiana de parte do mundo acadmico

    frente histria do pensamento, pois ela revela muito mais sobre o presente do que a

    princpio pode parecer. Uma abordagem crtica do processo de formao do pensamento

    implica a considerao das controvrsias tericas e polticas de seu tempo, com as

    diferentes vises de mundo e projetos polticos colocados em pauta. Compreender as

    controvrsias passadas, e sua resoluo, ao mesmo tempo desmistificar o presente,

    para ver com maior clareza o ressurgimento de questes perenes da sociedade, que so

    frequentemente recolocadas.

    Por outro lado, a histria no morreu. Ao contrrio: est viva e em disputa. No

    se pode tomar a histria como algo dado e acabado, necessrio retornar a interpretar o

    passado luz do presente, para confrontar as diferentes interpretaes estabelecidas.

    Mudanas no tempo presente implicam novas consideraes sobre o passado,

    ressignificam o passado e exigem outra interpretao. Isto se aplica tambm histria

    do pensamento: aps duas dcadas de inconteste hegemonia neoliberal, de domnio do

    pensamento nico, a recente crise da economia mundial abre novo perodo de disputa

    ideolgica entre correntes ainda no plenamente matizadas, mas que passam por variaes de neoliberalismo, social-liberalismo, novo-desenvolvimentismo e socialismo.

    No caso do pensamento econmico brasileiro, cabe registrar que as

    interpretaes consolidadas de sua histria foram produzidas na dcada de 1980,

    momento de transio entre o ocaso do desenvolvimentismo e a afirmao do

    neoliberalismo. Agora, com o descenso da ideologia neoliberal, impe-se uma volta

    histria para captar as origens das novas correntes de pensamento. Particularmente,

  • 14

    interessa observar como surgiram, se processaram e foram encaminhadas as

    controvrsias terico-polticas do passado, para entender as variaes e os limites do

    desenvolvimentismo em seu tempo histrico. Neste sentido, inegvel a relevncia e a

    influncia de Celso Furtado para a construo do nacional-desenvolvimentismo, tanto

    por seu trabalho intelectual quanto por sua prtica poltica. No que concerne obra do

    autor, esta se estrutura tendo como eixo central a teoria do subdesenvolvimento guia de ao para a interveno sobre a realidade.

    Evidentemente, a teoria do subdesenvolvimento de Furtado j foi, e continua

    sendo, tema de inmeras pesquisas de histria do pensamento. No entanto, em geral,

    tais estudos se restringem a uma abordagem que tenta rotular e dar um tratamento de

    "obra fechada" ao autor, sem respeito historicidade e processualidade do pensamento

    em formao. Isto , no h um pensamento nico de cada autor, invarivel no tempo e

    no espao, mas h sim unidade de pensamento e um sentido de formao, que se

    apresenta em distintas formas em cada momento histrico e diante de cada controvrsia

    suscitada pela conjuntura presente.

    Por outro lado, ao buscar a historicidade e a processualidade do pensamento,

    rejeita-se tanto as anlises que entendem Furtado como um simples "repetidor" de

    teorias antes formuladas, quanto as que afirmam: tudo comeou em Furtado. Trata-se,

    antes, de surpreender o pensamento em formao, para fazer a devida mediao entre as

    fontes do autor e sua superao atravs de uma nova sntese terica a relao do novo com o velho: a fronteira do pensamento informada pelo pensamento consolidado e

    conectada aos conflitos da conjuntura poltica.

    Nos ltimos anos, pesquisadores do Laboratrio de Estudos Marxistas (Lema),

    do Instituto de Economia da UFRJ, tem se empenhado em resgatar o mtodo de Marx

    para a anlise da histria do pensamento. Situando os autores e suas formulaes em

    controvrsias terico-polticas, onde se confrontam vises de mundo distintas, pretende-

    se, justamente, ressaltar o vnculo entre histria, insero social e pensamento. O

    presente trabalho faz parte deste esforo coletivo, com a particularidade de aplicar o

    mtodo anlise de um autor determinado. Devolvendo ao pensamento seu carter

    histrico e processual, procura-se, ento, apresentar a formao da teoria do

    subdesenvolvimento de Celso Furtado.

    Com este intuito, constri-se aqui uma tese em trs captulos. O captulo 1, as

    principais controvrsias da obra de Celso Furtado, marca as bases metodolgicas e

  • 15

    repassa alguns dos principais estudos de histria do pensamento econmico brasileiro,

    com objetivo de situar a obra de Furtado na histria e identificar suas principais

    controvrsias. A partir de uma viso de conjunto do desenvolvimento da obra, prope-

    se uma distino de seus diferentes momentos, sejam eles: formao da teoria do

    subdesenvolvimento (1945-1961); difuso e crtica da teoria do subdesenvolvimento

    (1962-1974); reformulao da teoria do subdesenvolvimento (1975-1989).

    Tais momentos, por sua vez, comportam algumas controvrsias majoritrias no

    sentido de formao de sua teoria, sendo aqui analisadas as duas principais

    controvrsias do primeiro momento: formao econmica do Brasil, e desenvolvimento

    e subdesenvolvimento. O captulo 2 trata da controvrsia histrica que daria origem ao

    livro Formao Econmica do Brasil, quando Furtado dialoga criticamente com os

    trabalhos de Roberto Simonsen e Caio Prado Jnior, tomando estes autores como fontes

    de seu pensamento. Uma controvrsia entre trs intrpretes do Brasil, demiurgos da

    sociedade urbano-industrial brasileira, com vises de mundo e mtodos de anlise

    distintos. Furtado, a princpio bem colado s formulaes de Simonsen e Caio Prado,

    progressivamente se distancia deles, ganhando autonomia terica, baseada na

    introduo de conceitos da economia do desenvolvimento, da economia poltica

    cepalina e, por fim, de sua prpria teoria do subdesenvolvimento.

    O que remete ao captulo 3, onde se busca analisar a controvrsia internacional

    sobre o desenvolvimento econmico dos pases atrasados, perifricos ou

    subdesenvolvidos, conforme cada uma das abordagens que deu origem ao livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Tratados enquanto pases atrasados pela

    economia do desenvolvimento mais ortodoxa, orientada pela ideologia do progresso, os

    pases latino-americanos sero analisados por Ral Prebisch, na Cepal, luz do sistema

    centro-periferia, abrindo uma primeira rachadura na viso unilinear da histria. Prebisch

    far a crtica ao falso sentido de universalidade da teoria econmica vigente, definindo a

    periferia a partir de sua insero na diviso internacional do trabalho como exportadores

    de matrias primas e alimentos. Furtado aprofundar esta crtica, para definir trajetrias

    histricas distintas de desenvolvimento. Com base em seus estudos histricos e

    recorrendo a elementos de analise dos intrpretes do Brasil, se distanciar da economia

    do desenvolvimento e do prprio Prebisch para formular sua teoria do

    subdesenvolvimento, analisando a formao histrica das estruturas subdesenvolvidas.

  • 16

    Assim, o autor consolida sua teoria do subdesenvolvimento a partir da insero

    nestas duas controvrsias: uma sobre histria econmica entre os intrpretes do Brasil e

    outra sobre desenvolvimento econmico no debate internacional. Sua nova sntese

    terica, de superao das posies anteriores em ambas as controvrsias, seria alcanada

    no final dos anos 1950, sendo publicadas, respectivamente, em Formao Econmica

    do Brasil (1959) e Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961). Neste perodo

    histrico de ascenso da burguesia industrial em alguns pases da Amrica Latina,

    Furtado fundamentou a ideologia nacional-desenvolvimentista, elemento de contestao

    plena interveno dos EUA nestes pases, levando ao limite a viso de mundo

    burguesa na periferia do sistema capitalista mundial.

  • 17

    _CAPTULO 1_

    AS PRINCIPAIS CONTROVRSIAS DA OBRA DE CELSO FURTADO

  • 18

    O objetivo central deste trabalho apresentar a teoria do subdesenvolvimento de

    Celso Furtado em sua formao, ou seja, como ela foi construda dentro de um contexto

    histrico especfico, destacando suas influncias tericas, as controvrsias enfrentadas e

    geradas a partir de sua interveno, e as inflexes observadas em seu pensamento. Para

    tanto, faz-se necessrio introduzir um referencial metodolgico, tema da seo questo

    de mtodo. Numa aproximao ao ncleo central da tese, sero revistas as pesquisas

    mais difundidas sobre a histria do pensamento econmico brasileiro (HPEB). Assim

    ser possvel mapear algumas das principais controvrsias da obra de Furtado,

    controvrsias de destaque na HPEB, com grande impacto sobre a sociedade brasileira e

    latino-americana, e ainda hoje utilizadas como referencial terico.

    1.1 QUESTO DE MTODO O presente trabalho tem no materialismo histrico, tal como elaborado por Karl

    Marx e posteriormente desenvolvido por autores filiados tradio marxista, seu

    mtodo fundamental de anlise. No longo processo de consolidao deste mtodo, Marx

    encara diversas controvrsias que estabelece ao longo de sua vasta obra, tratando de

    executar uma superao dialtica das principais correntes do pensamento ocidental.

    Segundo Lnin ([1913] 2006): a filosofia clssica alem, o socialismo utpico francs e

    a economia poltica clssica inglesa.

    O primeiro destes desafios travado com o idealismo de Friedrich Hegel, e com

    o materialismo contemplativo de Ludwig Feuerbach. Deste embate extrai o ncleo de

    seu mtodo de pesquisa, para apresentar uma filosofia que busca na base material o

    fundamento da superestrutura ideolgica formada na sociedade. Tratando a produo do

    conhecimento como uma das partes do todo social, uma das partes da produo em

    geral, busca, ento, estabelecer as conexes necessrias entre a realidade concreta e suas

    representaes no plano das idias.1 No fundo, como produto desta controvrsia, Marx

    trata de unificar em seu mtodo o pressuposto materialista de Feuerbach e a lgica

    1 Esta controvrsia metodolgica enfrentada por Marx est presente nos trabalhos: Crtica da Filosofia do Direito de Hegel (1843); Manuscritos Econmico-Filosficos (1844); Teses sobre Feuerbach (1845); A Ideologia Alem (1846), escrito com Engels; e Contribuio Crtica da Economia Poltica (1859).

  • 19

    dialtica de Hegel (cf. Sampaio & Frederico, [2006] 2009)2. Ou, melhor dizendo, trata

    de executar uma superao dialtica em relao filosofia clssica alem, alcanando

    uma sntese que ao mesmo tempo conserva, nega e eleva a outro patamar qualitativo

    seus elementos constitutivos. Procedimento que ele adotaria em relao s outras duas

    fontes de seu pensamento: o socialismo francs e a economia poltica inglesa.

    O materialismo histrico, partindo da realidade concreta buscaria transformar

    esta mesma realidade. Assim, o primeiro passo consistiria em compreender o real

    aparente por meio de sucessivas abstraes em busca de sua essncia ltima. Seguindo

    seu pressuposto materialista, isto s poderia ser feito tomando por base o modo como os

    seres humanos produzem e reproduzem suas condies materiais de existncia. O que o

    levou a concluir que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na economia poltica (MARX, [1859] 1977, p.24). Desta forma, busca nos estudos da economia poltica clssica inglesa as determinaes mais relevantes at ento

    elaboradas, principalmente na proposio de que se estabelece, dentre a populao de

    um Estado nacional, uma diviso social do trabalho, da qual derivam, por sua

    participao no processo produtivo global, certas classes sociais, cujos interesses na

    apropriao do excedente econmico seriam antagnicos. Proposio originalmente

    lanada por Adam Smith ([1776] 1988) e, posteriormente, desenvolvida por David

    Ricardo ([1817] 1988)3.

    Da base econmica com seu modo especfico de produo, sua diviso social do trabalho e suas classes sociais correspondentes seria erguida a superestrutura em suas formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas, em resumo, as formas ideolgicas (MARX, [1859] 1977, p.25). Partindo do desenvolvimento das foras produtivas materiais e das relaes sociais de produo a contradas seria

    possvel analisar com maior rigor analtico a forma constituda da superestrutura. E,

    claro, dialeticamente esta superestrutura no seria um mero resultado da base material,

    mas sim daria ela prpria os contornos definitivos a esta base, influindo reciprocamente

    uma sobre a outra, onde o desenvolvimento histrico se apresentaria num processo

    contnuo de transformao.

    Essa concepo da histria assenta, portanto, no desenvolvimento do processo real da produo, partindo logo da produo material da vida

    2 Sampaio & Frederico ([2006] 2009), Dialtica e Materialismo. Marx entre Hegel e Feuerbach. 3 Smith ([1776] 1988), Investigao Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Naes. Ricardo ([1817] 1988), Princpios de Economia Poltica e Tributao.

  • 20

    imediata, e na concepo da forma de intercmbio intimamente ligada a esse modo de produo e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos seus diversos estgios, como base de toda a histria, e bem assim na representao da sua ao como Estado, explicando a partir dela todos os diferentes produtos tericos e formas de conscincia a religio, a filosofia, a moral, etc. etc. e estudando a partir destas o seu nascimento; desse modo, naturalmente, a coisa pode tambm ser apresentada na sua totalidade (e por isso tambm a ao recproca dessas diferentes facetas umas sobre as outras). (MARX & ENGELS [1846] 2009, p.57-58)

    Como destaca Lukcs, o mais importante do mtodo desenvolvido por Marx no

    puramente a predominncia do elemento econmico em sua anlise, mas sim a busca

    da totalidade do processo de desenvolvimento histrico em suas mltiplas

    caractersticas.4 Seguindo o mtodo, as diferentes partes da realidade social deveriam

    ser reconstitudas em suas relaes, formando uma totalidade orgnica. Isto quer dizer

    que nenhuma das partes poderia ser compreendida por si s, mas somente se alcanaria

    uma compreenso mais acurada de determinada parte ao reintegr-la ao todo, havendo

    uma prioridade lgica deste sobre a dinmica interna de cada parte considerada

    isoladamente. No caso especfico da produo do conhecimento, esta deveria ser

    tomada como mais uma das partes da produo, seguindo as leis gerais que regem toda

    produo dentro da sociedade burguesa.5 Sendo produzida por seres humanos vivendo

    em coletividade, seres humanos reais, participantes das relaes sociais de seu tempo

    histrico, a cincia traria em seu interior a expresso destas relaes. Isto significa que

    toda produo cientfica histrica e socialmente condicionada, pelo grau de

    desenvolvimento das foras produtivas alcanado pela sociedade.

    Chamando ateno para as bases materiais da superestrutura, Marx (e tambm

    Engels) no pretendia com isso estabelecer uma relao de causa e efeito. O que estava

    em jogo era a historicidade da produo em geral, e, em particular, da produo

    cientfica: o fato de que toda construo terica tem como ponto de partida de sua

    anlise a realidade, e, alm disso, somente se desenvolve dentro das possibilidades

    dadas por esta realidade objetiva.

    Marx e Engels jamais negaram a relativa autonomia do desenvolvimento dos campos particulares da atividade humana (direito, cincia, arte etc.); jamais ignoraram, por exemplo, o fato de que um pensamento filosfico,

    4 No a predominncia dos motivos econmicos na explicao da histria que distingue de modo terminante o marxismo da cincia burguesa; o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, a predominncia universal e determinante do todo sobre as partes constitui a prpria essncia do mtodo que Marx emprestou de Hegel e transformou de maneira a faz-lo a fundamentao original de uma cincia inteiramente nova... (LUKCS Apud GOLDMANN, 1979, p.49) 5 Religio, famlia, Estado, direito, moral, cincia, arte etc., so apenas formas particulares da produo e caem sob a sua lei geral. (MARX, [1844] 2004, p.106)

  • 21

    singularmente considerado, liga-se a outro pensamento filosfico que o precedeu e do qual ele um desenvolvimento, uma correo, uma refutao etc. Marx e Engels negam apenas que seja possvel compreender o desenvolvimento da cincia ou da arte com base exclusivamente, ou mesmo principalmente, em suas conexes imanentes. Tais conexes imanentes existem, sem dvida, na realidade objetiva, mas s como momentos do tecido histrico, como momentos do conjunto do desenvolvimento histrico, no interior do qual, por meio do intrincado complexo de interaes, o fato econmico (ou seja, o desenvolvimento das foras sociais produtivas) assume o papel principal. (LUKCS, 2009, p.88-89) 6

    Sendo apenas um aspecto parcial da realidade social, a cincia no poderia ser

    isolada do todo. Deveria ser apreendida dentro do movimento geral da sociedade em seu

    desenvolvimento histrico, para se obter uma melhor compreenso de seu prprio

    movimento particular. Assim sendo, no se nega que a cincia e tambm as demais modalidades de conhecimento, tal como a arte ou a religio tenha sua lgica interna, mas simplesmente que esta no de forma nenhuma independente das bases materiais.

    Observa-se aqui que h, de fato, uma autonomia relativa pertinente especificidade da

    produo do conhecimento. Esta teria suas caractersticas prprias, no sendo

    diretamente derivada da produo em geral. Alis, o prprio Marx nos alerta que a

    produo em geral um momento de abstrao7, que precisa de categorias de mediao

    ao ser confrontado com a realidade concreta. Fica, ento, uma margem para as

    determinaes particulares a cada ramo especfico de produo, preservando sua

    relativa autonomia.

    Esta autonomia, no entanto, nunca poderia ser absoluta ou, no dizer positivista, no h a possibilidade de se alcanar a neutralidade da cincia, muitas vezes confundida com objetividade. O momento subjetivo ineliminvel da produo cientfica, em especial quando se trata de uma cincia humana ou social. Ao se deparar

    com a sociedade como objeto de estudo, o pesquisador simplesmente no pode se

    excluir para observ-la de fora. Ou seja, estar sempre, e impreterivelmente, imerso na

    realidade social que estuda. Defende-se, portanto, que h uma identidade parcial entre

    sujeito e objeto no estudo das cincias humanas (cf. Goldmann, 1979; Lwy, 2009)8. E

    esta identidade parcial que explica o papel desempenhado pelas classes sociais, com

    6 Lukcs (2009), Arte e Sociedade escritos estticos 1932-1967. Em especial, a seo Introduo aos escritos estticos de Marx e Engels. 7 A produo em geral uma abstrao, mas uma abstrao racional, na medida em que, sublinhando e precisando os traos comuns, nos evita a repetio. No entanto, este carter geral ou estes traos comuns, que a comparao permite estabelecer, formam por seu lado um conjunto muito complexo cujos elementos divergem para revestir diferentes determinaes. (MARX, [1957] 1977, p.203) 8 Goldmann (1979), Dialtica e Cultura. Michael Lwy (2009), As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento.

  • 22

    seus interesses econmicos e valores culturais, com sua ideologia e com sua viso de

    mundo, na produo cientfica. Cabe ao historiador do pensamento ponderar estes

    elementos subjetivos em sua anlise.

    Contudo, segundo Goldmann (1979), esse no deve ser o ponto de partida, mas

    sim o momento de sntese na compreenso de uma obra cientfica. Pois ao ter um

    conjunto de textos, uma obra literria, como objeto imediato, emprico, de estudo, o

    historiador do pensamento deve primeiramente captar sua lgica interna, sua coerncia

    prpria, para somente depois ento reintegrar seu contedo ao processo histrico

    globalmente considerado.

    A dependncia dos grandes sistemas filosficos e das grandes obras de arte base econmica , sem dvida, uma realidade, mas, de um lado, ela nada tem de unilateral (Marx e Engels ressaltaram frequentemente tambm a influncia inversa dos fatores ideolgicos e espirituais sobre a economia) e, de outro, ela extremamente complexa, indireta e encoberta e sobretudo nada tira da realidade prpria da obra filosfica ou artstica estudada. Alm disso, longe de constituir o trabalho essencial do historiador marxista, o patenteamento dessa dependncia , ao contrrio, o coroamento de seu esforo, coroamento que lhe permite reintegrar a histria do pensamento provisoriamente abstrada da vida social na realidade concreta de uma sociedade e de uma poca. (GOLDMANN, 1979, p.48)

    Com os ps fincados na base material, a cincia tanto quanto a arte, dentre as diversas formas de tomada de conscincia do mundo exterior se apresentaria como uma representao da realidade, uma busca em represent-la no plano ideal, isto , no

    plano das idias. De acordo com Lukcs (2009), esta seria uma das teses mais

    importantes do materialismo histrico, indicando a tentativa humana em apreender o

    real efetivo que existe independentemente de sua vontade, suas idias, suas sensaes,

    ou mesmo do conhecimento que os seres humanos venham a ter do mundo natural e

    social. Como apontado anteriormente, pode-se compreender o trabalho cientfico como

    uma totalidade parcial, dotada de autonomia relativa, com sua prpria lgica interna,

    para num segundo momento reintegr-la ao processo de desenvolvimento histrico

    globalmente considerado. Cabe agora, portanto, destacar os elementos que constituem

    essa lgica interna, para depois apresentar as formas de reconstituio histrica.

    Neste terreno, foi Lucien Goldmann (1979)9 quem bem sistematizou o processo

    de compreenso dos textos literrios, tomados como objeto imediato de pesquisa. O

    autor afirma que, a partir do todo da obra, deve-se proceder a uma separao do que se

    9 Nesta coletnea, destaca-se trs ensaios sobre o tema: O Todo e as Partes; Materialismo Dialtico e Histria da Filosofia; e Materialismo Dialtico e Histria da Literatura.

  • 23

    considera essencial e acidental, para ento captar a significao dos diferentes

    momentos dentro da totalidade da obra. , mais uma vez, a tentativa de abstrao

    proposta por Marx para a anlise da realidade concreta. Isto , diante do todo catico em

    que se apresenta a realidade aos olhos imediatos do cientista social, cabe a este realizar

    processos de abstrao rumo s categorias mais simples que podero estruturar seu

    carter geral, e da, ento, permitir reconstituir-se o todo, no mais como forma

    catica, mas como totalidade orgnica. O mesmo aplica-se ao estudo das obras literrias

    e filosficas. Tomando o conjunto de textos como um todo aparentemente catico, cabe

    ao pesquisador identificar por meio de abstraes o que h de essencial ou de acidental

    no processo de desenvolvimento do pensamento. Identificando o que se considera

    essencial, poder assim precisar a significao destes elementos parciais dentro do

    conjunto da obra, apontando os momentos mais significativos em termos de

    originalidade do autor e de sua influncia sobre o pensamento filosfico posterior.

    Nos termos aqui propostos, originalidade e influncia so considerados enquanto

    fenmenos sociais, ou seja, no so atribudos genialidade de determinado autor, mas

    expressam sua capacidade de sintetizar e apresentar de forma orgnica e coerente uma

    formulao terica que se desenvolveu a partir de uma corrente social, a partir de uma

    conjuntura histrica especfica e atravs de controvrsias estabelecidas entre autores que

    se apresentam sob a viso de mundo de diferentes classes sociais. Assim, GOLDMANN

    (1979, p.62) sintetiza os elementos a serem ponderados em qualquer estudo crtico de

    histria do pensamento:

    [...] os quatro pontos essenciais (h vrios outros) a considerar para qualquer estudo histrico:

    1) restabelecimento da totalidade coerente do pensamento estudado;

    2) anlise das inconseqncias individuais do pensador devidas sobrevivncia das antigas formas de pensamento a respeito de certos pontos subordinados ou a concesses diante dos poderes estabelecidos (Igreja, Estado);

    3) anlise das inconseqncias individuais do pensador devidas ao desejo de eliminar os paradoxos e os conflitos muito flagrantes com a realidade;

    4) anlise dos limites imanentes da viso do mundo representada pelo pensador estudado.

    Observados estes elementos, deve-se executar a reintegrao do pensamento

    histria, de forma a captar, principalmente, o grau de desenvolvimento das foras

    produtivas e a formao das distintas classes sociais que lhe correspondem, assim como

    a conjuntura poltica em meio a qual se efetuou a referida formulao terica. Tal como

  • 24

    apresentado por Marx, trata-se de analisar a anatomia da sociedade civil atravs da economia poltica, integrando a conjuntura poltica que delimita as disputas latentes

    entre as classes sociais.

    Destaca-se aqui a importncia da caracterizao da viso de mundo de

    determinada classe social como um momento de mediao entre a singularidade do

    indivduo que produz e sua tentativa de alcanar a universalidade por meio das

    abstraes tericas. Tal como apresentado por Lukcs (2009): a particularidade das

    vises de mundo como categoria de mediao entre a singularidade do indivduo e a

    universalidade terica pretendida.

    Tambm se destaca a centralidade dos estudos de conjuntura para captar a

    significao dos textos parciais, inseridos num contexto histrico colorido pela luta

    poltica imediata e pelas controvrsias tericas suscitadas. Neste quesito, recorre-se aqui

    metodologia proposta por Fiori ([1984] 2003)10 para as anlises conjunturais do

    perodo abordado, onde se apresenta a conjuntura poltica como um momento de sntese

    dos diferentes tempos histricos. FIORI ([1984] 2003, p.26) repe e reconstri o velho problema terico-metodolgico das relaes entre o movimento de longa durao das

    estruturas econmicas e sociais e o tempo conjuntural da luta poltica, aplicado anlise da formao do Estado desenvolvimentista no Brasil do sculo 20. O autor parte

    das concepes de Marx e de Fernand Braudel acerca da histria para tentar articular o

    tempo longo das estruturas com o tempo curto das conjunturas, ambos entrecortados pelo movimento cclico da acumulao de capital.

    Desta forma, a conjuntura poltica no seria um momento qualquer da histria

    esmiuado em seus mnimos detalhes; seria, ao contrrio, um breve instante dentro da

    trajetria de longa durao das estruturas e dos perodos de ascenso ou descenso dos

    ciclos econmicos. Abandona-se a noo de histria factual, baseada no casusmo e no

    efmero, para tentar compreender as disputas polticas mais imediatas luz das grandes

    tendncias delineadas pelas estruturas, que seriam ora corroboradas, ora contra-

    arrestadas pelas oscilaes cclicas.

    Tal perspectiva acompanha, em linhas gerais, tanto o marxismo quanto o

    estruturalismo latino-americano, ou seja, tanto o materialismo histrico quanto o

    mtodo histrico-estrutural. O tempo longo do modo de produo e suas transies, 10 Fiori ([1984] 2003), O Vo da Coruja para reler o desenvolvimentismo brasileiro. Apresentado como tese de doutoramento em Cincia Poltica na Universidade de So Paulo.

  • 25

    da formao econmico-social dos distintos pases, das grandes transformaes

    estruturais ocorridas no sistema capitalista mundial; este tempo apresenta-se

    entrecortado pelos ciclos de acumulao, pontuados por suas crises peridicas; e estes

    dois momentos temporais se conjugam na anlise conjuntural, possibilitando uma

    melhor compreenso das lutas polticas.

    Sabidamente, foi a partir da Ideologia Alem e da Misria da Filosofia, que Marx e Engels formularam, no Manifesto de 1848, o esquema de interpretao da histria moderna, cuja ossatura ficou exposta, de maneira por demais sucinta, no esfingtico Prefcio de 1858. O tempo longo de Braudel aparece ali como a base real, cuja anatomia nos conduz s relaes de produo, base material econmica da sociedade. O tempo curto, por sua vez, aquele em que as trepidaes superestruturais, jurdicas e polticas aparecem comandadas por uma conscincia social parcialmente falseada. Estes tempos se entrelaam mediados por lutas polticas, cuja dinmica se explica predominantemente pela situao de classe. (FIORI, [1984] 2003, p.60-61)

    Tanto para a histria de uma forma geral, quanto para a histria do pensamento

    em particular, faz-se fundamental compreender a conjuntura, quando so efetivamente

    tomadas as decises, travados os embates polticos e resolvidas, momentaneamente, as

    controvrsias mais latentes, por meio da obteno do consenso ou por meio do uso da

    fora coercitiva.11 Assim podem ser captados os elementos fundamentais que influram

    na prxis poltica e na produo terica, e conduziram as aes no sentido de

    continuidade ou ruptura com o que se apresentava, isto , uma reelaborao da problemtica da continuidade-descontinuidade-ruptura na histria das sociedades. (FIORI, [1984] 2003, p.95)

    A dependncia, em ltima instncia, do pensamento base material fica

    explcita nesta elaborao, pois, tal como a histria, o pensamento nunca caminha em

    linha reta, de forma cumulativa. Ambos apresentam momentos fundamentais de

    continuidade e ruptura, onde se percebe a conexo ntima entre as grandes rupturas

    histricas e suas representaes no plano das idias. A importncia dos estudos

    histricos consiste no fato de que as antigas disputas polticas e tericas so

    constantemente repostas ao longo do tempo embora, evidentemente, de formas diferentes.

    Busca-se aqui ressaltar a ligao fundamental entre este processo de

    continuidade-descontinuidade-ruptura na histria das sociedades com o processo 11 Em geral, por uma combinao de consenso e coero, ou hegemonia e dominao o que Antonio Gramsci (2002) chamou de supremacia.

  • 26

    anlogo de superao dialtica das formas de pensamento. Como e em que grau o

    pensamento presente conjuga elementos de conservao de um pensamento pretrito,

    conjuntamente com elementos de negao, na tentativa de alcanar uma nova sntese

    terica, elevando suas formulaes a outro patamar qualitativo.

    Pretende-se que, desta forma, ficar mais evidente a relao entre as obras

    fundamentais do pensamento econmico e as transformaes sociais observadas na

    histria. Somente a partir de uma perspectiva materialista e dialtica compreende-se

    porque Adam Smith publicou A Riqueza das Naes em 1776, em plena revoluo

    industrial inglesa; ou porque Marx alcana sua sntese terica com o Manifesto

    Comunista de 1848, em meio grande luta de classes na Europa; ou porque John

    Maynard Keynes desenvolve sua Teoria Geral em 1936, no bojo da grande depresso

    iniciada em 1929; assim como Celso Furtado amadurece seu pensamento no Brasil da

    dcada de 1950 e publica Formao Econmica do Brasil em 1959 e Desenvolvimento

    e Subdesenvolvimento em 1961, diante da consolidao da industrializao e da

    ascenso da burguesia industrial ao comando do Estado nacional brasileiro. Os grandes

    expoentes do pensamento realizam suas obras nos momentos de ruptura histrica das

    sociedades e tentam dar novo sentido de universalidade a sua produo terica,

    reconstituindo, atravs de um processo de conservao-negao-superao, a

    universalidade perdida pelo pensamento hegemnico no perodo anterior.

    Suas obras refletem a passagem de uma poca para outra, um mundo no qual a universalidade dos antigos valores desapareceu e onde outros valores, novos, esto em curso de nascimento. E, se buscarmos a significao dessas obras, veremos que buscam reencontrar, aceitando e assimilando os novos valores, a universalidade perdida com a runa no mundo antigo. (GOLDMANN, 1979, p.86)

    Em sntese, cabe concluir que o estudo da histria do pensamento atravs do

    materialismo histrico implica a percepo das disputas polticas e das diferentes vises

    de mundo por trs das posturas tericas que se contrapem em cada controvrsia

    especfica. Suscitadas a partir de uma problemtica concreta em seu contexto histrico

    particular, as controvrsias, no seu desenvolvimento, permitem captar a historicidade e a

    processualidade de determinado pensamento. Isto , o processo histrico de formao

    do pensamento, expresso na obra do autor, com suas fontes, suas inflexes e suas

    snteses prprias ao longo do tempo sem tom-lo como algo fechado e acabado, impassvel de mudana.

  • 27

    1.2 O ESTUDO DA HISTRIA DO PENSAMENTO ECONMICO BRASILEIRO J se vo quase trs dcadas desde que foram realizados os principais trabalhos

    acadmicos sobre a Histria do Pensamento Econmico Brasileiro (HPEB), sejam eles

    A Economia Poltica Brasileira, de Guido Mantega, e Pensamento Econmico

    Brasileiro: o ciclo ideolgico do desenvolvimentismo 1930-1964, de Ricardo

    Bielschowsky. Ambos so teses de doutorado. A primeira defendida na Universidade de

    So Paulo no incio dos anos 1980 e publicada em 1984. A segunda defendida na

    Universidade de Leicester (Inglaterra) em meados desta dcada e publicada em 1988.

    Tais teses so as primeiras na produo acadmica brasileira que abordam de forma

    sistemtica a HPEB12. Partindo de mtodos distintos, estes autores traam um mapa do

    debate intelectual travado, de uma forma geral, pelos cientistas sociais preocupados com

    o tema de desenvolvimento econmico. Escritas durante a dcada de 1980, em meio a

    qual o pensamento sobre desenvolvimento sofria sua decadncia, juntamente com a

    derrocada do Estado desenvolvimentista, tomam como objeto de anlise especfico a HPEB, sem focar na evoluo do pensamento de algum autor determinado.

    Adotando estas obras como fontes para mapear as principais controvrsias do

    perodo, pretende-se aqui situar a obra de Celso Furtado neste panorama geral para

    compreender melhor sua insero, contribuio original e influncia na evoluo do

    pensamento econmico brasileiro. Cabe, ento, fazer uma breve exposio do mtodo

    de anlise, da periodizao e das principais correntes de pensamento identificadas por

    estes trabalhos de referncia.

    Em A Economia Poltica Brasileira, Mantega tenta mapear as formulaes

    tericas das dcadas de 1950 e 1960, dividindo-as em diferentes modelos analticos, ou terico-polticos. Estes modelos teriam sido gerados a partir do debate sobre

    desenvolvimento econmico consolidado na dcada de 1950 e polarizado em torno das

    posies do liberalismo econmico, defensor da vocao agrria do Brasil, e do desenvolvimentismo, defensor da interveno estatal em prol da industrializao. Da

    corrente desenvolvimentista teriam derivado os principais modelos interpretativos do

    pensamento econmico brasileiro, marcando o momento de nascimento da economia 12 Recentemente, o Laboratrio de Estudos Marxistas (LEMA/UFRJ) publicou em livro a pesquisa Ecos do Desenvolvimento: uma histria do pensamento econmico brasileiro, que, partindo de outro referencial metodolgico, avana sobre o trabalho de sistematizao e anlise da HPEB. cf. Malta (2011)

  • 28

    poltica brasileira, pois que guardavam grande originalidade em relao s teorias

    existentes. Tais modelos seriam: Modelo de Substituio de Importaes; Modelo

    Democrtico-Burgus; Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista; Modelo Brasileiro

    de Desenvolvimento; alm da teoria da dependncia. Herdeiros diretos da Comisso Econmica para Amrica Latina (CEPAL) e dos

    desenvolvimentistas histricos, como Ral Prebisch e Ragnar Nurkse, impulsionados pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) na conformao do nacional-desenvolvimentismo, os tericos do Modelo de Substituio de Importaes seriam a primeira corrente a se constituir, representado nas figuras de Celso Furtado, Igncio

    Rangel e Maria da Conceio Tavares. Mantega avalia, inclusive, que o trabalho de

    Furtado pode ser considerado um marco no pensamento brasileiro, e abre seu livro com

    a seguinte afirmao:

    A publicao, em 1959, de Formao Econmica do Brasil, de Celso Furtado, constituiu um marco para o pensamento econmico brasileiro. Aps muitos anos de anlises parciais e fragmentadas sobre este ou aquele aspecto da economia brasileira, vinha a pblico um trabalho de flego que, respaldado num slido arcabouo terico, procurava concatenar os vrios aspectos da dinmica de nosso sistema econmico. Estava dado o primeiro passo em direo a uma produo terica de envergadura, que se intensificaria nas dcadas sucessivas pelas penas de Caio Prado Jr., Igncio Rangel, Nelson Werneck Sodr, Maria da Conceio Tavares, Francisco de Oliveira, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Campos, Mrio Henrique Simonsen e muitos outros pensadores responsveis pela fundao da Economia Poltica Brasileira. (MANTEGA, [1984] 1987, p.11)

    Tambm na dcada de 1950, teria se constitudo o segundo modelo

    interpretativo do pensamento econmico brasileiro, o Modelo Democrtico-Burgus.

    Elaborado pelos tericos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), com forte influncia

    dos trabalhos de Lnin e das teses da III Internacional, este modelo teria seus principais

    representantes em Nelson Werneck Sodr e Alberto Passos Guimares. Em meados da

    dcada de 1960, estes dois primeiros modelos se veriam confrontados, segundo

    MANTEGA ([1984] 1987, p.14), em virtude da falta de resultados sociais da poltica econmica desenvolvimentista, aps quase uma dcada de aplicao. Deste refluxo do pensamento desenvolvimentista, origina-se outra corrente terica crtica. O Modelo de

    Subdesenvolvimento Capitalista influenciado por Trotsky, pelas teses da IV Internacional e pelos marxistas norte-americanos Paul Baran e Paul Sweezy seria desenvolvido principalmente por Andr Gunder Frank, Caio Prado Jr. e Ruy Mauro

    Marini.

  • 29

    Estas seriam, na viso de Mantega, as principais correntes tericas dos anos

    1950 e 1960. Sem precisar uma periodizao para seu estudo, o autor limita-se a mapear

    e analisar estes trs modelos, afirmando serem consolidadas somente aps o milagre econmico brasileiro, iniciado em 1968, as outras duas vertentes mencionadas. A

    teoria da dependncia, segundo o autor, lanada pelo trabalho de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependncia e Desenvolvimento na Amrica Latina, e

    consolidada na dcada de 1970 por Francisco de Oliveira, Paul Singer e Maria da

    Conceio Tavares, partindo de uma anlise que privilegiava os condicionantes internos

    da dinmica de acumulao de capital e das disputas entre as classes sociais. E o

    Modelo Brasileiro de Desenvolvimento, expresso do pensamento conservador que

    subsidiava as polticas econmicas postas em prtica depois do golpe de 1964 e se

    baseava nos princpios da teoria neoclssica liberal, tendo seus principais representantes

    em Roberto Campos e Mrio Henrique Simonsen.

    Embora se reconhea aqui a importncia desta primeira tentativa de

    sistematizao, salta aos olhos a ausncia de qualquer referencial metodolgico para o

    mapeamento da HPEB e seus supostos modelos. Tambm de estranhar, tratando-se de

    um trabalho histrico, a negligncia com a periodizao, sem que haja qualquer

    balizamento do perodo estudado. Ressalta-se, portanto, o carter arbitrrio deste

    trabalho pioneiro, como bem salienta o prprio autor:

    Antes de comear a anlise, convm chamar a ateno do leitor para o carter arbitrrio envolvido na escolha dos autores e na ordenao de suas teses em modelos de interpretao. O fato que no existe, at o momento, uma sistematizao dessas obras ou um balano de seu alcance que possa servir de referencial, porque o pensamento econmico brasileiro ocupou-se do sistema econmico mas esqueceu-se, ou talvez no tivesse tempo, de analisar a si mesmo e de escrever a sua histria. (MANTEGA, [1984] 1987, p.21)

    Em Pensamento Econmico Brasileiro: o ciclo ideolgico do

    desenvolvimentismo 1930-1964, Bielschowsky encara de forma consistente este esforo

    de sistematizao. Apresenta na abertura de seu trabalho uma proposta metodolgica e

    uma periodizao coerente para a ordenao das correntes de pensamento, assim como

    do movimento das idias econmicas ao longo do perodo abordado. O autor parte da

    distino proposta por Joseph Schumpeter em sua Histria da Anlise Econmica, onde

    prope que as pesquisas sobre o pensamento econmico sejam segmentadas de acordo

    com os seguintes objetos de estudo: a) histria da anlise econmica; b) histria dos

    sistemas de economia poltica; c) histria do pensamento econmico.

  • 30

    Schumpeter prope, desta forma, uma ciso de carter positivista entre a histria

    da anlise econmica, entendida como a evoluo do instrumental analtico utilizado na

    cincia econmica; a histria dos sistemas de economia poltica, entendida como um

    amplo conjunto de polticas econmicas que os autores sustentam tendo por fundamento determinados princpios unificadores (normativos), como os princpios do

    liberalismo econmico, do socialismo etc (SCHUMPETER apud BIELSCHOWSKY, [1988] 2000, p.6), isto , a dimenso ideolgica do pensamento econmico; e a histria

    do pensamento econmico propriamente dita que se resumiria soma total das opinies e desejos referentes a assuntos econmicos especialmente relativos poltica

    governamental que, em determinado tempo e lugar, pertencem ao esprito pblico (SCHUMPETER apud BIELSCHOWSKY, [1988] 2000, p.6), ou seja, a conjuntura

    histrica em que se desenvolve o pensamento.

    Apesar da referncia a Schumpeter, Bielschowsky no adota plenamente esta

    diviso positivista entre cincia, ideologia e histria na formulao de seu mtodo de

    pesquisa. Ao contrrio, o autor subverte a diviso proposta, pois mesmo negando a

    existncia de uma histria da anlise econmica no Brasil em sua avaliao a contribuio do pensamento brasileiro anlise econmica foi escassa no perodo,

    sendo mero prolongamento da CEPAL13 concentra-se em fazer uma conjugao da histria dos sistemas de economia poltica com a histria do pensamento econmico. Ao conjugar as duas instncias analticas, acaba por abandonar os critrios schumpeterianos, afirmando ser impossvel pensar a histria do pensamento econmico

    ou dos sistemas de economia poltica sem os sistemas analticos de referncia. Isto fica

    explcito quando Bielschowsky assume o desenvolvimentismo como o sistema de economia poltica hegemnico, definidor de uma ideologia desenvolvimentista, baseada

    no quadro analtico cepalino, e norteador das polticas econmicas elaboradas e

    debatidas de forma geral em cada conjuntura histrica especfica. Executa, portanto, a

    sntese das trs dimenses propostas por Schumpeter, superando-o na constituio de

    um mtodo de anlise para o pensamento econmico brasileiro.

    13 No h, no caso do perodo abordado, muito sentido em se fazer uma histria da produo analtica brasileira no campo da cincia econmica. Essa produo, alm de escassa, foi, no essencial, um simples desdobramento da nica produo analtica latino-americana de monta do perodo, ou seja, a obra da Cepal, j amplamente avaliada. [...] Por isso, a dimenso histrica do pensamento econmico, e no seu contedo analtico, transforma-se, necessariamente, na linha-mestra de nosso estudo. (BIELSCHOWSKY, [1988] 2000, p.6)

  • 31

    Tendo por base o perodo de implantao do sistema industrial brasileiro, o autor

    apresenta da seguinte forma o corte conceitual adotado para mapear a HPEB:

    O pensamento econmico que relatamos estava politicamente engajado na discusso do processo de industrializao brasileira. O conceito-chave que organiza o relato e que lhe concede unidade o de desenvolvimentismo. Entendemos por desenvolvimentismo, neste trabalho, a ideologia de transformao da sociedade brasileira definida pelo projeto econmico que se compe dos seguintes pontos fundamentais:

    a) a industrializao integral a via de superao da pobreza e do subdesenvolvimento brasileiro;

    b) no h meios de alcanar uma industrializao eficiente e racional no Brasil atravs das foras espontneas do mercado; por isso, necessrio que o Estado a planeje;

    c) o planejamento deve definir a expanso desejada dos setores econmicos e os instrumentos de promoo dessa expanso; e

    d) o Estado deve ordenar tambm a execuo da expanso, captando e orientando recursos financeiros, e promovendo investimentos diretos naqueles setores em que a iniciativa privada seja insuficiente. (BIELSCHOWSKY, [1988] 2000, p.7)

    A partir deste marco conceitual, procede a uma apresentao do que considera as

    cinco principais correntes de pensamento do perodo e seus principais representantes: o

    neoliberalismo, de Eugnio Gudin; o desenvolvimentismo do setor privado, de Roberto

    Simonsen; o desenvolvimentismo do setor pblico no nacionalista, de Roberto Campos; o desenvolvimentismo do setor pblico nacionalista, de Celso Furtado; e a corrente socialista, representada pelo PCB, em especial por Caio Prado Jr.

    Feita esta primeira parte de exposio geral do pensamento de cada corrente,

    dedica-se, na segunda parte do trabalho, a determinar o processo evolutivo dos debates

    econmicos no tempo, identificando a influncia da conjuntura histrica sobre as

    formulaes tericas. Para tanto, adota o conceito de ciclo ideolgico do desenvolvimentismo e prope a seguinte periodizao, balizada pela histria real: as origens do desenvolvimentismo, de 1930 a 1945; o amadurecimento do

    desenvolvimentismo, de 1945 a 1955 (subdividido em trs perodos 1945-1947, 1948-

    1952 e 1953-1955); auge e crise do desenvolvimentismo, de 1956 a 1964

    (respectivamente, 1956-1960 e 1961-1964).

    Num balano final de sua proposta metodolgica e dos resultados por ela

    obtidos, o autor concluiria da seguinte forma sua pesquisa:

    A orientao adotada partiu ento da compreenso de que, no Brasil da era desenvolvimentista, as idias econmicas eram expostas e discutidas em

  • 32

    estreita associao com o projeto econmico que cada autor tinha para o pas, quase sempre com uma remota ligao com a teoria econmica. A chave da sistematizao da literatura econmica brasileira teria ento de ser encontrada num procedimento de associao sistemtica entre a produo intelectual e o processo real, devendo-se descer, se possvel, ao nvel da relao entre as idias e a conjuntura econmica e poltica. (BIELSCHOWSKY, [1988] 2000, p.431)

    Posteriormente, em trabalho escrito juntamente com Carlos Mussi e publicado

    em 2005, Bielschowsky reafirmaria seu mtodo de anlise, prolongando o perodo de

    estudo at o momento da publicao14. Ali identifica trs grandes fases do pensamento

    econmico brasileiro, diretamente influenciadas pela histria concreta. Nesta nova

    periodizao caracteriza o ciclo ideolgico do desenvolvimentismo, de 1930 a 1964,

    como o ciclo original; aps o golpe de 1964 teria sido iniciado um segundo ciclo desenvolvimentista, isto , o ciclo desenvolvimentista no regime autoritrio, que se estenderia at 198015; da em diante, em virtude da crescente instabilidade internacional

    e das enormes restries externas enfrentadas pela economia brasileira, teramos entrado

    na era da instabilidade macroeconmica inibidora, quando o debate sobre desenvolvimento perderia de vez a hegemonia, tornando-se subsidirio da busca da

    estabilidade macroeconmica.

    As duas primeiras fases, por sua vez, apresentariam subperodos. Para o ciclo original, o autor mantm a subdiviso anteriormente apresentada, dando, contudo, maior nfase na distino dos momentos de auge (1956-1960) e crise (1961-1964).16 J

    para a fase do ciclo desenvolvimentista no regime autoritrio, ou segundo ciclo ideolgico do desenvolvimentismo, descreve um novo movimento cclico: o amadurecimento do desenvolvimentismo do regime autoritrio e da perspectiva

    desenvolvimentista crtica, de 1964-1968; a maturidade de 1968 a 1974, isto , um

    momento de auge das correntes governista e crtica, que coincide com o chamado

    milagre brasileiro; e depois um perodo, de 1974 a 1980, no qual este pensamento e estas polticas sofreram uma fragilizao em virtude das conseqncias do primeiro

    14 Bielschowsky & Mussi (2005), O Pensamento Desenvolvimentista no Brasil: 1930-1964 e anotaes sobre 1964-2005. 15 [...] reconhecimento de que os governos do regime iniciado em 1964 praticaram uma poltica econmica radicalmente desenvolvimentista at 1980, buscando a continuidade da formao de uma ampla e integrada economia industrial por meio de planejamento e forte interveno estatal. (BIELSCHOWSKY e MUSSI, 2005, p.20) 16 O processo de elaborao do projeto desenvolvimentista passou, no perodo, por quatro subperodos, que descrevem um ciclo ideolgico: nascimento (1930-1945), amadurecimento (1945-1955), auge (1956-1960) e crise (1961-1964). (BIELSCHOWSKY e MUSSI, 2005, p.3)

  • 33

    choque do petrleo e do colapso do sistema monetrio internacional, tal como montado

    pelos acordos de Bretton Woods.

    Bielschowsky afirma que, durante este segundo ciclo, o desenvolvimentismo,

    entendido como sistema de economia poltica, foi a ideologia hegemnica. Porm,

    distingue diferentes correntes de pensamento que travaram intenso debate em torno da

    questo do desenvolvimento. A principal diferena deste segundo ciclo em relao ao

    primeiro, no que diz respeito s correntes de pensamento, se coloca frente polarizao

    poltica que representou o golpe de 1964. O ncleo desenvolvimentista que, antes de 1964, era segmentado em setor privado, setor pblico no nacionalista e setor pblico

    nacionalista passa ento a diferenciar-se de acordo com o apoio ou a oposio ditadura civil-militar. Ou seja, o autor identifica duas correntes desenvolvimentistas,

    uma governista e outra crtica. Os desenvolvimentistas governistas ocuparam os mais importantes cargos civis

    da ditadura, em especial da rea econmica, e seriam principalmente representados por

    Octvio Gouveia de Bulhes, Roberto Campos, Delfim Netto, Mrio Henrique

    Simonsen, Joo Paulo dos Reis Velloso e Carlos Langoni. J os desenvolvimentistas

    crticos quando no tiveram seus direitos polticos simplesmente cassados e foram exilados do pas eram, em geral, professores e pesquisadores dos recm-criados centros de ps-graduao ou de instituies de pesquisa como o Centro Brasileiro de

    Anlise e Planejamento (Cebrap) e o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA),

    e se personificaram principalmente nas figuras de Celso Furtado, Igncio Rangel, Maria

    da Conceio Tavares, Jos Serra, Antonio Barros de Castro, Carlos Lessa, Bresser

    Pereira, Luiz Gonzaga Belluzzo, Joo Manuel Cardoso de Mello, Edmar Bacha, Albert

    Fishlow, Pedro Malan e Paul Singer. De forma perifrica ao debate desenvolvimentista,

    o autor identifica outras duas correntes, j presentes no perodo pr-1964. So elas: a

    socialista, de Caio Prado Jr., Ruy Mauro Marini, Theotnio dos Santos e Francisco de

    Oliveira, cuja influncia maior teria ocorrido na segunda metade dos anos 1960; e a

    neoliberal, de Eugnio Gudin, cuja influncia comearia a se recuperar somente a partir

    do final dos anos 1970.

    Nestes dois trabalhos, Bielschowsky logra apresentar um mapeamento

    consistente das grandes controvrsias travadas na HPEB para o perodo 1930-1980.

    Cabe ponderar que, apesar de se referir metodologia de Schumpeter, acaba por realizar

    uma anlise materialista do pensamento econmico brasileiro, conectando as questes

  • 34

    tericas com a conjuntura histrica e as disputas polticas em meio as quais se

    desenvolveram. Entre a pesquisa dos anos 1980 e o ensaio dos anos 2000, observa-se

    tambm uma inflexo na avaliao do autor a respeito da contribuio brasileira ao

    instrumental analtico da cincia econmica. Se, no livro de 1988, qualifica esta

    produo como escassa e um mero desdobramento da CEPAL; em 2005, aponta

    algumas contribuies originais do pensamento brasileiro, em especial pela obra de

    Furtado.

    Celso Furtado tornou-se o lder da corrente desenvolvimentista nacionalista a partir de meados da dcada dos 1950. Foi o principal difusor no Brasil da teoria estruturalista do subdesenvolvimento perifrico, elaborada na CEPAL por Prebisch, e a ela acrescentaria uma srie de contribuies analticas que marcaram profundamente o pensamento desenvolvimentista brasileiro. (BIELSCHOWSKY e MUSSI, 2005, p.16)

    1.3 CELSO FURTADO: A OBRA E SUAS CONTROVRSIAS O subdesenvolvimento foi objeto de estudo de toda vida de Celso Furtado,

    durante mais de 50 anos dedicou-se anlise das razes e da dinmica deste processo

    especfico de desenvolvimento que caracterizou diversos pases no mundo,

    particularmente os pases latino-americanos. Neste longo tempo de estudo pde abrir e

    ampliar o conceito de desenvolvimento, tratando de suas vrias faces desde o estrito desenvolvimento das foras produtivas, passando pela estrutura de poder e chegando

    dimenso cultural onde talvez a melhor definio seja a do desenvolvimento econmico enquanto parte do processo de mudana cultural.

    No perodo posterior segunda guerra mundial, quando o debate era polarizado

    entre neoclssicos, keynesianos e marxistas, Furtado evita rtulos ou filiaes,

    exercendo a crtica permanente a estas correntes. Rechaa tanto o carter a-histrico e

    generalizante de neoclssicos e keynesianos, quanto o mecanicismo e o determinismo

    do marxismo de orientao estalinista ento em voga. O que no impede, porm, que

    tenha sido influenciado por todos, apesar de to opostos entre si.

    Se pretendssemos sintetizar a contribuio das trs correntes de pensamento referidas para o advento de um comeo de pensamento econmico autnomo e criador, no mundo subdesenvolvido, diramos que o marxismo fomentou a atitude crtica e inconformista, a Economia clssica serviu para impor a disciplina metodolgica, sem a qual logo se descamba para o dogmatismo, e a ecloso keynesiana favoreceu melhor compreenso do papel do Estado no

  • 35

    plano econmico, abrindo novas perspectivas ao processo de reforma social. (Furtado, 1961, p.13)17

    Furtado tenta buscar em fontes to eclticas e dspares os recursos construo

    de uma teoria inovadora, onde todos os conceitos devem ser redefinidos para que sejam

    apreendidos em um novo contexto terico. Talvez esteja na sua concepo da funo

    social dos intelectuais o motivo deste ecletismo: via o intelectual como algum que

    deveria zelar pelas bases tericas que subsidiassem as aes prticas.18 Esta obrigao

    de formular guias que norteassem as intervenes do ser humano sobre a realidade

    pesou muito na teoria de Furtado, e foi essa fora motora que elevou suas propostas

    condio de uma das principais bases tericas da ideologia nacional-desenvolvimentista,

    orientadora das polticas de diversos Estados latino-americanos durante largo perodo.

    Este mpeto para colocar suas ideias em prtica, fez a construo terica de

    Furtado ser socialmente condicionada, isto , aplica-se a um perodo histrico especfico

    e a um objeto de estudo muito claro. O prprio mtodo de trabalho utilizado impede

    maiores generalizaes, pois ressalta as especificidades de cada poca e de cada lugar.

    Assim, tem-se uma teoria que no se pretende geral, ou mesmo generalizante, mas que

    tem antes a inteno de generalizar o mtodo, dado que somente ele poderia ser

    aplicado a distintas realidades e situaes concretas, enquanto a teoria deveria ser

    reformulada constantemente, em um processo contnuo sem a possibilidade de

    equilbrio, tal como o desenvolvimento dos pases e suas trajetrias histricas.

    No processo de formao de sua teoria do subdesenvolvimento, Furtado busca

    refutar o pretenso grau de universalidade contido nas anlises do desenvolvimento

    econmico. Elabora, ento, o mtodo histrico-estrutural, para captar a partir da

    dimenso histrica a constituio das estruturas internas e externas que balizavam o

    desenvolvimento dos pases subdesenvolvidos. Talvez esta tenha sido sua maior

    contribuio ao que ficou conhecido posteriormente como Estruturalismo Latino-

    Americano.

    Com o objetivo de determinar os momentos essenciais na formao da teoria do

    subdesenvolvimento de Celso Furtado, prope-se o mapeamento das controvrsias em

    funo da histria. Neste quesito, as referncias so, os j citados, Fiori ([1984] 2003) e

    17 Vale notar que a ideia de economia clssica parece seguir a proposio de Keynes, na qual se inclui a economia poltica clssica e a economia neoclssica. 18 A outra influncia, no citada, de Karl Mannheim, do ponto de vista de uma ao racional voltada para fins objetivos; longe da indeterminao, do acaso, os sujeitos da cena poltica, econmica e social agem conforme um plano racional, voltado a preservar seus interesses. (OLIVEIRA, [1997] 2003, p.78)

  • 36

    Bielschowsky ([1988] 2000), complementados posteriormente por Fiori (2004)19 e

    Bielschowsky e Mussi (2005). Os trabalhos de Fiori sobre as grandes transformaes no

    sistema capitalista mundial com seus momentos de crise, transio e retomada das sucessivas hegemonias estabelecidas do o marco histrico para o movimento de longa durao das estruturas. J os trabalhos de Bielschowsky apresentam uma

    periodizao para o estudo do pensamento econmico brasileiro pautada principalmente

    pelas oscilaes do ciclo econmico. A conjuno destas duas referncias permite uma

    percepo mais clara dos perodos histricos que nortearam a produo terica.

    Na tese de 1984 e nos trabalhos subseqentes, Fiori argumenta que h um longo

    processo de construo do Estado desenvolvimentista no Brasil, iniciado em 1914 com a primeira guerra mundial marcando a deflagrao da luta sucessria pela

    hegemonia mundial , e que se estende at o final dos anos 1980, com o fim da guerra fria e o estabelecimento do consenso de Washington, rumando para uma nova ordem

    mundial unipolar pautada pelo neoliberalismo. Este longo ciclo teria dois momentos de

    inflexo: o primeiro ao final da segunda guerra mundial, no ano de 1945, quando

    delineada a estrutura da hegemonia dos EUA no mundo capitalista e tem incio a guerra

    fria, num contexto de bipolarizao com a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

    (URSS); o outro ponto de inflexo seria em meados da dcada de 1970, especialmente o

    ano de 1974, aps o rompimento unilateral dos acordos de Bretton Woods por parte dos

    EUA, o primeiro choque do petrleo e o fracasso militar estadunidense na guerra do

    Vietn.

    Busca-se conjugar esta viso histrica de longo prazo com a dinmica do ciclo

    econmico, tal como apresentada por Bielschowsky. Assim, definem-se trs perodos

    bsicos de estudo para a obra de Furtado: formao da teoria do subdesenvolvimento:

    1945-1961; crtica da teoria do subdesenvolvimento: 1962-1974; reformulao da

    teoria do subdesenvolvimento: 1975-1989. Como afirmado anteriormente, dentro do

    escopo do trabalho, limita-se aqui a analisar o primeiro dos perodos. Busca-se, ento,

    estruturar as controvrsias de forma a captar sua influncia sobre a formulao terica

    de Furtado, agrupando-as de acordo com os livros mais relevantes do autor sobre os

    pontos em debate. Deste modo, tm-se as seguintes controvrsias: no perodo 1945-

    1961, formao econmica do Brasil, e desenvolvimento e subdesenvolvimento; no

    19 O Poder Global dos Estados Unidos: formao, expanso e limites; em FIORI (org.), O Poder Americano.

  • 37

    perodo 1962-1974, anlise do "modelo" brasileiro, e o mito do desenvolvimento:

    subdesenvolvimento e dependncia; entre 1975 e 1989, a nova dependncia; e cultura e

    desenvolvimento.

    Aps a segunda guerra mundial, em especial durante os anos 1950, estabelece-se

    um grande debate em torno das teorias do desenvolvimento. Neste momento, Furtado

    trabalhou na Cepal de 1949 a 1957, e ocupou diversos cargos polticos no Brasil:

    algumas passagens pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social

    (BNDES), onde presidiu o Grupo Misto Cepal-BNDE entre 1953 e 1955; e a criao da

    Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959. A partir desta

    insero social, o autor colige os elementos para a formao da teoria do

    subdesenvolvimento, isto , se insere criticamente em algumas das principais

    controvrsias suscitadas poca, tomando alguns autores como fonte para sua

    consolidao terica posterior. Aps ensaios e tentativas parciais ao longo desta dcada,

    alcana uma nova sntese em dois de seus livros mais importantes, suas pedras de

    alicerce: Formao Econmica do Brasil (1959) e Desenvolvimento e

    Subdesenvolvimento (1961).

    Sob o ttulo Formao Econmica do Brasil procura-se enquadrar o debate

    sobre a formao histrica das estruturas subdesenvolvidas, evidentemente focado no

    caso brasileiro. Alguns pontos de destaque so: as caractersticas da economia colonial;

    os ciclos de produo na economia colonial e dependente; o fim da escravido e a

    transio ao trabalho assalariado como condio necessria para formao do mercado

    interno; a formao da economia de subsistncia e o dualismo estrutural; a poltica de

    defesa do caf e suas consequncias para a economia brasileira; e a ascenso da

    burguesia industrial e a industrializao.

    Esta controvrsia, fundadora da historiografia econmica brasileira, se inicia, de

    fato, ainda antes da segunda guerra mundial, com os trabalhos de Roberto Simonsen:

    Histria Econmica do Brasil (1937), Aspectos da Histria Econmica do Caf (1938)

    e Evoluo Industrial do Brasil (1939); e segue seu curso na interpretao original de

    Caio Prado Jr., em Evoluo Poltica do Brasil (1933); Formao do Brasil

    Contemporneo (1942) e Histria Econmica do Brasil (1945). Estes autores elaboram

    as interpretaes mais influentes do perodo, representando vises de mundo opostas.

    Simonsen plenamente vinculado burguesia industrial, inclusive presidindo a

    Federao das Indstrias do Estado de So Paulo (Fiesp); e Caio Prado adotando o

  • 38

    ponto de vista da classe trabalhadora, atuando junto ao Partido Comunista Brasileiro

    (PCB).

    Furtado seria fortemente influenciado por ambos, numa srie de trabalhos sobre

    o tema, comeando por sue tese de doutorado defendida na Universidade de Paris em

    1948, sob o ttulo A Economia Colonial Brasileira nos sculos XVI e XVII. Seguida dos

    estudos realizados na Comisso Econmica para Amrica Latina (Cepal), publicando o

    artigo Caractersticas Gerais da Economia Brasileira (1950) e o livro A Economia

    Brasileira (1954). Estes estudos alcanariam a forma definitiva somente no ano de

    1959, quando aps deixar a Cepal em 1957 Furtado vai para a Universidade de Cambridge como pesquisador visitante e conclui um de seus livros clssicos: Formao

    Econmica do Brasil (1959).

    Ao longo dos anos 1950, o tema do desenvolvimento econmico ganhou muita

    fora, sendo debatido de forma intensa. Em Desenvolvimento e Subdesenvolvimento,

    busca-se apresentar esta controvrsia internacional em seus pontos mais relevantes,

    quais sejam: os limites do comrcio exterior e da especializao produtiva na diviso

    internacional do trabalho como via de desenvolvimento; o desequilbrio do balano de

    pagamentos e sua relao com a deteriorao dos termos de troca; a polarizao

    crescente da economia mundial entre centro-periferia ou desenvolvimento-

    subdesenvolvimento; a dependncia tecnolgica e a baixa absoro de trabalhadores

    pelos processos produtivos adotados, gerando a persistncia de um excedente de mo-

    de-obra; e a necessidade da industrializao perifrica e de seu planejamento pelo

    Estado.

    Alguns autores so representativos desta grande teorizao sobre a economia do

    desenvolvimento, em geral professores e pesquisadores de universidades estadunidenses

    e inglesas, com passagens pelo governo dos EUA e pela ONU. Dentre eles: Paul

    Rosenstein-Rodan, com os textos Problemas de Industrializao da Europa Oriental e

    Sul-oriental (1943) e Notas sobre a Teoria do Grande Impulso (1957); Ragnar Nurkse,

    com Alguns Aspectos Internacionais do Desenvolvimento Econmico (1953) e A Teoria

    do Comrcio Internacional e a Poltica de Desenvolvimento (1957); Arthur Lewis, com

    O Desenvolvimento Econmico com Oferta Ilimitada de Mo-de-obra (1954); e Walt

    Whitman Rostow: A Decolagem para o Desenvolvimento Auto-sustentado (1956) e

    Etapas do Desenvolvimento Econmico (um manifesto no-comunista) (1960).

  • 39

    Nesta arena de debates internacional, os primeiros membros da Cepal tiveram

    uma importncia decisiva na defesa dos interesses da industrializao latino-americana.

    Comeando, claro, por Ral Prebisch e seus trabalhos clssicos: O Desenvolvimento

    Econmico da Amrica Latina e Alguns de seus Principais Problemas (1949);

    Crescimento, Equilbrio e Disparidades: interpretao do processo de desenvolvimento

    econmico (1950) parte introdutria ao famoso Estudo Econmico da Amrica Latina, 1949; e Problemas Tericos e Prticos do Crescimento Econmico (1951).

    Furtado daria, no s sequncia, mas tambm destacadas contribuies aos

    primeiros passos do estruturalismo latino-americano em vrias publicaes do perodo.

    Especialmente em Formao de Capital e Desenvolvimento Econmico (1952); A

    Economia Brasileira (1954); O Desenvolvimento Econmico ensaio de interpretao histrico-analtica (1955); Industrializao e Inflao anlise do desenvolvimento recente do Brasil (1960). Estes artigos e o livro de 1954 seriam retrabalhados e

    compilados no livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961), quando o autor

    expe pela primeira vez de forma sistemtica sua teoria do subdesenvolvimento. Com

    isso, procede a uma superao das interpretaes e teorias ento vigentes, conquistando

    o consenso em torno de sua nova proposta. O que o levou ao comando da SUDENE e

    inaugurao do Ministrio do Planejamento em 1962.

    Apesar de no serem analisados nesta tese, cabe fazer um mapa dos outros

    perodos da obra de Furtado, com intuito de apreend-la em perspectiva de totalidade.

    Neste perodo de crise poltica no Brasil no incio dos anos 1960, Furtado proporia as

    reformas de base para alterar o modelo de desenvolvimento brasileiro. Aps ser exilado

    pelo golpe civil-militar de 1964, assumiu, em 1965, a ctedra de Desenvolvimento

    Econmico da Universidade de Paris, permanecendo l durante os vinte anos de

    ditadura e atuando como professor visitante de outras universidades estrangeiras. Com o

    exlio, o autor torna-se extremamente ctico e argumenta pela tendncia estagnao da

    economia brasileira, uma vez que no foram feitas as reformas. Ao mesmo tempo,

    desenrola-se um debate em torno das caractersticas que assume a dependncia na

    Amrica Latina, explorando os vnculos entre a burguesia nacional e o capital

    estrangeiro, com o avano da internacionalizao do capital.

    Furtado seria tomado como ponto de referncia nestes debates e passaria a ser

    criticado por diferentes autores, inscritos em diferentes corretes de pensamento. A

    crtica da teoria do subdesenvolvimento trataria de realizar com Furtado o que ele

  • 40

    outrora havia feito, dialogando criticamente na tentativa de proceder a uma superao.

    Deste movimento de contestao teoria do subdesenvolvimento florescem algumas

    das mais importantes controvrsias da histria do pensamento econmico brasileiro e

    latino-americano. Estas esto na origem de livros estruturantes da obra de Furtado marcando tambm um momento de inflexo em seu pensamento por exemplo, Anlise do "Modelo" Brasileiro (1972) e O Mito do Desenvolvimento Econmico (1974). Assim

    como a reavaliao crtica, no incio dos anos 1970, de sua tese original, lanada em

    Formao Econmica do Brasil e posteriormente reafirmada em Formao Econmica

    da Amrica Latina (1969), sobre a transio para o sistema industrial da economia

    brasileira e latino-americana.

    Defende-se aqui que os autores envolvidos nestas controvrsias tomam a obra de

    Furtado como fonte, realizando em relao a ela uma nova superao dialtica, que

    envolve conservao de certos elementos, negao de outros e busca de uma nova

    sntese. Destas novas snteses formaram-se as principais correntes tericas do perodo,

    correntes que viriam subsidiar a fundao de importantes centros de ps-graduao no

    Brasil no campo das cincias sociais. Apresenta-se, assim, a centralidade de Furtado na

    evoluo do pensamento social brasileiro.

    Com a indicao Anlise do "Modelo" Brasileiro, procura-se englobar um longo

    debate que se segue proposio inicial de Furtado de que sem a realizao das

    reformas de base haveria uma tendncia estagnao no Brasil, se desdobrando num

    debate acerca das caractersticas do modelo de desenvolvimento brasileiro. Os pontos

    mais controversos seriam: as fontes de impulso dinmico do crescimento econmico; a

    concentrao de renda como limitadora do crescimento das economias

    subdesenvolvidas; a tecnologia de produo adotada e a evoluo da relao capital-

    produto; os limites dinmicos da industrializao por substituio de importaes; as

    mudanas no modelo de desenvolvimento brasileiro, com a formao do trip: Estado, capital estrangeiro e capital nacional; alm da caracterstica cclica da

    acumulao de capital.

    As publicaes essenciais de Furtado sobre o tema so A Pr-Revoluo

    Brasileira (1962); Dialtica do Desenvolvimento (1964); Subdesenvolvimento e

    Estagnao na Amrica Latina (1966), Teoria e Poltica do Desenvolvimento

    Econmico (1967) e Anlise do Modelo Brasileiro (1972). O debate crtico se d, fundamentalmente, por parte de autores tributrios da Cepal, situados no escritrio da

  • 41

    instituio no Rio de Janeiro, ministrando cursos de especializao no Banco Nacional

    de Desenvolvimento Econmico (BNDE) e lecionando na Universidade Federal do Rio

    de Janeiro (UFRJ). A principal e mais persistente crtica provm de Maria da Conceio

    Tavares, com Auge e Declnio do Processo de Substituio de Importaes no Brasil

    (1963); Alm da Estagnao: uma discusso sobre o estilo de desenvolvimento recente

    no Brasil (1970) escrito com Jos Serra e Acumulao de Capital e Industrializao no Brasil (1974)20. Tambm contriburam de forma decisiva Carlos Lessa, em Quinze

    Anos de Poltica Econmica (1965); Antonio Barros de Castro, em O Modelo Histrico

    Latino-Americano: uma tentativa de sistematizao de sua estruturao e dinmica

    internas (1966); e Anbal Pinto, em Natureza e Implicaes da "Heterogeneidade

    Estrutural" da Amrica Latina (1970) e Notas sobre os Estilos de Desenvolvimento na

    Amrica Latina (1976).

    Ao final dos anos 1960, se estabelece uma nova controvrsia sintetizada em O

    Mito do Desenvolvimento: subdesenvolvimento e dependncia. Dando sequncia

    crtica da demasiada fora explicativa que adquirem os fatores externos na teorizao de

    Furtado, apresenta-se a dependncia por uma perspectiva, maiormente, sociolgica,

    debatendo os seguintes pontos: uma reviso da formao histrica dos pases latino-

    americanos, com a consolidao das relaes: centro-periferia, desenvolvimento-

    subdesenvolvimento, dominao-dependncia; a formao das classes sociais e da

    estrutura de poder interna aos pases; o dualismo estrutural e as formaes pr-

    capitalistas; a relao entre burguesia nacional e capital estrangeiro; o movimento de

    internacionalizao do capital atravs das transnacionais e sua influncia sobre a

    autonomia dos Estados nacionais dependentes; os limites do desenvolvimento

    capitalista nestes pases.

    As contribuies mais pertinentes de Furtado ao tema so: Teoria e Poltica do

    Desenvolvimento Econmico (1967), Formao Econmica da Amrica Latina (1969),

    A Hegemonia dos Estados Unidos e o Subdesenvolvimento da Amrica Latina (1973), O

    Mito do Desenvolvimento Econmico (1974). J a crtica mais veemente e diretamente

    relacionada teoria do subdesenvolvimento viria por parte de autores que, de alguma

    forma, passaram pela Cepal no Chile. Primeiro, por pessoas ligadas ao Instituto

    Latinoamericano de Planificacin Econmica y Social (Ilpes, rgo da Cepal) e ao

    Centro de Estudios Socio-Econmicos da Universidade

top related